oEMPENHO DO CORPO Da performance à leitura, muda a estrutura do sentido. A primeira não pode ser reduzida ao estatuto de objeto semiótico; sempre alguma coisa dela transborda, recusa-se a funcionar como signo ... e todavia exige interpretação: " elementos mar- .~, I':~ Il:,:ili I' !Li! ",11 ginais, que se relacionam à linguagem e raramente codificados (o gesto, a entonação), ou situacionais, que se referem à enunciação (tempo, lugar, cenário). Salvo em caso de ritualização forte, nada disso pode ser considerado como signo propriamente dito - no entanto, tudo aí faz sentido. A análise da performance revelaria assim os graus de semanticidade; mas trata-se, antes, de um processo global de significação. O texto escrito, em compensação, reivindica sua semioticidade. Só o "estilo" como tal escapole daí em parte. Por isso, já há alguns anos, sugeri a distinção entre a obra e o texto, em se tratando de "poesia": 1 o segundo termo designa uma seqüência mais ou menos longa de enunciados; o primeiro, tudo que é poeticamente comunicado, hic et nunc. É no nível da obra que se .:"",:',ir ~!:,If ,,:rlll 75 Ela ensinava. O corpo dá a medida e as dimensões do mundo. mas que as palavras resistem. auditivos. não os tolerava. em suma.. eu sou tocado por ele. do texto e dos elementos não textuais). no qual se fundamenta. sem dúvida. Essa leitura comporta. Que o corpo seja assim comprometido na percepção plena do poético. uma intervenção corporal. em uma espécie de volta do rechaçado. visuais. os antigos parecem ter tido consciência disto. na qual. à leitura do texto poético. múltiplos elementos significantes. da idéia de performance é uma das conseqüências. Nesse sentido. o ponto de origem e o referente do discurso. distinguindo entre as "partes" da retórica. sem o qual é inconcebível: em uma semântica que abarca o mundo (é eminentemente o caso da semântica poética). e. sistematizados ou não no contexto cultural. I! li " a época das Luzes os apagou. um acompanhamento de formas lúdicas de comportamento. 2 A idéia de "literatura" que tomava forma então. a lembrança desse aspecto da doutrina se perdeu. Traços dela subsistem na "retórica das paixões" concebida por alguns teóricos do começo do século XVII. Essa idéia. ação dupla. elas têm uma espessura. Concebida a propósito da performance. abrangendo. E nesse sentido que se diz. pode-se dizer que o discurso poético valoriza e explora um fato central. desprovidas de conteúdo predeterminado . à sua maneira. O mundo me toca. o corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida. por duzentos anos. um esforço para se eximir limitações semânticas próprias à ação de ler. alto/baixo e outros são apenas projeção do corpo sobre o cosmo. hoje. há aí menos uma conquista do que a redescoberta de um fenômeno primário.sem dúvida. que para ir ao sentido de um discurso. com o dqtexto. táteis. a idéia de obra se aplica. ligado ao conjunto de fenômenos contemporâneos que se embrulham sob o termo duvidoso de pós-modernidade. o que eu denominaria o barulho de fundo existencial (as conotações. eclipsada durante um certo tempo. os eixos espaciais direita/esquerda.3 É por isto que o rial sobre o ouvinte. segundo a expressão de Gérard Genette. igualmente válida nos dois sentidos. segundo o uso universal das línguas. neste ponto herdeira dos sofistas . essas "partes" tinham por fim produzir um efeito senso1i:'1 sentido cuja intenção suponho naquele que me fala. a ouvir atentamente e com um espírito que consente. reversível. hoje.manifesta o sentido global. A retórica da Antigüidade . para que elas sejam compreendidas. sua existência densa exige. renasce hoje.colocava assim. implicitamente. em um grau menor (mas de maneira não metafórica!). A generalização. Quando a retórica "restrita". de maneira paradoxal. que se pensa sempre com o corpo: o discurso que alguém me faz sobre o mundo (qualquer que seja o aspecto do mundo de que ele me fala) constitui para mim um corpo-a-corpo com o mundo. 76 77 . No entanto. era preciso atravessar as palavras. de uma articulação interiorizada. depois de um longo tempo de surdez. uma afirmação que. deixou de ser uma arte da palavra para se tornar arte literária. pronunciada e ouvida ou de uma voz inaudível. sob a forma de uma operação vocal: seja aquela da voz percebida. voltamos. condicionadas pelas circunstâncias e o estado do corpo receptor.. o que é verdade na ordem lingüística. a pronunciatio e a adio. provém de um processo indecomponÍvel em movimentos particulares. da ordem do sensível: do visível. Esse traço nos leva a constatar uma vez mais o parentesco estreito (a analogia) que liga. que.texto poético significa o mundo. seu funcionamento. O corpo não pode jamais ser totalmente recuperado. no entanto. tornando visível.4Máxima brilhante.. O mundo tal como existe fora de mim não é em si mesmo intocável. há a biologia. O mundo que me significa o texto poético é necessariamente dessa ordem. Ora. a anatomia e o resto. em suas estruturas. referindo-se por aí mesmo a uma corporeidade.. do audível. das vÍsceras. e. ritmo do sangue. ele é muito mais do que o objeto de um discurso informativo. a "poesia" como tal à comunicação oral. dos movimentos internos do corpo. mas não uma ciência do corpo como tal. é verdade. O contexto indica muito claramente que se trata de uma acumulação de conhecimentos que são da ordem da sensação e que. É pelo corpo que o sentido é aí percebido. de inapreensÍvel. consciência confusa. mas especialmente e de maneira exclusiva. seus efeitos. Neste ponto remeto a uma obra já antiga mas que marcou os homens de minha geração. O texto desperta em mim essa consciência confusa de estar no mundo. mas constituem um fundo de saber sobre o qual o resto se constrói. se impõe a um corpo (se assim se pode dizer!). e não dissimula. ele é sempre. conjunto virtualmente infinito. se esforça para isso: nos clubes cuso a ouvir os ecos de idealismo neoplatônico denunciados por alguns. Nossa sociedade de consumo. Ajenomenologia da percepção. não afloram no nível da racionalidade. sempre eu mesmo. da constatação dessa falta de firmeza do pensamento puro. Daí o prazer poético. anterior a meus afetos. por volta de 1930. Harald Weinrich. É por isso que o sentido que percebe o leitor no texto poético não pode se reduzir à decodificação de signos analisáveis. toda essa vida impressa de uma maneira indelével em minha consciência penumbral daquilo que eu sou. Não há ciência do corpo. por motivos quaisquer. fundada sobre uma monstratio. e que é como uma impureza sobrecarregando o pensamento puro . conhecimento do corpo. em nossa condição humana. Está aí o fundamento primeiro de todo conhecimento. não somente o conhecimento se faz pelo corpo mas ele é. ainda menos metafísica do corpo. em suma. daquilo que se denominava conhecimento poético. na época longínqua de Ou Bos e do abade Brémond. Ele aí estabeleceu a existência de um conhecimento antepredicativo. mas na qual me re- Esse conhecimento "antepredicativo" está na base da experiência poética. a meus julgamentos. de Merleau-Ponty. a língua aí revela alguma coisa de sua natureza profunda. em seu princípio. mas da qual pode-se pensar que revela. 78 79 . retomando uma palavra de Valéry. Ora. uma deixis: mostrando. o corpo tem alguma coisa de indomável. expressão certamente pouco feliz. escreveu recentemente que a gramática é uma memória do corpO. que provém. Da mesma forma que a poesia é manifestação (em segundo grau) de energias e de valores da linguagem atenuados ou apagados no uso comunicativo corrente. de maneira primordial. do tangível. uma verdade profunda: a existência de uma lembrança orgânica das sensações. marca de um ser a cada instante desaparecido. que pede para ser explicitada. o lugar em que se articula a poeticidade. Perceber lendo poesia é suscitar uma presença em mim. ameaçada. traduzido. base do fato poético. Daí o lado selvagem da leitura. todo conhecimento está a serviço do vivo. na significação mais corporal da palavra. Formaggio fala de intercorporeidade. 80 81 . a busca do objeto. não temos senão o nosso corpo para nos manifestar. o lado de descoberta. de aventura. O corpo não está jamais perfeitamente integrado nem no grupo nem no eu. ela coloca o sujeito no mundo. não são somente as ferramentas de registro. do olfato. Ora. Os fatos corporais não são jamais dados plenamente nem como um sentimento. a audição. e não vem para definir.de fitness. em última instância. manifestando a presença do corpo inteiro comprometido no funcionamento de cada sentido. leitor. A carne. mas fugidia. 5 A percepção é profundamente presença. do paladar. Toda presença é precária. como noção ao mesmo tempo primeira e última. a visão. É o ambiente em que me desenvolvo. não há nunca coincidência entre ela e eu. Minha própria presença para mim é tão ameaçada como a presença do mundo em mim. Minha leitura poética me "coloca no mundo" no sentido mais literal da expressão. A operação de leitura é dominada por essa característica. A poeticidade. incompleto dessa leitura.. e minha presença no mundo. e. e ti outros com ele. em linguagem técnica. Da mesma forma. rumo a esses elementos misteriosos aos quais nos dirigem as flexas que tento aqui esboçar. pela comercialização da aparência. E nessa zona mesma que se situa o conhecimento "antepredicativo" de Merleau-Ponty. o lugar para onde elas convergem. a cadeia epistemológica sensação-percepção-conhecimento-domÍnio do mundo: a sensorialidade se conquista no sensível para permitir. nem como uma lembrança. por aproximação hesitante. Por isso a cadeia epistemológica continua a fazer do vivente um sujeito. Toda poesia atravessa. como "o corpo sinérgico". errática. no corpo. sem que seja possível determinar. percebida às vezes. no entanto. A presença se move em um espaço ordenado para o corpo. O psicólogo italiano D. a sociologia estuda os comportamentos corporais impostos pelo contexto cultural. Mas nenhuma presença é plena. É claro que assim só se toca a aparência. Nossos "sentidos". da saúde (toda a indústria médica) . Descubro que existe um objeto fora de mim. colocam a unidade originária do sensível. a quem ele permite perseverar no seu ser. não a existência do corpo. de maneira precisa. A socialização do corpo tem limites. não impede que haja um resto não socializado. para além dos quais se estende uma zona de individuação propriamente impenetrável. eles demarcam uma unidade encoberta. o aspecto necessariamente inacabado. real. da audição. Eles evocam uma sensibilidade geral anterior à diferenciação da visão. a isto que alguns chamam o sensível. emprestada à tradição do cristianismo primitivo. Mikel Dufrenne. são órgãos de conhecimento. e que Merleau-Ponty denominava com uma palavra magnífica. do tato. a carne. e integra mais ou menos imperfeitamente. assim ligada à sensorialidade.. Série de paradoxos que serli- Na pluralidade de nossas sensações. como de todo prazer. O corpo permanece estranho à minha consciência de viver. engendrando o que Mikel Dufrenne denomina o virtllal. D. ou essa página meJala. se tentamos definir os caracteres corporais próprios da voz. Segunda tese: a voz. A linguagem corrente. entre o objeto e o outro. voz se empregando por palavra ou o inverso. Essas expressões manifestam um sentimento confuso dos vínculos naturais que existem entre a linguagem e a voz. Tirei daí (em particular dos trabalhos de I. médica. emprega. mas minha percepção se encontra carregada de alguma coisa que não percebo nesse instante. Tomatis) um pequeno número de teses: Primeira tese: a voz é o lugar simbólico por excelência. simplesmente choco-me com uma coisa. como estar para além 82 83 . inobjetivável. Penso que elas apelam mais a uma vocalidade sentida como presença. uma das marcas do "poético". O pressentido não é necessariamente uma imagem: ele é de algo concreto. por volta do fim do século XVIII. que vem associar-se ao sentido. fora de toda idéia preconcebida do que é a "poesia". Vasse e A. psicanalítica. Sobre essas características. expressões tais como: esse poema ou esse romance. De qualquer maneira o virtual freqüenta o real. quando as designamos. Ora. que funda a palavra do sujeito. e sobretudo a partir do fim do século XIX. metáforas. tanto mais ela permanece plenamente verdadeira quanto mais a voz é interiorizada. Ou então invocamos o tom de tal autor. resultante da acumulação memorial do corpo. Fundado sobre essa acumulação de lembranças do corpo. e que parecem referir muito banalmente à oralidade. A voz é. Essas são. "a rápida percepção". a propósito de um texto literário. o virtual aflora em todo discurso. a literatura é abundante a partir dos anos 193 o: acústica. no nível do leitor. Concebem-se as implicações dessa tese para a poesia. quando a percebemos. sem dúvida. eu o repito. 6 O que eu percebo recebe disso um peso complementar. mas um lugar que não pode ser definido de outra forma que por uma relação. me diz. Percebo esse objeto. constatamos o seguinte: a partir de ter-se desenvolvido uma reflexão sobre a essência da poesia. Quarta tese (também se referindo diretamente ao poético): a voz é uma subversão ou uma ruptura da clausura do imaainável. como um "imaginário imanente". Terceira tese: todo objeto adquire uma dimensão simbólica quando é vocalizado. No discurso recebido como poético. invade tudo. Desse modo. O virtual é da ordem do pressentir. uma distância. Nossa percepção do real é freqüentada pelo conhecimento virtual. Fonagy. estabelece ou restabelece uma relação de alteridade. alguma coisa que está inscrita na minha memória corporal. a maior parte dos caracteres físicos da voz são percebidos como positivamente presentes na poesia. e não se produz percepção auditiva registrável por aparelhos. incessantes resvalos semânticos. uma articulação entre o sujeito e o objeto. Está aí. Graças ao conhecimento "antepredicativo" se produz no curso da existência de um ser humano uma acumulação memorial. Só é concebível em relação a um sujeito para o qual há "o impercebido pendurado no percebido". pois. de origem corporal. a vasta zona de qualidades comuns em que as duas se encontram e que permite. às vezes. ele tem a pos- sibilidade de produzir uma imagem. o virtual.faço disso uma descoberta de ordem metafísica. e às vezes identifica-se com ele. Spitz: temática da oralidade-incorporação. a voz desaloja o homem do seu corpo. Enquanto falo. de onde tantos outros simbolismos. significando ao mesmo tempo a impossibilidade de uma 84 1 8. A linguagem humana se liga. exige de mim uma atenção que se torna meu lugar. recolhidos pelas religiões: o sopro criador. . em que. Estamos no coração do problema. minha voz me faz habitar a minha linguagem. que poderia ser reproduzida por movimentos expressivos. 3. fundados nela e em seu órgão. Seus traços são descritÍveis e. sua voz que vem de outra parte. qualquer que seja o modo pelo qual a linguagem é percebida.9 Historicamente. a voz não tem espelho. A voz repousa no silêncio do corpo. isto não é absolutamente um reflexo. torna-se significante: não necessariamente tanto como signo. interpretáveis. Ela emana dele. rouah. à voz. Se ele ouve sua voz. quando a densidade poética se torna grande. dirigindose a mim. em toda percepção . a voz como poder de verdade. André Spire fala de "dança bucal". Daí os múltiplos simbolismos. identifica-se com o sopro. Essa voz. todas as grandes religiões se difundiram pela predicação. Essas palavras não definiriam igualmente bem o fato poético? Esses valores da voz tornam-se os da própria linguagem. Quinta tese: a voz não é especular. tumultuadamente. se dá como anterior às diferenciações filogenéticas. Ela possui plena materialidade. I . 7 Todos os amantes de literatura fizeram a experiência desse instante. todas as manifestações "orais" da relação da criança com sua mãe. Sobre esses traços físicos se fundam um esboço de saber. beber-comer-amar-possuir. a busca de valores intralingüÍsticos cujo conjunto forma o berço de toda "poesia". A. é um nada. O inverso não é verdadeiro. Tento. pelo tempo dessa escuta. Narciso se vê na fonte. portanto. mas a própria realidade. A voz. e emerge obscuramente. em conclusão. esses valores são os do próprio fenômeno poético.corpo. mas entra no processo de significância. depois volta.poética. Índice erótico. uma articulação de sons começa a acompanhar espontaneamente a decodificação dos grafismos. Nesse sentido. Nesse lugar em que a voz se dobra nela mesma. A voz é uma coisa. integrado ao jogo da voz. com efeito. cercar todos os aspectos principais.em toda leitura . a probabilidade de efeitos de sentido. diz ele. como todo traço do real. "cavidade primai" como escreveu R. Sexta tese: escutar um outro é ouvir. As palavras. Mas o silêncio pode ser duplo. Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompê-Io. E esse reconhecimento é independente do fato de que o texto seja (fisicamente ou por um efeito da imaginação) apreendido pelo ouvido ou pronunciado interiormente. Em outros termos.8 2. por comunicação oral. desde que ela seja percebida como poética. pessoais e mitológicos. Ela se situa entre o corpo e a palavra. a boca. Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele. não são jamais verdadeiramente expressivas senão em força. que temos em comum com os animais mamíferos e os pássaros. animus. ela significa o lugar de um sujeito que não se reduz à localização pessoal. no silêncio de si mesmo. A voz. é preciso atualizá-Ias por uma ação vocal. ele é ambíguo: absoluto. a audição (mais que a visão) é um sentido privilegiado. nos diz que. não menos . assim exaltada. A voz poética nos declara isto de maneira explícita. uma presença não somente espacial.origem e o que triunfa sobre essa impossibilidade. sem dúvida. quando nos enviaram à escola. reteve no século XIX a atenção dos pensadores alemães. simultâneos. perturbadora. a poesia opera aí a extensão da própria linguagem. segundo nascimento. Não se sonha a escrita. sobre a página. o daquele que fala e do ouvinte. a linguagem sonhada é vocal. Ouvindo-me. apreensão cega dessa transfiguração. mas um espaço orientado e cuja orientação exige movimentos particulares do corpo. nessa e por essa escuta. no entanto revelador . o fundamento de um certo número de valores mÍticos de difusão universal: mitos sobre a voz sem corpo. Ora. visceral e a representação pela linguagem. O som aí é ambíguo. exigindo que nos interroguemos sobre ela e sobre nós. e Tomatis mostrou a que ponto ele está marcado por essa experiência sensorial intra-uterina. um espaço. O ouvido. o Motif Index de Stith Thompson revela a extraordinária riqueza de tais associações. de maneira fortuita e marginal. 6. declaramos que não estamos mais sozinhos no mundo. enquanto se forma o prazer. A visão também capta.embora de uma maneira diferente . feto. mas Íntima. Nesse ponto. 7· Voz implica ouvido. sentimos. a criança exibe o prazer que experimenta com a maravilhosa abertura de seu ouvido. promovida ao universal.. Uma vez lançado ao mundo. Merlin Sepulto nos textos da Idade Média. O leitor. uma vez que dois pares de ouvidos estão em presença um do outro. Pouco importa que ela seja ou não entregue à escrita. refaz em corpo e em espírito o percurso traçado pela voz do poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é dado. sem igual. Elas só se manifestam. comprometendo o sensível muscular. não estamos sozinhos. 5· A voz é uma forma arquetipal. certamente. Tudo isso se diz na voz. da identidade da voz com tudo o que escorre. a água. A leitura torna-se escuta. no turbilhão de sensações que a agridem. com efeito. eu me autocomunico. Ouvindo uma voz ou emitindo a nossa. 10 Tais são os valores exemplares produzidos pelo uso da voz humana e sua escuta. na cotidianidade dos discursos ou na expressão informativa. mito da liquidez. Trabant lembrava recentemente a que ponto a escuta.. como fenômeno. a voz se diz. Por e na voz a palavra se enuncia como a memória de alguma coisa que se apagou em nós: sobretudo pelo fato de que nossa infância foi puramente oral até o dia da grande separação. É por isso que o corpo. o que vem de trás quanto o que está na frente. o primeiro a despertar no 86 87 . o sangue. aconteça o que acontecer. Ora. está presente em si mesmo. ligada para nós ao sentimento de sociabilidade. o esperma. Os historiadores da filosofia deixam em geral de se interrogar sobre esse ponto.que ao outro. pela audição. aqui. J. visando ao mesmo tempo a sensação. a leitura do texto poético é escuta de uma voz. a ninfa Eco. Está aí. glandular. Minha voz ouvida revela-me a mim mesmo. 4· Dizendo qualquer coisa. Plano de fundo preenchido de sentidos potenciais. Mas há dois ouvidos. capta diretamente o espaço ao redor.