Visualidades-V.9,_n.1,_2011

March 24, 2018 | Author: Sérgio Machado | Category: Portrait Painting, Image, Clothing, Fashion & Beauty, Reality


Comments



Description

VISUALIDADESREVISTA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM CULTURA VISUAL VISUALIDADES . GOIÂNIA . v.9 n.1 . Jan-Jun/2011 ISSN 1679-6748 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS Reitor Edward Madureira Brasil Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Divina das Dores de Paula Cardoso Diretor da Faculdade de Artes Visuais Raimundo Martins Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual Irene Tourinho Editores Rosana Horio Monteiro Marcelo Mari Conselho Editorial Alice Fátima Martins (UFG, Brasil) / Cleomar Rocha (UFG, Brasil) / Alexandre Ricardo dos Santos (UFRGS, Brasil) / Ana Claudia Mei de Oliveira (PUC-SP, Brasil) / Belidson Dias (UnB, Brasil) / Fernando Hernández (Universidad de Barcelona, Espanha) / Flavio Gonçalves (UFRGS, Brasil) / Françoise Le Gris (UQAM, Canadá) / Juan Carlos Meana (Universidade de Vigo, Espanha) / Kerry Freedman (Northern Illinois University, EUA) / Margarita Schultz (Universidade Nacional do Chile, Chile) / Maria Luísa Távora (UFRJ, Brasil) / Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB, Brasil). Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) V834 (GPT/BC/UFG) Visualidades: Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual I Faculdade de Artes Visuais I UFG. – V. 9, n.1 (2011). – Goiânia-GO: UFG, FAV, 2011. V. :il. Semestral Descrição baseada em V.9, n.1 ISSN: 1679-6748 1. Artes Visuais – Periódicos I. Universidade Federal de Goiás. Faculdade de Artes Visuais II. Título. CDU: 7(05) Tiragem: 300 exemplares Créditos Capa: Autor: Walmor Corrêa Fotografia: Letícia Remião Programação visual: Cátia Ana Baldoino da Silva Direção de arte: Wagner Bandeira Projeto gráfico: Márcio Rocha Editoração: Cátia Ana Baldoino da Silva Lenice Marques Teixeira Revisão: Mariana Capeletti Calaça Data de circulação: janeiro/2011 FACULDADE DE ARTES VISUAIS / UFG Secretaria de Pós-Graduação | Revista Visualidades Campus II, Samambaia, Bairro Itatiaia, Caixa Postal 131 – 74001970 – Goiânia-GO Telefone: (62) 3521-1440 e-mail: [email protected] www.fav.ufg.br/culturavisual Sumário ARTIGOS Questões sobre Arte Brasileira nas bienais do Mercosul Bianca Knaak (UFRGS, Brasil) 09 Typos de pretos: escravos na fotografia de Christiano Jr. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção Paulo José Rossi (USP, Brasil) Marcelo Eduardo Leite (UFC, Brasil) 25 49 Tecnologia e arte digital: um estudo sobre imagens virtuais e dispositivos móveis (mídias móveis) Hivo Mauricio Navarro Fabrício (UEL, Brasil) Rogério Zanetti Gomes (UNOPAR, Brasil) Marcelo Silvio Lopes (UNOPAR, Brasil) 77 O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme Ressaca Eleonora Loner Coutinho (UFPEL, Brasil) 93 A mitologia da intolerância norte-americana a partir da perspectiva de D.W.Griffith Lilian Crepaldi (PUC-SP/FAPCOM-SP, Brasil) 113 A construção da tragédia gótica em Drácula de Bram Stoker Cristiane Perpétuo de Souza Silva (UNI-BH, Brasil) Alexandre Martins Soares (UNI-BH, Brasil) 131 Raduan Nassar e Luiz Fernando Carvalho: a concepção da palavra em imagem Renato Cury Tardivo (USP, Brasil) 149 Experienciar, suturar e sobrejustapor sentidos na teoria e na crítica da imagem: dois possíveis desvios estratégicos 165 Cristian Poletti Mossi (UFSM, Brasil) Marilda Oliveira de Oliveira (UFSM, Brasil) 179 Contribuições da função mítica no design de entretenimento Marcos Namba Beccari (UFPR, Brasil) 199 Cindy Sherman: uma criptografia corpórea Danusa Depes Portas (PUC-Rio, Brasil) ENSAIO VISUAL 230 Walmor Corrêa RESENHAS 241 Imagens desdobradas Sainy Coelho Borges Veloso (UFG, Brasil) 249 O emblemático Café: a Exposição do Mundo Português de 1940 Emerson Dionisio Gomes de Oliveira (UNB, Brasil) TRADUçãO 259 A pintura de Manet Rodolfo Eduardo Scachetti (UNICAMP, Brasil) RELATO DE PESqUISA 289 Dimensões artísticas do vestir Andrea Portela (UNIRONDON, Brasil) 301 NORMAS PARA PUbLICAçãO DE TRAbALHOS Contents ARTICLES Issues about brazilian art in the mercosur biennials Bianca Knaak (UFRGS, Brazil) 09 Types of black: slaves in photography Christiano Jr. Mural for a photographer: a picture and it’s intention Paulo José Rossi (USP, Brazil) Marcelo Eduardo Leite (UFC, Brazil) 25 49 Technology and digital art: a study on mobile devices and virtual images (mobile media) Hivo Mauricio Navarro Fabrício (UEL, Brazil) Rogério Zanetti Gomes (UNOPAR, Brazil) Marcelo Silvio Lopes (UNOPAR, Brazil) 77 Live cinema and interactive cinema: an analysis from Hangover Eleonora Loner Coutinho (UFPEL, Brazil) 93 The mythology of American intolerance from the perspective of D.W.Griffith Lilian Crepaldi (PUC-SP/FAPCOM-SP, Brazil) 113 The Construction of the Gothic tragedy in Bram Stoker’s Dracula Cristiane Perpétuo de Souza Silva (UNI-BH, Brazil) Alexandre Martins Soares (UNI-BH, Brazil) 131 Raduan Nassar and Luiz Fernando Carvalho: the conception of the word in image Renato Cury Tardivo (USP, Brazil) 149 Experiencing, suturing and over-juxtaposing directions on theory and critics of the image: two possible strategic deviations 165 Cristian Poletti Mossi (UFSM, Brazil) Marilda Oliveira de Oliveira (UFSM, Brazil) 179 Contributions of the mythic function in entertainment design Marcos Namba Beccari (UFPR, Brazil) 199 Cindy Sherman: a bodily cryptography Danusa Depes Portas (PUC-Rio, Brazil) VISUAL ESSAy 230 Walmor Corrêa REVIEwS 241 Unfolded images Sainy Coelho Borges Veloso (UFG, Brazil) 249 The emblematic Café: the Portuguese World exhibition of 1940 Emerson Dionisio Gomes de Oliveira (UNB, Brazil) TRANSLATION 259 The painting of Manet Rodolfo Eduardo Scachetti (UNICAMP, Brazil) RESEARCH REPORT 289 Artistic dimensions of dressing : a research reporting Andrea Portela (UNIRONDON, Brazil) EDITORIAL GUIDELINES 301 ARTIGOS . 2001 210 x 210 x 70 cm Vista da obra em exposição durante a 5ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul.Amilcar de Castro [50ª/b] Mármore.2005 . Cais do Porto de Porto Alegre. jul-dez 2011 9 .1 p. identifica o reaparecimento de artistas e também examina o papel das homenagens a cada edição. Olhando para as produções nacionais de destaque ao longo dos anos.9 n. Arte Brasileira. 09-23.Questões sobre Arte Brasileira nas bienais do Mercosul BIANcA KNAAK Resumo Este artigo identifica os modos de apresentação e distinção da produção artística brasileira durante as Bienais do Mercosul frente a ambivalência dos discursos curatoriais. Bienal do Mercosul VISUALIDADES. Palavras-chave: Curadoria. especialmente sobre a globalização e internacionalização da arte contemporânea em circuitos regionais. Goiânia v. identifies the of artists reappearance and also examines the role of tributes to each edition. Keywords: Curator. Brazilian Art. Mercosul Biennial 10 VISUALIDADES. Looking for the national productions highlighted over the years. especially on globalization and internationalization of contemporary art in regional circuits.9 n.1 p. 09-23. Goiânia v. jan-jun 2011 .Issues about Brazilian Art in the Mercosur biennials BIANcA KNAAK Abstract This paper identifies the modes of presentation and the distinction of the Brazilian artistic production throughout the Mercosul Biennials on face of the ambivalence of curatorial discourses. incluem a tarefa de entender o esforço localizado para a articulação internacional da produção artística contemporânea regional (central para os seus pares e periférica em relação aos seus modelos) numa era de fluxos. Seu modus operandis é afinado e pró-ativo. culturas e identidades. tanto por seus procedimentos administrativos quanto por suas investidas curatoriais. que pretendia reescrever a história da arte sob a perspectiva “não euro-norte-americana”1. a organização unificada da cultura artística regional reunida nas bienais seja um recurso espetacular de visibilidade. Nota desse reconhecimento é a participação de Justo Werlang – um dos fundadores e mais atuantes dirigentes da Fundação Bienal do Mercosul – na diretoria da 29ª Bienal de São Paulo (BSP) aliada a promessa do presidente da Fundação BSP de promover um “olhar para a arte contemporânea a partir de uma ótica brasileira” (MARTINS. embora seja ainda jovem no roteiro das bienais internacionais. Werlang. jan-jun 2011 a Bienal de Artes Visuais do Mercosul os modos de apresentação e distinção da produção artística brasileira. referindo-se à 1ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul. 2009). logo identificou essa promessa “com o que se fazia em Porto Alegre” (apud MARTÍ.VISUALIDADES. câmbios e impermanências de riquezas. driblando e Bianca Knaak. embora em ambas. Seguindo um modelo de exposição bastante ajustado a realidade brasileira do sul do país. a mostra em Porto Alegre já se notabilizou entre os gestores culturais brasileiros. Apesar da intenção política dessa ótica brasileira aproximando as bienais de São Paulo e do Mercosul – e. Goiânia v. para uma produção regional de interesse artístico global.1 p.9 n. análogo às necessidades econômicas promocionais no mercado internacional – as curadorias de cada uma (ainda que se repitam ou alternem) seguem jogando. com notáveis variações/ reavaliações a cada edição. 09-23. 2009). diria mesmo afirmativo. Questões sobre Arte Brasileira nas bienais do Mercosul N 11 . 49). seu fim” (DEBORD. p. “a tecnologia global da informação desespacializa o acesso às obras. tensionam o campo artístico em suas instâncias de visibilidade e estratégias de distinção social com suas tendências comerciais. a falta de “condições de visibilidade cognitiva e pública da arte brasileira a partir da situação de sua historiografia” (2008.49). uma re-escritura da história global da arte parecendo encontrar hoje contexto mais favorável. É nelas que o corpo mais amplo da produção atual encontra um meio de veiculação” (FIDÉLIS. Antes. lamenta-se. Dessa forma. p. decorrente.reinventando distintamente as teses de independência cultural para a promoção da arte brasileira. 136). 12 VISUALIDADES. ao mesmo tempo. mas ainda não concretizado (HUCHET. Ao deslocar as obras de diversas épocas e territórios para um mesmo espaço fruitivo e de conhecimento atemporal. p. jan-jun 2011 .136). Explicitamente.17). como aponta Stéphane Huchet. sob essa lógica promocional e de acessibilidade universal. Defendem que a globalização e as trocas culturais que lhes são peculiares não representam a homogeneização total dos bens culturais e nem a completa mercantilização da arte. “do simples fato de seus meios serem. 2003. a promoção identitária territorializada não parece ser a tônica dos critérios seletivos das curadorias propostas em bienais. p. p. Goiânia v. e considerando as circunstâncias esterilizantes do espetáculo. Em boa medida a análise dessas curadorias – como de resto de todas as grandes exposições – nos encaminha para um registro subjetivo e “fundamentalmente tautológico do espetáculo”. 2008. destaca-se: a questão da relação e da geopolítica dos intercâmbios entre o Brasil e outros centros. Por outro lado. acompanhando as exposições. da mesma forma que o museu. nas análises que circulam. nesse “contexto mais favorável” os efeitos da globalização na apresentação e recepção das artes visuais na maioria das vezes apenas ampliam os procedimentos de musealização já iniciados no século XIX.9 n. 2005.1 p. 09-23. “a velocidade das transformações da arte contemporânea só pode ser atualizada pelas bienais. ‘desligando’ literalmente a distância e a diferença dos lugares” (KUDIELKA. No entanto. 1997. Contudo. Pouco importará. no entanto. sobretudo nos catálogos. sobretudo porque a forma de “mediação principal que as exposições realizam tanto no país quanto no exterior” é insuficiente e fragmentária. segundo os entusiastas do modelo bienal. pouco saberemos sobre a constituição de seus sistemas simbólicos pois. como veremos. já concretizado. extrapolando seus limites territoriais. a 1ª Bienal do Mercosul queria. Bianca Knaak. p. 136). cartografar a produção artística latino-americana para além da geografia topográfica é um exercício permanente da Bienal do Mercosul. costumava dizer o geógrafo Milton Santos. a Bienal sempre extrapolou os limites do Mercosul. Essa foi uma maneira encontrada para alicerçar a promoção internacional da arte na e da América Latina em um universo extremamente competitivo. nas palavras de seu curador (Frederico Morais).9 n. as Bienais do Mercosul vem se consolidando enquanto plataforma de afirmações transversais e propositivas desse contexto global “mais favorável” e. o modo de conceber e legitimar o circuito de exposições internacionais quase não permite vencer cognitivamente “as grandes distâncias do planeta: antes. que serve de título para mostra. Desdobramentos contínuos Para ultrapassar os recorrentes enfoques sobre identidade e geopolítica que vicejam na cultura visual contemporânea. Questões sobre Arte Brasileira nas bienais do Mercosul 13 . trâmites e transações comerciais que sugerem os acordos multilaterais em prol de uma economia regional. jan-jun 2011 a origem das produções e a subjetividade materializada em poéticas/poiéticas. publicamente.1 p. reescrever a história da arte. revisitando algumas estratégias de expansão e inclusão já implementadas pelas edições anteriores da própria Bienal do Mercosul2. por meio dos trânsitos. Nessa perspectiva nos interessa acompanhar como a produção brasileira vem sendo apresentada no conjunto das Bienais do Mercosul. Goiânia v. a proposta é de uma mega exposição fluindo. Desde então. em 2011 a Bienal renova a investigação dos significados que podem fundar ou coabitar territórios. citado na primeira edição da Bienal do Mercosul. Quer seja arte made in Brasil. física e conceitualmente. o tema da territorialidade em “Ensaios de geopoética”. 2003.VISUALIDADES. Tanto quanto em edições anteriores. subtrai-se cabalmente a informação ao seu contexto no mundo” (KUDIELKA. Não obstante. A 8ª edição vem desdobrando. Mercosul ou Estambul. Vislumbrando a fluência das trocas culturais. Afinal. em muitos (e talvez insuspeitos) lugares da capital e do interior do Rio Grande do Sul. A história surge das contradições entre mundo e lugar. Tanto na seleção de artistas quanto na definição dos curadores convidados. onde territórios são bens ao mesmo tempo simbólicos e produtivos. 09-23. a edição inaugural reivindicava legitimidade e autonomia intelectual para (re) interpretá-lo e ampliá-lo com a produção latino-americana.Figura 1 Sem negar o legado artístico ocidental.1 p. segundo o curador geral (Nelson Aguilar). ao duvidar da linearidade da história. Com esta mostra quase paralela e ao mesmo tempo integrando a curadoria principal. Na seqüência. o curador (Paulo Sérgio Duarte) espalhou exposições por inúmeros espaços na cidade. Goiânia v. até a 7ª edição da Bienal do Mercosul. 09-23. trouxe muitos artistas brasileiros e promoveu um balanço da cena artística regional. a 4ª Bienal confirmava. apenas seis ar14 VISUALIDADES. com vários artistas não-latino-americanos curados pelo alemão Alfons Hug. foram apresentados artistas de quatro continentes. Para o curador (Gabriel Pérez-Barreiro) as concepções e relativizações de fronteiras e territórios para a arte foram estendidas e radicalizadas e a abertura internacional se confirmava já irreversível. nas edições de 1999 e 2001. na edição seguinte. agora em diálogo com a produção internacional. jan-jun 2011 . a Bienal se apresenta como plataforma regional de afirmação e inserção artística internacional. sob interpretações de identidade e contemporaneidade os curadores (Fabio Magalhães e Leonor Amarante) questionavam a compleição de um espaço do regional em um mundo globalizado. é importante lembrar. sob leituras transversais exibiram-se obras que se desprendiam de seus territórios pátrios para se perfilarem em sensibilidade estética e construção artística hors sol. que a arte toma o elã de tempos e lugares diversos. E. Brasileiros destacados Seguindo sua vocação promocional afirmativa destacamos que. era ainda mais evidente a polissemia do mundo ocidentalizado. matizado por influências incontornáveis para a compreensão da produção artística recente. ocorreu a Mostra Transversal. Nesta mesma edição. Desterritorializar e internacionalizar Quando a 5ª Bienal organizou um novo resgate histórico e prospectivo da arte na América Latina. assim como na 1ª edição. Fez ainda a mostra Fronteiras da Linguagem (com quatro artistas nascidos bem longe da América Latina) onde buscou sobrepor as fronteiras políticas e geográficas para configurar a internacionalização definitiva da Bienal do Mercosul. Destes. Em 2007. perfilada aos principais eventos do gênero.9 n. em 2003. A partir de então. mas apenas 15 estavam entre os chamados “jovens”. o segmento intitulado Último Lustro reunia obras realizadas entre 1995 e 1997 por artistas emergentes. Questões sobre Arte Brasileira nas bienais do Mercosul Figura 3 15 .VISUALIDADES. entre as recorrências encontraremos apenas dois artistas que poderiam ser considerados emergentes e. apenas Milton Dacosta e Laura Vinci não haviam participado da curadoria de Frederico Morais. mesmo audaciosa. Note-se ainda que. Ninguém participou mais do que Cildo Meireles. Segundo ele. não existem mais fronteiras (…)”.159). hoje. Mas. quando participaram da 1ª Bienal do Mercosul já eram nomes importantes (com participações nas Bienais de São Paulo. uma aposta para o futuro da arte brasileira internacional: Félix Bressan (presente já na 1ª edição) e Laura Vinci (a partir da 2ª edição)3. Portanto. O olhar autônomo e independente dos ditames do mercado internacional solicitado aos curadores estrangeiros era. 50 eram brasileiros.1 p. re-composições. na criatividade plástica do último lustro do século XX. Assim. Além destas vertentes4. obviamente. ironicamente exibia-se o alinhamento da produção recente com a arte promovida nos centros euronorte-americanos. “na arte brasileira dos anos 90. No conjunto de 210 artistas. 09-23. destacada em cada edição. considerando que dois haviam morrido na década anterior a 1ª Bienal (Dacosta e Leontina). destes. Para detalhar esse levantamento percorreremos. Félix Bressan. Bianca Knaak. Noutras palavras. Laura Vinci. Dizia que. re-apropriações e re-ready-mades” (1997b. e Cartográfica – território e história. as justificativas curatoriais para a seleção brasileira. a 1ª Bienal do Mercosul foi também pouco prospectiva pois a produção recente teve poucos expoentes (sobretudo quando comparada às edições posteriores). Milton Dacosta e Waltércio Caldas. p. e que Cildo e Waltércio. aparentemente sem alternativas. Construtiva – a arte e suas estruturas. re-leituras.9 n. são re-criações. jan-jun 2011 tistas brasileiros tiveram participação em três edições. Frederico Morais mostrou uma produção globalizada repercutindo a produção dos grandes centros internacionais. Maria Leontina. Figura 2 Matriz fecunda Na montagem da 1ª Bienal do Mercosul o curador organizou as obras em três vertentes criativas/ propositivas: Política – a arte e seu contexto. dentre os quais 15 brasileiros5. a seguir. portanto. Goiânia v. Veneza e Kassel). “o que temos. pretendido também para a seleção brasileira. poeta. segundo Morais. quatro eram brasileiros. Homenagens estratégicas Sempre muito valorizadas pelos curadores gerais. Na 1ª Bienal do Mercosul os brasileiros destacados também não estavam constituídos pelo sistema segundo um programa estético contra-hegemônico. três dos quais nascidos no Rio Grande do Sul. p.9 n. Goiânia v. Do universo composto por 50 nomes. os parâmetros do curador já eram indicação judicativa de um campo que seguiria se organizando noutra plataforma de afirmação. Para tanto será fundamental notar que dos seis artistas homenageados. defensor de uma política americanista e teórico do regionalismo crítico” (MORAIS. tanto dos artistas quanto de suas origens geográficas. descentralizado (uma bienal em Porto Alegre).Àquela altura. propriamente dito. foi um “pintor. de uma visão curatorial legitimadora que constrói tradições/trajetórias nacionais com os artistas sendo exibidos e legitimados simultaneamente nacional e internacionalmente. 1997. as homenagens foram suspensas na 6ª e 7ª edições. Não obstante. ensaísta. Por isso. Foi também inaugural.06). e só retornaram à Bienal do Mercosul na 8ª edição. política. jan-jun 2011 . conceitual. Entendidas enquanto recurso promocional. dificuldades operacionais resultaram na homenagem ao artista argentino Xul Solar (1887-1963) e ao crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa (1901-1981). mais do que a internacionalização de um circuito regional. No projeto da 1ª edição a intenção era homenagear o uruguaio Pedro Figari (1861 -1938) que fora sucesso na 23ª Bienal de São Paulo (1996) e que. ao longo de catorze anos. selecionados para uma apresentação histórica. Pelo contrário.1 p. a maioria deles já exibia em seu currículo trajetórias institucionais. os homenageados de cada Bienal também inspiram reflexão sobre a apresentação internacional de valores artísticos brasileiros em searas geopolíticas. jurista e educador. 09-23. a visibilidade internacional mostra-se um alvo que progressivamente minimiza iniciativas artísticas de resistência estética. em eventos tais. não será exagero dizer que as homenagens também podem servir como berlinda internacional. no contexto regional globalizado (MERCOSUL). em 2011. Com esses dados percebemos que a curadoria de Frederico Morais não foi apenas pioneira de um projeto potencialmente revelador. Nas 16 VISUALIDADES. 28 tiveram suas produções reivindicadas para participar também de outras edições da própria Bienal do Mercosul. Onde. concentradas sob explorações alusivas a “conceitos de memória.15 e 16). a fotografia. os curadores investiram nas questões da identidade e contemporaneidade frente às imbricações próprias de um contexto que globaliza o planeta economicamente. nenhum outro teórico foi homenageado e apenas artistas brasileiros receberam a honraria. Braque. apropriadamente. 1999b. contaminação e resistência”(AMARANTE. expondo seus trabalhos em gravura. feita em resina sintética. Apesar disso. do sincrônico. 2001. Goiânia v. Leonor Amarante destacava a pintura. as instalações e as novas mídias. Questões sobre Arte Brasileira nas bienais do Mercosul 17 . 1999. jan-jun 2011 quatro edições seguintes. Na 2ª Bienal do Mercosul.1 p. esquecimento. em suportes e operações díspares. trouxeram 33 e 69 artistas brasileiros. na 3ª Bienal do Mercosul preconizava-se a pintura6 “como expressão da contemporaneidade. A tese dessa curadoria enfatizava desde a investigação genética da Bianca Knaak. Cubismo e América Latina” que buscava reciprocidades entre artistas europeus e latino-americanos e. p. com uma grande mostra retrospectiva o homenageado foi Iberê Camargo (1919-1994).VISUALIDADES. Joel Pizzini e Félix Bressan participaram da 2ª e da 3ª edição. p. 09-23. Na 4ª edição da Bienal do Mercosul a Arqueologia Contemporânea (título da mostra).14) dividisse as dependências do Museu de Arte do Rio Grande do Sul com Picasso. A 2ª e 3ª edições. respectivamente. somadas as duas curadorias de Magalhães e Amarante (a maior parte realmente jovens na cena contemporânea). 45 e 46). permitindo aos visitantes clivagens inéditas. p. Rivera e outros. xerografia e vídeo. estratégico que Iberê. Mas foi a edição seguinte que homenageou o videomaker Rafael França (19571991). e não como resistência fossilizada”(MAGALHÃES.9 n. O curador Fábio Magalhães afirmava – talvez respondendo a Frederico Morais que não encontrou espaço para Iberê em sua curadoria – que o “corte proposto dentro da vanguarda histórica [atualizava] o discurso da contaminação. mas apenas Marco Giannotti. em 2003 o artista homenageado foi Saint Clair Cemin (1945). 1999b. ambas curadas por Fábio Magalhães e Leonor Amarante. 21 participaram uma segunda vez ao longo das sete edições da Bienal. na “gramática multifacetada” da produção brasileira. Na 2ª edição exibia-se a mostra paralela “Picasso. Dentre os 102 artistas brasileiros. Nelas. portanto.09). p. Sob a curadoria geral de Nelson Aguilar. “uma das figuras de proa da arte brasileira deste século” (MAGALHÃES. da prospecção positiva sem retórica” (MAGALHÃES. começava com artefatos das culturas pré-colombinas e terminava com a doação à prefeitura de Porto Alegre de uma grande escultura de Cemin. Era. o contexto curatorial que homenageou o mineiro Amilcar de Castro. agora com interesse prospectivo.1 p. Nessa abordagem. Foi diferente.) num belo ato poético” (PEDROSO. quando homenageados. as homenagens poderiam também reforçar o mérito local. Ainda nessa edição. ao perscrutar amostras de DNA de expoentes da própria Bienal do Mercosul. a doação da obra de Cemin tornava-se também uma homenagem de pretensão ontológica. aquela “hipercuia”. no entanto. 2003. Nesse contexto. O homenageado era destaque na curadoria de uma nova revisão histórica. Na 5ª Bienal do Mercosul ela sustentava uma abordagem da arte contemporânea brasileira a partir de suas matrizes construtivas. Transbordamentos Como estratégia para constituição de um lastro artístico regional. p. entre a 2ª e a 4ª edições. enunciaria “o modo cósmico de ser gaúcho” (AGUILAR.9 n. considerando que os curadores gerais. 09-23. poderíamos supor cada homenagem como um movimento de apresentação e legitimação artística intramuros. em evidente competição com o eixo RioSão Paulo9. como oportunidade de projeção institucional. segundo Aguilar. o curador festejava a investigação genética da arte latino-americana num trabalho assinado por Ary Perez e Sergio Danilo Pena onde se revelava. uma “fotografia gênica”. Homenagem que não pode ser enquadrada como estratégia de “lançamento”10. alguns nem mesmo regionalmente. curada por Franklin Pedroso. 2003. obviamente.Figura 4 ascendência racial até as afiliações da arte contemporânea e. Iberê Camargo. teatralmente iluminados e espalhados no chão de uma grande área “representando testes de DNA (.44). destacava-se a obra de Lygia Pape: bacias brancas com líquidos coloridos sobre montes de arroz e feijão. até então eram oriundos do centro do país. qualificando Porto Alegre como pólo cultural. procurando os “cânticos de origem” da nossa identidade7. 2003. 18 VISUALIDADES.271). Goiânia v. ainda não eram artistas suficientemente visitados pelos centros hegemônicos. Assim. Pois.71). em 2005. Pois. apud AGUILAR.. p. as homenagens de cada edição das Bienais do Mercosul serviriam. também. produzindo “um mapa da ancestralidade genética” da arte e dos artistas sul-americanos (PEREZ apud AGUILAR. da forma como foi perpetuada.. jan-jun 2011 . dentre os nove artistas da representação brasileira8. Rafael França e Saint Clair Cemin (todos nascidos no Rio Grande do Sul). p. o Rio Grande do Sul também está sendo homenageado na 8ª Bienal Bianca Knaak. Assim. tanto em suas aporias geográficas e geopolíticas quanto de seus processos simbólicos – sejam eles afetivos e mnemônicos ou geopoéticos. quanto a 7ª edição (“Grito e escuta”). nascido no Brasil e criado na Europa e. jan-jun 2011 Sob a curadoria geral de Paulo Sergio Duarte a opção por expor Histórias do Espaço e do Tempo (título da mostra) permitiu um novo balanço da cena artística regional. O curador e sua equipe organizaram a mostra em vetores temáticos: Da Escultura à Instalação. também visitarão diferentes lugares para ativar as potencialidades estéticas e artísticas de cada itinerário12. além da já citada exposição Fronteiras da Linguagem. Direções no Novo Espaço (incluindo fotografia.1 p. Basta lembrar. especialmente suas Pinturas Aeropostais. volta o recurso da homenagem e. Nessa edição. Em 2011. na 7ª Bienal do Mercosul 11. na 6ª edição. literalmente como um abre-alas curatorial. porém em franco diálogo com a produção internacional. Waltércio Caldas e Carmela Gross. tão recorrente na cena pós-moderna (e na própria Bienal do Mercosul). Enquanto projeto. da exposição. Ambas com curadores gerais estrangeiros. por exemplo. Goiânia v.9 n. com intervenções definitivas dos brasileiros José Resende. os trabalhos de Dittborn. obras e museografia para isso e foram igualmente reveladoras e lisonjeiras com a produção dos brasileiros. Mauro Fuke. A obra do chileno Eugênio Dittborn (1943) é o destaque para abordagem do conceito chave da mostra – a territorialidade – em seu amplo espectro vivencial (transterritorialidade. a 5ª Bienal foi a que mais se aproximou da 1ª. desterritorialidade. Depois da 5ª edição. as duas edições imediatamente seguintes não utilizaram mais homenagens em suas construções curatoriais. o conjunto de 84 brasileiros repetia 22 artistas da 1ª Bienal do Mercosul. segundo o curador (José Roca). das salas especiais de Paulo Bruscky (1949) e Cildo Meireles (1948). nessa 8ª edição. cinema. estarão no Santander Cultural (no centro histórico de Porto Alegre) e.VISUALIDADES. deslocamentos e pertencimentos). ciberarte e performance). 09-23. de Öyvind Fahlström (1928-1976). vídeo. tiveram espaços. Amilcar de Castro. Além da homenagem oficial. o curador promete orquestrar estratégias (coletivas ou individuais) de apresentação e constituição de territórios. Questões sobre Arte Brasileira nas bienais do Mercosul 19 . subliminarmente. A persistência da Pintura (onde Iberê Camargo esteve pela segunda vez numa Bienal do Mercosul) e Transformações do Espaço Público. tanto a 6ª (intitulada “A terceira margem do rio”). inclusive o homenageado. Para explorar essa temática. Multilateralizando Não faremos aqui uma análise das obras citadas.) 4ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Referências AGUILAR. Goiânia v.9 n. Dentre nove artistas selecionados13. (intitulada “Além fronteiras”) ela percorre o passado e o presente cultural da ponta sul do Brasil e suas fronteiras em busca de um inventário de influências estrangeiras e revelações locais que de alguma forma ajudaram a configurar e conceber a arte e a visualidade do Estado. Leonor. entre outros aspectos. DEBORD. 1997. Por ora nos cabe destacar que as revelações de cada edição. organiza em exposição uma visão crítica da paisagem regional. 2005. AMARANTE. Afinal. arte e política instigam curadores no mundo inteiro. Rio de Janeiro: Contraponto. DUARTE. Guy. 09-23. Porto Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul. A historiadora da arte brasileira Aracy Amaral. mais espaço. seis são brasileiros. A sociedade do espetáculo. sobre aquilo que poderíamos apontar como imbricações entre “mundo e lugar”. Porto Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul. jan-jun 2011 . nem mesmo leituras possíveis a partir das teses centrais dos curadores. 20 VISUALIDADES. as recorrências desencadeadas por esse tipo de evento pedem olhares mais diligentes. retrospectivas ou estréias. Gramática Multifacetada. In: II Bienal de Artes Visuais do Mercosul: catálogo geral. Porto Alegre: FBAVM. quatro dos quais nascidos no Rio Grande do Sul e com participações em edições anteriores das Bienais do Mercosul 14. convidada pelo curador geral. 1999.) Rosa dos Ventos: posições e direções na arte contemporânea. 2003. podem contribuir para a construção crítica de um campo que ainda aprende a escrever sua história.1 p. Nesta exposição. e obviamente. Assim. seja com homenagens. Um trabalho assim exigiria outra abordagem metodológica. mas a política das artes ainda precisa discussões territorializadas para a compreensão do sucesso da maior mostra de arte da América Latina (como se intitula a Bienal do Mercosul desde o início) e dos artistas brasileiros por ela destacados. além de revelar os modos de ver e viver os territórios do sul.do Mercosul. Paulo Sérgio (Org. Nelson (Org. São Paulo.br/ fsp/ilustrad/fq1307200908. 07. 13 de julho de 2009. Contemporaneidade. Porto Alegre. Porto Alegre: FBAVM. n. a marca da II Bienal. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul. v. III Bienal de Artes Visuais do Mercosul: Catálogo Geral. 02 de outubro de 2010.04.br/istoe/edicoes/2068/imprime142591. Jornal Zero Hora. Paula. Porto Alegre. In: Jornal Zero Hora. 2008.VISUALIDADES. 48-65. 1999b. com. Revista ZH.9 n. 2001. Porto Alegre. Porto Alegre: FBAVM. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. ________. Disponível em: < http://www1. 09-23. senhor de si próprio. 67. São Paulo. Cultura. 2008. Novos Estudos CEBRAP. Bienal de São Paulo importa modelo gaúcho de gestão.131-142. Bianca. Uma história concisa da Bienal do Mercosul. Bianca Knaak. In: Catálogo Geral da I Bienal do Mercosul. 06. KUDIELKA. ________. 2008. Porto Alegre: FBAVM. À Deriva num copo de mar. Iberê.1 p. As Bienais de Artes Visuais do Mercosul: utopias & protagonismos em Porto Alegre. nov. Fábio. KNAAK.1. 1997b. Porto Alegre: FBAVM. MARTINS. In: Catálogo Geral da I Bienal do Mercosul. jul. Arte brasileira: lo de afuera. 289 f. lo de adentro. 1997a. MAGALHÃES. ________. Revista Isto é. MARTÍ. Porto Alegre: FBAVM. ________. Arte do mundo ou arte de todo mundo? Do sentido e do não-sentido da globalização nas artes plásticas. Jornal Zero Hora. p. Os Brancos da Bienal. apud ALZUGARAY. 1997 – 2003. 05 de janeiro de 1997. p.. Questões sobre Arte Brasileira nas bienais do Mercosul 21 .htm > Acesso em: 14 de julho de 2009. Silas. Goiânia v. Cultura. Concinnitas. A Bienal depois do caos. In: II Bienal de Artes Visuais do Mercosul: Iberê Camargo.folha. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. In: II Bienal de Artes Visuais do Mercosul: Catálogo Geral. Presença da arte brasileira: história e visibilidade internacional. 10 nov. p. n.uol. 12. In: Jornal Folha de São Paulo. HUCHET. Porto Alegre.htm > Acesso em: 16 de julho de 2009. ________. Heitor. p. 2003. Disponível em: < http://www. Stéphane. 2005. Robert. 2001. Frederico. p. jan-jun 2011 FIDÉLIS. MORAIS.1999a. ________. Reescrevendo a história da arte latino-americana. Gaudêncio.terra. ano 9.com. 9. p. 1997. da participação recorde de gaúchos na edição seguinte e o mobiliário urbano na orla do Guaíba. da Mostra Transversal. quando da primeira Bienal do Mercosul. Laura Lima. o processo envolvido não deixa de ser uma proposta relacional. Jorge Barrão. Niura Bellavinha. Lia Menna Barreto e Eduardo Kac. p. José Damasceno.1 p. Da curadoria ao projeto educativo. VER: KNAAK. serão vários os nomes que começam a transitar com desenvoltura entre uma e outra Fundação Bienal. segundo Morais. Bressan vive e trabalha em Porto Alegre e Vinci em São Paulo. Lygia Pape. estes numa proposta de intervenção urbana. que legou obras de todos os participantes à cidade de Porto Alegre. da Rádio Visual e o caráter relacional da programação Pré-Bienal da 7ª edição. liderados por Victoria Noorthoorn (Argentina) e Camilo Yáñez (Chile). Ivens Machado. levada a termo por um conjunto de nove pessoas. Fernando Lucchesi. da ocupação dos já extintos armazéns do cais do porto. três anos antes recebera uma grande exposição de Amilcar de Castro. Divididos em duas montagens estavam Efraim Almeida. 2001. 12. que naquele momento não fez parte da mostra. 11. Ver MORAIS. Amilcar de Castro participou. 2003. Genealogia da arte na América Latina que. 4. Lia Menna Barreto. Janaína Tschäpe. 6. 5. Marcos Coelho Benjamin. Além disso. Laércio Redondo. Cf. Marcos Chaves e o chileno radicado brasileiro Patricio Farias. É importante observar essa aproximação entre as duas maiores bienais de artes visuais do país para entender como o sistema promotor das artes no Brasil tem um modo hegemônico de se apresentar interna e internacionalmente. na 2ª. da metáfora da terceira margem trazendo artistas de quatro continentes à 6ª Bienal. Ver: AGUILAR. Artur Barrio e Maurício Dias (Maurício Dias e Walter Riedweg). Nem mesmo para Porto Alegre que. Goiânia v. cidade ou comunidade. Keila Alaver.NOTAS 1. Amparados por um Programa Pedagógico. 8. José Damasceno.20. 2008. Eliane Prolik. 3. 09-23. p 63. circulando na capital gaúcha na 1ª edição. todos convidados a percorrer o centro de Porto Alegre buscando novas idéias e inspirações. Ambos são da mesma faixa etária e tem formação acadêmica em artes. Na Mostra Transversal curada por Alfons Hug ainda estavam os brasileiros Tato Taborda. dados fornecidos pelo Núcleo de Documentação e Pesquisa da Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul. 12 . chamada “Imaginário Objetual” Nesta participaram também Mário Sagradini (UR). na 4ª Bienal. curada por Marcelo Ferraz. intitulada Tangenciando Amilcar e curada por Tadeu Chiarelli. 2.41. sobretudo quando Justo Werlang passou a integrar a nova diretoria da Bienal de São Paulo. estaria completa apenas com a “vertente fantástica” e dependeria da participação mexicana. reunindo dez artistas nacionais. ainda que diferente daquelas que 22 VISUALIDADES. essas ativações pretendem incentivar a construção de um sentido comum e compartilhado da arte naquele lugar. das performances no Hospital Psiquiátrico São Pedro e a invenção de uma Cidade de Contêineres na 3ª.07. Portanto. acompanhada de uma mostra paralela. Gilberto Vançan. no Santander Cultural. com mais dez artistas. 10. jan-jun 2011 . Rosana Paulino. 7. p. além de Fernando Limberger. do vetor “parque das esculturas”. Notamos ainda uma série de recorrências e retro-influências decorrentes dessa aproximação. Ver KNAAK. A 7ª edição inovou em sua curadoria. Monica Giron (AR) e Sydia Reyes (VE). do venezuelano Cruz-Diez. Lembremos do ônibus Chromobus. Félix Bressan.9 n. 1 p. Questões sobre Arte Brasileira nas bienais do Mercosul 23 . Aqui Mesmo”. Goiânia v. Em 2005 organizou o livro A(propria)ação entr&tantas: artistas reunidos (ISBN 8589576078) que em 2010 participou da 29ª Bienal de São Paulo no terreiro “Longe Daqui. Gal Weinstein. Investiga a promoção da arte brasileira contemporânea através de curadorias. Irene Kopelman. Além disso. Carlos Pasquetti. Recebido em: 31/03/2011 Aceito em: 14/05/2011 BIANcA KNAAK bknaak@hotmail. Sendo que ao concluir esse artigo a 8ª edição da Bienal ainda não foi inaugurada. A saber: Cao Guimarães. 09-23.VISUALIDADES. Bianca Knaak. considerei apenas os dados confirmados pela assessoria de imprensa da Fundação Bienal do Mercosul e pelos próprios curadores citados. bienais e grandes exposições. 13. a tarefa de ativação de potencialidades e construção compartilhada de sentido resume o projeto pedagógico da Bienal como um todo (work in process) e seu interesse de contrapartida social. 14.com É pesquisadora e professora do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). junto a algumas comunidades. Carlos Vergara. Integra o Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA). Lucia Koch e Marina Camargo. para contextualização da abordagem promovida nesse texto. Curadora.9 n. Felipe Cohen. crítica de arte e artista sazonal. jan-jun 2011 marcaram a edição de 2009. projetos museológicos e outras estratégias de institucionalização. José Alejandro Restrepo. entre 1999 e 2002 dirigiu o Instituto Estadual de Artes Visuais e o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Doutora em História e Mestre em Artes Visuais pela mesma Universidade. . escravos. Christiano fez algumas dezenas de retratos da população escrava que vivia na cidade do Rio de Janeiro. Goiânia v.1 p. 25-47.9 n. Brasil Imperial VISUALIDADES. português que viveu no Brasil na segunda metade do século XIX. Tais fotografias são hoje uma oportunidade única para conhecer essa população e conhecer suas características. Palavras-chave: Fotografia.Typos de pretos: escravos na fotografia de Christiano Jr MArcELO EDUArDO LEITE Resumo O presente artigo tem como objetivo analisar parte da obra do fotógrafo Christiano Júnior. jan-jun 2011 25 . as fotografias de tipos populares. na década de 1860. As imagens que aqui apresentamos e analisamos são extremamente relevantes e se originam de uma demanda bem específica. which lived in Rio de Janeiro city during the 1860’s. The images here presented and analyzed are extremely relevant. Christiano produced some of the several portraits of the slave population. Today such photographs are the only opportunity to know this population and its traits. that means photographs of a popular type.9 n.Types of black: slaves in photography Christiano Jr MArcELO EDUArDO LEITE Abstract This paper aims to analyze part of Christiano Júnior’s works. 25-47.1 p. slaves. jan-jun 2011 . Brazil Imperial 26 VISUALIDADES. Keywords: Photography. Goiânia v. who lived in Brazil during the second half of the nineteenth century. they were originated from a specific demand. compreendendo melhor seus significados e formas de representar a realidade. as cartes de visite de tipos exóticos ou populares. Marcelo Eduardo Leite. p. Nossa abordagem compreende o fotógrafo como um mediador que interpreta o campo da cultura. Nos termos de Kossoy. para a realidade da representação (imagem fotográfica: segunda realidade). Assim. Sendo. cultural e técnica que irá originar a representação fotográfica. 1999. Goiânia v. trata-se pois. a fotografia como objeto de nossa análise requer uma investigação que observe além das questões técnicas. também. Por conta disso que nossa missão de compreender as fotografias de Christiano Júnior nos convida a conhecer mais sobre a sociedade na qual ela é produzida. fazendo uma leitura específica do mesmo.9 n. se aproximando do meio no qual tal representação é feita. também. a fotografia pode ser entendida como um documento e. Desta forma. jan-jun 2011 Apresentação O presente artigo tem como objetivo apresentar a produção do fotógrafo Christiano Júnior. “O processo de criação do fotógrafo engloba a aventura estética. referência para que possamos compreender o universo dos escravos de ganho que habitavam as ruas da cidade. 25-47. 26).1 p. Tais imagens são exemplos contundentes de uma forma muito comum de fotografia no século XIX.VISUALIDADES. outros elementos. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr 27 . no contexto da vida (primeira realidade).” (1999. como uma representação da realidade. realizada na cidade do Rio de Janeiro na década de 1860. p. entendendo seus sentidos específicos. de uma transposição de dimensões (KOSSOY. também. A fotografia implica uma transposição de realidades: é a transposição da realidade visual do assunto selecionado. 37). o cliente divulga esta sua imagem construída. além de não permitirem acompanhar a vontade popular. p. arquivando-as. Goiânia v. obrigam o fotógrafo a despender mais tempo no processo de revelação. tem como principal inovação o fato de serem produzidos em série. devido ao uso de grandes formatos. jan-jun 2011 . a menos que conseguisse ampliar a sua clientela e aumentar as encomendas de retratos. O retratado pode adquirir 12. Uma vez com sua série de imagens nas mãos. aparecem alguns colecionadores que as colam em álbuns. Ao compreender essas variantes. Como o próprio nome diz. Filho de um imigrante que se muda à Paris no intento de fazer fortuna. 1986. era apenas acessível à reduzida classe dos ricos. É quando tem a ideia de desenvolver as cartes de visite (FREUND. Também. numa paródia de auto-representação na qual se unem realismo e idealização. políticos e artistas. Uma das principais inovações das cartes de visite é o retrato de ‘corpo inteiro’. O que permite ao cliente sair do ateliê fotográfico com uma série de imagens idênticas.9 n. tais como as de ‘tipos exóticos’. longe do indivíduo e próximo da máscara social. nas quais se explicita a projeção pessoal do retratado. também. aquelas que são vendidas em livrarias. É dada como lembrança e. Com sua grande difusão. trata-se de um ‘cartão de visita’. já que o negativo fica arquivado no estabelecimento. medindo aproximadamente 5 x 9 centímetros. já que ele percebe que a fotografia. trocada entre as pessoas. muitas vezes. o que revela o seu tino prático e comercial. Cioso da importância operacional do estúdio como um fator determinante para o seu sucesso comercial.As fotografias carte de visite Difundidas a partir do ano de 1854. ne28 VISUALIDADES. Surgem. e que foram desenvolvidas pelo francês André Disdéri. 69). Tais retratos. constata que os elevados preços cobrados. a partir de um sistema de lentes múltiplas. ele percebe que o ofício não daria resultados. por ser muito cara. Disdéri é o primeiro a apreender as exigências do momento e os meios de satisfazer novas demandas. com figuras ilustres. 25-47. as cartes de visite são fotografias realizadas em estúdio. que retratavam tipos populares como índios e escravos.1 p. como por exemplo. e as de celebridades. inclusive. o que implica cercar o retratado de artifícios teatrais que definem seu status. voltar ao ateliê para encomendar mais cópias. Estes retratos são a forma mais completa de junção da série de elementos mobilizados na elaboração da cena fotográfica. podendo. 24 ou 36 imagens iguais. religiosos. com seu ícone pessoal. Goiânia v. a nosso ver. a lógica. Ou seja. estes.9 n. que são incorporados e reincorporados na sala de poses. Fazendo este percurso da totalidade para o recorte. notamos que. além de não minimizar o papel do fotógrafo como mediador. a fotografia carte de visite. mesmo tendo concomitância com as elaborações cênicas de outros locais. Assim. devemos estar atentos às singularidades deste material. Neste sentido. ou abrindo espaço a segmentos que não seriam habitués em Marcelo Eduardo Leite. ainda permite que ele seja fundamental na geração do produto final. Esta diversidade é fruto. observamos que à primeira vista as fotografias oitocentistas parecem homogêneas. entretanto. em outras. principalmente. nos proporciona outro ângulo de observação. é a sua não interferência que aparece. Segmentos. por meio desses objetos. Podemos exemplificar entre a clientela. assim como um exame atento da bibliografia existente mostram a coexistência de formas de uso diferenciadas. este suporte chega e atinge novos segmentos da população. ostentando traços da moda desejada. A verdade é que estas pessoas procuram. 25-47. jan-jun 2011 les se observa que os clientes podem introduzir a sua própria indumentária. mesmo tendo sido difundido de forma bem mais restrita que na Europa. o negro liberto. a proposta que apresentamos demonstra as especificidades do material nacional que. a elite agrária etc. No tocante à difusão das cartes de visite no Brasil devemos. Estes retratos agregam os fragmentos da personalidade do indivíduo. o trabalhador urbano. considerar as singularidades de sua expansão no país.1 p. contar a sua própria história: muitos querem ser retratados com as suas ferramentas de trabalho. formatos e meios de difusão. nossa proposta vislumbra um estudo pontual. já que os ateliês oferecem vestimentas muitas vezes inacessíveis a eles. Considerando que novos anseios e novos padrões geram novas representações. No mesmo sentido. finalmente. local onde se estabelece a construção individual. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr 29 .VISUALIDADES. por oferecer também uma lógica definida de elaborações cênicas comuns: pose. trazendo desde objetos cotidianos à roupa do dia-a-dia. Como por exemplo. em alguns casos as interferências dos fotógrafos são observáveis. de dois fatores: as transformações técnicas da própria fotografia e as mudanças sociais. o imigrante. ao não esconder sinais que denunciam uma roupa emprestada pelo ateliê. ou na adaptação de objetos cênicos. Aqui. que podem se fazer representar. que vem dos fotógrafos e suas peculiaridades. um olhar mais aprofundado sobre elas. indumentárias. de imediato. 25-47. Com relação ao estudo das cartes de visite é bom salientar que devemos. Goiânia v. fomos notando que. seu uso dos recursos técnicos. bengalas. painéis de fundo. está a realidade social.1 p. por exemplo. abrindo espaço para que este se mostre independente dos modismos predominantes. Neles estão referências ao contexto histórico e que se colocam entre o pesquisador e o retratado como uma espécie de ponte. de um lado. pequenos detalhes. sobrecasacas e vestidos. inúmeros painéis de fundos diferentes. o que fornece elementos para a compreensão das razões de determinadas opções feitas por retratado e retratista. Assim. o espaço da “sala de poses” é um lugar onde se estabelece uma série de formas de representação. ainda. conceder atenção à cena social e ao décor interno: equipamentos do ateliê. Pois. mas com as suas não-interferências. que procuremos não só uma aproximação com as interferências do fotógrafo. Tal movimento permite melhor entendimento dos códigos e linguagens próprios do meio. tais como. usados nas referidas imagens. Fica claro. por exemplo. Devemos perceber. notamos que ele se faz presente dando liberdade ao modelo. um sem número de chapéus. estatuetas e. então. em muitos casos. Literalmente. e. então. Enfim. Numa observação atenta. no contexto de um universo mais abrangente. serem. jan-jun 2011 . ainda. poltronas. cada um desses pólos remetendo invariavelmente ao outro. em alguns casos. cada profissional desenvolve seu ofício dentro de alguns parâmetros. É relevante o fato de alguns componentes tradicionais. Tais imagens obrigam quem as estuda a reconhecer atentamente seus elementos constitutivos. suas montagens cênicas. vemos algumas diferenças entre as produções. Neste sentido. adereços.9 n. na análise destas imagens. que conhecer a técnica fotográfica é primordial para o estudo de tais ima30 VISUALIDADES. seus pontos de vista e anseios. é pertinente que se dê atenção aos elementos cênicos e às formas de uso das indumentárias. desenhar um movimento que combina diferentes pontos de partida e de chegada: o fotógrafo. mobílias e roupas. tais como móveis e painéis. colunas. encontramos. em primeiro lugar. Do outro lado. É pertinente. o fotógrafo. o ateliê. a cidade e o país no qual ele atua. aproximando-se das vontades específicas dos retratados. substituídos por objetos que fazem referência direta à realidade sociocultural do retratado. também. Outro ponto fundamental para o trato analítico do material é a aproximação para com o contexto histórico na qual se produz a imagem.outros estabelecimentos. A análise deve. a vontade do cliente é. Tudo isso numa sociedade . o uso destas fotografias para a construção da auto-imagem de parte da população torna-se um filão recorrente dos ateliês fotográficos. Modelos típicos desse ‘novo homem’ são difundidos e. Neste sentido. As fotos denunciam que o pobre. Ao procurar o profissional da fotografia. e mesmo as classes inferiores da sociedade. o que evidencia a conjunção entre realidade e ficção. ao contrário. para entendermos o dia-a-dia dos profissionais da fotografia no século XIX. Goiânia v. e os retratos cartes de visite. sem dúvida. apesar da mis-en-scéne. inclusive. o retratado estuda com o fotógrafo as possibilidades de construção do registro. 1991. 21). mas é preciso considerar que além da lógica de produção apresentada há uma carga muito grande da influência do contexto cultural nestes retratos. almejam participar dos novos rituais de representação. descosturadas para serem adaptadas ao corpo do retratado. que não podemos de forma alguma negar a influência do meio na produção Marcelo Eduardo Leite. é evidente que a reprodução dos valores da nova ordem política e social que nosso país vive na segunda metade do século XIX. Discutindo acerca dos seus anseios. que assume uma importância cabal no ato fotográfico. Atendendo às demandas sociais. vindo. ao se travestir de rico. p. acaba refém de uma pose demasiadamente rígida e. em grande parte dos casos. em menor escala. podemos notar certo desconforto do retratado diante da indumentária em geral oferecida pelos ateliês. Constatamos também o papel da subjetividade contida na relação entre retratado e retratista. assim. verdade e sonho.9 n. Algumas das vestes usadas são as oferecidas pelo ateliê aos clientes. 1983. de adultos e de crianças . Diante do exposto. Esta relação entre retratista e retratado se dá sob num contexto social permeado por valores culturais. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr 31 . devemos considerar o grau de importância da técnica no desenvolvimento do ofício. uma das determinantes do registro fotográfico. as posições sociais são flagradas. jan-jun 2011 gens. e marcadas por informações típicas do meio que as produz.dividida em classes e em universos distintos de homens e de mulheres. num primeiro momento. 25-47. p. a reconhecer que as mesmas são fruto de um contexto social. imposição social e vontade individual (FABRIS. em muitos casos. 58).1 p. as representações não conseguem esconder as diferenças de classe. pensar as imagens fotográficas nos obriga. fica evidente que.que tem na moda um dos fatores determinantes para a representação de valores e papéis sociais (LEMOS. do ponto de vista técnico e simbólico.VISUALIDADES. Reconhecemos. 2004. inicialmente atendendo no Hotel Brisson. 32 VISUALIDADES. permeados de códigos particulares do próprio ambiente que as produz. mas este acervo veio a ser incorporado à gama de produtos do ateliê Christiano Jr. vejamos o mapa 3. em 1863. as significações existentes nos registros.9 n. as ruas do Rio de Janeiro na sala de poses Nascido no ano de 1832. 122). p. tendo como sócio Fernando Antonio de Miranda. na sua passagem pelo Rio de Janeiro. sozinho (ERMAKOFF.1 p. já que elas são parte de um processo intimamente ligado aos próprios modos de vida da sociedade que as produz. vendida no seu próprio estabelecimento e também na Casa Leuzinger (LAGO. associa-se a Bernardo José Pacheco e funda o ateliê Christiano Jr. encontram seu sentido ao serem projetadas no meio social. Pouco depois. 25-47. Goiânia v. chegando ao país acompanhado de sua esposa e dois filhos. Pelo ano da realização. Mas. em 1866. Realizado no suporte carte de visite. sendo frequentado por mais de um segmento social. à Rua São Pedro 69. & Pacheco. Alagoas. e o que nos chama mais a atenção. Em 1865. transfere-se para o Rio de Janeiro. Seu ateliê é mais um na cidade a disputar a clientela. 2005. LAGO. & Pacheco. onde mantém estúdio até 1862. na Rua do Comércio. coisa muito própria para quem se retira para a Europa”. Sendo. tem ateliê na Rua da Quitanda 53 (para melhor compreensão. do acervo da Biblioteca Nacional). inclusive. Pouco depois. num segundo momento. ele está no Photographia do Comércio. página 202. imagens que estas sociedades projetam de si mesmas e que. tal anúncio pode ser visto na figura 1. Christiano Junior. na Rua da Ajuda. o que diferencia o seu trabalho. as imagens foram feitas especificamente quando ele trabalha sem sociedade. Foi em 1866 que o Almanak Laemmert anuncia a venda de uma “Variada coleção de costumes e tipos de pretos. Inicia a atividade fotográfica por volta de 1860. arquipélago de Açores. 133). 57-B. Portugal. José Christiano de Freitas Henriques Júnior se muda para o Brasil no ano de 1855.das fotografias. Sua série. p. desta feita. em Maceió. são os retratos da população cativa da cidade. jan-jun 2011 . as imagens foram produzidas em dois padrões: retratos de corpo inteiro e bustos. na Ilha das Flores. um ano depois. tal modalidade fotográfica é um produto da época. Em algumas das fotografias. João 33 Marcelo Eduardo Leite. chegou a ser metade da população total (GORENDER. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr . 1988. 25-47. 93). sendo que.VISUALIDADES. encontramos anotações que identificam a nação africana da qual o negro registrado é originário. Dentre outros profissionais que desenvolveram trabalhos deste tipo destacamos Alberto Henschel. À época em que as fotografias são produzidas.000 pessoas. a população de negros escravos que trabalham nas ruas da cidade é de 55. em alguns momentos do século XIX. jan-jun 2011 Tais imagens espelham as ruas do Rio de Janeiro. p.27 Do ponto de vista comercial. 1/3 do total da população da capital. Goiânia v.1 p. a nosso ver. e feito por outros profissionais em nosso país. principalmente nas de busto.9 n. Isso. configurando-se uma modalidade muito difundida. “Notabilidades” p. demonstra por parte dele uma grande preocupação em evidenciar a diversidade dessa população. em Pernambuco. Figura 1 Reproduzida do Almanak Laemmert 1866. na sociedade escravocrata. no entanto. a cena ganha movimento. no Pará. Dentre o material deixado por Christiano. mas nenhum o fez com a dimensão do seu trabalho. p. Na figura 2. permite que o modelo. que deixa sua testa franzida.1 p.Goston e Rodolpho Lindemann. seu olhar é direto para o fotógrafo. Ele ostenta um ar sério. Esses homens e mulheres. Com um chapéu na cabeça e visto de perfil. Na cabeça. aguardando algum trabalho como carregador. LAGO. sobretudo. sem. carregadores. A forma de compor a imagem. como também constrói um conjunto de imagens que destacam o cerne da sociedade da capital imperial. Sua roupa é uma calça preta e blusa branca. e Felipe Augusto Fidanza. no primeiro plano. seja por sua grande quantidade de tipos. Embora seja inegável a presença de motivação mercadológica. desempenhavam uma infinidade de funções. jan-jun 2011 . As imagens mostram por parte dele um engajamento especial. Nesse sentido. Goiânia v. deixando quase sempre o fundo sem nenhuma informação. 2005. o homem faz uma pose que sugere que ele está a caminhar. Sua expressão é fechada. Na figura 3. Para observarmos a forma pela qual ele registrava. ele tem uma leve inclinação para a direita. seu paletó está abarrotado e apresenta manchas. esse elemento não compromete a importância do trabalho de Christiano Jr. amoladores de facas. vê-se um artesão. entre outros. na Bahia. pela diversidade de ofícios mostrados ou pelas próprias vestimentas. colocando um novo produto fotográfico para o mercado.9 n. 133). O retratado simula a fabricação de algum 34 VISUALIDADES. Esses homens circulavam pela cidade ou ficavam em pontos estratégicos. ganhe destaque. abrindo a série de vendedores temos as figuras 2 e 3. que o modelo se coloque totalmente de lado. os retratos de corpo inteiro são aqueles que mais nos chamaram a atenção. são neles que vemos os negros executando os mais diferentes ofícios. um gorro bastante justo. barbeiros. útil ao imaginário que acompanha os viajantes que por aqui passam. 25-47. típicos dos escravos de ganho: vendedores de frutas. pois até o momento já foram reconhecidas mais de 100 imagens diferentes (LAGO. olhar direcionado para uma das laterais do ateliê. numa sociedade cuja conotação do trabalho braçal é pejorativa. Estas imagens são vendidas no comércio local e servem como uma espécie de souvenir dos trópicos. seu trabalho não apenas se destaca em relação à concorrência. carregando uma cesta sustentada pelo braço esquerdo. pois salta aos olhos a forma extraordinária com que ele traduziu em imagens esse segmento social. A técnica de trabalho empregada nessas obras com palha é de origem africana.) (GRAHAM. ampliando a exploração destes. cestas e esteiras. estatuetas de santos. p. sendo assim um ofício que.1 p. escravos de ambos os sexos vendiam de tudo: (. está esfarrapada. p. parece menos alienante que os demais (CUNHA.VISUALIDADES.) artigos de vestuário. ervas e flores. na figura 4 vemos um casal de vendedores. Além de carregadores. O homem apresenta uma surrada sobrecasaca. poções de amor. jan-jun 2011 objeto feito de palha. Goiânia v.. velas. sua calça.9 n. Marcelo Eduardo Leite. pássaros e outros animais (. romances e livros. 1988. qualquer negociante contava com um ao seu lado. 25). 146). Ocupando o espaço das ruas. e a posição ostentada faz com que seus pés descalços ganhem um destaque especial na composição.. Alguns senhores passaram a treinar novos africanos na arte de vender. em vez de servirem simplesmente de carregadores. Figuras 2 e 3 Novamente fazendo uso de certa teatralidade própria das ruas.. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr 35 . panelas e bules. de certa forma. utensílios de cozinha. outros levavam tabuleiros de madeira ou caixas. dos mais variados tipos de produtos. 25-47. O serviço de carregador era um dos mais requisitados. da mesma forma. os escravos assumiram a profissão de vendedores ambulantes. alguns vendedores também levavam cestas sobre a cabeça. 1988.. pois só o escravo se prestava a esse encargo. Figuras 4 e 5 Na figura 5 vemos um negro que veste um surrado paletó e segura numa das mãos um chapéu... de certa forma.. o que fica oculto por estar coberto pelo corpo da mulher. Na figura 4.Mas os carregadores de todos os tipos são os que mais chamam a atenção daqueles que passam pelo Rio de Janeiro. o que.. Debret passa a seguinte impressão acerca desse cenário. p.)” atendendo interesses dos proprietários (.) cujos negros todas as noites trazem para casa os vinténs necessários muitas vezes à compra das provisões do dia seguinte” (DEBRET. jan-jun 2011 .) nesse século de luzes se depare ainda no Rio de Janeiro com o costume de transportar enormes fardos (. vemos atrás dos retratados. Com relação aos vendedores ambulantes. O objeto 36 VISUALIDADES. prática essa que “(. certamente.. demonstram maior desconforto dos modelos.) assegura a remuneração diária de escravos empregados nos serviços de rua (. um pano que cobre a haste de fixação.... 238). Ela usa uma vestimenta toda branca. no chão. 25-47.)”. devido ao tempo de imobilidade necessário para tais imagens. Goiânia v. Parte dessa impressão pode estar ligada à grande complexidade da produção. é possível notar que o homem segura em uma delas com o braço esquerdo. é um complicador. fazendo com que o primeiro plano adquira maior expressividade. aliar o equilíbrio dos produtos sobre a cabeça.. as imagens 4 e 5 nos parecem ser as que. relatando ser estranho que “(.. 1975.9 n.1 p. faz uma paródia dos padrões de vestimenta da época. com certeza. o que provoca um destaque maior com relação ao fundo. ele não calça sapatos. p.VISUALIDADES. com calças bem postas. espalhados em grande número pela cidade (. provocando o aparecimento do suporte onde poderia estar o painel de fundo. p. ligados a algum tipo de atividade de carreto. 19).) negros carregadores. As figuras 6 e 7 são bons exemplos da preocupação que Christiano Jr. ainda. chapéu e até um charuto. já que mostra um semblante bastante Marcelo Eduardo Leite. tais homens podem ser vistos. um relógio de algibeira. assim como a mulher da figura 4. portando. passando por carregadores de cadeiras e mercadorias. elementos que enriquecem a composição do modelo. parece ser essa a carte de visite na qual o modelo apresenta mais desenvoltura diante do fotógrafo. 2000. desde carregadores de água e dejetos humanos. 19).. Na figura 6 vemos mais um carregador. pois eles assumem um papel bastante significativo. ele tem que andar descalço. Na sua detalhada descrição. ou encarregado de pequenas entregas. esse fundo apresenta um corte horizontal na parte superior. na sua maioria. Mas um detalhe é intransponível. Interessante é sua roupa. Sobre os carregadores em geral. Os escravos urbanos estão. 1997. um anel com pedra. a roupa branca também faz com que o modelo ganhe destaque com relação ao fundo. paletó de veludo. 159). tendo se tornado indispensáveis para a sociedade (ALENCASTRO. 1997. que passeiam com o cesto no braço (. o que pode ser um indicativo de que ele seja um prestador de pequenos serviços. Trata-se de um vendedor de água.9 n. por menor que seja” (ALENCASTRO. mais um “negro de ganho”. possivelmente ocasionado pelo enquadramento mais distanciado.1 p. fazem todo tipo de trabalho. segurando o que nos parece ser um galão de leite. De todas as fotografias. 25-47. tem com relação ao uso de indumentárias. Como todos os escravos.)”. como mensageiros.) que se dá o nome de negro de ganho. nas suas palavras os “(. Essa opção por um enquadramento mais distante deixou o modelo menor em relação à cena.. sinal indisfarçável de sua condição de cativo (ALENCASTRO.. 1995. jan-jun 2011 que ele ostenta é uma sacola.) desprezível quem se mostra no Brasil com um pacote na mão. p. Debret alerta para sua importância. outros são vendedores ambulantes de uma infinidade de produtos (KARASH. aumentando a dramaticidade da composição. Com relação à imagem. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr 37 . levando-a até seus clientes. em algumas ocasiões. p. são homens que buscam a água nos chafarizes da cidade.... vital para a vida da cidade. Aliás. Goiânia v... pois é considerado “(. 267). carregando minúsculas cargas. que se destaca por se posicionar defronte à sua roupa clara. sempre detalhista na apresentação dos objetos relacionados ao trabalho. calça escura e paletó aberto. o vendedor de papagaios se apresenta ostentando alguns símbolos de status. principalmente. suas vestes são formadas por um avental branco. Goiânia v. Mas a carga de informação de alguns objetos também está ligada à referência da sociedade civilizada. ajudando o retratado na sua postura. paletó e um guarda chuva que. buscando algum ponto do ateliê. que cobre uma roupa da mesma cor. jan-jun 2011 . mos38 VISUALIDADES. Inclusive. Sua postura chama a atenção. 25-47.9 n. ao servir de apoio. Na figura 8. que se completa por conta do seu olhar direto e seu ar sereno. mas sem abaixar o rosto. todas as variantes narradas dão uma forma especial para o primeiro plano. pés descalços. guarda-chuva e chapéu imprimem uma função simbólica. Nas figuras 8 e 9 vemos mais dois tipos de vendedores. É interessante a preocupação descritiva do fotógrafo. cumpre a função de uma bengala. por sua forma rígida de posar e seu olhar seguro. assim. dispondo-as em três pontos diferentes. ornando-o com aves. Ele se destaca diante do fundo. Figuras 6 e 7 Na figura 7.tranquilo. Porém. o detalhe mais interessante na elaboração de tal retrato está na forma pela qual o fotógrafo faz a ornamentação do ofício representado.1 p. A pose é de meio perfil. possibilitando uma perfeita visualização. Sendo um deles de forma frontal. chapéu. o objeto dá um equilíbrio à cena. Seu olhar se perde em algum ponto do ateliê. tal fato. Aliás.VISUALIDADES. sobre ela. Figuras 8 e 9 Sigamos. 25-47. cujo retratado apresenta um barbeiro. ele tem diante de si sua mesa portátil com maçãs. mesmo os mais miseráveis. numa decisão eminentemente ideológica considerou todos os escravos como negros ou pardos. O simples fato de os brancos. que. 1988. observando as figuras 10 e 11. um casaco que faz conjunto com sua calça. A figura 10. Na posição de meio perfil. diante do seu tabuleiro vemos aquele que pode ser um escravo de pele clara. Sobre a cabeça uma elegante boina. 29). uma camisa branca e. mesmo ocorrendo em menor proporção. Goiânia v. Na figura 9. p. Ele veste uma calça que está presa por um cinto de couro. já que suas Marcelo Eduardo Leite. ignorando essa minoria de brancos filhos de mães escravas (ALENCASTRO. comprova ser mesmo uma confirmação da condição escrava do retratado (GORENDER. Luis Felipe de Alencastro afirma que este fato foi ignorado pelo censo de 1872. que ganha destaque. p. negarem-se a fazer tais ofícios.9 n. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr 39 . jan-jun 2011 trando uma vestimenta na cor branca. tendo também sua barba devidamente aparada. ele aperta uma delas com a mão direita. 1997. 89).1 p. personagem extremamente importante na cena urbana e anteriormente reproduzido em aquarela por Jean Baptiste Debret. é provável que Christiano tenha conhecimento acerca dos trabalhos dos desenhistas e pintores do início do século. segundo nos parece. numa encenação do seu ritual de venda. acontecia. 9 n. o que indicava alguma distinção. Posando como a totalidade dos modelos. então. Em uma das mãos. resolver problemas odontológicos ou da área médica. e. 25-47. ela está com um vestido cujo tecido é quadriculado. Ser assim retratado. um pente e uma tesoura. comprova de certa forma a sua habilidade para a profissão. sua condição de escravo.fotografias dialogam de perto com eles. Depreende-se. manipulando seu instrumento de trabalho. as pessoas que poderiam. simbolizando inequivocamente. ele está descalço. 1988.1 p. sob este. usando uma espécie de turbante na cabeça. onde 40 VISUALIDADES. que a especialidade configura para ele uma posição mais elevada na hierarquia. 29). dentro do seu próprio grupo. cicatrizes simétricas que são sinais de costumes tribais (GORENDER. Figuras 10 e 11 Na figura 11 atentamos para uma vendedora de legumes. tais como carregadores. denunciando a sua condição de cativa. quando comparado a outras modalidades de serviço. camisa e paletó. ao mesmo tempo. a cena transpõe para a sala de poses um pedaço da praça ‘mercado de legumes’. Goiânia v. podendo significar até a possibilidade de fazer economia para comprar a própria alforria. p. No seu rosto também vemos as marcas étnicas. nas mãos vemos seus instrumentos de trabalho. aos olhos do estrangeiro. jan-jun 2011 . Possivelmente. aparece um de seus pés. em mais um exemplo de encenação. o menino ao seu lado simula estar adquirindo o produto. ela segura um dos seus produtos e. Ele veste calça. por exemplo. Outra questão relevante é o fato de eles serem. tornando-se objetos. categorizado como ‘coisa’. 25-47. tarefa que. depois a chegada ao ateliê. de desqualificar a brutalidade da escravidão. certamente. p. p. outro descreve o personagem. Segundo sua apreciação. dá-se a conhecer. a fixação do modelo.. Ao que nos parece. p.VISUALIDADES. Para ela. como gostaria de ser visto. os escravos perdem a sua condição humana. Quem encomenda uma fotografia mostra-se. esparrama-se pelo papel. e elaboração efetiva da fotografia. perdendo-se a relação de troca entre retratista e retratado. digna e singular. quando isso ocorre o retratado é aquele que compreende com muito mais propriedade o seu próprio universo. escolha de indumentária ou manutenção da vestimenta original. o retratado. Não se trata. desaparece. mesmo num encontro de desiguais. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr 41 .1988. pitoresco e genérico” (CUNHA. alternativas que estão francamente ligadas à relação do retratado com o retratante.. de reconhecer a mediação do fotógrafo na produção da imagem. jan-jun 2011 as vendedoras se reúnem todas as manhãs (DEBRET. 232).9 n. em 1988. se o homem livre tem a sua imagem formalizada por meio de uma carte de visite. É um ponto de vista que descarta toda a relação subjetiva que. ao participarem da cena fotográfica. surge totalmente distanciado do processo de produção das imagens. Entendemos que tal colocação ignora a mediação do fotógrafo que. Outra questão é que os retratados são persoMarcelo Eduardo Leite. A série de retratos de “negros de ganho” de Christiano Jr. gera discussões com enfoques variados. 1975. Ainda segundo a autora: Num retrato pode-se ser visto e pode-se dar a ver. Goiânia v. mas sim. 23). subsiste.. reduzido a mero objeto. não é das mais fáceis. a cena que vemos é elaborada num processo amplo.. É o sujeito do retrato. na visão apresentada. ao estar diante de um escravo.1 p. não se dá a ver. segundo observamos.) um quer descrever a pessoa. parcialmente analisadas por nós. Pois. 24). ela crê que.) (CUNHA.. Ainda. possivelmente iniciado na negociação. inevitavelmente. A primeira colocação sobre o material foi feita pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. Aqui o escravo é visto. nos parece que a grande diferença com relação à nossa leitura radica no fato de não existir a típica relação entre o retratista e retratado na sua elaboração. segundo a autora. aqui. (. É interessante pensarmos que tais fotografias são pedaços da cidade recompostos no ateliê e. como se vê a si mesmo no espelho. 1988. a si e a seus atributos e propriedades. o retrato do escravo se dá na forma de cartão postal: “(. presos nas vitrines da coleção de um entomologista (VASQUEZ. para Christiano Jr. Interessante divergirmos. novamente a bibliografia nacional engrossa a perspectiva de que tais imagens praticam a ‘coisificação’ dos retratados. pois o que fica patente é o não reconhecimento do indivíduo que faz a imagem. muito próxima daquela que determina o seu próprio olhar sobre os 42 VISUALIDADES. o fotógrafo é percebido como um mediador. Sustentam-se. Assim. com esses indivíduos Mais recentemente. compreensão e re-construção da imagem ‘do outro’.1 p. 25-47. 2002. invertemos a colocação. Um fato que parece ser ignorado refere-se à existência de uma relação de aproximação. é o único recurso (... Fotografá-los.. Essa realidade vista nas fotografias não pode ser captada como algo distante e remoto. dentre tantas relações cotidianas que são estabelecidas. Pedro Vasquez diz que o fotógrafo fez uso dos modelos para ganhar ‘dinheiro fácil’. Ocupam as ruas da cidade. Sugerimos que é injusto responsabilizar o autor das imagens pelo fato de mostrar ‘as coisas’ com certo realismo. interagindo com o cotidiano da cidade. observável na maioria das imagens deste tipo. é porque ele não passou pelo corriqueiro processo de transformação. que não refuta. equiparando a série a uma coleção de insetos. a si e a seus senhores. Ou seja. Num certo sentido. 23-24).9 n. p. p. a própria autora confirma isso e diz que: Os negros de ganho estão por todo o Rio de Janeiro. inclusive. Em publicação recente. Num certo momento. 24). inclusive pelo próprio Christiano Jr. eles estão efetivamente influindo na cena local. construído nesse trabalho. ao direcionarmos nosso olhar para outra possibilidade. Se o escravo é mostrado nas cartes de visite como ele é visto nas ruas. Parece-nos que essa vertente de interpretação é que coisifica tanto o retratado como o retratista. é uma forma de desvelar-se. frutos desse ambiente. Goiânia v. já que o ‘objeto’ em questão é algo permanentemente ligado ao dia-a-dia da cidade.nagens cotidianamente envolvidos no ir e vir da cidade. transformando-os em meros objetos.. jan-jun 2011 . para quem um negro de ganho.) (CUNHA. dos mais ricos àqueles caídos na miséria. bem como a negação de sua relação com o retratado. mas acrescenta novas suposições àquela proposta por Vasquez. 1988. fato que explica a geração dessas imagens. promovendo uma reflexão sobre isso. por velho que seja. pois segundo nosso viés de compreensão. é mais uma forma de se relacionar com eles. antes. Pouco depois de fazer tais registros. 25-47. servindo a teses científicas. O que se pretende é que o registro fotográfico do corpo humano resulte em dados fotométricos extremamente claros. a cabeça do modelo é retratada sempre em duas posições distintas: de frente ou de perfil. Sandra Koutsoukos aponta que “(.) os modelos posaram para Christiano sempre com dignidade. onde no ano de 1867 ele se instala à Rua Florida 159. tradicionalmente. Estamos nos referindo à confusão entre a confecção desses retratos e aqueles voltados aos estudos antropométricos. que permitam a obtenção de informações confiáveis e passíveis de comparação. no Uruguai. a bem da verdade. Contudo.. prestando-se a novas nuances de interpretação. os indivíduos são retratados sem vestimenta. se a função das imagens era a de servir como souvenir. seguindo rumo ao Sul. se posicione dentro do seu próprio grupo. fixou-se por pouco tempo em Santa Catarina. O fato é que as imagens feitas por Christiano não tem a função de controle. que a fotografia permite que o retratado. denotando explícitas finalidades comerciais. No mesmo sentido. na cidade de Desterro e em Mercedes..VISUALIDADES. Na maioria das vezes. Tais registros não aderem às formas clássicas de elaboração do retrato.)” (2010. Independente do fato de a fotografia ter aderido a esse padrão mercadológico. a eles parece que sempre foi dado um certo grau de controle da própria imagem (. Goiânia v. a projeção e circulação das referidas imagens assumiu várias outras funções. mas já existia. jan-jun 2011 retratados.. 128).9 n. deixa o Rio de Janeiro. também. Outra diferenciação necessária é a que deve ser feita e que. nos desenhos. documentos históricos. socializando a imagem das próprias contradições do país.. um retratado pode ter funcionado como mediador da contratação de outros modelos. p. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr 43 . por recomendação médica. segundo a autora. É verdade. A exploração da vertente do pitoresco não teve início com a modalidade fotográfica. pode promover interpretações equivocadas. litogravuras e aquarelas. a nosso ver.1 p. Na ocasião o jornal La Tribuna. Aceitando-se que o produto final objetiva vender o exotismo. em 20 de outubro de 1867. Christiano Jr. já que as referidas imagens são expostas nas vitrines dos estabelecimentos. mesmo sendo escravo. InteresMarcelo Eduardo Leite. anuncia a sua chegada à cidade. são releituras da vida nas ruas do Rio de Janeiro. seu objetivo era Buenos Aires. Inclusive. posicionados de pé e com os braços pendentes ao lado do corpo. em 1866. por outro ângulo de análise torna-se possível assimilar que os retratos colocam os escravos no cerne da modernidade. hoje elas são. Ainda. Neles. possuindo padrões próprios de produção. O Fotografia de La Infância é destruído por um incêndio. 53 Na capital da Argentina o fotógrafo inicia uma maciça produção de retratos. contando com doze retratos de tipos populares urbanos e com vistas de constru44 VISUALIDADES. em 1876. Ainda no ano de 1875. 25-47. Figura 12 Reprodução do Almamak Laemmert 1872. mesmo com a saída de Christiano do país. Goiânia v. Como prova de seu sucesso. temos o fato dele ter inaugurado outro ateliê. agora dirigido pelo filho.000 retratos. segundo anúncio publicado no jornal La Prensa. o que pode significar a manutenção da sociedade. quando sabemos que ele já não atua no Rio de Janeiro. Porém. Christiano torna-se fotógrafo oficial da Sociedade Rural Argentina e realiza sua primeira exposição pela entidade. No ano de 1872. foi reaberto logo depois. desta feita. Estima-se que foram produzidos por ele mais de 4. Aos poucos Christiano amadurece a ideia de confeccionar um álbum de vistas e.9 n. a casa é. que anteriormente havia sido seu ajudante. 23). Composto por 16 imagens da cidade de Buenos Aires. “Notabilidades” p. 2002. No ano de 1877 sai o segundo volume. possuidora de “máquinas instantáneas que permiten sacar retratos de criaturas inquietas y traviesas” (ABEL. da qual se desliga em 1878. voltado ao público infantil. o álbum possui textos explicativos em quatro idiomas. Jose Virgilio. de 04 de fevereiro de 1875. PRIANO. entre 1873 e 1875¹. como podemos ver na figura 12. o Almanak Laemmert anuncia o ateliê. p. Denominado Fotografia de La infância. lança o primeiro volume da coleção intitulada Album de Vistas y Costumbres de La Argentina.1 p. à Rua Victoria 296. em março de 1875. jan-jun 2011 .sante é o fato de o estabelecimento Christiano Júnior & Pacheco se manter em atividade. se atira numa fantástica peregrinação pelas mais variadas regiões do país. desenvolve seu projeto maior: os álbuns de vistas. AZEVEDO. Christiano Júnior vem a falecer. infelizmente. jan-jun 2011 ções modernas e históricas. aos 70 anos de idade. Uma vez instalado na localidade. San Juan. Luis Felipe (org. constituem-se na referência incontornável para a reflexão a respeito da história social do nosso país. Quando faleceu. nem sempre é atendido. entre os anos de 1879 e 1883. dá início ao trabalho no ateliê e. paralelamente. na qual informa que ele passou seus últimos tempos pintando fotografias. As dificuldades financeiras para tocar um projeto tão complexo obrigam-no a pedir ajuda nas províncias que visita. PRIANO. anuncia nos jornais locais que ali prestará seus serviços. que levam uma parafernália em equipamentos. Goiânia v. Monta seu estúdio associado a um fotógrafo local e. 2002. em alguns casos. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr 45 . 2002. as dificuldades financeiras atrapalham seus planos. O fotógrafo. Antes de chegar às cidades. Mendoza. 1997. Recordando a Christiano. No ano de 1878. A História da vida privada no Brasil – Volume II. Paulo Cesar de. seu estúdio é vendido para Witcomb & Mackern. no dia 19 de novembro de 1902. Cuyo y el Noroeste. Passa pelas cidades de Rosário.1 p. Alexander. Un País en Transición – Fotografías de Buenos Aires. Referências ABEL. 25-47.9 n. onde. As imagens deixadas no Brasil por Christiano Júnior testemunham a peculiaridade de seu modo de ver e. 32-36). Catamarca. Christiano Júnior 1867 – 1883. exatamente quando ele estava vivendo seu melhor momento. Seu trajeto e alguns detalhes dessas suas viagens podem ser constatados pelos jornais das cidades por onde passa (ABEL. A revista portenha Caras y Caretas publica uma nota.VISUALIDADES. San Luis. Sua andança é feita sobre várias mulas. EsMarcelo Eduardo Leite. Desta forma. São Paulo: Companhia das Letras. esse homem que a tantos emprestou seus olhos estava praticamente sem nenhuma visão. Sua obstinação e paixão pela fotografia não são suficientes para a conclusão do trabalho. Mauricio (org). Córdoba. agora. sem dúvida.). Tucumán. A opção em largar o ateliê é motivada pelo desejo de continuar a série de álbuns de Vistas e Costumes da República Argentina. Salta e Jujuy. LISSOVSKY. Paraguai. Luis. em Assunção. p. PRIAMO. ALENCASTRO. Buenos Aires: Ediciones Fundación Antorchas. Río Cuarto. acompanhado de seu filho. Com a pretensão de conhecer melhor o perfil de Christiano Júnior. Marcondes de (Org). São Paulo: Ateliê Editorial. Gisèle. LAGO.).9 n. 1988. Recebido em: 31/03/11 Aceito em: 31/05/11 46 VISUALIDADES. Mauricio (Org. São Paulo: Nobel. Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr.1 p. a nosso ver. LEMOS. FREUND. GRAHAM. Jean Baptiste.. Mary. 2005. confirmou o viés etnográfico do seu trabalho e sua busca em conhecer a cultura das sociedades na qual ele vive. Annateresa. 1975. VASQUEZ. Olhar Escravo. São Paulo: Edusp. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil – Vol 1. George. estivemos. Carlos. In AZEVEDO. Paulo Cesar de. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Os fotógrafos do Império. In MOURA. Sandra Sofia Machado. Pedro Corrêa do. Sandra Lauderdale. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. Lisboa: Dom Quixote.). 1991. Retratos Quase Inocentes. A ambientação ilusória. Fotografia usos e funções no século XIX. GORENDER. In: AZEVEDO. House and street. KOSSOY. LISSOVSKY. A Fotografia no Império. Goiânia v. São Paulo: Ed. 1988. Ermakoff Casa Editorial. LAGO. Tal aproximação. Campinas: Editora da Unicamp. A face escrava da Corte Imperial. Jacob. CUNHA. ERMAKOFF. Rio de Janeiro: Capivara. 1983. C. 25-47. Manuela Carneiro da. E.. São Paulo: Cia. em novembro de 2004. Ex Libris Ltda. Mauricio (Org. Negros no estúdio do fotógrafo. no Archivo General de La Nación. Bia Corrêa do. 2006. KOUTSOUKOS.cravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo: Livraria Martins Editora. 2004. O negro na fotografia brasileira do século XIX. 1986. São Paulo: Ed. Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. A vida dos escravos no Rio de Janeiro.. Ser Escravo. Boris. 18081850. DEBRET. Fotografia e Sociedade. New York: Cambridge University Press. Paulo Cesar de. Ex Libris Ltda. Rio de Janeiro: G. Ex Libris Ltda. jan-jun 2011 . 2000. 1988. LISSOVSKY. 1999. das Letras. Pedro Karp. The domestic world of servents and masters in nineteenth-centuryRio de Janeiro. na visita pudemos conhecer a produção dele no referido país. NOTAS 1. FABRIS. São Paulo: Ed. em Buenos Aires. KARASCH. 1988. 2002. Goiânia v.9 n. 25-47. Marcelo Eduardo Leite.com Fotógrafo com formação interdisciplinar. Atualmente é Professor adjunto I de Fotografia e Fotojornalismo na Universidade Federal do Ceará.VISUALIDADES. jan-jun 2011 MArcELO EDUArDO LEITE marceloeduardoleite@gmail. Campus Cariri.1 p. Typos de pretos: escravos na fotografia de christiano Jr 47 . bacharel em Ciências Sociais pela UNESP e doutor em Multimeios pela UNICAMP. . Palavras-chave: Progressistas de Colônia. Não se trata. 49-75 . August Sander VISUALIDADES. Goiânia v.Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção PAULO JOSÉ rOSSI Resumo O presente artigo propõe uma reflexão sobre a “qualidade intencional” do quadro Mural para um fotógrafo. mas sim da forma como seu autor o narrou segundo sua percepção do mundo inscrita na interpretação que ele faz do real circunstanciada por diversos fatos sociais.9 n. de autoria de Franz Wilhelm Seiwert. Arte Exata. de um estudo sobre o fato narrado na obra em questão. 2011 49 .1 p. jan-jun. entretanto. It isn´t.Mural for a photographer: a picture and it’s intention PAULO JOSÉ rOSSI Abstract This article proposes a reflection about the “intentional quality” of the picture Mural for a Photografer by Franz Wilhelm Seiwert. jan-jun 2011 . 49-75.9 n.1 p. the study about the fact related in the cited work. Keywords: Cologne Progressists. however. August Sander 50 VISUALIDADES. Goiânia v. but really about the form how it´s author related it according to his world´s perception inscribed in the interpretation he makes about the “real” circumstantiated by several social facts. Exact Art. Relação esta que viabilizou a ascensão de Sander ao status de artista de vanguarda. e abriu as portas para sua inserção no meio artístico vanguardista. 49-75. 1922. e na escolha de novos parâmetros técnicos e estéticos que embasaram a elaboração e estruturação de sua principal obra Homens do século XX (doravante HSXX). Mural para um fotógrafo.9 n. mantiveram relações bastante estreitas. jan-jun 2011 Mural para um fotógrafo. 1922 [figura 01]. Seiwet. 110 x 154. foi produzido para presentear o fotógrafo alemão August Sander (1876-1964) com o qual Seiwert e o grupo de artistas que freqüentava. Desta proximidade Sander extrai concepções teóricas de ordem estética e política que pesaram na ressignificação dos retratos que produziu ao longo de sua carreira profissional. W. de autoria de Franz Wilhelm Seiwert (1894-1933).1 p. os Progressistas de Colônia (Kölner Progressiven).VISUALIDADES. Figura 1 F. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 51 . óleo sobre madeira.5 cm Paulo José rossi. Goiânia v. às formas de arte tradicionalmente 52 VISUALIDADES. a saber. assim foi com a Nova Objetividade. que romperam com a estética romântica e com a estética impressionista. jan-jun 2011 . diversos grupos distintos e autônomos.. de outro. Seiwert A arte é uma forma de interlocução entre o artista e a sociedade. Tampouco se trata de um estudo sobre o fato narrado em Mural para um fotógrafo. Expressionismo e Construtivismo foram antes duas grandes tendências artísticas que reuniram. é por meio dela que o artista se posiciona frente à realidade. a visão sempre subjetiva que deve ser dada através de uma obra. 1988. para poder encontrar uma forma nova. Mas é no encontro de afinidades éticas e estéticas que artistas se aglutinam em grupos ou tendências. e assim foi com os Progressistas de Colônia. cada uma em seu interior.W.Mas não é sobre HSXX que nos deteremos.1 p. com a Nova Objetividade de um lado e.] toda forma deve ela mesma se destruir. que se opuseram ao realismo da arte objetiva.9 n. que condenou o individualismo do Expressionismo. inspirada na materialidade técnico-científica. racional e possível de ser mensurada. 2006) na qual estão implícitas as relações deste objeto com as circunstâncias em que ele foi produzido. O grupo dos Progressistas de Colônia deve ser entendido num contexto artístico bem específico. rompem com outras concepções artísticas do presente e do passado. o fim do Expressionismo e o retorno ao Realismo. o Construtivismo de sua parte preconizava o fim da arte clássica burguesa em prol de uma arte funcional. onde inúmeros artistas e intelectuais encontraram espaço e força para se posicionarem frente à realidade. F. p. e renovam ou substituem as velhas vanguardas. 49-75. Goiânia v. Foi assim com os expressionistas.257). Progressistas de Colônia: desmanchar o sólido e recriar o novo [. Longe de serem dois grandes movimentos consensuais. propõem novas necessidades estéticas.. a preponderância do eu sobre a materialidade do real” (RICHARD. o auge do Construtivismo na URSS e na Alemanha. Interessa-nos também a forma como seu autor o narrou segundo sua percepção do mundo inscrita na interpretação que ele faz do real circunstanciada por diversos fatos sociais. Enquanto o Expressionismo proclamava a “espontaneidade criadora. o que nos interessa é sua “qualidade intencional” (BAXANDAL. óleo e colagem. George Grosz e Otto Dix. jan-jun 2011 estabelecidas e. possibilitando uma leitura clara de seu propósito de “apresentar uma imagem atrozmente verdadeira da sociedade alemã do pós-guerra” (ARGAN. 200x108cm. em muitos casos. Freqüentemente empregavam figuras tipificadas. 142x166cm Figura 3 George Grosz. uns frente aos outros. Buscava-se a representação objetiva do mundo. desenvolveram temas sobre a marginalização. A temática da ala mais à esquerda caracterizava-se pela denúncia e pela ironia.VISUALIDADES. Figura 2: Otto Dix. a Nova Objetividade aspirava uma arte realista crítica pautada pela dura realidade social. Surgida no lusco-fusco do Expressionismo alemão. Goiânia v. 1920. 1926. 49-75. motivados por princípios estéticos e políticos. A Nova Objetividade foi um conjunto variado de tendências alinhado à esquerda política da República de Weimar.242). como vetePaulo José rossi. 1926 [figura 03]. de Otto Dix – ao figurativo estilizado – como Os pilares da sociedade. seus maiores expoentes. 2006). 1920 [figura 02]. Os pilares da sociedade.1 p.9 n. O vendedor de fósforos I. quase como uma oposição ao Der Blau Reiter. 2006. As formas de representação iam da caricatura – como O vendedor de fósforos I. a exploração social nas grandes cidades e os horrores da guerra. a objetividade antes negada pela arte com vocação mística do grupo Der blaue Reiter (O cavaleiro azul)1 é retomada pela Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade). Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 53 . p. Nesse contexto de conflitos entre grupos. pouco engajado com a problemática social acentuada pela desastrosa derrota da Alemanha na Primeira Guerra (ARGAN. óleo sobre tela. de George Grosz. imprimindo um estilo gráfico pautado pelo anonimato dos personagens representados. desde sua fundação em 1919. buscando romper com a exclusividade da arte capitalista. O grupo se constitui em meio a um ambiente artístico e intelectual efervescente na cidade de Colônia. prostitutas etc. Os assuntos tinham uma abordagem mordaz dos acontecimentos vividos e expunham claramente os antagonismos de classe. tal como proclamava a Nova Objetividade. trabalhadores operários. como também do artista: todo e qualquer indício que remetesse a uma expressividade subjetiva deveria ser eliminado. a difícil condição social dos trabalhadores. militares. classe dominante. Goiânia v. No plano estético. Gottfried Brockmann. e. Identificados com princípios anarquistas de uma sociedade independente de instituições estatais. a corrupção material e moral da poderosa classe dominante. concomitantemente ao surgimento de outras importantes universidades. ao qual se juntariam Gerd Arntz. pintor que durante um tempo esteve filiado ao KPD (Partido Comunista Alemão). a cidade contava com a Universidade Urbana de Colônia. 54 VISUALIDADES.. 49-75. Segundo Ringer. 1990). o realismo da arte dos artistas progressistas se desvencilhava da representação naturalista das formas dos objetos para dar vazão a uma representação figurativa de inspiração construtivista. fundada por Leopold Wiese em 1919. Anton Räderscheidt. dentre muitos outros. de um lado. e o fotógrafo August Sander. Peter Alma. A retomada do Realismo.1 p. bem como de ambientes representando. os dadaístas Max Ernst e Theodor Baargeld. Franz Wilhelm Seiwert e Heinrich Hoerle fundam o grupo dos Progressistas de Colônia. a chamada Escola de Colônia representou “uma das tradições mais importantes e produtivas da sociologia alemã moderna” (2000. e desenvolvendo novas formas a fim de facilitar a comunicação de suas ideias aos trabalhadores a quem elas foram dirigidas (EVERETT. e com um projeto político e econômico construído por iniciativa do proletariado e não por um partido. jan-jun 2011 . sacerdotes. especialmente nos trabalhos de George Grosz. suas artes acabaram por se tornar a extensão de suas atividades políticas. miseráveis. No início dos anos 20.9 n. como a Escola de Frankfurt.ranos de guerra. No plano intelectual. após um congresso de artistas progressistas realizado em 1922 na cidade de Dusseldorf. Próximos ao grupo estiveram Otto Coenen. foi contraposta pela arte dos Progressistas de Colônia tanto no plano estético como no político. de outro. boemia. Otto Freundlich. Franz Wilhelm Seiwert consolidou-se como uma espécie de líder natural e intelectual do grupo. Índia e Palestina (EVERETT. Suíça. México. “o clima artístico de Colônia dos anos 20 resultava claramente da influência dos Progressistas de Colônia (LANGE. como o dadaísta Raoul Hausmann. foi bastante plural na medida de sua orientação ideológica. que além de publicar as reproduções fotográficas dos quadros dos progressistas – como veremos mais adiante –. Lázsló Moholy-Nagy. 1999. 49-75. A repercussão nacional e internacional de a bis z foi responsável pela projeção do grupo e. o holandês Peter Alma. HEITING. No plano da arte. França. A partir de então. embora a funcionalidade social da arte fosse um pressuposto. resenhas de livros feitas pelo intelectual e militante anarquista Alexander Berkman. também publicou várias fotografias de Antlitz der zeit (Rostos de uma época). da Bauhaus.1 p. além de Sander e das obras e artigos publicados por seus membros em todas as edições. Turquia. URSS. 1990). Nela foram publicados extratos de artigos escritos por Bakunin. e artigos sobre a teoria do comunismo (EVERETT. estas eram expressas por seus membros como opiniões nos diversos artigos publicados na revista a bis z – único elemento que caracterizava certa organização formal do grupo. Bélgica. por sinal. a bis z conseguiu um alcance bastante significativo. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 55 . Em seu curto período de existência (1929-1933). ao contrário. jan-jun 2011 p. Áustria. No âmbito geográfico. nome da primeira publicação de HSXX em 1929. A meu ver. Holanda.216). e Augustin Tschinkel. e também do atuante “Grupo D” (dadaístas). Tal revista. Tendo iniciado sua vida de artista numa chave expressionista (ROTH. Polônia. ele se caracterizava como uma associação de artistas relativamente aberta. Sequer havia um manifesto que traçasse suas diretrizes. A literatura a respeito dos Progressistas de Colônia à qual tive acesso não apresenta nenhuma clara definição do grupo enquanto tal. que viria aderir ao grupo. de August Sander. EUA. Apesar de ter contado com a participação de Hoerle na fundação do grupo. ele procurou conciliar sua prática artística com sua consciência política. de Praga. Seiwert mudaria radicalmente a orientação de sua arte após entrar em contato com os escritos de Karl Marx e Rosa Luxemburgo. de certa forma.172). Goiânia v. sua distribuição contabilizava contatos na Alemanha. Seu engaPaulo José rossi. 1990). dentre outros. p. 2008).9 n.VISUALIDADES. em constante contato com o grupo Dada de Berlim. a revista contou com a participação de muitos artistas da vanguarda alemã e internacional. Nós queremos tornar a realidade da pintura e da escultura tão diretamente real que ninguém poderá confundi-la com outra realidade qualquer (apud ROTH.1 p. num artigo publicado em 1930 na revista a bis z. 2008). ambos do Grupo D.9 n. 1988). dentro da e pela classe trabalhadora livre da subordinação cultural burguesa (MATTICK JR.48. primeira versão dos Progressistas de Colônia: Porque nós somos apenas pintores e escultores. p. por outro. jan-jun 2011 . Seiwert dirá que reportar a realidade tal qual ela é. 1990.. tão diretos dentro das formas dadas da pintura e da escultura de modo que todos poderão nos entender. onde ele enuncia um dos fundamentos que norteariam a arte do grupo Stupid.. além de Heinrich Hoerle.] Nós sabemos que não há realidade que possa ser confundida com a realidade da pintura e da escultura. mas compatível com o espírito capitalista que individualiza a arte. p. 2008. para depois reformular a forma. Em 1919. O peso intelectual de Seiwert para o grupo dos Progressistas de Colônia fica patente no fragmento de uma carta dirigida ao escritor luxemburguês Pols Michels (1897-1956) em 1919. como Max Ernest e Johannes Theodor Baargeld.jamento o aproximou de artistas filiados à esquerda política. Seiwert e Hoerle rompem com os dadaístas logo após a seção de arte dadaísta cujo catálogo publicou algumas de suas obras (ROTH. Seiwert. e. é algo inconcebível. [. criar uma arte nova dentro de um modelo capitalista tornava-se tarefa utópica. e a transforma em produto. mas como a realidade artística propriamente dita. é encargo da fotografia. Goiânia v. separando-a da sociedade – como se a arte não resultasse da sociedade. 49-75. por um lado. mas apenas da vontade e da pulsão individual –.. como veremos mais adiante. No inicio dos anos 30. confirmando sua designação de possuidor” (apud EVERETT. “Começaremos a partir de nós mesmos” significou dizer que uma mudança radical na arte deveria acontecer primeiramente nos pintores e escultores. nas mãos de seu proprietário. tornando-a simples e clara. ou 56 VISUALIDADES. tradução nossa). nós começaremos a partir de nós mesmos. Tentaremos ser tão simples. dizia que o “trabalho individual de arte como confirmação de um tipo egocêntrico de pessoa.03). Porém. A arte não poderia ser percebida como a realidade em si. pois qualquer coisa verdadeiramente nova na arte teria primeiro que ser criada fora dela. 57 Paulo José rossi. Goiânia v.VISUALIDADES. mas para despertar sua consciência em relação à sua condição dentro de qualquer sistema social. e. Para Seiwert. uma nova forma artística poderia ser posta. Ao contrário.8-9). a partir de uma linguagem compreensível por todos. do artista soviético Boris Kustodiev –. a arte burguesa não se tornou ainda arte proletária. 1990. com o intuito não de apenas despertar a classe trabalhadora para a luta de classes. p. o universal e o racional. dentro desse contexto. 1920. então. desmanchando a forma consolidada da arte capitalista burguesa individual. 2001. pois o homem continua preso a uma cultura de obediência e de reprodução da ordem. essas obras não levam o proletariado a se libertar de sua condição de subordinado à ordem cultural e política estabelecida.9 n.. subjetiva e comercial.70). 49-75. As formas devem ser subservientes ao conteúdo: o conteúdo deve reformular a forma e torná-la conteúdo. com o intuito de escancarar a cultura à qual as estruturas sociais se conformam. a cultura comunista não difere da capitalista.. como ele próprio não perdeu a oportunidade de criticar em muitos de seus escritos. mas fruto da consciência coletiva (apud EVERETT. abordar claramente conteúdos que denunciem a corrupção material e moral da poderosa classe dominante. jan-jun 2011 mesmo comunista. O trabalho para que isto aconteça é criado a partir da consciência coletiva em que o self. ou mesmo mostrar a mobilização do proletariado em torno de uma causa partidária – como no quadro O bolchevique. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção . A seus olhos. nesse sentido. Seria preciso. não enxergar essa condição da arte recai no equívoco dos artistas comunistas que acreditavam estar de fato fazendo uma arte proletária. que cria um trabalho. fazendo declarações sobre a luta. não é suficiente para tornar a arte proletária. a solidariedade e a consciência de classe do proletariado. a luta de classes está sendo posta em nome de uma causa partidária e não do proletariado em si. p. a difícil condição social dos trabalhadores (temas centrais das obras de George Grosz).1 p.] e de inspiração mais coletiva” (LUGON. Também seria preciso superar as formas naturalistas caricaturais e estilizadas re-apropriadas pela Nova Objetividade para criar “uma arte mais anônima [. Só porque o seu conteúdo tem uma tendência a ser “proletário”. Não obstante. e trazer à tona o objetivo. para ele. reformular a forma. já não é burguês individualista e isolado. Os elementos visuais que evidenciam o personagem são seu tamanho e a mancha escura na parte superior esquerda da cabeça. de nossa concepção pictorial a representação de pessoas. é um bom exemplo da arte progressista segundo a definição proposta por Freundlich. o quadrado onde se encontram os dois modelos – um homem (esquerda) e uma mulher (direita) – representa o cenário da seção fotográfica. a perspectiva da Renascença e a ilusão plástica [.. O espaço da tela é organizado basicamente em retângulos e quadrados. sua iluminação é suave e de pouco contraste. 49-75.1 p. triângulos e círculos.. Seus elementos internos – personagens e objetos – são construídos basicamente por formas geométricas bastante simples: quadrados.. Por exemplo. estão o cenário e o fotógrafo. Do outro lado. O corpo da câmera e sua base de sustentação estruturam o lado direito do quadro onde ocorre o efeito da cena representada. p. que representa uma sombra. tradução nossa). 1988.Mural para um fotógrafo: o sentido do trabalho Para o artista progressista Otto Freundlich. localizados junto à margem esquerda da obra. Esse quadro trata da representação do trabalho de um fotógrafo dentro de seu estúdio durante uma seção de retratos.2. a possibilidade de uma independência absoluta. portanto. O detalhe da sombra evidencia o ponto de vista quase frontal do fotógrafo em relação aos modelos. e oferece. Goiânia v. bem 58 VISUALIDADES.]2 (FREUNDLICH apud MATTICK JR.9 n. quadro com que Franz Wilhelm Seiwert presenteou August Sander. a saber. jan-jun 2011 . A estrutura da obra é igualmente geometrizada. Nós eliminamos. A arte sistemática que nós queremos produzir oferece a cada um a possibilidade de escapar dos pensamentos e das imagens com conteúdos do passado. retângulos. e o amarelo e o laranja não vibram tanto quanto vibram as cores homólogas impressas na objetiva da câmera e na cabeça do fotógrafo (círculo grande e laranja à esquerda). os quais têm por função organizar a representação espacial do estúdio em si: cada retângulo e cada quadrado representa uma área do estúdio diferenciada por um jogo de luz e sombra que varia conforme o grau de saturação e brilho das cores que melhor se adéquam à representação de cada ambiente. ao mesmo tempo. o tamanho avantajado estabelece seu posicionamento no primeiro plano da cena. a concretização do ato fotográfico. de coisas. Mural para um fotógrafo. a arte dos Progressistas de Colônia se desvencilha das formas naturalistas do Realismo Socialista e da representação caricata de George Grosz e Otto Dix. A compreensão da imagem exige uma leitura igualmente sistemática. e por isso vemos a figura feminina apenas na lente e no fundo da câmera onde a imagem está se formando invertida. cinza e preto. as formas são claras e algumas tão precisas a ponto de terem sido feitas com auxílio de alguma ferramenta. A ilustração da máquina fotográfica mostra seu interior. que faz com que seus elementos sejam lidos com muita objetividade e clareza. entretanto. mas minuciosa – das partes e do todo. de ponta-cabeça e em preto e branco. Ele também ilustra o visor da câmera que está à frente do fotógrafo – seu ombro está sobreposto ao retângulo. que pode ser estendida para as obras dos outros membros dos Progressistas de Colônia. O que está posto em jogo nesse quadro é a intenção (BAXANDALL. ora uma análise do conjunto. a justaposição de planos funciona como um sistema que permite ora a análise minuciosa de cada parte da obra – ou do sistema –. No plano estético. como geralmente se faz nos desenhos técnicos. jan-jun 2011 como a relação de proporção e de distância espacial entre ele e os personagens ao fundo. ela está representada por um corte lateral. Goiânia v. dando espaço a um figurativismo estilizado onde a cor e a forma conformam objetos reconhecíveis. a qual se dá por meio da justaposição de planos fora de uma ordem lógica de visualização conforme a representação tradicional da perspectiva da pintura acadêmica. Paulo José rossi. Esse sistematismo revela a raiz construtivista da obra. possível de ser calculada matematicamente. Por exemplo. sem. 2006) realista da obra. cores e contrastes articulados na construção tridimensional do objeto. a simplicidade de sua estrutura formal e das figuras estampadas propicia uma leitura descritiva – não imediata3. onde está pintada a figura do personagem masculino sobre um fundo preto. Mural para um fotógrafo é um quadro de fácil compreensão em si.1 p. apelar à representação naturalista.9 n. como um compasso. representa a imagem negativa traduzida em valores de branco. 49-75. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 59 . Toda a concepção estrutural do quadro é técnica. mas da forma submetida a um conteúdo que atuasse no sentido de libertar o trabalhador da cultura de exploração que o aliena de sua verdadeira condição.VISUALIDADES. o retângulo horizontal na parte inferior do quadro. Não se tratava da forma pela forma. A composição da imagem se constitui num bonito jogo de formas. ou mesmo réguas – os triângulos que representam os ângulos de visão do fotógrafo e da câmera mesclam a precisão da régua e a do compasso. Assim. um gabarito. minhas leituras me levam a deduzir que não foi o interesse pela produção fotográfica de Sander que os aproximou de imediato – mesmo porque a produção fotográfica este último ainda era essencialmente comercial –. pela estrutura geométrica e pela geometria das figuras humanas. é preciso lembrar que Mural para um fotógrafo foi um presente de Seiwert para Sander.9 n. e da reprodutibilidade graças à imagem em negativo. No âmbito da estética. como também deve estar submetida ao conteúdo. a estrutura formal não apenas deve possibilitar a fácil identificação dos espaços e dos personagens representados. o que deve ser entendido dentro do conceito de arte exata que norteou os trabalhos dos Progressistas de Colônia. o interior da câmera e o personagem pintado no retângulo horizontal na parte inferior do quadro. está posto o sentido do trabalho e não a exploração do trabalho: Mural para um fotógrafo representa mais do que um ambiente de trabalho e uma profissão. mas sim a necessidade de uma prestação de serviços fotográficos por alguém tecnicamente competente: reproduzir fotograficamente os quadros dos Progressistas de Colônia. do ponto de vista do fotógrafo sobre o sujeito/ realidade – os ângulos de visão do fotógrafo e da câmera são mostrados em forma de um triângulo que converge em cima do personagem do centro –. capaz de captar uma imagem fiel e mecanicamente.No quadro Mural para um fotógrafo. 60 VISUALIDADES. E isso não é um acaso. são as partes mais iluminadas da cena. que o apresentou a Franz Wilhelm Seiwert (MARESCA.1 p. 49-75. O início de tal relação – entre 1920 e 1921 – foi intermediado por um cliente de Sander. Sem ter como comprovar. Por exemplo. em sua forma. Goiânia v. o plano político está subjacente à obra. a exatidão se caracteriza por sua capacidade descritiva possibilitada pela construção sistemática. Trata-se da representação do ato de observação. e a abordagem objetiva do real está posta claramente. No plano do conceito. a cabeça do fotógrafo. No plano político. o violoncelista Willi Lamping. e o sentido desse presente deve ser entendido na gênese da ligação de August Sander com os Progressistas de Colônia. está inscrito o que dá sentido ao trabalho do fotógrafo. simplificadas e construídas quase como pictogramas. a lente e o corpo da objetiva. 1996). Da reprodutibilidade Para que o que está sendo proposto faça sentido. da objetividade da fotografia. jan-jun 2011 . pelo emprego de diferentes técnicas de gravura. Se imagem e palavra oral estão situadas no mesmo patamar. as diversas formas de artes gráficas (de processos manuais como a xilogravura e a litogravura. há uma hipótese a ser considerada. o Die Proletarische Revolution. Nesse período. e 2) a reprodução das obras pelas técnicas de artes gráficas. popular. Para os artistas progressistas. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 61 . p. como o jornal Die Aktion.12) em relação à foPaulo José rossi. p. a reprodutibilidade já era uma realidade. esse crescimento acelerado deve ser entendido num ambiente social favorável à profusão de imagens possível apenas numa sociedade aberta à imagem como interlocutora da realidade. a técnica da xilogravura [primeiro meio técnico de reprodução de imagens] é arcaica. 1979. p. parece-me válido pensar na hipótese de que a tradição de comunicação e expressão por meio da xilogravura na arte alemã possa de fato ser a raiz da opção dos Progressitas de Colônia. Embora eu não tenha como aprofundar essa reflexão. editado pelo anarquista Franz Pfemfert.1 p. pois necessitaria encontrar pistas na história da arte alemã. artesanal. o Sozialistische Republik e a revista a bis z. é possível pensar numa outra hipótese: a de que a tradição ilustrativa da arte alemã da qual fala Argan está arraigada numa cultura social da imagem que ficaria ainda mais exacerbada no entre-guerras. a reprodução fotográfica das obras dos Progressistas de Colônia pode ser entendida no curso do “entusiasmo e fé coletiva” (BASTIDE.9 n. e parte significativa de sua produção artística eram impressões a partir da técnica da xilogravura e da litogravura. como também na trajetória de vida de alguns dos principais personagens do grupo. 1994. Entretanto. possibilitando a impressão de suas pinturas em jornais e revistas da esquerda política.238). Goiânia v. “a reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral” (BENJAMIN. Mais do que uma técnica no sentido moderno da palavra. à tipografia e à fotomecânica) e a difusão de imagens estão em plena e rápida ascensão. profundamente arraigada na tradição ilustrativa alemã. e de outros artistas contemporâneos a eles. é um modo habitual de expressar e comunicar por meio da imagem (2006.167). Segundo Giulio Carlo Argan. jan-jun 2011 O que está por trás dessa prestação de serviços é o caráter técnico reprodutível da fotografia que atenderia duas preocupações dos artistas de Colônia: 1) a documentação da obra para a posteridade4. 49-75.VISUALIDADES. A respeito disso. Nesse sentido. publicidade). e por isso assumiram a fotografia como meio de ampliar o alcance de suas obras. 2008. Hoerle e Antz entre outros. compreenderam a relevância dessa orientação. Durante o processo revo62 VISUALIDADES. No período de Weimar. ao acesso ao aparato técnico simplificado e aos serviços fotográficos.24-25).459. p. FRIZOT. p. Esse espírito de época foi percebido tanto pela vanguarda da fotografia e pela vanguarda artística. o cinema – era o meio técnico mais acessível e de maior inserção social. Para os comunistas.tografia no período de Weimar.29). jan-jun 2011 . em Moscou 1926. A “tendência espiritual da época” diz respeito ao fato de a fotografia responder a certa necessidade social. os Progressistas de Colônia. 2008. ilustrados. Goiânia v. as reproduções fotográficas de Sander dos trabalhos de Seiwert. alinhados a ideais anarquistas. 49-75. 2008). que em 1920 “declarou que a arte era uma ‘arma’ na luta de classes e encorajava os artistas do partido a abandonarem a pintura pela arte impressa” (ROTH. orientação de ordem estritamente político-partidária. a fotografia deveria ser valorizada por seu potencial propagandístico (ROTH. p. livros. seu uso deve ser tecnicamente fácil. Sobre o entusiasmo e a fé na fotografia. 1995. tradução nossa). Com a ajuda da fotografia. Franz Roh dizia que: Três fatores devem convergir logo que um dispositivo técnico permite ampliar neste ponto a história dos homens: o acesso a este dispositivo deve ser relativamente barato. O uso da imagem xilográfica e litográfica – apesar do avanço significativo da fotografia e pela reprodução mecânica das artes gráficas – não ficou para trás. graças ao seu desenvolvimento quantitativo (jornais diários.9 n. e a tendência espiritual da época deve estar orientada na direção dos mesmos prazeres [visuais] (apud HAUS.1 p. a fotografia – e também. porém. e ao fato de ser uma linguagem típica do mundo moderno contemporâneo. Mesmo estando em oposição aos comunistas alemães. substituíram as próprias pinturas. por sua capacidade de penetração social devido a sua popularização. revistas. transbordando a fronteira geográfica: A disseminação da pintura através de documentos fotográficos ultrapassou o campo das publicações. seguindo. a pintura também poderia alcançar uma audiência diversa e internacional (ROTH. mas de outra forma. Na Exhibition of Western Revolutionary Art. como pelo KPD (Partido Comunista Alemão). assassinado por reacionários durante a Revolução de 1918 (EVERETT. violentamente assassinado junto com Rosa Luxemburgo pelos Freikorps5. Imóvel de habitação e Usina. muitos artistas engajados na vida política produziram xilogravuras manifestando suas posições políticas face aos acontecimentos da época. Dentre os Progressistas de Colônia. de 1932 (LUGON.1 p.9 n. Franz Wilhelm Seiwert. 2001). na qual o povo aparece numa câmera mortuária chorando sobre o corpo estendido do líder revolucionário. Muitos desses painéis serviram ao Método vienense de estatística ilustrada nas escolas. tratava-se uma representação em forma de pictogramas da estrutura social alemã através de doze tipos de estabelecimentos da era capitalista. da série Doze casas de uma época. para criar um alfabeto visual em forma de pictogramas6 que ilustraria painéis estatísticos sobre os fenômenos econômicos e sociais mundiais (LUGON. sob a direção do economista Otto Neuraht.VISUALIDADES. 1990). 49-75. Figura 4 Gerd Arntz. de modo semelhante a Kollwitz. Outro artista progressista. como a xilogravura Memorial para Karl Liebknecht. O alcance de Arntz foi ainda maior: em 1930. Goiânia v. 2001). jan-jun 2011 lucionário de 1918. ele é contratado pelo Museu Social e Econômico de Viena. 1927. litografia Paulo José rossi. de Käthe Kollwitz. imprimiu em panfletos o retrato feito em xilogravura do socialista-anarquista Gustav Landauer. e foram publicados na revista dos Progressistas de Colônia a bis z. como podemos ver nos exemplos Imóvel de habitação e Usina [figura 04]. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 63 . criado por Neurath. Algumas dessas obras foram inclusive reproduzidas em cartazes. Gerd Arntz. desenvolveu uma série litográfica para o portfólio Doze casas de uma época (1927). por sua natureza técnica. era o meio capaz de reproduzir os objetos tal qual eles são: a precisão de detalhes. jan-jun 2011 . a difusão dessas obras estava fundamentada na atividade política. p. Entendia-se por objetividade a precisão do detalhe que a fotografia direta – captada por uma câmera fotográfica e sem manipulações técnicas posteriores que alterem a imagem – proporcionava. A isso se relacionava a abordagem realista do mundo. a capacidade consciente de representar a realidade. Hugo Sieker propôs que: O aparelho fotográfico que é desprovido de consciência tem um olhar mais natural que o olho que está preso à consciência. Para os Progressistas de Colônia. e o alcance de suas imagens atingia especialmente a militância da esquerda – elas eram publicadas em revistas e jornais ligados a grupos bem específicos. Ao contrário. Na mesma linha de pensamento.9 n. o papel social da arte não poderia ser outro senão o da participação ativa e transformadora da vida social. luminosidade e exatidão No bojo das reflexões que fomentavam a fotografia moderna alemã. possibilitada pelas características técnicas do meio e pela habilidade do fotógrafo. O historiador da arte Wolfgang Born8 afirmou que “o novo realismo que encontra sua satisfação na hiper-precisão do detalhe é a expressão de uma mentalidade atual racional” (apud LUGON. Ele é um 64 VISUALIDADES. Nessa concepção.57). Da objetividade: nitidez.1 p. O alcance mais abrangente da população se dava por meio das xilogravuras e litografias reproduzidas em cartazes e panfletos. restitui ao objeto fotografado um realismo absoluto7. está posta a ideia da racionalidade fotográfica9. em que à natureza do aparato técnico é atribuída a capacidade fria e objetiva de captação da imagem.Concretamente. A fotografia. numa reflexão sobre a fotografia científica. A busca pela hiper-precisão do detalhe resulta da ação consciente do fotógrafo. p. e ao fotógrafo. pois que ele não pode fazer outra coisa que ver. mas seguiam igualmente a motivação política. 1997. 49-75. a objetividade fotográfica estava na pauta do dia. 1997.57) típica de uma geração de engenheiros. a hiper-precisão seria o caminho para fazer emergir “o sentido escondido atrás das coisas” (LUGON. o que não implicava obrigatoriamente que a busca pela hiperprecisão fosse anestética e banal. Goiânia v. como nenhuma outra forma de arte – salvo o cinema – conseguia fazê-lo. a mecanicidade da fotografia garantia a objetividade e a precisão na reprodução detalhada das obras. a objetividade do aparato fotográfico fora percebida como estando a serviço do registro científico.. impressionado com a qualidade do retrato de um camponês ocasionalmente copiado em papel fotográfico brilhante. motivou seu colega a buscar a nitidez absoluta dos retratos naquele tipo de material (LUGON.VISUALIDADES.9 n. artistas e críticos de arte como as qualidades da fotografia que melhor representariam o espírito da época. no período do entre-guerras a objetividade e a hiper-precisão de detalhes passaram também a ser percebidas por boa parte – não se tratava de um consenso absoluto – da vanguarda dos fotógrafos. Ver com exatidão foi meta de muitos fotógrafos desse período na Alemanha e alhures. objetividade e precisão de detalhes correspondiam ao ideal de arte exata. no século XIX. e até então estava restrito ao uso comercial e ao trabalho de documentação. 49-75. Para os Progressistas de Colônia. O papel brilhante era produzido industrialmente. a ideia de nitidez absoluta da qual fala Seiwert é referente ao aspecto realístico próprio da fotografia que o papel brilhante acentua por meio de sua capacidade de reproduzir detalhes com maior precisão. significou ampliar novas possibilidades estéticas e o caminho para restituir o realismo ao objeto fotografado. graças ao maior poder de reflectância. em razão de uma suposta falta de beleza estética necessária aos trabalhos artísticos ou mesmo aos retratos comerciais. Reconhecer a objetividade do aparato fotográfico desprovido de consciência como característica intrínseca do meio. realça as diferenças tonais.. as quais eles “valorizavam repetidamente. e aporta mais luminosidade às áreas claras da imagem. [. Esteticamente.169).] inclusive encorajando-o a capturar a ‘plástica’ ou a qualidade tátil de suas pinturas” (ROTH. o brilho do papel favorece a reprodução de detalhes – como a textura –. p. forma de Paulo José rossi. desta maravilhosa capacidade que consiste em ver com uma grande exatidão (na velocidade da luz) (apud LUGON. Goiânia v.1 p. 2008. Se. ele dispõe. p. Muito longe de ser assim perfeito como o olho humano. Seiwert. 1997.30). Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 65 . jan-jun 2011 órgão da visão em si. A capacidade de reprodução de detalhes está relacionada a outros quesitos técnicos que extrapolam o tipo de papel fotográfico: tipo e tamanho de filme empregado. entretanto. 2001). Em 1922. Tecnicamente. Um dos primeiros indícios de interferência dos Progressistas de Colônia sobre a reorientação da fotografia de August Sander reside precisamente nesse ponto. Goiânia v. uma característica que varia em cada objetiva e que depende da sua engenharia e do material óptico com o qual são feitos os seus componentes internos (lentes). Nitidez absoluta e luminosidade são dois termos técnicos que Sander adotou como fundamento estético daquilo que ele denomina fotografia pura e clara. Quanto 66 VISUALIDADES. com destaque para seu maior representante. o uso do papel brilhante). ao sensor digital). de objetivas Zeiss. e qualidade óptica das objetivas das câmeras. Diafragma é o instrumento da objetiva que controla a quantidade de luz que será transmitida ao filme (ou. Eu amplio no tamanho de 18x24 cm as fotos feitas com placas de 12x16½ cm ou 13x18 cm (SANDER apud LANGE. Nitidez e luminosidade eram metas também de outros fotógrafos. nos dias de hoje. Entretanto. p.9 n. especialmente os da Nova Objetividade. Albert Renger-Patzsch. a luminosidade das cenas era um meio de enfatizar a objetividade e a exatidão dos objetos: o que se buscava era a clareza (compreensão) das fotografias. e de um papel brilhante e claro que rende um excelente resultado nos detalhes. 1999. A luminosidade é. 49-75.172). portanto. 2010). é parte da reorientação formal de sua fotografia. explica suas escolhas técnicas: Eu me utilizo. aspectos estes que estão na raiz do conceito de fotografia exata. jan-jun 2011 .1 p. Essa característica foi mobilizada pelo próprio Sander como forma de se alcançar a fotografia pura e clara. HEITING. Para ambos. Embora Renger-Patzsch e August Sander dessem igual valor a esses dois aspectos e à precisão de detalhes. de uma placa [negativo de vidro] hortocromática munida de um filtro de luz adequado. para obter uma fotografia clara e pura. Luminosidade é um conceito técnico que diz respeito à maior abertura do diafragma que uma objetiva possui. Sander se torna um dos precursores do uso desse tipo de papel no trabalho pessoal. a ideia de luminosidade estava relacionada ao ato de fotografar e à forma como se copiavam as imagens (no caso de Sander. O próprio August Sander. objetividade e exatidão diferiam entre eles no plano conceitual e na prática fotográfica. numa carta (1925) destinada ao professor de história da arte Erich Stenger (18781957). um dos pioneiros a pesquisar a história da fotografia. ela é parte constituinte da fotografia exata que Sander lograva alcançar (ROSSI. Ao adotar o papel brilhante.processamento fotoquímico. Essa mudança técnica é mais do que um simples detalhe. em grande medida. A exatidão de seus retratos pode ser lida do ponto de vista dos vestígios materiais. Na verdade. mesmo ano em que Seiwert viu o retrato do camponês copiado em papel brilhante. Nesse ponto. 1995: capa). O fotógrafo aparece no primeiro plano. A nitidez estava vinculada ao equipamento fotográfico: objetiva luminosa e de boa qualidade óptica. O que os diferia era a contextualização: enquanto os primeiros isolavam o objeto. de forma tal que as partes escuras devessem ser trabalhadas no sentido de evidenciar o objeto e de alcançar o máximo de detalhes que elas possam informar.9 n. A câmera era geralmente posicionada na mesma altura do retratado. na maioria das vezes. Sander. à nitidez absoluta e à clareza de informação de seus retratos – vale lembrar que o quadro data de 1922. G. por sua vez. os fotógrafos da Nova Objetividade tiveram maior êxito: enquanto a exploração da forma pela forma conseguiu em boa medida neutralizar qualquer outro sentido que não fosse o do objeto representado. O ângulo de visão está bem evidente e não há variação: fotógrafo e modelos estão posicionados numa relação de paridade muito parecida com a forma com que Sander constrói a maioria de seus retratos. 49-75. ainda. o personagem protagonista é mostrado não como um simples operador. ele é o agente principal. proporcionando maior precisão às imagens. Do ponto de vista Em Mural para um fotógrafo. Goiânia v.VISUALIDADES. nitidez e luminosidade são aspectos indissociáveis.1 p. assim disse Sander (apud SANDER. mas como alguém que porta um ponto de vista sobre a realidade. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 67 . os contextualizava buscando o máximo de informação sobre o sujeito. É provável que Seiwert tenha feito uma alusão às fotografias de seu amigo ou. associada à câmera de grande formato que empregava negativos grandes. jan-jun 2011 ao ato fotográfico. Sander. e os enquadramentos preservavam. a preocupação era evidenciar cada detalhe do objeto pelo controle absoluto da iluminação. proporcionaria fotos com maior fidelidade e riqueza de detalhes. não conseguiu eliminar a expressividade de seus personagens. “Em fotografia. não existem sombras que não se possam clarear”. mas não dos rastros deixados pelas Paulo José rossi. a frontalidade. uma vez que essa dupla dá magnitude às texturas e aos detalhes dos objetos. Sander não apelava para os ângulos inusitados. e a cena é construída a partir do seu ponto de vista. O peito estufado contrasta com o corpo estático. A estrutura formal da fotografia contribui para a descrição. Em minha opinião. a fala de Sander sobre não haver sombra que não se ilumine em fotografia cai muito bem.Figura 5 August Sander. rosto ou expressividade – se aproxima mais das fotografias da Nova Objetividade do que das de Sander. Goiânia v. É uma imagem que dá pouco espaço ao estereótipo. simulando a ação de se estar fazendo pão. ele determina o recorte da cena e destaca a altivez do personagem. A categoria sócioprofissional também é clara: o personagem está caracterizado com um guarda-pó branco. publicado na revista a bi z em 1930. O retratado parece estar se impondo ao fotógrafo. 1928 expressões faciais. 1928. enfatizando o queixo e o nariz empinados. O padeiro. e isso não se descreve com precisão. a chaminé ao fundo – aqui. pois não tem roupa. 68 VISUALIDADES. Em um texto sobre ADZ. Assim. A origem lateral da iluminação destaca a mão envolvida na ação de misturar os fornos e fogões da padaria.1 p. esse retrato está entre os que mais se aproximam do conceito de fotografia exata. e a luz ambiente delineia claramente o corpo gordo e aparentemente forte do padeiro. há um self em jogo. é bem representativo sobre o que está sendo discutido. jan-jun 2011 . há um mínimo de detalhe que permite identificar o que está na escuridão – e o chão sujo de farinha caracterizam bem o espaço de trabalho de uma padaria. o fogão. 2008). HSXX: uma encomenda virtual Os Progressistas de Colônia entendiam que a objetividade da fotografia não poderia se limitar à mera reprodução de suas obras. É desse modo que a fotografia de Sander se distancia da arte exata. com instrumentos de trabalho típicos de um padeiro. estampando uma aparente equivalência na relação fotógrafo e fotografado. O ambiente está posto claramente: o forno. 49-75. O ponto de vista frontal do fotógrafo estrutura formalmente o quadro fotográfico.9 n. A frontalidade dá mais força ao rosto erguido e voltado para a luz. e anônima na aparência. a figura do fotógrafo no quadro de Seiwert – desprovida de qualquer marca que o identifique. Seiwert propunha que o caráter realista do projeto documental de August Sander tinha libertado o pintor para perseguir seu objetivo em pintar mais que sua representação mimética (ROTH. e se enquadra bem no que Sander considera um típico padeiro. e posa como se estivesse misturando algo num tacho de metal. de Sander. O retrato O padeiro [figura 05]. 21. como faziam George Grosz e Otto Dix. no qual explicava a origem de HSXX.172. mas pode também trazer a verdade mais cruel. Goiânia v. 1999.9 n. quer ela nos seja favorável ou não. p. solto na rua e que por esta razão não valia a pena até aqui recolher. Os dias passados de todas as épocas nos deixaram escritos e livros ilustrados. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 69 . HEITING. Essa expectativa..1 p. em que pesa o papel de libertadora da arte progressista e engajada. e isto acontecendo. mas a fotografia nos deu possibilidades e tarefas outras que a pintura. revela uma visão profética do papel social da arte e da fotografia. mas nós devemos antes de tudo transmiti-la a nossos contemporâneos e à posteridade. p. Em um de seus escritos. enquanto a fotografia documental. Paulo José rossi. numa perspectiva utópica (apud LANGE. eu quero que me perdoem. pela fotografia e com a fidelidade absoluta à natureza. 1995. Sua pintura poderia abrir mão da abordagem da realidade momentânea. por assim dizer. grifos nossos). Ver a verdade. a partir da época na qual vivemos. ela pode igualmente enganar de maneira extraordinária. de sua parte. acredita no caráter profético da fotografia. um quadro de nosso tempo. que se nutre do fato de a fotografia documental atuar sobre a realidade atual. ele propôs que a fotografia deveria trazer consigo tarefas distintas das da pintura: Nada me pareceu mais apropriado que dar. em especial a de Sander. 49-75. G. A fala de Seiwert revela uma encomenda virtual dos Progressistas de Colônia à fotografia – em especial a de Sander –. tive o cuidado de ver as coisas tais como elas são e não como elas deveriam ou poderiam ser. com pleno conhecimento de causa. em favor de uma abordagem utópica do mundo de ideais anarquistas de sociedade. mas eu não posso fazer de outra forma (apud SANDER. grifos nossos). Ela pode trazer às coisas a beleza mais grandiosa. jan-jun 2011 A missão que Sander imputou à fotografia e a ele próprio dá à fotografia um sentido que esteve. Sander. A fotografia desencarrega a pintura da obrigação de produzir imagens da realidade da época que as gerações futuras reterão como documentos de nosso tempo. se incumbiria de reportar a realidade tal qual ela é.VISUALIDADES. Se eu. ela reenvia a pintura à outra tarefa das artes da representação que é de mostrar o mundo. tal como deveria ser nosso engajamento. HEITING. de Seiwert. e o potencial expressivo da fotografia [. Peter Alma e o pró70 VISUALIDADES. e o caráter realístico de HSXX foi tomado como um retrato fiel daquele momento. 49-75. p. A tipologia visual que norteia HSXX e o caráter realista que lhe cabe foi eficiente.. O modo como August Sander competentemente organizou seu trabalho se revela na força com que ele conseguiu impor um modo de leitura. com a criação dos isotipos que foram assimilados por vários de seus correligionários.. até porque o enfoque sobre a realidade social foi sempre relacionado a um compromisso militante – não necessariamente de engajamento político – com a verdade. e também como um documento para a posteridade. comprarem seu discurso. Na fala de Sander. Kurt Wolff. fica explícito seu entendimento a esse respeito. Nas obras dos Progressistas. e de épocas posteriores (Susan Sontag). a não ser quando a fotografia é posta como substituto da realidade. foi o que mais se aproximou desse objetivo. 1999. Burgueses e desempregados. jan-jun 2011 . tradução e grifos nossos). é uma tentativa clara de representar tipos sociais contrastantes num bom discurso marxista. da observação e do pensamento. Suas proposições de que seu trabalho é um retrato real da realidade são justificadas no arrojado critério classificatório elaborado em prol do objetivo de apresentar um retrato da estrutura social alemã. uma vez que a fotografia seria uma língua universal capaz de dialogar com toda a humanidade em qualquer época: Pode-se através do exercício da visão.Tarefa e verdade: duas atribuições das quais a fotografia documental sempre teve dificuldade de escapar. Essa citação conforma as aspirações de Sander com as dos Progressistas de Colônia de imprimir uma linguagem universal em suas obras. E isso não é sem justificativa: a Alemanha estava vivendo uma era extrema de grandes conturbações. com a ajuda de uma câmera fotográfica e com a junção de uma data.169. 1922. Alfred Döblin). tal universalização se concretiza na representação de figuras limpas e fáceis de serem identificadas: por exemplo. porém. Gerd Arntz. “ver as coisas tais como elas são e não como elas deveriam ou poderiam ser” deixa subentendido uma suposta verdade fotográfica. ao ponto de artistas e intelectuais de sua época (Seiwert. Mas isso não é de fato um problema.1 p. Walter Benjamin. capturar a história universal. dentre os quais. Goiânia v.] como língua universal permite exercer uma influência sobre a humanidade inteira (SANDER apud LANGE.9 n. por outro lado. a máquina e o sistema produtivo burguês absorvido pelo Estado comunista alienavam o trabalhador em nome de um Estado autoritário. ao contrário do que acontece no quadro de Seiwert. aparecem cenas representando várias formas de trabalho no campo e na cidade dentro do sistema capitalista. facilitando o acesso do espectador. ponto de vista e objetividade são. estava apenas incorporando a atual forma de exploração capitalista do trabalho e do trabalhador num novo regime. tal qual se configurava na URSS e tal qual postulava o KPD. enquanto que os artistas progressistas estavam voltados para esclarecer as condições culturais nas quais a luta de classes iria ser travada. Goiânia v. atribuir à fotografia documental a capacidade de exercer uma influência sobre a humanidade nada mais é do que outra visão profética do papel da fotografia – essa missão universalista Reprodutibilidade. Seiwert dizia que a Nova Objetividade estava preocupada em denunciar as discrepâncias da sociedade capitalista em nome da luta de classes. em que está subjacente o princípio dos Progressistas de Colônia de mostrar não os fatos da realidade cotidiana. um observador atento poderá perfeitamente compreender o visível da imagem e do conjunto do trabalho. três elementos-chave para compreender a intenção manifesta no quadro Mural para um fotógrafo. Mesmo desconhecendo o contexto no qual a produção fotográfica foi realizada.9 n. As obras de Arntz foram provavelmente as que mais pesaram na construção tipológica de Sander. por exemplo. No entanto.VISUALIDADES. Que a linguagem direta da fotografia documental possa universalmente ser compreendida. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 71 . o Estado comunista. seus desenhos de Doze casas de uma época mostram tipos sociais genéricos sem rostos e limpos de expressão. assim. ao invés promover de fato uma revolução cultural que libertasse o trabalhador da cultura de exploração do trabalho na qual ele estava imerso e alienado de sua verdadeira condição.1 p. No que diz respeito ao trabalho. e cenas onde a cultura de exploração do trabalho é assimilada pela classe trabalhadora em seu Paulo José rossi. porque estabelece uma conexão direta com os objetos da realidade. para Seiwert. jan-jun 2011 prio Seiwert. 49-75. mas terá dificuldade para decifrar o que está subjacente. Isso fica claro no vitral O mundo do trabalho [figura 06]. é algo que faz sentido. Assim como a máquina e todo o sistema produtivo capitalista alienava o trabalhador em prol do lucro. mas os fundamentos culturais que estruturam a organização social dentro de uma realidade específica. de 1932 – destruído em 1935 –. Nesse vitral. painel onde Seiwert reúne cenas de vários quadros seus. O terceiro quadro. mostra uma série de pessoas enfileiradas no cotidiano fora da fábrica. o fotógrafo dominando o olhar objetivo da objetiva. aquarela preparatória para o vitral do Kunstgewerbemuseum Köln (Museu de Artes Aplicadas de Colônia). e a vida cotidiana está condicionada ao cotidiano da fábrica. Três quadros desse painel ilustram bem o que está sendo dito aqui. Um deles mostra operários posicionados em seqüência na linha de produção de uma fábrica. 1932.cotidiano. O mundo do trabalho. 49-75. 1931. 1931. tendo ao fundo a chaminé de uma fábrica: o lugar da residência está condicionado pelo local de trabalho. representando o homem como extensão da máquina. Assim. e não sua exploração. inspirado na obra original Mãe proletária. Outro. como acontece no interior da fábrica onde as frias roldanas – objetivas. Goiânia v. jan-jun 2011 . apresenta uma família operária em que o marido.1 p. originalmente intitulado Massas. as cabeças dos trabalhadores aparecem ligadas ao sistema de roldanas. representando a alienação do trabalhador na vida diária. e não o contrário.9 n. Mural para um fotógrafo procura mostrar o sentido do trabalho. a esposa e a criança no colo da mãe são representados num ambiente que lembra o quintal de uma casa. de 40x60 cm 72 VISUALIDADES. no sentido de serem desprovidas de consciência – se mesclam com as cabeças mecanizadas e submetidas à fria objetividade do sistema produtivo capitalista. Figura 6 Franz Wilhelm Seiwert. 10ª reimpressão. cabe o papel de mostrar realisticamente a realidade tal qual ela é. 2ª ed. CONRATH-SCHOLL. sendo este o caminho para revolucionar de fato as relações sociais. São Paulo: Nacional. 1998. Briony. a fim de despertar a consciência do trabalhador para sua verdadeira condição. Disponível em: <http://martyn. Obras escolhidas.com/ artasaweapon>. A arte no entreguerras. 3ª ed. Paul. Arte e sociedade. Analyse de l’ oeuvre. LANGE. Susanne. CONRATH-SCHOLL. Introduction. Susanne. Arte Moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. vol. Manfred (ed. In: LANGE. Köln. FER. BENJAMIN. Pierre.. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. 2002. HEITING.VISUALIDADES. 2006. Gabriele (orgs. Tokyo: Taschen. August Sander: Hommes du XXe siècle.). Batchelor. Walter./dez.1. 2009. À fotografia. London. 49-75. Gabriele. São Paulo: Cia. Roger.. WOOD. 1979. arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.). racionalismo. Goiânia v. CONRATH-SCHOLL. August Sander: Hommes du XXe siècle – un concept en évolution. Art As A Weapon: Frans Seiwert & the Cologne Progressives. 1990. Paris : La Martinière. 2006. In: ______.). das Letras. práticas e debates. Realismo. Gabriele (orgs. BOURDIEU. ________. libertando o homem de qualquer condição de submissão. Susanne. São Paulo: Companhia das Letras. Referências Bibliográficas ARGAN. EVERETT. 1994 (1ª ed. Giulio Carlo. BASTIDE. Analyse de l’ oeuvre. New York. São Paulo: Companhia. BAXANDALL. out. das Letras. Madrid. Série Arte Moderna.googlepages. August Sander. Michael. Acesso em: 4 mar. In LANGE. Martyn. São Paulo: Brasiliense. Paris: La Martinière. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 1999. portanto. 1985). Paulo José rossi. 12. 1876-1964. São Paulo: Cosac & Naify. jan-jun 2011 Eis. n. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 73 . Magia e técnica. 7ª ed. The Raven.9 n.1 p.everett. ________. surrealismo. 2005. o papel utópico da arte dos Progressistas de Colônia: representar a cultura que estrutura a sociedade capitalista. Paris. 2002. DAVID. August Sander: Hommes du XXe siècle. trata-se de dois movimentos distintos estreitamente relacionados.HTM> Acessado em: 10 out. 2001.1 p. August Sander: Em photographie. Paris: Centre National de La Photographie. para Paul Wood (DAVID.9 n. Modernisme et communisme antibolchévique: les Progressistes de Cologne. 49-75. Paul. 2003. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. MICHALSKI. Pelo fato de não ser este o foco de minha preocupação. Max. Le Champ de l’ Image. Disponível em <http://abirato. São Paulo. Paris: 1988. (Edição trilíngue: francês. inglês e alemão. Col. Alemanha: Taschen. Não há uma unanimidade sobre a posição da Nova Objetividade em relação ao Expressionismo.fr/3oiseau/04/ OISEAU4. 7 vol. São Paulo: Companhia das Letras / Círculo do livro. 2008.) NOTAS 1. Alemanha: Buchhandlung. Colonia. França: Jacqueline Chambon. Sergiusz. Berlin: Schimer/Mosel. como indicava a primeira exposição organizada por Gustav Hartlaub. SANDER. 1995. La photographie: un miroir des sciences sociales. Paulo José. Nîmes. August. August Sander e Homens do século XX: a realidade construída.) ________. intitulada Neue Sachlichkeit: pintores alemães desde o Expressionismo. 1997. MATTICK JR. Col. ROSSI. enquanto que. uma vez que minha intenção é situar a arte engajada dos Progressistas de Colônia em relação à arte igualmente engajada de dois dos principais membros da Nova Objetividade: George Grosz e Otto Dix. Paris: Éditions Macula. Goiânia v. 2010. n. 74 VISUALIDADES. Lynette. 1996. il n’ existe pás d’ ombres que l’ on NE puísse éclairer!”. WOOD. Para Giulio Carlo Argan (2006). jan-jun 2011 . Lionel. 170 f. Painting as a weapon: Progressive Cologne 1920-33: Seiwert – Hoerle – Arntz. a Neue Sachlichkeit foi um movimento expressionista do pós-guerra. Oiseau Tempête. (5ª edição. Olivier. Paris: L’ Harmattan. RICHARD. New Objectivity: Painting in Germany in the 1920s. Antlitz der Zeit. Paris: La Martinière. 2002.free. Colônia. Col. MARESCA. Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. A República de Weimar (1919-1933). 4.). assumi a posição de Argan como ponto de partida. 1998). Rio de Janeiro: LTC. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia. 1995. 2003. Gerd (org.. São Paulo: Edusp. Hommes du XXe siècle. 1920-1945. 1988. La photographie en Allemagne: anthologie de textes (1919-1939). 2003. Rayon Photo. WEBER. 2002. Le style docummentaire: d’August Sander à Walker Evans.LUGON. SANDER. Coleção vida cotidiana. Logiques sociales. ROTH. ________. Sylvain. FER. A realização de uma obra geralmente não é instantânea. Muitas das pinturas dos diversos Progressistas de Colônia se perderam ou foram destruídas pelo nazismo. Podemos igualmente transpor essa proposição para o observador. p.com. p.9 n. 7. p. sendo que parte significativa das reproduções foi feita por August Sander (ROTH. Wolfgang Born tratou da fotografia e da percepção do olho contemporâneo numa geração de engenheiros marcada pela racionalidade da ciência. p. No artigo “Uma concepção fotográfica do mundo”. a obra. pela objetividade. 1929. Fragmento de um artigo de Otto Freundlich publicado em 1928 na revista a bis z. convocado pelo Estado republicano para combater os rebelados contra o governo social-democrata.1 p. 6. 9.VISUALIDADES. mas pode demorar dias. “pois há óbvia incompatibilidade formal entre o ritmo com que percorremos o quadro com o olhar e o ritmo com que organizamos palavras e conceitos” (2006. 8. A documentação fotográfica dessas obras é a única referência visual que ainda se tem delas. Mural para um fotógrafo: um quadro e sua intenção 75 . Recebido em: 04/04/2011 Aceito em: 18/05/2011 PAULO JOSÉ rOSSI pjrossi@uol. A compreensão da intenção de uma obra nem sempre acontece imediatamente. “ela resulta de uma relação intelectual e perceptual contínua entre [o autor] e o objeto da representação”. 139). 1997. é preciso uma observação demorada numa relação “intelectual e perceptual” entre o observador e o objeto de apreciação. Freikorps: corpo de voluntários de extrema direita antibolchevique. publicado no periódico Halle.34). 3. ou mesmo anos para se concretizar. Como desdobramento desse trabalho. Tais pictogramas são explorados ou tomados como referência até os dias de hoje. Goiânia v. Paulo José rossi. 49-75. jan-jun 2011 2. 4. Baxandall diz que a descrição de um quadro não tem como reproduzir o ato de observá-lo diretamente. Muitas vezes. Podemos pensar a racionalidade fotográfica de maneira semelhante à que Max Weber (1995) pensou a racionalidade da música ocidental. configurando quase que um alfabeto visual universal. É possível explicá-la a partir do estudo de seu desenvolvimento material técnicocientífico dentro de um quadro de necessidades sociais que variaram conforme o tempo histórico. 2008. O termo realismo absoluto foi empregado por Hugo Sieker no artigo “Realismo absoluto: a propósito das fotografias de Albert Renger-Patzsch”. Sobre isso. 5. 29). Gerd Arntz criou uma extensa série de isotipos. Baxandall alerta para a “questão da instantaneidade fictícia de muitos quadros” (2006.85).br Formado em Sociologia e Política pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. É mestre em Sociologia pela da Universidade de São Paulo cuja dissertação é voltada para o estudo da fotografia: August Sander e Homens do século XX: a realidade construída. publicado no periódico Der Kreis em 1928 (apud LUGON. meses. . fazendo uso das interfaces e redes como ferramentas para o desenvolvimento de seus trabalhos.1 p.9 n. uma das questões que se faz premente no cenário artístico é se a arte e as tecnologias contemporâneas podem cohabitar um mesmo espaço reflexivo dentro dos processos criativos dos artistas. Goiânia v. desenvolvendo no homem sensibilidades corporais e relações sociais totalmente diferente das apresentadas nos séculos passados. jan-jun 2011 77 . Concluímos que as novas tecnologias tornam-se onipresentes ao ponto de não podermos discernir claramente onde começam e onde terminam. comunicação VISUALIDADES. Analisando a utilização das mídias móveis através do trabalho da artista Giselle Beiguelman. Desta maneira.Tecnologia e arte digital: um estudo sobre imagens virtuais e dispositivos móveis (mídias móveis) HIVO MAUrIcIO NAVArrO FABrícIO rOGÉrIO ZANETTI GOMES MArcELO SILVIO LOPES Resumo A sociedade se apresenta em meio a uma grande revolução informacional. uma humanização através das manifestações artísticas em seus desdobramentos sensíveis nas mãos de artistas como Beiguelman. 77-91. por isso é natural que comecemos a conviver com a humanização das tecnologias. Palavras-chave: Arte. tecnologia. a era digital em que vivemos faz com que muitos artistas iniciem um intenso diálogo com os meios virtuais. 1 p. a humanization through artistic expressions in their unfolding in the hands of sensitive artists as Beiguelman. 77-91. We conclude that new technologies become ubiquitous to the point we can not discern clearly where they begin and where they end. one issue that is permanent in the art scene is the contemporary art and technology can co-inhabit the same space for reflection within the creative processes of artists. Analyzing the use of mobile media through the work of artist Giselle Beiguelman. Goiânia v. developing the human body and social sensitivities totally different from those presented in past centuries.Technology and digital art: a study on mobile devices and virtual images (mobile media) HIVO MAUrIcIO NAVArrO FABrícIO rOGÉrIO ZANETTI GOMES MArcELO SILVIO LOPES Abstract The company presents itself in the midst of a major information revolution. jan-jun 2011 . technology. communication 78 VISUALIDADES. the digital age we live in makes many artists start a dialogue with the virtual media. Thus. making use of interfaces and networks as tools for developing their work. so it is natural that we begin to live with the humanization of technology. Keywords: Art.9 n. necessitando. desenvolvendo no homem sensibilidades corporais e relações sociais totalmente diferente das apresentadas nos séculos passados.9 n. Outra questão a responder é que tipo de resultado se apresenta para o público de arte. Com o surgimento da era digital isto se torna mais evidente. co-habitarão um mesmo espaço reflexivo dentro dos processos criativos dos artistas.VISUALIDADES.1 p. tais como: celular. tendo como objetivo estimular os Hivo Navarro. que espécies de sensibilidades resultam nos trabalhos dos artistas que fazem uso das novas tecnologias como suportes e ferramentas em seus processos criativos. pois as linguagens estão sendo trabalhadas através de um hibridismo. Goiânia v. Tecnologia e arte digital: um estudo (. A grande tendência artística contemporânea é a utilização das mídias móveis. Uma das questões que se faz premente é se a arte e as tecnologias contemporâneas. palm. desta maneira. A era digital em que vivemos faz com que muitos artistas iniciem um interessante diálogo com os meios virtuais. atualização e visualização das obras de arte. das interfaces e redes como item principal para o desenvolvimento de seus trabalhos dentro dessa grande esfera virtual não totalizada em que vivemos (LÉVY. jan-jun 2011 Introdução Diante de todas as informações. Assim. ferramentas e suportes que a tecnologias nos proporcionam hoje. consideramos esses dispositivos móveis como sendo uma nova forma de produção. 1999). e os computadores portáteis. conceitos como arte móvel (mobile art) vão aparecendo e a cada dia se aprimorando. Com o surgimento da tecnologia chamada wireless. O universo da arte sofre mudanças constantes. sempre fazendo uso das técnicas e tecnologias disponíveis. a sociedade se apresenta em meio a uma grande revolução informacional. levando-se em conta o alto grau de virtualização que as mesmas podem atingir.) 79 . 77-91.. o GPS. rogério Zanetti e Marcelo Sílvio.. 17). Podemos observar também que até a metade do século XIX apresentavam-se dois tipos de cultura nas sociedades ocidentais: a cultura popular. cognitivas. 2008). onde o impacto das conseqüências desta mudança permite que a informação possa ser referida como revolução digital. culta. Se reunirmos cultura e ciência que foram cindidas pela sociedade industrial. assumindo uma relação direta com a vida. isto é. a cultura digital se apresentará como digitalização 80 VISUALIDADES. (DOMINGUES. sendo assim essencial (VILLARES.9 n. 77-91. educação. No entanto. Goiânia v. entre outros. Tudo está voltado para as novas tecnologias. sendo empregadas na indústria. cinema – seguida da onipresença dos meios de eletrônicos de difusão – rádio e televisão – produziu um impacto até hoje atordoante naquela tradicional divisão da cultura em erudita. de um lado. da inteligência artificial. Os artistas oferecem situações sensíveis com a tecnologia.52). das elites dominantes. pois percebem que as relações do homem com o mundo não são mais as mesmas depois que a revolução da informática e das comunicações nos coloca diante do numérico. foto. 2003. jan-jun 2011 . ciência. 1997. fazendo com que os artistas repensem a condição humana. produzida pela grande massa dominada e a cultura erudita. educação. (SANTAELLA. exatas. biológicas.1 p. e cultura popular do outro. e da robótica e dos outros inventos que vêm irrompendo no cenário das últimas décadas do século XX. tendo por conseqüência um ambiente de tecnologias semânticas. No inicio do século era perceptível a entrada das novas tecnologias dentro dos lares.artistas e usuários amantes de tecnologias a terem novas perspectivas na construção de modelos híbridos e suas ampliações. fazendo parte integral de algo que fosse necessário para o processo. O advento da cultura de massas a partir da explosão dos meios de reprodução técnico-industrial . locais de trabalho.jornal. que não se comportavam como ferramentas e sim como forma do ambiente. Arte e Tecnologia: Transformação Cultural A revolução tecnológica apodera-se de todas as atividades da sociedade. p. p. da realidade virtual. todas as áreas do saber: humanas. se não tivéssemos as grandes tecnologias ao nosso alcance nunca chegaríamos a essa transformação cultural. mas seus processos. um martelo. 1). a “lógica” intrínseca do material e os procediHivo Navarro. rogério Zanetti e Marcelo Sílvio. podem ser assumidos pelas comunidades locais. 2007. imbricada entre espaço e ciberespaço. SILVEIRA. objetivando fins específicos. jan-jun 2011 crescente da produção simbólica da humanidade. um lápis.9 n. (SANTANA . ou seja. seus costumes e seus interesses.1 p. sua aparência caótica não pode esconder seu sistema. mas pela maneira como informam. Tecnologia e arte digital: um estudo (.VISUALIDADES. horizontais. a mensagem de qualquer meio ou veículo é a mudança de padrão que este meio provoca na sociedade. Para McLuhan (2007) “o meio é a mensagem”. já a máquina fotográfica. Por exemplo. p.. [Cultura digital] Como toda mudança. cada vez mais auto-organizados e emergentes. Instrumentos técnicos como extensões do corpo agregariam implicações psíquicas e sociais e. dentro das redes informacionais. para ampliar sua fala. pode ser considerada uma máquina tecnológica. a ótica. como extensões do corpo (MCLUHAN. formados como descontinuidades articuladas. Cultura digital e Arte Concebendo as técnicas e tecnologias como próteses. artísticas. conseqüentemente. Nenhuma leitura dos objetos culturais recentes ou antigos pode ser completa se não se considerar relevantes.. em termos de resultados. 77-91. Podemos considerar técnica como um conjunto de procedimentos necessários para realizar determinada atividade. 2007) e que têm por função receber dados do mundo sensível e agir sobre um contexto. a mudança de percepção ocorre devido ao meio e não ao seu conteúdo. os meios não condicionam seu público pelo que informam. Tecnologia pode ser considerada como o saber que integra processos aplicados dentro de um contexto organizacional do trabalho. Goiânia v. seu sentido está em disputa. a organização de informações com determinado objetivo dentro de um processo de trabalho onde o homem controla as forças da natureza com objetivos próprios. que pode ser concebida como um objeto técnico que agrega um saber humano.) 81 . deduz-se que técnicas e tecnologias obedecem ao princípio de otimização de desempenho do corpo perante o mundo. em seu caminho de virtualização. A cultura digital é a cultura da contemporaneidade. são ferramentas técnicas. considerando-se que é o meio que rege a forma e a dimensão dos atos e associações humanas. 2001. as novas tecnologias. p. como se costuma ler nos manuais. o motor das grandes transformações estéticas. 2005. (MACHADO. as pessoas que vêem o mesmo programa de televisão compartilham as mesmas imagens. p. a televisão para a visão. O homem e suas extensões são um sistema inter-relacionado. é impensável uma época de florescimento cultural sem um correspondente progresso das suas condições técnicas de expressão. muitas vezes. e quando um processo se amplia a evolução se acelera tão rapidamente que é possível que a extensão assuma o controle. Para Lévy Mais que uma extensão do corpo. uma ferramenta é uma virtualização da ação. como também é impensável uma época de avanços tecnológicos sem conseqüências no plano cultural. Tais mediadores. os sistemas de telemanipulações para o tato e a interação sensório-motora. em troca. portanto. 75) Temos. Goiânia v. Por essa razão. mas sim a virtualização do andar. Interatividade e arte Os artistas que estão conectados a centros avançados de pesquisa percebem a necessidade de conhecer e dominar novos 82 VISUALIDADES. mas também e sobretudo a história dos meios que nos permitem dar expressão a essas idéias.1 p.11). na verdade desencadeiam mutações sensoriais e intelectuais que serão.9 n. O martelo pode dar a ilusão de um prolongamento do braço. todos esses dispositivos virtualizando os sentidos e organizando a utilização coletiva dos órgãos virtualizados. O ser humano está intimamente imbricado com suas coisas. simultaneamente. A história da arte não é apenas a história das idéias estéticas. o telefone para a audição. 77-91. jan-jun 2011 . 2005). sua casa. uma passagem da cultura material para uma cultura imaterial. sua cidade. a roda. evidentemente não é um prolongamento da perna. longe de configurarem dispositivos enunciadores neutros ou inocentes. Por isso necessitamos estudar os tipos de extensões criados. porque o relacionamento do homem com suas extensões é uma continuação e uma forma especializada do relacionamento dos organismos com seu meio ambiente.mentos técnicos que lhe dão forma. sua tecnologia (HALL. (Lévy . Desta maneira. Plaza (1990. os indivíduos não precisam mais estar presentes no mesmo local ou momento. onde houve a passagem da comunicação oral para a escrita. É o que acontece com este processo de transformação das mídias. 79). permite uma comunicação criadora fundada nos princípios da sinergia.1 p. levando-se em conta que o cenário artístico está dominado pela arte da participação e da interação. já sendo utilizados em diversos espaços como suportes artísticos. artistas trocam artefatos e ferramentas por dispositivos múltiplos eletrônicos. Embora seja algo novo entre os profissionais e artistas.) . p. 77-91. redes. a menos que esteja morto. possibili83 Hivo Navarro. Arte Móvel Com o desenvolvimento das novas tecnologias surgiram os chamados dispositivos móveis integrados com a rede. Segundo Machado (2001. jan-jun 2011 meios tecnológicos de produção e reprodução das artes.VISUALIDADES. Goiânia v. Assim. Discute-se o fim da arte representativa e o domínio de uma arte interativa. p.9 n. crítica e inovadoras”. Desta maneira. celular. resultando que. 24). p. entre outros que possibilitam cada vez mais comunicação e a multiplicação da arte. Popper (1983) escreve que “arte tecnológica” faz referência a uma relação entre o espectador e uma obra de arte aberta já existente. smartphones. principalmente os de rede. a questão de arte e tecnologia se resume a uma passagem da cultura material para uma cultura imaterial. na qual o termo “interação” implica um jogo de duas vias entre um indivíduo e um sistema de inteligência artificial. a confluência da arte com a tecnologia representa um campo de possibilidades e de energia criativa que poderá resultar proximamente numa revolução no conceito e na prática da arte”. suscitada pelo artista. “Com as formas tradicionais de arte entrando em fase de esgotamento. computadores. satélites. Própria da arte tecnológica. permitindo a comunicação entre indivíduos tanto comuns como profissionais da área com uma grande facilidade. Tecnologia e arte digital: um estudo (. pensar em interatividade dentro da arte é relacionar o fruidor artístico como co-autor da obra. há muito mais dispositivos. rogério Zanetti e Marcelo Sílvio. na comunicação. “O termo “interatividade” em geral ressalta a participação ativa de beneficiário de uma transação de informação. De fato. Para Lévy (1999. seria trivial mostrar que um receptor de informação. colaboração construtiva.17) também destaca que “A interatividade como relação recíproca entre usuários e interfaces computacionais inteligentes. nunca é passivo”... p. também chamada de mídias locativas. abrindo um grande campo para a produção da arte nesses meios. ou seja. Em Santaella (2007. Giselle Beiguelman – Mundo Cíbrido (SANTAELLA. etc. sem o envolvimento da interação à distância. 2010) As tecnologias que se fundamentam em localização dividem-se em dispositivos (celulares. a criação de vídeos. ser associada a obras feitas com o celular. bluetooth. motion graphics e game art para celulares. Bei84 VISUALIDADES. games. pois. 2007) Cíbrido é irmão siamês de híbrido. estamos aqui e em algum outro lugar. 132) “A ubiqüidade é inerente ao pensamento humano. Os sistemas cíbridos. Suas obras acionam tanto o processo poético quanto o processo estrutural da programação computacional. envolvendo desde projetos de web art à mobile art. redes sociais móveis. informação jornalística. como por exemplo. teasers. em sensores (entre eles as etiquetas RFID) e redes (celular. tecnologias e serviços fundamentados em localização.1 p. quando pensamos. localização. A artista Giselle Beiguelman se destaca pelos projetos que desenvolve em redes. Wi-Max. que nascem das interconexões entre espaços físicos e as redes de informação. 77-91. QR Codes). Porém. não podemos considerar como toda a arte feita por celular se caracterizando como uma obra locativa. publicidade. cíbrido foi criado para destacar a capacidade que as novas tecnologias nos dão para habitar dois mundos simultaneamente. palms.tando a comunicação mesmo se estiverem a milhares de quilômetros de distância. Goiânia v. (LUCENA.9 n. realidade aumentada. jan-jun 2011 . Dentro deste processo de transformação das mídias entende-se por Arte Móvel. a obra pode ser gravada a partir de uma memória interna do dispositivo. Apesar da expressão Mobile Art. Os serviços classificam-se em mapeamento. turismo. a constante mudança dos dispositivos móveis faz com que o termo se associe à mobilidade. onde a informação é a parte principal do processo. Wi-Fi. a produção artística que faz a veiculação em meios mais amplos. Formado pela conjunção de ciber e híbrido. netbooks. Por mídias locativas compreendem-se os dispositivos móveis voltados para a aplicação a partir de um local envolvendo ação de interação à distância. GPS. Mobile art. materializam e expandem o potencial que é próprio da consciência humana”. havendo o imbricamento do uso de vários dispositivos. GPS). seja online ou off-line. nestes tempos de nomadismo sem fio. Os efeitos multiplicadores da tecnologia sem fio vêm transformando a cultura digital em um ecossistema expansivo de subculturas que se misturam em micro.VISUALIDADES. Desta maneira. macro e megacomunidades. para Beiguelman. pautado pela interconexão de redes e sistemas on e off-line. sendo uma experiência cíbrida. a interface é a mensagem. rogério Zanetti e Marcelo Sílvio. (LEOTE.1 p. que permitem o acesso a informações. (SANTAELLA. Para Beiguelman (2004). ou seja. (BEIGUELMAN. A popularização dos dispositivos portáteis de comunicação sem-fio com possibilidade de conexão à Internet apontam para a incorporação do padrão de vida nômade e indicam que o corpo humano se transformou em um conjunto de extensões ligadas a um mundo cíbrido.9 n. pautada pela interpenetração de redes online e off-line. Goiânia v. jan-jun 2011 guelman dedica-se também às relações existentes entre a literatura e os novos meios de comunicação criados pela cultura digital existente. Tecnologia e arte digital: um estudo (. por exemplo.) . é necessário considerar os vários moldes e possibilidades existentes para a manipulação dos textos. incorporando e reciclando os mecanismos de leitura já instituídos. Dentro desse processo de alteração sistemática e da multiplicação dos atributos e das funções dos dispositivos de comunicação. tais como vídeos e fotografias contidos em algum sítio da Internet. 77-91. QRcode são marcadores. p. 2004). tendo por resultado formas de sinestesias dentro do ciberespaço. espécie de códigos de barra mais modernos.. reflexões que questionam os regimes clássicos de leitura. O uso do celular. Na arte móvel de Beiguelman apresentam-se os QRcode. ver e memorizar demanda. 2007. pondo em questão uma semiótica restrita às relações de contigüidade e semelhança que a metáfora da interface pretende repetir. cibridismo é a experiência contemporânea de estar entre redes. Consciente da condição móvel da cultura e tecnologia. apontam para novas formas de significar. 85 Hivo Navarro. das imagens. é redefinido os lugares e as experiências de leitura. Para Lucena (2009). que podem ser acessados com apenas um clicar fotográfico de celulares que possuem leitores deste tipo de código. A possibilidade de uma cultura cíbrida. 349-350).. das linguagens. 2008) Beiguelman trabalha com a relação de teoria e crítica dentro das múltiplas plataformas existentes. No caso da exposição de Giselle. não remete somente à funcionalidade do aparelho ou da tecnologia estabelecida por Beiguelman. Goiânia v.flickr. se o aparelho estiver conectado a uma rede.1 p. esse link por sua vez irá remeter a um vídeo. por sua vez remetem a conjuntos musicais.9 n. mas sim também o fato de provocar uma sensibilidade nos usuários. um programa que faça a leitura desse código (QRcode). 77-91. Figura 1 QRcode de Giselle BeiguelmanFonte: http://www. o código tem a resposta de um link. em parceria com o músico Maurício Fleury.Em sua obra intitulada “Suíte 4 móbile Tags”. fazendo tocar trechos musicais.com/photos/ silver_box/4393589745/in/set72157614426160578/ O projeto em si. os Qr codes. ou seja.com/ photos/silver_box/4393590643/ in/set-72157614426160578/ Figura 2 Funcionamento do QRcode de Giselle BeiguelmanFonte: http://www. uma mensagem. a partir de um dispositivo móvel integrado com um programa de decodificação.flickr. a uma foto. que 86 VISUALIDADES. em fazer com que o público interaja com a obra. entre outros. jan-jun 2011 . O funcionamento é simples. Beiguelman apresenta uma parede onde os fruidores são convidados a utilizar um aparelho celular. dispõe como ferramenta multifuncional e necessária para o interação do indivíduo. por isso. o corpo conectado às redes torna-se a interface entre o real e o virtual sem que. celulares.. denote que nos tornaremos equipamentos de carne obsoletos. softwares. (BEIGUELMAN. torna-se ainda mais concisa. rogério Zanetti e Marcelo Sílvio. como proposto nos capítulos anteriores. por termos cada vez mais acesso a diferentes meios. entre tantos outros. os telefones celulares. o smartphone. nos possibilita não estar presente fisicamente. nada mais natural que o uso das novas tecnologias pelos artistas contemporâneos. por exemplo. Considerações finais O uso da tecnologia nos dias de hoje faz com que cada vez mais paremos e pensemos sobre as novas práticas dentro da cultura. O processo de desmaterialização da cultura. de virtualização. como também tratou de fazer a intersemiose desse processo e dos mais diversos meios. tornando o corpo humano uma extensão para o mundo tecnológico e vice versa. fazem com que tenhamos novas percepções frente à mensagem. é fato que em um mundo globalizado e mediado pelas telecomunicações. Assim a afirmativa de McLuhan. por termos uma necessidade de comunicação. a arte eletrônica.VISUALIDADES. “o meio é a mensagem”.9 n. no fenômeno técnico em sua forma de totalidade. 2004). É fato que as matérias-primas artísticas muitas vezes são substituídas por mecanismos digitais. é presente na contemporaneidade através dos medias on-line. 77-91. na exposição “Suíte 4 móbile Tags”. para estarmos conectados e conversando com outra pessoa (Levy. o entretenimento.1 p. computadores. telas. Goiânia v. jan-jun 2011 tenha percepções diferentes. Beiguelman. Tecnologia e arte digital: um estudo (.. 1999).) 87 . que por sua via. mas como todo aparato tecnológico pode também se tornar uma extensão. não só ousou em tornar essa extensão do corpo humano. onde as humanizações das tecnologias se tornam cada vez mais comuns. Entretanto. esses que por sinal. Mas se levarmos em consideração que instrumentos técnicos sempre foram usados por artistas em todos os tempos. pincéis. Para além do fetichismo da robotização humana. não só o corpo humano. etc. para nós que vivemos nesse ciberespaço. tornam-se extensões de nossos ouvidos. As novas tecnologias tornam-se onipresentes ao ponto de não Hivo Navarro. espátulas. dentre outras exposições e outros trabalhos que ela apresenta o aparelho celular. podermos discernir claramente onde começam e onde terminam, por isso é natural que comecemos a conviver com a humanização das tecnologias, uma humanização através das artes. Percebemos que os computadores estão cada vez mais presentes nos lares, seja com o objetivo de simples lazer ou para fins profissionais, e não só se tratando de computadores, mas também dos dispositivos móveis em geral, nota-se que a tendência caminha para as conexões; desktops, notebooks, netbooks, celulares, smartphones, I-PAD, todos ligados à grande rede mundial. Esses dispositivos móveis, especificamente os celulares, estão rompendo os parâmetros para os quais foram criados, recebendo em seu corpus outros aparatos tais como câmeras, acesso a internet via Wi-fi, 3G e 4G, caixa de e-mails, entre outros. Percebe-se que este tipo de dispositivo aproxima-se das características de um computador portátil, possibilitando que sua interface possua conceitos de usabilidade mais simples, permitindo àqueles que ainda têm pouco controle sobre as novas tecnologias certa facilidade no uso das ferramentas do dispositivo. A rede, cada vez mais presente no cotidiano dos homens, possibilita a conexão com o mundo digital, permitindo a obtenção rápida de informações sobre tudo e a qualquer hora. Não podemos interpretar os avanços tecnológicos como um simples modo de facilitar o cotidiano, o principal foco é fazer com que a tecnologia desperte sensações, estímulos, lembranças, para que não fique somente designado como um simples aparato computacional e matemático. Cabe ao artista visual contemporâneo esta tarefa. Torna-se evidente que as novas tecnologias podem e devem ser agregadas à arte, multiplicando as possibilidades de expressões artísticas em novos suportes. O hibrido e o cíbrido, a união das técnicas artísticas através das novas formas tecnológicas presentes como suporte e como ferramentas na contemporaneidade, resultando em consequências psíquicas e sociais, atestam a humanização das artes através das manifestações artísticas em seus desdobramentos sensíveis nas mãos de artistas como Giselle Beiguelman. Referências Bibliográficas BEIGUELMAN, Giselle. Admirável mundo cíbrido. Disponível em <http://www.pucsp.br/~gb/texts/cibridismo.pdf>. Acesso em 18 de maio, 2010. 88 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 77-91, jan-jun 2011 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 77-91, jan-jun 2011 ________. QRcod: Suite4 MobileTags. Disponível em < http://www.desvirtual.com/qartcode/pt/>. Acesso em 18 de maio, 2010. DOMINGUES, Diana (Org.). A Arte no Século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Editora UNESP, 1997. HALL, Edward T. A dimensão oculta. Trad. Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. LEOTE, Rosangela. Mobile Art. Enciclopédia de Arte e Tecnologia do Itaú cultural. Itaú Cultural, São Paulo. Disponivel em: <http://cibercultura.org.br/tikiwiki/tiki-index.php?page=-%3Dmobile+art%3D->. Acesso em 01 de maio, 2010. ________. Biografia de Giselle Beiguelman . Enciclopédia de Arte e Tecnologia do Itaú cultural. Itaú Cultural, São Paulo. Disponivel em: <http:// http://www.cibercultura.org.br/ tikiwiki/tiki-index.php?page=Giselle+Beiguelman>. Acesso em 01 de maio, 2010. ________. Pierre. Cibercultura. 2ed. São Paulo: Ed. 34, 1999. ________. Pierre. O que é o virtual. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2005. LUCENA, Tiago Franklin Rodrigues. # m-arte: ((( arte_comunicação_móvel ))). Brasília: 2009. MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário: O desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: EDUSP, 2001. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2007. PLAZA, Julio. Arte e Interatividade. Disponível em <http://www.cap.eca.usp.br/ars2/arteeinteratividade.pdf>. Acesso em 27 de maio, 2010. POPPER. Frank. Art of Electronic Age. Nova Iorque: Harry N. Abrams, 1983. SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. ________. Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003. Recebido em: 30/03/11 Aceito em: 30/05/11 Hivo Navarro, rogério Zanetti e Marcelo Sílvio. Tecnologia e arte digital: um estudo (...) 89 HIVO MAUrIcIO NAVArrO FABrícIO [email protected] Pós-Graduando em Animação em Mídias Digitais – UEL – Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Artes Visuais - Multimídia da Unopar – Universidade Norte do Paraná. rOGÉrIO ZANETTI GOMES [email protected] Mestre em Design UNESP, especialista em Discurso Fotográfico UEL, bacharel em Desenho Industrial PUC PR. Docente do Curso de Artes Visuais – Multimídia da UNOPAR , Universidade Norte do Paraná. MArcELO SILVIO LOPES [email protected] Mestre em Comunicação - UEL Universidade Estadual de Londrina, especialista em Comunicação Visual em Mídias Interativas - UNOPAR Universidade Norte do Paraná, Licenciatura em Artes Visuais - UEL Universidade Estadual de Londrina, Docente do Curso de Artes Visuais – Multimídia na UNOPAR Universidade Norte do Paraná. rOGÉrIO ZANETTI GOMES [email protected] Mestre em Design UNESP, especialista em Discurso Fotográfico UEL, bacharel em Desenho Industrial PUC PR. Docente do Curso de Artes Visuais – Multimídia da UNOPAR , Universidade Norte do Paraná. 90 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 77-91, jan-jun 2011 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 77-91, jan-jun 2011 Hivo Navarro, rogério Zanetti e Marcelo Sílvio. Tecnologia e arte digital: um estudo (...) 91 O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme Ressaca ELEONOrA LONEr cOUTINHO Resumo Neste artigo, é apresentada uma análise de Ressaca (2008), de Bruno Vianna, filme que tem como proposta a montagem ao vivo. Inserindo o filme no contexto do live cinema e aproximando-o do cinema interativo, busca-se entender os processos de escrita do roteiro, montagem e relação com o espectador. Como método, são utilizadas entrevistas com espectadores e com o diretor do filme, além de pesquisa bibliográfica. Palavras-chave: Ressaca, interatividade, live cinema VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 93-111 , jan-jun. 2011 93 1 p. movie by Bruno Vianna. interviews with the audience and with the director are used. edition and its relation with the audience. As method.9 n. we try to understand the process of scriptwriting. The film’s main characteristic is the live edition.Live cinema and interactive cinema: an analysis from Hangover ELEONOrA LONEr cOUTINHO Abstract In this paper. interactivity. is presented. besides bibliographical research. 93-111. Goiânia v. live cinema 94 VISUALIDADES. Keywords: Hangover. Inserting it in the context of live cinema and bringing it closer to interactive cinema. an analysis of Hangover (2008). jan-jun 2011 . tendo em sua filmografia quatro curtas e dois longas-metragens.VISUALIDADES. Trata-se do Brasil no final da década de 80 e início da de 90. que propõe um caminho sempre diferente a ser trilhado. que tenta crescer e descobrir a vida no meio de uma tormenta política. seu longa-metragem de estreia. período de bastante confusão política e econômica. mas são infinitas. as possibilidades não se restringem a dois ou três finais. Um jogo da amarelinha. O filme foi lançado em circuito comercial com mais de um final. uma ideia que havia sido iniciada em Cafuné (2005). O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme ressaca . Em depoimento no site de Ressaca.9 n. Um quebra-cabeça. tornando cada uma delas única. Através de uma interface visível ao público chamada de “Engrenagem”. Vianna fala sobre o processo criativo: 95 Eleonora L. Ambas estratégias já demonstram uma proposta de fazer um cinema mais colaborativo. com maior interferência do espectador. Em Ressaca. essa proposta se expande. um convite ao espectador para que ele fizesse outra montagem. Goiânia v. além de ter suas partes disponibilizadas para download. e resumem o que provavelmente é a sua essência: um longa-metragem que não tem fim nem começo.1 p. pois. Protagonizado por João Pedro Zappa. coutinho. nesse projeto. o longa relata a adolescência de Thiago. 93-111.” Essas três frases compõem a página inicial do site de Ressaca (2008). o diretor ou um montador que tenha suficiente conhecimento sobre as cenas seleciona e ordena as partes que serão exibidas em cada sessão. Ele leva ao extremo. jan-jun 2011 Introdução “Um longa-metragem. econômica e familiar. Vianna atua no cinema há mais de quinze anos. além do público interferir nas escolhas do diretor na exibição. O quebra-cabeça vivido pelo personagem central se potencializa com a proposta experimental de montagem simultânea à exibição. filme de Bruno Vianna. p. pois mesmo considerando que o espectador empresta seus próprios significados ao filme. ter outros desenlaces. No cinema de narrativa clássica. a proposta do livro é dar maior poder ao leitor. assim como o público.2) Vianna cita O Jogo da Amarelinha. como “Jogo da Amarelinha”. etc. Segundo a definição dada pelos organizadores da Mostra Live Cinema. em que o público influencia o diretor em certos aspectos. acaba influenciando o artista. que ocorre desde 2005 no Rio de Janeiro. ou indiretamente. onde coisas podiam acontecer duas vezes. jan-jun 2011 . com uma estrutura não-linear. Já o cinema interativo caracteriza-se por permitir uma forte participação do usuário (espectador). nunca se esgotando. que pode seguir uma das duas ordens de capítulos sugeridas pelo autor ou lê-lo na ordem em que desejar.. pois o montador passa a ter um papel fundamental na exibição. Porém. artista e público. quando ele decide o rumo da obra ou faz uso de alguma interface para se comunicar com ela. em propostas como a de Ressaca.. de Julio Cortázar. Ressaca situa-se dentro do conceito de Live Cinema e possui fortes características interativas. De fato. Há um diálogo criativo que é renovado a cada exibição. Goiânia v. é a única dedicada especial96 VISUALIDADES.1 p. seja diretamente. Essa referência segue ainda para o plano narrativo: uma das personagens principais se chama Maga. de Cortázar e outras obras não lineares. Depois disso me dei conta que o Ressaca faria muito mais sentido assim. 93-111. A Mostra Live Cinema. não acontecer. que. (2008.9 n. É que ao editar o filme eu percebi que não gostaria de amarrar a história e sim comunicar às pessoas que elas podiam interpretá-lo de diversas maneiras ou até levar isso ao pé da letra e reeditá-lo. “(.) hoje o termo ‘LIVE CINEMA’ diz respeito à execução simultânea de sons e imagens por artistas visuais que apresentam suas obras ao vivo diante dos espectadores.Mas o projeto só tomou forma mesmo depois do Cafuné e a experiência que fiz de lançar diversas versões do filme no cinema e distribuí-lo por copyleft na internet. o significado dado pelo artista à obra está finalizado e o resultado que chega ao espectador é rígido.”. mesmo nome de personagem do livro de Cortázar. o resultado físico dele é sempre o mesmo. como referência para seu trabalho. como em Ressaca. transforma-se a relação entre obra. fazendo sua própria versão. Por isso quis avançar mais a idéia de fazer um filme recombinável. O live cinema e o cinema interativo têm uma trajetória bastante recente no Brasil. mesmo não participando de forma ativa. A invenção de tecnologias várias vezes teve papel fundamental Eleonora L. Apesar de ser uma prática ainda pouco comum e consideravelmente nova. serão revisados os conceitos de “cinema digital”. especialmente em relação ao cinema. Vincent Amiel servirá como base para a análise fílmica.VISUALIDADES. delimitando o objeto de estudo e. Ressaca e outros filmes com proposta interativa . que se baseará nas respostas de seis pessoas que assistiram ao filme Ressaca. Entretanto. para entendermos de forma mais concreta a relação entre público e filme e até fazer correção e esclarecimento de questões e hipóteses levantadas durante o processo de pesquisa. os de Alex Primo e os de Glorianna Davenport (e do grupo Interactive Cinema Group do MIT) sobre cinema interativo. o live cinema e o cinema interativo têm seu crescimento baseado principalmente nas mídias digitais.começam a achar espaço dentro de festivais já consagrados. enfim. além de trazer uma outra perspectiva da obra como espectadores. Certos aspectos técnicos e de condições de exibição ficam mais claros. o cinema já passou por múltiplas revoluções. evidenciando as relações existentes entre eles e ressaltando suas principais características. O diretor Bruno Vianna também respondeu a perguntas enviadas por e-mail e suas respostas fecham lacunas que anteriormente estavam em aberto. que aumentam de forma significativa as possibilidades de interação com o filme. como o Festival do Rio. “live cinema” e “cinema interativo”. essencial a basicamente qualquer tipo de estudo acadêmico. A observação direta se faz válida pela experiência que presenciamos na exibição do filme no Festival CineEsquemaNovo de 2009. Goiânia v. serão utilizados três métodos: pesquisa bibliográfica. serão utilizados estudos sobre o digital como uma nova linguagem. coutinho. onde Ressaca foi exibido. Buscou-se estreitar a pesquisa.como A Gruta (Filipe Gontijo. portanto. Além disso. e em mostras alternativas. 93-111.1 p. observação direta e entrevistas. fazendo uma análise de caso do filme Ressaca. foi realizado um estudo de recepção. de maneira ainda pouco pensada. jan-jun 2011 mente a esses tipos de projetos no país. O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme ressaca 97 . destacando a narrativa e a montagem. de Lev Manovich. Através da pesquisa bibliográfica. 2008) . E. Para uma análise mais eficaz.9 n. Live cinema e cinema interativo De “teatro filmado” à arte com linguagem própria. Para isso. desde os seus primórdios. podemos perceber a ênfase dada ao local da performance. até personagens. embora extremamente aberta. seja na gravação. p. do VJ’ing. em conceito. A não-linearidade. Podemos destacar a chegada do cinema falado. onde o foco da audiência muda constantemente e a intenção da performance é o acompanhamento da música ou pano de fundo para o contexto social” (2010. neste estudo. figura. o produz. Pulp Fiction (Quentin Tarantino.255). Goiânia v. A definição do autor do termo é “O VJ’ing engloba aquelas atividades de performance audiovisual. é uma das novas formas de pensar o cinema possibilitadas pelo digital. Mia Makela complementa a definição ao dizer que o trabalho do VJ se diferencia do trabalho do artista do live cinema pelo fato de que o primeiro não produz o seu material. como poderá ser visto mais adiante. deixando claro que a atenção do espectador não está voltada para ela.9 n. ou quase. sendo elas duas das três abordagens do audiovisual ao vivo. ao voltarmos à definição de Fodel. Lev Manovich o define como “um caso particular de animação que usa filmagem live action como um de seus vários elementos” (2001. em geral. cuja definição é bastante controversa. trabalhando em cima de material alheio. 1928). assim. 93-111. exemplificada por filmes como Um Cão Andaluz (Un chien andalou.1). jan-jun 2011 . 1994) e Amnésia (Memento. o vídeo.na criação de novos elementos na linguagem cinematográfica. entre outros. Neste artigo. temos filmes como os novos episódios da série Star Wars e Avatar). 2010. novos e leves meios de captação de áudio em campo (em relação ao documentário). do live cinema. p. o digital e a tecnologia 3-D. às vezes. Além disso. p. já definido na introdução desse trabalho. são criados em computador (como exemplo. O live cinema aproxima-se bastante. temos especial interesse no digital.1 p. enquanto que o segundo. objetos e. Luis Buñuel. 1994). parece se referir mais a filmes cujos cenários. O live cinema. Porém. adotaremos o termo “cinema digital” como um produto audiovisual que utiliza-se de meios digitais (calculados em forma binária. na edição ou na exibição. como uma qualidade essencial. que tipicamente são realizadas em clubes noturnos. 98 VISUALIDADES. Essa definição.4). Mia Makela o diferencia do cinema clássico por não ter uma narrativa linear e por não ser normalmente baseado no trabalho de atores ou nos diálogos. Christopher Nolan. segundo Manovich) em algum estágio de sua produção. “A situação ‘ao vivo’ impõe suas necessidades. mas também clama por liberdade do cinema com estrutura linear” (MAKELA. segundo David Fodel (a outra é a visual music). Ele cita Lucien Sfez.4). já que a principal proposta desse último é a participação do espectador. que acredita que a palavra “interativo” vem acompanhada de um deslumbramento e serve como argumento de venda de ideias. portanto. p. Os exemplos de interatividade vão desde textos com links na internet até jogos complexos em que o usuário entra no papel de um dos personagens.5) O diálogo artista-público é. Elas viram momentos partilhados entre o artista e a audiência. onde reina soberana a representação. Delírio. então. Mia Makela fala sobre a experiência do espectador: Ver o criador apresentar seu trabalho é diferente de assistir a um filme: existe a possibilidade de feedback instantâneo de ambas as direções.”(2010. assim como o trabalho live. p. 12) e. na maioria das abordagens.. O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme ressaca . p. o live cinema possui uma característica performática. Para Martins. E a partir desse ponto. que remete ao tradicional (linguagem e estrutura narrativa) e a utilização das novas tecnologias resultando num novo produto. Além disso. um elemento essencial no live cinema.) quando falamos de cinema digital interativo.VISUALIDADES. “(. obviamente.9 n. esse mundo de máquinas 99 Eleonora L.. “Interativo” refere-se a toda mídia em que o usuário pode fazer escolhas de elementos ou caminhos a seguir. se limita a uma definição puramente tecnicista. único. que os elementos utilizados provavelmente nunca mais serão dispostos exatamente daquela mesma maneira. O trabalho interativo tende a ser único. Para Alex Primo. Cada exibição só será vista daquela maneira naquela única vez (a não ser. únicos e difíceis de repetir. “Crê-se estar na expressão imediata. espontânea. a maioria das performances não são documentadas. Goiânia v. da discussão da “aura da irreprodutibilidade técnica” de Walter Benjamin. portanto. Lembramos. O espectador sabe que aquela obra será perdida assim que a sessão terminar. o termo “interatividade” é “impreciso e escorregadio” (2007. coutinho.1 p. jan-jun 2011 Por ser ao vivo e. 93-111. Para Sfez. tendo liberdade para explorar o cenário. O contexto live impõe as possibilidades de participação da audiência. traça-se uma ponte entre o live cinema e o cinema interativo. que alguma delas seja gravada). (2010. Creio exprimir o mundo. estamos tratando de um produto híbrido (MANOVICH). existe a impressão de uma real expressão do interagente. colocando em segundo plano a recepção da informação pelos interagentes. em seu próprio referencial. o “interativo” passou a ser uma característica das novas mídias e. quando há a mediação de um computador: a mútua e a reativa. “A interatividade é uma característica nata do usuário digital. Goiânia v. Primo defende que não se trata de limitar o que é interatividade. torna-se natural a aproximação desse tipo de usuário com o cinema interativo.” (apud PRIMO. era “Todos são iguais”.) a lógica dos novos meios corresponde à lógica da distribuição pós-industrial de ‘produção sob demanda’ e ‘na hora’” (2001. a manipulação do foco da atenção do espectador no cinema.9 n. Porém. 71). p. p. segundo o mesmo Manovich. é compartilhada por mais de um interagente e se baseia na relação interpessoal. há dois tipos de interatividade. Se o discurso. hoje observa-se o contrário: o conteúdo se encaixa dentro das necessidades de cada usuário. Como exemplos. Assim. ele automaticamente se torna interativo” (2001. maneiras de entender a obra. Se antes havia uma tendência à massificação. que diz que “(. tornando-se “multimídia”. p. 100 VISUALIDADES. esse usuário está acostumado a fazer múltiplas tarefas ao mesmo tempo. a montagem no cinema. 93-111. Trata-se de uma interação que constantemente muda seus parâmetros e que não pode ser prevista. A primeira. já que elas demandam do público que ele preencha as lacunas e busque. Voltando à classificação de Primo. A noção de interatividade nas artes . Manovich acredita que a interatividade sempre esteve presente em diversas formas de arte. seguindo o pensamento de Manovich.1 p..56). Ele cita elipses na narrativa literária. “Uma vez que o objeto é representado em um computador. Discutiremos sua classificação mais adiante.e principalmente no cinema . expressando desejos e decisões” (2010. esse usuário quer ter poder sobre o conteúdo que irá consumir. antes. 52). hoje ele é “Você é especial” (ou pelo menos procura-se dar essa impressão). jan-jun 2011 . 7). entre outros.há anos é idealizada como uma maneira de fugir das narrativas tradicionais e de dar poder ao espectador. Já a interatividade reativa é caracterizada por uma unilateralidade na relação.que me representam e que. Porém. que espera participar de todo o processo. p.. não sendo uma interatividade construída por dois interagentes. que une partes sem qualquer ligação e dá um novo sentido a elas. Para ele. Para Denis Renó. na verdade se exprimem em meu lugar. mas sim de diferenciar os tipos de interação qualitativamente. Então. na pintura e no teatro. programas de bate-papo virtual e listas de discussão. como o nome já diz. p. imagens. memórias. pré-programadas. Primo admite que o espectador de um filme convencional difere do de um filme interativo. pois ela acredita que os caminhos a serem seguidos sempre serão pré-determinados pelo diretor. As formas de interação são constantemente renovadas e com a chegada da televisão digital. com links direcionando para mais informações sobre o assunto. 93-111. Agora.1 p. fundamentalmente <<incompleta>>. afirmando que a participação do espectador tem limitações e. de fato. Há uma valorização muito grande do papel do espectador e. finitas e não há possibilidade de sair dessas opções. É possível argumentar que a obra só é completa se. Resumindo. pois. para Martins. esse não é um ponto tão problemático. A imagem interactiva é. para lista de produtos e para. (2001.9 n. no que podemos ler como uma versão renovada do conceito do filósofo francês Louis Althusser de ‘interpelação’. Porém. na verdade. essas mídias não são de fato interativas. por isso. mas raramente a totalidade. seguem o fluxo mental de outra pessoa. Posto timidamente. descarta a ideia de uma autoria dividida. Para Manovich. uma das formas possíveis dessa imagem. o interativo tem um “caráter incompleto” (o que podemos relacionar também com o live cinema): “O espectador verá apenas uma parte da imagem. 101 Eleonora L. p. de fato. porém ele reforça a ideia de Martins.74) Para Massou. a mídia interativa nos pede que cliquemos em frases sublinhadas para irmos para outra frase. nós somos convidados a confundir a estrutura mental de outra pessoa pela nossa própria. 210) Uma questão interessante de ser discutida dentro do cinema interativo é a da autoria.VISUALIDADES. de acordo com sua vontade e criatividade. manifesta-se seu poder interativo. O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme ressaca . coutinho. que parece ser um pessimista em relação ao assunto. nós leríamos uma frase de uma história ou uma linha de um poema e pensaríamos em outras linhas. espera-se que o aumento do controle do usuário seja considerável. Goiânia v. como sublinha Jean-Louis Weissber: mostra apenas um estado num momento <<t>> da sua exibição no ecrã. jan-jun 2011 As possibilidades de interação são pré-definidas por alguém. interferências na narrativa. pois elas. passa a ponderar-se quem é o real autor da obra. como ele explica no seguinte trecho: Antes. nós somos convidados a seguir associações objetivamente existentes.” (2008. assim. em Porto Alegre. de uma hora e vinte minutos a duas horas de exibição. No total. 93-111. que ficam separadas dentro de círculos (cada um contem cenas de uma temática especial.). mais material deve ser produzido. Lançando mão do exemplo do cinema 3-D. percebe-se que. A quantidade grande de cenas é justamente o que dá a maleabilidade do filme: quanto mais cenas. mas que evidencie a presença sua e da “Engrenagem”. inclusive. na grande aposta dos estúdios tradicionais como forma de chamar o público aos cinemas. Já no cinema interativo.9 n. em algum lugar que não atrapalhe o público. gerando mais custo. Já o cinema interativo continua como uma aposta. Portanto. que permite ao manipulador visualizar e escolher as sequências a serem exibidas. mais possibilidades de resultados diferentes. pode ser acrescido de transições e de planos de outras sequências. pois para cada parte diferente. A interface utilizada para a edição de Ressaca. Essas sequências. Ressaca As exibições do filme acontecem da seguinte maneira: o diretor permanece entre o público e a tela de exibição. No live cinema. não tenha contado com a presença do músico.Em ambas modalidades de cinema apresenta-se a questão da não-comercialidade. são 129 cenas e três horas e vinte minutos de material. em sua essência. jan-jun 2011 .1 p. resultando em. a criação e instalação de interfaces e aparelhagens em salas ao redor do mundo significariam um enorme gasto. um músico “performa” a trilha musical do filme (embora a sessão do CEN. de escolha do montador) podem ser organizadas e reorganizadas a qualquer instante. transformando-se. normalmente. o cinema 3D emplacou nas salas. por conta da obrigatoriedade da presença do performer. viabilidade econômica e criação de conteúdo. manipulando a ordem das imagens. Além dele. o live cinema. Goiânia v. foi desenvolvida especialmente para o uso do filme por Maíra Sala e consiste em uma tela transparente de acrílico sensível ao toque. superados os problemas tecnológicos. percebemos que seus grandes empecilhos eram basicamente os mesmos do cinema interativo: tecnologia. Além de um gasto maior na produção. batizada de “Engrenagem”. Porém. além da possibili102 VISUALIDADES. Afinal. fica impossível uma distribuição em grande escala.CineEsquemaNovo. O material. que já é pré-editado. é um tipo de cinema que não pretende chegar ao mainstream. esse é um ponto bastante óbvio. de forma que a platéia possa se engajar no esforço do performer e perceber como isso está ligado às imagens e aos sons produzidos. é um elemento essencial do live cinema e do cinema interativo e pensar a narrativa deslocada da interface não faz sentido num trabalho desses.). a arte antiilusionista procura ressaltar as brechas. 2010. afinal. 93-111..1 p. já que a tela é multi toque. A presença do diretor na frente dos espectadores com uma interface tão grande pode ser considerada distrativa e até desnecessária. Nós concluímos que a interface precisa ser: transparente. que se inspiravam no ‘estranhamento’ ou ‘efeito de distanciamento’ de Brecht e desejavam que o espectador tivesse uma atitude ativa diante do que era exibido na tela. Sala diz que essa questão foi bastante ponderada durante o processo de criação e gera uma dicotomia interessante sobre a participação do espectador. p. coutinho.78) 103 Eleonora L. Mas descontinuidade em si está sempre presente (. p.. “E é a interface da obra que cria sua materialidade única e a experiência de usuário única. Goiânia v. em artigo sobre a “Engrenagem”. 3) A interface. Os modos de descontinuidade variam de era para era. Ela quer ver as ações do performer e entender o que está acontecendo por trás da cena. 2001. (2004.9 n. discute a presença da interface em relação à imersão da plateia. então. p. evidenciando seu processo de construção. 8). os furos e as ligaduras do tecido narrativo. a maioria dos membros não-especialistas da platéia não entendeu o papel do performer no palco. retomando “uma certa tradição dos cinemas novos. Sobre a presença da aparelhagem.VISUALIDADES. sobre isso. Mudar a interface mesmo remotamente seria mudar dramaticamente a obra. O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme ressaca .” (MARTINS.” (apud MARTINS. de gênero para gênero. familiar aos músicos eletrônicos. porque a platéia quer ver o processo. e performática. Maíra Sala. Durante nossos shows. 2). Ao mesmo tempo em que a sala de cinema induz a que o espectador entre completamente no filme e permaneça atento a ele. Robert Stam fala que “Enquanto a arte ilusionista procura causar a impressão de uma coerência espaço-temporal. está em usar o laptop como um instrumento. Michael Lew fala: O outro problema.” (MANOVICH. jan-jun 2011 dade de cortar planos e de mais de uma pessoa manipular esse material. um computador laptop poderia substituir a “Engrenagem”. p. a interface o puxa de volta. India Mara Martins chama isso de “o potencial antiilusionista” do cinema interativo e. tempo e sensações. que tem no raccord um de seus principais truques. Indo além do roteiro. Nas exibições. E estabelecido isso. por definição pouco visível e sobretudo não manifesta. e a maioria dos trabalhos feitos dentro da proposta do live cinema se distanciam um pouco do cinema de narrativa tradicional e se aproximam da vídeo arte e das vídeo performances. Além disso. percebe-se que há uma certa individualidade em cada cena. Goiânia v. dependendo da percepção de cada espectador. porém mantendo certa independência. criam-se novos significados a cada montagem feita. nota-se que um mesmo evento pode acontecer mais de uma vez. de uma montagem clássica: estabelecer essas continuidades. jan-jun 2011 . afinal.Outro importante ponto a ser discutido refere-se à narrativa. é preciso que o espectador esteja em presença de uma continuidade.1 p. com desfechos diferentes. O cinema clássico preocupa-se em esconder sua estrutura do espectador. Se uma sequência. o Efeito Kuleshov mostra-se particularmente com efeito aqui. (2008.”. Por exemplo.”. não há um sentido de causa e efeito. que ele sinta o elo entre os diferentes planos que a planificação estabeleceu. Porém. a construção da narrativa está intimamente ligada à montagem. a não-linearidade é uma das características mais marcantes do live cinema. p. o pai do personagem principal. como o release de Ressaca diz no seu primeiro parágrafo “Ressaca pretende ser um longa-metragem no limite entre o cinema e o espetáculo ao vivo. através de diversos artifícios. sozinha. 37) 104 VISUALIDADES. elas podem ter inúmeros significados. quer dizer A e outra quer dizer B. Como explica Bruno Vianna. “As cenas são pensadas individualmente e dentro do conjunto. Como já citado no capítulo anterior.9 n. de espaço. Vincent Amiel sustenta: Para que haja consciência da narrativa. A partir do momento em que o roteiro passou a ser escrito pensando-se nessa estrutura. assim. Há uma clara intenção narrativa. juntas. passamos a desenvolver cenas que tivessem relação com outras cenas. Outras situações podem nem acontecer em algumas exibições. 93-111. morreu três vezes. entre eles a linearidade. todas de maneiras diferentes. como se engloba o conceito do live cinema de maneira que ainda sobre uma história? Analisando a narrativa de Ressaca. É a primeira característica. partindo do ponto em que param os VJs que fazem performances ao som de música eletrônica com vídeos pré-gravados. E. na exibição referida aqui. e o dos dois com a plateia. Em entrevista. Mas.Cena C). você segue algum tipo de ordem por bloco ou você monta sem ter qualquer tipo de guia pré-determinado?”. coutinho. O processo então conta com dois regentes. O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme ressaca 105 . O diálogo de Vianna com a obra é mediado por diversos fatores que vão desde o seu humor até a boa receptividade ou não do público.. conversam durante a exibição. “Um público mais cinéfilo pode provocar um filme menos linear. dando indicações e sugerindo ações. causalidade material e sequência temporal.Cena B. um público mais popular pode provocar um filme mais ‘novela’.9 n.) as cenas têm diferentes tons dramáticos.” Ao mesmo tempo. Quando perguntado sobre o grau de liberdade do músico. cada um com poder para agir dentro da sua esfera. 2010. o diretor e o músico. o de Bruno Vianna com o músico. certos fatores o influenciam. o diretor afirmou que pode se “viciar” em certos blocos. 93-111.VISUALIDADES. Eleonora L.1 p. a leitura do espectador fica bastante modificada. apesar de não seguir nenhum guia.”. a questão de não perder o interesse do espectador é resolvida pela construção dramática que se faz na hora da edição. porque fragmentos são implicitamente ordenados por relações de pressupostos lógicos. e que ele também cria uma expectativa do público. às vezes. Citaremos alguns desses fatores mais adiante. Bruno afirmou que ele tem autonomia para criar. Assim. Ele ainda informa que os dois. jan-jun 2011 Marie-Laure Ryan analisa a narrativa interativa: “Simplesmente não é possível construir uma história coerente de todas permutações de um grupo de fragmentos textuais. interferindo na construção do sentido da cena e até levando Vianna a se adaptar à música interpretada. se a proposta continua sendo a de ter uma linha narrativa. trazendo-os várias vezes na mesma sequência (Cena A. é interessante analisar a resposta do diretor à pergunta “No momento da exibição. Ressaca não se trata de uma obra com montagem clássica. Bruno Vianna foi questionado sobre a construção da narrativa de forma a não perder o interesse do espectador e respondeu: “(. p.. Diálogos em torno da obra Há vários tipos de diálogo em Ressaca: o de Bruno Vianna com a obra. 8) Obviamente. em que tento (em geral) criar um arco narrativo que prenda a atenção das pessoas.” (apud JONES. as cenas são organizadas por blocos temáticos? Se sim. Goiânia v. Ele diz que. se tornaria bastante complicada a organização desse evento. na época do festival CineEsquemaNovo. sem darem qualquer tipo de resposta definitiva às questões. nesse estudo vamos nos deter mais no diálogo diretor-obra-espectador. escolhidas por estarem presentes na exibição referida de Ressaca. estavam participando de uma Oficina de Crítica Cinematográfica e. As entrevistas foram realizadas via e-mail. ao menos. individualmente. Embora 106 VISUALIDADES. O universo do estudo realizado compreende as respostas de seis pessoas. que é transformado na proposta de Ressaca. e eram compostas por seis perguntas: • Questão 1: Você considera que a ação do montador e a presença da interface são objetos de distração do público? • Questão 2: Você sentiu que a reação do público poderia realmente influenciar na decisão do montador? Você sente que a interatividade foi limitada? Se sua resposta for positiva na última pergunta. esclarecer algumas questões levantadas durante a pesquisa sobre o live cinema. pela exigência da presença do diretor. Entretanto. uma amostragem de espectadores foi entrevistada em busca de. portanto.Porém. que permite aos entrevistados maior amplitude nas respostas. jan-jun 2011 . Goiânia v. É importante destacar que elas todas. como você acha que a interatividade poderia ser mais eficaz? • Questão 3: A característica única de cada exibição fez com que você se interessasse mais pelo filme? • Questão 4: O que mais lhe chamou atenção no filme? • Questão 5: A falta de linearidade confundiu você dentro da narrativa? • Questão 6: Você já sabia da proposta da montagem do filme quando entrou na sala de cinema? Você considera que isso tenha mudado sua percepção do filme? Optou-se pela entrevista semi-estruturada. A opção por nomear os entrevistados apenas por letras foi feita considerando que apresentar o nome e profissão deles não é relevante ao estudo. Embora uma exibição com um grupo heterogêneo de pessoas fosse o ideal.1 p.9 n. são espectadores com um certo grau de conhecimento da natureza cinematográfica. 93-111. Para compreender melhor as diferentes formas como o público absorve o filme. as respostas dadas pelo grupo se mostraram elucidativas e atuam de forma a auxiliar para uma melhor compreensão do tema trabalhado nesse artigo e no entendimento do espectador de trabalhos como Ressaca. As respostas à questão 1 sugeriram o que já havia sido comentado anteriormente: a interface e a presença do diretor são fatores de distração. dependendo da construção. enquanto os outros três pensam que não há interatividade. ele mudou de ideia e imagina que “(. Embora um entrevistado tenha dito que não foi distraído. mas também da própria figura do diretor e do seu equipamento. 93-111. Já outro entrevistado. o espírito e as próprias decisões do espectador importam muito pouco.”. sendo da natureza de sua proposta.) o filme cresceria muito sem esse dispositivo. o entrevistado B respondeu “(. do Cortázar. que é uma referência bastante óbvia. deixando a margem de improviso para pequenas porções. a reação do público influenciava no resultado do filme.”.” e os outros dois afirmaram que tiveram a impressão de que as decisões do diretor eram definidas previamente.VISUALIDADES. (. também teve respostas divididas. porém o entrevistado B afirmou que.. 107 Eleonora L. jan-jun 2011 as perguntas aceitem simples respostas de “Sim” ou “Não”. mas quase como uma instalação.. O entrevistado D acredita que essa distração faz parte do experimento e afirmou “Acho correto ver o filme não simplesmente como um filme. A questão 2. do filme. Na questão 3. Dentre os que não acreditam que exista interatividade no processo. ele acredita que esse não é um defeito do projeto. após a exibição. Goiânia v. Em relação ainda à pergunta 2.”. afirma que “A aparelhagem é extremamente exótica e o método por si só passa a chamar mais atenção do que o filme propriamente dito. coutinho. os outros afirmaram ou que sim ou que é relativo.. o entrevistado D levantou uma questão interessante com a afirmação “A decisão do autor é soberana.”.) apenas me senti voyeur do processo de montagem solitário do Bruno Vianna... Três entrevistados acreditam que sim.. Há a noção de que o que está sendo exibido é mais do que um filme.1 p. a grande maioria das pessoas ouvidas foi além e desenvolveu uma argumentação. houve unanimidade: todos os entrevistados acreditam que a característica única de cada exibição fez com que eles se interessassem mais pelo filme.9 n. embora inicialmente ele tenha se interessado pela proposta do projeto. sobre o grau de influência que o público poderia ter sobre o diretor. Diferentemente do livro O Jogo da Amarelinha. mas uma performance. Nota-se um certo ceticismo em relação à abertura do processo. Entretanto. o B. em que a obra em si é composta não apenas do que está na tela.) A vontade do autor importa mais do que a vontade do público. mais ou menos interessante. O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme ressaca . Ressaca não se coloca para o espectador como um filme interativo e em nenhum momento se faz menção à palavra “interatividade” no site do projeto. ressaltou. talvez não seja forte o bastante para se discutir uma real interatividade no trabalho. local da exibição) e. assim como os possíveis resultados. ela pode sim confundir (questão 5). pelos fatores explicados ao longo do artigo.Os dois aspectos citados como os que mais chamaram a atenção dos entrevistados (questão 4) foram o roteiro e a natureza única do projeto. eles são todos pessoas participantes do festival.”. sim. as possibilidades de interação são pré-definidas pelo diretor. O entrevistado D. Mas. Goiânia v. desse modo. acrescentada à lista para ver em que grau o conhecimento prévio da proposta do filme mudaria a percepção do mesmo. tornando o filme mais eficaz ou não. de uma obra com interatividade reativa. que presenciou duas exibições. nota-se que. com exceção do entrevistado C. exatamente porque está diante de algo que não é restrito a apenas aquilo que está vendo na tela. Porém. Todos foram unânimes em afirmar que a falta de linearidade não atrapalhou na compreensão do filme. porém. “Talvez a gente superestime as imagens que vê. de qualquer maneira. portanto. fica comprometida com a escolha dos entrevistados. que essa não-linearidade varia de sessão para sessão. Mas essa influência se mistura com outros fatores (humor do diretor. Trata-se. jan-jun 2011 . A pergunta 6. Entretanto. “vício” de montagem.9 n.exatamente porque está vivendo uma experiência que não está restrita à narrativa em si. os próprios espectadores 108 VISUALIDADES. todos concordam que o fato de eles já terem conhecimento sobre o filme muda. Embora o diretor tenha explicitado que a reação da platéia pode alterar a sequência de imagens. As melhorias tecnológicas também estimulam cada vez mais experimentos com montagem e outros elementos “ao vivo”. Como mencionado antes. 93-111. Conclusão O interesse pelas mídias interativas aumenta cada vez mais com a expansão do uso da internet e com a chegada da TV digital. embora um entrevistado tenha afirmado que.1 p. em momentos. a forma como eles o recebem. segundo os conceitos de Primo. reflete o entrevistado D. todos sabiam de antemão o que seria exibido. o filme em si. apesar do contato diretor-público. o espectador pode influenciar no rumo da obra durante sua exibição. logo. Jacques et all. Glorianna. Oberhausen Film Festival. São Paulo: Itaú Cultural. A estética do filme. acreditando que a opinião soberana é a de Bruno Vianna. pdf> Acesso em: 18/10/2010.com/research/Fodel_ Live_Cinema. Conference Proceedings of IDATE Conference: Investing in the Digital Image Personal and Interactive Television.pdf > Acesso em: 20/10/2010. 2009.). DAVENPORT. 15ª edição. Narrative Guidance of Interactivity. Disponível em: <http://www. 2008. São Paulo: Papirus. Lisboa: Edições Texto & Grafia. BENJAMIN. 1001 Electronic Story Nights: Interactivity and the Language of Storytelling. René (org. Três décadas do vídeo brasileiro. Brian. essa pequena parcela de interatividade não diminui o projeto e sua proposta. DAVENPORT. GALYEAN. Paz e Terra. Tese (doutorado em Filosofia). Observa-se uma proposta crescente de abertura do processo de montagem na filmografia do diretor Bruno Vianna. Glorianna. p. leve a algum experimento mais voltado à participação efetiva e determinante do público. My storyteller knows me: the challenge of interactive narrative. 1993. Compreender o cinema e as imagens.edu/pubs/conference/1001Electronic. Arlindo (org. 2010. 1995. 109 Eleonora L. Vídeo e Cinema: rupturas. Referências Bibliográficas AUMONT. 2008. Glorianna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Julio. coutinho. já que a participação do espectador não era um de seus fundamentos e que a principal meta é a montagem live.). Ivana. que talvez no futuro. p. FODEL. Everyone’s Cinema: Towards the future of cinematics. Tinsley A. Entretanto. Live Cinema: Context and Liveness. Disponível em: <http://mf. 516-520. BRADLEY. BENTES.1 p. GARDIES.9 n. O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme ressaca . 1997. Walter. 2003. 1ª edição.mit. 6ª edição. Cambridge: Massachussets Institute of Technology. Teoria da Cultura de Massa. jan-jun 2011 pensam na questão com bastante ceticismo. 93-111. A Obra de arte na época de sua reprodutibilidade Técnica. MACHADO. 113-132 CORTÁZAR. O jogo da amarelinha.davidfodel.VISUALIDADES. Goiânia v.media. reações e hibridismo in Made in Brasil. David. DAVENPORT. metodista. 2004. Interação mediada por computador. 2001.net/~ajones/industrial/research/Docs/InteractiveNarrative. Cambridge: Massachussets Institute of Technology.etc. Denis Porto. Disponível em: <https://encipecom.br/engranaje/> Acesso em: 18/10/2010. Santos. Release do filme Ressaca para imprensa. 93-111.pdf> Acesso em: 18/10/2010. 2ª edição.XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.JONES. Goiânia v. 2007. Meaning and the Interactive Narrative: In the context of Object-Oriented Interactive Cinema. Lev.puc-rio.9 n. Disponível em: <http://ww.users. Disponível em: <www. Santos.br/mediawiki/images/0/00/GT3-_02-_Hipertexto_e_montagens-_ Denis_e_Elisabeth. Elizabeth Moraes. Bruno. Disponível em: <http://www. Alex. 110 VISUALIDADES. Intercom. PRIMO.razonypalabra. Depoimento.org.novuscom. RENÓ. SALA. LEW.solu. MAKELA. 2007.br/imago/site/narrativa/producao/india-final. 2007. Adrian. El engranaje expuesto: Una herramienta física para edición de películas en directo. RENÓ. Cinema interativo e seu potencial antiilusionista.pdf> Acesso em: 18/10/2010.net/~ajones/industrial/research/Docs/InterfaceNavigation. Denis Porto.pdf> Acesso em: 18/10/2010. VIANNA. Adrian. Creating a user interface for interactive environments: with a focus on interactive cinema. Disponível em: <http://www.rdc.novuscom. ressaca. Proceedings of the 2004 Conference on new interfaces for musical expression. Denis Porto.1 p.geral.net > Acesso em: 18/10/2010. Razon y palabra. A importância do cinema interativo na pós-modernidade. GONÇALVES. Live Cinema: Designing an instrument for cinema editing as a live performance. Disponível em: <http:// www. Hamamatsu. Michael.XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. JONES. Live-video: Influências e novas perspectivas do audiovisual em tempo-real. 2008. Maíra. Intercom. MARTINS. RENÓ. India Mara. Porto Alegre: Sulina. MANOVICH. Mia. Maria Luiza. jan-jun 2011 . Disponível em: <http://www. The practice of live cinema.pdf> Acesso em: 18/10/2010. The language of new media. Disponível em: <http://www.orgtext_PracticeOfLiveCinema.mx/N/N71/VARIA/20%20 PORTO_REVISADO. TEODORO. Narrativa audiovisual: uma possibilidade de interatividade na internet.pdf> Acesso em: 18/10/2010.pdf> Acesso em: 17/10/2010. com.9 n. Braga. 2005. Cinema e Tecnologia: novas interacções.br Eleonora Loner Coutinho é graduada em Cinema e Animação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Livro de Actas do 4º SOPCOM. coutinho. seus usos e a criação de significados a partir delas. O live cinema e o cinema interativo: uma análise a partir do filme ressaca 111 . Também escreve críticas cinematográficas. jan-jun 2011 VIVEIROS. publicadas no site da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul e no site do Festival Manuel Padeiro de Cinema e Animação. Eleonora L. Paulo. Goiânia v. Seu interesse em pesquisas engloba as novas tecnologias.1 p.VISUALIDADES. 93-111. Recebido em: 30/03/2011 Aceito em: 22/06/2011 ELEONOrA LONEr cOUTINHO eleonoraloner@yahoo. . Goiânia v. Palavras-chave: Intolerância. dirigido por D.9 n. Por meio da análise fílmica.W.W.1 p. buscase compreender o surgimento de movimentos racistas e intolerantes nos séculos XIX e XX. filme O nascimento de uma nação VISUALIDADES. 113-129.Griffith LILIAN crEPALDI DE OLIVEIrA Resumo O artigo tem como objetivo principal verificar como elementos de intolerância aparecem na narrativa do filme O Nascimento de Uma Nação. buscamos também avaliar como o cinema constrói e reproduz preconceitos numa dada sociedade. mitos.A mitologia da intolerância norte-americana a partir da perspectiva de D. Numa perspectiva mais abrangente. jan-jun 2011 113 . Griffith. The mythology of American intolerance from the perspective of D. we also aim to assess how the movie fabricates and reproduces prejudices in a given society. directed by D. movie. jan-jun 2011 . 113-129.Griffith LILIAN crEPALDI DE OLIVEIrA Abstract The article’s main objective is to verify how elements of intolerance appear in the narrative of the movie The Birth of a Nation.1 p.W. Through film analysis.9 n. Griffith. In a larger perspective.W. Goiânia v. Keywords: Intolerance. The Birth of a Nation 114 VISUALIDADES. we seek to understand the emergence of intolerant and racist movements in the nineteenth and twentieth centuries. myths. acreditamos que é mais produtivo analisar. nação. a narrativa cinematográfica. 113-129. é de interpretação incerta” (1992. “a linguagem do cinema revela-se ininteligível e. assim como qualquer outra fonte. o conjunto de ações ao longo da narrativa e o desenvolvimento das personagens. assim como as obras literárias.79). Assim. analisamos o filme segundo os conceitos descritos acima.VISUALIDADES. o problema de nossa análise surgiu da necessidade de conhecer como a sociedade americana é representada no filme O Nascimento de Uma Nação. jan-jun 2011 Introdução O cinema.) 115 . Para tanto. intolerância e racismo. discorremos brevemente sobre a importância do cinema e da narrativa como objeto de estudo. realizamos uma síntese da história contemporânea norte-americana. segundo conceitos como mito. Num segundo momento. Passível de inúmeras críticas. Desta forma. não tem ligação formal com os acontecimentos históricos e nem deve fidelidade aos mesmos. A mitologia da intolerância norte-americana a partir da perspectiva de (. em sua vertente racista. tanto o historiador como o público que assiste à obra deve pesar o que é recurso estilístico e o que é fato histórico. nos perguntamos: Como a intolerância. como a dos sonhos. de Oliveira. optamos por uma análise geral em detrimento da análise cena por cena. Dessa forma.1 p. p. é mostrada no filme? Pela duração do filme. Na primeira parte desse trabalho. Cinema e narrativa Para Ferro. Goiânia v. Dessa forma. delimita-se como objetivo secundário do artigo discorrer sobre como a linguagem fílmica apresenta ao espectador os atores e as movimentações sociais do período da Guerra Civil Americana. e suas articulações com temLilian c.. Por fim.9 n.. Ou seja: avaliar as concepções de mundo de quem produz e de quem assiste é tarefa primordial para se compreender a narrativa. assim como a narrativa escrita e o poema.. qualquer imagem tem possibilidade de leitura e contra-leitura.do longe espacial das terras estranhas. trabalha a palavra.) Ele (o leitor) é livre para interpretar a história como quiser. a imagem ganha dimensão de vida real. Porém. Assim. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. narrar não é apenas informar. no entanto. 1987. tendo em mente que o filme não está separado dos elementos sociais e que. De acordo com Ferro (1992). Apesar da linguagem cinematográfica não ser essencialmente narração. jan-jun 2011 . (. E. p. como também por psicanalistas e estudiosos de ciências humanas. o cinema como documento deve ser analisado de acordo com a intencionalidade do diretor/produtor e segundo o tempo histórico entre o emissor e o receptor. Dessa forma.. ou do longe temporal contido na tradição -. tem sido estudada não somente por historiadores. Se a arte da narrativa é hoje rara. 113-129. dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência.1 p. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa. A narrativa oral. Goiânia v. ela surpreende e inova quando deixa o leitor/espectador livre para interpretar 116 VISUALIDADES. que vinha de longe . ela precisa ser compreensível “em si e para si”. entendido como um meio de autorepresentação da sociedade. (BENJAMIN. a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio. Para Walter Benjamin: O saber. e quase tudo está a serviço da informação. e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação. enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso. Vale lembrar que o cinema está diretamente relacionado ao conceito de narrativa.9 n. valorizando seu aspecto polissêmico e dando abertura para uma leitura mais profunda e complexa. sinteticamente.202) Assim. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa. somos pobres em histórias surpreendentes.po/espaço. é indispensável que a informação seja plausível. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. o cinema como forma de expressão cultural é. Mas a informação. no cinema. incutem nos cidadãos um certo sentimento de superioridade. da historiadora Mary A. Contudo. como também nas relações sociais. A própria historiografia americana reforça esta ideia dos Estados Unidos como pre117 Lilian c. a autora discute como se dá a construção da identidade nacional. mais velha democracia e mais antiga constituição .) . a montagem do diretor substitui a palavra pelo encadeamento lógico das cenas e outros recursos. Assim. cada vez mais. sendo um povo “superior” aos demais. ressaltando a importância dos manuais escolares no reforço das crenças e na sua perpetuação ao longo das gerações. Dessa forma. Mary A. 113-129. o objetivo principal da autora é discutir o excepcionalismo norte-americano. Já na introdução da obra. os Estados Unidos teriam. A mitologia da intolerância norte-americana a partir da perspectiva de (. A ênfase dos discursos dos livros na velha tríade . é extremamente vasta e possui diversas abordagens e metodologias. a partir da Independência (1776). que tem em Hollywood sua maior expressão..1 p. de forma didática e objetiva. Junqueira (2001). Dessa maneira. intitulada Estados Unidos: a consolidação da nação. de Oliveira. Junqueira (2001) reforça a ideia da (re)construção da História Americana nas escolas públicas e de sua chegada até nós por intermédio da cultura média americana. espécie de projeto pedagógico baseado no ideal civilizatório das Luzes que coloca os americanos como o povo eleito. Num filme mudo.. formado um país e uma cultura hegemônica. A “invenção” da nação norte-americana A historiografia acerca da história norte-americana. várias pesquisas carecem de rigor científico e acabam romanceando fatos históricos em nome de dada ideologia. para realizarmos uma pequena síntese acerca da história da guerra civil americana. Goiânia v. jan-jun 2011 os fatos.VISUALIDADES. É por meio deste eficiente projeto pedagógico que os americanos crescem sob a égide de viverem na nação escolhida e de ser o povo escolhido (questão do excepcionalismo). especialmente sobre a Guerra Civil (1861-1865).primeira República.9 n. optamos por utilizar uma obra nacional. Muito além de um compêndio de informações acerca da História Norte-Americana. sobretudo com o Destino Manifesto. o que reforça o caráter maniqueísta do imaginário norte-americano. que será. que pode ser visto não somente nos discursos políticos. É também nos manuais que se definem quem são os heróis e os bandidos. reforçado ao longo dos anos. líderes carismáticos e pela cultura média do país. surge ainda no século XIX a ideia dos Estados Unidos como um mito fadado ao sucesso. Vale mencionar como se deu o processo de escolha destes pais fundadores: como seria possível representar todos os americanos se somente os peregrinos eram glorificados? Escolhendo heróis nascidos no sul e fazendo com que. Nesse contexto. a autora remonta ao período posterior ao processo de Independência norte-americano. Além da questão dos mitos norte-americanos. a guerra civil. em que cada vez mais é reforçada pela perpetuação da cultura pop americana. Num primeiro momento. que veem nestes heróis verdadeiros pais da nação. Junqueira (2001) também discute como se dá a criação e o reforço dos mitos fundadores da nação americana. o advento da moder118 VISUALIDADES. O processo de exclusão começa neste momento em que os peregrinos seriam os escolhidos de Deus e buscariam a construção de uma República Clássica na América.9 n. A ideia dos peregrinos e da pureza dos colonos que fugiram de perseguições religiosas na metrópole inglesa reforça este caráter heróico dos pais fundadores que. Dessa maneira. Para mostrar como esta ideia de pais fundadores da nação surgiu. jan-jun 2011 . passou-se a discutir os meios para se chegar a uma possível união. segundo a autora. surgiu a necessidade da criação de mitos e símbolos que fossem comuns a toda nação. a questão indígena e negra. Esta imagem de superioridade está presente até os dias de hoje. 113-129. quando a questão de como fazer a união das colônias foi debatida. Devido às inúmeras diversidades das colônias. surge também a figura do Mister President e do processo eleitoral norte-americano. os federalistas conseguem que a Constituição seja ratificada e surge a Federação. com a Convenção. Nesse período. houve uma total desunião. desta forma. são um dos principais responsáveis pelo mito de superioridade e dos EUA como a terra da grande promessa. a noção de povo eleito se estendesse aos demais norte-americanos. tão citados em discursos de chefes de nação.1 p.cursores da modernidade e irradiadores de tecnologia e cultura. os heróis foram escolhidos entre os personagens que participaram da Independência norte-americana já que. Num terceiro momento. Junqueira (2001) também aborda temas como a formação da nação. Confederação. assim como os peregrinos que fugiram da Inglaterra. quando federalistas (que propunham um governo central) e anti-federalistas (que propunham autonomia dos poderes locais) discutem qual seria a forma de governo ideal. Em seguida. era necessário um elemento identificador comum à nova nação. Goiânia v. ) 119 . a autora coloca a questão das tarifas de importação como mola propulsora da guerra. os enforcamentos coletivos de negros e a destruição de suas casas e bens por brancos armados eram bastante comuns. Assim. o sul desejava que fossem baixam para não prejudicar as exportações. Especialmente nas regiões em que a presença das autoridades federais não era tão forte. o resto do território vai sendo incorporado ao longo do tempo.VISUALIDADES. a questão dos negros vem à tona e surgem organizações racistas. o que depois culminará num desenvolvimento em diversos campos. 2001. jan-jun 2011 nidade e a Doutrina Monroe. Também o fim da guerra foi o espelho para mostrar o desenvolvimento técnico dos norte-americanos com a questão dos armamentos. com o intuito de purificar a nação e combater os indesejáveis e selvagens negros. A mitologia da intolerância norte-americana a partir da perspectiva de (. a autora ressalta o clima ideológico da necessidade de expansão. 113-129. foi um importante episódio na história norte-americana como reforçador de mitos como cowboys e da famosa dualidade americana de winner versus looser (vencedor versus perdedor).1 p. conforme o discursos majoritário sulista: Muitos brancos reagiram com violência contra os negros que procuravam viver e garantir sua liberdade. as chacinas de adultos e crianças. Especificamente sobre a guerra civil entre o norte da elite burguesa e o sul das grandes propriedades e do escravismo. Com o fim da guerra e a vitória do norte.. de Oliveira. Como a colonização se deu na parte litorânea dos Estados Unidos. Nesse sentido. p. proporcionado pela capacidade empreendedora do Lilian c. Para explicar a formação do país. Muitas vezes as justificativas apresentadas na época para essas e outras manifestações de ódio racial não passavam de indignação: ‘sentiam-se ofendidos com o atrevimento dos negros’.K.. Enquanto o Norte desejava que as tarifas fossem altas para estimular o desenvolvimento da produção interna. podemos citar o caso dos Apalaches. Como exemplos de expansão.9 n. os espancamentos.K. sempre fazendo relações com a construção do imaginário mítico.91). como a K. que não os tratavam com a mesma ‘deferência’ e submissão dos tempos da escravidão (JUNQUEIRA. visto como lugar de pureza e regeneração pelos transcendentalistas. Goiânia v. Também a conquista do Oeste. quando começa o massacre dos indígenas. a visão de progresso é simbolizada com a construção das ferrovias e com o arranque do desenvolvimento industrial a partir dos monopólios. a guerra aparece como motor para o progresso e necessária para acabar com o sul retrógrado. Até hoje.9 n. 1984). como locações abertas. é possível perceber as construções ideológicas do diretor. como também em versões da história americana. considerado um dos precursores do cinema clássico. Mudo e com legendas em inglês. Essa estrutura inaugurada por Griffith é utilizada até hoje em grande escala pelos cineastas ao redor do mundo. Em linhas gerais. Logo no início. provando a tese de que o mito se cria e se reforça no fazer da História. A crença de povo eleito e de superioridade moveu a sociedade americana na busca de união interna e desenvolvimento. de Thomas Dixon. Por fim. esta última ligada à tradição agrária.self-made man. a narrativa cinematográfica se inicia com a apresentação das duas famílias centrais da trama: uma do norte e uma do sul. a visão maniqueísta do mocinho e do bandido está presente no cotidiano dos norte-americanos.1 p. outra construção mítica norte-americana. entre várias outras. já exposto anteriormente. O Nascimento de Uma Nação é a primeira narrativa cinematográfica a mostrar técnicas inovadoras de filmagem e montagem. Como o povo “eleito”. jan-jun 2011 . tendo em vista que sua estrutura narrativa é linear e se baseia não somente em trajetórias de vida. Podemos até mesmo dizer que a narrativa é uma versão audiovisual do Destino Manifesto. campo/ contra-campo e o “enquanto isso” (ações paralelas). As construções míticas norte-americanas perpassam todo o discurso de Junqueira (2001) para explicar como se deu a construção da nação. “Muitos dos mitos forjados no século XIX permanecem por muito tempo como uma espécie de ‘bem simbólico’ da nação e podem ser utilizados para defender ou justificar esta ou aquela posição” (JUNQUEIRA. 113-129. Goiânia v. a autora aborda a Doutrina Monroe e a visão intervencionista sobre as outras nações do mundo. movimentos diversos de câmera. Baseado na obra literária The Clansman. que nos estimula a simpatizar mais com a 120 VISUALIDADES. Vale ressaltar que Hollywood é o espaço favorito para a construção mítica dessa história norte-americana em nome das ideologias. é missão dos norte-americanos prezar pelo desenvolvimento do resto do mundo. 2001. p.124). é de 1915 e possui 187 minutos. o filme O Nascimento da Nação pode ser classificado como um épico. plano americano (para diferenciar da interpretação teatral). O filme O Nascimento de uma nação e a intolerância O filme dirigido por David Wark Griffith (XAVIER. As cenas delicadas de Elsie tomando conta do ferido têm como objetivo despertar-nos grande simpatia pelo casal branco. jan-jun 2011 família sulista. Benjamin é ferido durante o combate e seu amigo Phil o leva a um hospital em Washington. filho de um político do norte. 113-129. Elsie. Nesse contexto. Após a apresentação dos núcleos da trama. Ao se recuperar e ser anistiado pelo próprio presidente Abraham Lincoln. Ao longo de toda a narrativa. se enfrentam numa batalha da Guerra Civil. a guerra é o elemento transformador não somente das relações sociais. Ambas as famílias gozam de prosperidade e respeitabilidade junto à comunidade local até que a guerra civil trará desorganização e caos. para conferir legitimidade aos acontecimentos mostrados na tela. como também pelos planos de câmera mostrando sua tensa expressão facial. uma novidade na época. Com o advento da guerra.VISUALIDADES. o drama particular da família sulista tornar-se-á um drama coletivo. Goiânia v. sobretudo. A cena em que Ben retorna a Piedmont e se vê frente à destruição dos bens da família é bastante emotiva. Diversos elementos das relações cotidianas também são apresentados ao espectador. os antigos amigos Phil Stoneman. o diretor utiliza documentos oficiais e periódicos da época. industrial e liberal) e. onde ele conhecerá a irmã de Phil. Griffith descreve o Sul como uma terra perfeita. É interessante notar que. que “não podia ficar melhor”. e a música orquestrada transmite uma forte carga de emoção. A mitologia da intolerância norte-americana a partir da perspectiva de (..) 121 . como também das ações políticas de ambas as famílias. e se apaixonará.. como também pela pureza das mocinhas brancas. os cuidados com as crianças e com a terra e a aparente indiferença para com os criados negros.1 p. não somente pela maior humanidade e solidariedade entre os membros da família. Somando-se a isso. não somente em vista da música dramática. de Oliveira. oriundo de uma tradicional família sulista e apelidado de Pequeno Coronel. dos Cameron (família do sul escravista e conservador). As cenas de conflito armado são filmadas em plano aberto. como a ligação entre pais e filhos. e o mocinho Benjamin Cameron. Ben volta ao sul para reencontrar a família e descobre que todo o patrimônio havia sido vendido em nome da causa da guerra. Não basta uma construção narrativa puramente autoral: é preciso reforçá-la com documentos do período para que o público entenda que é a Lilian c.9 n. mostra-se o cotidiano e as adversidades da vida dos Stoneman (família do norte abolicionista. os escravos haviam sido libertados e ganharam direito de voto. assim. usando violência e racismo como meios para provar a dita superioridade. a condição de submissão e agressão vivida pelos descendentes de africanos. enquanto os brancos proprietários observam admirados.. Fundada em 1868. 2001. os negros dominam a Câmara e aprovam leis que. em nome do bem-estar financeiro e econômico da nação.9 n. tendo em vista que o Vice-Governador. socorrer os sofredores e infelizes e. dentre outras coisas. por exemplo. as viúvas e órfãos de soldados confederados (JUNQUEIRA.verdade que está sendo contada. a vitória do Norte e a liberdade dos escravos. A organização definia-se como: [. Diante de tamanhas arbitrariedades. não podemos esquecer que o sistema escravista foi uma forma brutal de coerção dos escravos às imposições dos senhores.. justificando. Vale lembrar que as motivações para a fundação da KKK vão além da defesa do bem coletivo e adentram a esfera particular. Nesse contexto de aparente liberdade dos negros. Contudo. Humanidade. o mulato Silas Lynch. Após uma eleição fraudenta. é bastante verossímil e utiliza vasta documentação. a Ku Klux Klan. a KKK visa.90). 113-129. na tentativa de mostrar o quanto os negros eram felizes na condição de escravos. Dessa forma.] uma instituição de Cavalheirismo. injustiças e ultrajes dos sem-lei – violentos e brutais -. inicialmente. a KKK buscava garantir socorro aos sulistas derrotados e opunha-se à igualdade social e política dos negros.] cujos objetivos peculiares são [. Griffith mostra-os dançando e com expressões felizes. amedrontar os “bárbaros” 122 VISUALIDADES. Misericórdia e Patriotismo. permitem o casamento interracial.] proteger os fracos.. as ações mudam em ambos os lados – brancos e negros . Para tanto. os escravocratas sulistas não mediram esforços.. sobretudo.. Com o fim da guerra civil (1865). também gosta de Elsie. jan-jun 2011 . inocentes e indefesos contra as indignidades. o mocinho Ben decide fundar uma organização para salvar os costumes do sul e evitar os abusos dos negros. acudir os injuriados e oprimidos. [.na narrativa cinematográfica..1 p. P. É preciso lembrar que. Goiânia v. Griffith descreve a Klan como “a organização que salvou o Sul da anarquia negra”. a Ku Klux Kan surge como uma espécie de fatalidade. A reconstituição do assassinato de Lincoln. uma engenhosidade dos indivíduos brancos sulistas para salvar a moral e os bons costumes da corrupção negra que invadira o país. . A mitologia da intolerância norte-americana a partir da perspectiva de (. Anderson conclui que a nação é o imaginário que se constrói a partir das elites.9 n. ou seja. onde os distintos tempos se cruzariam por meio da utilização de elementos comuns (como os mitos).. Assim. p.P. Contudo.14).1 p. o historiador John Hope Franklin. a ação da KKK visa o estabelecimento de uma nação W. benéfica para o momento atual. A partir da afirmação “a história está na mitologia e a mitologia está na história” (1996. (White Angle-Saxon Protestant). o lugar da liberdade e do livre professar da religião. por sua vez. Numa perspectiva crítica dos pais fundadores. Provêm direta e logicamente do legado que os pais fundadores outorgaram aos Estados Unidos contemporâneos” (1999. até mesmo.) 123 . que se valem do poder e da exploração para “criar” um projeto de nação. p.VISUALIDADES. a nação é reinventada a partir de um mito fundador e este mito torna-se ideologia. a discriminação e a degradação raciais de modo algum são acidentes inesperados na história desta nação. como também de mostrar a reinvenção mítica da nação a partir da força e persistência branca. afirma que “a segregação. vale ressaltar que as dimensões identitárias são históricas e se reconstroem não somente a partir das elites.197). p. ou seja. reconhece-se Lilian c. uma relação mais dialética entre as diferentes culturas. O mito fundador é a saída dos pais fundadores da Europa e sua ida aos Estados Unidos. Ao estudar a diversidade cultural na Indonésia. A nação estaria relacionada ao elo identitário e. num ensaio intitulado O legado dos Pais fundadores. as cenas que mostram as mulheres sulistas produzindo uniformes e alimentando os membros da KKK constituem-se numa tentativa do diretor não somente de conferir legitimidade ao movimento insurgente. jan-jun 2011 que prejudicavam o status quo e se mostra bastante inofensiva e. Contudo.48). é passível de apropriações ideológicas. de Oliveira.A.S. Assim. Goiânia v. 113-129. mitos em repouso por alguns anos podem vir à tona na tentativa de explicar certos acontecimentos. Tal processo de recuperação e recriação mítica dar-se-ia através do fenômeno da transculturação. a nova criação mítica terá significados também distintos. Franco Júnior desenvolve sua ideia de que o mito é retomado e. como também utilizando elementos da chamada cultura popular. recriado de acordo com as necessidades do tempo vivido. uma espécie de Terra Prometida. Anderson define nação como “uma comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana” (1989. Nesse contexto. sendo inventada. Pela existência de distintas culturas. com poder recém-adquirido. jan-jun 2011 . sujeita a flutuações decorrentes das condições históricas permanentes” (FRANCO JUNIOR. o tempo atual dá espaço ao tempo do sagrado já que temos a necessidade constante de resgatar alguns mitos na tentativa de explicar os fenômenos do hoje. fazem bagunça numa sessão parlamentar. a todos os níveis. neste contexto. Assim.47). um tempo que acalmaria o presente. daí a larga permanência de um relato mítico. Os grandes 124 VISUALIDADES. contradizendo a estabilidade branca. a repetição de um arquétipo: ele é contíguo e continua-o. no homem.331). 113-129. pois. p. Atos como se embebedar durante as sessões ou colocar os pés descalços sobre as bancadas são mostrados como selvageria na narrativa. Contudo. Segundo Eliade (1998. Goiânia v. Frequentemente. Dessa forma. Na narrativa de Griffith. vale ressaltar que as conquistas dos negros com o fim da Guerra Civil tiveram duração breve e o conservadorismo se manteve nos estados do sul.a utilização mítica anterior. 1996.316) “um ritual não se limita a repetir o ritual precedente. expressão de valores fortemente enraizados. Busca-se.9 n. o mito “é expressão de longa duração. É por meio dos rituais que o mito torna-se presente. ele próprio.48) “mito não é a história dos eventos políticos ou econômicos. sendo os brancos os legítimos vitoriosos da nação por conseguirem tirar os negros do poder e restabelecer a paz. “Encontramos. contudo. enfim. p. p. recriam a noção de pais fundadores na nação para pregar a supremacia branca. busca-se um tempo mítico que possa aliviar os sofrimentos atuais.que é. A desmoralização dos negros já ocorrera durante toda a narrativa e fora ressaltada quando uma das filhas dos Cameron saltara de um penhasco para não ser estuprada ou quando os negros. Permanência. mas história da sensibilidade coletiva”. mas recria-se de acordo com o novo contexto vivido. p. apesar do mesmo estar inserido num contexto a-histórico por ser recriado ao longo dos tempos. esta é a função da Klan. Ou seja: a insatisfação com os acontecimentos do presente faz com que o homem sonhe em viver num tempo que nem ele mesmo sabe que existiu. a narrativa de O Nascimento de Uma Nação tem como função mítica mostrar o conflito entre negros e brancos e a consequente superioridade dos últimos. periodicamente ou não”. Para Franco Júnior (1996. Os integrantes da KKK. Não se busca explicações no mundo terreno. o mesmo desejo de abolir o tempo profano e de viver no tempo sagrado” (ELIADE.1 p. 1998. entre tantas outras. o desfecho é o único possível para a construção racista de Griffith: os mocinhos brancos salvam a mocinha casta de ser estuprada pelos bandidos negros. a cena apresenta diversos elementos inovadores que são utilizados até hoje pelos cineastas.VISUALIDADES. 113-129.) 125 . diz a doce Elsie que construirá um Império Negro e que ela estará a seu lado. a aparente simpatia dos Stoneman para com os negros se daria. como closes nos rostos raivosos dos negros.. nota-se. Somando-se a isso.87). na violência moral cotidiana e na crença numa superioridade em relação ao outro. ao passo que as mulheres brancas fazem resistência. porque Austin Stoneman tinha um caso com sua subalterna mulata. novamente. Uma das cenas mais interessantes para a análise é a perseguição sofrida pela mocinha sulista. Para essa pretensa recriação da nação. além de maltratar animais indefesos. também são interessantes as cenas que mostram a crise econômica do sul durante a guerra. Goiânia v.1 p. Este viés negativo em relação ao negro é latente na figura do vice-governador. que. objetos da história. segundo o diretor. Durante a crise. Em Lilian c. a cena reforça a imagem da branca pura e imaculada tentando se defender do negro corrompido. com os negros desestabilizando estruturas e provocando o caos. ideologicamente. takes abertos para mostrar as especificidades da locação. p. que são atores brancos maquiados. A mitologia da intolerância norte-americana a partir da perspectiva de (. Obviamente. a intenção do diretor para que simpatizemos com a família sulista. violentos e manipuláveis. de maneira simplista. o maior vilão da narrativa.9 n. Tecnicamente. tida como um pilar de humanidade e força. Para Bauman: o racismo destaca-se por um costume de que é parte integrante e que racionaliza: costume que combina estratégias de arquitetura e jardinagem com a da medicina a serviço da construção de uma ordem social artificial.. São. movimentos de câmera arrojados. pelo corte de elementos da realidade presente que nem se adequam à realidade perfeita visada nem podem ser mudados para se adequarem (1998. pode-se inferir que o racismo se impõe nas relações interpessoais próximas. sequências rápidas dos cavalos galopando. os negros. intensamente presentes nos Estados Unidos até a década de 1960. são mostrados como ignorantes. Assim. Contudo. Durante o filme. inclusive tendo voz ativa na elaboração de códigos de leis intolerantes que pregavam a segregação racial. de Oliveira. jan-jun 2011 proprietários de terras se reergueram e mantiveram-se no poder político. O final da narrativa segue o intuito racista da construção de Griffith: os heróis brancos e puros da KKK salvam a já tão sofrida família sulista do ataque de um exército negro. “o que está em jogo é nada menos que a relação a ser estabelecida entre o universal e o histórico. bem lá onde ela se forma. Para o autor. buscando a origem da chamada intolerância selvagem. não somente na comunidade científica como também na sociedade civil.9 n. “Este é o nosso desafio. Muitas ideias simplistas foram aceitas durante anos. Goiânia v. p. Em linhas gerais. Inventa-se uma tradição: a dos homens brancos descendentes dos pais peregrinos a serviço da ideologia racista. que funda a Ku Klux Klan para salvar o sul da corrupção moral dos negros.19). são os sujeitos da narrativa.1 p. Vale dizer que o filme foi o primeiro a ultrapassar os US$ 10 milhões de bilheteria e a ser exibido na Casa Branca. a construção de Griffith tem como objetivos glorificar o racismo e pregar a dominação branca. Cavar. o importante não é a intolerância em si. o caminho para a diminuição de fenômenos ligados à intolerância é compreender a raiz das práticas culturais. Considerações finais Explicar a manifestação de pensamentos tão radicais como a intolerância ou o racismo é tarefa extremamente difícil até para os mais renomados estudiosos da área. o pensamento intolerante torna-se prejudicial quando se transforma em ação. Homens da ação. na luta contra a intolerância” (2000. Apesar de sua proibição em alguns estados e o boicote por diversas empresas. mas sim quando os indivíduos realizam práticas sociais “legitimadas” nas diferenças (quase sempre “superioridade”) em relação ao outro.contrapartida. fazendo com o espectador torça por um final feliz do mocinho. os brancos representam poder. Para Umberto Eco. sobretudo. jan-jun 2011 . Saber regredir até o fundo obscuro da intolerância selvagem. conhecimento e são imbuídos dos mais louváveis valores. Pen126 VISUALIDADES. ao negro selvagem e mau caráter.20). cavar até encontrála. antes que se torne objeto de tratados eruditos” (2000. muitos afirmam que sua exibição nos Estados Unidos foi responsável pelo recrudescimento de movimentos racistas como a KKK. demonstrando que a intolerância torna-se perigosa quando se transmuta em prática social. e da reconstrução após a guerra. O padrão de ideologia que nos é colocado é o drama dos brancos frente à guerra e. p. Desta forma. Já para Ricceur. 113-129. com os Carecas do ABC. analisando o racismo brasileiro. bombardeando-os com a desculpa de eliminar o mal do mundo. ele (o racismo) não havia sido sepultado. hoje. Goiânia v. p.VISUALIDADES.. Entretanto. 113-129. latinos. vale lembrar que pensamentos racistas ainda estão presentes na sociedade contemporânea e. Para Sérgio Adorno. distintos segmentos da sociedade reagem com intolerância” (1996. ou seja. De acordo com Pereira: (. no Brasil. Também os movimentos neonazistas. uma prova disso. O fato é que a sociedade é treinada para tolerar o que deveria ser intolerável.1 p. é o crescimento de governos de extremadireita em países europeus. igrejas cristãs criadas para difundir o racismo e louvar líderes como Hitler. “a cordialidade existe desde que os negros se mantenham segregados.) 127 . jan-jun 2011 samentos romanceados hoje são bastante combatidos por serem imbuídos de anacronismos e carecerem de veracidade histórica. pois quando o reivindicam. um candidato fascista quase se tornou presidente. Lilian c. Até mesmo na França. Contudo. anestesiado durante um quinhão de tempo para. de Oliveira. tradicionalmente considerado pacífico. ganham adeptos ao redor do mundo e.) ao contrário do que pensava toda uma geração de otimistas e ingênuos. sociais e culturais e não podem ser explicados de forma simplista. p. deficientes e muçulmanos ampliaram o leque de perseguição dos fanáticos. buscar explicações que contestem (ou acalmem) o nosso subjetivo presente. apenas. desde que não reivindiquem o direito a ter direitos. isolados. Nos Estados Unidos. chamada berço dos direitos do homem. Não nos cabe julgar a legitimidade ou não de tais fenômenos históricos..258). o dito bode expiatório desses grupos não é mais preferencialmente o judeu: negros. Traços de intolerância e racismo existem até mesmo em governantes que pretendem dominar economicamente outros países.. como críticos da memória coletiva. A mitologia da intolerância norte-americana a partir da perspectiva de (. sabe-se que a ascensão e a permanência de grupos intolerantes como a KKK advêm de inúmeros fenômenos políticos. Também a grande paixão pelo tema do racismo fez com que se produzissem mais romances e filmes que trabalhos científicos dignos de credibilidade. existem.9 n. 258). amplamente difundidos com a Internet. Atualmente. até mesmo. inclusive.. Permanecera. reaparecer com os mesmos e velhos ingredientes tradicionais condicionados pelas configurações históricas da atualidade (1996. Resta-nos. Raça e diversidade. 3. História das Religiões. 1998. Mary Anne.W. Umberto. Cinema e História. XAVIER. Trad. RICCEUR. Paul. Lilia Moritz & QUEIROZ. arte e política. Foro Internacional sobre a intolerância. Definições léxicas. 2001. jan-jun 2011 . 2000. FERRO. PEREIRA. Eloá Jacobina. FRANKLIN. John Hope. Modernidade e Holocausto. Violência e racismo: discriminação no acesso à justiça penal. março/1997.). ANDERSON. IN: Intolerância. JUNQUEIRA. BAUMAN. 1998. Ismail. São Paulo: Contexto. São Paulo: Edusp. 1996. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Unesco. Raça e diversidade. Recebido em: 17/03/11 Aceito em: 01/06/11 128 VISUALIDADES. Unesco. Eloá Jacobina. BENJAMIN. Considerações sobre a obra de Nikolai leskov. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. João Baptista Borges. São Paulo: Brasiliense. São Paulo: Edusp. Rio de Janeiro: Rocco. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. São Paulo: Ática.Referências bibliográficas ADORNO.9 n. Marc. 1987. 1992. Goiânia v. 1989. Trad. Hilário. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. IN: SCHWARCZ. Walter. Benedict. 1996. Renato da Silva (orgs. Zygmunt. 1999. ELIADE.). A Eva Barbada: ensaios de mitologia medieval. O retorno do racismo. Lilia Moritz & QUEIROZ. O narrador. ECO. FRANCO JÚNIOR. março/1997. São Paulo: Martins Fontes. IN: SCHWARCZ. Sorbonne. IN: Intolerância. Raça e História: ensaios selecionados (1938-1988). Griffith. São Paulo: Brasiliense. Sérgio. Etapa atual do pensamento sobre a intolerância. 2000. Estados Unidos: a consolidação da nação. Foro Internacional sobre a intolerância. 113-129. Renato da Silva (orgs. São Paulo: Edusp.ed. 1984. Nação e consciência nacional. In: Magia e técnica. Sorbonne. Mircea. 1996. D.1 p. movimentos sociais e jornalismo cultural. Goiânia v.. de Oliveira.VISUALIDADES.) 129 . É professora da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM-SP). 113-129.1 p.br Doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.9 n. jan-jun 2011 LILIAN crEPALDI DE OLIVEIrA liliancrepaldi@uol.. identidades. Como pesquisadora. dedica-se aos temas: comunicação e cultura. bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela UMESP e bacharel e licenciada em História pela USP. mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP.com. Lilian c. A mitologia da intolerância norte-americana a partir da perspectiva de (. . 9 n. Apresenta levantamento bibliográfico a respeito do nascimento do gótico na cultura européia e o desenvolvimento da literatura gótica. Goiânia v. A partir da análise de conteúdo do filme. recorte temporal. personagens e narrativa cinematográfica. literatura VISUALIDADES. 131-147 .1 p. cenário.A construção da tragédia gótica em Drácula de Bram Stoker crISTIANE PErPÉTUO DE SOUZA SILVA ALExANDrE MArTINS SOArES Resumo Este artigo apresenta os elementos que fazem referência ao gênero literário do terror gótico no filme Drácula de Bram Stoker (1992). narrativa e personagens. o artigo aponta como as características da tragédia gótica foram reproduzidas pelo cineasta. considerando cenário. 2011 131 . considerando recorte temporal. terror gótico. de Francis Ford Coppola. jan-jun. Palavras-chave: Cinema. Starting from the analysis of content of the movie. Goiânia v. considering temporary cutting. Keywords: Movies. characters and narrative. the article appears as the characteristics of the Gothic tragedy they were reproduced by the film director. temporary cutting. narrative and characters.9 n. considering scenery.1 p. settings. gothic terror. jan-jun 2011 . 131-147. literature 132 VISUALIDADES. It presents bibliographical rising regarding the Goth’s birth in the European culture and the development of the Gothic literature. of Francis Ford Coppola.The Construction of the Gothic tragedy in Bram Stoker’s Dracula crISTIANE PErPÉTUO DE SOUZA SILVA ALExANDrE MArTINS SOArES Abstract This article presents the elements that make reference to the literary genre of the Gothic terror in the movie Bram Stoker’s Dracula (1992). A construção da tragédia gótica em Drácula de Bram Stoker . que trouxeram seu idioma e arquitetura.1 p. a cultura viking era mais primitiva. um dos povos que invadiram a Grã-Bretanha. Vindos do continente. artes e valorização da razão. sujeitos a qualquer invasão. Dois séculos depois de sua chegada à Grã-Bretanha. 131-147. que passou a construir templos 133 cristiane Silva e Alexandre Soares. a cultura gótica encontrou na literatura seu principal meio de expressão. a arquitetura gótica foi muito bem aceita pela igreja. os chamados vikings se converteram ao Cristianismo. jan-jun 2011 A literatura gótica Segundo afirma Aparecido Donizete Rossi (2008). mesmo com a conversão. além de tomarem parte da França e da Alemanha.C. povos nômades e guerreiros. Burgess (2001) afirma que. esses povos não abandonaram suas crenças pagãs. Anthony Burgess (2001) explica que em meados de VI d. uma das principais características desses povos era a capacidade de assimilarem rapidamente a cultura das regiões que habitavam.VISUALIDADES. o território da GrãBretanha ainda era governado pelos romanos. com a decadência do Império Romano. E foi o que ocorreu quase simultaneamente à saída dos colonos. os bretões foram deixados à própria sorte. a etimologia da palavra gótico vem da arquitetura dos godos. Ainda de acordo com o autor. os vândalos e godos invadiram as Ilhas Britânicas. que primava pela filosofia. De acordo com Rossi (2008). Com a saída dos romanos. arcos e gárgulas (estátuas de pedra monstruosas colocadas nos quatro cantos dos edifícios para escoar a água e afastar os maus espíritos). acostumados à escuridão das terras nórdicas.9 n. cúpulas. Em oposição à cultura greco-romana. Entre as características de suas construções estavam as torres pontiagudas. Goiânia v. Conforme Jane Guimarães Felizardo e Alexander Meireles da Silva (2008). Suas origens remetem às do próprio continente europeu. “O gótico explora os limites humanos no 134 VISUALIDADES. no resgate dos temores do ser humano: o horror. 131-147. Sandra Guardini Vasconcelos (apud ROSSI. em oposição ao pensamento iluminista. a insanidade. No entanto. o sobrenatural. Goiânia v. (ROSSI. onde o herói godo que dá nome ao poema trava uma batalha violenta contra o monstro Grendel. governo. jan-jun 2011 . bastante produtivos para esta corrente literária em especial. onde toda a subjetividade passou a ser questionada. Se o Iluminismo negava o sujeito e a subjetividade. As religiões foram criticadas e as literaturas se voltaram para a Grécia e a Roma Antigas. uma onda de racionalidade tomou conta da França e se espalhou por todo o continente europeu. explica que “reação aos mitos iluministas. seres mágicos e/ou monstruosos. família) e da própria natureza humana. dominada pela cor branca e as colunas e arcos gregos. o surgimento deste gênero e literário e outros contemporâneos a ele podem ser relacionados a momentos de incerteza política.com as mesmas características.9 n. 2008. Segundo Rossi (2008). Soares (2008) reforça que a transgressão está no centro da literatura gótica desde sua origem. a chegada do Iluminismo dissolveu o jogo de oposição luz/sombra que existia até então em relação às culturas gótica e romana. No cerne do Iluminismo se encontra o conceito de razão. na segunda metade do século XVIII. primeiro texto escrito na língua inglesa. A autora acredita que os romances góticos. A literatura gótica surgiu na Inglaterra. onde tudo pode ser explicado por meio da lógica. era ali que o gótico encontrava sua matéria prima. a morte. 63-64). como em Beowulf (séc. p. ao contrário da arquitetura romana. às narrativas de progresso e de mudança revolucionária por meio da razão. o gótico surge para perturbar a superfície calma do realismo e encenar os medos e temores que rondavam a nascente sociedade burguesa”. foram palcos de acontecimentos que mudaram a ordem mundial. Os séculos XVIII e XIX. Carla Marina Soares (2008) analisa o contexto histórico do nascimento da literatura gótica. 61). abandonados. a noite. religiosa e cultural. p. Rossi (2008) chama atenção para o fato de o imaginário inglês sempre ter sido povoado de estórias fantásticas. VIII). eram associados a valores democráticos e revolucionários. como a Revolução Francesa (1789-1799). 2008. que revelavam a desintegração de valores morais e individuais. tudo isso em cenários arcaicos. expressando austeridade e os princípios subjetivos que pautavam a religião. Para ela.1 p. O gótico refletia a insegurança do homem a respeito das instituições (igreja. essa obra literária ditaria todas as principais características do gótico. punindo os pecadores. que não quer se casar com aquele que seria seu sogro. p. Goiânia v. o medo. A mucristiane Silva e Alexandre Soares.VISUALIDADES. 16). a Espanha e países da Europa central. o gótico e o fantástico seriam “veículos para a reconciliação do homem com os valores de seu tempo. incapaz de enfrentar o verdadeiro motivo do castigo que afligiu a família. A construção da tragédia gótica em Drácula de Bram Stoker 135 . mas poderia ser também prisões. além de influenciar todos os escritores que se aventuraram posteriormente no gênero. 2008.1 p. 2008. Essa passagem da início à maldição que percorreria a família por gerações. 2008. uma espécie de clamor por seu restabelecimento. Manfredo enlouquece em busca de um culpado pela morte do filho. por inicialmente se negar a realizar o casamento) (ROSSI. segundo Soares (2008).9 n. através da encenação excessiva e violenta das consequências sua quebra ou deturpação” (SOARES. 131-147. Um exemplo dado pela autora é a morte macabra do vilão de The Monk. Além disso. O livro conta a história do príncipe Manfredo. A função das personagens femininas nos romances góticos é bastante específico. Muitos autores localizaram suas histórias na Idade Média ou em terras distantes. p. o jovem é atingido por um elmo gigante que surge flutuando sobre o castelo. em 1746. florestas ou cemitérios). como analisa Soares (2008). Rossi (2008) explica que O Castelo de Otranto estabelece todos os elementos característicos da literatura gótica: um espaço insólito (no caso o castelo. o terror e o horror se revelam motivados por crimes contra a virtude (a usurpação do castelo por Manfredo e seu posterior casamento iníquo com a jovem que deveria ter sido sua nora) e são. O Castelo de Otranto é considerado o primeiro romance gótico. de forma tão trágica quanto estranha: no dia de seu casamento. 66). sua ganância. jan-jun 2011 campo psicológico utilizando o excesso como forma de despertar consciências e sensibilidades” (SOARES. p. Nas palavras da autora. A transgressão e o pecado implicam na revelação do castigo. o gótico procura o equilíbrio revelando o caos. de Otranto. 2008). Escrito por Horace Walpole. por isso. normalmente estrangeiro (que é sempre exótico e desconhecido). resultado da quebra dos limites aceitáveis de comportamentos e desejos (Soares. Conrado. e do padre. a história se passa na Idade Média (característica temporal do gênero. Assim. 19). diretamente mencionada ou insinuada pelo espaço). Para Rossi (2008). Há também a perseguição (de Isabela. Vale ressaltar que a encenação desses excessos nos romances góticos sempre se dá em uma época remota. como a Itália. Ele perde seu único herdeiro. vilã. A vilã é uma mente criminosa. resultou na figura mais emblemática do vampiro. em que as sociedades contemporâneas ocupam um lugar central. que lhe permite fundir aspectos fantásticos com outros de carácter realista. Esta característica acrescenta ao gótico uma dimensão de proximidade. de Oscar Wilde. a heroína perseguida nestas narrativas. de 1818. como para a interferência ainda inexplicada do sobrenatural (SOARES.lher gótica é heroína. As histórias geram-se em ambientes familiares. jan-jun 2011 . Assim é a Isabela de O Castelo de Otranto. A chegada do século XIX trouxe mudanças nas temáticas dos romances góticos e na maneira como o sobrenatural seria trabalhado na narrativa. como em Frankenstein. a perseguidora. realistas. de Bram Stoker. ou oscila entre as duas definições. A exploração científica abriu caminho para novas perturbações. na exploração de contextos humanos. que geralmente usa suas armas de sedução para alcançar seus objetivos (Soares. A última aparição do terror gótico no século XIX na Inglaterra seria Drácula. oferecendo espaço tanto para explicações racionais dos acontecimentos. Sybil Vane. o homem estava em busca de respostas sobre seus questionamentos mais profundos.9 n. passando a explorar os lugares contemporâneos. vítima do ódio ou do desejo de outro. ao contrário dos outros romances góticos. Outro aspecto importante é que as histórias abandonaram. A persecuted maiden. o mal é exterior. até praticamente desaparecer durante a Era Vitoriana. A família e a sociedade estão agora na génese do horror e do medo. o romance de Mary Shelley é uma das últimas obras góticas publicadas antes de um hiato que durou até 1890. vistas do ponto de vista da sua incongruência e da incapacidade individual para funcionar dentro delas. posteriormente. Goiânia v. 2008. Rossi explica que o gênero começou a cair no esquecimento a partir de 1820.1 p. é muitas vezes frágil. com a ciência pondo à prova os valores humanos fundamentais. 2008). em parte. Soares (2008) explica que naquele período. 131-147. de Drácula. Segundo Rossi (2008). A obra epistolar produzida após uma longa pesquisa do autor sobre a vida do nobre Vlad III. as jovens Mina Murray e Lucy Westenra. Nenhum 136 VISUALIDADES. o Empalador. os cenários medievais. com a primeira publicação de O Retrato de Dorian Gray. segundo Leslie Fiedler – apud Soares. Stephen King (1989) destaca que em Drácula. p. 20). de O Retrato de Dorian Gray (1890) e. p. 131-147. como os turcos e os magiares. Deve ter cristiane Silva e Alexandre Soares. conduz um namoro decoroso e dentro dos padrões com aquele a quem está prometida [. 1989. para a sociedade moralista do final do século XIX. uma Lucy cada vez mais pálida. O conde Drácula não vai a Londres por conta de algum ato de maldade cometido por algum mortal. Análise do filme Drácula de Bram Stoker Drácula de Bram Stoker foi produzido e dirigido por Francis Ford Coppola. o conceito de mal exterior serve para amenizar a situação. Goiânia v.1 p. da Universidade de Budapeste. com sua sedução sombria e sanguinária” (KING.. À noite. Harker não fez nada para merecer ser aprisionado no castelo do vampiro. transformando-se em vampira e encontrando seu fim nas mãos do próprio noivo.9 n. mas a responsabilidade não é dele. “De dia. Depois de ser seduzido. Fred Fuchs e Charles Mulvehill. Mais adiante. pelos meios existentes. acrescentando dois elementos positivos para o desenvolvimento do enredo: uma origem exata para o conde Drácula e a humanização do vampiro. O mesmo acontece com Lucy. a descrição que Harker faz do encontro com as vampiras é de cunho sexual e. e a jovem Lucy Westenra também era igualmente isenta de culpa para ter sido atacada pelo morto-vivo no cemitério de Whitby.]. Pedi a meu amigo Arminius. chamado “o Empalador”. consegui descobrir o que fora o monstro.VISUALIDADES. ligando-o ao nobre Vlad III. e indicando que seus poderes sobrenaturais viriam de um pacto com o demônio. o professor Van Helsing faz um levantamento acerca da procedência do vampiro. que me fizesse um resumo da vida do vampiro e. No romance de Stoker. mas perfeitamente linda. Harker está prestes a ser atacado pelas vampiras.. Segundo o autor. que fica fora de si depois de ser atacada por Drácula. A construção da tragédia gótica em Drácula de Bram Stoker 137 . jan-jun 2011 dos heróis do livro cometeu algum tipo de transgressão que merecesse castigo. já que muito dela vem de uma perversão sexual. o conde explica sua origem relatando batalhas travadas na Europa Central contra os povos que tentaram invadir o território. 71). Jonathan Harker é atacado pelas noivas do Conde que vivem com ele no castelo. O roteirista James V. ela farreia num abandono dionisíaco. King (1989) acredita que a época em que Stoker escreveu o livro é que ditou que a maldade de Drácula deveria vir de fora. Hart procurou ser o mais fiel possível ao romance de Bram Stoker. p. uma teoria para explicar o “Céu” de onde ela despenca. embora de quando em vez alguns de seus descendentes fossem acusados por seus contemporâneos de terem pactos com o diabo (STOKER. Para se vingarem da derrota. já que as nuvens estão muito baixas. Com a invasão dos turcos. Elisabeta afastouse da presença de Deus. Arminius disse que os Dráculas constituíram grande e nobre estirpe.. deixando a esposa Elisabeta (Winona Ryder) em segurança em seu castelo. retirando sua força do sangue. O nobre jura vingar a morte da amada através dos séculos. É sangue que jorra da cruz de pedra que ele atinge com um golpe de espada. mas. uma afronta a Deus. a crença da santidade pela vida faz com que o suicídio seja considerado um crime. em referência às Cruzadas cristãs.sido aquele Vlad aka Drácula. Drácula revolta-se contra sua fé. a mudança para Londres e os atos ali praticados por ele ainda não encontram justificativa que não seja a maldade pura e simples. Goiânia v. A ordem à qual o conde pertence jurou defender a Cruz. Coppola e Hart resgataram do romance original a ordem dos Draculea (como é chamada a estirpe do conde no filme) e a luta contra os turcos. Nos filmes anteriores ao de Coppola. Tomada pela dor. a impressão que se tem é que ela mergulha do próprio céu em direção ao rio. posicionando Vlad com um herói injustiçado. No Cristianismo. O pacto é apontado como razão da imortalidade e dos outros poderes do vampiro. O prólogo de Drácula de Bram Stoker já constitui uma pequena tragédia gótica. Ao saber do castigo de Elisabeta. como se fosse um “anjo caído”.1 p. o que já coloca o futuro vampiro “ao lado do bem”. ela salta da torre do castelo para o rio. sobre o grande rio na própria fronteira da Turquia [. tem início a maldição. 131-147. Nesta cena. Drácula (Gary Oldman) lidera um exército para combater os inimigos da cristandade.9 n. ansioso por encontrar a jovem. Ao beber a taça. Saltando para a morte. mas ela está morta. Assim. dos anjos e das velas da capela onde a cena se passa. a origem de Drácula seria nebulosa ou até ignorada. Depois de uma sangrenta batalha. Ele enche uma taça com este sangue e diz “O sangue é a vida e ele será meu”. Praticamente todos os elementos 138 VISUALIDADES.]. a alma de Elisabeta foi condenada e não pôde ser recebida no Paraíso.. jan-jun 2011 . 2002. os turcos fazem chegar às mãos de Elisabeta uma carta informando falsamente que Drácula havia morrido em batalha. 269-270). o conde sai vitorioso e retorna ao lar. que se tornou famoso lutando contra os turcos. Drácula de Bram Stoker é um romance. No entanto o filme não exclui a maldade do vampiro.1 p. como se fosse um registro histórico verdadeiro. desejo. A construção da tragédia gótica em Drácula de Bram Stoker 139 . Mina Murray. recortes de jornais. Conhecemos o delirante Renfield. a amiga dela. 131-147. Temos as cartas e anotações de Jonathan (Keanu Reeves) e Mina (Winona Ryder). são definidas as personalidades de Jonathan Harker. No filme. em 1462). Como romance epistolar. o americano Quincey P. jan-jun 2011 de um romance do gênero sistematizados por Rossi (2008) e Soares (2008) estão ali: o espaço insólito (a Transilvânia. claro. que acaba tornando-se vítima da punição destinada ao marido). A própria tagline do filme. como age por amor. são pelo menos compreensíveis. Jack Seward (Richard E. “Deixo aqui meu cristiane Silva e Alexandre Soares. o sobrenatural religioso (a condenação da alma de Elisabeta. ora como vilão. Duas personagens sempre aparecem na terceira pessoa. como será explicitado na análise dos personagens. toda a narrativa do livro de Stoker é construída através de diários. Dotado de sentimentos. Há o predomínio da primeira pessoa do singular por causa dos diários. Tornando a tragédia do vampiro conhecida do expectador. A narrativa de Drácula de Bram Stoker procurou seguir a mesma linha da obra original. o conde é humanizado. Antes mesmo de ser um filme de terror. com o noivo Arthur Holmwood. “O amor nunca morre”. no período medieval (mais precisamente no final da Idade Média. cartas. o psiquiatra John “Jack” Seward e o professor Abraham Van Helsing.VISUALIDADES. Ora Drácula aparece como herói romântico. sua noiva. Morris. medo e repulsa se confundem e se misturam. O vampiro não só tem sentimentos. Grant) e uma única fala de Van Helsing (Anthony Hopkins) em off. com a queda de Constantinopla. Elisabeta. onde amor. Tudo que Drácula faz é por conta da busca desesperada e da tentativa de reencontrar Elisabeta em sua reencarnação. alimentando-se do sangue de suas vítimas). Lucy Westenra. os atos de Drácula. cujo povo tem sangue bárbaro). Goiânia v. o sangue que jorra da cruz e inunda a capela) e a punição (Drácula é condenado a vagar suspenso entre a vida e a morte. Wilhelmina “Mina” Murray. seus dois amigos. Coppola manteve a narração de alguns dos personagens. mostra que a versão de Coppola para a história da criatura é diferente. documentos dos personagens e. com voz em off. se não justificados. o diário fonográfico do Dr. e o conde Drácula graças aos relatos e descrições dos narradores-personagens.9 n. Assim. a perseguição (a luta para defender a fé católica do jugo turco. jan-jun 2011 . e até mesmo enriquecido. Os heróis do romance são cheios de qualidades. o que lhes confere mais liberdade. que de acordo com a crença explicada no livro. Depois da vitória na batalha contra os turcos. a morada do vampiro parece mal assombrada. contudo. Harker vê um circulo de chamas azuis. “Estamos hoje no turbulento século XIX. assim como no livro. Renfield (Tom Waits) e Drácula. os velhos séculos tiveram e têm poderes próprios que o simples modernismo não pode extinguir” (STOKER. A floresta na qual o castelo está situado é habitada por lobos ferozes. 2002.9 n. Visivelmente comprometida pelo avançar dos séculos. mostra os locais onde há tesouros enterrados. mesmo apavorado. Os personagens do romance levavam suas vidas normalmente. p. O homem da Era Vitoriana buscava explicações racionais para os acontecimentos e também para a intervenção do sobrenatural no cotidiano. eu Abraham Van Helsing. período em que a história se passa. As cartas de Lucy (Sadie Frost). Essa questão da duplicidade no romance de Stoker não é explícita. Os cenários medievais. até a interferência brusca do sobrenatural. Drácula cavalga em direção ao castelo seguindo por um caminho onde a beleza do alvorecer contrasta com o horror dos corpos empalados ao longo da estrada. característicos da literatura gótica. Ao passar pelo portão de entrada. ou nem mesmo existe. Jonathan Harker reflete sobre a situação. Outro ponto de destaque na construção da narrativa do filme é que o conde Drácula é colocado como protagonista.registro de que. e vê o vampiro descendo as paredes externas do castelo como se fosse uma criatura rastejante. A respeito do cenário e recorte temporal de Drácula de Bram Stoker. Goiânia v. possuem valores 140 VISUALIDADES. não aparecem como narradores. que liberta os “duplos” de cada um. Quando se descobre prisioneiro na mansão do Conde. onde aparece poucas vezes depois que Harker consegue fugir do castelo. Mas a dinâmica do cinema faz com que estes personagens apareçam desconectados do ponto de vista dos narradores. 52). A frase do personagem no livro explica a aparência que o gótico adquiriu no final do século XIX. cercado por penhascos. ao invés da ameaça quase invisível que é no romance. estou pessoalmente envolvido nestes estranhos acontecimentos” . segundo Rossi (2008) e Soares (2008) estão presentes em várias passagens. o contexto original foi mantido em várias passagens. 131-147.1 p. Arthur (Cary Elwes) e Quincey (Bill Campbell) não foram incluídas no filme. O imponente castelo de Drácula fica em um local de difícil acesso. de acordo com Soares (2008). a não ser que meus sentidos me enganem. a partir de agora. parecem incapazes de cometer algum erro. E. este seria uma interferência do mal externo. levam o monstro como clandestino. a princípio. Gostaria de ser tão linda e adorada quanto ela. Já Mina. o monstro parece estar dentro de uma espécie de casulo. o primeiro agente imobiliário a visitar o conde na Transilvânia para fechar o contrato da compra da Abadia de Carfax.” As jovens vêem a tempestade que se aproxima e são contempladas pelos olhos vermelhos de Drácula. Uma curta estada na presença do vampiro transformou Renfield de homem exemplar e equilibrado em um louco com tendências canibalescas. isentando-os de culpa. enquanto sussurra o nome da moça. o que o coloca entre os personagens vítima da duplicidade. uma versão não evoluída. transforma-se em uma criatura simiesca. a personagem de Coppola é sedutora e sua ousadia muitas vezes é confundida com inocência. Um deles é Renfield. Diferentemente da Lucy idealizada por Bram Stoker. e se escandaliza com os modos da amiga burguesa. e não me surpreende vê-la cercada de homens. que até então tinha a aparência de um velho centenário. Ao mesmo tempo. explicita bem a mudança no caráter dos personagens. Durante a viagem o próprio vampiro se transforma. inveja sua beleza e o modo como atrai os homens. Jonathan Harker. na esperança de que este lhe dê a imortalidade. Durante a tempestade. sem saber. Renfield retorna à Inglaterra e é imediatamente internado por causa de seus delírios. É uma professora dedicada e devotada ao noivo. A jovem lê livros condenáveis para a sociedade moralista do final do século XIX e flerta com os homens abertamente. Dr. como explica King (1989). O homem diz obedecer somente ao Mestre (Drácula). os internos do hospício ficam agitados e precisam ser contidos pelos vigias. Lucy acaba de contar à melhor amiga. Inconformado por ter sido preterido por Lucy na escolha de seu noivo. O conde. Goiânia v. com voz em off: “Mas admiro Lucy. os animais do zoológico se enfurecem e um lobo branco acaba fugindo. A cena de Drácula de Bram Stoker em que o vampiro começa a atacar os tripulantes do navio Demeter que. Jack Seward aplica morfina em si mesmo (hipoteticamente uma referência ao consumo de heroína). como se Mina tivescristiane Silva e Alexandre Soares.1 p. 131-147. Mina. secretamente. são tementes a Deus. Ela diz. jan-jun 2011 morais rigorosos. Em outro corte. não difere muito da personagem do livro.9 n. as duas correm pelo labirinto na propriedade dos Westenra e se beijam. Mas. caso tenham se rendido a algum extinto considerado negativo.VISUALIDADES. projetados nas nuvens. Dentro do caixão. A construção da tragédia gótica em Drácula de Bram Stoker 141 . que escolheu Arthur Holmwood para ser seu noivo. como fica claro na cena em que ela revela as ideias de Jonathan à Lucy: “Ele se acha pobre demais para casar comigo. É muito sincera. É especialmente em Mina e no conde Drácula que se concentra a maioria das características da personagem gótica. transgressões e situações fora do controle racional..215). mais tarde.. localizado na propriedade dos Westenra. jan-jun 2011 . Van Helsing a descreve como: [.. Morris e Arthur Holmwood ao mesmo tempo: “Lucy é pura e virtuosa.1 p. para mostrar aos homens e às outras mulheres que há um céu no qual podemos penetrar. a professora fica hospedada na mansão dos Westenra. e que suas luzes são encontradas aqui na terra. (STOKER. incapaz de adaptar-se às maneiras burguesas. O labirinto. Mina perde-se tentando procurar a amiga. 131-147. a professora não consegue se sentir à vontade. No livro. e realiza um ato sexual com ele. hipnotizada. a Mina de Coppola também se mostra dessa maneira.. p. altruísta. em Whitby.] uma dessas mulheres que Deus fabricou com suas próprias mãos. minha amiga rica. É no labirinto dos Westenra que Lucy é atraída pelo conde Drácula. enquanto observa a amiga cortejando Seward. reforça sensações de medo. na forma de lobisomem. sonâmbula. Ela acredita que o noivo não está satisfeito com a situação. 2007. Mas confesso que seu modo de falar às vezes me assusta. O pior é que estou aqui na sua casa. Jonathan diz que é um defeito da nobreza não ter papas na língua. O espaço. Enquanto atravessava o labirinto. segundo a autora. pois não poderá oferecer o mesmo conforto quando se casarem. lugar de fatos extraordinários e criaturas mágicas. Mina Murray é a heroína perseguida da história.” E durante o baile. Goiânia v. Inicialmente. e não consegue evitar que ela seja atacada. Mesmo na companhia da amiga de infância. terna. Na Inglaterra racional do final do século XIX aparece um elemento citado por Soares (2008) como artifício de cenário comum ao gótico: o labirinto. nobre.se se deixado contagiar pela euforia que a chegada do vampiro (do qual. pode ser considerado uma representação da floresta.” A sensação de não-pertencimento de Mina desaparece quando ela conhece o conde Drácula. Ele se apresenta à 142 VISUALIDADES. ela própria parecia uma visão sobrenatural. castigo e aprisionamento. Durante a viagem de Jonathan. seriam vítimas) provoca inconscientemente nelas.9 n. no filme de Coppola. jan-jun 2011 Mina como um príncipe de outro país. que ele prende Jonathan Harker em seu castelo e vai a Londres. ele tenta aproximar-se dela como um homem comum faria e é até mesmo rejeitado. se funde com Elisabeta depois de ter uma espécie de visão da vida passada. informando que se casaria com outro. depois de beber uma dose de absinto com láudano. onde vai se casar com Harker. À noite. prestes a me casar. drinque alucinógeno muito consumido pela boemia do final do século XIX. um prólogo que o coloca na posição de vítima das circunstâncias.” Transferindo o foco para o vampiro. é a amante bela e sedutora do conde. Ele fala comigo em meus pensamentos. Já a jovem que. sinto-me confusa e perdida. e depois ao ler a carta de despedida da jovem. e deixa os cabelos soltos. que aguarda ansiosamente a volta do noivo. interrompida pela morte. primeiro quando Mina recorda o suicídio de Elisabeta. e rapidamente os dois se envolvem. ou outros mais austeros. os cabelos sempre presos em um coque apertado. Ele ganhou uma razão de ser. Lá. bem ao estilo vitoriano. usa vestidos decotados. A Mina pura e recatada usa vestidos comportados em tons pastéis. passando a viver uma vida dupla. A jovem busca refúgio no amor de seu “doce príncipe”. Drácula vai com Mina a uma exibição do cinematógrafo dos Lumiére e a um restaurante. ela diz: “Sinto como se meu estranho amigo estivesse aqui comigo. a professora atira no mar as páginas de seu diário que citam Drácula. Em várias cenas do filme percebe-se que Mina está claramente dividida. medieval e selvagem que até então desconhecida. sinto-me mais viva do que nunca. é a professora recatada. apesar de tentar ser boa. Drácula não perde completamente suas características monstruosas e socristiane Silva e Alexandre Soares.1 p. de cores berrantes. A caminho da Romênia. completamente perdido na metrópole londrina. e é encontrando a possibilidade de retomar sua história. Talvez. Goiânia v. 131-147. eu seja má. ao lado de Mina/ Elisabeta. como o vermelho. A aparência de Mina também muda nesses diferentes momentos. como no livro.VISUALIDADES. nota-se que ele não é mais a personificação do mal. sem ele. Mesmo com essa tentativa de humanização. Livre do constante ar fantasmagórico e monstruoso do livro. A construção da tragédia gótica em Drácula de Bram Stoker 143 . que encontra todas as noites secretamente. É por amor a Elisabeta que ele rompe com o Deus que jurou proteger. O vampiro chora em duas cenas. De dia.9 n. É como se Mina tivesse despertado uma porção sedutora. Com ele. Enquanto faz isso. Talvez eu seja uma mulher má e volúvel. E agora. não só entre o amor do noivo Jonathan Harker e de Drácula. ela implora para ser transformada em vampira. de Murnau: a capacidade de andar à luz do dia. no andar superior do hospício. ao invés de transformar-se em pó ao ser golpeado pelo punhal de Harker. ao qual King (1989) faz referência é anulado nessa parte do filme. apenas diminui seus poderes. quando o vampiro atinge um êxtase semelhante a um orgasmo. O Sol não pode destruí-lo. Ao contrário do livro. sem se importar com suas 144 VISUALIDADES. No entanto. Drácula aparece em uma forma semelhante a uma gárgula. cria tempestades faz as lágrimas de Mina virarem diamantes. que ele se encontra com Mina pela primeira vez. ele mata indiscriminadamente. que se diz incapaz de fazê-la compartilhar da maldição. Lucy. No livro. Enquanto os homens exorcizavam os caixões do monstro escondidos na abadia de Carfax. O vampiro controla os animais. os tripulantes do Demeter.9 n. Mina beija o vampiro. extremamente violenta. que ameaça os outros com uma espingarda. Além disso. no clássico expressionista Nosferatu (1922). porque já o ama. mas não consegue rejeita-lo.brenaturais. jan-jun 2011 . acompanhado por Mina. seguida da morte do vampiro. Ele envelhece e rejuvenesce. usando óculos escuros. consegue entrar no castelo. a jovem descansava no quarto do médico. Coppola muda o contexto de algumas passagens de Bram Stoker deixando o combate do bem contra o mal em segundo plano e criando um relacionamento amoroso entre Mina e Drácula. no filme. todos são suas vítimas. Jack Seward transcreve o relato de Mina. Drácula alimenta-se do sangue dela e a obriga a beber o dele. Drácula. que havia sido vítima do vampiro na noite anterior. A passagem do livro. Goiânia v. É durante o dia. O bebê que ele entrega às vampiras no castelo. O conceito de mal externo. transforma-se em lobo. Coppola e Hart não excluíram a perseguição final presente no livro. Mina se entrega ao vampiro de livre e espontânea vontade e o momento em que ela bebe o sangue de um corte que Drácula faz no próprio peito assume o tom de uma metáfora para o ato sexual. Ele revela toda a verdade para Mina que se revolta contra ele. Drácula também se transforma em uma névoa esverdeada. 131-147. Coppola também recuperou uma característica do vampiro que se perdeu desde sua primeira aparição. transformou-se em uma cena romântica no filme. ato que a transformaria em vampira. e isso só acontece depois que consegue driblar a resistência do vampiro. com aparência monstruosa. entrando pela janela do quarto. da página 316 a 318. pendurado no teto das ruínas de Carfax como um morcego.1 p. presente no livro de Bram Stoker. Sob um novo contexto. na medida em que a tragédia ocorrida séculos antes passa a refletir na contemporaneidade. os personagens passam a ser agentes transformadores. As velas se acendem e o conde volta à forma humana. elementos diretamente relacionados na história. Na mesma capela onde a maldição teve início. certo da morte. onde os personagens. um castelo situado em um lugar exótico. Embora ele consiga reencontrar Elisabeta em Mina Murray. ciência e sobrenatural. como se refletisse o que ocorria logo abaixo. estava saturado e as pessoas buscavam refúgio na subjetividade. que pratica um mal justificado em busca do amor cristiane Silva e Alexandre Soares. A literatura gótica surgiu como um espelho das dúvidas e incertezas do homem vitoriano. encerrando a tragédia gótica. jan-jun 2011 feições repugnantes. batalhas medievais. que levavam vidas pacíficas orientadas pela ciência e também pela fé cristã. “Dê-me paz”. Em várias cenas a cor vermelha se destaca e aparece conforme as reações dos personagens. que termina a execução atravessando-o com uma espada e cortando-lhe a cabeça. 131-147. o poder das cruzes). em seu confronto entre razão e medo. Mantendo o recorte temporal do romance de Bram Stoker. Depois disso. Esse confronto é bem exposto no filme. enquanto ele. único jeito de matar a criatura. O vampiro é um herói romântico.VISUALIDADES. como as referências ao uso de drogas. Coppola utilizou praticamente todos os elementos tradicionais da literatura gótica: cemitérios. a consola. no filme.9 n. quando o conceito de razão.1 p. Conclusão Após a análise de Drácula de Bram Stoker é possível afirmar que o filme transportou várias características da tragédia gótica para o cinema. ele não consegue passar a eternidade com ela. assim como um labirinto. Além de serem contagiados por aquela atmosfera. herdado do Iluminismo. Goiânia v. o sobrenatural religioso (a capela. tornando-se parte daquele mundo. vítima das circunstâncias. Drácula não é a representação do mal puro. ele diz à jovem. no século XIX. interferindo nos planos do vampiro. A cruz ferida 400 anos antes reconstitui-se diante de Mina. Neste ponto. florestas habitadas por feras (os lobos). também se utilizando de elementos contemporâneos. Mina olha para o teto e vê as figuras de Elisabeta e Drácula pintadas na abóbada. são transportados à força ao cenário lúgubre e sobrenatural da história de Drácula. A construção da tragédia gótica em Drácula de Bram Stoker 145 . representando o sangue e a paixão. Drácula encontra a redenção. Vale ressaltar mais uma vez que. é possível retratar o modo de pensar do período Vitoriano. ROSSI. trouxe uma redenção inesperada para o vampiro. 2. 2008. 2010. Dissertação (Mestrado em Estudos Americanos) – Universidade Aberta. SILVA. 2008. 415 p. (Coleção A Obra-Prima de Cada Autor. FELIZARDO.pdf> Acesso em: 30 de mai.pdf> Acesso em: 02 de mar. In: ÍCONE .ueg. KING. p. 2010. SILVA.9 n.pt/bitstream/10400. ele recebe o golpe de misericórdia da própria Mina. v. dialogarts. Referências Bibliográficas BURGESS. enquanto agente transformador na história. 84 p. Lisboa. Flávio (org. O terror gótico no cinema contemporâneo: análise dos filmes Drácula de Bram Stoker (1992). Dança macabra: o fenômeno do horror no cinema.perdido. 280-298 Disponível em: <http://www. 2001. 172 p. 259 p. Bram. III Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”: o insólito na literatura e no cinema – comunicações. Goiânia v. São Luís de Montes Belos. Neste aspecto pode-se observar que a mulher. São Paulo: Planeta De Agostini.br/avulsos/insolito/Comunicacoes_III_Painel. A literatura inglesa. que através da morte. 2008. Rio de Janeiro: Dialogarts. 2008. Anthony.). 2010.uerj. jan-jun 2011 . Depois de ser atacado por Harker. In: GARCÍA. Alexander Meireles da. jul. Disponível em: <http://www. SOARES. Aparecido Donizete. slmb.2/1368/1/dissertacao. A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (1999) e o Lobisomem (2010). número 17). Disponível em: <http://repositorioaberto. Stephen.1 p. Monografia (Jornalismo) – Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH. 131-147. 312 p. Manifestações e configurações do gótico nas literaturas inglesa e norte-americana: um panorama. 146 VISUALIDADES. Jane Guimarães.univ-ab. Carla Marina. na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do gênero. 2010. p. STOKER. Belo Horizonte. 2008. 2010. O Imaginário Fantástico de Tim Burton: exemplos de Gótico Moderno. possui o poder de vida e morte sobre o homem. São Paulo: Ática. São Paulo: Martin Claret. Drácula – O Vampiro da Noite. 2.pdf> Acesso em: 10 de mai. 2004. Quem tem medo do lobo mau? O lobisomem como símbolo da alteridade. Cristiane Perpétuo de Souza. 55-76. 3 ed.Revista de Letras. ed.br/iconeletras/artigos/volume2/primeiras_letras/aparecido_rossi. com Graduada no curso de Jornalismo do Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH. Produção: Francis Ford Coppola. Winona Ryder. Columbia Tristar Home Vídeo do Brasil Ltda c2000. Goiânia v.).UNI-BH. Intérpretes: Gary Oldman. Fred Fuchs e Charles Mulvehill. standard. Música: Wojciech Kilar. Recebido em: 31/03/2011 Aceito em: 04/06/2011 crISTIANE PErPÉTUO DE SOUZA SILVA cristianeper. son. professor do Departamento de Comunicação (DCC) do Centro Universitário de Belo Horizonte . jan-jun 2011 Filmografia DRÁCULA de Bram Stoker. legendado. ALExANDrE MArTINS SOArES [email protected] p. Keanu Reeves e outros. Produtores executivos: Michael Apted e Robert O’Connor.com Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFMG. 1992. Hart. 1 DVD (130 [email protected]. color. Anthony Hopkins.9 n. Direção: Francis Ford Coppola. 131-147. Roteiro: James V. Direção de fotografia: Michael Ballhaus.. A construção da tragédia gótica em Drácula de Bram Stoker 147 .. Columbia Pictures em parceria com American Zoetrope/Osiris Films: EUA. cristiane Silva e Alexandre Soares. . 1 p. uma vez que é marcado por um comprometimento sensível com o texto de Nassar. valendo-se de referenciais da fenomenologia e da crítica literária e cinematográfica. de Luiz Fernando Carvalho. de Raduan Nassar. cinema VISUALIDADES. O processo de criação que envolveu cineasta e equipe é bastante significativo.Raduan Nassar e Luiz Fernando Carvalho: a concepção da palavra em imagem rENATO cUry TArDIVO Resumo Este artigo aborda o tema da correspondência entre literatura e cinema e trata das condições para a criação do filme Lavoura arcaica.9 n. Goiânia v. jan-jun 2011 149 . O presente trabalho assume uma postura interdisciplinar. Luiz Fernando Carvalho. a partir da leitura do romance homônimo. 149-163. Palavras-chave: Lavoura arcaica. Luiz Fernando Carvalho. 149-163. Keywords: Lavoura arcaica. Goiânia v. considering the involvement of Luiz Fernando Carvalho and his group. by Luiz Fernando Carvalho. with phenomenological. cinematographic and literary references.9 n. from the reading of the homonymic novel. This paper assumes an interdisciplinary posture.Raduan Nassar and Luiz Fernando Carvalho: the conception of the word in image rENATO cUry TArDIVO Abstract This paper tackles the theme of the correspondence between literature and cinema. jan-jun 2011 . cinema 150 VISUALIDADES.1 p. The conditions for the emergence of the movie are expressive. by Raduan Nassar. dealing with the conditions for the emergence of the movie Lavoura arcaica. viria a concluir. vem com a família para São Paulo em busca de melhores oportunidades de estudo. ele anuncia o abandono da literatura para se dedicar exclusivamente à produção rural. publicado em 1997. 149-163. fora escrita no início da década de 1970. Na adolescência. e no curso de Letras Clássicas. novela publicada em 1978.9 n. semanário fundado pelos irmãos Nassar. publicado com a sua ajuda financeira. no Largo de São Francisco. Ora. anos mais tarde. Nos anos 1960. já estava tudo escrito – antes mesmo da estreia. Poucos anos após ter estreado. Era a sua estreia na literatura. renato c. E foi só. decidido a se dedicar à literatura. Tardivo. Ingressa na Faculdade de Direito. Deixa em 1974 a direção do Jornal do Bairro e leva a cabo o projeto cujas primeiras anotações datavam de alguns anos: em poucos meses.1 p. embora o romance tenha sido a última obra que produziu¹. Abandona.VISUALIDADES. trabalhando dez horas por dia. do qual foi redator-chefe. o curso de Letras e começa a cursar Filosofia – única faculdade que. Goiânia v. ambos na Universidade de São Paulo. Nassar conclui o romance Lavoura arcaica. A primeira versão de Um copo de cólera. Raduan Nassar publica pela José Olympio Editora a primeira edição de Lavoura arcaica. datam dos anos 1960 – exceto “Mãozinhas de seda” (produzido na década de 1990). entre idas e vindas. Filho de imigrantes libaneses. Raduan Nassar se divide também entre a produção rural – chega a presidir a Associação Brasileira de Criadores de Coelho – e as atividades no Jornal do Bairro. os contos que compõem o livro Menina a caminho e outros textos. mais precisamente em 1984. em seguida. jan-jun 2011 Raduan Nassar e Luiz Fernando Carvalho Em 1975. Nassar é paulista da cidade de Pindorama. raduan Nassar e Luiz Fernando carvalho: a concepção da palavra em imagem 151 . minisséries e especiais. em 2005. Dom Casmurro).Apesar de pouco extensa. A obra de Raduan Nassar confirma a máxima de que um escritor escreve para morrer – não há outro destino às suas palavras senão o retorno à terra da qual brotaram. de Raduan Nassar. incluindo a direção de novelas.9 n. 149-163. Em 2000. até agora o seu único. o carioca Luiz Fernando Carvalho realizou inúmeros projetos para a televisão. O filme Lavoura arcaica. amparado em referências da Fenomenologia. Estreia em longas com o Lavoura. passando pela entrega de toda a equipe no 152 VISUALIDADES. em edição especial. Em 2001. Antes. no Brasil e no exterior. dirige a minissérie televisiva Os Maias. A análise das duas obras ou mesmo uma análise mais detalhada da correspondência estabelecida entre elas não fazem parte dos objetivos do presente trabalho – objetivos com os quais me ocupei em outros momentos (TARDIVO. desde a recepção de Luiz Fernando às palavras do romance. Goiânia v. jan-jun 2011 . e propõe uma reflexão acerca da tomada de corpo do filme. de Roland Barthes. numa edição especial do filme). veicula na televisão o documentário Que teus olhos sejam atendidos. e sempre muito ligado ao desenho. Este artigo aborda o encontro de Luiz Fernando Carvalho com o romance Lavoura arcaica. as duas temporadas da minissérie Hoje é dia de Maria. 2009a. A obra de Carvalho obteve grande repercussão. Tendo cursado Arquitetura e Letras. entretanto. O diálogo entre a literatura e a linguagem audiovisual sempre fez parte de suas preocupações.1 p. o documentário seria incluído em dvd. analiso aqui o processo de criação do filme. Idealizou e dirigiu. em 2007. que já veiculou A pedra do reino (a partir da obra de Ariano Suassuna) e Capitu (inspirada no romance de Machado de Assis. captado no Líbano como parte das preparações para Lavoura arcaica (mais tarde. adubou-se nessas terras para vestir com luz e som as palavras do romance de Raduan Nassar. escrita por Maria Adelaide Amaral a partir do romance homônimo de Eça de Queiroz. crítica literária e teoria do cinema. e firmou-se como uma produção significativa do cinema brasileiro. mas foi disponibilizado em dvd só em 2005 e depois. que estreou nos cinemas em 2001. TARDIVO. Também escreveu e dirigiu o curta-metragem A espera (1986). 2009b). baseado no livro Fragmentos de um discurso amoroso. Atualmente. ambas com cinco capítulos. a safra é pródiga. desenvolve em parceria com a TV Globo o “Projeto Quadrante”. Poucas vezes na literatura das últimas décadas o rigor formal e o engajamento político encontraram o simples em um universo tão poético. Feita a escolha por Lavoura – ou tendo o romance se escolhido – Luiz Fernando Carvalho estendeu sua viagem pelo texto de Nassar ao Líbano (tendo por companhia. Em Lavoura arcaica. Ou seja. Assim. jan-jun 2011 processo de filmagem. o que se seguiu foi um desses “encontros raros. A câmera de Luiz Fernando viaja e procura. O romance que teria escolhido emergir. por sua vez. até retomar o compromisso do filme com o livro – seu ponto de partida. Mas desse interesse parece ter surgido algo maior. como um desdobramento natural. soma-se a narração de textos do escritor. usando as palavras de Alceu Amoroso Lima: criar uma atmosfera. Quase todo o material do documentário foi captado no Líbano em 1997. Segundo o próprio Nassar. mais do que em “ Menina a caminho. na aproximação entre diretor e escritor. filósofo e pintor libanês Gibran Khalil Gibran³. O desafio era grande: como filmar o invisível sem ser descritivo? Como não o transformar simplesmente em visível? Resposta: criando outro filme e invertendo a busca. tanto que ele até voltou a experimentar algum entusiasmo pela literatura. a fim de buscar referências para o filme. apresentaram-se em Lavoura arcaica². o diretor partiu do invisível (romance). Luiz Fernando tinha como prioridade manter as metáforas sensíveis do livro sem destituir seu caráter alusivo. o próprio escritor). Transformar o visível em invisível. Goiânia v. raduan Nassar e Luiz Fernando carvalho: a concepção da palavra em imagem 153 . E essas coordenadas. os rituais religiosos. torná-las invisíveis. o mobiliário das casas.1 p. aqui no Brasil. apud AVELLAR. Que teus olhos sejam atendidos Luiz Fernando Carvalho procurou Raduan Nassar interessado inicialmente em filmar o conto “Menina a caminho”. um sopro dominado pela tradição mediterrânea. inclusive. O cineasta. simplesmente sentir (CARVALHO. foi ao visível (documentário) para só depois retornar ao invisível (filme). Tardivo. não descrever as referências orientais. 149-163.VISUALIDADES. F. 2007. trazendo coordenadas da própria vida. Esse registro de visibilidades foi reunido no documentário Que teus olhos sejam atendidos (2007). 348). viveu a comunicação com o escritor como um norte que o teria salvado em um momento delicado.9 n.. Às imagens. diz o diretor: A culinária. As construções rurais renato c. as vestes. registrar estas visibilidades para depois. L. Sobre a experiência. p. Um líder religioso muçulmano prega a união dos povos: “Não separamos: este é muçulmano. a fotografia magistral. então uma menina. este é judeu. O tempo é uma “joia”. O amor. preciosa. em seguida. salta por cima dela e perde-se na escuridão de um poço. a procura por amor. A passagem por uma cidade destruída em um bombardeio traz a temática da ordem-desordem. histórias. Raduan Nassar aparece. que vai sendo construído. questões caras à obra de Raduan Nassar. há aqui a perpetuação da vida: o olhar volta-se às crianças. Novamente. a infância. Os depoimentos de pastores. O contato do escritor com as crianças parece maravilhar Carvalho. Sua companheira é um retrato antigo de uma artista – e isso o faz rir de si mesmo. Com efeito. O retorno à infância – uma infância órfã. Aparece. E assim o olhar vai se deixando permear por essas e outras referências orientais: objetos. Aos poucos. valores. costumes. a história de uma cabra que. a temporalidade: um só sopro que o olhar habita. O olhar (o próprio documentário) se inquieta com o interior desse homem. Há. para as moças do documentário. este é cristão. da terra. alimentam os olhos que buscam. Envolto por crianças. As marcas que o acontecimento imprimiu na moça são tristes e belas. Não separamos”. também. Bechara é um homem solitário. até mesmo a trilha sonora já é um esboço da que surgiria no filme. 149-163.lembram muito as instalações que seriam depois utilizadas no filme. relaciona-se com a preservação da natureza. Suas dimensões são tão amplas que ele se confunde com a perpetuação da vida. as quais carregam a potência de ser aquilo que ainda será. Em um único momento. algo próximo da atmosfera trágica e lírica que envolve Lavoura arcaica. O religioso se emociona ao falar de crianças órfãs. Goiânia v. é o olhar de André. 154 VISUALIDADES. tão em contato com a terra e com os animais.. união-separação. O evento do poço prepara a aparição do senhor Bechara. ao disparar em direção à dona. e a câmera adentra a sua casa. A semelhança com as irmãs que veríamos no filme é evidente. E o tempo pode ser sombrio. jan-jun 2011 . ele toma um pouco de leite tirado na hora e despede-se com um beijo em uma menina. do cinema. À exceção de algumas crianças. a busca por referências e suas implicações.9 n. O “senhor das águas” é responsável por sua distribuição em toda uma comunidade. carente de referências –.1 p. Bechara ri muito. é a temática do tempo que vai surgindo. portanto. Três moças são ouvidas.. que se despede dos pastores com um semblante de satisfação e encantamento. pela história. a devastação de uma guerra. assistente de direção de Luiz Fernando Carvalho. um deles. Esse pensamento de Alfredo Bosi. o ritmo de uma dança.9 n. O cenário do filme enfim começa a diferenciar-se de suas origens – Líbano. De acordo com Luiz Fernando Carvalho (2002. raduan Nassar e Luiz Fernando carvalho: a concepção da palavra em imagem 155 . emenda. O olhar que busca é o olhar que nasce: – Que teus olhos sejam atendidos – diz à câmera uma senhora da região4.. Fazenda que será habitada pela família patriarcal do Lavoura. A câmera mostra a casa onde a família Nassar morou. cidade natal de Raduan Nassar. claramente influenciado por Husserl.. É assim que a compreensão do texto deve se debruçar sobre o signo atenta à opacidade do mesmo.1 p. NOSSO DIÁRIO. o tempo é emoldurado pela terra. é a temática da compreensão do texto que se coloca. que renato c. 2005). também dialoga com Merleau-Ponty. a construção desses contornos só seria possível por meio de um retorno radical ao texto de Nassar. os cineastas (Raquel e Luiz) conversam com moradores: “Manda lembranças lá pro Raduan”.] que são múltiplos. 149-163. Como lembra Rodrigo Fonseca em texto sobre o documentário. o documentário é uma espécie de diário escrito pela equipe de Lavoura arcaica durante o processo de construção do filme. As primeiras páginas do diário retratam Pindorama.VISUALIDADES. no interior paulista. uma obra literária] é tomar conhecimento dos seus ‘perfis’ [. tímido. Mas como garantir que um texto é devidamente compreendido? Diz Alfredo Bosi (2003. a escuridão de um poço. Como o próprio título indica. Nesse sentido. Pindorama – para ganhar contornos próprios. O diário aceita o pedido: segue viagem e dá numa fazenda abandonada de café em Minas Gerais. as construções de uma aldeia. “Que teus olhos sejam atendidos afiou até o limite da fatalidade trágica sua indagação sobre o tempo” (FONSECA. Tardivo. e não podem ser substituídos por dados exteriores ao fenômeno tal qual este se dá”. o amor de uma família. às vezes opostos. 2007). Goiânia v. Desvelando o invisível Outro registro audiovisual sobre o filme é Nosso diário (2005) dirigido por Raquel Couto – à época. Perpetuação da vida que irrompe nos planos. jan-jun 2011 O documentário é o olhar de quem está em busca. é o tempo que vai se mostrando uma joia preciosa. 475): “compreender um fenômeno [no caso. p. Por entre as águas de um rio. 1 p. figurinista. os profissionais viveram em comunidade. Ou melhor. não é que os signos evoquem a pluralidade de perfis. Raul Cortez. 2005). mas antes que ela está contida. retomando a expressão de Merleau-Ponty.no ensaio “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” escreve o seguinte: Sua [da linguagem] opacidade. Luiz Fernando deixa claro que não havia um roteiro propriamente. no avesso das palavras. Vejamos alguns exemplos. isso não se dá explicitamente: toda linguagem é alusiva (MERLEAU-PONTY. no evento por eles encerrado. que vive o patriarca Iohána. Tratava-se de emprestar efetivamente o corpo às palavras. jan-jun 2011 . diz que o livro foi revelador: o figurino deveria ser um elemento orgânico de dentro para fora. ao mesmo tempo em que se o deixava afetar por elas. nas próprias linhas do romance. os papéis com que se tece Lavoura arcaica. L.. salienta a convivência entre os atores e as inevitáveis transferências em jogo5. Em suma. E assim Nosso diário mostra que a equipe de Luiz Fernando Carvalho procurou encarnar as palavras do romance de Raduan Nassar. “no imenso tecido da fala” (MERLEAU-PONTY. 2004. Transe de linguagem Com efeito. 2002. durante quatro meses. p. o diretor procurou construir uma atmosfera na qual as palavras fossem vividas pelos artistas – e não representadas. O documentário Nosso diário ilustra os perfis de que cineasta e equipe tomaram conhecimento pela leitura do texto. como se todo o processo estivesse “alojado”. 71). Todavia. acompanha o próprio nascimento desses perfis. extensões do próprio corpo. Seu 156 VISUALIDADES. relata ter realizado um trabalho de arquitetura – não de cenografia – a fim de trazer vida à fazenda. mergulhar e ser mergulhado. Isolados na fazenda em que seriam realizadas as filmagens. p. 149-163. NOSSO DIÁRIO. diretora de arte. 2004). sua obstinada referência a si própria. alusivamente.9 n. Yurika Yamazaki. Goiânia v. 72). o que eles tinham era um livro (CARVALHO. Beth Filipecki. por meio de uma leitura contundente do texto. suas retrospecções e seus fechamentos em si mesma são justamente o que faz dela um poder espiritual: pois torna-se por sua vez algo como um universo capaz de alojar em si as próprias coisas (MERLEAU-PONTY. Ou seja. 2004. F. as vestimentas. o jogo sensório da palavra: “uma ópera”.VISUALIDADES. jan-jun 2011 desejo era trabalhar com sensações. E. Goiânia v.9 n. por isso. não por acaso. Essa coisa orgânica. também “coisa viva”. em que se trabalha eminentemente com sensações.1 p. para alçar tal voo. pela “mistura insólita”. e você pudesse escolher um ramo novo para seguir (NOSSO DIÁRIO. ele que coloca tudo aquilo para dentro. Neste caso. segundo Luiz Fernando. um vaso –. Quer dizer. limpar as representações. que a câmera era ligada quando o quadro a ser filmado se transformasse em “coisa viva”. Mais que uma aventura. surgisse um animal. “um renato c. Mas o olho da câmera continua Walter . o movimento de câmera e/ ou da personagem implica que o quadro seja visto de outras perspectivas. a circularidade. a literatura nua e crua. o emissor é. Aventura que. ele teria de lançar mão de um método. nessa mesma medida. uma vez que o narrador-personagem costura em texto os estilhaços dolorosos do que restou da tragédia que assolou sua família. revelar essa verdade o papel do cinema. foi vivida muitas vezes pelo inesperado. a coisa que ele emite bem como o receptor da mensagem. raduan Nassar e Luiz Fernando carvalho: a concepção da palavra em imagem 157 . no filme o olhar que se volta para a história é. privilegiou o teatral. Transe que é fundante do universo de Lavoura arcaica. Luiz Fernando Carvalho relata ter sempre pensado o romance como: uma daquelas pinturas islâmicas em cerâmica. embasou-se em Antonin Artaud (1993) – artista e pensador da primeira metade do século passado – e sua teoria do duplo. quase desapercebidamente. Suas sombras passam a ser vistas de outro ângulo e ele o quadro se transforma em “coisa viva”. vai também dizer o cineasta. 149-163. ao mesmo tempo. revela-nos. uma flor. ainda em Nosso diário. trata-se de verdadeiro transe de linguagem. diretor de fotografia de Lavoura arcaica. De acordo com Artaud. a multiplicidade de sentidos nela contida. Walter Carvalho6. Tardivo. Daí a pertinência de terem vivido por tanto tempo em comunidade: para buscar o simples. da linguagem invertida. onde a cada instante. Percepção que aponta para o ritmo da narrativa. A propósito. a busca pela “alquimia virtuosa”. normalmente pinceladas sobre superfícies circulares – um prato. Trata-se de uma aventura com a linguagem. que por sua vez testemunha e capta a vida do quadro. 2005). em Lavoura arcaica. Se o romance é a leitura que o narrador-personagem realiza do próprio texto. viva conclui o fotógrafo tem de possuir verdade. até o processo de montagem. embora apresente descontinuidades flagrantes na passagem de um plano a outro.olhar de quem reflete o acontecimento trágico e irrecuperável” (NOSSO DIÁRIO. à medida que o quadro se confundisse com a vida. “a escolha do modo como as imagens obtidas serão combinadas e ritmadas” (XAVIER.1 p. jan-jun 2011 . É a partir e por meio do olhar de Luiz Fernando Carvalho que a experiência levada ao limite. o trabalho do diretor pode ser pensado como o de um maestro7. Multiplicidade de perfis disparada e regida pelo seu olhar. 2003). 30). banhado de afeto e atado pela lei. ou seja. 2005). O olho – que vê o quadro – é aquele que o constrói. e na montagem é o olhar reflexivo que é costurado em um fluxo narrativo. 149-163. p. E a narrativa. 2005. Assim. Lavoura arcaica é o olhar lançado à história que está sendo contada. Por isso. passando pela filmagem. p. que implica descontinuidade na percepção das imagens. Aquela “envolve a opção de como os vários registros serão feitos”. é altamente expressivo: é ele que torna possível a multiplicidade de pontos de vista (BALAZS apud XAVIER. novo e velho. esta. é o olhar de André. 2005). é a sucessão de imagens que cria uma nova realidade (MERLEAU-PONTY. há um olhar que capta a vida dos planos. O olho que vê é o olho que vive: é o olho que narra. expressionista e impressionista – e as possibilidades de sentido não se esgotariam. Um olhar trágico e lírico.9 n. Com efeito. revoltado e resignado. Só depois. a câmera era ligada. há sempre a presença de um olhar: a decupagem é fruto do olhar que se mistura às palavras do romance. o trabalho exercido pela montagem. 158 VISUALIDADES. Desde a decupagem (construção dos planos cinematográficos pela decomposição do livro). O que o quadro revela e o que ele oculta são ressignificados pela dimensão temporal. 2005. Quer dizer: A sequência de imagens. Goiânia v. na filmagem. pode ser aceita como abertura para um mundo fluente que está do lado de lá da tela porque uma convenção bastante eficiente tende a dissolver a descontinuidade visual numa continuidade admitida em outro nível: o da narração (XAVIER. Olhar do olhar do olhar As duas operações básicas na construção de um filme são a filmagem e a montagem. em Lavoura arcaica. o filme não é mera soma de imagens senão uma forma temporal. 19). o fluxo de imagens do filme. O olhar. funda mais um nível de leitura. que capta a vida. mais leve? Ele mesmo responde: justamente por se tratar de um filme que “se enterraria” e contaria uma história essencialmente marcada por “um tempo em cima das coisas” é que optaram pela “janela fechada”. residia na escolha da janela – o enquadramento – para o filme. por eles denominada “janela arcaica”. evidentemente não por acaso.. que parte da percepção de Luiz Fernando Carvalho dirigida ao romance. ele também “coisa viva: extensão do próprio quadro. de acordo com Paul Ricoeur (2007). mais quadrada. se o romance é a leitura do narrador-personagem da história que ele mesmo escreve – leitura da leitura –. André organiza os estilhaços do que restou de sua trajetória em um texto cujo fluxo se endereça – quando já é tarde demais – ao pai10. se dirige a outrem. 2003). A sucessão de imagens. há sempre um olhar direcionado àquilo que está ocorrendo. funda mais um nível de olhar e. que olha para esse transe de linguagem. panorâmico. Nesse sentido. age. segurando a câmera. ou. assim. moldura para “o desgaste físico-visual” representado pelo filme.9 n. a lavoura a ser colhida (fluxo que habita a moldura) é.1 p. raduan Nassar e Luiz Fernando carvalho: a concepção da palavra em imagem . 149-163. W. Em Fotografias de um filme. Por fim. o espectador9. antes de tudo. jan-jun 2011 Walter Carvalho ainda nos conta que o problema inicial. Tempo recuperado pela memória do narrador. Dufrenne (2004). No romance. o filme pode ser pensado enquanto olhar do olhar do olhar. funda mais um olhar. arcaica. Janela. dirigindo a cena estão em ação. ou de um quadro abrangente. Nela. seria necessário pensar em um quadro: tratava-se de um quadro mais fechado. há uma foto8 bastante emblemática dessa sucessão de olhares (CARVALHO. Luiz Fernando Carvalho e Walter Carvalho este. porque leva suas potencialidades ao limite. olhar que. de Walter Carvalho. para utilizar expressão cunhada por M. marcado por um ponto de vista essencialmente abstrato. Diante desse quadro. aquele. renova as demais leituras um codevaneio. vê-se ao fundo o quadro do filme a “coisa viva que captada pelo olho da câmera. Mas e o fluxo do filme: que direção toma? 159 renato c. a narrativa é fruto do olhar que testemunha uma série de eventos e que por isso. constitutivo do transe. Assim como o são as palavras do romance: há “um tempo em cima das coisas”. Tanto no romance como no filme. Goiânia v. em suas conversas com Luiz Fernando. Ora. Para responder a essa questão. Em suma. ao fundar perspectiva.VISUALIDADES. Esse olhar pode ser pensado também do ponto de vista da própria narrativa fílmica. Tardivo. BOSI. São Paulo: Perspectiva. Céu. G. Goiânia v. R. São Paulo: Ateliê Editorial. São Paulo: Companhia das Letras. O teatro e seu duplo. Referências ARTAUD. GIBRAN. 2004. DUFRENNE. São Paulo: Martins Fontes. 2007. In: LAVOURA ARCAICA. jan-jun 2011 . 2004. São Paulo: Instituto Moreira Salles. leva o diretor a captar elementos visíveis para transportá-los. Direção e produção de Luiz Fernando Carvalho.9 n. ________. Porto Alegre: L&PM. M. inferno. O cinema e a nova psicologia. Que teus olhos sejam atendidos. 2003. marcado por metáforas sensíveis. 149-163. 2002b. AVELLAR. 160 VISUALIDADES. edição especial. I. A. A leitura do romance. Rio de Janeiro: Graal. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. K. 2002a. 2001. In:______. transformados em texto fílmico. CARVALHO. 3. O olho e o espírito. ed. MERLEAU-PONTY. n. R. A experiência do cinema.). Sobre o filme Lavoura arcaica. 2.1 p. W. CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA: Raduan Nassar. A. O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil. 2002. CARVALHO. 2 DVDs (171 min). (Org. L. ________. 1975. Fotografias de um filme. Um copo de cólera. In: XAVIER. Rio de Janeiro: José Olympio. Estética e filosofia. o compromisso é com o texto de Raduan Nassar: é ao romance que o filme se endereça. que parte da palavra. 2007. ________. ________. Barueri: Europa Filmes. São Paulo: Editora 34. novamente ao invisível e. F. procura – antes de tudo e a todo momento – retornar a ela. J. M. 2003. NASSAR. 2004. C. Lavoura arcaica. Menina a caminho e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras. São Paulo: Companhia das Letras. Rio de Janeiro: Rocco. ir descobrindo sua própria obra. São Paulo: Cosac Naify. nessa espécie de codevaneio. 1993. São Paulo: Cosac Naify. O profeta. Lavoura arcaica. FONSECA. 2003. O olhar do cineasta. O filme traz o livro para dentro de seus olhos. 1996.Na obra de Luiz Fernando Carvalho. 106-121. 2005. LAVOURA ARCAICA. NOSSO DIÁRIO. em tantos anos de profissão. Barueri: Europa Filmes. 2 DVDs (171 min). TARDIVO. 5.VISUALIDADES. jan-jun 2011 RICOEUR. São Paulo: Unesp. 2007. Direção de Raquel Couto. Produção de Luiz Fernando Carvalho. 32. 2002b). ________. 2005. Cortez chegou inclusive a “desistir” do trabalho. São Paulo. 4. QUE TEUS OLHOS SEJAM ATENDIDOS. Barueri: Europa Filmes. Direção e produção de Luiz Fernando Carvalho. Direção e produção de Luiz Fernando Carvalho. 2009b. Nascido em 1883 em Bisharri. Seu livro mais conhecido foi originalmente escrito em inglês: O profeta (1923). DVDs LAVOURA ARCAICA. I. ele não esconde as dificuldades enfrentadas. Porvir que vem antes de tudo: uma leitura de Lavoura arcaica – literatura. A propósito. Tardivo. Sua obra abordou. In: LAVOURA ARCAICA. Goiânia v. 2007. edição especial. 2005. 2. 1 DVD (163 min). em 1997. São Paulo: Paz e Terra. Durante uma passagem de texto em que ele declamava um sermão renato c. Porvir que vem antes de tudo: reconciliação e conflito em Lavoura arcaica – literatura e cinema. 1996. “Menina a caminho”. há claras referências a “Menina a caminho”. Barueri: Europa Filmes. uma preparação nesses moldes para um trabalho. A expressão é comumente utilizada no Líbano quando se deseja que os anseios do interlocutor sejam alcançados. n. raduan Nassar e Luiz Fernando carvalho: a concepção da palavra em imagem 161 . a religião (GIBRAN. morto em 1931 em Nova York. 2009a. Ou apenas Khalil Gibran. com outros contos do escritor (NASSAR. Ide – SBPSP. XAVIER. 3. São Paulo. edição especial. 149-163. Direção e produção de Luiz Fernando Carvalho. Barueri: Europa Filmes. na minissérie Hoje é dia de Maria (2005).1 p. 2 DVDs (171 min). o amor. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. escrito por Raduan Nassar nos anos 1960. Direção e produção de Luiz Fernando Carvalho. a história e o esquecimento. 2001). p. Direção e produção de Luiz Fernando Carvalho. no Líbano. cinema e a unidade dos sentidos. C. em edição comercial. E. P. No documentário. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. por exemplo. 2007. Raul Cortez ainda afirma jamais ter vivido. foi publicado em livro apenas em 1994 (edição não comercial) e. embora reconheça a importância que a experiência representou. In: LAVOURA ARCAICA. As informações sobre a biografia de Raduan Nassar constam dos Cadernos de Literatura Brasileira. NOTAS 1. 2.9 n. n. 2009. 1 DVD (163 min). a natureza. v. 49. a morte. R. EUA. A memória. 8. 2005). invadiu o quarto. tirada por Marcelo Brasil. diz o ator. Walter Carvalho (2003) reuniu em Fotografias de um filme uma série extensa de registros fotográficos do mesmo período captado em Nosso diário. ver Tardivo. Goiânia v. Uma carta fantástica escrita por um diretor. ao contrário do filho pródigo. 2009b. O suficiente para que ele.de Iohána. o ator deu um basta e conformou-se: “eu não sei fazer”. Foi até o seu quarto decidido a fazer as malas: (também ele) voltaria para casa (“estamos indo sempre para casa”. A esse respeito. diz André). 10. jan-jun 2011 . 7. 9. diante da insistência do diretor em que o resultado melhorasse. deixada na fresta debaixo da porta.1 p.9 n. É o que também sugere Walter Carvalho (NOSSO DIÁRIO. 2009a e Tardivo. desistisse de partir. 149-163. Mas então uma carta. Recebido em: 05/03/11 Aceito em: 18/05/11 162 VISUALIDADES. O espectador da fotografia. 6. Reproduzida a seguir. Mas podemos também pensar essa relação no caso do espectador do filme. br Mestre e doutorando em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.1 p. professor e supervisor da Faculdade de Psicologia daUniversidade São Marcos e escritor. raduan Nassar e Luiz Fernando carvalho: a concepção da palavra em imagem 163 .com. no prelo). Tardivo. Autor do livro de contos Do avesso (Com-Arte. Goiânia v. 2010) e de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp. 149-163. jan-jun 2011 rENATO cUry TArDIVO [email protected]. renato c.9 n. Psicanalista. . suturar e sobrejustapor sentidos na teoria e na crítica da imagem: dois possíveis desvios estratégicos crISTIAN POLETTI MOSSI MArILDA OLIVEIrA DE OLIVEIrA Resumo O artigo propõe-se a pensar dois possíveis desvios estratégicos na atividade de experienciar. etnografia da imagem. Primeiramente demarco de que modo emprego as palavras desvio. a continuação proponho o ‘desvio estratégico 2’ pautado por Canclini (2007) com suas inferências acerca do campo da antropologia na contemporaneidade. sutura e sobrejustaposição para depois propor o ‘desvio estratégico 1’ pautado pela experiência do Corpo sem Órgãos (CsO) pensada por Deleuze & Guatarri (1996). teoria e crítica da imagem VISUALIDADES.Experienciar.9 n. para finalmente pensar a atividade da crítica da imagem na atualidade. suturar e sobrejustapor sentidos no campo da teoria e da crítica da imagem. 165-177 . Palavras-chave: Corpo sem órgãos (CsO). Goiânia v.1 p. 2011 165 . jan-jun. jan-jun 2011 . theory and criticism of the image 166 VISUALIDADES. suturing and over-juxtapose directions in the field of theory and criticism of the image. 165-177. Latter I propose the ‘strategic deviation 2’ guided by Canclini (2007) with their inferences about the field of anthropology in contemporary times. Former I outline in which way I employ the terms deviation. suturing and overjuxtaposing directions on theory and critics of the image: two possible strategic deviations crISTIAN POLETTI MOSSI MArILDA OLIVEIrA DE OLIVEIrA Abstract The present paper aims at considering two possible deviations in the activity of strategic experience. Keywords: Body without organs (CSO).1 p.Experiencing. suture and over-juxtaposition to propose ‘a strategic deviation 1’ guided by the experience of the Corpo Sem Órgãos (CSO) (Body without Organs) conceived by Deleuze & Guattari (1996).9 n. ethnography image. Goiânia v. to finally think about the activity of critical image nowadays. perfaz unidades (ainda que provisórias). lançam fios para a tessitura eterna de nós mesmos. jan-jun 2011 Desvio para o princípio Imagens nos enfrentam. no mesmo ato e com a mesma intensidade. superfícies e percursos cristian Mossi e Marilda Oliveira. constitui-se numa metáfora possível de ser pensada ao refletirmos acerca da ação de experienciarmos produções e mobilizações de sentidos e significados em e a partir de imagens. canais.VISUALIDADES. ‘combinação’ e ‘descarte’ que pode ocorrer a partir de discursos de diversas ordens (textuais.) 167 . orais. Ver é suturar e sobrejustapor sentidos em e a partir de imagens. possibilita acoplamentos que não são indestrutíveis. sendo refeitas e novamente suturadas. visuais. sentidos e sentidos e/ou imagens e imagens3. Ver é desdobrar afecções relacionadas ao que é visto. 165-177. suturar e sobrejustapor sentidos na teoria (.. As mutilações sígnicas. Experienciar. O que vemos e o modo como nos vemos (ou ainda a outreidade nos vê) estão intrinsecamente relacionados. deixar que ele faça parte dela própria e estabeleça entremeios. Goiânia v. A sutura é algo que provoca marcas.. ou ainda produzir inserções de partes umas às outras. Designa o processo e o resultado da ‘coleta’. Tal (des)ordem lingüística permite atrelar o pensamento à imagem. construindo em si possibilidades perceptivas que nos atravessam e nos constroem. A sobrejustaposição (licença poética resultante da união sobrejustaposta nela própria das palavras sobreposição e justaposição) evidencia o ato de sobrepor e justapor ao mesmo tempo.9 n. entre outros) e que oferece um resultado provisório na produção de possibilidades a partir dos mesmos. as refragmentações de partes podem acontecer a qualquer momento. E ao enfrentar-nos possibilitam formulações subjetivas das mais diversas ordens.1 p. vias. trazida da linguagem médica e relacionada à ação de costurar os lábios de uma ferida. sentidos e imagens. A palavra sutura. tampouco menos íngremes ou menos perigosos. Nessa perspectiva. no sentido que apreendemos o que vemos e tal possibilidade visível passa a fazer parte de nós. É um trajeto que não necessariamente nos leva mais facilmente onde queremos chegar (a produção de sentidos em e a partir de imagens). estamos habitando e possibilitando seus significados. tais conjecturas só são possíveis a partir de estilhaçamentos subjetivos que ocorrem num espelhamento contínuo o qual opera em um fluxo de troca constante entre o que nos vê e o que é visto. por sua vez. 168 VISUALIDADES. produzem modos de ser. mas especialmente os visuais. Goiânia v.1 p. ao suturarmos ou sobrejustapormos sentidos a partir de tais construções imagéticas.9 n. uma opção dentre tantas muitas. Não é uma opção melhor. o sujeito atual se vê e se reformula constantemente. Estamos pulverizando a partir delas possibilidades infinitas de desdobramento e deixando que tais potências nos atravessem e nos configurem. que são parte de nossos constantes e múltiplos percursos formativos. O que me proponho a pensar aqui são justamente alguns percursos possíveis na experimentação de imagens e na própria produção da crítica e das teorias da arte e das imagens frente ao contexto contemporâneo. mas “está aí”. produzem sujeitos. jan-jun 2011 . corpos. suturamos e sobrejustapomos sentidos e imagens quando ao experienciarmos as mesmas. mas caminhos alternativos que produzem experiências e que. É um recurso. como podemos pensá-las em meio a invenções de caminhos possíveis? Caminhos não necessariamente mais facilitados. Segundo Didi-Huberman (1998) ganhamos algo quando vemos alguma coisa.orgânicos na relação sobreposta e justaposta de camadas perceptivas/experimentativas. nem tampouco mais adequada ou menos perigosa. Permeado por discursos de diversas ordens. Podemos dizer ainda que a própria crítica e as teorias que embasam as inter-relações entre imagens e subjetividades podem ser amplamente repensadas e redimensionadas. mas é uma estratégia para quem assim se disponibiliza. 165-177. Se desse modo estamos partindo do pressuposto que imagens nos constituem enquanto subjetividades em constante reformulação. oferecem elementos para a compilação das mais variadas suturas e sobrejustaposições. ou seja. à espreita de possíveis andantes. É uma viabilidade de percurso que se interpõe ao trajeto cursado permanentemente e cotidianamente. Muito embora por vezes procuremos significados fora de nós. a ideia do desvio nos lança a possibilidade de um caminho que foge à regra usual. Em meio à essa perspectiva. VISUALIDADES. 165-177. Desse modo.9 n. transpondo limiares) (DELEUZE.) (DELEUZE. o qual propõe fluxos pelo que lhe falta (perspectiva psicanalítica).22) O desejo configura-se enquanto a força imanente do Corpo sem Órgãos. porque não existe ‘meu’ corpo sem órgãos. p. pensando uma produção crítica e/ou teórica da arte e das imagens enquanto antropologia/etnografia. Desvio estratégico 1: Um Corpo sem Órgãos (CsO) para experienciar.. necessariamente um Plano. suturar e sobrejustapor sentidos na teoria (. vegetais. Deleuze & Guattari (1996. Desfazer o organismo nunca foi matar-se. coisas. conjunções. mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento. Fraturar o sistema linear e hierarquizado postulado e reproduzido pelo organismo. organismo. GUATTARI. Caminhos enquanto estratégias que oferecem bifurcações..1 p. o que resta de mim. outros tantos cruzamentos. passagens e distribuições de intensidade. e assim criar um Corpo sem Órgãos que possa ser habitado enquanto experiência frente ao mundo. circuitos. outras tantas passagens. O dentro e o fora do corpo em estado de diálogo e experimentação. p. Um deles que atravessaremos juntamente com Deleuze & Guattari (1996). ou não) em articulação com a prática do Corpo sem Órgãos (CsO) e outro que passearemos juntamente com Canclini (2007). outros tantos atalhos que podem abrir-se ainda em muitos outros. vetor de agenciamentos de toda ordem. mas sim o organismo. 1996. jan-jun 2011 A seguir apresento duas possibilidades de caminho os quais chamarei de desvios estratégicos.24). 1996. não pelo que deseja. p. utensílios. superposições e limiares. Deleuze & Guattari (1996) propõem a experiência de criar para si um Corpo sem Órgãos. fragmentos de tudo isto. suturar e sobrejustapor imagens Porque o CsO é tudo isso: necessariamente um Lugar. homens.) 169 . necessariamente um Coletivo (agenciando elementos.. territórios e desterritorializações (. potências. inalterável e cambiante de forma. Corpo.16) propõem um desejo que se cristian Mossi e Marilda Oliveira. mas ‘eu’ sobre ele. órgãos. pensando a experiência do enfrentamento de imagens (da arte. GUATTARI. Goiânia v. não no sentido de ir contra e desfazer o próprio corpo ou os próprios órgãos. animais.. Experienciar. as matilhas. p. seria preciso dizer: vamos mais longe. Um plano onde residem intensidades capazes de agenciar coisas à sua maneira. rasgá-las. A ele “não se chega.. para adentrar e perfazer suturas. Goiânia v. perfazê-las. um conjunto de práticas”. p.9) o Corpo sem Órgãos não se configura enquanto uma noção ou um conceito. Desfazer meu próprio eu para adentrar às imagens. Guattari (1996. atravessá-las. desdobrá-las enquanto eu próprio rasgo-me e (re)costuro-me. 12-13) inferem que Em suma. mas o entre que se cria ao enfrentá-las e ao combiná-las com outros dispositivos (visuais. vazio dos fantasmas psicanalíticos. Segundo Deleuze. “mas antes uma prática. entre um CsO de tal ou qual tipo e o que acontece nele. GUATTARI. não encontramos ainda nosso CsO. os modos do masoquista-rei no deserto que ele faz nascer e crescer”. mas não se sabe o que vai ser produzido. 170 VISUALIDADES.).11). tampouco eu. 1996. conceituais). suturação e sobrejustaposição de) sentidos e imagens? O que seria possível de ser produzido ao implicar esse tipo de experimentação? Como colocam os autores Onde a psicanálise diz: Pare. Guattari (1996. Deleuze. fato que não implica falta alguma.1 p. Tal como o masoquista citado por Deleuze e Guattari (1996.preenche “de si mesmo e suas contemplações.12) que através de seu ato de perversão ao organismo busca na dor “as populações. Substituir a anamnese pelo esquecimento. Costurá-las. jan-jun 2011 .9 n. 165-177. há uma relação muito particular de síntese ou de análise: síntese a priori onde algo vai ser necessariamente produzido sobre tal modo. dobro-me e desdobro-me a fim de provocar espaçamentos e novas/provisórias visualidades e visibilidades. utilizando outra lógica que não a orgânica. não se pode chegar.. que não a da dependência. impossibilidade alguma” tal como predizia a psicanálise com Freud e a sua teoria do inconsciente. não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. a interpretação pela experienciação (DELEUZE. p. sobrejustaposições e a experienciações da produção de significados e diálogos entre sentidos e imagens. p. Mas como pensar tal experiência proposta a partir do trabalho com (a experienciação. orais. Entender que os sentidos não habitam as imagens. é um limite”. busco aqui a experimentação desse corpo não orgânico. reencontre o seu eu. nunca se acaba de chegar (. textuais. Goiânia v.9 n. suturar e sobrejustapor sentidos na teoria (. jan-jun 2011 análise infinita em que aquilo que é produzido sobre o CsO já faz parte da produção deste corpo. de divisões e de sub-produções.) 171 . 1996. cristian Mossi e Marilda Oliveira. já está compreendido nele. isto não em nome de uma generalidade mais alta. Experienciar. GUATTARI. visualidade e pensamento passam a fazer parte de uma coisa só. 165-177.) pela tensão entre estar lá e estar aqui. O campo de imanência não é interior ao eu. além de outras imagens que se transformam constantemente nesse processo. portanto. p 18). pôr em relação o que é diferente com o que é próprio.. Na tentativa de criar para si um Corpo sem Órgãos com o intuito de experienciar. Trata-se de criar um corpo sem órgãos ali onde as intensidades passem e façam com que não haja mais nem eu nem o outro.VISUALIDADES. subjetividade.. a sutura e a sobrejustaposição designam aqui a ação de costurar. sobrepor e justapor imagens e os sentidos aguçados por elas ao mesmo tempo. sobre ele. a justaposição (através da sutura) de imagens e sentidos presentes entre espectador e visualidade. intensidades que não se pode mais chamar de extensivas. Desvio estratégico 2: A crítica/teoria da imagem enquanto etnografia (.143). mas também não vem de um eu exterior ou de um não-eu. Ele é antes como o Fora absoluto que não conhece mais o eu. (.) fazer antropologia caracteriza-se. do mesmo corpo por onde atravessam-se inúmeras intensidades de desejo as quais possibilitam produzir e combinar sentidos. Portanto. 2007. Nesse sentido. p. de uma maior extensão.. sem preocupar-se de antemão com que tipo de resultado será possível a partir dessa ação.. bem como a sobreposição de camadas de sentido que encontram-se nos diversos modos de ver e pensar tais imagens que estão em constante estado de devir. mas em virtude de singularidades que podem mais ser consideradas pessoais. mas ao preço de uma infinidade de passagens. Há.1 p. entendido como outra diferença (CANCLINI.. suturar e sobrejustapor imagens.. entendendo que tais sentidos problematizam e criam outras tantas imagens mentais4 no espectador que efetiva esta atividade. porque o interior e o exterior fazem igualmente parte da imanência na qual eles se fundiram (DELEUZE. do instrumental ofertado pela linguagem e de determinados aprofundamentos teóricos. jan-jun 2011 . p. em que medida podem se tocar as ações desses profissionais no contexto contemporâneo? O que significaria propor uma antropologia. inclusive da arte o faz com seu instrumental de trabalho que não são os grupos sociais/culturais como no caso do antropólogo/etnógrafo. mas sim a produção imagética legitimada e entendida enquanto artística por determinado contexto ou não. Ou seja. 165-177. Portanto me pergunto. estamos a entendendo enquanto uma das partes do estudo antropológico que objetiva elaborar os dados obtidos em uma pesquisa de campo.9 n. ou ainda o estudo descritivo que pretende dar visibilidade aos diversos aspectos sociais e culturais de um determinado grupo social.1 p. buscando entender a imbricação do econômico e do simbólico a partir da diversidade de comportamentos e representações. o antropólogo tam172 VISUALIDADES. De antemão. mas remaneja seu lugar de fala entre o eu (visto pelo olhar do outro) e o outro (visto pelo seu olhar).143) propõe novos modos de ver o trabalho antropológico na contemporaneidade. entendemos o teórico/crítico da arte enquanto profissional que através de suas aspirações pessoais. o qual pode nos ajudar a pensar algumas questões tensionadas entre os territórios ocupados pelo antropólogo/etnógrafo e pelo teórico/crítico de arte e da imagem em seus exercícios profissionais no contexto contemporâneo. além de aprofundar-se em questões específicas de cada grupo social/cultural estudado. assim como o antropólogo/etnógrafo não se utiliza de um olhar neutro em seu discurso. Para este teórico. pretende dar a ver (no sentido de propor) um tipo específico de apreensão da produção artística e imagética. Goiânia v. ou uma etnografia da obra de arte e das imagens? Se aqui estamos pensando a etnografia segundo seu conceito denotativo. Canclini (2007.Inicio este segundo desvio estratégico com base neste fragmento de Canclini. podemos destacar que. assim também o teórico/crítico que possibilita a produção de sentidos a partir de imagens de diversas ordens. podemos ponderar inúmeros pontos de contato entre tais atividades. Por analogia. ser antropólogo significa estudar a interculturalidade em sociedades complexas ou processos de interação entre várias sociedades. Nesse sentido. ele é artificioso”. além de pensar articulações entre as próprias imagens/obras. Além de reinventar constantemente seu corpo-si e assim transformar o entorno. 42) “(. o próprio recorte político e de olhar do pesquisador referendando o grupo social/cultural estudado ou as produções destes grupos (como as visualidades). p.) o que se costuma chamar de ‘si-mesmo’ não diz respeito apenas ao interior de um corpo.VISUALIDADES. ele extrai um poder independente do exercício atual. Goiânia v..94) comenta que o sujeito (portador e reinventor.132). mas suscitam teorias e práticas discursivas enquanto fenômenos). pelo manejo mais ou menos hábil das táticas discursivas com que pode conseguir tudo isso. e ele ultrapassa sua parcialidade própria”. Para o autor “o sujeito inventa.. Como pressupõe Greiner (2005. Ou seja. pela sua posição (dominante ou pretendente) no campo antropológico. Hoje. “daquilo que o afeta em geral. ordena-se parcialmente e transitoriamente. Ao passo que propõe coisas no e para os territórios nos quais habita.) 173 .. p. o sujeito reinventa-se a si próprio. as experiências anteriores. por sua vez. propositor daquilo que chamamos de contexto/mundo) “reflete e se reflete”. Experienciar. O teórico/crítico da arte e da imagem. pelas relações que estabelece com o grupo que estuda e com os diferentes setores do mesmo. uma função pura. a subjetividade. mas às conexões do interior com o exterior”. são pontos de atravessamento no momento em que há uma organização dos escritos que perfazem o resultado (parcial) de sua investigação.. não ocupa-se de grupos sociais/ culturais mas dos imbricamentos. Como relata Canclini (2007. jan-jun 2011 bém se ocupa das diversas tensões e inter-relações de fatores que se entrelaçam no mundo contemporâneo para formar o que chamamos de interculturalidade.1 p. enfim. dos cruzamentos que são possíveis entre a prática da teoria (produções teóricas acerca das obras e das imagens no contexto onde elas emergem) e a teoria posta em prática (imagens e obras artísticas que partem não necessariamente de teorias. p. suturar e sobrejustapor sentidos na teoria (. Nessa mesma perspectiva Deleuze (2001. Dentro dessa perspectiva. ou pelo que quer demonstrar – sobre este grupo e sobre si mesmo – à comunidade acadêmica para a qual escreve.9 n. coloca em estado de tensão e diálogo o dentro e o fora de seu ser enquancristian Mossi e Marilda Oliveira. sabemos que o que um antropólogo declara ter encontrado em campo está condicionado pelo que se disse ou não se disse previamente sobre este lugar. 165-177. isto é. partindo da instância que criam através da linguagem sistemas de mediação e significação do mundo. as subjetividades e aquilo que os rodeia advém dos trânsitos que remetem a sortilégios do ver e dos reflexos que conduzem ao auto-olhar-se.133) propõe três operações para serem consideradas ao conduzir um trabalho antropológico comprometido com a demanda atual para esta área e que podem de algum modo fazer-nos refletir acerca do trabalho teórico/crítico no campo da arte e das imagens: a) incluir na exposição das investigações a problematização das interações culturais e políticas do antropólogo com o grupo estudado. p. Canclini (2007. 94). ou a ‘possíveis realidades’. Para tanto. Porém. a do grupo social/cultural (no caso do antropólogo/ etnógrafo) e a da obra (no caso do teórico/crítico da arte e da imagem) – que propriamente uma tentativa de esclarecimento ou de aproximação com a veracidade acerca dos fatos. Assim. o sujeito.to existência num movimento em que o dentro (pensamento e subjetividade) possibilita intermináveis foras que expandem o ser em seu sentido amplo. o que é produzido tanto pelo antropólogo. Aí está o único conteúdo que se pode dar à idéia de subjetividade: a mediação. o sujeito se reflete (DELEUZE 2001. de acordo com diversos aspectos que o definem também enquanto alteridade (o outro). jan-jun 2011 . os quais referem-se a ‘possíveis verdades’. a transcendência.9 n. 165-177. p. Tais produções referem-se mais a um diálogo entre ‘verdades’ – por exemplo. As reflexões e experiências do pensamento possibilitadas por dispositivos (como as imagens da arte). quanto pelo teórico/crítico da arte e das imagens não pode ser considerado como ‘a verdade’ ou ainda como ‘a realidade’. diante e em relação ao objeto de estudo. cabe observar que é duplo o movimento de desenvolver-se a si mesmo ou de devir outro: o sujeito se ultrapassa. b) suspender a pretensão de abarcar a totalidade da sociedade examinada e prestar atenção à fraturas. à contra- 174 VISUALIDADES. servem enquanto interlocutores de vivências e espelhamentos. O que se desenvolve é sujeito. além de constituírem os sujeitos e seus contextos. Goiânia v. movimento de desenvolver-se a si mesmo.1 p. Assim. Nesse sentido. o sujeito se define por e como um movimento. sobretudo. às múltiplas perspectivas sobre os fatos. ao contrário de linear e temporal. Aos aspectos inexplicados. Assim. produzir um discurso que possa ser mais propositivo e menos prescritivo. A partir 175 cristian Mossi e Marilda Oliveira. entre os impactos causados por elas nos mais variados territórios interpretativos que as recebem. percebemos a possibilidade de pensarmos uma teoria e uma crítica da arte e das imagens onde seu produtor apareça enquanto sujeito que concentra em si um lugar de fala. p. enquanto um dispositivo amplificador de experiências múltiplas.) . Em vez do autor monológico. busca-se a polifonia. onde há um contínuo remanejamento de seus territórios perceptivos. suturar e sobrejustapor sentidos na teoria (. portanto. de uma seleção. oferecendo a pluralidade de vozes das manifestações encontradas. ou de subjugar algumas em detrimento de outras hierarquicamente. transcrevendo diálogos ou reproduzindo o caráter dialógico da construção de interpretações. c) recriar esta multiplicidade no texto. interpelando-o acerca dele próprio enquanto produtor de sentidos a partir da perspectiva que ocupa no exercício do ver. por ser somente um fragmento do todo que é a produção artística e imagética. entendemos que tanto a teoria quanto a crítica da arte e das imagens podem estar mais atentas à experiência numa relação mais fluída e espacial. uma perspectiva própria e que considera que sua produção é parte de um recorte. onde as visualidades ocupam o lugar do outro frente a ‘mim’. Já.1 p. onde são lançados questionamentos e problematizações mais que a tentativa de tradução dos significados das obras e das imagens. variadas. entre as intersignificalidades que expressam um entre prenhe de sentidos múltiplos. pensando já no terceiro aspecto.. Busca-se. adentrando no segundo aspecto.9 n. Goiânia v. 133) Dentro do primeiro aspecto. 165-177. jan-jun 2011 dições. mas também ‘eu’ ocupo o lugar do outro frente às imagens. 2007. autoritário. propõe-se uma etnografia da obra de arte e das imagens. que suscitam no espectador uma etnografia de si. Experienciar.. uma etnografia da obra de arte e das imagens se ocupa das inter-relações que são possíveis de serem tecidas entre as visualidades e seus contextos de origem. propor uma antropologia/etnografia das obras de arte e das imagens de modo não isolado. Além disso. (CANCLINE. mas de forma a problematizar tensões e inter-relações.VISUALIDADES. bem como das relações dialógicas entre elas. a autoria dispersa. para assim. 9 n. DELEUZE. 34. Gilles. Nessa pesquisa. são também imagens somatossensoriais que dizem respeito a diversos aspectos dos estados corporais. Todos os símbolos em que podemos pensar são necessariamente imagens mentais. 2007. 165-177. intitulada ‘Possíveis territorialidades e a produção crítica da arte – suturas e sobrejustaposições entre vestes sem corpos e corpos sem vestes’. Referências CANCLINI.. ações). O que vemos. mapas de sentido se desenham entre visualidades. GREINER. para falar do contexto atual da produção crítica da arte. Néstor García.). p. NOTAS 1. São os sentimentos obsessivamente repetidos que desenvolvem o sentimento de si-mesmo. 1998. desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. vol. Mesmo os sentimentos que constituem o pano de fundo de toda vida mental. teorias e reflexões que são oriundas dessas múltiplas conjunções. na linha de pesquisa Arte e Cultura. Georges. (. Diferentes. as quais apresentam na poética de algumas de suas obras ‘vestes sem corpos’ e ‘corpos sem vestes’ respectivamente.. Marilda Oliveira de Oliveira. DIDI-HUBERMAN. 2. defendida em março de 2010. Rio de Janeiro: Ed. o que resultaram em produções verbais e visuais (as quais chamei de suturas e sobrejustaposições). estamos sempre construindo imagens. através de um movimento que vai do exterior para o interior ou vice-versa (quando. o que nos olha. Dra. 1996. Félix.dessa breve conjectura. São Paulo: Annablume. 3. propus-me a tecer relações entre as obras das artistas contemporâneas Claudia Casarino e Vanessa Beecroft. lugares. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2. jan-jun 2011 . sob orientação da Profa. Goiânia v. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. Greiner (2005. Ed. 2005. Recebido em: 31/03/2011 Aceito em: 11/06/2011 176 VISUALIDADES. São Paulo: Ed. As imagens mentais são vistas aqui enquanto possíveis imagens que se formam de modo subjetivo no momento de diálogo existente entre o eu-espectador e a imagem-obra proposta pelo outro-produtor da mesma. sentidos produzidos.1 p. durante o ato de conhecer”. 34. 80) diz que “quando entramos em contato com objetos (pessoas. reconstituímos objetos através da memória). Rio de Janeiro: Editora UFRJ. por exemplo. Tal licença poética que trago para problematizar neste artigo foi cunhada por mim e melhor aprofundada em minha dissertação de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGART) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). GUATTARI. Christine. jan-jun 2011 crISTIAN POLETTI MOSSI [email protected]. Educação e Cultura (GEPAEC). Mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGART) com bolsa CAPES/Reuni integral. cristian Mossi e Marilda Oliveira. Doutora em História da Arte (1995) e Mestre em Antropologia Social (1990). MArILDA OLIVEIrA DE OLIVEIrA marildaoliveira27@gmail.. Coordenadora do GEPAEC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte. Membro pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte.) 177 . Experienciar. Educação e Cultura – Diretório CNPq. Representante da ANPAP no RS e Editora da Revista Digital do LAV.com Professora do Programa de Pós Graduação Educação (PPGE/CE/ UFSM). Bolsista CAPES.1 p. Bacharel e Licenciado em Desenho e Plástica pela mesma instituição.com Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Maria/RS (UFSM) pela linha de pesquisa ‘Educação e Ates’. suturar e sobrejustapor sentidos na teoria (. 165-177. ambos pela Universidad de Barcelona – Espanha.. Goiânia v.9 n. Especialista em Design para Estamparia. Goiânia v.9 n.1 p. jan-jun 2011 . 165-177.178 VISUALIDADES. encarar o Design de Entretenimento como parte de um sistema politeísta que deva articular. as representações simbólicas em seu meio de atuação e propagação sociocultural.Contribuições da função mítica no design de entretenimento MArcOS NAMBA BEccArI Resumo Pretendendo uma abordagem transdisciplinar. 179-195. através de exemplos de histórias em quadrinhos. de forma eclética e pluridimensional. filmes e jogos digitais. Campbell e autores relacionados. jan-jun 2011 179 . A proposta é.1 p. portando. Palavras-chave: Design de entretenimento. este trabalho objetiva demonstrar. Goiânia v. como o Design de Entretenimento pode estar relacionado à noção de “mito” tal como postulada por Jung. narrativas cinematográficas VISUALIDADES. linguagen mítica.9 n. so eclectic and multidimensional. this study aims to demonstrate. therefore.1 p. Keywords: Entertainment Design. mythical language. Goiânia v. cinematic narrative 180 VISUALIDADES. Campbell and related autors. movies and digital games. treating the Entertainment Design as part of a polytheistic system that should articulate.9 n. using examples from comics. 179-197.Contributions of the mythic function in entertainment design MArcOS NAMBA BEccArI Abstract Intending an transdisciplinary approach. jan-jun 2011 . the symbolic representations in its way to work and sociocultural spread. how the Entertainment Design may be related to the notion of “myth” such as postulated by Jung. The proposal is. Assim. mais imediata e criadora. Especialmente no campo do Design.VISUALIDADES. podemos considerar os mitos. o conhecimento pode ser obtido e produzido por diversos caminhos – podemos. objetos. a arte. mas. artistas. O raciocínio lógico nos permite analisar fatos. a religião e a ciência. al. O mito não só está longe de toda realidade empírica. uma área do conhecimento capaz de interpretar os resultados científicos de outras áreas e traduzi-los em objetos de uso. está em evidente contradição com ela. 179-197. em certo sentido. Para isso..]. mas não cria sentido. para Cassirer (1962). compreender a relação existente entre eles. possuindo uma lógica própria que é diferente do pensamento lógico científico. na esteira de Cassirer (1962). 1995). obras. como uma forma intelectual de compreensão do mundo. (2008).. a vivência humana do mundo tem sua primeira expressão no mito e na linguagem. entender o Design como metaconhecimento.9 n. jan-jun 2011 Introdução: Mito e Design Desde sempre o ser humano atribui significados que vão além da racionalidade lógica e objetiva. Goiânia v. Sendo assim. conforme discorrem Campos et.1 p. poetas e designers dão sentido ao mundo imaginando e construindo filosofias. contribuições da função mítica no design de entretenimento 181 . podemos recorrer apenas à imaginação (HILLMAN. isto é. De forma análoga. depois no pensamento lógico e propriamente empírico. Marcos Namba Beccari. teorias. inclusive. Cassirer (1976. p. assim como a linguagem. os grandes teóricos. De acordo com o autor mencionado. a experiência mítica é. 58) nos explica que: Mesmo o mito tem certo aspecto objetivo e uma função objetiva definida enquanto o ser humano quer objetivar uma intelecção do mundo [. 1 p. jan-jun 2011 . 179-197. A questão que nos parece pertinente é: qual a relação entre o Design e os mitos? Ou melhor: como o Design pode traduzir os mitos em objetos de uso? Se pensarmos no mito como uma explicação coletiva do mundo. por exemplo. consequentemente. não podemos entender o mito. não é? Mas o que é diversão realmente? É um gênero muito sério.] que relata uma explicação do mundo” (BRANDÃO. “ser um objeto. Em uma entrevista concedia à Laura Pozzo. p. como afirma Roland Barthes (1970. Assim sendo. numa tendência a se comunicar. não podemos pensar o mito “pelo objeto de sua mensagem. 1986. 39). mas sim em termos de experiência afetiva e narrativa. seja enfocando a funcionalidade.. os mitos..Embora a palavra mito possa ter múltiplos significados. uma forma”. o psicólogo James Hillman apresenta uma definição interessante de entretenimento: Acho que o leitor quer ser convidado a participar de alguma coisa. 1970). Em decorrência disso. p. p. 82). o Design empenha-se em entender o modo pelo qual as pessoas se comunicam através de objetos e imagens. Para compreendermos. a experiência do usuário. Seria uma carga insuportável! Comunicá-la alivia” (CROATTO. E.. como “Uma verdade que esconde outra verdade” (BRANDÃO. Noutras palavras. Esta experiência “não pode ser vivida de forma individual e isolada.] Vamos admiti-lo: é diversão. partiremos do pressuposto de que “o mito é sempre uma representação coletiva [. o significado ou a estética. o que implica numa necessidade comunicativa. mas pelo modo como a profere” (BARTHES. um conceito ou uma ideia: ele é um modo de significação. ver algo acontecer repentinamente na espontaneidade que entrevistas supostamente deveriam produzir. nenhum objeto de estudo parece ser mais importante para o Design do que as formas de relação que se estabelecem entre humanos e objetos ou imagens – dentre tais formas. podemos levar em conta as dimensões simbólicas e míticas que estão enraizadas na relação objetousuário. Goiânia v. o mito não pode. muito importante. 2001.9 n. por exemplo. E parece-nos que tais dimensões – as traduções dos mitos em objetos de uso – são mais evidentes em peças de entretenimento. recorrentes em análises semióticas. p. 38). em termos de sinal e significado (que configuram o mecanismo fundamental da linguagem). 1986. [. 130). Ora.. estamos falando de uma experiência participativa. 182 VISUALIDADES. designado aqui por função mítica.] Entretenimento mantém este mundo da fantasia. [. p. Acreditamos. para uma breve análise dos quadrinhos Sandman. 179-197. Goiânia v. pois. 1989. isto acontece na fantasia. configurando assim uma experiência inerente a todos aqueles que são capazes de simplesmente imaginar. 15). na imaginação. personagens e narrativas muito semelhantes. Hellblazer e Spawn e dos jogos Resident Evil e Mortal Kombat. A jornada do herói e outros mitos Não é necessário ser um grande conhecedor das diversas culturas para perceber que muitas religiões apresentam. entendemos que o estudo dos mitos pode oferecer aos designers de entretenimento um novo olhar.. jan-jun 2011 p. isto é. nossa reflexão parte das noções de monomito e axis mundi. através de exemplos de histórias em quadrinhos e jogos digitais. O psicólogo suíço Carl Gustav Jung (2000) nos explica que isso acontece porque os mitos são redes de símbolos que. A palavra entre-ter significa que tem alguma coisa acontecendo entre o leitor e nós. 2005. em seus mitos. Por fim.1 p. Portanto. seus raciocínios e sensações. Como os mitos. existe” (PITTA. cunhadas por Campbell (1997). 16-17) Entretenimento.]. sobre seu próprio papel sociocultural. Em seguida. Com ênfase no tema “mito e narrativa cinematográfica” – considerando neste caso outras mídias além do cinema –. da imaginação [. apresentaremos o conceito de Linguagens Míticas de modo introdutório e direcionado ao campo do Design. E se a imaginação é “a raiz de tudo aquilo que. Jung e autores relacionados. contribuições da função mítica no design de entretenimento . 183 Marcos Namba Beccari. por sua vez... para o homem.VISUALIDADES. retomaremos algumas pesquisas correlatas ao artigo vigente e encerraremos com a possibilidade de se encarar o designer de entretenimento como sendo um articulador no campo do simbólico. sinalizando a possível contribuição e relevância de uma função mítica para a subárea do Design de Entretenimento. como o Design de Entretenimento pode estar relacionado à noção de mito adotada por Campbell. este trabalho objetiva demonstrar. que o entretenimento é um impulso natural do ser humano. inseparável de seus sentimentos. o entretenimento também tende à comunicação e à socialização.9 n. (HILLMAN.. conclui um novo aprendizado. o qual é guiado pelo mentor/mestre. personagens clássicos (como o herói. Desejo. Desespero e Delírio – que são manifestações antropomórficas de aspectos comuns a todos os se184 VISUALIDADES. ao cinema com Star Wars (1977). Partindo de tal pressuposto. uma das mais respeitadas filósofas brasileiras. 1997) – que. descrita em O Herói de Mil Faces (CAMPBELL. por fim. tal como descrito por Campbell. No primeiro filme da trilogia Matrix (1999). o monomito. jan-jun 2011 . Com relação às histórias em quadrinhos. Além desses. o governante do Sonhar (o mundo dos sonhos). 9-11). conforme veremos adiante) que nossa mente usa para lidar com o dia a dia. como no diálogo entre a consciência e a inconsciência. roteirista da Disney. trama criada por Neil Gaiman em 1988 para o selo Vertigo da editora DC Comics e que narra a vida de Sonho. o americano Joseph Campbell dedicou a vida para estudar os padrões que se repetem nos mitos de todas as culturas. É dessa familiaridade que viria a empatia e popularidade dessas histórias. mas se dão a partir da interatividade de aspectos inerentes à psique humana. Uma Linda Mulher (1990). Christopher Vogler. como o famoso Mito da Caverna de Platão que configura a premissa dramática de todo o enredo – Marilena Chaui (2010.9 n.não são gerados de maneira consciente. seu mestre e seu inimigo) correspondem a clichês (ou arquétipos. 179-197. o monomito se manifesta principalmente na cena em que o protagonista Neo é levado pelo guia Morfeu para ouvir o oráculo. Tal protagonista é um dos 7 perpétuos (the Endless) – à saber. Morte. podemos eleger Karatê Kid (1984). Destino. Matrix é um caso que se apropria de muitos outros mitos. 1990). Sonho. conforme o diretor declara em entrevista a Moyers (in CAMPBELL. Contudo. Destruição. nos apresenta uma análise detalhada dos mitos gregos presentes em Matrix. também declara ter usado a receita de Campbell nos anos 80 em A Bela e a Fera e O Rei Leão (VOGLER. 1997). as quais narrariam uma mesma jornada – a jornada do herói. enfrenta um desafio e. O reconhecido diretor George Lucas possivelmente foi o primeiro a trazer o monomito. embora tenha diferentes faces em cada cultura específica. talvez o exemplo mais conhecido de abordagem explicitamente mitológica seja Sandman. O Silêncio dos Inocentes (1991) e Up – Altas Aventuras (2009) como exemplos que seguem nitidamente a jornada do herói: começando pelo chamado do herói. p. Para Campbell (1997). representa o mesmo mito.1 p. Goiânia v. 1 p. passando dois anos internado no manicômio. Sonho descobre que Lúcifer está abandonando seu cargo de governante e. p. Constantine passou a ser um mago que não hesita em arriscar vidas alheias para livrar-se da maldição que ele mesmo construiu. Isso porque decidiu fazer um pacto com um demônio para voltar ao plano da Terra e poder ver sua esposa novamente. ambos contendo um segredo a ser protegido e que se revela.9 n. 179-197. Contudo. as “Mensagens dos reinos inferiores podem ascender à eternidade. 2009): Sonho visita o Inferno para resgatar sua ex-amante. De maneira similar. no fim. Disposto a uma luta de vida ou morte. após sua morte. jan-jun 2011 res humanos. Neste sentido. R. recorrendose então ao conceito de axis mundi descrito por Campbell (1997. o axis mundi é definitivamente predominante na graphic novel (novela gráfica) Hellblazer de Alan Moore: o protagonista John Constantine é levado ao inferno com sua amiga Astra. amaldiçoado. após uma longa conversa. o monomito não corresponde à complexidade politeísta pretendida por Gaiman. Não se tratam de Deuses. Marcos Namba Beccari. contemplamos o axis mundi em Spawn de Todd McFarlane: o protagonista Al Simmons foi um heróico soldado do governo americano para. R. e as bênçãos dos reinos mais elevados podem descer a níveis mais baixos e serem divulgadas a todos” (ELIADE. mas de entidades superiores que mantém coeso o universo físico e todos os seres vivos. Após a internação. Nada. 22): símbolos centrais que atravessam as culturas humanas postulando que a eternidade e a terra encontramse entre os reinos superiores e inferiores. Sonho recebe a chave do Inferno. 48). Este conceito de axis mundi é bastante explorado na história intitulada “Estação das Brumas” (GAIMAN.VISUALIDADES. Então todas as divindades do universo partem para a busca da chave concedida ao Sonho. revelando a maldição que Lúcifer conseguiu se ver livre. Goiânia v. Podemos reconhecer neste enredo semelhanças nítidas com a premissa dramática da trilogia O Senhor dos Anéis de J. não obstante. Mas a culpa de não ter conseguido salvar Astra lhe custou sua sanidade. Neste contexto. 1991. tornar-se um soldado do inferno. p. contribuições da função mítica no design de entretenimento 185 . tendo uma filha com ele (Simmons era estéril enquanto vivo). E para manterem desperto o interesse das pessoas. Fato é que ambas as obras mencionadas fazem questão de desenvolver uma trama narrativa que exige do leitor uma atenção redobrada. conseguindo posteriormente fugir. Tolkien e A Liga Extraordinária de Alan Moore. surpreendendo-se logo em seguida ao vê-la casada com o seu antigo melhor amigo e. assim como uma constante reflexão. essas obras recorrem com primazia ao caráter de familiaridade que os mitos naturalmente estabelecem. Partindo para os jogos digitais, a complexidade e a riqueza dos enredos míticos aumentam na medida em que a trama narrativa torna-se interativa e um mesmo jogo permite diferentes desfechos. A série Resident Evil criada por Shinji Mikami traz o mito do apocalipse em um contexto futurista tão complexo que acabou rendendo sete livros de adaptação ficcional, dentre eles o best-seller “The Umbrella Conspiracy” de S.D. Perry (1998). A premissa dramática gira em torno de uma sabotagem interna na Umbrella Corporation que ativa os mecanismos de defesa da Rainha Vermelha que, por sua vez, mata a todos que estão no local para que a infecção não chegue à superfície. No entanto, sem menosprezar o mito de Resident Evil, é certamente em Mortal Kombat, criado por Ed Boon e John Tobias, que podemos contemplar uma mitologia um pouco mais complexa e elaborada. Partindo de uma gênese ontológica que teria criado seis reinos distintos – à saber, Earthrealm (Reino da Terra), Netherrealm (Reino Inferior), Outworld (Outro Mundo), Orderrealm (Mundo da Ordem), Chaosrealm (Mundo do Caos) e Edenia (Paraíso) –, a trama narrativa percorre a guerra entre Raiden (Deus do Trovão e imperador de Earthrealm) contra Shao Kahn (imperador de Outworl e Edenia), sendo somente após o Armagedom que Raiden finalmente é derrotado por Shao Kahn. Pouco antes de morrer, contudo, Raiden envia uma mensagem psíquica para o seu eu do passado. O tempo retrocede para, após toda essa história, dar início ao primeiro jogo (Mortal Kombat I), quando o Raiden do passado recebe a mensagem e não sabe o que está havendo, mas sabe que algo ruim está para acontecer (CASSEL; JENKINS, 2000). Todos esses exemplos evidenciam uma verdadeira função mítica do entretenimento que, frente à literatura consultada, nos parece ultrapassar as definições sobre fantasia ou ludicidade (Cf. LOPES, 2002 e PINHEIRO; BRANCO, 2006), na medida em que tais definições não suprem a profundidade que os mitos solicitam no campo do entretenimento. Mas o que, afinal, significa um mito? E como uma possível função mítica poderia contribuir com o Design de Entretenimento? Linguagens Míticas A palavra Mito deriva do grego miéin, manter a boca e os olhos fechados. Derivados de miéin são também: mystérion (misté186 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 179-197, jan-jun 2011 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 179-197, jan-jun 2011 rios) e mýstes, palavra que designa os neófitos nos mistérios, ou os iniciados (BRANDÃO, 1986, p. 25). O mito está, portanto, associado de forma definitiva ao misterioso e ao que não pode ser expresso pelo discurso lógico da consciência – o mundo do logos propriamente dito. Croatto (2001, p. 9) considera o mito como sendo uma experiência do transcendente e, “como toda experiência humana, ela também tende à comunicação e à socialização. Precisa ser dita”. Seguindo raciocínio semelhante, Boechat (2008) postula que o tecido do qual são feitos os mitos, os contos de fadas, as fantasias e os sonhos é basicamente o mesmo: a Mitopoese, isto é, a capacidade natural e espontânea que tem a psique humana de produzir imagens mitológicas ou arquetípicas nas mais variadas situações do cotidiano. Neste ínterim, Campbell (1972, p. 20, tradução nossa) nos fornece uma imagem interessante que resume o papel dos mitos em nossas vidas: A vida é como chegar atrasado ao cinema e ter de imaginar o que estava acontecendo. [...] Mitos são sonhos públicos. Sonhos são mitos privados. [...] Temos de deixar a vida que planejamos para aceitar o que está esperando por nós. [...] É somente descendo o abismo que recuperamos os tesouros da vida. Onde você tropeçar, aí está o seu tesouro. Noutras palavras, a função mais importante dos mitos, segundo Campbell (2008), é a de orientar as pessoas em suas travessias de vida, ajudando-as a identificar e alcançar a realização plena. Em sentido similar, Jung (1991) usa o termo Deus para fazer a ponte entre os mundos interno e externo. Na qualidade de uma vivência, trata-se de algo tão real quanto o símbolo que o representa (HOLLIS, 1997). Seguindo este raciocínio, “ler os mitos com a perspectiva da imaginação, com uma receptividade imaginal, informa-nos que os deuses não se foram, na verdade. Só mudaram de forma e hoje nos movimentam de modos novos” (HOLLIS, 1997, p. 177). E se o mito está relacionado à psique humana, “é necessariamente complexo e abordável a partir de pontos de vista diferentes” (CROATTO, 2001, p. 9), especialmente a partir do Design de Entretenimento. Joseph Campbell (2008), buscando uma visão ampla dos sentidos do mito para o ser humano, propõe quatro abordagens possíveis do mito: cosmológica, metafísica, sociológica e psicológica. Neste trabalho trataremos apenas da abordagem psicológica – se, por um lado, o indivíduo necessita entender Marcos Namba Beccari. contribuições da função mítica no design de entretenimento 187 o cosmos e a natureza à sua volta, inserindo-se em uma ordem social significativa, ele necessita também, fundamentalmente, entender-se a si mesmo. Esta é a abordagem psicológica do mito, a qual remonta, por exemplo, a problemática básica do Oráculo de Delfos descrito por Platão: conheça-te a ti mesmo. Trata-se também da questão do enigma posto pela esfinge de Édipo: um enigma simbólico, que exige uma resposta também simbólica e não uma resposta simples, racional, como Édipo formulou (BOECHAT, 2008). Tal atitude excessivamente racional de Édipo acaba tendo consequências nefastas, assim como Sófocles relata na tragédia Édipo-rei (Cf. BRANDÃO, 1987). Isso tudo apenas para entendermos que: [...] a imagem é a linguagem fundamental da alma e os símbolos são a chave para a compreensão das imagens. Os mitos, por sua vez, são estórias simbólicas que se desdobram em imagens significativas, que tratam das verdades dos homens de todos os tempos (BOECHAT, 2008, p. 21). As linguagens específicas que expressam a experiência simbólica podem ser classificadas, segundo Croatto (2001), como: símbolos, elementos constitutivos também de todas as outras linguagens; mitos, enquanto redes narrativas de símbolos que apresentam um papel social instaurador; e ritos, condições espaço-temporais que permitem a projeção e a recitação dos mitos. Daí decorre que Jung (1978) tenha proposto com ênfase o que denominou de mythologein – mitologizar a psique para a melhor compreensão de seus processos. Ele enfatizou também que cada pessoa deveria descobrir o seu mito pessoal para compreender seu papel no mundo e seu destino (JUNG, 1978, p. 260), do mesmo modo que Campbell postula que os mitos devem fazer com que o indivíduo retome contato com o nível mais profundo de seu próprio inconsciente, que é também o inconsciente de toda a sociedade a qual pertence (Cf. CAMPBELL, 2008, p. 20). Retomando as palavras de Jung (1978, p. 261): Para a razão o fato de mitologizar (mythologein) é uma especulação estéril, enquanto que para o coração e a sensibilidade esta atividade é vital e salutar: confere à existência um brilho ao qual não se queria renunciar. Mas como Jung e tantos outros autores chegaram a tal constatação? 188 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 179-197, jan-jun 2011 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 179-197, jan-jun 2011 Instigado com o fato de seus pacientes relatarem sonhos idênticos a mitos de outras culturas, o psicanalista suíço Carl Gustav Jung propõe o conceito de inconsciente coletivo, uma espécie de memória da experiência de toda a humanidade. O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia de inconsciente coletivo (claramente influenciada por Platão e os neoplatônicos), indica a existência de determinadas formas na psique que estariam presentes em todo tempo e em todo lugar e que, ao encontrar-se com uma determinada cultura, produz símbolos diversos. Em outras palavras, o inconsciente coletivo seria uma parte da psique humana imutável, dividida por todos os homens, mas de caráter não evolutivo na medida em que não se modifica. Trata-se de uma herança que nos fornece as estruturas de pensamento (arquétipos) necessárias para a formação de todas as culturas existentes. Assim como os arquétipos, contudo, o inconsciente coletivo não é verificável diretamente. Mas, como vimos, é possível constatar entre diversos mitos, hábitos e culturas a existência de alguns temas que se repetem frequentemente, os quais representam para Jung (2000, p. 5354) as estruturas arquetípicas de pensamento: [...] os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos. [...] O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência. Mas como se formam, afinal, os mitos de uma determinada cultura? Segundo Pitta (2005, p. 19), “não se trata de classificar uma cultura em tal ou tal estrutura, mas de perceber qual é a polarização predominante, isto é, o tipo de dinamismo que se encontra em ação”. Em resumo, o arquétipo é vazio em si mesmo (pois é apenas uma estrutura), mas ao entrar em contato com uma determinada cultura preenche-se dela mesma, produzindo assim um símbolo que, em sua vez, ao organizar-se com outros símbolos numa rede narrativa, forma um mito. 189 Marcos Namba Beccari. contribuições da função mítica no design de entretenimento O antropólogo Gilbert Durand (apud PITTA, 2005) considera a existência de uma dimensão mais abstrata, anterior ao arquétipo, denominada Schème. Trata-se da intenção fundamental, aquela polarização ou dinamismo predominante em determinada cultura, correspondente ao verbo, à ação básica (como dividir, unir, confundir, etc.), que permite ao arquétipo tornar-se imagem e, portanto, símbolo. Por exemplo: o schème unir/proteger pode enfatizar o arquétipo da Grande Mãe que, por sua vez, manifesta-se em símbolos como Virgem Maria na mitologia cristã, Sofia nos gnósticos, Deméter na mitologia grega, Ísis na mitologia egípcia, etc. É importante ainda, conforme salienta Mizanzuk (2009), lembrarmos que tanto o schème e o arquétipo quanto o símbolo e o mito são amorais, isto é, não definem o que é “bom” e o que é “mau”: embora Eva tenha sido culpada, no mito cristão, pela serpente (simbolizando Satanás) de ter disseminado o caos no mundo, o sujeito pode interpretar o mesmo mito de formas diversas. Os gnósticos cristãos, por exemplo, consideram a serpente como o verdadeiro Deus (o Inominável) e Eva como sendo quem liberta o homem das forças opressivas do Demiurgo, o “falso deus” do Antigo Testamento (ROBINSON, 2006). Neste sentido, Jung (1991, p. 625) adquire um viés objetivista ao referir-se a uma realidade simbólica que permite a nossa religação com o inconsciente através dos mitos: “O mito é, essencialmente, o produto de um arquétipo inconsciente e é, portanto, um símbolo que pede interpretação psicológica”. O psicólogo americano James Hillman, um dos mais famosos seguidores da psicologia junguiana, vai mais adiante ao propor que as imagens arquetípicas não são, como defende Jung, “pré-formas” do inconsciente coletivo, mas acontecimentos primordiais que vivenciamos como momentos instauradores de nossa própria realidade: “não somos nós quem imagina, mas nós que somos imaginados” (HILLMAN, 1995, p. 29). Seguindo este raciocínio, a imaginação humana presta testemunho ao transcendente, de maneira mais objetivista e vertical, uma vez que o fenômeno em si, empiricamente observável, não é tão importante quanto a modalidade cósmica que o mito simboliza: a unidade morte-vida, a esperança da imortalidade, o sacrifício pela salvação, etc. Mircea Eliade (1995), estudioso do pensamento mítico, emprega o termo ontologia arcaica para referir-se à captação do verdadeiro transcendente que acontece no mito. Adverte, por outro lado, que não se deve tomar literalmente a lingua190 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 179-197, jan-jun 2011 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 179-197, jan-jun 2011 gem mítica; assim, a Vênus no texto mítico ou ritual nunca é a Vênus propriamente dita. A Vênus nos remete, antes de qualquer coisa, “ao princípio cosmológico incorporado nela” (ELIADE, 1995, p. 44). Portanto, todo este estudo da vida das imagens, iniciadas há mais de meio século por Gaston Bachelard (PITTA, 2005), configura um pensamento polifônico que, embora muitos consideram prejudicial ao rigor e à sistematização da pesquisa científica, reconhecidamente contribuiu para inúmeras pesquisas literárias, psicológicas e filosóficas. Nosso interesse neste trabalho, deste modo, é rememorar no campo do Design de Entretenimento o sentido perdido entre nós e o universo arquetípico que somos, sob uma abordagem heterogênea, transversal e intencionalmente distante daquelas que já estão consolidadas no referido campo de pesquisa. Considerações Finais: por uma função mítica no Design de Entretenimento Respondidas, ainda que brevemente, as questões referentes à caracterização da linguagem mítica, devemos nos deter a uma segunda questão, relativa à possível contribuição e relevância de uma função mítica para a área do Design de Entretenimento. O artigo “Os arquétipos e os Jogos de Vídeo Game” da psicóloga Edna Levy (2008) talvez seja a resposta mais imediata e aplicada, neste caso, ao desenvolvimento de videogames. Em um primeiro momento, Levy relaciona suscintamente a Jornada do Escritor (VOGLER, 1997) com o Herói de Mil Faces (CAMPBELL, 1997) em três atos que designam as tarefas a serem cumpridas pelo protagonista do jogo. Em seguida, a psicóloga pontua a diferença entre a narrativa linear do cinema e a narrativa interativa dos videogames, apresentando três possíveis modalidades narrativas – por ramificações, por caminhos paralelos e por linhas não ordenadas – que possibilitam uma vivência simbólica através dos arquétipos que se coadunam entre o jogador e o jogo. Por fim, Levy detalha os principais arquétipos simbolizados nos personagens (o herói, o vilão, o aliado, etc.), relacionando-os às suas respectivas funções dramáticas (no jogo) e psicológicas (no jogador). Seguindo por uma via mais filosófica, Ivan Mizanzuk (2009), designer gráfico e mestre em Ciências da Religião, procura explicar a indeterminação epistemológica do Design propondo que este seja uma estrutura arquetípica (faber), senMarcos Namba Beccari. contribuições da função mítica no design de entretenimento 191 o autor considera que a “realidade do jogo ultrapassa a esfera da vida humana”. 6). entre o céu e o inferno. o mitologizar de Jung e a conceituação em Design) os conteúdos arquetípicos que estão presos em nosso inconsciente. Distanciando-se do Design. cuja história cultural remonta aos povos primitivos. encarando o devaneio poético como um processo de transformação onírica presente nas relações interativas. oportuno mencionarmos o filme A Origem de Christopher Nolan (2010) como um caso de estudo em 192 VISUALIDADES. Pombo e Tschimmel (2005) exploram a dicotomia sapiens-demens. pois o jogo. antecede a própria cultura. como se o designer já soubesse como seu trabalho será antes mesmo de começá-lo.1 p. assim como Sabadino Parker (1998) o faz de maneira cuidadosa e metódica em sua dissertação de mestrado (calcada apenas na análise junguiana). 179-197.9 n. entre o bem e o mal. Mizanzuk (2007) já havia nos apresentado uma abordagem junguiana ao processo de “pós-conceituação” no Design: fundamentar o conceito depois da criação em si. Praude (2010) correlaciona uma possível utilização da tecnologia da informação à imaginação criadora proposta por Bachelard. 2000. Embora não tenhamos encontrado publicações a respeito. 3). sendo “o jogo anterior à própria cultura” (HUIZINGA. A analogia com os alquimistas se dá. Em O Designer Alquimista.do o “mercado” apenas um dos contextos culturais em que o Design atuaria. não é material” (HUIZINGA. ou conhecimento-imaginação. vale lembrarmos que Johan Huizinga propôs em 1983 a denominação de Homo Ludens ao homem jogador. seja qual for sua essência. jan-jun 2011 . reconhecer o espírito. e que “reconhecer o jogo é. Retornando ao campo dos jogos. Stephen Rauch (2003) analisa de modo profundo os mitos representados em Sandman de Neil Gaiman sob o aparato teórico de Campbell e Jung. do mesmo modo que na psicologia junguiana. p. Além disso. os conflitos psicológicos constantes em Spawn de Todd McFarlane. Com a mesma preocupação. pelo processo de projetar para o desconhecido (a matéria dos alquimistas. por ser atemporal. Trata-se de uma proposta ontológica que implica na concepção do Design como algo inerente ao homem e que. Seguindo semelhante raciocínio. 2000. como uma função primária da psique humana. elegendo o Design como uma atividade reflexiva que se direciona a um processo emocional e intuitivo. forçosamente. etc. Goiânia v. o trabalho mais magistral que encontramos na literatura é a dissertação de Cristina Xavier (2004) que procura desvendar. Contudo. com a teoria junguiana. sejam eles entre real e imaginário. p. enfim. mitos e ritos. 200). J. Vol. III. p. Bibliografia BARTHES. contribuições da função mítica no design de entretenimento 193 . prolongando-os ao seio do imaginário. A mitopoese da psique: mito e individuação. Por ora. 2001. Todos estes exemplos. 1991). 91).9 n. Pertencem à esfera do espiritual. que também é coletivo. jan-jun 2011 potencial para análises junguianas. S.1 p. sendo sua possível função mítica tão somente uma abordagem eclética e transdisciplinar que procura “religar-nos” ao nosso próprio inconsciente. depreciados pelas correntes científicas do passado. Vanilla Sky de Cameron Crowe (2001) e A Jornada da Alma de Roberto Faenza (2003). tradução nossa). que o Design de Entretenimento representa uma espécie de articulador contemporâneo no campo do simbólico. este trabalho não pretende ser definitivo ou autossuficiente. Mitologia Grega. R. Goiânia v. Evidentemente. mortas ou mortas-vivas. 4. ainda que seja verdade que se movam em outra direção. 179-197. utilizadas nesta história. p. BRANDÃO. uma característica fundamental da “estrutura politeísta de uma consciência pós-moderna”. Esse tipo de pensamento transversal seria. Mitologia Grega. p. por meio da ênfase arquetípica. Só os deuses são reais (GAIMAN. assim como Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças de Michel Gondry (2004). pelo contrário. 2008. Símbolos. são fictícias ou foram usadas em um contexto fictício. In: Coleção Reflexões Junguianas. Petrópolis: Vozes. Marcos Namba Beccari. 2001. Vol. 1970. vivas. Em outras palavras. Mythologies. 1986. BOECHAT. I. 1987. Não se opõem ao pensamento lógico. ________. procuramos neste breve estudo demonstrar. Podem muito bem ser o veículo de nossos conceitos (no Design). recuperam lentamente seu posto de honra entre as manifestações do espírito humano (Eliade. Revelam efetivamente a estrutura íntima da psique. Petrópolis: Vozes. W. Paris: Seuil. […] nem é preciso dizer que todas as personagens. nos servem para confirmar a constatação de Eliade (1991) sobre o crescente interesse contemporâneo pelos símbolos. para Hillman (1995. já que representam um modo autônomo de conhecimento. Petrópolis: Vozes.VISUALIDADES. representa uma iniciativa primeira que solicita naturalmente desdobramentos e contribuições diversas. contentamo-nos em sustentar que “as imagens e os símbolos podem dizer mais que as palavras” (CROATTO. J. Entre vistas: conversas com Laura Pozzo sobre psicoterapia. M. HILLMAN. HOLLIS. 2009. A. São Paulo: Cultrix. 2010. imaginação e o estado da cultura. ed. Myths to live by. p. O herói de mil faces. CAMPOS. 13. bocc. An Essay on Man: An Introduction to the Philosophy of Human Culture. 1997. Psicologia Arquetípica. 179-197.Um esboço para o design e seu conhecimento próprio. Dora Mariana R. New York: HarperCollins Publishers Inc.. Rastreando os Deuses: o lugar do mito na vida moderna. In: Obras Completas. ________. IV. Trad. CASSELL. São Paulo: Ática. Tradução de Maria Luíza Appy. CROATTO. Ferreira da Silva. 1991. ________. vol. In: BOCC – Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação. ________. Disponível em: <www. 2008. C. Acesso em 10 abr. v. de. J. 1995. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. 1997.uff. 1972. São Paulo: Summus.. ________. alma. 2000. IX. 1995. J. 1989. Rio de Janeiro: Zahar.9 n. G. ed. CHAUI. biografia. S. 194 VISUALIDADES. 01-12. sonhos. Tradução de Lúcia Rosenberg e Gustavo Barcellos. CASSIRER. jan-jun 2011 . JUNG. 2000. São Paulo: Paulinas. 1962. 9. ________. H. HUIZINGA. Mito do estado. Petrópolis: Vozes. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião.CAMPBELL. 2008. São Paulo: Martins Fontes. S. In: Sandman. GAIMAN. R. ed. Metaconhecimento .1 p. From Barbie to Mortal Kombat: Gender and Computer Games. Goiânia v. KENKINS. E. J. N. v.br/pag/monatcampos-lima-metaconhecimento. J. Nova York: Viking Press. In: Coleção Religião e Cultura.. ELIADE. ________. Estação das Brumas. trabalho. O poder do Mito. São Paulo: Ágora. American Gods. Convite à Filosofia. São Paulo: Perspectiva. amor. pdf>. Frederico N. New Haven/London: Yale University Press. 2. 03. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 1976. L. C. Ramos. São Paulo: Conrad. 10. Mito e transformação. 1990. 2001. ________. São Paulo: Paulus. Ed. J. São Paulo: Cultrix. Massachusetts: MIT Press. São Paulo: Martins Fontes. J. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Imagens e símbolos. M. LIMA. Tradução de Carlos Maria Vásquez Gutiérrez. 2001. MONAT. 2010. São Paulo: Palas Athena. Pennsylvania: Pocket Books.VISUALIDADES. Jogos de Areia (website). Bauru: FAAC – UNESP. ________. 2010. J. 2006. C.pdf>. 2005. F. 20. BRANCO. K. D. M. vol. pp. In: Obras Completas. Tipologia dos jogos. v. 10-12 out. Porto Alegre: PUC-RS. 2006. p. ________. E. D. A. Devaneios e transformações na arte computacional. S. Thesis for the Degree of Masters of Arts in English. jan-jun 2011 ________. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. PARKER. M. LOPES. 2002. Spontaneous Social Playing. n. 2010. Contributing to giving more value to a unique manifestation of Human Ludicity. P. University of Connecticut. São Paulo: Editora Madras. II n. Holicong: Wildside Press. Goiânia: PPG Cultura Visual. PRAUDE. In: Famecos/PUC-RS. In: Revista Design em Foco. Goiânia v. C. Petrópolis: Vozes. S. contribuições da função mítica no design de entretenimento . PERRY. December 1998. Narratologia. 195 Marcos Namba Beccari. In: Anais do V Congresso Internacional de Pesquisa em Design. Memórias. I. In: XV World Conference IPA – Brasil.com.. Neil Gaiman’s Sandman and Joseph Campbell: in search of the modern myth. Rio de Janeiro: Atlântica Editora. RAUCH. A. PITTA. A. The Umbrella Conspiracy. n. 1978. ROBINSON. In: Anais do III Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual . 2009. M.9 n. Disponível em: <http://jogodeareia. Acesso em 10 set. 1998. 63-76. O Conceito do Design na época de sua indeterminação epistemológica. sonhos e reflexões.: TSCHIMMEL. Os arquétipos e os Jogos de Vídeo Game. Jun. C. 9-11 julho. Um Mito Moderno.. Salvador EDUNEB. POMBO. 84-90. G. O. O Designer Alquimista: como a psicologia junguiana pode explicar processos de conceituação no design.2. 4. O Sapiens e o Demens no pensamento do design: a percepção como centro.a Reinvenção do Humano. In: Coleção filosofia. 2005. 179-197. A Biblioteca de Nag Hammadi.br/artigos/Jogo_de_Areia_-_Os_arquetipos_e_ os_Jogos_de_Video_Game. B. 1991. X. 4-8 Novembro. In: Revista abcDesign. jul/Dez 2005. LEVY. Ludologia. April 2003. FAV-UFG. MIZANZUK. Curitiba: Infolio Editorial/Maxigráfica.1 p. P. 2007. 2008. C. M. PINHEIRO. Dream’s Odyssey: A Jungian Analysis of Neil Gaiman’s Sandman. S. São Paulo. Goiânia v. C. Esse artigo é uma versão revista. C. XAVIER.1 p. A Jornada do Escritor – Estruturas Míticas para Contadores de Histórias e Roteiristas. São Caetano do Sul: Difusão Editora. apresentado no IV Colóquio Internacional de Imaginário. 2004. M. jan-jun 2011 .VOGLER.9 n. ampliada e atualizado do trabalho Por uma função mítica no Design de Entretenimento. 179-197. 1997. L. 2011). Soldado do inferno: mito e religiosidade nos quadrinhos. NOTAS 1. Recebido em: 16/03/11 Aceito em: 04/07/11 196 VISUALIDADES. Rio de Janeiro: Ampersand. Cultura e Educação (Niterói/RJ. VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 179-197, jan-jun 2011 MArcOS NAMBA BEccArI [email protected] Graduado em Bacharelado em Design Gráfico pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e aluno do programa de Mestrado em Design da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tem experiência nas áreas de Comunicação Visual e Artes Visuais. Seu interesse de pesquisa atual é Filosofia do Design, Teoria do Design e Estudos do Imaginário. Marcos Namba Beccari. contribuições da função mítica no design de entretenimento 197 Cindy Sherman: uma criptografia corpórea* DANUSA DEPES POrTAS Resumo A proposta desse ensaio convida à reflexão sobre as relações que travamos com o tempo e no tempo que chamamos de nosso. Em função disso, o valor de contemporaneidade nele referido pressupõe não simplesmente o pertencimento a um contexto cronologicamente delimitado, mas sim uma operação de leitura que problematize esse pertencimento, esse contexto e seus limites e referências temporais, valendo-se das séries fotográficas da artista visual Cindy Sherman como intercessor. Palavras-chave: Cultura visual, regimes escópicos, dispositivo __________________ * Artigo originalmente publicado no v. 8, n. 2, jul/dez de 2010 e reimpresso por problemas técnicos. Na edição anterior, as referências bibliográficas e as notas de rodapé não foram impressas. VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 199-227, jan-jun 2011 199 Cindy Sherman: a bodily cryptography DANUSA DEPES POrTAS Abstract This essay invites us to reflect on the relationship we have both with time and in the time we call our own. As a result, the value of contemporary here alluded implies not simply belonging to a context defined chronologically, but a reading operation that problematizes this belonging, the context and its limits and timeframes, making use of the photographic series of visual artist Cindy Sherman as intercessor. Keywords: Visual culture, scopic regimes, dispositif 200 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 199-227, jan-jun 2011 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 199-227, jan-jun 2011 L’image n’est pas l’imitation des choses, mais l’intervalle rendu visible, la ligne de fracture entre les choses. Didi-Huberman Fricções do sujeito com o Real Alain Badiou identificou como a principal característica do século XX a paixão pelo Real. Ele nos diz que ao contrário do século XIX dos projetos e ideais utópicos ou científicos, dos planos para o futuro, o século XX buscou a coisa em si. O momento último e definidor do século XX foi a experiência direta do Real como oposição à realidade social diária. O Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade. Paixão que haveria dominado a experiência contemporânea em sua obsessão por desmascarar a aparência. Paixão que se revela em quatro exigências: a revolta crítica, a razão universal, a aposta amorosa e o pensamento emancipador. Paixão, que assim conduzida, culmina no seu oposto aparente, a espetacularização da vida e a existência em estrutura de semblante. A paixão pelo Real consiste em um paradoxo fundamental: um espetáculo teatral. Se a paixão pelo Real termina no puro semblante do espetacular efeito do Real, então, em exata inversão, a paixão pós-moderna pelo semblante termina numa volta violenta à paixão pelo Real. A verdadeira paixão do século XX por penetrar a Coisa Real através de uma teia de semblantes que constitui a nossa realidade culminou assim na emoção do Real como o “efeito” último, buscado nos efeitos especiais digitais, nos reality shows da TV e na pornografia amadora, até chegar aos snuff movies1. Diante dessas evidências, cabe perguntar se existe uma ligação íntima entre a virtualização da realidade e a emergência de uma dor física infinita e ilimitada, muito mais forte que a dor comum? Talvez Danusa Depes Portas. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 201 a imagem sádica definitiva esteja também à espera para se tornar realidade: a de uma vítima que não morra de tortura, que possa suportar uma dor infindável sem a opção da fuga para a morte. Será que conseguiremos suplantar os fantasmas de Auschwitz, Guantánamo, Abu Ghraib? A verdade definitiva do universo desespiritualizado e utilitarista do capitalismo é a desmaterialização da “vida real” em si, que se converte num espetáculo espectral como propõe David Linch em seu filme Mulholland Drive (Cidade dos Sonhos), 2001. Não se trata apenas de Hollywood representar um semblante de vida real esvaziado do peso e da inércia da materialidade na sociedade consumista do capitalismo recente, a “vida social real” adquire de certa forma as características de uma farsa representada, em que nossos vizinhos se comportam “na vida real” como atores no palco – a proposta de Sam Mendes no seu filme American Beauty (Beleza Americana), 1999, é exemplar nesse sentido. Slavoj Zizek, em Bem-vindo ao deserto do Real (2003), evocando a proposição de Badiou (1986), atenta para uma perspectiva muito interessante, a saber, entender esse fenômeno a partir da noção da “travessia da fantasia” de Jacques Lacan. Na vida diária, estamos imersos na “realidade” (estruturada e suportada pela fantasia) e essa imersão é perturbada por sintomas que atestam o fato de que outro nível reprimido de nossa psique resiste a ela. “Atravessar a fantasia”, então, significa identificar-se totalmente com a fantasia. Daí, podemos entender que a fantasia é simultaneamente pacificadora, desarmadora (pois oferece um cenário imaginário que nos dá condição de suportar o abismo do desejo do Outro) e destruidora, inassimilável à nossa realidade. O Real que retorna tem o status de outro semblante: exatamente por ser real, ou seja, em razão de seu caráter traumático e excessivo, não somos capazes de integrá-lo na nossa realidade (no que sentimos como tal), e, portanto, somos forçados a sentí-lo como um pesadelo fantástico. Aqui a lição da psicanálise é: não se deve tomar a realidade por ficção. É preciso ter a capacidade de discernir, naquilo que percebemos como ficção, o núcleo duro do Real que só temos condição de suportar se o transformarmos em ficção. Resumindo, é necessário ter a capacidade de distinguir qual parte da realidade é “transfuncionalizada” pela fantasia, de forma que, apesar de ser parte da realidade, seja percebida num modo ficcional. Muito mais difícil do que denunciar ou desmascarar como ficção (o que parece ser) a realidade é reconhecer a parte da ficção na realidade “real”. 202 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 199-227, jan-jun 2011 Isso equivale dizer que é também dividindo e interpolando o tempo. tão repentina. que ela está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos. que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. gostaria então de convocar o trabalho da artista americana Cindy Sherman que se constitui como um campo fértil para nossos estudos sobre o estatuto das imagens contemporâneas. entre outras Danusa Depes Portas. o repertório visual da beleza e a câmara dos horrores. O museu de cera é. Cindy Sherman mantêm fixo o olhar no seu tempo. A artista vem revirar esse cemitério e seus mortos. 226) Seus olhos de anjo. mais que toda luz. explode o continuum da história. que parece ir. mas os escuros – algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-la. A imagem é hoje uma ferramenta da desatenção. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 203 .1 p. o intervalo feito visível. numa arqueologia dos afetos2 do agora. sob um efeito do irreal a partir da dialética do semblante e do Real. Goiânia v. algo que. O resto vai para a vala comum do esquecimento. Em todas as imagens essa impregnação. Ela não tem apenas um ângulo de visão sobre o passado. 1994. Quanto mais imagens conseguimos devorar. (BENJAMIN. o corpo esfolado em dor? Qual é a natureza da transição. de nele ler de modo inédito a história. Ela parece articular todo seu projeto como uma travessia pela fantasia. junta cacos e recolhe estilhaços. seus olhos são os do anjo da história: onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos. Restos de corpo em todas as imagens. câmara do corpo em humilhação. de citá-lo segundo sua necessidade que não provêm de maneira nenhuma do seu arbítrio. em um movimento. para nele perceber não as luzes. no universo da imagem contemporânea. ele vê uma catástrofe única. de tudo-é-representação para o corpocomo-horror? Da proposição segundo a qual o que é real é o simulacro para o colapso do simulacro numa fundição sadeana? Dos Untitled Film Stills (70’s) para o foco no corpo como casa de horrores e museu de cera de Cindy Sherman? Uma diferença crucial entre o “museu de cera”3 e os Untitled Film Stills diz respeito ao tipo de regime representacional dentro do qual cada um opera. cabe indagar que tipo de seqüência é essa. tão rápida para ir da fascinação à abjeção? Qual é a relação entre o corpo do glamour. Do palco resplandecente de um mundo transformado na sociedade do espetáculo.9 n. 199-227. mais imagens acabamos por esquecer. mas de uma exigência de resposta. A imagem é a linha de fratura entre as coisas. jan-jun 2011 Em vista desse preâmbulo um tanto esquemático sobre o traço característico da cultura no século XX. p. dirige-se direta e singularmente a ela.VISUALIDADES. 204 VISUALIDADES. a transformação semi-alucinante de uma superfície material em uma profundidade imaginária4.1 p. o referente. Goiânia v. um produto extremo da estética de representação pósrenascentista como a cópia exata de um referente fisicamente estável. do papel fotográfico e do modo como ele foi processado. A noção de identidade – de cada imagem como dando corpo a uma presença distinta – torna-se manifestamente um produto de uma manipulação dos complexos códigos sociais de aparência. 199-227. mas os códigos fotográficos que vêm juntar-se a eles. Se a granulação na foto faz a figura parecer diferente (distanciada. uma pura superfície. que o que havíamos considerado como sendo a fonte da presença à qual respondemos – a figura. misteriosa ou desfigurada). com sua interioridade e profundidade – na realidade emana da materialidade do trabalho de significação.coisas. um corpo que aparece diante dela como seu original: “reprodução fiel da natureza e respeito pela verdade até os mínimos detalhes. mas que “por trás” delas não há qualquer essência de identidade. jan-jun 2011 . o corpo desaparece em suas representações. o foco ou granulação da foto e surgirão conseqüências imediatas na noção de “identidade” que está sendo fabricada. é elaborado durante a série de tal forma que parece ter sido trabalhado pelos códigos e convenções de representação até um ponto de saturação. Presume-se que o corpo simplesmente exista lá fora no mundo. p. Ou antes. Altera-se a iluminação. 217). O que significa dizer que identidade – as profundezas interiores supostamente por trás ou dentro da superfície da aparência – é apenas um efeito de identidade. Com os Untitled Film Stills essa estrutura de representação é precisamente invertida: o referente nominal existe apenas por meio da representação e dos códigos culturais complexos que ele ativa. e então através da habilidade do copista suas formas são fielmente repetidas na cera. Sherman expõe os alicerces materiais da produção de identidade. isso prova. Sherman convence o observador de que suas diversas imagens são de fato presenças distintas.9 n. sem dúvida. 1993. do próprio aparato da representação. o que no senso comum consideramos como sendo o corpo. não apenas os códigos teatrais de vestuário e gesto. essa coisa dada. Sherman altera sua imagem tão radicalmente de foto para foto que se torna impossível localizar o termo constante que deveria unir a série. tais são os princípios que orientam a execução de toda obra no museu de cera” (KRAUSS. o corpo é modelado por esses códigos tão completamente quanto a cera é modelada pelos artesãos. práticas nas quais o corpo possuísse qualquer tipo de persistência são caracterizadas como bárbaras e tiradas de vista: execuções não podem mais ser conduzidas diante da multidão e desaparecem por trás dos portões da prisão. histórico). se ele realmente se evapora na representação. acrescenta Norman Bryson (1993. que ele acaba mesmo por existir. Goiânia v. jan-jun 2011 A visão “construcionista” do corpo – de que o corpo não é uma constante anatômica.1 p. ele perde finalmente seu caráter primitivo e é completamente assimilado e civilizado. com órgãos internos. Se o corpo consiste apenas em e através de suas representações. não apenas a dor real. 219). Inteiramente incluído na esfera do trabalho cultural. 218). com uma cabeça. então. por todos os discursos nos quais é evocado (médico. p. erótico. 1993. “É por manter o mais distante possível dos olhos. ser serena. com uma forma de cadáver reconhecível. pela primeira vez. mas ao invés são seqüestrados para trás de paredes brancas e monitores de hospital (BRYSSON. Para Foucault (1993). mas uma variável histórica. a postura construcionista consuma todo o projeto de fazer o corpo desaparecer que caracteriza o Iluminismo. A partir do século XVIII.9 n. então em um certo sentido o corpo deveria deixar de ser qualquer tipo de problema. uma construção social – deveria. quase industrial. não passando mais seus últimos dias e horas em casa com a família e os amigos. legal. para qualquer pessoa. os moribundos. obtido sabe-se lá onde e como. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 205 . por direito. mas tudo o que pode ser ofensivo ou desagradável para as pessoas mais sensíveis. aparentemente tornando-se a arena principal da atividade cultural. 199-227. urinar em público é considerado intolerável e os veneráveis pissoirs são removidos. p. a exposição da carne como algo diretamente cortado de um animal real. isto é. será eventualmente visto como nunca tendo existido de outro modo. a história do corpo é a da sua construção através dos inumeráveis discursos que atuam para produzí-lo “positivamente”. será feito desaparecer totalmente: dito consistir unicamente em suas representações.VISUALIDADES. O corpo. animais não devem ser mortos em pátios por açougueiros locais. É por ser construído pela cultura que o corpo acaba por ser um objeto de investigação histórica. mas em abatedouros nos arredores da cidade onde ninguém vai. estético. que o refinamento existe”. é repensada de modo que a carne possa deixar de parecer como carne recentemente viva e tornar-se ao invés um produto higiênico. tornando-se sem peso. Nesse sentido. Em Foucault Danusa Depes Portas. perdendo suas antigas opacidade e densidade. não vão morrer em continuidade com o resto de suas vidas e seu ambiente. paradoxalmente o corpo retorna com uma urgência que nunca possuíra. e finalmente permitir que circule por toda parte o anúncio de que o corpo finalmente foi capturado dentro da rede da representação: é apenas representação. O que então entra em jogo é o inverso da inclusão do corpo no discurso: a percepção do corpo como simbolicamente recalcitrante e como resistência clandestina da fronteira do império discursivo. se estabelece alegação de que o corpo é construído exclusivamente em e como representações. traçando mapas e gráficos. No exato momento em que. sempre foi. dentro do mundo da representação que compartilho com eles. a compreensão construcionista do corpo sempre teve problemas com “dor”. eventualmente. quando aparece apenas no espaço interativo entre pessoas e não pode mais ser encontrado na cabeça de ninguém. existe no discurso. hesita. Quando o significado é identificado com convenção cultural. O discurso que oficialmente conduz o corpo – abdução tanto quanto inclusão – tropeça. por sua vez. que só a mim pertence e não pode ser convertida em qualquer espécie de moeda de significação. nas mãos das autoridades. A dor marca o limiar em que o contrato de significação e os jogos de linguagem que compõem a realidade social surgem contra algum tipo de limite absoluto: não há nenhum signo que eu possa trocar pela minha dor. uma gravidade.9 n. É o retrato fotográfico que irá. que me conhecem apenas através do que posso fazer e ser. declarando essa terra descoberta como o último posto avançado do império discursivo. já que é experiente em correr contra algo que escapa a troca contratual de significantes: uma densidade. ela existe para além dos meus poderes de representá-la diante dos outros. um ficar 206 VISUALIDADES. No entanto. jan-jun 2011 . ao invés do corpo tornar-se sem peso. completamente iluminado pela luz pura da razão discursiva. ele se estabelece como limite intransponível do discurso. Pode-se traçar um vínculo estreito entre o olhar médico e a Fotografia. É através da fotografia que as últimas taxonomias serão feitas. das fisionomias criminosas e fora dos padrões. Goiânia v. não pode ser canalizada em palavras (apenas gritos). dos grupos étnicos superiores e inferiores. são incapazes de conhecer esta minha dor. Os outros. translúcido. esclarecer e registrar mesmo o crime mais obscuro. O interesse de Wittgenstein (1999) na existência da dor é emblemático do que pode acontecer uma vez que se admita que tudo o que existe.o agente de sua sublimação é o discurso-como-visão: o olhar médico que penetra pela barreira da pele até o interior secreto do corpo.1 p. investigando cada recesso com clareza panóptica. eventualmente de populações inteiras. 199-227. surge uma certa náusea que inconfundivelmente anuncia o advento do Real. jan-jun 2011 fora do discurso. como uma flecha atingindo um escudo). nunca é reconhecível diretamente: se devêssemos fazer o retrato desse discurso-fora-do-corpo em nossas mentes. as glândulas secretoras por excelência. o outro lado da cabeça. ele torna-se aquilo que não pode ser simbolizado: o lugar. bem no coração do mistério. Contudo à medida que o espectador perceba que a visão não consegue confortavelmente esquadrinhar a penumbra (o olhar saindo da imagem. Não porque a imagem mostra essa ou aquela coisa horrível – a aparência repugnante do conteúdo da imagem é apenas um obstáculo momentâneo para o Danusa Depes Portas. a carne em todo o seu sofrimento.VISUALIDADES. 1993. não será. substituindo as meras formas do horrível por aquilo que é essencialmente incomensurável com a forma. Nos limites da representação ou atrás dela paira um corpo do qual se saberá a existência apenas porque esses stand-in inadequados. algo que provoca ansiedade. Daí em diante. é informe. que estão ali somente para marcar um limite ou fronteira para a representação. é amorfa. sublimado no espaço de significação. não se assemelharia em modo algum com um corpo. A linguagem apenas pode apontar para esse aspecto do corpo. não pode agarrar sua gordura nem sua umidade. o alicerce das coisas. ou algo que fica além da representatividade. (LACAN apud BRYSON. capazes de conjurar uma penumbra.1 p. Norman Bryson nos diz que o corpo é tudo aquilo que não pode ser transformado em representação. Seguindo esse argumento. a representação visual pode somente encontrar análogos e termos de comparação para esse corpo: é como isso ou aquilo. seu excesso para além da significação. KRAUSS. do rosto. 199-227. Ao mesmo tempo resíduo e resistência. 221) Tal como a linguagem. Como Lacan descreveu a garganta da paciente de Freud. do Real. Irma: A carne que nunca se vê. um êxtase do corpo como aquele que não pode ser. na verdade. o corpo é exatamente o lugar onde algo deixa a ordem da significação – ou não consegue nela entrar. p. em si. a carne de onde tudo exsuda. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 207 . Mesmo imagens do corpo em abjeção apenas aproximam o que está em jogo aqui. Cf. Goiânia v. em toda sua forma é. e.9 n. já que o corpo-como-semelhança é precisamente aquilo a que não é possível convertê-lo. por essa razão. A penumbra indica que o discurso-comovisão não pode detectar muito bem essa região. nem colocá-la em foco. as máscaras de Halloween e próteses não podem corresponder ao sentimento que induzem. Na série das Sex Pictures (1992). um aviso de que o horror está no ar. movendo-se ao redor dos espaços serenos da realidade virtual. mas ao seu redor. como um clarão ou um perfume. não podem a ele igualar-se. Para o sujeito do mundo-como-representação (ou mercadoria/ espetáculo) a abordagem do real induz um tipo especial de medo que pode. o objeto do horror não precisa sequer almejar ser adequado. perto demais. as fricções do sujeito com o Real têm uma força que nunca possuíram antes da totalização da representação em “realidade”. eles de uma vez neutralizam-no e absorvem-no de volta ao repertório das convenções. seu humor negro: os manequins dos estudantes de medicina. visto ser apenas um chamariz.9 n. historicamente. 208 VISUALIDADES. de um certo modo. uma vez que logo que os discursos de horror penetrem em seu alvo. Mas a surpreendente conseqüência da conversão da realidade em espetáculo é inversa: uma hesitante sensibilidade ao Real.discurso. vampiro. Como um imã agarrado a uma tela de televisão. ser algo novo no mundo: uma ansiedade ou náusea que deriva inesperadamente do próprio sucesso do sistema. Precisamente porque se espera que o sistema de representação discursiva tenha abrangido tudo o que existe. O núcleo duro daquilo que resiste à simbolização vem em direção ao sujeito como uma curvatura no espaço da própria representação. apenas um arauto do Real. cadáver). as confrontações com o Real fazem a imagem inteira se deformar. claro. as partes do corpo. 199-227. Uma vez declarado que o mundo tornou-se representação.1 p. já é de modo seguro dentro do espaço do representacional. como um pavor que infiltra a imagem e parece vislumbrá-la por fora e por trás5. Daí sua comédia do macabro. o objeto do horror (de prazer) mostrado na foto será sempre inadequado à carga afetiva que ele carrega consigo: o horror nunca está na representação. Pelo contrário. e o Real retira-se do sistema. Mas. quando avança contra e atinge aquilo que como noção expeliu de seu sistema. A ação primária do Real nunca é. não a coisa real. Goiânia v. Sherman consegue jogar exatamente com esse vazio entre o corpo como êxtase-do-discurso e os standin inadequados do corpo no estágio representacional. jan-jun 2011 . extraterrestre. A ação do Real é simplesmente que ele se move perto. a esfera cultural deve ficar em paz. uma consciência aguçada dos momentos quando a realidade virtual é perturbada. aparecer: quando assume uma forma (monstro. o corpo incluído. 1 p. Certamente o seu lugar é o corpo. no entanto permanentemente impedida. produto da disciplina. a Coisa densa e desobediente que escapa da absorção no panóptico teatro do poder. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 209 . E quanto maior for o escopo e a extensão do teatro imaginário (quanto mais perto este chegar da declaração de que tudo o que existe foi absorvido pela cultura). O que a torna reconhecível (até onde isso é possível) é seu sentimento de terror. Sua essência é um axioma elementar incapaz de uma maior elaboração: simplesmente que “aconteceu algo de errado com o corpo”. escondido.9 n. maior será a ameaça colocada pelo sintoma à estabilidade interna do sujeito. como um criptograma corpóreo. mas não o corpo que surge em Foucault. é uma mensagem cifrada prestes a passar para a significação e a cultura. onde o sujeito assume e internaliza seu repertório de aparências convencionais e sancionadas. cujos praticante chave são Cindy Sherman e David Lynch.VISUALIDADES. Em uma ordem clássica de Danusa Depes Portas. Tanto no trabalho de Lynch quanto no de Sherman o que intensifica o pavor do sintoma é que nada da “realidade” disponível parece forte o suficiente para desviar ou rechaçar a incursão temida do Real. Aquilo que a teoria do corpo disciplinar passa por cima. Ao invés disso. 199-227. brotando de dentro dele e batendo na porta da cultura. é a massa total de resíduos criados como lixo do teatro do imaginário cultural. Goiânia v. sua monstruosidade é aquela de todas as secreções amorfas que recuam para o sujeito como refugos da arena disciplinar – o que já é falar de sua necessidade para a ordem simbólica. eis o preço a ser pago pela ideia do corpo como disciplinado e domesticado. conhecimento e técnica do Iluminismo. A estrutura do sintoma é apenas parcialmente compreendida se pensarmos nela como a verdadeira fala do corpo. Stricto sensu. já que aquilo que induz o terror é precisamente inominável. jan-jun 2011 Talvez seja isso que subentende o esforço do revival gótico contemporâneo. é o corpo precisamente como o obstáculo disciplinar. Ele passa a ser com e fora desse teatro de representações. Escuro. enquanto o edifício inteiro da inteligibilidade pessoal e cultural é estremecido por aquilo que excluiu – o objeto-causa do medo e desejo do sujeito. num silêncio metodológico. A estrutura sobre a qual cada um pensa acerca da imagem e do corpo é menos o signo que o sintoma. o sentimento de terror que surge com a proximidade excessiva ou iminência do Real é só o que pode ser sabido aqui. mas não pode atravessá-lo. O sintoma é o que fica permanentemente no limiar da simbolização. 210 VISUALIDADES. Elas não poderiam ser mais diferentes. não há espaço fora do teatro da representação para o qual o sujeito possa correr. Goiânia v. e a segunda. Neo-realismo. comédias. independentemente de quão ruim o sonho tivesse sido. Nouvelle Vague. baseada nos dois termos original e cópia. road movies. um medo pelo e do corpo no exato momento de sua sublimação ou desaparecimento no teatro representacional. sua qualidade alegre de “partida” (pode-se lembrar o título de uma crítica de 1983: “Here´s Looking at You. a estrutura sintomática já está inteiramente no lugar: a primeira proposição. de 1979. Untitled Film Still # 48. nenhuma saída de emergência. pode-se perceber tardiamente que apesar do otimismo da primeira imagem. Em que ponto Sherman passou para o lado negro? Voltando as páginas das “obras completas”. 199-227.9 n.1 p. ficção científica – servem apenas para enfraquecer ainda mais o espaço narrativo.representação (como a do museu de cera). Kid”. construído em torno da ideia do colapso da oposição clássica entre real e cópia e sobre a absorção da realidade no interior da representação. atravessando os códigos do cinema). mas de uma posição de total encurralamento e incapacidade de desviar-se do objeto-causa de pavor. Waldemar Januszczak). a representação agora não possui qualquer ponto de saída. a representação do horror – embora assustadora – nunca passava de um fantasma ou um pesadelo temporário. e Untitled # 250. jan-jun 2011 . fora da tela e nas bordas da representação. Duas imagens de Sherman. que o real está agora sendo completamente assimilado na representação (nesse caso. de 1992. sempre se podia levantar e mudar da zona de representação perturbadora de volta para o porto seguro de um mundo real e de um estado acordado. sua conseqüência. deixando-o impotente diante da usurpação do Real). uma canção de inocência e uma de experiência. Seu espaço é como aquele do bardo tibetano. Nos Untitled Film Stills tudo o que permanece de uma realidade amplamente engolida dentro da representação são fragmentos narrativos e visuais de antigos gêneros cinematográficos (film noir. Hitchcock. uma região onde após a morte diz-se que o sujeito assiste à execução completa de todas as suas fantasias de desejo e medo. etc). Uma ordem aparentemente fechada. que essa mesma absorção esconde em seus limites uma atmosfera de terror. Nenhuma dessas inconsistentes películas tem força para manter cercado o avanço do Real em direção ao sujeito (o mesmo pode ser dito sobre Lynch: as citações do cinema mais antigo – de musicais. visto que. Mas no regime visual contemporâneo. jan-jun 2011 Figura 1 Untitled Film Still # 48.9 n. representável: a densidade material do corpo. limpo. O que ressurge dessa mesma desaparição é tudo acerca do corpo que o fluxo de imagem joga fora a fim de manter as noções do corpo como socializado. 1979. com o estado em suas vestes de pura violência e o sujeito civil tratado como uma espécie de fardo de carne Danusa Depes Portas. Cindy Sherman Figura 2 Untitled # 250. estupro. e o corpo de Sherman desaparece fisicamente da cena. a convulsibilidade de sua dor e prazer. enquanto um evento no tecido do real conduz abruptamente para tudo que excede o repertório aceitável de imagens: assassinato. suas pulsões e impulsos internos. 199-227. 1992. a espessura de seu deleite. execução. Goiânia v. Mas todas essas fotos são apresentadas como simulacros. sinal de sua pretensão ao equivalente visual do “texto social”.1 p.VISUALIDADES. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 211 . em certo sentido entrando num emergente e moderno fluxo de imagem. o fluxo de imagem. tortura. Cindy Sherman Na segunda imagem o real move-se muito mais perto. Promovendo deslocamentos e transferências entre fotografia. Suas imagens. concatenações de estereótipos. etc. a imagem aparece como meio de exposição daquilo que. cinema e arte. Suas séries são urdidas de forma a nos mostrar as próprias condições de surgimento e de recepção. do snuff movies e da foto publicitária das revistas de luxo. da Nouvelle Vague. O efeito anel de moebius No atual regime de visibilidade. produzindo uma corrosão da figura até transformá-la em superfície. Goiânia v. Gleams and reflection. já coloca um problema central da imagem clássica. no interior do inorgânico. pornografia. Cindy Sherman é uma colecionadora recitando toda uma cultura visual. numa estratégia complexa. assim. formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de se pensar suas relações. um dispositivo de inscrição e escritura que coloca em situação. Em seus ensaios fotográficos nos reencontramos constantemente perante soluções formais que são produtos de receitas estandardizadas. Nas suas séries fotográficas pode-se perceber uma reivindicação contemporânea da circulação de imagens e de media dominado pela dinâmica da cultura da imagem. cultura pop. de filmes de Douglas Sirk. fotógrafo e observador. sua obra constitui um inventário de motivos e procedimentos. jan-jun 2011 . contemporâneo a esse projeto colonizador e conseqüência dele. de film noir. Centerfolds. reproduzem objetos que já são reproduções: personagens dos cenários de Hollywood. As apostas são mais altas e a representação está no processo de colocar os toques finais em sua colonização do real. 212 VISUALIDADES. Untitled Film Stills (1977-1980).9 n. apontando. em pura imagerie – lógica que guiará os ensaios subseqüentes: Rear Screen Pictures. O primeiro grande ensaio fotográfico de Sherman. do reificado é capaz de provocar o olhar fascinado. de deleite.1 p. pois detecta a crise da representação nas operações fundadas na figuração. 199-227. Com Sherman vemos a mesma (ou uma relacionada) cultura. está o corpo sintomático de dor e prazer. Em suas margens. O movimento do ideal para o abjeto é um natural deslizamento na trajetória da carreira de Cindy Sherman.sombriamente desejada. para um entendimento do termo estética como um modo de articulação entre maneiras de fazer. o conceito de identificação. Poucos foram tão longe nesse arriscado jogo de indiferenciação entre publicidade. Sherman constrói uma metalinguagem com a qual pode então operar em um plano mitogramático da produção artística. 9 n. no final das contas.VISUALIDADES. Goiânia v. é claro. tudo já está decidido. elas obedecem. parada e congelada. que pretende ser a prerrogativa do filme sobre a fotografia. nenhuma história. apreendem uma personagem no meio da ação. Quem quer que vá a um filme está apenas esperando pelo dia em que esse feitiço seja quebrado. Mas. subsumida. até o ponto em que não há nenhuma vida que tenha sido previamente empacotada e inscrita. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 213 . uma vez lá. mais do que fabricar os sonhos dos consumidores. introduz os sonhos dos produtores em meio às pessoas. A verdade da temporalidade do filme é a cena. da qual a cena foi retirada. é uma falácia. pela imaginação. de modo que. o filme que passamos mentalmente. determinada. projetamos na cena uma estrutura narrativa. A narrativa. por assim dizer. contada. Elas se incorporam ao que está morto. E essa redução pretende Danusa Depes Portas. não há nenhuma narrativa aqui. e talvez. como a indústria dos sonhos produz nada mais do que clichês irresistíveis que introjetam compulsivamente. se não a maioria delas. portanto a temporalidade desdobrada. 199-227. Mas. é uma “cena”6. mesmo onde os seus dentes não representam pasta de dente e suas rugas de preocupação não evocam laxativos.1 p. apenas essa esperança bem guardada leve as pessoas ao cinema. 1980. jan-jun 2011 Figura 3 . a própria narrativa. A reificação não é nenhuma metáfora: ela faz com que os seres humanos que reproduz se assemelhem às coisas.Untitled Film Still # 56. A indústria dos sonhos. Muitas das Cenas de filme sem título. Cindy Sherman Os Untitled Film Still são precisamente sobre a transformação de vidas vividas em vidas produzidas mecanicamente. A partir disso.9 n. 199-227. 214 VISUALIDADES. parece necessário inferir (uma inferência exigida.Figuras 4 e 5 Untitled Film Still # 7. jan-jun 2011 . essa tese é seu alvo.1 p. há algo de desconcertante e escuro sobre as Cenas de filme. elas são o veículo e a vítima do clichê que exemplificam. Por todas as suas referências nostálgicas ao passado recente. Cindy Sherman contar algo contra o filme e a fotografia. uma cena. cada fotografia é a mimese dessa mimese com a morte. pelas últimas obras de Sherman) que a artista não tinha a intenção de que as séries fossem uma posição em favor da tese de que o eu não é nada mais do que um tecido de clichês. todo o seu charme. astúcia e conhecimento. o que ela pretende estar interrogando e negando. nada mais do que um portador de significações culturais. de qualquer modo. 1978. Goiânia v. Portanto. Sendo captada por um clichê. E é no território de sua escuridão que reside sua autoridade enquanto obra. cada personagem retratada está decretando uma mimese com a morte. Pelo contrário. a força expressiva da vulnerabilidade que relaciona a personagem ao clichê e Sherman à personagem. Ela não se rende ao desejo voyeurista que provoca. A proliferação de auto-imagens feita por Sherman consegue chegar à sua força persistente. cada captação de um sujeito por um clichê. Goiânia v. permanecerá a indexação casual do retrato ao original – a “máscara mortuária” do objeto original. Parte da dificuldade e fascinação de Cenas de filme é que estamos intensamente cientes de que testemunhamos Cindy Sherman em cada um. mas também o controla. E aqui começa a importar terrivelmente que se trata de fotografia. cujo poder cumulativo depende de cada momento da série ser só um clichê. que é uma conseqüência da combinação do olhar mecânico da câmera (cada um indexado por causalidade a Cindy Sherman). de Cindy Sherman. esse raciocínio me parece enganoso.9 n. por dirigí-lo como fotógrafa. é uma captação de Cindy Sherman. Danusa Depes Portas. isso não a torna o tema de sua arte. como tal. o que começa como admiração de sua habilidade de personificação e disfarce. além do artifício. pensar que as Cenas de filme. ela abriga clichês intensificados. e. torna-se cada vez mais uma situação de ansiedade. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 215 . Portanto. o que constitui o fato mais perturbador e insólito acerca das séries é que elas não podem ser nada além de autorretratos. não são autorretratos. Ela é o objeto do olhar do observador. e a proliferação de imagens. O que existe a mais em cada fotografia. E cada retrato. 199-227. Como sua própria modelo. seu efeito não seria o ocasionado de fato por essas fotografias – somente o efeito de um ato esperto de personificação. ela está no comando total de suas intenções. Por fim. é constitutivo para a força de cada retrato. volta-se precisamente para o excedente de cada conteúdo explícito. A indexação do retrato ao original é o que transforma o sentido do que quer dizer ser um “modelo” para a pintura e a fotografia. jan-jun 2011 Podemos. que lhe permite abordar um grupo de personagens tão divergentes. além das personagens retratadas.1 p. cada uma delas fazendo parte de uma série indefinidamente longa. Entretanto. o excedente que deve ser chamado de presença animista do sujeito. apesar do fato de a artista figurar em todas elas.VISUALIDADES. por hipótese. sobre e além de sua captação no clichê. O fato de cada cena/ foto fazer parte de séries indefinidamente longas. por uma aparente mobilidade e identificação de seus aspectos. Se Sherman tivesse feito apenas uma Cena de filme. Ela é sua própria modelo e. exemplificando o desejo de si em cada uma das formas inadequadas que o negam. como é o caso com todas as modelos. Como artista. quieta. para a fantasia. e identificando esse animismo como momento de excesso ou abertura de caminho além da imagem. A não ser que essas fotografias fossem autorretratos. talvez porque.1 p. ou porque as vemos com muita freqüência e de um modo equivocado. da câmera (ele mesmo um eco quieto da beleza da escultura clássica). por obra da indústria cultural. a violação. de Sherman por si mesma. Sugerindo que a força das Cenas de filme é um animismo. Sem título. temos de encarar a face no 216 VISUALIDADES. a fim de revelar tanto a infinidade viciosa por si mesma. chamemos assim. parada. # 153 me toca como sendo apenas mais uma cena de filme com o contraste da face da morta e a grama perfeitamente verde. nada disso está ali. 199-227. o estupro. o excedente que abre caminho através do olhar estetizante da câmera. vendo essas coisas. # 177. interrogar o que é vivo e o que é morto nela e em nós. Envolvêla também compõe uma narrativa. A quietude composta da cena ecoa o olhar calmo. Esse pathos deve ser considerado como uma conseqüência da indexação casual da imagem ao fato. O que torna essa fotografia inquietante é a ausência de horror. está implicado um pathos. esse excesso dentro de cada repetição. jan-jun 2011 . embelezador. Sherman procurou reanimar e re-materializar. encontrar representações da vida que resta a ela e a nós. para a nossa imaginação do que ainda resta além do clichê cultural. Em seus trabalhos dos anos 80. a ausência do evento devastador que ocasionou essa conclusão composta. Ao procurar representações do que foi ignorado ou considerado indigesto. talvez um filme de terror realista. ela se volta inicialmente. sem surpreender. lama e sujeira sugerindo que há uma falta terrível aqui – toda a vida está no verde e toda a morte no ser humano.9 n. Ela só pode aparecer como efeito reflexivo e não como imagem. não seria possível abrir caminho. o brilho. Em vez disso. É fácil ver por que essas fotografias foram apropriadas tão prontamente para metas pós-modernas. Sabemos a resposta para a questão que seria o título do filme. deixando a fantasia de uma outra vida se fundir apenas lentamente com a tentativa de imaginar exatamente a vida dizimada. A morte. a própria Sherman é aquele limite extremo. o terror prestes a acontecer e acontecendo. Goiânia v. sedução. o efeito de sua reiterada aparição com cada retrato. Quem matou a loura? Compare-se isso com a obra Sem título. e aura de cada clichê.A infinidade viciosa da sujeição pertencente à indústria cultural está recitada e representada nas séries. quanto o fato de que em virtude da repetição da repetição. não veríamos o que é preciso. um filme de impacto. com o olhar fixo em nós – ou será que ela está observando a própria cena de devastação? –. fantasia. não está claro se essa é a face de uma pessoa viva ou morta. 1985. Cada uma dessas fotografias é objeto coercitivo da atenção visual. encontram-se as imagens de decadência e as que empurram a questão da vida para o limite de indeterminação entre o orgânico e inorgânico. O primeiro aspecto que se nota em Sem título. em seu momento exuberante. 199-227.VISUALIDADES. Cindy Sherman Figura 7 Untitled #177. espinhas nítidas. Cindy Sherman 217 . já que inevitavelmente nos faz referência às miríades de faces que eram e não eram Cindy Sherman nas Cenas de filme sem título.1 p. a aparição fantasmática do corpo violentado.9 n. conjuram e instituem um animismo resplandecente. a face se encontra escurecida por sombras roxas e azuladas. espetáculos sem receita de cor. jan-jun 2011 canto direito. 1987. Qual o significado de uma face humana que pode ser ou tornar-se tão sem face? O que está nos olhando de volta numa face que foi subsumida por um clichê? O que é uma face humana viva agora? Face a face. chamam atenção do nosso olho ingênuo. como o brilho na superfície da própria foto colorida. No extremo dessas séries. Como é Danusa Depes Portas. alucinatório. # 190. um pouco fora de foco. os quais. e uma longa língua carnuda que agora suporta toda a carga da afirmação de que a vida vive. cindy Sherman: uma criptografia corpórea Figura 6 Untitled #153. Talvez o retrato # 190 seja o mais incisivo deles. de excesso sensorial e dissonância. mas algo muito distante da face humana ou da figura humana: trata-se de vida fora do lugar. trata-se de adornos e enfeites visuais que. é sua superfície viscosa escura. se é a assinatura de Sherman. Goiânia v. ansiedade. ficamos com uma impressão: a cena do excremento é o hábitat natural à face humana. 199-227. do qual não podemos tirar os olhos. que a sua feiúra é demais. o que pensamos que deve ser excremento. trata-se de algo manchado. Será que essa face. Goiânia v. e que enfim ela é quase cômica. terror kitsch. uma fonte de riso dificultado e muito presente. a imagem exata do indigesto. dentes brancos e língua avermelhada cobertos com excremento. seja vendo a imagem como algo que desgosta de verdade ou como algo que desgosta comicamente.Figura 8 Untitled #190. Mas isso tudo é superfície. que fica em suspenso na fascinação.9 n. Mesmo se isso for verdade. Cindy Sherman fácil fazer um truque para que olhemos! Como é casual a nossa compra do espetáculo visual. sobre essa imagem.1 p. 1989. não é igual ao horror cômico dos filmes de terror clássicos. é próxima demais do clichê do que é horrível para ser realmente revoltante. pois. com seus olhos azuis como os lampejos indeterminados de onde o azul vem. e a superfície é bosta. 218 VISUALIDADES. jan-jun 2011 . A nossa fascinação inicial se desdobra em desgosto. está enterrada na sujeira do cólon ou emergindo para fora desta? Talvez se quisesse dizer. Se olharmos mais demoradamente. enfim. já que o corpo-como-semelhança é precisamente aquilo a que não é possível convertê-lo. jan-jun 2011 Ao sugerir que a cena do excremento é o hábitat natural à face humana. ou diferente de nós. nós o damos. mas de um local de significado. como se queira chamar – somos o local ou origem. mas não são dependentes desse substrato. ou algo que fica além da representabilidade. Esse discurso repetiria as mesmas suposições sobre o significado que são a causa e raiz da violência do discurso criticada pelas imagens de Sherman? O contraste entre representação e real assume que nós – subjetividade. ou oposto a.VISUALIDADES. linguagem. podemos muito bem perguntar: de que tipo de falha se trata? O que é fornecer uma representação. e por essa razão nunca é reconhecível diretamente: se devêssemos fazer o retrato desse discurso-fora-do-corpo em nossas mentes. onde este começa. torna-se algo que fica em suspenso. mas faz parte de nós: afinidade fantasmagórica. ou desgosto. não de um real além do significado. a vida emergindo do lodo e mergulhando nele novamente. não podem igualar esse afeto. A penumbra indica que o discurso-como-visão não pode detectar muito bem essa região. que estão ali simplesmente para marcar um limite ou fronteira da representação. Nos limites da representação ou atrás dela paira um corpo de que você ficará sabendo apenas por causa desses posicionamentos inadequados. estou querendo despertar interesse pela alegação de que se trata de um estrato de significado. 199-227. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 219 . ou fonte auto-suficiente de todo significado e sentido. nem colocá-lo em foco. Assim como a linguagem. quando Bryson sugere que os manequins e as partes do corpo de estudos médicos. Ele argumenta que o corpo é tudo aquilo que não pode ser transformado em representação. ou agonia. não se assemelharia de modo algum a um corpo.9 n. Então. assim como as próteses não podem estar à altura do afeto que produzem. capazes de conjugar uma penumbra. Goiânia v. práticas discursivas. no grito de horror. uma mimese de dor. Trata-se do lampejo de luz se tornando o lampejo do olhar. por meio do qual a natureza revoltante se torna um objeto (ou objeto que estamos olhando).1 p. ou terror. Nós impomos significados ao mundo. a representação visual só pode encontrar análogos e termos de comparação para esse corpo: é como isso ou aquilo. Compare-se essa maneira de pensar sobre e reagir a Sherman com Norman Bryson (1993). que as nossas capacidades de falar e significar talvez sejam condicionadas por um substrato material. ou violação? Será que a linguagem chega a “igualar” os afetos que produz? E o riso? Que espécie Danusa Depes Portas. vivo/ morto. no contexto da obra de Sherman eles não são o que está além da representação. O que re-emerge daquele desaparecimento mesmo (o do próprio corpo de Sherman como sujeito/ objeto) é tudo. 199-227. caem por terra. O terror é uma das formas de arte que Sherman emprega a fim de permitir 220 VISUALIDADES. limpo. suas tendências e pulsões internas. além do que é estabelecido como formações de significado e importância. que a torrente de imagens joga fora a fim de manter as ideias do corpo como socializado. é minada em uma instância de reviravolta cognitiva obrigatória. com insistência aterrorizante ou cômica.Figura 9 Untitled #175. uma outra cena de conhecimento: o que não podemos engolir.1 p. mas também forçam sobre nós. jan-jun 2011 . irreal/ muito real). e suas distinções (humano/ não-humano. mas sua própria origem contingente. sobre o corpo. representável: a densidade material do corpo. só então a cena se torna presente. O que Sherman apresenta vai além do regime de representação racionalizada da indústria cultural. a espessura de seu deleite. ingerir. Goiânia v. ou o jogo do signo. equivale àquilo de que não podemos duvidar.9 n. A ilusão de domínio racional. língua tosca. provar. 1987. Cindy Sherman de equiparação está tendo lugar nesse caso? Será que o desafio dessas imagens não é apenas o fato de o momento de significação ser o momento de excesso. e imagens dele. Enquanto espinhas nítidas. sujeira de cólon são substitutos para esse real. as convulsões de suas dores e prazeres. Não só abrem caminho através do conhecimento racionalizado. o fato de que a interpretação visual é conservada e completada no modo não-discursivo? À medida que nossos conceitos. e desse modo algo que relembra a experiência para além do que a experiência se tornou. muito breve. jan-jun 2011 a fala dessas outras. como demonstra a mini-história foucaultiana do desaparecimento do corpo. sem cheiro e sem gosto – e. ainda bem. do qual o desgosto e/ ou o riso são uma marca. de significado foram excluídas. Embora se trate de um espaço de ilusão. assim. Mas é isso que ergue os suportes para a outra cena do ato de conhecer. Os desdobramentos dessas qualificações constituem a primeira tentativa. a foto de Sherman nos remete enfaticamente a um excesso sensorial e corpóreo. As afinidades são indexadas empiricamente e ligadas historicamente – são a conseqüência do mecanismo. Goiânia v. Quero sugerir que a insistência indutiva de Sherman toma o lugar. Sherman oferece um novo material a priori. Sherman dispõe o terror como um modo ou maneira de abstração (ou revela que o terror foi isso o tempo todo). a fim de lhes fornecer uma insistência ilusória que devolve uma força para originar.1 p. e assim de desrealizar o dado. Cindy Sherman 221 . removendo o significado determinado e doação objetiva. pode-se dizer. na vida cotidiana. ilegítima e abusada.9 n. cindy Sherman: uma criptografia corpórea Figura 10 Untitled # 264. de reconhecer o caráter absolutamente ilusório desses retratos. o mecanismo de “entrar” num novo registro. isto é. 1992. da discursividade. do implacável clichê. porém antropomórficas. Com certeza estamos operando no domínio da arte e da ilusão – a sujeira do cólon é. 199-227. Ou. enquanto se prendem à profundidade de sua insistência sobre a natureza material. da função das séries na arte modernista. Danusa Depes Portas.VISUALIDADES. essas fontes naturais. cumulativamente. E essa insistência. 2002. Tal argumentação seria filosófica e não arte. 2009. o caráter de autenticidade da sua insistência. Lisboa: Editorial Presença. a indução de Sherman depende. BADIOU. embora ilusória.que se prende revelador ou exemplar7. a ponto de abrigar uma afirmação anticeticismo? O que sabemos.1 p. incluindo Sherman. carnificina interior. Para uma nova teoria do sujeito. ________. no sentido pleno do crer e sentir. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. então. ________. assegurando. Temos imagens inversas da mesma coisa: clichês externos. envolve algum tipo de encontro presente com a sensorialidade. São Paulo: Argos. Goiânia v. O que é contemporâneo? E outros ensaios. melhor reconhecimento do que aquele oferecido pelas imagens aterrorizantes de Sherman? Será que essas imagens podem ser observadas. 1986. Moyes sans fins – notes sur la politique. Alain. jan-jun 2011 . Isso é a seqüência indutiva. 1993. 199-227. não a subordinação da natureza vida ao conhecimento. sobre a nossa corporificação. que constitui melhor conhecimento. O fato de a linha entre as duas ter se tornado tão tênue é uma parte do desastre. mas apenas em virtude da seqüência é que nós. Giorgio. mas apenas em virtude da insistência indutiva de Sherman é que isso pode ser visto. podemos ver a indução envolvida aqui. desde as Cenas de filme sem título. muito mais do que alguma argumentação sobre sensorialidade ou corporificação ou natureza ou espontaneidade. não só das séries de filmes de terror/ desastre/ sexo. Agora: existe algum outro modo público de unificar nossas crenças e emoções acerca da corporificação e enraizamento no mundo natural? Existe algum outro espaço compartilhado e social.9 n. para ser plausível. É muito tarde pra isso: o desastre já aconteceu. Paris: Éditions Payot & Rivages. em que as nossas crenças acerca dos nossos corpos poderiam ser transfiguradas tão radicalmente. 222 VISUALIDADES. as perdas envolvidas podem ser calculadas e lamentadas. É quase certo. e nenhuma obra pode ser exemplar agora. passando pelo pink robe e retratos de moda. como nada mais do que uma indução transcendental das condições de significatividade. A comunidade que vem. estou afirmando. que a minha argumentação aqui mutila e limita demais o “argumento” dela. mas também de tudo aquilo que conduz a eles. mas sua necessidade extrema? Referências Bibliográficas AGAMBEN. A esse respeito. 1 p. 1996. LACAN. Para Lacan o acesso do sujeito a uma ordem simbólica faz-se pela linguagem. Rosalind. Hal. Gilles. MITCHELL. 3. 4. ________. Paris: Éditions de Minuit. 1979. New York: Rizzoli. W. 1993. Cambridge Mass. Snuff significa morte. KRAUSS. 34. ZIZEK. São Paulo: Ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1999. THAMES & HUDSON.: MIT Press. Faz parte do dispositivo do contemporâneo os anacronismos do tempo. São Paulo: Brasiliense. 199-227. 1993. São Paulo: Brasiliense. 1996. Norman. The return of the real: the avant-garde at the end of the century. Images malgré tout. 2. Friedrich. 216-223.1 KRAUSS. Slavoj. Nova Cultural Ltda. W. Rio de Janeiro: Graal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. WITTGENSTEIN. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III.T. London. Genealogia da moral: uma polêmica. 1990.VISUALIDADES. p.J.9 n. Goiânia v. assassinato. London: Thames & Hudson. A imagem-movimento: cinema 1. Cf. The language of images. arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. NOTAS 1. Seminário XI: Os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. 2003. Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas. Ludwig. DELEUZE. v. House of Wax é uma expressão usada por Norman Bryson e que nomeia seu artigo. O simbólico devolve as estruturas sociais reguladoras e constrói a Danusa Depes Portas. jan-jun 2011 BARTHES. ultrapassando a relação especular eu-outro da ordem do imaginário. Historia da sexualidade 11ª ed. 2004 FOSTER. Magia e técnica. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Companhia das Letras. Cindy Sherman 19751993. Jacques. Termo que identifica um tipo de filme de horror dedicado a sexo e violência. Michel. cuja propaganda afirmava que os atores que representavam personagens assassinados foram realmente mortos durante as filmagens. 1989. FOUCAULT. NIETSZCHE. BENJAMIN. Roland. 1974. Investigações Filosóficas. em que a violência não é simulada. Cindy Sherman-Retrospective. BRYSON. v 1. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 223 . 1994. 1993. Chicago & London: Chicago UP. Editorial. e é o título de um filme produzido nos anos 70. 1998. São Paulo: Boitempo. 7ª ed.1997. São Paulo: Ed. v 3 DIDI-HUBERMAN. Nas artes figurativas. A palavra cena é aliás muito ambígua. Considerando este quadro de forças.” Cf. 6. Mas exatamente essa necessidade também aponta para o real. torna-se a verdadeira ameaça para esta instância. porque existe um saber que ultrapassa aquilo que ele de si pode saber. compreendido como traumático. É sugerida aqui uma certa convergência das histórias da pintura com a do teatro e a do cinema. por extensão metonímica. a própria figura da representação do espaço. É aí que se joga a possibilidade de um discurso não submetido à condição de pertencimento de um arquivo da ideologia do cotidiano. e declina. do simbólico. Goiânia v. nas ações. o sujeito existe assim fora de si mesmo num exterior ao seu imaginário. que faz a determinação significante. como já vimos. 1993. que quer apropriar-se da própria pertença. materializando bem. jan-jun 2011 . nos sonhos. não dominados pelo simbólico mas em conflito. existe um real que sobra. por outro diz mais do que aquilo que tem consciência de dizer. 5. o fora-de-campo na imagem fixa permanece para sempre não visto. de forma a integrá-lo à economia psíquica. Isto é. o fora-de-campo é sempre suscetível de ser desvelado. ao mesmo tempo que significa a não existência de representação do espaço sem uma representação de uma ação. que é uma ordem simbólica. a área de interpretação. já que designa simultaneamente o espaço real. sem diegese.1 p. AGAMBEN. no fundo. Lacan define o traumático como um desencontro com o real. a cena é. por exemplo. Aqui devo explicitar o pressuposto teórico subentendido. um significante despreendido). passíveis de organização pela ideologia do cotidiano sob o nome de realidade. portanto determinada unidade de duração. que as “imagens de Cindy Sherman” falam. É então dos fragmentos das suas vidas e da emergência desses restos do real resistindo a realidade. do seu próprio ser na linguagem.9 n. Enquanto perdido. na imagem mutável. desse fluxo de fragmentos desordenados. seja por um 224 VISUALIDADES. sendo apenas imaginável. com a intuição do fora-do-campo. um pedaço unitário da ação). nas imagens. escreve Lacan em referência etimológica à idéia de repetição em Freud: repetição não é reprodução. Este real resiste enquanto objeto parcial ou resto a apropriação do simbólico e torna-se causa do desejo que promove a sua emergência no interior do próprio simbólico. Do real só podemos falar. Como dizia Giorgio Agamben: “a singularidade qualquer. No começo dos anos 60 Jaques Lacan estava preocupado em definir o real em termos do trauma. Wiederholen. o saber de uma ordem prévia. o lugar imaginário onde se desenvolve a ação. A inclusão das singularidades num conjunto. e o fragmento de ação dramática que se desenrola em uma mesma cena (logo. que enquanto tal recusa uma identidade – a função simbólica que o arquivo está destinado a exercer –. e nesse ponto o real rompe o anteparo proveniente da repetição. Isso pode valer como epítome também do meu argumento: repetição em Sherman não é reprodução no sentido da representação (de um referente) ou simulação (de uma pura imagem. o real não pode ser representado: ele só pode ser repetido. a reprodução serve para proteger do real. Mas também porque existe uma impossibilidade de que o todo se diga. ao menos virtual: como espaço de uma encenação. Antes. Se por um lado é efeito do discurso. 199-227. ao contrário. por isso. toda a identidade e toda a condição de pertença. é sempre como espaço de uma ação. é o principal inimigo do Estado. Se o espaço é representado. Repetir um evento traumático.identidade do sujeito assumida na face do imaginário. mas exatamente o mesmo. Goiânia v. só que. Tal argumento ilumina a compreensão das séries de Cindy Sherman. arte corporal. isto é. igualmente ilumina o trabalho contemporâneo. Cf. alternativamente.VISUALIDADES. de que todas as formas de representação (incluindo o realismo) são códigos auto-referenciais. a temas iconográficos ou coisas reais do mundo. que passa a ser renovado por essa categoria. tal como foi contada de Plínio a Vasari e de John Riskin a Ernst Gombrich (que escreveu contra a arte abstrata). O prazer problemático do cinema holywoodiano. ou o elogio ideológico da cultura de massa continuam sendo “coisas ruins” nesse modelo. por meio de seu próprio exemplo exagerado. FOSTER. Mesmo assim. Essa noção de repetição compulsiva reposiciona o papel da repetição nas séries modernistas. arte feminista e apropriação. Essa postura antiilusionista foi mantida por muitos artistas envolvidos com arte conceitual. seja pelo encadeamento com outra imagem.9 n. De certa forma. o objetivo está invertido: abolir em vez de atingir essa representação. performance. 199-227. de que tudo que uma imagem pode fazer é representar outras imagens. valores e etc. Pois quanto mais se olha para exatamente a mesma coisa. a repetição é uma drenagem do significado. aqui. essa genealogia pop é hoje novamente de interesse. 1990.seus termos.1 p. pois ela complica as noções redutoras de realismo e ilusionismo e. Não se quer que seja essencialmente o mesmo. 1996 Recebido em: 31/08/10 Aceito em: 01/12/10 225 Danusa Depes Portas. Freqüentemente desbancada pela crítica de genealogia minimalista na literatura crítica (ou mesmo no mercado). a insistência indutiva de Sherman nos diz que se você entra totalmente no jogo talvez possa expô-lo. Modelos críticos em arte e teoria desde os anos 60 têm enfatizado um ceticismo com relação ao realismo e ilusionismo. jan-jun 2011 enquadramento mutável. crítica institucional. tanto mais ela perde o seu significado. outra trajetória da arte estava comprometida com o realismo e/ou idealismo: algo da pop arte. site-specific. Nossos dois modelos básicos de representação são praticamente incapazes de compreender o argumento dessa genealogia pop: de que imagens são ligadas a referentes. essa inversão carrega a estrutura da velha história . a crítica ao ilusionismo continua a velha história da arte ocidental como a procura da representação perfeita. por exemplo. Cf. BARTHES. 7. Aqui. ou. você talvez revele o automatismo ou mesmo o autismo desse processo. algo de arte de apropriação. Mediante a predominância da compulsão a repetir colocada em jogo por uma sociedade de produção e consumo. cindy Sherman: uma criptografia corpórea . de certa forma. super-realismo (também chamado de fotorrealismo). Em paralelo a esse modelo. 1 p. 2003-2005).com. 199-227.9 n. Goiânia v. 2009). jan-jun 2011 . 226 VISUALIDADES.um estudo em torno da experiência estética (FAPERJ MSC 10. Integrante do grupo de pesquisa Tendências Atuais nos Estudos de Literatura (CNPq. 1998 . Representação e Identidade Cultural na Literatura e nas Artes Brasileiras (CNPq. 2005). Mestre em Estudos de Literatura (PUC-RJ.DANUSA DEPES POrTAS [email protected] Doutoranda em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e em Comunicação Cultura pela ECO/UFRJ. 20032005) e do Imagem/Tempo (ECO.2001) e magens Contemporâneas (do Sublime) . Desenvolveu os projetos Imagem. cindy Sherman: uma criptografia corpórea 227 .VISUALIDADES. Goiânia v.1 p. jan-jun 2011 Danusa Depes Portas. 199-227.9 n. . ENSAIO VISUAL walmor Côrrea . óleo sobre tela Cândido Portinari de 1935 e a Exposição do Mundo Português. xx-yy. U Candido Portinari. jan-jun 2011 230 VISUALIDADES.O emblemático Café : a Exposição do Mundo Português de 1940 EMErSON DIONISIO GOMES DE OLIVEIrA ma obra de arte é sempre misteriosa e. por mais estudada que venha a ser. daquilo que mostra e ensina. Goiânia v. inaugurada em julho de 1940. 130 x 195 cm VISUALIDADES. Há uma ética da obra. É justamente a conjunção de uma obra com uma exposição que interessou por anos a historiadora Luciene Lehmkuhl: Café. Café. O evento foi criado para celebrar o nascimento do Estado português e suas conquistas históricas.8 n.1 p. Ética rebelde às interpretações fáceis. óleo sobre tela. envolvidas por algum nexo externo a elas. Ritual de celebração e comunicação específico. em que convivem muitas obras. em Lisboa. Goiânia v. nunca obtemos todas as respostas a seu respeito. 249-255.1 p. jan-jun 2010 .9 n. 1935. Talvez possamos dizer o mesmo sobre uma exposição. investido de valores simbólicos reconhecidos 231 Emerson Oliveira. historicamente posicionada como modernista. da arte efetivamente contemporânea. podemos acompanhar a dinâmica de aproximações e distanciamentos entre as duas nações – Brasil e Portugal –. Goiânia v. Mostra que deveria conter a arte mais recente brasileira. jan-jun 2011 Para as Comemorações Centenárias. o governo português convidou exclusivamente o Brasil a participar com a construção de um pavilhão especial. visto que esta se distanciava esteticamente das demais peças selecionadas. O emblemático café: a Exposição do Mundo Português de 1940 . sempre acompanhadas de perto pela comunidade portuguesa no Brasil. Como sintoma. Em plena Segunda Guerra Mundial. por meio da curiosa seleção de Café. 249-255. Que motivos levaram Café a participar – e protagonizar – uma festa que não era sua em Portugal? “Enquanto a maior parte dos quadros mostrava paisagens quase idílicas do Brasil. o cenário artístico e cultural brasileiro dos anos 1930 e as complexas relações políticas nele inseridas. uma vez que Lehmkuhl apresenta-nos. como bem mostra a historiadora. O interesse central de Lehmkuhl foi a mostra de arte organizada pelos brasileiros para compor o Pavilhão Brasil. que significava o reaportuguesamento.207). O aceite do convite não foi imediato e gerou meses de negociações entre autoridades dos dois países. a presença brasileira viria a reforçar a representação do Brasil – embora emancipado – como filho predileto do Império e herdeiro das tradições lusitanas. o livro O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português alicerça-se no questionamento do porquê da presença da obra de Portinari. que naquela década haviam convergido para Estados autoritários de tendências fascistas: António de Oliveira Salazar em Portugal (1933-1974) e Getúlio Vargas no Brasil (1937-1945). onde foram apresentados aspectos da cultura. a Exposição do Mundo Português funcionou como parte de uma estratégia do Estado salazarista em demonstrar as realizações da nação portuguesa ao longo de sua história enquanto Império multicontinental.1 p. da história e da economia brasileiras.VISUALIDADES. somente o Café mostrava a paisagem alterada pelo trabalho e o trabalhador na sua atividade diária” (p.9 n. Do mesmo modo. Para os portugueses. Como problema. “Este empreendimento visava à criação de uma visualidade baseada no conceito de tradição. o livro traz um elucidativo subtítulo – “modernidade e tradição na imagem do Estado Novo brasileiro” –. apenas Café de Portinari fez-se presente no evento. Todavia. a Exposição do Mundo Português institui-se na tradição fundada pelas exposições universais desde 1851. 232 VISUALIDADES. Todavia.9 n. o governo brasileiro demorou a aceitar o convite. E. Envolto em sua agenda interna. Goiânia v. origem de quase todas as obras levadas a Portugal. via-se afastado. uma aproximação cuidadosa e sutil de um aliado histórico que.34). um querer-ter/ser herdado dos oitocentos. o Departamento do Café e a exposição de arte). o Brasil não teve participação no projeto e na construção de seu pavilhão. urbano e científico) do país independente: Ministérios. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. desde a proclamação da república. Biblioteca Nacional. depois da hesitação inicial.socialmente” (p. A concepção do pavilhão foi do arquiteto português Raul Lino – também responsável pelo plano geral da Exposição – e o projeto interno ficou a cargo do arquiteto brasileiro Roberto Lacombe. nada disso pareceu importar em 1940. A autora nos oferece – com cuidadoso detalhamento – o planejamento do evento e. uma vez que o Brasil colonial foi apresentado no Pavilhão dos Portugueses no Mundo. naquele momento incerto da guerra. o pavilhão ocupou-se de mostrar a “civilização” brasileira após sua independência. herdeiro dos acervos da Escola Nacional de Belas Artes. Todavia. em especial. jan-jun 2011 . até aqui neutras diante do conflito “europeu”. Composto por três setores (os estandes. uma série de instituições foram mobilizadas para apresentar a história e o progresso (cultural. No Brasil. A história e. aceitar o convite era. 249-255. Museu Histórico Nacional. Itamaraty. especialmente. Primeiro porque a Exposição serviu primordialmente para celebração saudosista de um passado glorioso que Portugal não mais vivia. a ironia se impõe em duas frentes. constituída dentro de preceitos conservadores. revelando pela segunda vez em solo europeu a falência do modelo progressista aclamado pelas grandes exposições do passado. porque a aclamada civilização ocidental estava em plena guerra. Para o Estado Novo brasileiro. cujo sentido primordial era menos o de apresentar os objetos tecnológicos e culturais da vitoriosa civilização ocidental que o de sua representação na forma de uma imagem para o consumo. habilmente manejada pela autora. Arquivo Nacional. econômico. Como sutil ironia. segundo. a arte serviam ao propósito de engrandecer as duas nações.1 p. Academia Brasileira de Letras e do então recém-criado Museu Nacional de Belas Artes (1937). da mostra de arte brasileira. Pela relutância. todos os autores). típico de quem lida com exposições como fontes de pesquisa histórica. O júri esteve basicamente atento à paisagem. capazes de engrandecer as duas nações” (p. Evidência de que a historiografia da arte moderna no Brasil contribuiu para “ocultar tudo aquilo que não representava o surgimento de um Brasil moderno. o júri brasileiro – responsável pela escolha de trinta e uma obras para a exposição – selecionou exclusivamente pinturas a óleo. predominante na seleção. Além de Portinari. Lucílio e Georgina de Albuquerque. Lehmkuhl reapresenta nomes como Augusto Bracet.1 p. Rennée Lefevre e Antônio Parreiras. apenas para citar os mais conhecidos. as escolhidas para afirmar a capacidade de elaboração de discursos. bem como à pintura de gênero – onde são visíveis o cotidiano brasileiro – e ao nu feminino.55). Oswaldo Teixeira. Rodolfo Amoedo. Heitor de Pinho. de criação de narrativas. provavelmente. Eliseu Visconti.) como artes maiores. Ao contrário do que se possa supor. João Batista da Costa. portanto. não 233 Emerson Oliveira. atualizado com acontecimentos mundiais” (p. o que exige um trabalho demorado e pormenorizado. Oscar Pereira da Silva. “São justamente as ‘belas artes’ aquelas ainda consideradas (. O emblemático café: a Exposição do Mundo Português de 1940 . Marques Júnior. O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português desmonta uma matemática simplista: Estados autoritários protagonistas de exposições conservadoras.VISUALIDADES. Carlos Chambelland.9 n. jan-jun 2011 consagrados ao gosto acadêmico com “ares modernizantes”. Como a autora nos avisa. optariam por uma arte acadêmica consagrada. numa evidente tentativa de demonstrar que os artistas brasileiros dominavam o virtuosismo da técnica mais considerada nas academias europeias. os artistas que tiveram suas obras eleitas foram: Pedro Alexandrino. entre outros. Armando Viana. O livro apresenta-nos cada um dos artistas.164)..” (p. Cadmo Fausto. Muitos dos artistas selecionados praticamente desapareceram das narrativas sobre arte da primeira metade do século XX. uma vez que não há convergência entre as obras selecionadas e aquelas que realmente foram expostas. Errado. Mesmo com a presença de esculturas e peças decorativas. embora saliente que não foi possível identificar todas as pinturas (e. ou seja. 249-255. “a diversidade de pensamento que compunham os projetos de constituição do Estado Novo [brasileiro] permitia que se pudesse aceitar e encampar projetos que muitas vezes estavam em desacordo com um pensamento dominante.75).. Goiânia v. intelectuais e outros artistas ligados às transformações modernistas prometidas e operadas pelo Estado. 249-255. na medida em que a ausência de nomes como Anita Malfatti. Já Portinari era visto desde meados dos anos 1930 como representante daquilo que se desejava chamar de arte nacional pela elite formada por altos funcionários do governo.)” (p. as artes portuguesas estavam orga234 VISUALIDADES. o que torna a seleção das obras para a Exposição portuguesa mais inquietante. acadêmicos eram simplesmente artistas que não haviam rompido definitivamente com os cânones acadêmicos.. O próprio termo “acadêmico” é problematizado pela autora: “Sob esta nomenclatura se perderam diferenças. Portinari. invertendo-se o estranhamento da presença do Café. sob o aval e a tutela do regime varguista. já por volta de 1940. suas interferências e participações (. Goiânia v. como bem mostra a seleção para a Feira Internacional de Nova York de 1939. era considerado um artista obrigatório para a visibilidade da arte brasileira no exterior. os cenários artísticos dos dois países apresentavam semelhanças. jan-jun 2011 . Mesmo porque o que se chama de “acadêmicos” não são mais aqueles artistas preocupados em transpor no Brasil as lições das escolas francesas e italianas no século XIX. Com exceção de três obras..164). Os críticos de arte portugueses já conheciam sua fama e aguardaram com expectativa a presença de Café em Lisboa. Sentiam-se indignados com o rótulo. do ponto de vista de uma crítica modernista. Nos anos de 1930. O pintor brasileiro “de exportação”. então diretor do MNBA (1937-1961). Di Cavalcanti e Lasar Segall na Exposição do Mundo Português deixou parte da crítica inquieta e insatisfeita com a solitária participação de Café. das estéticas predominantes no final do século anterior.era óbvia a adoção e escolha de obras ligadas à tradição. sobretudo. no caso de Oswaldo Teixeira.9 n. Tarsila do Amaral. Questão polêmica desde então. misturando-os discretamente às novas linguagens. Estranhamente. segundo Aracy Amaral. como bem revela o livro. as pinturas apresentadas foram realizadas nas primeiras três décadas do século XX e já contavam com a influência da arte moderna europeia. em que predominaram artistas de claro vocabulário modernista. de suas vivências e atuações. Como aqui.1 p. perderam-se a percepção dos indivíduos e de suas histórias particulares. Alguns não se compreendiam como acadêmicos. Eis um mérito da pesquisa de Lehmkuhl: a todo o momento somos lembrados de que o modernismo brasileiro – como no caso português – tinha ligações efetivas com o Estado. 9 n. pela aquisição da pintura O Morro (1936). Efetivamente. em 1938 – o mesmo museu que organizou uma individual do pintor em 1940. em 1935. O emblemático café: a Exposição do Mundo Português de 1940 235 . sobriedade composicional e desobediência ao cânone naturista no uso das cores e da luz. principalmente. as raízes agrárias e o trabalho como monumento. que muito agradou aos portugueses. criado em 1933. Aceitação responsável pela divulgação internacional de seus trabalhos. e pelo destaque na Feira Internacional de Nova York. o trabalhador como herói. em que era possível apreciar a bebida e conhecer sua produção – arte e comércio alinhados. Uma construção útil à autorrepresentação nacional dirigida ao povo brasileiro. A obra de Portinari enquadrava-se. Goiânia v. por Café. cujas formas denunciavam uma visualidade de forte apelo à identidade nacional. sólidas e abauladas”). jan-jun 2011 nizadas sob a tutela do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN). Café era um emblema forte. Dessa forma. com ambições semelhantes. A obra foi considerada pelos portugueses um exemplar daquilo que se fazia de novo no continente: rigor nos volumes e modelados (“figuras infladas. monumentalidade. homem-luta. Essa mesma estética fora consagrada pelo Projeto de Arte Federal. graças à apreciação de um realismo estilizado. com três grandes painéis expostos no pavilhão brasileiro. engajado nas questões sociais. pelo Estado salazarista. e que proporcionou à arte de Portinari ampla aceitação entre os críticos estadunidenses. Café também ilustrava a importância do café para economia brasileira. 249-255.1 p. na necessidade do Estado brasileiro de constituir uma visualidade que representasse a composição ética. corroborada pela menção honrosa que Portinari recebeu na Exposição do Instituto Carnegie de Pittsburgh. o que conferiu à arte moderna lusitana ares bem menos ousados que a de seus pares europeus. sobretudo. nos Estados Unidos.VISUALIDADES. Evidência disso estava na participação ostensiva do Departamento Nacional do Café na exposição. em 1939. Além do valor artístico. havia um ambiente favorável para a recepção da obra de Portinari. nos anos do New Deal (1935-1943). Pintura que mesclava heranças das vanguardas históricas europeias com o ímpeto social do novo mundo (basicamente reconhecido a partir dos pintores mexicanos do mesmo período). a mais importante contribuição do livro é demonstrar o manejo metodológico de como abordar elementos particulares da arte. Lehmkuhl apresenta-nos maEmerson Oliveira. social e territorial da nação. pelo Museu de Arte Moderna de Nova York. Além disso. o qual organizou o estande do café. há a obra. Professor do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília. habilmente não perde de foco a arte. Tudo isso na contramão da ausência de dados elementares. O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português: modernidade e tradição na imagem do Estado Novo brasileiro. A pesquisadora. todavia. Goiânia v. ao contrário do esforço. como os motivos da seleção das obras enviadas a Portugal ou mesmo um inventário confiável das obras expostas. um vasto elenco de obras de arte é inventariado.9 n. De fato. Luciene. sobrepor-se ao próprio mistério que a obra de arte continua a suscitar. 236 VISUALIDADES. 2011. jan-jun 2011 . que não deve. docente consorciado do Curso de Museologia na mesma instituição. Referência Bibliográfica LEHMKUHL.1 p. Fotografias da exposição são minuciosamente investigadas. O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português é um exercício persistente de compreensão da própria escrita da crítica e da história da arte.br Historiador da Arte. Recebido em: 09/08/11 Aceito em: 06/10/11 EMErSON DIONISIO GOMES DE OLIVEIrA [email protected] de construir uma narrativa histórica por meio de pistas documentais preciosas. Uberlândia: EDUFU. 249-255. documentos oficiais são cruzados com material midiático. . TRADUçãO . . . Árvore Esqueleto. madeira e resina Fotografia: Letícia Remião 2009 . . Biblioteca dos Enganos Móvel: madeira e vidro Livros: grafite e lápis de cor sobre papel Fotografa: Letícia Remião 2009 . Você que faz versos Taxidermia e ferro Fotografia: Letícia Remião 2010 . porcelana.Você que faz versos Taxidermia. ferro. madeira e metal Fotógrafa: Letícia Remião 2010 . plástico. madeira e resina Fotografia: Letícia Remião 2009 .Árvore (detalhe) Esqueleto. meu percurso poético. Walmor Côrrea walmorcorrea@gmail. de outro. razão e fantasia. do científico e do provável. minhas criações não respondem. jan-jun 2011 meu primeiro contato com o universo da arte aconteceu na escola. E divido com o público tais “informações”. Goiânia v. No liame entre o meu microcosmo e a imaginação do espectador. a obra se recria continuamente.1 p. de um lado. anos mais tarde. Tal como acontece na natureza. relações. A curiosidade da criança que desmonta o brinquedo para entender o seu funcionamento voltou-se ao mundo natural e a sua interminável variedade de formas. por meio da minha pesquisa e trabalho.. orbitando em torno do possível e do impossível. nessa existência. um professor de Ciências me convidou a ajudá-lo nas aulas de laboratório. provocam o questionamento aos que estão dispostos. fazendo-me perceber.VISUALIDADES.. deixando-o decidir quanto à pretensa “veracidade” do que apresento. Como tinha.com O Walmor côrrea . esmiuçando suas existências. desenhava tudo o que via e estudava em sala de aula. mas existem. Na verdade. do real e do imaginário. Foi também esse professor que me apresentou o trabalho de Leonardo da Vinci.9 n. Ao expor essas singulares espécies ou ao dissecar seres do imaginário popular. o desenho como manifestação artística. 231-237. apenas aparentemente. no diapasão entre arte e ciência. são novas perguntas. “respostas”. dando vida a um novo gabinete de curiosidades. “descubro”. Como um naturalista cuja imaginação vai além do que a ciência pressupõe. muito carinho e curiosidade pelos animais e. novos e fascinantes seres. pela primeira vez. cores. e. forneço. durante as aulas de Biologia. E comecei. Ensaio Visual 247 . . RESENHAS . . 9). eles se agarram à memória. adquirem visibilidades e invisibilidades na tessitura da escrita que tenta circunscrevê-las. B. Raul Antelo. jan-jun. Arte: Imagem e Memória. Nesse processo. os demais capítulos trazem um artigo norteador e três comentadores para cada um. Juntamente com o que Didi-Huberman desenvolve da tradição benjaminiana. às transformações. Modernidades em Trânsito. na prática historiográfica. Reconhecem que as imagens pertencem a contextos históricos específicos. Para ele. 2011 . Maria Bernadete R. em que a escritura do pensamento se imiscui. mas entendidas na incessante dinamicidade de um presente e repensadas na instabilidade dos laços sociais e das mudanças políticas de nosso mundo contemporâneo. Muito pelo contrário. Raul Antelo. abre o livro discorrendo sobre a vivacidade da imagem.1 p.Imagens desdobradas SAINy c. Com exceção do capítulo 1. seduzidos pelos mistérios da imagem. com um artigo articulador e um comentador. VELOSO O livro Encantos da imagem aborda questões fundamentais para aqueles que transitam. 5. Refere-se a sujeitos que transitam em um movimento não linear existente entre os nós da imagem e da memória. Mas nem por isso cegos. não obstante assegurar que “A imagem é cinza” (p. Arte e Pensamento. Goiânia v. às permanências e aos esquecimentos para criarem seus diálogos com as imagens. O autor recorre à palavra de ordem de Derrida: eis as cinzas. A Vida das Imagens. em “A imanência histórica das imagens”. 4. a imagem 251 VISUALIDADES. 3. entre a história e a arte de maneira interdisciplinar. Antelo sabe que a imagem arde. Flores e Ana Lucia Vilela apresentam os seguintes capítulos: 1. dezoito autores tecem seus textos na inquietude e incerteza do lugar. 241-247 . mas que se contaminam.9 n. Exposições de Arte. Trata-se de imagens e memórias não petrificadas no passado. 2. na esfera do engano. Antero assopra as cinzas. o historiador argentino José Emilio Burucúa. que evidencia o sentido assentado em minúcias. 13).10). essa disciplina do pretérito. “Aproximar o rosto da cinza” e soprar suavemente para que a brasa retome novamente seu “calor. Já de início as autoras apontam o engano como constituinte da imagem e o reconhecem no legado lacaniano. verdadeiro cerne do método warburguiano” (p. que assim estabelece a plástica de sua própria contradição. o que significa um retorno nunca idêntico. 241-247. a imagem? Como o historiador apreende estes trânsitos temporais e espaciais de um objeto que desdenha da origem e sobrevive na mutação?” (p. os ensinamentos foucaultianos. 14) Sob essa problemática.9 n. chamavam a atenção para o fato de que o que vemos não reside no que dizemos. matriz nietzschiana da tragédia da cultura.queima com o real. portanto. “Encantos da imagem: entre história e arte”. seu perigo” (p. Para identificar e conhecer o que ali arde.] que nela se inscreve a própria vida. o fundo interpretativo comum a todos os fenômenos de uma cultura. a dor. com um objeto que se mantém irresoluto. abre o capítulo 1 – “A vida das imagens” –.. o brilho. na fenda aberta por onde se instala o sujeito. A imagem queima pela memória. a audácia. Algo que exibe o conflito dinâmico entre morte e ressurreição. Pouco tempo depois. é preciso ter coragem. é de Maria Bernadete Ramos Flores e Ana Lúcia Vilela. O texto seguinte. a cinza é “aparição de um vestígio esquecido ou excluído [. arcabouço para os demais textos. sua luminosidade.. Goiânia v. o inexistente” (p. Assim o fazem para dizer que o historiador que se dedica às imagens lida com um engano desdobrado: o da imagem e o da escrita. ao abordar a questão das imagens e seus discursos.1 p. Diz ele: “Misto funcional entre paradigma e repetição. Mesmo sabendo da impossibilidade da inscrição do inexistente. o livro: “Como a história pode haver-se. jan-jun 2011 . o texto “Comentários sobre ‘As pathosformeln do cômico e a gravação europeia no início da Modernidade’ 252 VISUALIDADES. 11). com “Las pathosformeln de lo cómico y el grabado europeu a comenzos de la Modernidad”. Assim. com o desejo. portanto. posto no deslocamento. As autoras esclarecem que algumas questões nortearam o Colóquio e. O discurso não é. com a destruição. Para Warburg. Engano não como desvio da verdade. o movimento.10). a história trabalha com esse paradoxo. ha “conexidade” entre palavra e imagem e não dependência entre uma e outra. mas como “caráter recalcitrante e pleno de ambiguidades da significação” (p. Nesse capítulo. uma “mímica intensificada”. do humorístico. Burucúa faz um estudo de caso intitulado “As gravuras de Quixote. B. Segundo esse entendimento. Maria Angelica Melendi. segundo suas necessidades expressivas. Nas imagens. Jacqueline caminha por espaços/tempos do “ver”. Burucúa se debruça sobre a noção de pathosformeln de Aby Warburg (1866-1829). é possível acompanhar as imagens da Antiguidade na sua migração. no texto“A sordidez do arquivo: entre pedras soterradas e fotografias esquecidas”. Veloso . em “Arte. em que analisa um corpus rico e variado de imagens populares de Dom Quixote. Goiânia v. regenerando-as a partir da sua energia inicial.9 n. Ao expor essas ideias de Warburg. na sua deslocação histórica e geográfica. 99). Esclarece que. Burucúa expõe.1 p. Warburg percebeu gestos dotados de um pathos. 241-247. a tragédia da cultura. A autora aborda a memória restaurada e justiçada por meio da imagem. Seguem-se. 63). É o principal texto articulador do capítulo. uma gestualidade expressiva do corpo. nos aproxima com meios visuais a um conhecimento cômico da morte” (p. nessa noção de Warburg. na investigação warburguiana. abertos por Walburg e ampliados por Didi-HuberSainy c. do grotesco. Frances: as estampas de Jacques Lagniet”. Melendi percebe o “artista como arquivista. imagem e memória: reunindo as peças da inelutável cisão do ver”. Pathosformel. patético. com origem nas paixões e nas afecções sofridas pela humanidade. fórmula de pathos. de quatro obras artísticas. Warburg encara a história da arte em termos de uma memória errática de imagens regressas constantemente como sintomas. O autor finaliza seu artigo com a seguinte afirmação: “talvez haja nessa representação uma síntese do propósito de todo o corpus que. É por isso que o passado está constantemente a emergir no presente. entre o grotesco e o sugerimento do sublime. A primeira é Jacqueline Wildi Lins. acende o capítulo 2 – Arte: Imagem e Memória.VISUALIDADES. cada época seleciona e elabora determinadas Pathosformeln. permite adquirir uma visibilidade. no século XVII. Eis a tragédia em sua dimensão de luta trágica atemporal e eis aqui a concepção da história de Warburg: o sintoma de uma tragédia. três outros comentadores que retomam o tema e referenciam Melendi. do cômico. jan-jun 2011 de José Emilio Burucúa” é de Henrique Espada Lima. construída no entendimento das imagens como mecanismo inconsciente. Assim. Imagens Desdobradas 253 . do sublime e do satírico. o confronto existente entre as tensões do patético. aquele que opta pela construção de lugares de inscrição de memória” (p. próprio da memória coletiva. Luciene Lehmkuhl. em “Imemorial (desta vez pelo silêncio)”. “na qual o sentido se produz na interação entre a obra e o receptor. 119). as relações diplomáticas brasileiras desse período propiciaram a realização de exposições artísticas de artistas brasileiros. ganham identidade e são justiçados. discorre sobre a interdição. É entre esses espaços que as exposições vão servindo a uma significação. nesses documentos. a sordidez do arquivo consiste em documentos que a sociedade já os fez esmaecidos. Nesse bloco. na delimitação temporal da primeira metade do século XX. em “Exposições de arte: o que fica do efêmero?”. arquivo de memórias.man.1 p. em “A sordidez do arquivo: resíduos. Pela arte. Goiânia v. eles carregam em si a presença dos que foram apagados. na “relação sutil entre o visto e o velado. jan-jun 2011 . intitulada Exposições de Arte. Para Luz. em que percebe as obras analisadas por Melendi como “provas materiais” da sordidez do arquivo. em “Os sentidos da arte estrangeira no Brasil: exposições de pintura no contexto da Segunda Guerra Mundial”. Nesse sentido. em um jogo de remanescentes presentes e a escrita da história como uma síntese de uma montagem dialética. correspondia a integração do Brasil no circuito internacional da modernidade a partir da arte. pois delas “escorre [. Fernando C. inicia as discussões da terceira parte do livro. 150). os sujeitos encontram sua inserção na sociedade.. no qual comenta a “dependência cultural dos países hispano-americanos em relação aos centros de bens simbólicos” (p. O terceiro comentador.9 n. Boppré. em diferentes países.] um espectro do obsceno que bafeja no pescoço do historiador e fornece o calafrio necessário para a escrita de novos arranjos distributivos das matérias. para considerações”. 241-247. das significações e dos sonhos” (p. entre o dito e o silenciado” (p.. Encerra esse bloco Maria de Fátima Fontes Piazza. a obra é um acontecimento do qual o sentido advém. Segundo ele. produção de identidade nacional. paradigmas e a arte brasileira”. Paulo Knauss. Ana Lucia Vilela em “Exposições obscenas – uma entrevisão” aborda o caráter político da arte. sinalizando uma dissensão com as fronteiras e identidades fixas. discute a relação interativa da obra de arte e o receptor. Esse movimento de tradução da construção de uma imagem universal do Brasil. A segunda comentarista é Angela Ancora da Luz. com o texto “À guisa de um debate: linguagens artísticas. 152) e o 254 VISUALIDADES. afirmando a imagem com diferentes temporalidades. 143). Contudo. O autor traça relações históricas entre arte e diplomacia. e seu valor cresce de acordo com os critérios de exposição” (p. nas culturas atuais. autônomo em relação ao seu criador. em que a autora revolve as inquietações de Freitas e advoga em favor da “resistência institucional ou de articulação alternativa entre o artístico e o político” (p. no artigo “Vanguarda. em “Sobre obras de arte e espectadores – reflexões a partir de Jorge Coli”. identidade e representação” (p. esboça o capítulo 5. no artigo “Arte e pensamento”.1 p. afirmando que por detrás de uma obra de arte existem outra e mais outra. crise do modernismo e história da arte”. posto que “as descobertas provocadas por uma obra de arte nunca se esgotam” (p. eminentemente visuais. Este é o desafio lançado ao historiador. é outro comentador. assinalando o trabalho de memória como articulador das tarefas do historiador. 179). em “Vanguardas. Artur Freitas. Sainy c. Jorge Coli. 210). Goiânia v. em “Vanguardas e combates pelo advento do “homem novo’”. B. realçando a importância da literatura “como objeto artístico que faz refletir sobre certa transitoriedade da imagem. A primeira comentadora para esse texto é Ana Brancher. trazendo a discussão do “impasse das vanguardas” discutido por Freitas. A segunda comentadora é Maria Bernardete Ramos Flores. com análises das reflexões de Coli. A discussão sobre as “Modernidades em Trânsito” se encerra com o texto de Maria de Fátima Morethy Couto. rumo à criação do homem novo. e a compara a “um tratado filosófico. da memória. Ela mostra o jogo de poderes conciliados entre a estética construtivista do estadonovista no Brasil e a estética das vanguardas históricas. Ana Cavalcanti. em “Tal país. do artista e do autor. Assim como não se esgotam as ambiguidades da significação humana. apenas com uma diferença fundamental de meios” (p. em “Quadros da paisagem”. dos anos 1990 a 2000. que recebe o mesmo nome. Coli volve sobre o pensamento da obra de arte. Veloso .9 n. jan-jun 2011 reiterado retorno da arte brasileira e linguagens artísticas à suposta “origem” europeia. Imagens Desdobradas 255 . mas o alto céu”. 178). Nesse texto o autor destaca as contradições históricas inerentes à relação arte e realidade no contexto da arte contemporânea. Fátima Costa de Lima é uma das comentadoras desse texto. Mario César Coelho. apresentando a compreensão de paisagem como “um elo perdido no tempo e na memória” (p. qual modernidade?”. para o modernismo brasileiro. De maneira filosófica. 243). provoca as discussões do capítulo 4 – Modernidades em Trânsito. 234).VISUALIDADES. arte e realidade: o caso Darko Maver”. em “O vazio problemático de um cenotáfio ou de como uma nuvem escura ameaça não somente a terra. 241-247. é a última comentadora. retomando os temas. Assim. em um movimento não sequencial. pois o que vemos. sem certezas ou verdades. Mas é extremamente prazeroso pela clareza de seus autores. referenciando-se.). não mais concebido na dualidade do certo e errado. Maria Bernadete Ramos & VILELA. jan-jun 2011 . compreendemos e sentimos fica restrito às imagens que nos olham. mergulhados nas velaturas ambíguas de nossas significações. Encantos da imagem: estâncias para a prática historiográfica entre história e arte. ampliando as discussões. da imagem. 241-247.Encantos da imagem é um livro complexo em suas tramas. quando deixa subtendido o sujeito errante que somos. Florianópolis: Letras Contemporâneas. Goiânia v. todavia. Ana Lucia (orgs.9 n. Imagens percebidas nas contradições históricas próprias à relação arte e realidade no contexto da arte. questionamentos e aprofundamentos conceituais. 2010. às histórias que nos contam e àquelas que contamos. 246 p.1 p. O livro evidencia uma mudança de paradigma. Referência Bibliográfica FLORES. No ofuscamento de nossas miragens – imagens trazidas pela memória – e no pouco que conseguimos perceber da “vida das imagens”. cujo semblante é anunciado nas imagens. Recebido em: 05/05/2011 Aceito em:22/06/2011 256 VISUALIDADES. na esfera do engano. Eles se articulam de forma dialógica. a história é movida por um espectro e também se mantém irresoluta. vislumbramos o humano. br Doutora em História Cultural. 241-247. Goiânia v. Imagens Desdobradas 257 . jan-jun 2011 SAINy c. Veloso .VISUALIDADES. B. B. FAV/UFG Sainy c. VELOSO [email protected] n.1 p. Mestra em Artes pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente é professora da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. . Goiânia v.8 n. questões. evidentemente. no Clube Cultural Tahar Haddad. Parece que fiz. uma arqueologia do visível. portanto. desculpando-me inicialmente porque estou um pouco cansado. pelos erros. além de uma arqueologia dos discursos. trazer ao leitor brasileiro uma tradução dessa conferência. pela possível frouxidão de minha exposição. assim. 259-285. bem como para análises das direções de seus escritos posteriores. amigos suficientes para não ter mais muitos minutos livres quando me encontro na Tunísia. respostas etc. de modo que o dia transcorreu em diálogos.2 p. jul-dez 2010 259 . o filósofo esboçava escritos sobre pintura. *** Eu gostaria de começar me desculpando. em 1971. não sou especialista em pintura. discussões. Eu gostaria também de me desculpar por falar de Manet. Interessa-nos. contribuir para análises de seu projeto arqueológico dos anos 1960 que levem em conta. Mas tal material nunca foi publicado. dessa forma. pois não sou. sendo. consta que ele estaria escrevendo um ensaio sobre Manet intitulado Le noir et la couleur. que expõe muitos elementos marcantes do pensamento de Foucault sobre o pictórico. Esperamos. como não iniciado VISUALIDADES. Então. durante os dois anos em que estive aqui. Na época. objeções. e eis que aqui estou no fim desta jornada já quase esgotado. Desde seus trabalhos dos anos 1960. especialista em Manet. e dentre os interesses suscitados por essa conferência sobre Manet está seguramente o fato de que teria sido esse o único material de maior fôlego deixado por Foucault acerca do trabalho do pintor.A pintura de Manet rODOLFO EDUArDO ScAcHETTI A tradução a seguir está baseada em uma das transcrições da conferência proferida por Michel Foucault na Tunísia. eu pediria que me desculpassem pelos lapsos. que Manet fez outra coisa. parece-me. eu não apresentarei. jan-jun 2011 . o precursor do impressionismo. ao menos explicar em alguns de seus pontos. as quais eu tentarei. para além do impressionismo. creio eu. a pintura que viria depois. como aquele. para além mesmo do impressionismo. Eu não falarei em geral de Manet. atualmente. o que Manet tornou possível é toda a pintura posterior ao impressionismo. O que tornou na pintura de Manet o impressionismo possível. que modificou as técnicas e os modos de representação pictórica. na história da pintura do século XIX. as modificações que tornaram possível. utilização de cores senão totalmente puras. isto: eu não tenho de forma alguma a intenção de falar de Manet em geral. Parece-me que. na verdade. ela é sem dúvida um pouco mais difícil de situar do que o conjunto das modificações que tornaram possível o impressionismo. ao menos relativamente puras. permitiu-se utilizar e fazer valer. eu creio. Essa ruptura profunda ou essa ruptura em profundidade que Manet operou. senão uma dezena ou uma dúzia de telas desse pintor. grosso modo. Manet figura sempre. no interior mesmo de seus quadros. resumir e caracterizar essas modificações de uma só vez: Manet.9 n. é a pintura no interior da qual ainda. de certo modo. na arte ocidental. é toda a pintura do século XX. vocês sabem. desenvolve-se a arte contemporânea. ao menos depois do quattrocento. eu não falarei nem mesmo dos aspectos sem dúvida os mais importantes e melhor conhecidos da pintura de Manet. evidentemente. e de certo modo acima do impressionismo. ao menos depois da Renascença. E o que eu gostaria de dizer-lhes é. mas não é a esse aspecto que eu gostaria de fazer alusão: parece-me. 259-285. é de fato ele quem tornou possível o impressionismo. Goiânia v. com efeito.que eu falarei de Manet.1 p. com efeito. de qualquer maneira. de maneira tal que ele tornou possível esse movimento do impressionismo que ocupou a frente da cena da história da arte durante quase toda a segunda metade do século XIX. utilização de certas formas de iluminação e de luminosidade que não eram conhecidas na pintura precedente etc. no interior mesmo da260 VISUALIDADES. na história da arte. são essas coisas relativamente conhecidas: novas técnicas de cor. Acredito que se pode. mais difíceis de reconhecer e de situar. que ele fez talvez até bem mais do que tornar possível o impressionismo. É verdade que Manet é realmente. essas modificações são. senão analisar. Em compensação. é aquele que pela primeira vez. de modo que. inscrita no interior de um quadrado ou retângulo de linhas retas se cortando em ângulos retos. podia-se deslocar. Era preciso negar que o quadro fosse um pedaço de espaço diante do qual o espectador podia se deslocar. tudo isso estava mascarado e desviado por aquilo representado no próprio quadro. Eis aqui mais claramente o que eu quero dizer: depois do século XV. e é porque essa pintura. essa superfície retangular. ou uma prancha de madeira. 259-285. . no caso de um afresco. e substituir a esse espaço material sobre o qual a pintura repousava um espaço representado. Goiânia v. ou ainda uma tela.1 p. era uma tradição na pintura ocidental tentar fazer esquecer. depois do quattrocento. as grandes linhas oblíquas ou as espirais. evidentemente. a partir de um lugar ideal. mas privilegiava. para mascarar e negar o fato que a pintura estava. essa materialidade do quadro. ou da esquerda. podia-se e devia-se ver o quadro. A pintura tentava igualmente representar uma iluminação interior à tela. e é assim que essa pintura.9 n. Era uma pintura que não apenas representava as três dimensões. tentar mascarar e contornar o fato que a pintura estava disposta ou inscrita em um certo fragmento de espaço que podia ser uma parede. ou ainda uma iluminação exterior à tela. plana. jan-jun 2011 quilo que representavam. as propriedades materiais do espaço em que ele pintava. e o quadro representava um espaço profundo. se vocês quiserem. que a pintura repousava sobre essa superfície mais ou menos retangular e de duas dimensões. ou diante da qual. perceber um canto ou eventualmente as duas faces. de maneira a negar e contornar o fato que a pintura repousava sobre uma superfície retangular. iluminada realmente por uma certa luz e em torno da qual. fixava um certo lugar ideal a partir do qual. eventualmente. iluminada realmente por uma certa iluminação real. um pedaço de papel. tentou representar as três dimensões. em torno do qual o espectador podia girar. entretanto. fazer esquecer. do qual ele podia. segundo o local do quadro e a iluminação do dia. portanto. depois do quattrocento. depois do quattrocento. que negava. uma vez que ela repousava sobre um espaço de duas dimensões. em certa medida. o espaço sobre o qual se pintava. o máximo possível. variando então. e somente a partir do qual. ou mesmo. em consequência disso.VISUALIDADES. iluminado por um sol lateral e visto como um espetáculo. vinda do fundo. ou da direita. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 261 . uma dezena de telas que buscarei analisar um pouco com vocês.9 n. eu creio. foi fazer ressurgir. de que maneira ele fez agirem essas propriedades espaciais da tela naquilo que ele representava sobre essa tela. no interior mesmo daquilo que estava representado no quadro. que a tradição pictórica havia até então tido por missão. a superfície. nos próprios quadros. Pois bem. e é nesse sentido que se pode dizer que Manet abalou. buscarei mostrar-lhes como Manet tratou do problema da iluminação. essa re-inserção da materialidade da tela naquilo que é representado. uma das últimas e uma das mais desestabilizadoras de Manet. O que Manet fez (é. a possibilidade para o espectador de olhá-la em um sentido ou em outro. e. a maneira pela qual Manet tratou do próprio espaço da tela. 259-285. Essa invenção do quadro-objeto. é isso. em todo caso. um dos aspectos. eu não estudarei um conjunto de telas. na sequência. é isso que eu gostaria agora de lhes mostrar um pouco nos fatos. jan-jun 2011 . mas sim a luz exterior real. Un bar aux Folies-Bergère. importantes da modificação trazida por Manet à pintura ocidental). se vocês quiserem. e se assim desejarem. ou ao redor do qual. a altura. essas propriedades. de certa forma. creio eu. Goiânia v.1 p. o quadro como materialidade. em um segundo conjunto. por comodidade na exposição. Em terceiro lugar. tudo isso está presente nos quadros de Manet. os grandes eixos verticais e horizontais. de ilusão ou elisão que praticava a pintura representativa ocidental desde o quattrocento. e é retomado. A superfície retangular. de esconde. como nos seus quadros ele utilizou não uma luz representada que iluminaria do interior o quadro. o jogo de esquiva. mas uma apenas.Ai está. a largura. além disso. para além de tudo o que podia preparar o impressionismo. qualidades ou limitações materiais da tela que a pintura. sem dúvida. para esse terceiro ponto. que é. e eu pegarei uma série de quadros. como ele fez agir também o lugar do espectador em relação ao quadro. que de resto resume. o quadro como coisa colorida que uma luz externa vem iluminar e diante do qual. tudo o que era fundamental na pintura ocidental após o quattrocento. Esse será o primeiro conjunto de quadros que eu estudarei. ou seja. em certa medida. a iluminação real da tela. contornar e mascarar. vem girar o espectador. como ele fez agirem as propriedades materiais da tela. eu os agruparei em três rubricas: primeiramente. que está no cerne da grande modificação trazida por Manet à pintura. 262 VISUALIDADES. E Manet reinventa (ou talvez inventa?) o quadro-objeto. restituído nos quadros de Manet. toda a obra de Manet. que são indicados aqui. e a verticalidade prolonga esse efeito de onda com uma profundidade relativamente reduzida. pode-se dizer que Manet utiliza ainda todas as tradições que ele pôde aprender nos ateliês onde havia feito seus estudos. e nesta tela (é uma tela que data de 1861-2). Goiânia v. mas não se vê muito bem: não há muita profundidade. com esse pequeno triângulo de luz através do qual se espalha toda a luz que vai iluminar a frente da cena. [Michel Foucault aproveita-se da interrupção para retirar paletó e gravata e convidar seu público a ficar à vontade]. Manet vai pintar um quadro que é. 259-285. vocês sabem que Manet tinha seguido uma formação totalmente clássica: ele havia trabalhado nos ateliês conformistas da época. ele havia trabalhado em Couture e é toda a grande tradição pictórica que ele dominou e que possui. então. em certo sentido. resultando nesse efeito de ondulação. iremos passar agora às projeções. de tal modo que se pode ver um pouco o que se passa atrás. e que é como uma outra versão desse mesmo quadro. relativamente conformistas. assinalar desde já um certo número de coisas: vocês veem o privilégio que Manet concede a essas grandes linhas verticais que são representadas aqui pelas árvores.9 n. ao fundo. ao primeiro conjunto de problemas e primeiro conjunto de telas: de que maneira Manet representou o espaço? Dito isto.1 p. o espectador ou o pintor a vê muito levemente em perspectiva descendente. dez anos mais tarde. Le Bal masqué à l’Opéra E aqui agora. e depois os grandes eixos verticais. La Musique aux Tuileries Bom. desrodolfo Eduardo Scachetti . tela ainda bastante clássica. um eixo horizontal. vocês têm aqui uma das primeiras telas pintadas por Manet. Un soir à l’Opéra. será necessário portanto apagar as luzes. jan-jun 2011 O espaço da tela Vamos. como para redobrá-los ou como para ao menos apontá-los. que é assinalado pela última linha das cabeças das personagens. o mesmo. A pintura de Manet 263 . É preciso. Essa cena.VISUALIDADES. de todo modo. E vocês veem que a tela de Manet se organiza de fato segundo dois grandes eixos. As personagens formam uma espécie de curva plana aqui. as personagens da frente mascaram de maneira quase completa o que se passa atrás. com a 264 VISUALIDADES. Vocês se lembram que. vocês o encontrarão repetido em seu interior. homens trajados em hauts-de-forme. em alguma medida. impedindo. essa profundidade está agora fechada. vejam vocês. somente tipos de pacotes. Esse grande retângulo da tela. que duplica. um efeito de parede. mas vocês veem que todo equilíbrio espacial já se modificou. pacotes de volumes e de superfícies que estão aí projetadas à frente. aos olhos do espectador. Ou seja. como se o quadro recomeçasse aqui. sobre os pés. as personagens aqui avançam e o preto dos ternos. percebam as duas colunas verticais e essa enorme barra vertical que está aqui e que emoldura o quadro. de certo modo. por meio de um tipo de ironia. havia um pequeno triângulo de luz. ao contrário. abrir de fato no espaço. vejam vocês: o mesmo tipo de personagens. o efeito de profundidade. totalmente no alto do quadro. consequentemente. Em certo sentido.9 n.culpem-me. a profundidade. 259-285. A única abertura real. O espaço é fechado ao fundo pela parede e eis que é fechado à frente por esses vestidos e ternos. ou melhor. Le Bal à l’Opéra. existia. por consequência. como se fosse a mesma cena e isso indefinidamente: um efeito. algumas personagens femininas com vestidos claros. e ele fecha o fundo do quadro. há. o recomeço mesmo de tudo isso. calças etc. longe de haver profundidade. jan-jun 2011 . aqui. no quadro precedente. a única abertura que estaria representada no quadro é esta muito curiosa que está aqui. sobre pés. é o mesmo quadro. de modo que todas as personagens se encontram projetadas à frente. de papel pintado que se vê prolongar em toda sua extensão. que não se abre para algo como o céu ou a luz. O espaço foi obstruído. e como para bem assinalar que existe uma parede e que atrás dela não há nada a se ver. no interior do quadro a vertical e a horizontal da tela. Não se tem verdadeiramente espaço. um certo fenômeno de relevo. sobre a qual eu lhes falava que não estava muito marcada no quadro anterior. a abertura se abre sobre o quê? Bem. mas que. bloqueia absolutamente tudo o que aquelas com cores claras teriam conseguido. assim como do vestido. Não apenas o efeito de profundidade é apagado. mas a distância que há entre a borda do quadro e o fundo é relativamente curta. fechado por trás. de tapeçaria. e que não se abre para uma profundidade verdadeira. Goiânia v. fechada por uma parede espessa. um pequeno triângulo que se abria para o céu e através do qual a luz se propagava. entretanto.1 p. se eu lhes mostrei essa tela. todas as personagens estão localizadas sobre uma faixa estreita de chão aqui. Goiânia v. vertical e de novo algo como uma vertical. vocês veem a maioria das características que eu assinalei há pouco a propósito do Le Bal à l’Opéra. estão todas tão perto umas das outras que. Ora. Eu.que tratava. exaltadas por aquilo que é representado na própria tela. vocês notam. que não é senão a duplicação da própria tela. aqui há novamente. que é L’Exécution de Maximilien? Quadro que data de 1867. de forma que há como que um degrau de escada. agora. no fundo. uma horizontal que se abre com pequenas personagens que estão olhando a cena. os canos dos fuzis tocam seus tórax. não é simplesmente porque ela oferece novamente ou antecipa esses elementos que seriam mais tarde encontrados em Le Bal à l’Opéra. além disso. horizontal. além disso. esse é um quadro anterior. fechamento violento do espaço marcado e apoiado pela presença de um grande muro. um pouco do mesmo tema -. uma pequena cena que duplica o quadro. que não é o espaço real da abertura. Elas estão todas enclausuradas.1 p. e vocês veem como Manet. manifestadas.VISUALIDADES. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 265 . mas vocês já percebem aí os mesmos procedimentos. em que havia uma parede que estava fechada e uma cena que aí recomeçava. deveria . ou seja. evidentemente. fechou inteiramente o espaço. É por uma razão suplementar: vocês veem que todas as personagens estão alocadas sobre um mesmo pequeno retângulo sobre o qual têm os pés posicionados (um tipo de degrau de escada atrás da qual há uma grande vertical). Vocês veem. mas como. L’Exécution de Maximilien Gostariam de passar ao quadro seguinte. sobre esse pequeno espaço. vejam vocês. mas que é o jogo dessas superfícies e dessas cores propagadas e repetidas indefinidamente de cima abaixo da tela. As propriedades espaciais desse retângulo de tela são assim representadas. 259-285. bem. e no qual vocês encontram.9 n. de modo que. são as propriedades materiais da tela que são representadas no próprio quadro. um efeito de degrau de escada. que se produz aqui quase o mesmo efeito que há pouco na cena da Opéra. pendurada sobre o muro. jan-jun 2011 ironia dos dois pequenos pés que pendem aqui e que indicam o caráter fantasmático desse espaço que não é o espaço real da percepção. em relação à tela anterior . Entretanto. é bastante evidente que Manet não pode representar a distância. 259-285. Assim estão. e em todo caso puramente simbólica. ao passo que normalmente. no espaço disponível. Ora. essa distância que não se dá ao olhar. a diminuição das personagens indica um modo de reconhecimento puramente intelectual e não perceptivo de que aí deveria haver uma distância entre estas e aquelas. Não há distância entre o pelotão de execução e suas vítimas. decodificada.1 p. nós entramos em um espaço pictórico em que a distância não mais se dá a ver. Manet se serviu dessa técnica bastante arcaica que consistia em reduzir as personagens sem distribuí-las no plano (é a técnica da pintura antes do quattrocento). entre o tamanho de umas e de outras personagens). em vias de se desfazerem. apreciada. equivalente a quando nós mesmos olhamos uma paisagem. O que deveria ser representado era um espaço quase real em que a distância poderia ser lida. Aqui. em que a profundidade não é mais objeto da percepção e em que a posição espacial e o distanciamento das personagens são dados simplesmente por signos que não têm sentido e função senão no interior da pintura (ou seja. no interior desse pequeno retângulo que Manet criou e onde ele coloca suas personagens. umas e outras. entre as vítimas e o pelotão de execução. 266 VISUALIDADES. aqui também. deveriam ser do mesmo tamanho. verão que estas personagens são menores que aquelas. Em todo caso. a reprodução da percepção cotidiana. alguns dos princípios fundamentais da percepção pictórica no Ocidente.ter assinalado que essas horizontais e a posição vertical dos soldados não fazem senão. a duplicação. e essa distância não-perceptível. os soldados aqui tocam com a ponta de seus fuzis as personagens que aí estão. multiplicar e repetir no interior do quadro os grandes eixos horizontais e verticais da tela. ela é simplesmente assinalada por esse signo que é a diminuição dos personagens. não se vê a distância. nesse pequeno retângulo em que ele posicionou todas suas personagens. se vocês observarem. visto que estão exatamente sobre o mesmo plano e que dispõem. de pouquíssimo espaço para se deslocar. A distância não pode ser dada à percepção. Em seu quadro. jan-jun 2011 . Ele utiliza essa técnica para significar ou simbolizar uma distância que não está realmente representada.9 n. A percepção pictórica deveria ser como a repetição. a relação em alguma medida arbitrária. vocês veem. ou seja. Goiânia v. um tabuleiro de linhas retas horizontais e verticais. É como se o tecido da tela estivesse a ponto de começar a aparecer e a manifestar sua geometria interna. Mondrian tratou sua árvore. 259-285. era uma superfície de duas dimensões. de uma maneira ao mesmo tempo divertida e absolutamente escandalosa para a época. jan-jun 2011 Le Port de Bordeaux Gostariam agora de passar ao quadro seguinte que vai jogar com uma outra propriedade da tela? Naqueles que eu lhes apresentei há pouco.9 n. é igualmente a reprodução. do mesmo modo. o que Manet utilizava. Aqui. esse jogo de verticais e de horizontais que são a representação geométrica da geometria mesma da tela naquilo que ela tem de material. esse sexto. enfim a série de variações que fez Mondrian sobre a árvore. de todas as fibras horizontais e verticais que constituem a própria tela. isolando essa parte. a tela naquilo que ela tem de material. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 267 . Manet pôde extrair isso. e aqueles dentre vocês que têm na memória o quadro de Mondrian sobre a árvore. Além disso. durante os anos de 1910-1914. o que ele fazia agir em sua representação era sobretudo o fato de que a tela era vertical. de linhas que se cortam como em ângulos retos. Goiânia v. vocês irão revê-lo. no quadro seguinte que se chama Argenteuil. não sei. descobriu a pintura abstrata. que data do ano de 1872. Le Bal à l’Opéra ou L’Exécution de Maximilien. na própria filigrana da pintura. e vocês veem esse entrecruzamento de fios que é como o esboço representado da própria tela. esse quarto. De sua árvore. aí veem o próprio nascimento da pintura abstrata. vocês veem. em certa medida. Esse jogo de tecido da tela. o que age. se eu tenho boa memória. Manet em certa medida buscava a representar diminuindo ao máximo a própria espessura da cena que representa.1 p. vocês notam. e essa ausência de profundidade. simultaneamente a Kandinsky. são essencialmente os eixos horizontais e verticais que são claramente a repetição dentro da tela daqueles eixos horizontais e verticais que enquadram a tela e que formam a própria moldura do quadro. neste quadro. vocês veem que há um jogo praticamente exclusivo de horizontais e de verticais. vocês sabem. Mas. . Bom. um pouco como Manet tratou os barcos do Port de Bordeaux. não tinha profundidade. da tela. sua famosa árvore a partir da qual ele. ele finalmente extraiu um jogo de linhas que se recortam em ângulos retos e que formam como uma trama. de toda essa atividade do porto.VISUALIDADES. desse emaranhado de barcos. tecidos que têm linhas verticais e linhas horizontais..1 p. e o caráter. apesar de tudo.. não é senão um jogo para Manet. muito perto de nós. absolutamente como uma parede de papel que existiria aí. uma das mais importantes telas de Manet para compreender a maneira pela qual ele age. todo o quadro obstruído 268 VISUALIDADES. que se chama Dans la serre e que é. e a personagem que está atrás dela se move inteiramente em nossa direção com esse enorme rosto que vocês veem. evidentemente. Imediatamente atrás das personagens há essa tapeçaria de plantas verdes que nenhum olhar pode transpassar e que se desenrola totalmente como uma tela de fundo. Goiânia v. para que não houvesse profundidade. A personagem feminina está aqui inteiramente projetada à frente. ao mesmo tempo. nenhuma profundidade. nenhuma iluminação vem transpassar essa espécie de floresta de folhas e de galhos que povoam a estufa em que se passa a cena. representados no interior da tela. a profundidade do quadro é restrita. Dans la serre Gostariam de passar à tela seguinte. em certa medida. popular. seus joelhos transbordam. por isso. um jogo que consiste em representar sobre a tela as propriedade mesmas do tecido e o entrecruzamento e as intersecções da vertical e da horizontal. o jogo das verticais e das horizontais. grosseiro das personagens e daquilo que está representado nessa tela. de certo modo.Argenteuil Vocês gostariam de passar à tela seguinte? Vocês veem o eixo vertical do mastro. Vocês veem como o espaço. a vertical. do quadro no qual ela está projetada à frente. suas pernas não são vistas no quadro. que o mostra. esta horizontal aqui que duplica esta outra. alguns segundos de gravação foram perdidos durante a retomada da fita cassete]. elas o transbordam. portanto. 259-285. e os dois grandes eixos estão. que duplica a borda do quadro. tanto ele se moveu para a frente e tão curto é o espaço de que ele próprio dispõe. Portanto. mas vocês notam que o que está representado são precisamente tecidos. jan-jun 2011 .9 n... fechamento do espaço e. a horizontal e esse entrecruzamento das próprias linhas do quadro. [Parece que ocorreram nesse momento algumas dificuldades para se encontrar a reprodução em questão. quase perto demais para ser visto. uma superfície que tem uma horizontal e uma vertical. girando. que se encontra repetida uma segunda vez aí.9 n. mas que todo esse movimento de leque. Goiânia v. e o que ele representa? Pois bem. girando. as linhas da verticalidade e da horizontalidade. E é esse jogo. na medida em que ele não . se quiserem. todo o jogo que consiste em suprimir. Em que consiste. exaltando. o movimento que vai da horizontal à vertical.1 p. uma superfície. reproduzindo seus eixos. no próprio centro do quadro. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 269 . em mancha clara. E se vocês acrescentarem agora que as dobras do vestido da mulher parecem ser pregas verticais aqui. ele não representa nada. 259-285. todo esse quadrilátero aí. em certo sentido. linha que se encontra reduplicada em branco desta vez pelo guarda-chuvas da mulher.VISUALIDADES. esse encosto do banco. da vertical e da horizontal em Manet. jan-jun 2011 por essa prancha. esse quadro. Acrescentem agora que vocês têm uma mão que pende e uma mão no outro sentido e vocês têm. linha do encosto que se encontra repetida aqui uma primeira vez. as mesmas linhas verticais e horizontais que vocês encontrarão em linhas sombrias. o vestido acaba por ficar praticamente na vertical. que faz com que as primeiras pregas estejam na horizontal como essas quatro linhas fundamentais. de fato. da frente e do verso. vocês têm. uma frente e um verso. Todo o quadro é arquitetado em torno e a partir dessas verticais e dessas horizontais. apagar. mas é principalmente uma superfície de duas faces. pois a tela é. que de uma maneira ainda mais viciosa e maldosa. mas existe ainda uma outra forma para Manet de jogar com as propriedades materiais da tela. simplesmente com essa pequena diagonal muito curta para indicar a profundidade. nós temos aí um exemplo bastante curioso. La Serveuse de bocks Se quiserem passar ao quadro seguinte. E aí. vocês veem que esse jogo de dobras que vai do guarda-chuva até o joelho da mulher reproduz. reduzir o espaço no sentido da profundidade. que se encontra repetida uma quarta vez aqui. Pois é isso que eu gostaria de dizer-lhes no que concerne o jogo da profundidade. Manet deixará joga. La Serveuse de bocks. com efeito. constituindo a própria armação do banco e a arquitetura interior do quadro. mas que. ao contrário. e é esse movimento que está reproduzido aqui. portanto. e pelas verticais agora. em segundo lugar. não sabemos nada. e para bem sublinhar isso. de café-concerto. duas. a troca de uma moeda entre São Pedro e o guardião. Goiânia v. E. nenhum desses dois espetáculos nos é dado. e nenhum dos dois espetáculos que naquele instante estão sendo acompanhados com tanta atenção pelas duas personagens. no limite três outras personagens. há a curiosa ironia desse pequeno pedaço de mão que vocês veem aqui e desse pequeno pedaço de vestido. nós o vemos. passando. subtraído. à frente da tela. e desta aqui. de tipo clássico. Há. Com efeito. elas olham. primeiramente. o quadro não nos diz o que olham as personagens. o que estava representado era uma cantora de cabaré. se vocês pegarem em Masaccio o quadro da negação de São Pedro. Por exemplo. Aqui. essas duas personagens não olham a mesma coisa. vocês veem que ela não está olhando o que faz. dois olhares em duas direções opostas. em todo caso certamente uma e duas que nós quase não vemos.9 n. que tem o rosto de súbito voltado para nós como se bruscamente diante dela um espetáculo se produzisse e que atraísse seu olhar. um espetáculo. Agora pensem em qualquer pintura. bem perto de nós. jan-jun 2011 . em uma primeira versão desse quadro. dois olhares nas duas direções opostas do quadro com frente e verso. do espectador. elas também olham. se quiserem. nesse quadro. portanto. Ora. nós temos duas personagens que olham. esse algo é um diálogo ou. a tela é composta de uma. nós não sabemos nada. cantando ou 270 VISUALIDADES. 259-285.dá nada a ver. É que. ela tem o olho atraído para algo que nós não vemos. ele está dado no quadro. verão personagens que estão em círculo e que estão olhando algo. que vocês veem bem perto do pintor. Com efeito. antes. ele também. de fato. e olham na direção exatamente oposta. que nós não conhecemos.1 p. O que veem? Pois é. e pelo qual esses olhares estão atraídos. e. mas esse espetáculo que as personagens do quadro olham. nós o conhecemos. que está aí. É um quadro que representa apenas dois olhares. Manet havia representado aquilo que estava sendo olhado por essas personagens. pois de uma dentre elas nós não vemos senão somente o perfil fugidio. ou seja. nós não vemos senão o chapéu. por outro lado. servir a bebida. esse espetáculo nos é. essa personagem da garçonete. há quase em tudo e em toda parte. pois o quadro está cortado de tal modo que o espetáculo que está aí. ocorre tradicionalmente na pintura que um quadro representa pessoas olhando algo. volta suas costas para nós. Manet. vocês têm de novo a mesma coisa. nessa segunda versão. de forma que a tela não diz no fundo senão o invisível. ou que nós déssemos a volta no quadro e que olhássemos por cima do ombro da mulher. Bem. ao contrário. mais nítido ainda neste que vocês verão agora e que se chama La Gare Saint-Lazare. e aquilo que a menina está olhando. de tal modo que nós não temos nada para ver. pois Manet colocou aí a fumaça de um trem que está passando. mas a tela no fundo. através da direção dos olhares opostos. pois ele está à frente da tela. é claro que vocês veem de novo ainda as mesmas verticais e as mesmas horizontais que nós encontramos: essas verticais e horizontais que definem um certo plano do quadro. A superfície com suas duas faces. Uma volta seu rosto para nós. e vocês veem que ela olha com uma espécie de intensidade suficientemente grande. um plano que . esconde e subtrai. De uma parte e de outra da tela. cortou o espetáculo de tal maneira que não restasse. aquilo que a mulher olha. e aqui. e após essa versão. não é um lugar em que se manifesta uma visibilidade. duas personagens que nós chamamos tête-bêche. que o quadro se resumisse a olhares dirigidos para o invisível. ao invés de mostrar o que há para ver. de certo modo. uma olha na nossa direção. que assegura a invisibilidade daquilo que é visto pelas personagens que estão no plano da tela. ao contrário.VISUALIDADES. 259-285. E. para ver aquilo que teríamos para ver. da tela. é um espetáculo que nós não podemos ver. a outra olha na mesma direção que nós. Le Chemin de fer E isso está claro nesse quadro. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 271 . e ainda há duas personagens como há pouco em La Serveuse de bocks. há dois espetáculos que são vistos pelas duas personagens. o plano. não mostra senão o invisível e não faz senão indicar. E vocês veem como Manet joga assim com essa propriedade material da tela que faz dela um plano. pois isso está à frente da tela. ao contrário. frente e verso.1 p.9 n. algo que é necessariamente invisível. de certo modo. Goiânia v. a outra. bom. está atrás da tela. Ora. jan-jun 2011 esboçando um passo de dança (é uma versão que se encontra em Londres). seria preciso ou que nós olhássemos por cima do ombro da menina. e o que é visto por aquele ali. nada a ver. essa segunda que eu lhes mostro agora: pois é. é o lugar. nós não podemos ver. mas que. em lugar nenhum. teve uma certa repercussão escandalosa. como ele não está. na própria época. enfim. Vocês veem que Manet (e isso é a consequência do que eu lhes disse até aqui) suprimiu inteiramente a profundidade do quadro. e. 259-285.9 n. quadro que. necessariamente invisível. Só há como lugar em que ele apoia os pés essa sombra bastante leve. vocês sabem bem que 272 VISUALIDADES. Mas não é sobretudo disso que eu gostaria de lhes falar a propósito do Fifre. até aqui. Vocês veem que o lugar em que ele apoia seus pés. esse solo. E é esse jogo de invisibilidade assegurado pela própria superfície da tela que Manet faz agir no próprio interior do quadro. de certo modo.1 p. essa levíssima mancha cinza aqui. que se pode até mesmo chamar de viciosa. nunca algum pintor se divertiu utilizando a frente e o verso. em alguma medida. esse piso. Vocês notam que não há nenhum espaço atrás do tocador de pífaro.tem uma frente e um verso. que nos leva então à segunda série de problemas de que eu gostaria de lhes falar? São os problemas da iluminação e da luz. entretanto. não está dado no quadro. é indicado por quase nada. ele os utiliza não pintando a frente e o verso da tela. de mudar de posição para chegar enfim a ver aquilo que se sente que se deve ver. jan-jun 2011 . esse lugar. que diferencia a parede do fundo e o espaço sobre o qual ele apoia os pés. Comumente. Aí. e pela própria natureza da pintura. foi aqui até mesmo suprimido. que data de 1864 ou 5. o espectador a ter vontade de girar em torno da tela. Le Fifre Vocês conhecem esse quadro. vocês veem. é sobre o vazio que ele apoia o pé. mas forçando. A Iluminação Será que vocês gostariam agora de passar à tela seguinte. O degrau de escada. essa sombra bem pequena. maliciosa e maldosa. é a primeira vez que a pintura se dá como a aquilo que nos mostra algo invisível: os olhares estão aí para nos indicar que algo é para ser visto. é da maneira pela qual ele é iluminado. já que. na pintura tradicional. que nós vimos nos quadros precedentes. é Le Fifre. É sobre uma sombra. de uma maneira. é sobre nada. algo que é. Goiânia v. e pela própria natureza da tela. não apenas não há nenhum espaço atrás do tocador de pífaro. por definição. Enquanto que. De resto. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 273 . por exemplo. relevos. 259-285. uma certa fonte luminosa que varre a tela e provoca sobre as personagens que aí estão sejam sombras densas. que se desenha a única sombra do quadro. iluminação que é iluminação real da tela. fora da luz real que vem bater na tela. da direita. com a qual se assegura a estabilidade. vocês notam. apenas duas pequenas cavidades de cada lado do nariz. ou de cima. Caravaggio. vocês sabem. é essa minúscula sombra que está aqui sob a mão do tocador de pífaro. seja do alto. seja do exterior da tela. para indicar as sobrancelhas e as cavidades dos olhos. um retângulo. praticamente a única sombra que está presente no quadro. tinha dado sua regularidade e sistematicidade perfeitas. a iluminação vem bem de frente. iluminação. portanto. vocês veem que não há absolutamente nenhuma iluminação vindo. seja por baixo. ele eleva levemente o pé. cavidades etc. da esquerda. mais do que isso. uma janela que a ilumina absolutamente em cheio. Vocês veem que o rosto não apresenta absolutamente nenhum relevo. a grande diagonal que está reproduzida aqui em tom claro pelo estojo do pífaro. Goiânia v. essa minúscula sombra aqui.9 n. que é a indicação do ritmo que o tocador de pífaro imprime à sua música batendo o pé: vocês veem. era um hábito na pintura representar no interior do quadro uma janela pela qual uma iluminação fictícia varria as personagens e lhes dava seu relevo. no interior de sua mão. o que dá. e. de baixo etc. jan-jun 2011 a iluminação é sempre situada em algum lugar. inteiramente perpendicular. tradicionalmente. aqui é preciso admitir uma tela. a quem evidentemente é preciso em particular homenagear. ao contrário. vocês veem que a sombra. pois é atrás dele. uma fonte luminosa que é representada diretamente ou simplesmente indicada por raios luminosos: uma janela aberta indica que a luz vem. É toda essa sistematicidade da luz que foi inventada no começo do quattrocento. e que indica que. Essa técnica radical da supressão de uma iluminação interior e de sua substituição por uma iluminação real exterior e frontal. uma superfície que está ela própria posicionada em frente a uma janela. Aqui.1 p. seja no exterior. à qual. sejam moldes. seja no próprio interior da tela. ou. Há.. toda a iluminação vem do exterior da tela.VISUALIDADES. . em frente a uma janela aberta. desta sombra a essa outra. de fato. mas ela vem atingi-la aqui totalmente na perpendicular. o quadro representa sempre. se a tela em sua materialidade estivesse exposta a uma janela aberta. além disso. Vocês verão que. que varre a cena. e que não tem nada a ver com a precedente. assim como os 274 VISUALIDADES. vocês veem. sem relevo. De fato. Há. divide o quadro em dois. que vem atingi-la totalmente de frente: vocês notam que não há absolutamente nenhum relevo.Manet não a havia evidentemente realizado. e. colocado em prática desde o início. o que as caracteriza é o fato de que são iluminadas por uma luz totalmente diferente. sem moldar.1 p. É essa iluminação que igualmente atinge o rosto do homem. se se admitir que essa linha aí. da relva. nesse quadro há dois sistemas de iluminação que estão justapostos e que estão justapostos em profundidade. iluminação clássica que dá relevo e que é constituída por uma luz interior. de modo concomitante. com uma fonte de luz que vem de cima. Há evidentemente muitas coisas a dizer a seu respeito. que igualmente atinge seu perfil absolutamente de modo chapado. parcialmente mergulhado na sombra. nenhum molde. há uma iluminação que é tradicional. em um de seus mais célebres quadros. Agora. jan-jun 2011 . e os dois corpos sombrios. à esquerda. que morre e para sobre aqueles dois arbustos. Esse Déjeuner sur l’herbe. Eu gostaria simplesmente de falar da iluminação. que vem atingir as costas da mulher. de pintura à japonesa. que vem atingir.9 n. gostariam de passar ao quadro seguinte? É o famoso Déjeuner sur l’herbe. na segunda parte do quadro. Há uma iluminação que é frontal e perpendicular. que ilumina essa grande pradaria ao fundo. duas técnicas de iluminação. que são em certa medida os pontos de chegada dessa iluminação lateral e triangular ali e aqui. eu não pretendo de modo algum analisá-lo inteiramente. que modela aqui seu rosto. dois arbustos claros e um pouco flamejantes. na verdade. considerando-se as personagens da frente. os dois paletós escuros desses dois homens. Goiânia v. vocês verão que ele havia utilizado. 259-285. a mulher e seu corpo inteiramente nu. e essa iluminação vem morrer aqui sobre dois arbustos claros (não a vemos muito bem porque a reprodução não é muito boa). A iluminação não pode vir senão brutalmente e de frente. são os pontos de incidência e sustentação dessa iluminação frontal. um triângulo luminoso que varre o corpo da mulher e modela seu rosto: iluminação tradicional. É uma espécie de esmalte o corpo da mulher. Le Déjeuner sur l’herbe Por favor. portanto. e. no eixo do quadro. vocês sabem. O que havia então de escandaloso nesse quadro que fez com que ele não pudesse ser suportado? . muitas outras no próprio Salão em que essa Olympia provocou escândalo. através dos dedos. o dedo está dobrado. Essa Olympia. e que eram a reprodução. por sinal. eu vou lhes falar do ponto de vista da relação que pode haver entre o escândalo que essa tela provocou e um certo número de suas características puramente pictóricas. vocês se lembram de duas mãos que eu lhes mostrei há pouco em La Serre. há essa mão com dois de seus dedos. Olympia Gostariam agora de chegar a este. viram-se. 259-285. Ora. e ele indica a origem da luz que aí atinge. em certa medida. de modo que aqui. tanto eles a consideravam indecente. a representação da nudez feminina na pintura ocidental é uma tradição que remonta ao século XVI e viram-se muitas outras antes da Olympia. ainda há os eixos fundamentais do quadro e o princípio a um só tempo de ligação e de heterogeneidade deste Déjeuner sur l’herbe. ou melhor. causou escândalo quando ela foi exposta no Salão de 1865. sua heterogeneidade interior. é precisamente a direção da luz interior. Uma iluminação exterior bloqueada pelo corpo dos dois homens e uma iluminação interior duplicada pelos dois arbustos. ou. sobre o qual eu serei breve. ao contrário. essencialmente a luz. essa mão clara que está no meio do quadro. Esses dois sistemas de representação. ou talvez ainda sublinhar. eu gostaria simplesmente de lhes falar do ponto de vista da iluminação. pois aqui. se quiserem. dobrado para o exterior. Goiânia v. creio. esses dois sistemas de manifestação da luz no interior do quadro. não sei. por sinal. ela causou tal escândalo que foi necessário retirá-la. por essa mão que está aqui. estão aqui justapostos nessa tela mesma. reduzir. E. ou. Houve burgueses que. estão em uma justaposição que dá a esse quadro seu caráter em alguma medida discordante. heterogeneidade interior que Manet tentou. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 275 .1 p. jan-jun 2011 dois arbustos aqui eram os pontos de incidência e de brilho da iluminação interior. Eu não lhes falarei muito desse quadro simplesmente porque eu não sou capaz e porque é muito difícil. nesse jogo da mão. quiseram furá-la com seus guarda-chuvas. dos próprios eixos do quadro. dessa luz que vem de cima e que vem de fora. essa direção. visitando o Salão.VISUALIDADES.9 n. um que aponta nessa direção. em todo caso. ao invés. Ora. senão precisamente aí onde nós estamos? Ou seja. lateral e dourada que a surpreende. em cheio. é preciso comparar essa tela àquela que lhe serve. que surpreendemos o jogo da nudez e da iluminação.9 n. que o escândalo moral não era senão uma maneira desastrada de formular algo que se tratava de um escândalo estético: não se suportava essa estética. em todo caso certamente o seio e a perna. Goiânia v. Uma luz que vem de frente. até certo ponto. Se o corpo da Vênus de Ticiano. tudo isso é absolutamente verdade. ou seja. e é evidente que eles têm profundamente razão. de modo algum é uma doce e discreta luz lateral. não pensa em nada. em certa medida. se a Vênus de Ticiano. há essa luz que. a nudez e nós que estamos no próprio lugar da iluminação.1 p. Há essa mulher nua que está aí. se tenho boa memória. à esquerda. o rosto. e que é. há em torno dela lençóis como aqui. essa Olympia de Manet. não há três elementos: a nudez. aqui vocês veem que se Olympia de Manet é visível. a luz. há. não se suportava a própria baixeza dessa mulher. discreta. uma mulher nua que está deitada mais ou menos nessa posição. indiscretamente. que lhe ilumina. das Vênus deitadas e. diríamos. o princípio da visibilidade do corpo. espectadores. e nós.Os historiadores da arte dizem. não vê nada. essa grande pintura à japonesa. a reprodução. é porque há essa espécie de fonte luminosa. jan-jun 2011 . é o duplo. é uma luz muito violenta que a atinge aí. Com efeito (infelizmente eu me esqueci de trazê-la). se ela se dá ao olhar. vem atingila ou acariciá-la. é visível. da Vênus de Ticiano. em particular. a iluminação e nós. e que está aí como uma espécie de camada dourada que vem acariciar seu corpo. a fonte luminosa que está indicada. 276 VISUALIDADES. essas superfícies uniformes. é porque uma luz vem atingi-la. uma variação sobre o tema das Vênus nuas. que surpreendemos o jogo entre essa luz e essa nudez. de uma maneira um pouco mais precisa. uma outra razão para o escândalo e que está ligada à iluminação. uma fonte luminosa que está em cima. que está pressuposta pela própria iluminação da mulher. de modelo e de anti-modelo. Ora. enfim. e que vem iluminá-la docemente. essa fonte luminosa. que é baixa e que é feita para ser baixa. uma luz que vem do espaço que se encontra à frente da tela. na Vênus de Ticiano. Essa luz. Eu me pergunto se não há. há uma mulher. 259-285. onde ela está. que a surpreende de certo modo apesar dela e apesar de nós. vocês sabem que essa Vênus. de uma maneira verdadeiramente estúpida. Le Balcon Aí está o que eu gostaria de lhes dizer sobre esse jogo da iluminação em Manet. aquilo que eu lhes disse sobre o espaço e a iluminação ao mesmo tempo. nosso olhar e a iluminação não são senão a mesma coisa. eu gostaria de sintetizar em um quadro que será o penúltimo desses de que eu falarei. A varanda que está à frente da janela. ilumina-a. aqui a reprodução também é bastante ruim. persianas mais exatamente. Longe de ter pretendido fazer esquecer o retângulo sobre o qual pintava. ou antes as grades que estão à frente da janela. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 277 . Manet não faz senão repro. por sinal.VISUALIDADES. e vocês veem como uma transformação estética pode. e portas-balcão. nosso olhar sobre a Olympia é “lampadóforo”. nós somos responsáveis pela visibilidade e nudez da Olympia. cortou o quadro. nós a iluminamos. Aqui há portas-balcão que são verdes. de um verde muito mais estridente. Será preciso que vocês suponham o quadro um pouco maior. portanto. 259-285. é nosso olhar que. até certo ponto. vocês verão que todo o quadro está enquadrado por essas verticais e essas horizontais. Olhar um quadro e iluminá-lo são uma única e mesma coisa em uma tela como esta e esse é o motivo pelo qual nós estamos – como todo espectador .9 n. as diagonais feitas apenas para lhes servir de apoio e melhor manifestar esses grandes eixos. Infelizmente. reproduz ainda as verticais e as horizontais. A própria janela duplica exatamente a tela e reproduz suas verticais e suas horizontais. e nós somos. Somos nós que a tornamos visível. vocês veem. Goiânia v. e agora.necessariamente implicados nessa nudez. Há. pois somos nós que a deixamos nua e nós a deixamos nua porque. Le Balcon. Se vocês acrescentarem a isso essas persianas que vocês não veem. um quadro que é manifestamente arquitetado por linhas verticais e horizontais. é ele que porta a luz. Poderiam passar à tela seguinte? Aqui. nesta tela. jan-jun 2011 há a nudez e a iluminação que está no mesmo lugar onde nós estamos. pois. provocar o escândalo moral. ou seja. Ela não está nua senão por nós. penso que se tem a combinação de tudo aquilo que eu lhes disse até o momento. o fotógrafo. em um caso como este.1 p. de toda forma. por ela responsáveis. do que vocês veem aí. com linhas horizontais bastante numerosas que dão bordas ao quadro. olhando-a. abrindo-se para a nudez da Olympia. é tornado absolutamente invisível. tendo como única cor. simplesmente. Naquilo que concerne à profundidade. as personagens estão em preto e branco e os elementos arquiteturais. em preto e branco. a luz está fora.1 p. certamente. vocês veem que todo o quadro está em preto e branco. ao invés de se 278 VISUALIDADES. representados simplesmente na sombra. através de uma janela. simplesmente porque toda a luz está no exterior do quadro. portanto. o verde. e é tornado absolutamente invisível por quê? Bem. com dificuldade. nisso o jogo de Manet é ainda particularmente vicioso e maldoso. também está aqui totalmente encoberta. pelo efeito de contraluz. porque. Ora. mas quase não é visível. em que os grandes elementos arquiteturais deviam estar mergulhados na sombra. vocês têm totalmente o contrário. verdes etc. porque o quadro abre bem. Ao invés de penetrar no quadro. exaltados e destacados. duplicá-lo. pelo verde gritante da tela. esse grande espaço vazio que normalmente deveria abrir para uma profundidade. inteiramente negro: distingue-se com dificuldade um vago reflexo de um objeto metálico. e depois toda a sombra está atrás. E todo esse grande espaço oco. não se pode ver o que há no cômodo. como há pouco na La Gare SaintLazare a paisagem estava encoberta pela fumaça do trem. É isso quanto à vertical e à horizontal. os elementos arquiteturais estão em claro e escuro.9 n. e. aqui há uma janela que se abre para algo que é inteiramente obscuro. atinge as personagens aqui. alguns reflexos mais cintilantes. Aqui. e vocês veem essas grandes camadas brancas de vestidos nos quais não se desenha absolutamente nenhuma sombra. de certo modo. 259-285. para uma profundidade. com as personagens que portavam cores. vermelhos. uma espécie de chaleira que é segurada por um garoto. é a própria inversão da receita que era aquela do quattrocento. Goiânia v. e ela está fora. a ponto de destruir as sombras. ao invés de estarem imersos na penumbra. ao contrário. jan-jun 2011 . fora o preto e o branco. como cor fundamental. como vocês veem nas personagens dos quadros dessa época.duzi-lo. esses grandes vestidos azuis. e as personagens são tradicionalmente coloridas. estão. estamos sobre uma varanda. mas vocês veem que essa profundidade. nenhuma sombra consequentemente. é preciso supor o sol do meio-dia que vem atingir a varanda em cheio. Além disso.. multiplicá-lo no próprio interior de seu quadro. pois. precisamente. insistir sobre ele. no limite dessa sombra que está atrás e dessa luz que está à frente. ao invés de se ter um quadro em que a sombra e a luz se misturam. as mãos dobradas. tem-se um curioso quadro em que toda a luz está de um lado. o pintor surrealista. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 279 . e sempre um gesto de mãos. Goiânia v. como se ele não tivesse nada sobre o que repousar: é como em Donation du manteau de Giotto. no limite da luz e da escuridão. as mãos que se desdobram. nós não vemos nada senão olhares. toda a luz está à frente do quadro. que está atrás. o gesto que fazem as três personagens: é simplesmente esse círculo de mãos que unifica novamente aí. E aí a visibilidade é ainda como destacada pelo fato de que essas três personagens olham para três direções diferentes. nós não podemos conhecer. olhem para o pequeno pé da irmã de Berthe Morisot que está aqui. em certa medida. as personagens não se apoiam verdadeiramente. As três personagens estão suspensas entre a escuridão e a luz. de todo modo. que está aí manifestado por essas três personagens. 259-285. Elas estão aí: duas brancas. vocês sabem. suspensas. da vida e da morte. evidentemente.VISUALIDADES. no fundo. elas saem da sombra para chegar à luz. como há pouco em La . que não se apoiam em quase nada. esse pequeno pé que pende desse modo. todas absorvidas por um espetáculo intenso que. e toda a sombra está do outro lado do quadro. e é esse mesmo gesto giratório que é. mas na direção de algo que nós não vemos. de resto. como se a própria verticalidade da tela separasse um mundo de sombra. as luvas que são postas. E. É bem esse limite da vida e da morte. mas um gesto. como três notas musicais. essas três personagens de que se pode dizer. a melhor prova de que elas não se apoiam sobre nada é que. E Magritte. o terceiro porque está à esquerda da tela. que também elas olham para algo. ao invés de três personagens. toda a sombra de outro. jan-jun 2011 ter um quadro claro-escuro. E. o outro porque está à direita da tela. vejam o lado um pouco ressurreição de Lazare desse quadro.1 p. há essas três personagens que estão. as luvas que se está colocando. fez uma variação desse quadro em que representou os mesmos elementos. e as mãos sem luvas. entre o cômodo e a plena luz. da luz e da escuridão. ele representou três caixões. as mãos totalmente desdobradas. entre o interior e o exterior. não um lugar.9 n. que está à frente. uma negra. e um mundo de luz. um porque está à frente da tela. olham com intensidade. mas. elas estão aí suspensas no limite da luz e da escuridão. não mais a luz. jan-jun 2011 . em relação a essa tradição ou a esse hábito pictórico. e as diferenças se pode rapidamente assinalar. Goiânia v. É o último dos grandes quadros de Manet. nessa parede e pelo fato de que era um espelho. um espelho que nos reenvia a própria imagem dessa personagem: é algo que é bastante clássico na pintura. por Ingres. 280 VISUALIDADES. o espelho ocupa praticamente todo o fundo do quadro. por exemplo. pois é um quadro.Serre e como há pouco em Déjeneur sur l’herbe. A principal é que. é Un bar aux Folies-Bergère. como que com uma parede. mas de uma maneira bem viciosa. é de todo modo bastante diferente. aí eu encerrarei. o quadro de Manet. e depois. de modo que Manet fecha o espaço com um tipo de superfície plana. pois não apenas não se vê o que há atrás da mulher. e vocês veem no espelho as costas da mulher. cujos elementos são muito conhecidos: a presença de uma personagem central de que se faz o retrato. A estranheza não é tão estranha. atrás da mulher um espelho. 259-285. imediatamente atrás delas. finalmente. não mais o espaço. não há verdadeiramente profundidade. Trata-se aqui do terceiro elemento de que eu gostaria de lhes falar. eleva-se uma parede. mas o próprio lugar do espectador. se quiserem passar ao último quadro. agora. mas não se vê atrás da mulher senão o que está à frente.1 p. em alguma medida. Entretanto. Quadro de que evidentemente eu não preciso lhes assinalar a estranheza. esses elementos divergentes de um quadro que não é outra coisa senão a manifestação da própria invisibilidade. que está atualmente em Londres. de modo que não se vê. atrás dessa personagem. representou aquilo que está diante da tela. por ele mesmo. é exatamente esse modelo: há uma mulher. Manet. vocês veem. É o primeiro ponto que é preciso destacar sobre o quadro. O lugar do espectador Un bar aux Folies-Bergère Pois bem. e é a mesma técnica de L’Exécution de Maximilien ou Le Bal à l’Opéra: atrás das personagens. já que ela está bem à frente do espelho.9 n. A borda do espelho é essa faixa dourada que está aqui. no Portrait de la comtesse d’Haussonville. É a dupla negação da profundidade. 259-285. os elementos sobretudo. é preciso que ele esteja aí. mas. há aí a reprodução e a representação de fontes luminosas. jan-jun 2011 Vocês igualmente veem que a iluminação é uma iluminação inteiramente frontal que vem atingir a mulher em cheio aqui. no entanto. pois o reflexo dessa personagem deve ser obrigatoriamente visto aqui. Para poder pintar o corpo da mulher nessa posição aí. não é necessário que vocês tenham muitas noções de ótica para se darem conta – sente-se isso no próprio mal-estar de olhar o quadro – de que para ver o reflexo de uma mulher que estaria aqui posicionada. seria preciso que o espectador e o pintor se encontrassem. do espaço à frente. nesse momento. seu reflexo seria visto aqui na extrema direita. pois. Ora. é bem evidente que o pintor não pode estar deslocado para a direita. totalmente na lateral. em alguma medida. tudo isso é um espelho.1 p. mais ou mesmo aqui onde eu aponto meu bastão. com maldade e com astúcia. ainda que necessariamente elas provenham na realidade de fora do quadro. há uma distorção entre aquilo que está representado no espelho e aquilo que aí deveria estar refletido. com a iluminação que vem atingir realmente a mulher do exterior. Muito mais importante. ou seja. se quiserem. Logo. pois ele vê a jovem não de perfil. Aí de novo Manet simplesmente reduplicou. é preciso que ele esteja exatamente de frente. representando a iluminação frontal no interior do quadro pela reprodução desses dois lampadários. devese. Com efeito. vocês não conseguirão. é a maneira pela qual as personagens. para pintar o reflexo da mulher aqui sobre a extrema direita. O pintor ocupa. na verdade. a grande distorção está no reflexo da mulher que está aqui. evidentemente. por certo.9 n. Para que o reflexo da mulher seja deslocado para a direita. Em princípio. são esses ainda aspectos relativamente singulares e parciais do quadro. portanto.VISUALIDADES. portanto. e. para vê-lo aqui. sem dúvida. se vocês buscarem contar e encontrar as mesmas garrafas aqui e lá. Mas. logo tudo o que deve se encontrar à frente do espelho é reproduzido no interior do espelho. são representados no espelho. portanto – e o espectador é convidado após ele a ocu. as fontes luminosas se dão ao luxo de serem representadas no quadro. encontrar os mesmos elementos aqui e lá. Certo? Ora. ela é evidentemente a reprodução em espelho. a mulher aqui posicionada teria seu reflexo. Mas. é preciso que o espectador ou o pintor estejam eles também deslocados para a direita. mas de frente. enfim. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 281 . mas essa reprodução. Goiânia v. Mas é preciso ainda acrescentar outra coisa. Goiânia v. absolutamente face a face com ela. no fundo à esquerda lá adiante.par -. portanto. haveria necessariamente sobre o rosto da mulher. mas. o rosto da personagem. à incompatibilidade centro e direita se soma a incompatibilidade presente ou ausente. sua proximidade em relação a seu modelo.9 n. seria preciso. é preciso que haja alguém. e quando Manet deixou assim o espaço vago à frente da mulher e depois representou aqui alguém que a olha. Ora. no entanto. sobre o mármore igualmente. é preciso que não haja ninguém. e se perca no longínquo. isso seria certamente possível. seja talvez precisamente o lugar do pintor. esse rosto olha de cima para a garçonete. ele tem uma visão de cima sobre ela e. uma solução que poderia permitir arranjar as coisas: há uma situação em que se pode estar à frente da mulher. ainda que. vocês não podem considerar que o espelho se projete em diagonal lá adiante e. para que haja reflexo aqui. não seria seu próprio olhar. sucessivamente ou. vocês veem aqui. e lhe falando de tão perto como se vê aqui. não há nada: a iluminação vem em cheio. Vocês me dirão que isto talvez não seja ainda fundamental. sua distância. Há. se ele estivesse falando com a 282 VISUALIDADES.1 p. sua ausência. e depois ver seu reflexo aqui: a condição é que o espelho seja oblíquo e se vá. alguém cujo reflexo está aqui. é preciso admitir dois lugares ao pintor. Portanto. Ora. sobre seu pescoço branco. ao mesmo tempo vazio e ocupado. sobre o bar. que é que vocês veem aqui o reflexo de uma personagem que está falando com a mulher. Eu responderia: mas de modo algum. que esse lugar. enfim. tudo isso seria simbolizado por aquilo. consequentemente. simultaneamente dois lugares incompatíveis: um aqui e outro lá. pode-se supor. como vocês veem aqui a borda do espelho bem paralela ao plano de mármore que está aqui e à borda do quadro. não porque. portanto. e para que haja iluminação como aqui. que podemos supor que seja o pintor. e se fosse o olhar do pintor aqui representado ou aqui refletido. atinge sem obstáculo nem qualquer anteparo todo o corpo da mulher e o mármore que está aí. se houvesse em frente à mulher alguém lhe falando. consequentemente. 259-285. jan-jun 2011 . Ora. algo como uma sombra. por sinal. é preciso supor. de que ele deixou o reflexo aqui e de que ele assinalou a ausência ali? A presença e a ausência do pintor. não se lhe pareça. sobretudo. nesse lugar que deve estar ocupado pelo pintor. o quadro aparece como um espaço à frente do qual e em relação ao qual podemos nos deslocar: espectador móvel à frente do quadro. de ponto de fuga etc. e nós veríamos então o bar em uma outra perspectiva. se era de cima ou de baixo. . que se pode. na representação. aqui. em alguma medida de físico. em alguma medida. em todo caso. ou. que ele a visse não como nós a vemos. em um quadro como esse. Vocês veem que. imóvel. ainda que se tenha a impressão de que se tem aí tudo sob a mão. o espectador e o pintor estão na mesma altura que a garçonete.1 p. talvez mesmo um pouco mais baixo. de todo lugar estável e definido onde posicionar o espectador é evidentemente uma das propriedades fundamentais desse quadro. com isso. essa exclusão. pois há uma visão ascendente e de modo algum essa visão de cima que está indicada aqui. E vocês veem que então.9 n. ao contrário. pois bem. verticais e horizontais perpetuamente reduplicadas. Essa tripla impossibilidade em que estamos de saber onde é preciso que nos coloquemos para ver o espetáculo como nós o vemos. de material. seria necessário que ele a visse de cima. A distância está bastante comprimida. enviesado ou de frente. de perspectiva. de modo que olhando um quadro se via muito bem de onde ele era visto. o que explica a distância bastante pequena que há entre a borda do mármore e a borda do espelho. à mesma altura. jan-jun 2011 mulher aqui. e explica ao mesmo tempo o encantamento e o mal-estar que se experimenta olhando-o. aí deve haver alguém e não deve haver ninguém. Manet faz agir a propriedade do quadro de não ser. três sistemas de incompatibilidade: o pintor deve estar aqui e deve estar lá. Ao passo que toda pintura clássica. luz real o atingindo em cheio. se quiserem. apesar disso. não é possível saber onde se encontrava o pintor para pintar o quadro como ele o fez. tocar.VISUALIDADES. ou talvez por causa disso. A pintura de Manet rodolfo Eduardo Scachetti 283 . supressão da profundidade. 259-285. de modo algum. Temos. portanto. apesar da extrema proximidade da personagem. com essa última técnica. aparece e joga com todas suas propriedades. um espaço de certa forma normativo. fixo. assinalava ao espectador e ao pintor um certo lugar preciso. na realidade. de onde o espetáculo era visto. Goiânia v. naquilo que ela tem de real. por seu sistema de linhas. e onde nós deveríamos nos posicionar para ver um espetáculo como esse. há um olhar descendente e há um olhar ascendente. cuja representação nos fixa ou fixa ao espectador um ponto e um ponto único de onde olhar. eis que a tela. ) La peinture de Manet.com. é mestre e doutor em Sociologia pela Unicamp e pesquisador do coletivo CTeMe Conhecimento. pois tudo em Manet é representativo.1 p. e estava aí. Goiânia v. jan-jun 2011 . sem dúvida. Tecnologia e Mercado. p. 284 VISUALIDADES. o quadro-objeto. Suivi de Michel Foucault. 2004. In : SAISON. Recebido em: 31/03/11 Aprovado em: 05/06/11 rODOLFO EDUArDO ScAcHETTI srodolfo@uol. 259-285. M. a condição fundamental para que um dia finalmente nós nos livremos da própria representação e que deixemos agir o espaço com suas propriedade puras e simples. Paris: Seuil. mas ele fez agir na representação os elementos materiais fundamentais da tela. a pintura-objeto.9 n.Manet certamente não inventou a pintura não representativa.br Formado em Ciências Sociais e em Comunicação. suas propriedades materiais em si mesmas. Referência Bibliográfica FOUCAULT. (Dir. se quiserem. 21-47. un regard. M. La peinture de Manet . ele estava inventando. VISUALIDADES. A pintura de Manet 285 . jan-jun 2011 rodolfo Eduardo Scachetti .9 n. Goiânia v.1 p. 259-285. . RELATO DE PESqUISA . . concluído em 2010. arte.1 p. Goiânia v. elementos para destacar o vestir como prática performativa. como bolsista Capes – CNPq. buscando.9 n. jan-jun 2011 289 .Dimensões artísticas do vestir: um relato de pesquisa ANDrEA LOMEU POrTELA Resumo Este texto é um relato parcial da pesquisa desenvolvida durante o curso de mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea na Universidade Federal de Mato Grosso. 289-299. sob a orientação da Profª Dra Ludmila Brandão. na poética cotidiana. O corpus de análise baseou-se em experiências tanto de artistas como de pessoas comuns. Palavras-chave: Performatividade. cotidiano VISUALIDADES. nas formas de produção de “si”. in their daily poetics and mannerisms. Keywords: Performing practice. oriented by Professor Ludmila Brandão.1 p.9 n. daily life 290 VISUALIDADES. 289-299. jan-jun 2011 . elements to show how people dress themselves as part of a performing practice. as her Capes’ scholarship student and which was concluded in 2010. art.Artistic dimensions of dressing: a research reporting ANDrEA LOMEU POrTELA Abstract This text is a partial reporting about the research developed during a master’s on Contemporary Cultural Studies at the Federal University of Mato Grosso. The corpus of this analysis was based on the experience of artists as well as ordinary people. Goiânia v. looking for. lembramos Marcel Duchamp. a nudez se mostrou como elemento integrante do processo vestimentar. gestos. e no conjunto. na hipótese de o ato de vestir se constituir como um processo artístico. Dimensões artísticas do vestir: um relato de pesquisa 291 . que nem sempre se identifica frente ao corpo midiático e espetacular. a potência do art-to-wear. jan-jun 2011 Dimensões artísticas do vestir: um relato de pesquisa Tendo como objeto de estudo as práticas vestimentares. A dificuldade metodológica foi registrar o ato de vestir sem descaracterizá-lo frente ao conceito de performance. seu mais conhecido alter ego feminino. onde as práticas cotidianas se fundem à performance para explorar as dimensões do ato de vestir como ato performático. objetos. em diversas manifestações. 289-299. Perguntamos qual seria o papel da moda neste contexto e acerca das diferentes relações que se estabelecem entre corpo. Rompendo também as barreiras do tempo. Foi ao final dos anos 1960 e princípios dos anos 1970.1 p. Goiânia v. moda e subjetividade. Para tanto. Trocando de identidade ao trocar de roupa nos permite questionar sobre esta dimensão artística atuando no cotidiano. em suas pioneiras ações performáticas e em sua maneira de olhar o mundo. ressaltou-se um corpo e um modo de vesti-lo. sentidos e não-sentidos. partimos por uma proposta interdisciplinar de estudo.9 n. seguimos por três vertentes teóricas: arte.VISUALIDADES. DiAndrea Lomeu Portela . Em cada instância. Curiosamente. Estado que ajudou a revelar mais intensamente o corpo do homem comum. nos anos de 1920. que vimos despertar os corpos que ora desfilam no contemporâneo de modo a romper a fronteira arte-vida. múltiplos corpos em suas performáticas composições. Sintetizando em Rrose Sélavy. Dois estudos de caso também foram fundamentais para este processo. optamos por relatos escritos de pessoas comuns como uma modalidade: a performance escrita. O universo da performance foi base para a graduação das intensidades expressivas entre artistas consagrados como Helena Almeida (Tela rosa para vestir). ou algum momento especial – na sociedade do espetáculo contemporânea cede espaço para um vestir-se cada vez mais performático. pois. no registro de pessoas com modos singulares de vestir. Hélio Oiticica (Parangolés). quando a tocamos também somos tocados. No elo entre o corpo e a vestimenta há a construção de um grupo de gestos de intenção estética que não se resumem à beleza. onde construímos o “si mesmo” ou o “nós mesmos”. Este corpo é ambiente de existir e resistir. p. e seres comuns.1 p. Os artistas foram criteriosamente escolhidos por trabalhos relacionados ao vestuário. parece ser.ferente de literatura. que contribuíram com seus relatos para a pesquisa. ao tomar sua vida como uma obra de arte. todavia. numa reformulação constante. entre outros. Esta definição de seres autopoiéticos.9 n. experimentando diferentes maneiras de nos re-inventar. perfizeram um trajeto entre as características performáticas do espetáculo que vai de encontro a aquelas diluídas na vida do homem ordinário.69) que chamam de máquinas autopoiéticas. A roupa é um objeto que estabelece um contato direto com os corpos. jan-jun 2011 . 289-299. 292 VISUALIDADES. já que através das roupas potencializamos a realização de variadas manifestações poéticas e com acentuada performatividade. Possível de ser compartilhada e ilustrativa. A performance foi a principal interface para ajudar a desvendar este ambiente ancestral da arte: o corpo. o modo de funcionamento que se espera do artista. Lygia Clark (Objetos relacionais). A ritualidade das sociedades tradicionais – ao paramentar-se para o trabalho. Varela (1998. as máquinas dos seres viventes que funcionam operando sistematicamente mudança em si. numa aproximação singular. Goiânia v. Reunidos. mas que configuram uma prática expressiva de dimensão artística. ao vestir-se para um evento formal. essa aptidão expropriada pela ordem de somente reproduzir. Recuperando para o homem/mulher ordinários. fotografia ou vídeo. que pode ser aplicada a todo ser vivo. para vivê-la conforme uma estética manifesta nos mais diferentes modos de ser e viver cotidianos. como para Maturana. Os corpos. ele nos revelará suas contradições investindo na transposição da fronteira entre o tangível e o subjetivo. Nessa articulação. porém. Depois da arte. somos nós que abrimos mercados. A palavra moda conduz a algo abstrato. no entanto. nos marcamos e nos cobrimos de significados provocando a grande alquimia das formas. da novidade e/ou do retorno. Com diversas conexões. Principal dispositivo influenciador de nossos modos de vestir e de atuar. 289-299. quanto mais nos aproximamos percebemos que somos nós que a criamos. percebemos que vestir envolve mais do que a indumentária e seus complementos. Dimensões artísticas do vestir: um relato de pesquisa . significação. nos vestimos com inúmeros recursos tanto materiais quanto subjetivos que. corpo e objetos. no cotidiano.9 n. Goiânia v.VISUALIDADES. influenciadora do mais ínfimo gesto até a própria forma social global. é o mesmo? 293 Andrea Lomeu Portela . pois de tão complexa. comunicação. nos consumimos. Nós somos constantemente agenciadores de modos e modas. assume inúmeras dimensões.1 p. arte. Como ele desenha sua silhueta e metamorfoseia esse perfil sempre novo e. ressaltam sua cobertura cultural. como reformulador de suas próprias formas. jan-jun 2011 Construir a aparência exige muito movimento. aceleram nosso potencial transformador. A dificuldade ao se falar de moda será a de definir a perspectiva sobre a qual vamos lançar nosso olhar. Permite-nos eleger este ou aquele gosto gerando narrativas espetaculares. exploramos a moda. muitas revelações podem vir à tona junto a outras palavras: arquivo de cultura e tecnologia. mesmo nus. e os inumeráveis significados a tornam ainda mais vaga. ou neste artista que se cobre (no lugar de cobrir a tela). porém. que apesar de ser um sistema envolvido de místicas. Se pensarmos neste ser construtor de si. industrialização. fornece uma interessante dinâmica. pode comunicar claramente inúmeros discursos. distante. No entanto. Como uma dança realizada frente ao espelho: ao balançar a cabeça testando o brinco ou ensaiando um beijo após o batom. filosofia e mais. criados e disseminados por modas. O misterioso é que quando este artista se olha no espelho nunca se apresenta igual. a moda pode parecer algo exterior. mercado. as práticas e formulações vestimentares extrapolam a moda do sistema mercadológico e acende linhas de força. contaminadora e aberta às possibilidades de renovação dos modos de estar e vir a ser. Na elaboração de nossas práticas performativas cotidianas em variadas situações, em ações corriqueiras como a de nos vestir, percebemos na indumentária sua capacidade de mostrar nossos ajustes e desajustes, registros de histórias (modos de ser), de sonhos e fracassos. Podemos, através do vestuário, descrever toda uma linguagem, mas o ato de vestir (independentemente dos signos e significações que estariam envolvidos neste ato) pode nos levar por onde pretendemos: refletir a partir da prática cotidiana, numa dimensão que escapa à moda, mas que é de total apropriação do ser ordinário com todo seu potencial criativo. Na performance muitos artistas exploram o vestuário como seu principal recurso fabricando roupas que são verdadeiras extensões do corpo. Se muitas vezes eles não usam roupas, se deixam vestir pelas interpretações culturais, mas também pelos afetos da nudez. É o corpo que transporta sentidos e destinos de corpos e coisas, pois para existir precisamos levar algo. O corpo parece não se bastar, necessita assumir novas dimensões. A estas extensões (ou próteses) podemos dar nomes como chapéus, bolsas, sapatos, anéis, calças... ou fantasias, desejos, intenções, intensidades... Ou seja, a subjetividade ganha o centro da discussão. Em conexão com Lygia Clark, que diz que quando o artista usa um objeto do cotidiano ele pensa fornecer ao objeto um valor poético, o papel do artista será o de fazer o participante atuar, como que revelando o conteúdo de um ovo. Se pensarmos no ser ordinário como construtor de um processo artístico ao se vestir, de atribuir ao objeto-roupa valores que destacam o que Suely Rolnik (2005) chamaria de um “manancial germinativo”, então um “(...) corpo vibrátil expõe-se às exigências da criação”. A noção de corpo vibrátil desenvolvida por Suely Rolnik refere-se à capacidade de todos os órgãos dos sentidos de deixar-se afetar pela alteridade. Ela indica que é todo o corpo que tem tal poder de vibração às forças do mundo. Rolnik diz ainda que, além de desmistificar o objeto, aproximar arte e vida cria espaço para a imprevisibilidade e, na medida em que confere profunda aproximação com a vida real, toma mais distância dos museus (espaço sagrado das artes). O ato de vestir pode ser pura fruição, verbo que atiça experiências de criação. A roupa é para ser tocada, vestida, é da ordem do que Lygia Clark chamou de “vivência do sentir”, objeto de sen294 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 289-299, jan-jun 2011 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 289-299, jan-jun 2011 sações que toma a forma tridimensional dos corpos. Há um encontro de corpo e roupa (às vezes, desencontro), uma conexão corpo-objeto ou, como falam Maturana; Varela (1980), uma enação em que os elementos (corpo e roupa) se produzem (e se modificam) mutuamente. A roupa do artista comumente é pensada/escolhida para além de sua funcionalidade, isso todos sabemos. Mas, mesmo em menor grau, não é isso mesmo o que nos passa? Em De Certeau (1998), encontramos a necessidade de pensarmos nas maneiras de empregar e manipular os produtos que consumimos. Propomos então, organizar as ações de vestir conforme momentos fundamentais, nos quais, todos nós participamos de uma maneira ou de outra. A rotina pode ser este primeiro momento, o paramentar-se para as funções de trabalho, o vestir-se e desvestir-se para um banho, para começar ou finalizar o dia, outros. No que in-vestimos nestes momentos? Mas se pensarmos que a rotina se constitui em pequenos rituais (ritualidade e performatividade caminham juntos), a roupa pode impregnar-se do valor que damos ao momento de usá-la. Quanto mais especial o momento que pretendo viver, mais especial é a roupa que escolho vestir. Muitos discursos sugerem pensar a roupa como algo que reflete externamente processos internos; no entanto, não podemos desconsiderar o inverso, a roupa como agenciamento da forma, de um estado de espírito, e da disposição para a ação. Ao dizer que usamos uma roupa para “expressar” algo em nós, que segue um clichê de pensamento sobre nossa relação com a roupa, pois supõe um “nós” fixo, essencial e uma roupa que é apenas objeto, ignoramos o mais importante do processo: da roupa como produtora (sujeito e não objeto) de sua capacidade de afetar-nos. A reconexão arte e vida nos livra da dicotomia que se transformou em senso comum e libera corpo e roupa, principalmente das roupas que funcionam como senhas para assumir determinados comportamentos ou papéis sociais. Os experimentos de Lygia Clark atribuem ao ato aquilo que confere intensidade aos objetos inflamando a percepção e a cognição. No trabalho “Estruturação do Self” (1976 a 1988) de Lygia Clark, a artista investigava a experiência corporal do receptor como condição para realização da obra de arte, enfatizando a essência relacional dos objetos, Lygia denominou alguns trabalhos de “objetos relacionais”. E mais tarde, 295 Andrea Lomeu Portela . Dimensões artísticas do vestir: um relato de pesquisa em 1974, os renomeiou de “Fantasmática do Corpo” quando a questão se mobiliza na memória corporal do receptor, como se os objetos convocassem fantasmas (ROLNIK, 1995). Os “objetos relacionais” ajudam a pensar a roupa em suas reais potencialidades, fornecedora de novas consistências subjetivas à nossa forma, renovando este ou aquele outro corpo que possuímos/engendramos no momento. Possuímos e somos possuídos por roupas dispositivos, máquinas de vestir e de se produzir, de fazer ver e falar. A partir daí podemos perguntar: qual a roupa que nos possui? Quais os desejos que manipulamos para esta construção? Diante de todo este quadro, o corpo está sempre se oferecendo como alternativa, por mais imposições que possa haver, a escuta do desejo se processa em negociações e em alto grau de intensidade (vontade de potência). É no processo que trabalha o poder germinativo do ovo. Nessa formulação com que montamos nossos modos de nos apresentar, que inventamos as possibilidades de nos aceitar desta ou daquela forma. Não estamos limitados aos impositivos da moda e da publicidade, em nossos rituais que modelam e recriam nossos modos de ser, “todo corpo contém inúmeros outros corpos virtuais que o indivíduo pode atualizar por meio de sua aparência “(LE BRETON, 2003). Do guarda-roupa ao espelho levamos a contrapartida de visibilidade entre forças naturais e sociais na construção de meu próprio personagem, entendido e fabricado com os recursos que escolho e/ ou que descarto. De todas as junções possíveis que fizemos ao longo da pesquisa, enfatizando a performatividade e envolvendo todos os nossos sentidos, ainda destacamos que no vestir, não ganhamos somente formas, também ganhamos texturas, cheiros, gostos, em novas dimensões geradas a partir do movimento. Mas o que irá conduzir a movimentação, ou essa fantasmagoria provocada pelos invólucros que encarnam em nossos corpos? Em “O Espírito das roupas” (1987), Gilda de Mello e Souza distingue a moda de outras artes dizendo que o que lhe garante uma estética específica é o movimento. A moda seria então uma arte rítmica, de conquista de espaço. E no conjunto dos elementos que a faz considerar a moda como uma arte, ou seja, – a forma, a cor, o tecido e a mobilidade – é justamente no momento imprevisível de vestir, na dependência do gesto que será efetuado, o que faz da moda a mais viva e 296 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 289-299, jan-jun 2011 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 289-299, jan-jun 2011 humana das artes. A moda é o passaporte para o modo cotidiano que se infla de arte, pois desenha, em pequenos gestos, nossas formas de ser e nossos devires. Rebolando para se encaixar na calça, lançando olhares ao barbear-se, na multiplicação de gestos num braço cheio de pulseiras ou no recanto exigido pelo xale... A itinerária arte-moda-subjetividade, em seus emaranhados, nos fez agregar e desagregar elementos que se multiplicam e se complementam infinitamente. Como o corpo aos objetos, que são os dispositivos imprescindíveis para se penetrar em estados de invenção. Ao penetrarmos as roupas, efetivam-se os estados inventivos aos quais chamamos Artes de Vestir. Sem ser, no entanto, uma afirmação conclusiva, apenas propondo o debate. Referências: CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. Tradução: Paulo José Amaral.São Paulo: Perspectiva, 2008. (Debates). CLARK, Lygia. A propósito da magia dos objetos, 1965. Disponível em: <www.lygiaclark.org.br>. Acesso: 29/05/2010. DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: v.1. Artes de fazer. 10ªed. Tradução: Epharaim Ferreira Alves. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1998. LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas/SP: Papirus, 2003. MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco. De máquinas y seres vivos – autopoiéses: la organización de lo vivo. Santiago de Chile: editorial Universitária, 5ª edición, 1998. MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organização e tradução: Cristina Magro e Victor Paredes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. ROLNIK, Suely. In: Na sombra da cidade. Maria Cristina Rios Magalhães (Org.). Coleção Ensaios – vários autores. São Paulo: Editora Escuta, 1995. ________. Novas figuras do caos: mutações da subjetividade contemporânea. In: SANTAELLA, Lúcia; VIEIRA, Jorge Albuquerque (Org.). Caos e Ordem na Filosofia e nas Ciências, São Paulo: Face e Fapesp, 1999. 297 Andrea Lomeu Portela . Dimensões artísticas do vestir: um relato de pesquisa ________. Breve descrição dos objetos relacionais. Disponível em: < http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/descricaorelacionais.pdf> Acesso: 06/07/2010. SIMMEL, George. “A mulher e a moda”. Tradução: Artur Mourão. Trecho do ensaio Philosophie der Mode (1905), publicado em português sob o título de Filosofia da moda e outros escritos, pela editora Texto & Grafia, Lisboa, 2008. Disponível em: <www.lusofia.net> Acesso: 09/05/2009. SOUZA, Gilda de Mello. O espírito das roupas: a moda do século dezenove. - 5ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Recebido em: 31/03/11 Aceito em: 30/05/11 298 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 289-299, jan-jun 2011 VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 289-299, jan-jun 2011 ANDrEA LOMEU POrTELA [email protected] É docente do Centro Universitário Cândido Rondon - UNIRONDON. Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea, Pedagoga e Design de Moda. Artista/figurinista e membro do Núcleo de Estudos do Contemporâneo – UFMT/CNPq. Andrea Lomeu Portela . Dimensões artísticas do vestir: um relato de pesquisa 299 . conforme a necessidade de adequá-lo ao padrão editorial e gráfico da publicação. ambos em inglês e português (os abstracts devem ser acompanhados pelo título do artigo em inglês). instituição à qual está ligado e e-mail. Serão aceitas também resenhas de filmes e exposições. cultura e visualidades. 5 linhas. inglês e francês – dedicados à exploração das manifestações de sentido. Seu objetivo é a publicação de trabalhos originais e inéditos – em português.000 e 9. Artigos e entrevistas deverão ter entre 4. relatos de pesquisa.Normas para publicação de trabalhos A Revista Visualidades é uma publicação semestral do Pro- grama de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. no máximo. Numa segunda etapa. espanhol. no exterior. as contribuições enviadas serão submetidas a pareceristas ad hoc. 301-303. As resenhas devem ter título próprio e diferente do 301 VISUALIDADES. serão avaliados preliminarmente pelo Conselho Editorial quanto à pertinência à linha editorial da revista. jan-jun 2011 . que articulem arte.9 n.000 palavras. Relatos de pesquisa: até 3. Goiânia v. Os originais. Resenhas: até 2.1 p. O texto deve ser acompanhado de uma biografia acadêmica do(s) autor(es) em. com resolução mínima de 300 dpi. entrevistas. sob a forma de artigos.000 palavras. e. Os trabalhos devem ser precedidos de um resumo de 5 a 8 linhas e 3 palavras-chave. Serão aceitas resenhas de livros publicados no Brasil há dois anos. As imagens para os ensaios visuais podem ser em P&B ou cor. e das seguintes informações complementares: endereço completo do autor principal. O Conselho Editorial reserva-se o direito de propor modificações no texto.000 palavras. ensaios visuais. no máximo. Essas informações devem ser enviadas separadamente. Resumos de teses e dissertações: até 400 palavras. resenhas e resumos de dissertações e teses. há cinco anos. p. Diferentes títulos do mesmo autor publicados no mesmo ano serão identificados por uma letra após a data (SILVA. 1980b).1 p. p. Cidade: Editora. Nome. acrescentando o URL completo do documento na Internet.9 n. deve-se proceder da mesma forma como foi indicado para as obras convencionais. fascículo. p. Nome. 302 VISUALIDADES. X-Y. Título do periódico em itálico. Título do livro em itálico. (SILVA. Tradução. Os textos deverão ser digitados no editor Microsoft Word (Word for Windows 6. p. SOBRENOME. fascículo.). Cidade: Editora. ano. Título do livro em itálico: subtítulo. salvos no formato Rich Text Format (rtf). vol. Disponível em: <http://www>. 301-303. Nome. jan-jun 2011 . Goiânia v. Título do periódico em itálico. Nome do organizador (Org. com página no formato A4. antecedido da expressão Disponível em: e seguido da informação Acesso em: SOBRENOME. mês. In: SOBRENOME. ano. vol. ano. ano. Título do artigo. p. e numeradas seqüencialmente. empregadas apenas para informações complementares e não devem conter referências bibliográficas.).5 e parágrafos justificados.. Acesso em: dia mês ano. p. ou pp. fonte Times New Roman. 1980a). ano. usar o formato: Autor (ano. X-Y.título do trabalho resenhado e devem apresentar referências completas do trabalho analisado. Cidade: Editora. antes das referências bibliográficas. edição. As notas devem ser sucintas. entrelinhamento 1. Título do artigo. Documentos eletrônicos: Para a referência de qualquer tipo de documento obtido em meio eletrônico. X-Y. entre os sinais < >.0 ou posterior). Cidade: Editora. Referências bibliográficas: Quando o autor citado integrar o texto. Nome. corpo 12. em ordem alfabética. Devem ser inseridas no final do texto. Tradução. Título do capítulo ou parte do livro. usar o formato: (SOBRENOME DO AUTOR. As referências bibliográficas completas devem ser informadas apenas no final do texto. de acordo com as normas da ABNT (NBR-6023/2000): SOBRENOME. Em caso de citação ao final dos parágrafos. Edição.). mês.. SOBRENOME. com Normas de publicação 303 .GO Telefone: (62) 3521-1440 E-mail: revistavisualidades@gmail. A revisão ortográfica.1 p. gramatical e a adequação às normas da ABNT são de inteira responsabilidade do(s) autor(es). O CD-ROM deve conter o artigo. o currículo resumido do(s) autor(es) e as imagens separadamente. Cada autor receberá 3 (três) exemplares do número em que for publicada sua colaboração. As colaborações para a revista Visualidades devem ser enviadas para o seguinte endereço: FACULDADE DE ARTES VISUAIS / UFG Secretaria de Pós-Graduação Revista Visualidades (A/C: Cátia Ana Baldoino da Silva) CAMPUS II – Samambaia – Bairro Itatiaia Caixa Postal 131 74001-970 . As imagens devem ser gravadas no formato TIFF ou JPEG.9 n.VISUALIDADES.Goiânia . 301-303. com resolução mínima de 300 dpi. A permissão para a reprodução das imagens é de inteira responsabilidade do(s) autor(es). jan-jun 2011 Os originais devem ser enviados por e-mail e uma versão em CD-ROM deve ser encaminhada pelo correio. Goiânia v. Os originais não serão devolvidos aos autores.
Copyright © 2024 DOKUMEN.SITE Inc.