WALTER BENJAMIN E O TEMPODA GRANDE INDÚSTRIA Eide Sandra Azevêdo Abreu 1 Para Rodrigo, Edna e Aguinaldo Neste artigo, procuramos, através de textos de Walter Benjamin, escritos na década de 1930 “Experiência e pobreza” (1987), “O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow”(1983), “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”(1983) e “Sobre alguns temas em Baudelaire”(1983) -, demonstrar o modo como, no seu pensamento, figura o tempo da grande indústria. Numa primeira parte, expomos alguns aspectos considerados pelo autor como próprios da condição dos homens modernos, trazendo à luz as questões levantadas nos textos selecionados. Num segundo momento, procuramos identificar o posicionamento adotado por ele frente a tais questões. Dimensões do declínio da experiência A perda da experiência e o fim da narrativa: solidão e esquecimento Por entre a multiplicidade de temas que afloram nos textos de Walter Benjamin selecionados para, neste artigo, identificarmos o modo como o filósofo alemão enxergava a “era da grande indústria”, um problema se afirma com força: a circunstância de que a vivência “hostil e obcecante” (1983:30) dessa época conduziria ao declínio da experiência enquanto partilha coletiva de “uma memória e uma palavra comuns” (Gagnebin, 1987:9). Esta perda da experiência constitui o tema central de “Experiência e pobreza” apresentandose, também, para Benjamin, como uma das causas da raridade moderna da figura do narrador. Conforme diz o próprio autor, Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais freqüente espalhar-se em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências. Uma causa deste fenômeno é evidente: a experiência caiu na cotação. E a impressão é a de que prosseguirá na queda interminável. (1983:57). Ao expor as condições que conduzem à substituição da narrativa por outras formas de comunicação, Walter Benjamin identifica certos elementos que, correlatos ao declínio da experiência, seriam característicos da existência dos homens modernos. Nesse sentido, pode ser proveitoso acompanhar com um certo vagar essa exposição, realizada em “O narrador”. Na própria natureza da narrativa, existia, segundo o pensador, mesmo que de forma latente, uma dimensão utilitária, pois o narrador era um homem que dava conselhos, tecidos na substância de sua própria vida. Era um homem que dispunha de sabedoria, estando o seu desaparecimento intimamente relacionado com a morte da sabedoria em nosso meio. Ninguém teria mais conselhos a oferecer aos outros, e cada um quase sempre seria incapaz de narrar sua própria história, para que pudesse ouvir um aconselhamento que sugerisse uma continuidade para ela. Ter-se-ia mesmo perdido, segundo Benjamin, a capacidade de ouvir e transmitir histórias. A retransmissão da história narrada pelo ouvinte constituiria condição essencial para a sobrevivência da narrativa. Ela disporia mesmo de qualidades que facilitariam sua conservação pela memória. Segundo diz o autor, a narrativa é destituída de análise psicológica - que seria própria do romance - e de explicações - das quais as informações seriam repletas -, circunstância que possibilita a quem ouve mergulhar o que escuta em sua própria experiência e, mais tarde, transmiti-la de bom grado. Mas esta capacidade de audição também estaria sendo destruída, porque ela depende de um relaxamento psíquico propiciado por atividades naturais, como o fiar e o tecer, que estariam desaparecendo. Com a perda destas atividades, desaparece a “comunidade dos que escutam”, e a narrativa sofre golpe de morte. Segundo as palavras de Walter Benjamin (1983:62), Narrar histórias é sempre a arte de as continuar contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque já não se tece e fia enquanto elas são escutadas. Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada. No momento em que o ritmo do trabalho o capturou, ele escuta as histórias de tal sempre “pronta a responder ao apelo da atenção (1983:31). comprometer-se com ele” (1983: 61-62). Do mesmo modo como surge. de resto. Segundo a leitura benjaminiana de Proust. por exemplo. determinados modos de sentir (Benjamin.. mas. com isto. Ele busca na morte do personagem . no entanto. que é descrita por Benjamin com as palavras de Paul Valéry: . Encontrar ou não esse objeto antes de nossa morte depende unicamente do acaso”. e..mesmo que figurada.o sentido de uma vida. em “Sobre alguns temas em Baudelaire” (1983). que encontrou campo de florescimento no capitalismo avançado. “uma espécie de concorrência histórica entre as várias formas de comunicação” (1983:31). em suas reflexões. graças à chama pela qual é devorado. a princípio continuamente reavivado pela necessidade. sua substituição pelo romance e pela informação coincide com o desaparecimento dessas faculdades. sem perda de tempo. Walter Benjamin apresenta uma interpretação diferente acerca do tema da memória nos tempos modernos. pela fotografia. a predominância de uma determinada forma de lembrar. o homem civilizado das grandes metrópoles retorna ao estado selvagem. por sua vez. torna-se pouco a pouco obtuso. com isto. O leitor de romance. perdendo para o romance e a informação. O filósofo alemão se vale. onde passou a se constituir em importante instrumento de dominação da burguesia. provocada pelo contato com “qualquer objeto material (ou na sensação que tal objeto provoca em nós) que ignoramos qual possa ser. E se a existência da narrativa está relacionada com o aconselhamento. Ao isolamento do indivíduo moderno. (1983: 31). no funcionamento sem atritos do mecanismo social. isto é. Nas palavras de Benjamin (1983:69). na figura do leitor de informações. e estaria relacionada. Nesta concorrência. Não é guardada na memória. . a narrativa leva a pior. mostrando-se “muito mais ameaçadora que o romance . segundo afirma Benjamin. à “pobreza com que por muitos anos se oferecera à sua lembrança a cidade de Combray. mas consumida instantaneamente. . está constituída a rede em que se assenta o dom de narrar. “se pode dizer que as informações que nos dá sobre o passado nada conservam dele” (1983:31). um destino estranho. leva. na experiência proustiana. A “vivência” e o ocaso da “memória involuntária” Se. sim. de uma distinção realizada por Proust em A la recherche du temps perdu. como marcado pelo esquecimento. devora o assunto do que é lido numa busca de um calor que não sabe obter em sua própria existência. pois dispõe de uma autoridade que dispensa a verificação imediata. dependendo de sua conservação na memória do ouvinte. entre “memória voluntária” e “memória involuntária”. depois de ter sido atada há milênios no âmbito das mais antigas formas de trabalho artesanal. a informação precisa provar sua veracidade e. no final do romance . não tem conselhos para receber. 1983: 43). onde. O sentido de estar necessariamente em relação com os outros. o romance não tem significado porque representa.. Hoje em dia ela se desfaz em todas as extremidades. o indivíduo moderno surge.maneira que o dom de narrar lhe advém espontaneamente. Do mesmo modo que o romance. impõe ao leitor explicações que a tornem verificável. em “O narrador”. que é solitário “mais do que qualquer outro leitor” (1983:68). Cada aperfeiçoamento desse mecanismo torna inúteis determinados hábitos. mas que não é capaz de narrar os seus assuntos para que possa ser aconselhado. transcorrera uma parte de sua infância” (1983: 31). O que arrasta o leitor para o romance é a esperança de aquecer sua vida enregelada numa morte que ele vivencia através da leitura. Vive apenas nesse instante. Desta “memória voluntária”. leitor de romances. como um desmemoriado. que se despoja de explicações. mas porque esse destino estranho. esvai-se no esquecimento. grande distância da narrativa guarda a informação. sentido este que não encontra no seu próprio existir. nem para oferecer.o qual. O que teria ocorrido não seria propriamente uma perda da memória. portanto. A primeira seria aquela que estaria “à disposição da inteligência” (1983:30). Mas sua qualidade mais característica está em que seu mérito “reduz-se ao instante em que era nova. talvez de maneira instrutiva. A dependência do acaso para reevocar o passado em toda sua intensidade e. Há. a uma crise” (1983: 60). Ao contrário da narrativa. o passado vivo nos seria trazido pela “memória involuntária”.. precisa entregar-se inteiramente a ele. nos transmite um calor que nunca podemos obter do nosso. ocasionada. Assim. corresponderia uma adequação ao mecanismo social. a um estado de isolamento. O berço do romance seria a solidão do indivíduo carente de ajuda. Elas teriam estado mesmo. que tem sua sede em uma camada do córtex cerebral. através desta última forma de lembrar.. contrapor-se-ia. É esta cisão que se expressa no jornal impresso. tanto mais corresponderão ao conceito de ‘vivência’” (1983: 34). o âmbito da memória involuntária é associado. “Onde há experiência. não há cisão entre a memória individual e a memória coletiva. apesar de este não as ter tematizado de modo direto em suas poesias. segundo Benjamin. cujo objetivo é “excluir rigorosamente os acontecimentos do contexto em que poderiam afetar a experiência do leitor” (1983: 31). adquirindo “exclusividade recíproca”. da qual dependeria . nela. A “vivência”. quanto maior for o sucesso com que ela opere. “de tal modo queimado pela ação dos estímulos” que oferece as melhores condições para sua recepção. nos deparamos com um conceito que.. As “grandes massas” das cidades teriam tido uma presença tão forte no século XIX que se impuseram com autoridade como tema aos literatos desse século.diz Benjamin baseando-se em Freud . Além de separar o passado individual e o coletivo. na filosofia benjaminiana.determinados conteúdos do passado individual entram em conjunção. característica do indivíduo solitário” (1987:9). nas palavras do próprio Benjamin. Benjamin estabelece uma ligação entre a vivência marcada por chocs contínuos e o convívio com a multidão. com os do passado coletivo. baseando-se em Poe. o passado individual e o passado coletivo se apartam.“alcançar uma imagem de si mesmo” constitui. para ele. com os seus cerimoniais. Conforme vemos. com as suas festas (sobre as quais talvez nunca se fale em Proust). em que ocorre uma “progressiva atrofia da experiência” (1983:31). diria respeito à “experiência vivida. do seguinte modo: A recepção dos chocs é facilitada por um treino do controle dos estímulos aos quais podem ser remetidos. ao de “experiência” (correspondente ao termo alemão Erfahrung). diz o pensador. Provocavam a lembrança de épocas determinadas e continuavam como ocasião e pretexto dessas lembranças durante toda a vida. Segundo as palavras do filósofo alemão: “Quanto maior for a parte do choc em cada impressão isolada. com o predomínio da primeira sobre a segunda. além de concernir à solidão do indivíduo moderno. Os cultos. em sua existência.a proteção contra os estímulos externos (chocs). no cerne do trabalho de Baudelaire. este training diz respeito à consciência desperta. relacionar-se-ia. A “memória voluntária” estaria ligada à esfera da “consciência desperta”. A dificuldade moderna de resgate do passado. mostra que. daria ao acontecimento que o provoca o caráter de “vivência” em sentido estrito. segundo a hipótese de Freud. o “hábito tranqüilo” cede lugar “a um toque maníaco” (1983:41). aqui. a uma ruptura da memória em “voluntária” e “involuntária”. no interior da qual. à circunstância de este indivíduo se encontrar. à própria “experiência poética”. tanto o sonho como a lembrança. continuamente defrontado com chocs que exigem a constância da “consciência desperta” capaz de apará-los. Já no contexto moderno. A passagem do próprio autor. segundo a comentadora. Nas palavras do autor: “A massa é de tal modo intrínseca a Baudelaire que em vão se procura . fazendo com que assumam um “caráter irremediavelmente privado” (1983: 31). 1983: 32). Mas esta passagem se mostra interessante ainda. no sentido próprio do termo”. Ampliando as circunstâncias em que o indivíduo se defronta com a necessidade de se proteger em relação aos chocs externos. uma circunstância que “não é de modo algum natural” (1983: 31). diz o autor. quanto mais estímulos. as condições modernas de existência conduziriam. realizavam continuamente a fusão entre esses dois materiais da memória. em caso de necessidade. na memória. porque. ainda. é explicada. Mas normalmente. restringindo as condições de florescimento da “memória involuntária”. o tempo da grande indústria teria reforçado o âmbito da consciência e da “memória voluntária”. e seria apropriado à existência do indivíduo no “mundo capitalista moderno”: o conceito de “vivência” (Erlebnis). e quanto menos eles penetrarem na experiência. As condições históricas modernas é que impedem que “os interesses interiores do homem” sejam “incorporados à sua experiência”. ainda. obstaculizando as possibilidades de emergência da “memória involuntária”. sem a qual estes poderiam vir a causar efeitos traumáticos no indivíduo. O fato de o choc ser captado e “aparado” assim pela consciência. visto que . segundo Jeanne Marie Gagnebin. acima citada. a “vivência”. E esterilizaria para a experiência poética esse acontecimento incorporando-o diretamente ao inventário da lembrança consciente (1983: 33). A multidão e o choc amoroso Através da obra poética de Baudelaire. Lembrança voluntária e involuntária perdem assim sua exclusividade recíproca (Benjamin. segundo Benjamin. segundo o pensador alemão. “Todo trabalho na máquina”. avec sa jambe de statue.. residiria uma das rupturas efetivadas pelo cinema com relação à pintura: A pintura convida à contemplação. d'une main fastueuse Soulevant. no qual “a percepção intermitente afirma-se como princípio formal” (1983:43). Além de se ter engendrado na circunstância de que. Nessa série de invenções. ou quase nunca. (. e em circunstâncias como a assistência de um filme.não é a felicidade de quem é invadido pelo eros em todos os recantos do seu ser. e sim à última. diz Benjamin. (Benjamin: 1983: 38-39).. que julgamos proveitoso transcrever aqui. Agile et nobile. o indivíduo se via permanentemente confrontado com a multidão. iniciadas pela invenção dos fósforos. estariam incluídos o telefone. na época da grande indústria. a entrada e a saída constantes da peça a ser trabalhada a cada momento. Une femme passa. é o mesmo que preside o trabalho do operário na linha de montagem.). em experiências ópticas e táteis propiciadas por uma série de inovações técnicas que. crispé comme un extravagant. a máquina fotográfica e o filme. da “experiência” pela “vivência” se revela ainda na circunstância de que o “exercício” cede lugar ao “aprendizado”. ciel livide où germe l'ouragan. La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.crispé comme un extravagant é dito na poesia . para Benjamin. trazendo à luz a “catástrofe” que afetou a natureza do sentimento do habitante da metrópole. Mas o processo apóia-se unicamente nela como a marcha do veleiro se baseia no vento (1983:38).. É uma despedida para sempre que. Dans son oeil. ô toi qui le savais! (1983: 38) Neste soneto. de Marx. (. “Esse aprendizado”. Moi. bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être! Car j'ignore où tu fuis..) O que contrai convulsivamente o corpo . Nada disso ocorre no cinema. balançant le feston et l'ourlet. en grand deuil. nenhuma palavra lembra a multidão (. através dele. da mesma forma que como transeunte metropolitano. em forma de descrições. Longue. uma vez que.. mince. “os estigmas que a vida numa grande cidade inflige ao amor”: O êxtase do citadino é um amor não já à primeira vista. enquanto operário. Ne te verrai-je plus que dans l'éternité? Ailleurs. na poesia.. e da mesma forma lhe é subtraída à revelia” (1983: 43)..Fugitive beauté Dont le regard m'a soudainement renaître. pode o poema apresentar “o esquema de um choc”. num processo em que “a peça a ser trabalhada entra no raio de ação do operário independentemente de sua vontade. diz Marx.) A massa é o véu flutuante através do qual Baudelaire via Paris” (1983: 38). puis la nuit! . esta já cede lugar a outra e o olho jamais consegue se fixar” (1983: 25).nele uma descrição da mesma. neste caso. mal o olho capta uma imagem. 1983:49). Por esta razão. na vida da grande cidade. Nesse aspecto. No sentido de confirmar esta interpretação. Na existência do operário. Un éclair. o indivíduo se vê na condição de ter que aparar com sua consciência os chocs sucessivos impostos pelo meio exterior. “têm em comum o fato de substituir uma série complexa de operações por um gesto brusco” (1983: 43). Dessa maneira.. douleur majesteuse. tu ne sais où je vais. em sua presença as pessoas se entregam à associação de idéias. a substituição. “exige do operário um aprendizado precoce” (citado em Benjamin. diz Benjamin: . “Nenhum torneio de frase. mas antes um quê de perturbação sexual que pode surpreender o solitário. O “exercício” e o desejo no mundo da “vivência” Valendo-se de O Capital. a experiência do choc teria se expandido. O toi que j'eusse aimée. será levantado ainda um outro importante problema relacionado ao convívio na multidão: La rue assourdissante autour de moi hurlait. Como os seus objetos essenciais jamais aparecem. je buvais. Benjamin cita o poema A une passante. Benjamin mostra como o ritmo a que é submetida a percepção do indivíduo na multidão. Continuidade e ruptura se combinam. coincide com o instante do enlevo. Elas se estabelecem.. no mundo moderno. tanto maiores são as suas perspectivas de realização. por parte do poeta francês. como o jogador e o trabalhador assalariado. concentra em si três dimensões temporais. Conforme o verso de Baudelaire. da impossibilidade. como a aura desse objeto. À partida no movimento da máquina corresponde o coup no jogo de azar. único fator decisivo na profissão. no “vazio”. Na base da manufatura. tanto mais se pode esperar a sua concretização. Toda e qualquer intervenção na máquina é tão hermeticamente separada da que a precedeu. a aura ao redor de um objeto sensível corresponde exatamente à experiência que se deposita como exercício num objeto . Através da analogia entre o trabalho fabril e o jogo. muitas vezes ocasionada pela sensação de um odor. 1983: 46). O declínio da “aura” Le Printemps adorable a perdu son odeur! ( 1983: 50) Neste verso de Baudelaire. os três termos se encontram estreitamente vinculados: “Definindo-se as representações radicais na mémoire involontaire tendentes a reunir-se em torno de um objeto sensível. no “fato de não poder terminar”. o desejo pertence às ordens da experiência (1983: 46).. Quanto mais um desejo remonta no tempo. como um coup no jogo de azar é distinto do coup imediatamente precedente. a fim de projetar o futuro no presente. Não existe consolo para o homem moderno. Conduzindo ao declínio da memória involuntária. uma vez que. Mas aquilo que reporta ao tempo passado é a experiência. entre o operário e o jogador. conforme vimos . Benjamin vê uma admissão. quanto mais cedo se formula um desejo. é o que o preenche e articula. pois têm que “recomeçar sempre de novo”.. Nele o exercício não tem mais nenhum direito.. talvez uma sombria decisão.. ainda tinha vez na manufatura. (1983: 44). O seu trabalho é impermeável à experiência. . pois não o há “para quem já não pode fazer mais nenhuma experiência” (Benjamin.. (. “todo ramo particular de produção vê na experiência a forma técnica que lhe é adequada.. obriga a remontar ao passado: Na vida. ao formular-se. exatamente porque constitui a sua reprodução exata. e aperfeiçoa-a lentamente”. As analogias parecem não cessar no ensaio benjaminiano. Essa memória ainda guarda alguma relação com a experiência. que as condições modernas de existência substituem pela vivência. 1983: 45). O desejo. A intervenção do operário na máquina é sem relação com a precedente. O exercício. No íntimo. Quem formula e concretiza um desejo vive um “tempo que realiza”. é representado no jogo que não acontece sem o gesto rápido de quem faz a aposta ou recolhe a carta. Por isso. o desejo realizado é a coroa destinada à experiência (Benjamin. é diferente do exercício. para o autor. à decadência da aura. antítese do “tempo infernal” experimentado por aqueles que. relação que se estabelece ainda através de outros elementos: Também o seu gesto ( do operário). o autor vê uma relação entre o trabalho industrial e o jogo de azar. não lhes sendo dado “realizar nada daquilo que começaram” (Benjamin. (Benjamin. Benjamin traz à luz mais uma dimensão da “atrofia da experiência”: o desaparecimento do desejo. determinado pelo processo automático de trabalho. mas isto. promovendo a memória voluntária. Em todo caso. O trabalho de um e do outro é igualmente independente de todo conteúdo. a emergência daquela forma de lembrar. ainda. de um tempo diferente da temporalidade vazia de conteúdo acima mencionada. 1983: 50). se dobram sob um eterno presente. não pode ser definido como um desejo no sentido próprio da palavra. Está certo que o jogador pelo menos quer vencer. 1983: 46).) O operário não especializado é o mais profundamente degradado pelo aprendizado da máquina. tempo que se poderia concretizar através da memória involuntária. E a escravidão do assalariado a seu modo se equipara à do jogador. uma vez que. o que o absorve é talvez avidez. Ao contrário. Na “vanidade”. conforme mostra Benjamin. dificultando. encontra-se num estado de alma em que não pode valer-se da experiência. perdeu-se o odor de uma “primavera adorável”. a ruína da experiência leva ao mesmo tempo. Se a obra de arte sempre foi. isto é. (. Ela não sofre nenhuma reprodução. não tendo seu julgamento “perturbado por qualquer contato pessoal com o intérprete” (1983:15). Por entre as questões que anteriormente expusemos. o intérprete do filme dela é privado. O declínio da aura.de uso” (1983: 51). Nas palavras do autor. cujas imagens se baseiam na reprodução técnica. da “unidade de sua presença no próprio local onde se encontra” (1983:7). ao se perder de vista a importância da autenticidade da obra de arte. isto é. Conforme é possível notar. o progresso das técnicas de reprodutibilidade nos séculos XIX e XX as elevou a tal nível que mudou visceralmente a percepção das obras. ao contrário do que ocorre com o ator teatral. esperamos ter traçado um painel suficientemente amplo das questões que. o homem deve agir com toda a sua personalidade viva. está implícita no olhar a expectativa de ser correspondido por aquilo a que se oferece. com ela. tal como posto em “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. e em decorrência da obra do cinema. “. longamente) ao aparelho. A aura dos intérpretes desaparece necessariamente e. Isto é confirmado pelas descobertas da mémoire involontaire (1983: 52-53). Se tal expectativa ( que pode associar-se no pensamento tanto a um olhar intencional de atenção como a um olhar no sentido literal da palavra) é satisfeita. a das personagens que eles representam (1983: 16). afetando também as obras de arte. diria mesmo mortal. pela primeira vez. a aura de um Macbeth é inseparável da aura do ator que desempenha esse papel tal como o sente o público vivo.. em várias passagens.. o olhar consegue na sua plenitude a experiência da aura. um sentimento de “perda dolorosa” . Quem é olhado ou se julga olhado levanta os olhos. um pesar.. elas corresponderiam ao conceito de aura. Walter Benjamin não adota uma postura de imparcialidade frente a tais questões: seu olhar não está isento de uma apreciação e de um posicionamento com relação àquilo que vê. A posição de Benjamin: pesar e esperança Com a exposição que fizemos. a aura é concernente. “por princípio. tem sua atuação mediada por um aparelho. grifo nosso).. abrangendo também os próprios homens. o que na daguerreotipia devia ser sentido como desumano. Podemos notar. ou quando sua performance chega ao público que. ao inanimado e à natureza. Walter Benjamin afirma que. que atua diante do público dotado de sua aura. “o que é atingido na obra de arte é a sua aura” (1983:8). Benjamin pode responsabilizar pela sua decadência a memória. o olhar humano se dirige ao aparelho que.. como as da fotografia. Conforme explica o autor: .. seja quando é realizada a montagem. afloram da leitura benjaminiana da época da grande indústria. Por esta razão. a uma percepção que atribui. pode tomar a atitude de quem examina um teste. Deste modo. Pois sua aura depende de seu hic et nunc. no contexto da reprodutibilidade técnica. “a única aparição de uma realidade longínqua. atinge ainda a natureza. No teatro. A tomada no estúdio tem a capacidade de substituir o público pelo aparelho. nesses textos. enquanto este acolhe a imagem do homem sem retribuir-lhe um olhar” (1983: 52). Perceber a aura de uma coisa significa dotá-la da capacidade de olhar. circunstância que o deixa constantemente submetido a uma experiência de teste: seja no momento em que são feitas as tomadas..) A experiência da aura repousa portanto na transferência de uma forma de reação normal na sociedade humana para a relação do inanimado e da natureza com o homem. . Além de ser definida por Benjamin em termos de unicidade e distância. Uma estreita relação entre memória involuntária e a aura dos objetos é estabelecida ainda quando Benjamin considera que as lembranças trazidas involuntariamente “são irrepetíveis e fogem à lembrança que tenta arquivá-las” (1983: 53. nos textos selecionados.. perpassa. não o retribui. É a uma tentativa de identificação deste posicionamento que nos voltamos agora. era o olhar dirigido (além do mais. Com as técnicas de reprodução. um mesmo problema: o declínio da experiência sofrido pelos sujeitos nas condições modernas de existência. Para que esta possa ser feita. conforme já afirmamos. uma capacidade humana que consiste na satisfação da expectativa contida em cada olhar: a de ser correspondido. Concebendo desta forma a “experiência da aura”. entretanto. O original perde sua autoridade frente às cópias. suscetível de reprodução”. por mais próxima que ela esteja” (1983: 9. mas privado da aura. grifos nossos). em seu pensamento. a perda da aura não atinge apenas os objetos e as imagens da memória. No capitalismo avançado. Nesses grandes homens. Apostando no “progressismo” do público do cinema. O tom melancólico destas palavras. No tocante a eles. Nas palavras do autor: “.. são vistas também de uma perspectiva bastante otimista. fundamentando-se em uma carta do próprio Benjamin a Adorno. deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas de nossa época” (1987: 116). de 1936. a característica de “uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século”. teriam saudado o cinema “com entusiasmo”. hoje. (. fazendo surgir a barbárie. ao multiplicar as cópias dos objetos (prosaicos ou de arte).ao qual. que se constitui na contrapartida da crise por que passa a humanidade” (1983: 8. As técnicas de reprodução. 1987: 12) do filósofo alemão com relação a esta decadência. desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística. 1987: 114). ainda reservava espaço para o flâneur. Esta nova forma comunicação é a informação (1983: 60) (grifo nosso). através dessa nova forma de arte. transformando o “evento produzido apenas uma vez num fenômeno de massas”.. Vejamos três exemplos. doravante. os múltiplos problemas levantados em “Sobre alguns temas em Baudelaire”. No momento em que considera a substituição do “exercício” pelo “aprendizado” na existência do operário fabril não especializado.. como Abel Gance. de resto. dizendo que esta última cidade. grifo nosso). diz Benjamin. Adolf Loos e Paul Scheerbart. mas muito mais ameaçador do que o romance . de geração em geração? Quem é ajudado. entretanto. Benjamin exalta. não se esgota nesta visão pesarosa. sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. conforme nota Jeanne Marie Gagnebin. um olhar esperançoso de Benjamin para o tempo da grande indústria. e conferindo-lhe “atualidade permanente”. por sua vez. o autor julgava possível. que “não separa a crítica da fruição”. Correlato à questão do empobrecimento da experiência se mostra. A posição do autor. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de um tábula rasa. grifo nosso). Com relação às técnicas de reprodução da obra de arte. a uma crise. se antepõe à narrativa de um jeito não menos estranho. sobre uma outra forma de praxis: a política” (1983: 11). Quando compara Londres e Paris. ao mesmo tempo que mereceram do pensador alemão a apreciação que já mencionamos.(Gagnebin. em certas passagens. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente. grifo nosso). após uma referência às experiências que. a construir com pouco. a uma liqüidação geral” (1983: 8. “sem saber. toda a função da arte fica subvertida. Também neste ensaio é possível enxergar uma perspectiva pesarosa. Benjamin acreditava que. por um provérbio oportuno? Quem tentará sequer.) (1987: 116). Walter Benjamin adota. o fato de terem se dirigido “ao contemporâneo nu. Paul Klee. teriam convidado a humanidade. se repete em todo o ensaio “O narrador”. o autor o faz como a uma “catástrofe” (1983: 38). Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Benjamin afirma que isto podia ocorrer porque então (primeira metade do século XIX) Paris conservava “alguns aspectos dos bons tempos antigos” (1983: 38. lidar com a juventude invocando sua experiência? (Benjamin. o problema da perda da aura (1987:11-12). para fundar-se na prática política. ainda. Aqueles que. Ao empobrecimento da experiência se vinculam.. evidencia-se que uma nova forma de comunicação “. sempre foram antes transmitidas à juventude: Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel. uma mobilização das “massas” para “novas . Brecht. Ao se referir à modificação que a “vivência” no interior da multidão acarretou na natureza do sentimento amoroso do citadino. o autor a ela se refere como “degradação profunda” (1983: 44). nos textos aqui abordados. escritas em 1933. sendo especialmente visível em passagens como aquela em que a influência da informação no destino histórico da narrativa é tida como “ameaçadora”.. Em “Experiência e pobreza”. ela se funda. conduzem “a um abalo da tradição. a obra de arte poderia deixar de ter apenas uma “função artística”. “de modo benevolente ou ameaçador”. leva. a começar de novo. mas que esta barbárie deve ser entendida de maneira positiva: Barbárie? Sim. Em lugar de se basear sobre o ritual. uma vez passível de reprodução infinita. a contentar-se com pouco. um ponto de vista extremamente negativo. ao contrário da primeira. os cubistas.. deixando ver sua própria perspectiva. A par do ponto de vista negativo podemos notar. Este pesar se faz notar especialmente nas perguntas feitas no início de “Experiência e pobreza”. amplamente discutido pelo filósofo alemão em “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. entre os quais se encontrariam Einstein. afirma que a pobreza de experiência se torna universal. ADORNO. W. M. segundo diz Paulo Arantes. Carone. HABERMAS. Textos escolhidos. J. 2. Trad. M. HORKHEIMER. 1985.vilabol.. ed. Benjamin. 1983. trazendo a possibilidade de “renovação das estruturas sociais” (Arantes.Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM) 2 . In: ________. Combinando o pesar com a esperança e o otimismo. Walter Benjamin.1998..I. Ele mesmo exaltou a ambivalência como algo grandioso em Fleurs du mal (1983: 49). ________. ADORNO. W.I. W. 1983. Mistura-se generosamente com ela para jogá-la de repente ao nada com um olhar de desprezo” (1983: 41). Trad. Trad. tal como a pratica o fascismo” (1983: 28).html . KOTHE. T. ADORNO.. org. Experiência e pobreza. ed. 02: 65-79. São Paulo: Brasiliense. Poesia e proletariado: ruínas e rumos da história. W... M. BENJAMIN. W.. In: BENJAMIN. nenhum demérito para o pensador. ed. HABERMAS.Esta postura otimista de Benjamin.. In: BENJAMIN. F.com. W. 1987. de Oliveira Damião.. J. Adorno. poderíamos dirigir ao filósofo alemão as mesmas palavras com que descreveu a ambigüidade de Baudelaire com relação à multidão: “Ele torna-se o seu cúmplice e quase no mesmo instante dela se aparta. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Obras escolhidas . Isto não significa. HORKHEIMER. São Paulo: Ática. E. 1983: XII) 2. São Paulo: Brasiliense.br/textos/frankfurt/eide. 1987. R. M. numa atitude de politização da arte que seria a resposta do comunismo à “estetização da política. W. 1983. T. Trad.tarefas” (1983: 26). In: Obras escolhidas .. Prefácio . HABERMAS. ____. DHI/UEM. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural. ed. A. 2. GAGNEBIN. Notas 1 .. ____. T. Cabral e J. Publicado em Revista Diálogos. In: BENJAMIN. B. de José Lino Grünnewald.. M. São Paulo: Abril Cultural. Bibliografia ARANTES. Sérgio Paulo Rouanet. Textos escolhidos.Vida e obra. ____. Walter Benjamin revela uma ambigüidade em sua apreciação dos problemas colocados aos homens pela vida da época da grande indústria. Disponível em: http://antivalor2. In: BENJAMIN. T. ADORNO. teria sido objeto de severa crítica de Adorno. J.Os cacos da história. O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow. 2. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. HORKHEIMER. Trad.. ed. 1981. 3. de E. 2. São Paulo: Abril Cultural. ed. Habermas . W.uol. Walter Benjamin . P. HORKHEIMER. Textos escolhidos. Sérgio Paulo Rouanet. Pensamos que . W. J. entretanto. no tocante às questões apresentadas neste trabalho. W. que teria chegado a qualificá-la como ingênua (1983:XII). São Paulo: Abril Cultural.Walter Benjamin ou a história aberta. São Paulo: Brasiliense. 3. Horkheimer. 1983. HABERMAS.
Report "Walter Benjamin E O Tempo Da Grande Indústria"