Ufrgsmundi 2014 - Guia de Estudos Final

March 28, 2018 | Author: ufrgsmundi | Category: Taliban, Afghanistan, International Politics, United Nations, Al Qaeda


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ORGANIZADORESWillian Moraes Roberto Júlia Tocchetto Marília Closs PORTO ALEGRE, V.2, AGO. 2014 UFRGSMUNDI Porto Alegre v.2 p.1-207 2014 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL REITOR Prof. Carlos Alexandre Netto FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS DIRETOR Prof. Hélio Henkin CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS COORDENADOR Prof. Érico Esteves Duarte EDITORA-CHEFE Sônia Ranincheski CONSELHO CONSULTIVO Analúcia Danilevicz Pereira (UFRGS); André Reis da Silva (UFRGS); Érico Esteves Duarte (UFRGS); Henri- que de Castro (UFRGS); Luiz Augusto Faria (UFRGS); Jacqueline Hafner (UFRGS); José Miguel Martins (UFRGS); Marco Aurélio Cepik (UFRGS); Sônia Ranin- cheski (UFRGS). CONSELHO EDITORIAL Willian Moraes Roberto, Júlia Simões Tocchetto, Ma- rília Bernardes Closs. CONSELHO EXECUTIVO Willian Moraes Roberto, Júlia Simões Tocchetto, Ju- liana Freitas, Marília Bernardes Closs. CAPA E EDITORAÇÃO Liza Bastos Bischof APOIO Pró-Reitoria de Extensão; Pró-Reitoria de Planeja- mento; Centro Estudantil de Relações Internacionais; UFRGSMUN. PARCERIA FINANCEIRA UFRGSMUN Back In School (BIS) Os materiais publicados no guia de estudos UFRGSMUNDI são de exclusiva responsabilidade dos autores. É permitida a reprodução parcial e total dos trabalhos, desde que citada a fonte. Os artigos assinalados refletem o ponto de vista de seus autores e não necessariamente a opinião dos editores desta revista. UFRGSMUNDI UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul FCE – Faculdade de Ciências Econômicas CERI – Centro Estudantil de Relações Internacionais Av. João Pessoa, 52, Campus Centro, CEP 90040-000, Porto Alegre – RS - Brasil. Email: [email protected] http://www.ufrgs.br/ufrgsmundi UFRGSMUNDI Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Ciências Econômicas, Curso de Relações Internacionais, Centro Estudantil de Relações Internacionais - Ano 1, n. 1 (novembro/2013). – Porto Alegre: UFRGS/FCE/, p. 1 – 207, 2014. Anual. ISSN 2318-6003. 1. Ciência Política. 2. Relações internacionais. 3. Política internacional. 4. Diplomacia. CDU 327 Responsável: Biblioteca Gládis Wiebbelling do Amaral, Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS Dados Internacionais de Catalagoção na Publicação (CIP) SUMÁRIO EDITORIAL CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS A Situação no Paquistão Aline Rocha, Guilherme Simionato, Júlia Simões Tocchetto e Renata Schmitt Noronha PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços Eduardo Dondonis, Michelle Baptista, Raíssa Mattana e Roberta Preussler CONFERÊNCIA DE SÃO FRANCISCO (1945) A criação da ONU Giovana Esther Zucatto, Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi, Henrique Pigozzo, Rodrigo Milagre e Victor Merola CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA Mandado de Prisão: República Democrática do Congo X Reino da Bélgica Bruna Leão Lopes Contieri, Diego Bortoli, Giovana Hof e Vitória Maturana ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS HISTÓRICA (1974) A Crise do Petróleo de 1973 e seus Impactos Internacionais Bruna Lersch, Gabriela da Costa, Guilherme Lara, João Arthur Reis, João Gabriel Burmann e Patrícia Machry CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS Impacto de Sanções Econômicas sobre os Direitos Humanos Luiza Lopes, OthonSchenatto, Joana Vaccarezza e Lívia Costa ASSEMBLEIA GERAL DA UNIÃO AFRICANA Atores Militares Não-Estatais e Forças Militares Estrangeiras no Continente Africano Ana Carolina de Sousa Melos, Júlia Oliveira Rosa, Katiele Rezer Menger e Leonardo Albarello Weber ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS HISTÓRICA (1947) A Partilha da Palestina André França, Elisa Eichner, Jéssica da Silva Höring, Jordy Bolivar Pasa e Natália Regina Colvero Maraschin AGÊNCIA DE COMUNICAÇÃO Jade Knorre, Paula Moizes, Sarita Reed e Vinicius Fontana COMUNIDADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS Regulação e Democratização da Mídia na América Latina Bruna Coelho Jaeger, Lucas Larentis, Marília Bernardes Closs e Thaís Jesinski Batista 05 06 28 52 68 82 105 129 155 173 187 05 EDITORIAL Quantas vezes nos perguntamos que mundo é esse? Quantas vezes a resposta ou as respostas ficam restritas aqueles que pesquisam e ensinam nas Universidades? Alunos da UFRGS preocupados em sair do intramuros da Universidade, iniciam, em 2012, o projeto UFRGSMUNDI visando proporcionar a experiência de pensar respostas na relação entre secundaristas e universitários, concretizando, assim, a democratização do conhecimento. O que é feito e discutido na Universidade e na área de Relações Inter- nacionais transborda os muros da faculdade e chega aos alunos e ao restante da sociedade – permitindo aos participantes verem como a esfera internacional afeta as vidas de cada um. Mas o que é o UFRGSMUNDI? O UFRGSMUNDI é um projeto de extensão desenvolvido pelos alu- nos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O projeto é uma simulação da Organização das Na- ções Unidas voltada a alunos do Ensino Médio de todo o Rio Grande do Sul. É a primeira de tal alcance a ser realizada no estado. Cada participante/estudante secundarista representa um país, defendendo os seus interesses em debates com os demais participantes de seus comitês. As simulações são encorajadas a serem executadas de maneira positiva e criativa, possibilitando aos professores e alunos discussões de assuntos que, talvez, passem sem a devida atenção durante o Ensino Médio. O UFRGSMUNDI está orga- nizado em termos de multidisciplinaridade das discussões e isso torna possível que diversas matérias das escolas sejam abarcadas em cada um dos comitês/tópicos, fugindo àquela visão tradicional de tratar os assuntos isoladamente. Além disso, a simulação proporciona ao aluno desenvolver habilidades de lide- rança, lógica, raciocínio rápido, oratória – visto que tudo isso é treinado para a simulação, quando cada aluno está representando um delegado de um país, ou mesmo um juiz ou repórter. Os números crescentes de escolas e inscritos no projeto indicam não só o sucesso como o inte- resse dos estudantes secundaristas pelo projeto e pelas questões internacionais. Como em 2013 o núme- ro de inscritos superou o número de participantes – 411 inscritos para 200 vagas – neste ano de 2014, o UFRGSMUNDI expande suas vagas para 350, a fim de que mais escolas e mais alunos possam participar. Ao mesmo tempo, simulam dez comitês, em comparação com oito do ano passado, com temas como a Situação no Paquistão (Conselho de Segurança das Nações Unidas); Hidropolítica e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente); a Conferência de São Francisco de 1945 – criação da ONU; a Corte Internacional de Justiça e o Mandato de Prisão – República Democrática do Congo x Reino da Bélgica; a Assembleia Geral das Nações Unidas Histórica de 1974 – os efeitos da crise do petróleo de 1973 sobre o Sistema Internacional; o impacto das sanções econômicas sobre os Direitos Humanos (Conselho de Direitos Humanos da ONU); Atores Militares Não-Estatais e Forças Militares Estrangeiras no Continente Africano (Assembleia Geral da União Africana); a Assembleia Geral das Nações Unidas Histórica de 1947 – a partilha dos territórios palestinos; e a Regulação e Demo- cratização dos Meios de Comunicação na América Latina (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos); além da Agência de Comunicação. Tais temas e a simulação de discussões sobre eles, em um âmbito mais profundo, demonstram na prática que a ONU não serve apenas para evitar a eclosão de conflitos – o qual na verdade nunca foi seu objetivo primordial. Mas serve para desenvolver uma vasta rede de governança e serviços em outras áreas, igualmente de relações internacionais – nas quais a ONU consegue ser mais efetiva, inclusive. Assim, ao apresentar a terceira edição do UFRGSMUNDI damos os parabéns a estes jovens estu- dantes universitários que acreditam e realizam iniciativas como esta. Podemos dizer que aqueles objeti- vos iniciais se mantém e são aperfeiçoados na relação que se estabelece entre os estudantes de antigas e novas turmas que, no convívio para a realização do projeto, transmitem os conhecimentos adquiridos, algo tão importante como a própria criação do conhecimento. Estes estudantes se engajam e acreditam no projeto de tal maneira que se encarregam de todo o processo de montagem de um projeto dessa na- tureza. São responsáveis da estrutura física até a criação e montagem dos guias de estudo, passando pelo planejamento, pela divulgação nas escolas e na rede da internet (convido a verem a página http://www. ufrgs.br/ufrgsmundi/), a edição deste livro e a realização das atividades propriamente dita. É, assim, uma conquista da própria Universidade, que estimula a criatividade, a crítica e proporciona que projetos dessa importância se mantenham. Boa leitura. Profa. Sonia Ranincheski Coorda. Acadêmica do UFRGSMUNDI 06 UFRGSMUNDI CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS A Situação no Paquistão Aline Rocha 1 Guilherme Simionato 2 Júlia Simões Tocchetto 3 Renata Schmitt Noronha 4 INTRODUÇÃO O Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) é o principal órgão desta organização res- ponsável por manter a paz e a segurança internacional, como definido pela Carta da Organização das Nações Unidas (ONU). O CSNU é formado por quinze membros, dos quais cinco são permanentes, e dez são selecionados pela Assembleia Geral para períodos de dois anos. Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança são a China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos, e eles possuem o que é conhecido como “poder de veto”. Isso significa que, se qualquer desses cinco membros votarem con- tra uma resolução ou cláusula, por exemplo, ela automaticamente não é aprovada. Os outros dez países são eleitos pela Assembleia Geral, sendo normalmente cinco membros da Ásia e África, um da Europa Oriental, dois da América Latina e dois da Europa Ocidental. As sessões de 2014 serão compostas pelos seguintes países: Argentina, Austrália, Chade, Chile, Jordânia, Lituânia, Luxemburgo, Nigéria, Coreia do Sul e Ruanda, além dos cinco permanentes. A característica mais importante do CSNU, que o diferencia dos outros órgãos da ONU, é que este é o único comitê capaz de impor resoluções obrigatórias para todos os Estados. Também faz par- te do mandato do Conselho o direito ao uso da força para operações de paz, além de poder autorizar outras operações militares. No entanto, a primeira ação do órgão, quando uma reclamação de ameaça à paz é trazida ao Conselho, é de recomendar às partes envolvidas uma solução pacífica. O Conselho já ordenou cessar-fogo e impôs sanções econômicas ou embargos militares coletivos em muitas ocasiões de conflito armado. Além disso, o CSNU tem o poder de nomear Representantes Especiais ou requisitar ao Secretário-Geral das Nações Unidas um Representante Especial para ter maior controle da crise. Por fim, o CSNU pode recomendar a suspensão ou expulsão, pela Assembleia Geral da ONU, de um Estado- -Membro que continuamente viole os princípios da Carta da ONU. Esse comitê é, portanto, crucial para a manutenção da paz – um dos objetivos das Nações Unidas, e sua relevância vai além da segurança e geopolítica, afetando também as vidas de populações diretamente envolvidas nos conflitos discutidos. 1. HISTÓRICO A região do Afeganistão foi historicamente palco de disputas entre grandes potências 5 , desde 1 Graduanda do 3º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 Graduando do 6º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Graduanda do 6º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Graduanda do 6º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 5 O termo grande potência se refere ao país que é considerado de destaque no globo por ter grandes capacidades militares, econômicas e estar envolvido nas dinâmicas internacionais mais importantes. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.06-27 07 CSNU Alexandre, o Grande, passando pelos persas, chineses e pelo famoso Grande Jogo 6 entre Inglaterra e Rússia, no qual o país servia de Estado-tampão 7 , chegando até as décadas de 1970, 1980 e se desdobran- do como uma região conflituosa até os dias atuais (KHANNA, 2008). Isso se deve ao fato de a região ser central no tabuleiro geopolítico global, mesmo sendo composta desde sempre apenas por tribos, sem um Estado 8 forte e centralizado (SILVA, 2011). Sua localização a coloca no meio das rotas de comércio global, bem como das rotas energéticas de petróleo e gás natural, tornando-a essencial para a segurança desses fatores e, portanto, para o próprio mercado de bens e consumo global. As regiões da Ásia Central e do Sul da Ásia 9 se desenvolveram praticamente alheias às fronteiras oficiais – tendo sido essas muitas vezes estabelecidas unilateralmente pelas grandes potências, basean- do-se predominantemente nas divisões étnicas e tribais entre Pashtuns, Hazaras, Tajiques, Uzbeques, Punjabis, Baluches, dentre outros, como se pode perceber no mapa abaixo (Figura 1). Nunca houve um governo central forte capaz de unificar todas essas etnias por muito mais que uma dúzia de anos. Na realidade, o padrão, sempre foi a existência de relações tribais e de acordos entre os senhores de terras definindo os rumos das políticas dos proto-Estados 10 nos quais eles se inserem (KATZMAN, 2013, p.1). O fato histórico mais importante para a história recente da região foi, sem dúvidas, a intervenção soviética no Afeganistão de 1979 e seus desdobramentos. Figura 1: Grupos Étnicos do Afeganistão e do Paquistão Fonte: STRATFOR, 2013. 6 Termo imortalizado por Rudyard Kipling no seu livro Kim (1901), no qual era caracterizada a rivalidade entre duas potências emergentes da época, Rússia e Inglaterra, na região da Ásia Central. Enquanto o Império Russo pressionava do norte, o Império Inglês pressionava do Sul, através de sua principal Colônia, a Índia. Ambos se chocaram na região do Afeganistão por diversas vezes. 7 Ou seja, um território neutro entre dois grandes impérios, com o objetivo de evitar choques entre eles. 8 Palavra utilizada como sinônimo de país, significando a forma de organização política deste. 9 Compostas por: Turcomenistão, Cazaquistão, Uzbequistão, Quirguistão, Tajiquistão, Afeganistão, Paquistão, Índia, Bangladesh, Butão, Nepal, Sri Lanka e Maldivas. 10 Estados/países fracos no sentido de possuir poucas instituições ou formas de organização social capazes manter a ordem e as condições mínimas de saúde e educação para suas populações, bem como como tendo pouco controle sobre suas fronteiras e seu território. Como dito, os países se constituíam mais em um conjunto de elites e líderes tri- bais fazendo acordos com seus vizinhos do que um governo consolidado. 1.1. GUERRA DO AFEGANISTÃO (1979) Em 25 de dezembro de 1979, a União Soviética (URSS) atravessava sua fronteira sul no vale do Hindu Kush em direção ao Afeganistão. Lá perdurava um regime marxista apoiado pela própria URSS, o qual vinha sofrendo fortes pressões tanto externas quanto internas, ambas por parte dos países do bloco capitalista: seja por meio de sanções internacionais, ou pelo incentivo (financeiro, bélico e político) a grupos de oposição dentro do próprio Afeganistão (MARSDEN, 2009, p. 67). Os Estados Unidos da América, principal potência oponente da URSS no período da Guerra Fria, contando ainda com Arábia Saudita, Paquistão, China, Irã e Egito, financiam os guerrilheiros contrários ao governo comunista no Afeganistão, os mujahideens – combatentes de classes tribais do Afeganis- tão. Apesar da diversidade desses países, todos temiam a dispersão do comunismo pela região, seja pelo medo de ter a URSS projetada na sua vizinhança ou pelo sentimento de ameaça à religião islâmica Islã, afinal o ateísmo é dominante dentro do comunismo. A ajuda estrangeira concedida aos rebeldes era di- versa e consistia em alimentos, em medicamentos e nos mais diversos armamentos, desde rifles de assal- to à misseis antiaéreos portáteis de alta tecnologia, capazes de derrubar os mais modernos helicópteros soviéticos (COLL, 2004, p. 149; MARSDEN, 2009, p. 69; KATZMAN, 2013, p. 3). Entretanto, a oposição aos soviéticos no Afeganistão era extremamente fragmentada, principal- mente em divisões étnicas ou religiosas, com cada grupo dominando uma determinada região do país. Nesse contexto, cada país buscava ajudar o grupo que mais representasse seus interesses, e que, conse- quentemente, poderia oferecer os melhores benefícios caso tomasse o poder após a queda soviética. As coincidências dos interesses dos EUA e do Irã, por exemplo, paravam na derrota soviética; tirando isso, nenhum queria ver o outro fortalecido em um governo pós-URSS. Adicionalmente, a ajuda externa em armamentos e suprimentos chegava quase exclusivamente pelo Paquistão, o qual a distribuía aos rebel- des afegãos (MARSDEN, 2009, p. 75). Tudo isso somado levou a um descontrole na distribuição de armas dentro do Afeganistão, não havendo domínio sobre o destino dos equipamentos vindos de fora. 1.2. DÉCADA DE 1990 E A GUERRA CIVIL Essa ajuda indiscriminada, desorganizada e concorrente criou diversas facções dentro do Afe- ganistão, as quais, com a retirada soviética em 1989 e com a queda do governo comunista afegão em 1991, entraram em choque umas contra as outras. Essas facções eram lideradas por senhores de guerra - os quais eram os líderes de tribos, cidades, povoados ou grupos étnicos que diferiam entre si, mas que lutaram juntos contra a URSS -, dos quais cada um possuía sua própria milícia, formada por pessoas as quais ele fornecia algum tipo de suporte, seja com comida, moradia, trabalho ou mesmo ideologia. Era praticamente um exército próprio e bem armado, financiado, como dito anteriormente, principalmente pelos governos estrangeiros (DINI, 2013, p. 99). Devido a isso, o caos se instaurou no país: por anos, a população afegã sofreu com uma guerra civil sangrenta entre os senhores de guerra. Existia um gover- no oficial do país, o qual era controlado pelo tajique Massoud do norte, mas que exercia, de fato, poder apenas sobre seu restrito território, além de mal controlar a capital do país, Cabul, ficando incapaz de fornecer os serviços básicos de saúde, infraestrutura e educação para o restante da população (SAIKAL, 2004, p. 210). Embora os Estados Unidos tenham praticamente esquecido o Afeganistão após a retirada so- viética em 1989, o Paquistão ainda estava profundamente envolvido com as facções aliadas lutando na guerra civil afegã. Além disso, mais do que nunca, havia-se criado um vácuo de poder na região com a queda da URSS, possibilitando o crescimento do poder e da influência do Paquistão e sua projeção em direção à Ásia Central (KATZMAN, 2013, p.47). Além disso, sempre existiu uma percepção da fragilidade geográfica que os militares paquistaneses tinham do seu país, tendo em vista o tamanho relativamente reduzido do Paquistão em relação ao seu maior rival, a Índia. Tal percepção foi agravada com a Guerra de Independência de Bangladesh de 1971, na qual o Paquistão perdeu quase metade da sua população e ter- ritório (NEVES JR, 2010, p. 122). A essa percepção se deve a constante busca paquistanesa pela chamada profundidade estratégica, ou seja, uma extensão do território paquistanês, a fim de aumentar seu espaço de manobra na retaguarda, o que seria essencial em um futuro conflito com a Índia; afinal, conflitos entre o Paquistão e a Índia foram constantes no decorrer dos anos. Em decorrência disso, o governo paquista- nês via o controle sobre o Afeganistão como essencial para a sua própria existência como país. Desde a independência do Paquistão em 1947, a rivalidade e a desconfiança marcam sua rela- ção com a Índia, também ex-colônia britânica. O principal ponto de conflito na fronteira é a região da Caxemira, que é uma zona disputada entre os dois países, contando ainda com reivindicações da China. Paquistão e Índia possuem certas regiões de controle do território, mas ambos clamam por um controle total da região. A Índia ainda afirma que a região tem focos de ocupação por mujahedins paquistaneses e afegãos, que utilizam o local da Caxemira para militância terrorista e para anexar a região ao Paquistão. Já o Paquistão contra-argumenta que a militância é da população local que luta contra a intervenção do exército indiano (NEVES JR, 2010). Além do Paquistão, havia outros atores externos envolvidos no Afeganistão. A intervenção sovié- tica atraiu ao solo afegão diversos grupos de extremistas jihadistas 11 , os quais juraram aniquilar os comu- nistas ateus. Esses grupos eram financiados por milionários radicais de todo o mundo, mas principalmen- te da Arábia Saudita e de alguns reinos da península arábica, os quais construíam campos de treinamento na região, principalmente no Sudeste afegão e Noroeste paquistanês. Um desses sheiks extremistas per- tencia a uma das famílias mais tradicionais da Arábia Saudita e se mudou para o Paquistão em 1988 para fazer sua própria Jihad contra a URSS. Seu nome era Osama Bin Laden e a seu grupo deu o nome de Al Qaeda (COLL, 2004, p. 71). Assim como as potências estrangeiras, esses grupos não eram unidos, tendo em vista a diversi- dade de correntes dentro do próprio Islã. Muitos se uniam com determinado chefe local, o qual fornecia território, terras e alimentos em troca de ter esses guerreiros estrangeiros lutando a seu lado. Percebe-se, portanto, que a ligação entre extremistas religiosos, chefes locais, e o próprio governo paquistanês era tênue, tendo os primeiros conseguido se instalar no território do último com tranquilidade e suporte (COLL, 2004; SAIKAL, 2004; KATZMAN, 2013). Entretanto, os anos se passavam sem que as facções apoiadas pelos paquistaneses e pelos fun- damentalistas conseguissem tomar o poder no país, o qual ainda era dominado pela coalizão situada ao norte, de etnia tajique, e liderada por Ahmad Shah Massoud. Massoud também fora aliado estadunidense e paquistanês na luta contra os soviéticos. Todavia, após a queda da URSS, ele buscou apoio indiano e russo, visto que sua facção nunca fora a preferida dos EUA e do Paquistão. 1.3. O NASCIMENTO DO TALIBà E SEU GOVERNO Ao mesmo tempo em que via sua influência ameaçada dentro do Afeganistão por grupos contrá- rios a seus interesses, o Paquistão, através principalmente do seu serviço de inteligência (a ISI – Inter-Ser- vices Inteligence), notou o crescimento de um pequeno grupo de estudantes islâmicos de etnia Pashtun, os quais viviam no sul do Afeganistão, mas tinham histórico de ter estudado em madraças (escolas islâ- micas) criadas por sauditas e por paquistaneses ainda na década anterior. O Islã ensinado nessas escolas era de correntes ligadas ao Wahabismo saudita, corrente do Islã de caráter altamente fundamentalista, extremista e conservador. Esse grupo de estudantes islâmicos, ou, na linguagem dos Pashtuns, Talibãs, estava cansado de viver em um país em guerra civil, onde não existia sequer um líder forte capaz de unifi- car e representar todas as etnias vivendo em território afegão. Por isso, inicialmente, planejavam derrotar todos os senhores de guerra do país, que, segundo eles, passaram anos traindo e assassinando os pró- prios irmãos afegãos. Em seguida, planejavam trazer o antigo Rei do Afeganistão e devolver o poder a ele (SAIKAL, 2004, p. 222). Em 1994, o presidente paquistanês, General Zia-ul-Haq, cansado de repassar dinheiro às mes- mas facções que inutilmente tentavam derrotar Massoud e fracassavam em garantir o escoamento segu- ro das rotas de comércio e energia desde a Àsia Central (Turcomenistão, principalmente) até o Paquistão, resolve procurar Mullah Mohammed Omar, líder do então pequeno grupo Talibã e propor uma parceria. O Paquistão forneceria armamentos, dinheiro e todo o tipo de suporte necessário para que o Talibã tomasse o poder imediatamente. Além disso, o governo do General Zia se esforçaria ao máximo para conseguir apoio político internacional ao grupo de Omar, inclusive dos Estados Unidos e da Arábia Saudita. Essa não foi uma missão muito difícil, visto que os Estados Unidos compartilhavam diversos interesses com o Pa- quistão, pois obviamente eram de nacionalidade estadunidense as empresas que extraiam petróleo e gás natural dos países da Ásia Central, bem como o destino desses recursos era normalmente os EUA (COLL, 2004). Além desses aliados, o Talibã logo se aproximou da Al Qaeda e de seus centros de treinamento na região entre o Afeganistão e o Paquistão. Isso foi facilitado pela semelhança de suas correntes do Islã, bem como pela vontade comum em derrotar o “traidor infiel” Massoud. No ano de 1996, o Talibã finalmente consegue tomar a capital Cabul, obtendo controle sobre praticamente todo o território Afegão, com Massoud isolado no vale de Panjshir a Nordeste, perto da fronteira com o Tajiquistão. Mullah Omar imediatamente declara o Afeganistão como um Emirado Islâ- mico, sendo quase imediatamente reconhecido pelo Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (SAIKAL, 2004; KATZMAN, 2013, p. 5). Assim, como é recorrente na história recente do país, os grupos fora do poder, mesmo tendo lutado entre si no período anterior, unem-se para derrotar o novo polo do- 11 Guerreiros islâmicos que lutam a Jihad, ou Guerra Santa, contra os inimigos do Islã. 10 UFRGSMUNDI minante: Massoud, tajique, une-se aos grandes senhores de guerra do país (uzbeques, hazaras, pashtuns moderados, todos eles já fracos e derrotados pelo Talibã) para formar a Aliança do Norte, a qual existe desde então. O fundamentalismo do Talibã logo ficou claro quando o governo impôs que os madraçais, as “es- colas corânicas”, ou seja, que se baseiam no Corão, seriam o único tipo de escola existente no país, sendo, entretanto, somente permitida aos homens. Além disso, o trabalho feminino foi proibido, bem como a liberdade de não usar véu em todos os ambientes. A lei islâmica (Sharia) foi adotada por completo, sendo não mais vista com o relativismo de antes. A ideia de entregar o poder ao antigo Rei logo é abandonada, com Omar declarando a si mesmo como Comandante dos Fiéis, chefe supremo do Afeganistão (KATZ- MAN, 2013, p. 5). Embora, na teoria, isso não incomodasse os beneficiados pela ascensão do grupo ao poder, visto que finalmente havia um governo forte o suficiente para garantir a segurança de futuros oleodutos e rotas de comércio, o desenrolar dos fatos se mostrou perturbador. Logo que o Talibã assumiu o poder, Osama bin Laden se mudou para o país, pois acabara de ser expulso do Sudão por suspeitas de envolvimento em ataques terroristas contra instalações ocidentais ou de aliados. Seu grupo, a Al Qaeda, se fortalecia cada vez mais, visto que o governo Talibã permitia que seus centros de treinamento se instalassem livremente no país, bem como recebia de bom grado os estrangeiros que iam ao Afeganistão aprender “o verdadeiro” Islã e adquirir o treinamento para a Jihad. A fama de bin Laden era crescente no mundo islâmico, bem como o seu ódio aos EUA 12 , o qual teve auge no manifesto escrito pelo líder da Al Qaeda, lançado em 1998, no qual ele clamava a todos os muçulmanos do mundo que se unissem para aniquilar os estaduni- denses e seus aliados (COLL, 2013, p. 71; GRIFFIN, 2003, xx). Em 7 de Agosto de 1998, embaixadas dos EUA na Tanzânia e no Quênia são atacadas por militan- tes ligados a bin Laden, deixando centenas de oficiais americanos mortos. Duas semanas depois, os EUA lançam diversos mísseis cruzadores em campos de treinamento da Al Qaeda no Afeganistão (GRIFFIN, 2003, xx). Em diversas ocasiões, os líderes Talibãs foram pressionados a entregarem bin Laden e seus alia- dos, tanto pela Arábia Saudita, quanto pelo Paquistão e pelos EUA. Muitas promessas foram feitas nesse sentido, mas nenhuma foi cumprida (COLL, 2004). Mesmo com essa situação, os benefícios já citados faziam que esses países relevassem e depositassem a mínima confiança no grupo afegão, suficiente para manter a situação sem nenhuma alteração relevante. Isso foi ainda mais reforçado em 1999, quando Paquistão e Índia entraram em embate direto na Guerra de Kargil, na qual os guerrilheiros treinados nos centros de treinamento mujahedin do outro lado do país (alguns em parceria com a Al Qaeda) tiveram papel central (COLL, 2004; SAIKAL, 2004; NEVES JR, 2010). Outro ponto demonstrado pela Guerra de Kargil foi a fragilidade da posição estratégico geográfica do Paquistão, onde inexiste profundidade estra- tégica que garanta o mínimo de segurança para as linhas de suprimentos para os soldados em uma guerra com a Índia no leste. Por tudo isso, o Paquistão ainda sustentava o governo do Talibã frente a seus velhos aliados. Os EUA já sabiam que o Talibã estava fornecendo território para o treinamento de terroristas de toda parte do mundo, incluindo bin Laden, mas perceberam uma crescente quantidade de estrangeiros chegando no país após os ataques dos EUA com mísseis ao Afeganistão em 1998. Isso, em conjunto com os ataques terroristas já realizados pela Al Qaeda, levou à ideia de uma intervenção ao Afeganistão circu- lar dentro dos EUA. Talvez mais importante que isso, entretanto, é que havia também o interesse em uma presença militar permanente no Afeganistão, tendo em vista os interesses estratégicos já citados com relação ao Irã, Paquistão e a Ásia Central. Cabe lembrar que a Rússia já estava quase recuperada de sua “década perdida” de 1990, após o colapso da União Soviética, e a China já estava praticamente consolida- da como potência global, estando o Afeganistão em posição privilegiada em relação a ambos. Só faltava um pretexto para a intervenção acontecer: após o dia 11 de setembro de 2001, entretanto, não restavam mais dúvidas no alto escalão estadunidense (MARSDEN, 2009, p. 94). 1.4. OS ATENTADOS DE 11 DE SETEMBRO DE 2001 O governo regido pelo Talibã somente iria ter fim com a invasão norte-americana em 2001 pós- -ataques do 11 de setembro, onde as torres do World Trade Center e o Pentágono foram atingidos por aeronaves sequestradas por membros da Al Qaeda. Em pouco tempo, os EUA anunciaram que interviriam 12 Ódio esse decorrente de vários fatos: desde questões ideológicas envolvendo teorias anti-imperialista baseadas em um nacionalismo islâmico, passando pelo apoio estadunidense ao maior rival do mundo islâmico na sua própria região, Israel, até a materialização disso nas Guerras envolvendo diretamente os EUA na Península Arábica, onde Bin Laden rompeu com o príncipe de seu país, a Arábia Saudita, acusando-o de se aliar ao inimigo, o qual ceifava incansavelmente as vidas dos seus irmãos muçulmanos em terras sagradas (COLL, 2013). 11 CSNU no país e conseguiram apoio internacional facilmente, formando uma coalizão com quase 50 países. Poucas semanas depois, o governo Talibã já não tinha mais controle sequer sob a capital Cabul (GRIFFIN, 2003, xx). Devido à intervenção estrangeira em território afegão, o Talibã voltou-se para suas origens, no território paquistanês, onde deu início, novamente, ao recrutamento para a guerra contra os Estados Unidos. Como citado anteriormente, a fronteira entre os dois países é muito porosa e controlada pela maioria étnica Pashtuns, sendo o local de origem dos principais mujahedins e do Talibã. Dessa forma, caracteriza-se a região como um palco de guerra entre tribos, tropas ocidentais, organizações islâmicas e o exército paquistanês. 2. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA 2.1. O TERRORISMO Primeiramente, é importante destacar que inexiste um consenso sobre a definição de terrorismo na comunidade acadêmica e na política internacional. Entretanto, alguns esforços nesse sentido já foram tomados. O Conselho de Segurança das Nações Unidas definiu o termo em uma resolução (1566, p.2) no ano de 2004 como: “atos criminosos, incluindo os contra civis, cometidos com a intenção de matar, ferir ou sequestrar reféns, com o propósito de provocar um estado de terror no público geral ou em um grupo de pessoas em particular, bem como intimidar a população ou compelir um governo ou uma organização internacional a fazer ou se abster de fazer algum ato; o que constitui infrações no âmbito das convenções e protocolos internacionais que versam sobre o terrorismo e não são, sob circunstância alguma, justificáveis, sejam por motivos políticos, filosóficos, ideológicos, raciais, étnicos, religiosos ou de qualquer natureza.” (CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS, 2004, p. 2. tradução nossa). O terrorismo é considerado um problema relativamente recente, iniciado no pós-Segunda Guer- ra Mundial, com os problemas relacionados à criação do Estado de Israel e que ganha força nas décadas de 1980 e 1990 com o problema já relatado do Afeganistão (NEVES JUNIOR, 2010). O grande ponto é que o terrorismo incorpora o que é chamado pelos analistas de segurança inter- nacional de Guerra Irregular Complexa. Nessa definição, o conflito não é mais entre países com exércitos regulares, forças aéreas e marinhas de organização similares, como foram a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, mas sim entre atores com capacidades assimétricas (BOOT, 2013). Enquanto um lado (EUA, por exemplo) possui caças de última geração, capazes de derrubar qualquer outra aeronave similar, o outro lado (Talibã, por exemplo) possui no máximo mísseis portáteis antiaéreos para lidar contra aeronaves. Entretanto, o lado mais fraco se utiliza amplamente do terreno complexo (cidades, monta- nhas, tuneis) e das poucas capacidades tecnológicas que tem (principalmente os mísseis supracitados) para equilibrar o jogo a seu favor. Para se ter noção, enquanto o lado mais forte utiliza helicópteros de última geração, avaliados em torno de US$20 milhões, o lado mais fraco consegue fazer grandes estragos utilizando-se desses misseis portáteis, os quais os guerrilheiros carregam e com os quais disparam em cima de seus próprios ombros, e são avaliados em menos de US$100 mil. Nesses casos, boa parte das capacidades do mais forte é anulada, visto que ele simplesmente não pode usar o seu máximo nessas condições, seja pelo risco de atingir civis ou pela simples natureza irregular das montanhas. A própria diferenciação entre quem é civil ou quem é combatente é muito difícil, visto que os guerrilheiros não ves- tem uniformes, misturando-se à população civil facilmente, o que é essencial para entender os proble- mas relacionados ao direito internacional e à proteção dos direitos humanos (BOOT, 2013), envolvendo principalmente os assassinatos cometidos pelas Aeronaves Não-Tripuladas (VANTs) estadunidenses nessa região, assunto que será tratado em detalhes no decorrer do texto. Nesse sentido, a Guerra Irregular Complexa explica o porquê dos EUA, sendo a maior potência militar do planeta, estarem atolados há mais de 10 anos no Afeganistão, onde são combatidos por guerrilheiros mal nutridos, os quais vivem em cabanas de madeira ou em cavernas. 2.2. A LINHA DURAND: A FRONTEIRA AFEGANISTÃO-PAQUISTÃO A Linha Durand foi estabelecida ainda no Império Britânico parar separar o Afeganistão de suas possessões na Índia e continuou em vigor com a independência do Paquistão. Arbitrária, ela separa as 12 UFRGSMUNDI tribos da maioria Pashtun ao meio, bem como os Balochis ao sul, e não é reconhecida como legítima pelo governo afegão, o qual declara ser dono legítimo de todo o território Pashtun (GRARE, 2006), represen- tando mais um ponto de choque entre os dois vizinhos. A Linha tem quase 3 mil quilômetros e marca uma fronteira extremamente porosa, composta quase totalmente por montanhas e rios, tornando impossível o controle e policiamento em vários de seus entrepostos. Em adição a isso, somam-se todas as dificuldades e fraquezas das forças e do próprio Estado nos dois lados. Como já foi dito, a política interna no Afeganistão é feita a partir das negociações entre os senhores de guerra de cada região, quase como governadores não-eleitos; esses, por vezes corruptos ou ligados ao Talibã ou à Al Qaeda. O governo central controla efetivamente apenas a capital, embora possa projetar força através do exército para todo o país. Do outro lado da fronteira, no Paquistão, a situação é diferente. Entretanto, há muitas divisões internas entre as agências de inteligência (principalmente a ISI), o corpo diplomático e o próprio Primeiro-Ministro, o que também limita muito o controle paquistanês de seu lado da fronteira (COLL, 2004; MARSDEN, 2009, p. 89). Além disso, a população local é uma das mais pobres de todo o Paquistão, vivendo praticamente de ajuda ao tráfico de armas e de drogas, o que as leva a acobertar muitas vezes os guerrilheiros do Talibã. Esse cenário se repete em praticamente todas as regiões do Afeganistão, o maior produtor de ópio do mundo (KATZMAN, 2013). Dadas todas essas dificuldades, a fronteira entre os dois países (principalmente no lado paquis- tanês, após 2001) abriga grande parte dos centros de treinamentos e das instalações dos Talibãs, os quais se imiscuem nos povoados que vivem nessas montanhas e se movem conforme sua necessidade. Entre- tanto, diversos desses centros de treinamentos recebem militantes estrangeiros, principalmente árabes, africanos, uzbeques, chechenos (russos) e uigures (chineses) 13 (COLL, 2004). Há também muitos campos de treinamento voltados exclusivamente para esses estrangeiros, pertencentes principalmente a Al Qae- da. Essa é a principal preocupação da comunidade internacional em relação ao Paquistão, visto que esses militantes extremistas voltam para seus respectivos países e aplicam o aprendizado, seja com assassinatos de alto valor, explosões em locais públicas, sequestros de aviões, dentre outros. Um exemplo recente dis- so foi o atentado que matou 30 cidadãos chineses em fevereiro de 2014 na província de Xinjiang, embora em 2013 tenham ocorrido ataques até na capital Pequim (ESTADÃO, 2013; REINOSO, 2014). 2.3. O OUTRO TALIBÃ: O MOVIMENTO TALIBà DO PAQUISTÃO (TTP) Após os ataques de 11 de Setembro, o Paquistão não teve outra escolha se não apoiar completa- mente os Estados Unidos e cortar relações oficiais com o Talibã. O governo paquistanês temia ser acusa- do de cúmplice e ser enquadrado como inimigo dos estadunidenses, podendo vir a ser invadido na esteira da invasão afegã. Portanto, o país ofereceu todo o tipo de suporte aos EUA, principalmente logístico: pelo porto de Karachi chegava grande parte dos suprimentos das tropas lutando no Afeganistão (MARSDEN, 2009, p. 95). Entretanto, a relação do Paquistão com o Talibã, como mostrado anteriormente, é antiga e pro- funda. Conforme a década foi passando, o Paquistão evitou ao máximo se envolver em confrontos diretos com grupos terroristas, prendendo membros de baixa relevância da organização apenas para esboçar algum esforço para seus aliados ocidentais. O ex-presidente paquistanês, Pervez Musharraf (2001-2008), era um general linha dura e conservador, o qual apoiava constantemente a ISI na sua boa relação com o Talibã (COLL, 2004). Além do Talibã, entretanto, o Paquistão tem profundas relações com outros grupos considerados terroristas pelos EUA. O mais relevante é a Rede Haqqani, a qual é também ligada à ISI e trabalha em conjunto com o Paquistão. No entanto, em 2007, diversos partidos fundamentalistas sunitas pashtuns paquistaneses, ins- pirados no Talibã original, unem-se para formar o Movimento Talibã do Paquistão (TTP, Tehrik-i-Taliban Pakistan). O TTP, diferentemente do Talibã afegão, faz oposição direta ao governo paquistanês, prati- cando atentados diretamente no país. É difícil, entretanto, ligar ambos os Talibãs, visto que eles agem separadamente, sem contar a relação oposta com o Paquistão e com a ISI (KATMAN, 2013, p. 16). O TTP é importante, pois está fortalecendo seus vínculos com a Al Qaeda e já representa uma grande fonte de extremismo no Paquistão, sendo a maior preocupação do governo paquistanês no oeste do país. Ainda, o TPP é um dos principais pontos de choque entre o governo do Afeganistão e o Paquistão. 13 Africanos: principalmente do norte da África, Mali, Líbia, Egito, Sudão, Argélia, Quênia, etc, onde combatem uma di- versidade de assuntos: segregação religiosa, intervencionismo estrangeiro, separatismo. Os chechenos historicamente defendem a separação da Chechena (região muçulmana russa) da Rússia, para que possam viver sob leis islâmicas. Na China, especificamente na província de Xinjiang no extremo oeste (colada na Ásia Central), há também grande comu- nidade muçulmana, conhecidos como uigures, os quais também defendem um Estado só para eles, sem interferência do governo ateu chinês. 13 CSNU 2.4. RELAÇÕES AFEGANISTÃO-PAQUISTÃO Além da já falada questão da região disputada entre os países, os dois mantêm relações quentes principalmente por causa de seu envolvimento com os grupos extremistas. Enquanto é sabido que o Paquistão foi o principal financiador do Talibã afegão desde suas origens, o governo paquistanês acusa o presidente afegão Hamid Karzai de oferecer suporte ao TPP (NBC, 2013). O governo afegão do presidente Karzai acusa o Paquistão de fornecer armas, incentivos finan- ceiros e território livre para que atentados terroristas sejam feitos no Afeganistão em alvos de alto in- teresse paquistanês, como embaixadas e empresas indianas. Críticos afirmam que ambos os governos cultivam grupos amigos, a fim de usar como barganhas em negociações. Os oficiais paquistaneses não se empenham em fazer vista grossa com a passagem de militantes da Rede Haqqani e de militantes ligados ao Talibã afegão no seu território, enquanto o exército afegão não parece se incomodar muito com os militantes do TPP no seu território (FAROOQ, 2014). Apesar dessas diferenças, entretanto, os países participam de diversos projetos juntos, sendo os mais importantes aqueles que envolvem as questões energéticas. Ambos são essenciais nos projetos de construção de oleodutos e gasodutos ligando a Ásia Central ao resto do mundo. O principal deles é o TAPI (Imagem 2), um projeto de US$ 8 bilhões, o qual, quando pronto em 2017, transportará gás natural do Turcomenistão através do Afeganistão e do Paquistão até a Índia, o que atenderá às necessidades energéticas de todos os envolvidos. O TAPI possui diversos investidores estadunidenses e é fortemente apoiado pelos EUA, visto que evita passar pelos territórios de China, Rússia e Irã, grandes rivais do país (DINI, 2013, p. 98-99). Figura 2: Gasoduto TAPI Fonte: SIGAR apud DINI, 2013, p.98 É importante, nesse sentido, que haja estabilidade na região para que esse tipo de projeto acon- teça e traga consigo desenvolvimento. Por isso, há o esforço de ambos os países em demonstrar boa diplomacia. Entretanto, é dever do Conselho de Segurança das Nações Unidas garantir que, mesmo após a retirada estadunidense do Afeganistão em 2014, não retorne o vácuo de poder semelhante ao que aconteceu na retirada soviética. Isso seria desastroso para toda a região, visto que abriria margem para o retorno de fundamentalistas ao poder, sejam eles apoiados pelo Paquistão ou não. Por isso, é essencial que se desenvolvam meios efetivos de cooperação e desenvolvimento conjunto entre Afeganistão e Pa- quistão, para que eles sejam capazes de coibir os extremismos e governar efetivamente (e com qualidade) toda sua população e seu território. 14 UFRGSMUNDI 2.5. RELAÇÕES COM A ÍNDIA: A CAXEMIRA E O TERRORISMO Tendo sido antiga colônia britânica, a Índia tornou-se independente em 1947; contudo, esta in- dependência ocorreu junto com a divisão do subcontinente indiano em dois países distintos: o Paquistão e a Índia, devido às diferenças religiosas e, sobretudo, à pressão inglesa, dentro da lógica de “dividir para reinar” 14 . Depois de independentes, a tensão mais importante entre os países era a relacionada à posse da região da Caxemira 15 , a qual até hoje não foi acordada, pois, enquanto a Índia acredita que essa região é essencial para sua identidade como Estado secular e multiétnico, o Paquistão considera que incorporar a região é fundamental para a identidade islâmica do país (AFRIDI, 2009). Tal disputa incitou uma descon- fiança mútua entre os dois países, que é intrínseca a essa relação até os dias de hoje. Paquistão e Índia enfrentaram-se em quatro conflitos, sendo três relacionados à Caxemira, e desenvolveram armas nuclea- res em 1998, o que aumentou a tensão e os riscos de que uma guerra cause consequências catastróficas (JAUHARI, 2012, p. 42). Figura 3: A Região da Caxemira Fonte: Wikimedia Commons, disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/Fi- le:Kashmir_map_big.jpg>. Acesso em 12 fev. 2014. Traduzido e adaptado pelos autores. 14 A política colonial britânica, em geral, buscava incentivar divisões internas nas suas colônias, a fim de controlá-las mais facilmente. Assim, manobras foram realizadas nesse intento, resultando na partilha do subcontinente indiano (VISENTINI, 2011, p. 43). 15 A região da Caxemira, disputada desde a divisão entre a Índia e o Paquistão, situa-se no noroeste da Índia. A disputa complicou-se porque, logo após a partilha, o líder da região assinou um termo alegando que a Caxemira faria parte da Índia; por outro lado, a população é majoritariamente muçulmana, o que é fundamento para os paquistaneses alega- rem que esse documento não expressaria a vontade do povo da região. Essa primeira discordância causou a primeira guerra indo-paquistanesa em 1947 (JAUHARI, 2012, p.43). Desde 1949, a região é dividida por uma linha de cessar- -fogo determinada pela ONU (JAUHARI, 2012, p.43), a qual foi denominada, depois de 1972 em um acordo entre os dois países, de “linha de controle” (LOC, na sigla em inglês), dividindo as porções da Caxemira indianas e paquistanesa (REUTERS, 2008). Além disso, também existe uma parcela da Caxemira que a China reivindica (AFRIDI, 2009). 15 CSNU Além das características já citadas como relevantes para a relação entre os dois países, o terroris- mo aparece como mais um agravante. Nos anos 1990, na região da Caxemira, grupos terroristas – como o Hizb-ul- Mujahidin (HM), o Lakshar-e-Taiba (LET) e os chamados grupos “deobandis”, como o Hara- kat-ul-Mujahideen (HUM) – começaram a atuar contra alvos indianos, aparentemente com o apoio do Estado paquistanês, principalmente da sua agência de inteligência (ISI) (NEVES JUNIOR, 2009). Assim, nesta década, começaram a ocorrer vários ataques terroristas na região. Os ataques começaram na Ca- xemira, mas ocorreram novos atentados também em território indiano, com a justificativa de “libertar” os muçulmanos que vivem lá. Os mais destacados foram em Nova Déli, em 2001, em Bangalore, em 2006, e em Mumbai, em 2008 (JAUHARI, 2012, p. 46; THAROOR, 2012, p. 30). Esses grupos terroristas, cada um com suas particularidades, buscam, em geral, anexar a Caxe- mira ao Paquistão, acreditando ser essa uma região invadida por “infieis”, ou não-muçulmanos. Assim, os grupos instrumentalizam a prática da “Jihad” 16 de maneira radical, a fim de atingir objetivos políticos, dentro da ideia da retomada de uma terra que deveria ser, em sua concepção, de posse muçulmana. Esse mesmo ideal estava presente na luta dos mujahedin no Afeganistão, quando da intervenção da URSS em 1979, como já foi explicado. Nesse sentido, cabe salientar que muitos dos grupos terroristas mais impor- tantes que passaram a atuar na Caxemira a partir da década de 1990 têm origens neste conflito no Afe- ganistão. Com o fim da Guerra Fria, ocorreu de fato um deslocamento de militantes do Afeganistão para a Caxemira, para lá praticar a Jihad contra os indianos (JAUHARI, 2012, p. 45-46; NEVES JUNIOR, 2009). Paralelamente a esse deslocamento, havia, no Paquistão - bem como no Afeganistão dominado pelo Talibã, como já foi explicado - diversas “escolas corânicas”, os “madraçais”, as quais pregam o islã, que vinham crescendo muito no país e passaram a servir como importante fonte de militantes para as redes terroristas. Esses madraçais existem até hoje e são fomentados por essas organizações como importante ferramenta de recrutamento (NEVES JUNIOR, 2009, p. 196 e 240-247). Estas amplas e complexas redes de grupos terroristas não poderiam existir, sem dúvida, sem fi- nanciadores e apoiadores por detrás delas. Atualmente, acredita-se que setores do Estado paquistanês – principalmente a agência de inteligência ISI, mas também o exército e alas conservadores, ligadas aos partidos religiosos - têm total conhecimento dessas atividades e que, além disso, patrocinam as mesmas, tendo em vista que seus interesses incluem anexar a Caxemira e “vencer” o conflito histórico indo-pa- quistanês, rejeitando uma solução negociada 17 . Surgido em 1949, o ISI foi idealizado como agência de inteligência para assuntos relativos à Caxemira. A partir, principalmente, dos anos 1970, contudo, pas- sou a conquistar cada vez mais poder político dentro do Paquistão. A partir de 1979, chegou a apoiar os mujahedins no Afeganistão, demonstrando que seus laços com as organizações terroristas datam desta época. Assim, a Agência tem e teve importante papel na criação e na manutenção das redes terroristas atuantes na região da Caxemira e na Índia, principalmente através de suporte financeiro, sem o qual estas organizações estariam bem mais debilitadas (NEVES JUNIOR, 2009, p. 185-192). Apesar de tudo isso, internacionalmente, o Paquistão declara-se aliado dos EUA na luta contra o terrorismo, a chamada “Guerra ao Terror”. Como há divisões dentro do próprio Estado paquistanês, tendo os militares e o ISI grande poder político e autonomia, e a presidência, pouco controle sobre as conexões entre esta agência de inteligência e as redes terroristas, a situação se torna ainda mais complexa (NEVES JUNIOR, 2009, p. 187-194; THAROOR, 2012, p. 34). O General Pervez Musharaf, presidente do Paquistão de 2001 até 2008, aliou-se ao Presidente George W. Bush ao lançar ofensivas contra os Talibãs no Afega- nistão, enquanto “defendia que a situação na Caxemira não era apoiada pelo Paquistão, mas tratava-se sim de uma revolta da população caxemir contra a opressão indiana” (NEVES JUNIOR, 2009, p. 205) 18 . Assim, o presidente manteve um discurso que diferenciava grupos que são, na realidade, bastante in- terligados entre si, a fim de seguir recebendo apoio estadunidense. Apesar dessas iniciativas do governo paquistanês, as atividades terroristas seguiram ocorrendo, tanto na Índia, quanto na Caxemira, e há fortes indícios de que o apoio de setores do Estado paquistanês tenha continuado, alimentando a contradição existente na atuação do Paquistão dentro da “Guerra ao Terror” estadunidense (BAJORIA, 2010). Mesmo 16 Aqui, importa notar que o Jihad não é, exclusivamente, uma doutrina de guerra. Ela representa um esforço para pro- pagar a religião do Islã. Contudo, há uma interpretação de jihad que, de fato, representa a guerra como forma de difu- são do Islã. Além disso, o Corão não prega, necessariamente, a guerra santa como forma de expansão do islã; o Jihad não é nem mesmo um dos principais pilares desta religião. As redes extremistas, contudo, acreditam ser necessário e justificável empregar a guerra santa e eliminar os “infieis”, os invasores das terras do islã, a fim de expandir o alcance de sua religião. O jihad acaba por se converter, logo, em um instrumento político, legitimador de uma política externa de expansão territorial (NEVES JUNIOR, 2009, p. 97, 157-160). 17 Alguns líderes paquistaneses que buscavam uma negociação com a Índia como a melhor solução para o conflito, os chamados “nacionalistas”, já chegaram ao poder. Contudo, a influência e o poder político da ISI e dos militares é grande no Paquistão, e ataques terroristas na Índia incentivados por eles acabaram por recorrentemente impedir ne- gociações (NEVES JUNIOR, 2009, p. 188-211). 18 Vale salientar, contudo, que o próprio Musharaf já teria admitido, em entrevista, que muitos dos militantes que atuam na Caxemira são treinados no Paquistão, e que o governo teria feito “vista grossa” por considerar que os atentados pressionariam a Índia a iniciar novos diálogos (BBC, 2010). 16 UFRGSMUNDI depois que o governo declarou os grupos terroristas ilegais, os mesmos seguiram atuando de forma dis- simulada, com disfarces e outros nomes (AFRIDI, 2009). A desconfiança indo-paquistanêsa também repercute no Afeganistão. O Paquistão possui um grande interesse em manter no país um governo aliado, o que lhe traria grandes vantagens no possível conflito com a Índia. Disto veio o grande apoio ao Talibã no Afeganistão, explicado anteriormente. Du- rante a intervenção ocidental (primeiro, dos EUA em 2001, e, a partir de 2003, da OTAN) no Afeganistão, a Aliança do Norte (aliada do Ocidente) tomou o poder no país em 2006 e abriu espaço para uma parceria com a Índia, exemplificada por alguns investimentos diretos deste país no Afeganistão. A ISI e o exército paquistanês seguiram, então, apoiando o Talibã, para que retome o poder no país e o afaste da parceria com a Índia (KATZMAN, 2013, p. 47; JAUHARI, 2012, p. 48). Por seu turno, a Índia busca aproximar-se do Afeganistão para aproveitar as vantagens econômicas - como a conexão com a Ásia Central e a possibi- lidade de exploração de recursos -, impedir que o país se torne aliado do Paquistão e evitar que grupos radicais ataquem alvos indianos no Afeganistão, também reconhecendo que esses mesmos grupos pos- suem importantes laços com as redes que atacam a Caxemira e o seu território (KATZMAN, 2013, p. 52; MAZZETTI & SCHMITT, 2008). A questão do terrorismo tem contribuído muito para a manutenção do ambiente de desconfiança entre a Índia e o Paquistão: a Índia constantemente acusa o Estado paquistanês de se envolver nos perió- dicos ataques no seu território e na Caxemira e, além disso, ambos os países são acusados de cometerem violações de direitos humanos na Caxemira. O Paquistão encontra-se, atualmente, em um nível alto de ingovernabilidade, ou seja, o próprio governo está com dificuldades de controlar seu país e as diversas forças políticas que operam dentro dele, como a ISI, os militares e os grupos terroristas. Até mesmo a ISI já vem tendo dificuldades de controlar os grupos terroristas que apoia, tendo alguns já atacado alvos em território paquistanês. Enquanto isso, parece claro que a melhor forma de resolver os atritos com a Índia é através do diálogo, mas ainda há grande resistência em ambos os lados quanto à reconciliação, embora alguns avanços já tenham ocorrido (JAUHARI, 2012, p. 49; AFRIDI, 2009). 2.6. A LUTA CONTRA O TERRORISMO E O USO DE VEÍCULOS AÉREOS NÃO TRIPULADOS (VANTS) 2.6.1. A LUTA CONTRA O TERRORISMO Como já mencionado anteriormente, a presença do terrorismo no Paquistão é marcante e decisiva para qualquer discussão acerca das ações a se tomar no país. Setores do próprio governo paquistanês seguem envolvidos com os grupos islâmicos atuantes, o que torna mais complexa ainda a luta contra o terrorismo na região. Hoje, podemos ver duas maneiras distintas de se atuar contra as ações terroristas: através da institucionalização regional e através da intervenção estrangeira. A primeira segue uma visão de um combate de longo prazo, que venha a erradicar o terrorismo por meio do desenvolvimento da região e do aumento da presença estatal. Já a segunda visa a combater, em curto prazo, os principais grupos através da presença militar de tropas estrangeiras (NEVES JUNIOR & PICCOLI, 2012). 2.6.1.1. Contraterrorismo através da institucionalização regional A luta contra o terrorismo através de uma estratégia de longo prazo com foco no desenvolvimento da região considera que as ações radicais islâmicas não se mantêm somente no Afeganistão e suas pro- ximidades, mas também em outras áreas do mundo e vêm sendo utilizado por outras potências mundiais já bem antes do surgimento da Guerra ao Terror estadunidense. Países como Rússia, China e Índia, seguem essa visão de contraterrorismo na região. A China, por exemplo, lida com problemas sérios de terrorismo dentro de seu próprio território, na região de Xinjiang 19 . Uma das medidas de contraterrorismo tomada pelo país foi aumentar o número de projetos de infraestrutura na região para torná-la mais integrada, com exemplo no projeto de um gasoduto que iria do Cazaquistão até Xinjiang (CHENGHU, 2009). A Rússia também tem problemas com terrorismo, principalmente na região da Chechênia, onde os grupos separatistas estão em constante atividade. O país buscou resolver essas questões através da implementação de novas legislações contraterroristas e da criação de instituições que facilitam o combate a esses grupos. Assim como a Rússia, a Índia também criou legislações e uma agência nacional especializada de combate ao terrorismo (PEREIRA et al, 2012). A criação da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) - que agrega Rússia, China e diversos países da Ásia Central, além de Paquistão, Índia e Irã como Estados observadores – foi um marco impor- 19 Região do noroeste da China que possui diversos grupos separatistas. 17 CSNU tante na luta contra o terrorismo na região. Com a OCX, as decisões podem ser tomadas de forma cole- tiva, sempre mantendo uma posição de não intervenção estrangeira nos países onde o terrorismo ainda deve ser combatido (NEVES JUNIOR & PICCOLI, 2012). A OCX foca no combate através do crescimento econômico da região, de forma que a população permaneça satisfeita, evitando o surgimento de grupos radicais. Esse crescimento se daria, principalmen- te, por investimento em infraestrutura, como em obras de saneamento e construção de escolas, e pelo fortalecimento de projetos políticos, para que os países não sejam prejudicados pelas ações contrater- roristas. Diversos projetos de ampliação de rotas de comércio para países como Afeganistão e Paquistão estão sendo discutidos no âmbito da organização, incentivados por chineses e indianos, como o projeto da Nova Rota da Seda 20 . Esse projeto, inclusive, fez com que as próprias ações dos Estados Unidos fossem revistas (NEVES JUNIOR & PICCOLI, 2012), já que iniciativas como essa podem trazer benefícios para os investidores, além de desenvolver o país e conferir potencial para crescimento econômico. Outro aspecto importante dessa forma de contraterrorismo é que ela considera um sistema mul- tipolar 21 , com potências asiáticas agindo em sua região coletivamente em busca de um objetivo comum. A luta contra o terrorismo, de certa forma, fez com que Rússia e China se aproximassem, através da OCX, mantendo estreitas relações bilaterais, como nunca antes tiveram, e atuando mais fortemente na Ásia Central (NEVES JUNIOR & PICCOLI, 2012). Além disso, a China sempre foi uma grande parceira do Paquistão e não busca intervir nos assuntos internos do país, respeitando sua soberania (PEREIRA et al, 2012). É importante também frisar que essa presença de países como Rússia e China na região apenas foi possível com o enfraquecimento da presença norte-americana, que vem tendo dificuldades em lidar com a população local, na qual cresce cada vez mais um sentimento antiocidental (VERSIEUX, 2004). Além da OCX, também vemos a criação do Fórum Quadrilateral, que envolve Rússia, Afeganistão, Paquistão e Tadjiquistão. Mais uma vez identificamos o aumento da presença russa na região, através de uma ação coletiva, também com foco na luta contra o terrorismo nesses países. Além disso, o próprio Paquistão tem novas oportunidades de se tornar mais autônomo e de se inserir na região (MARTINS et al, 2011). 2.6.1.2. Contraterrorismo de intervenção estrangeira Por outro lado, existe também o combate através da intervenção militar estrangeira, normalmente utilizado pelos Estados Unidos. Após os ataques de 11 de setembro, a luta contra o terrorismo se tornou uma justificativa para a presença estadunidense em outros países, principalmente no Afeganistão. O foco em acabar com as organizações terroristas como Al Qaeda espalhou-se para outros grupos antiociden- tais, como o Talibã, e acabou tornando a região toda alvo do contraterrorismo norte-americano. Essa forma de combate envolve principalmente o uso da força e de tropas estadunidenses per- manentemente na região, de forma a eliminar toda e qualquer ameaça aos norte-americanos. Segundo Neves Jr e Piccoli (2012, p.4), (...) se configura uma definição do que é a guerra ao terrorismo: campanhas militares preventivas destinadas a desbaratar organizações radicais islâmicas, amparados por determinados governos. A perseguição a líderes desses grupos extremistas é a principal ação do contraterrorismo de in- tervenção estrangeira, que, se considerarmos a morte de Osama Bin Laden, em 2012, de fato obteve sucesso. Porém, nos últimos anos, a presença estadunidense vem trazendo à tona sentimentos antioci- dentais na população, já que em nenhum momento foi utilizada uma política de desenvolvimento ou de melhoria das condições da população local. Além disso, essa é uma visão de um mundo unipolar, na qual os Estados Unidos, como potência global, precisam intervir militarmente nos países contra esses grupos terroristas e estabilizá-los à sua maneira (NEVES JUNIOR & PICCOLI, 2012), já que não existiria nenhuma outra potência com capacidades necessárias para isso. Assim, percebe-se que há respostas militarizadas para o que, muitas vezes, trata-se de um problema social. É importante notar que os Estados Unidos sempre se baseiam em uma ameaça futura a seu país ou a seus cidadãos, e que essas ações de contraterrorismo são parte de uma política de prevenção, muito 20 A Nova Rota da Seda tem sua origem no conceito de Rota da Seda utilizado para definir uma rota comercial através da qual bens e especiarias eram comercializados na Idade Média. Essa rota ligava o Oriente ao Ocidente pela Ásia Cen- tral. A nova versão seria também através da Ásia Central, porém incluiria questões energéticas e de infraestrutura de transporte que poderiam gerar um maior desenvolvimento para a região (REIS, 2014). 21 Sistema Multipolar é um sistema que possui mais de um país com grande poder. É um sistema oposto àquele em que se considera que os Estados Unidos seriam o único polo – o sistema unipolar. 18 UFRGSMUNDI discutida no âmbito do direito internacional. Essa discussão tem relação com a intervenção norte-ame- ricana no Iraque, que não foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, mas foi levada a cabo de qualquer maneira. A ação dos EUA no país foi considerada preventiva, pois ação preventiva - ou seja, rea- lizou um ataque ao Iraque por acreditar que estava ameaçado por ele, ainda que esse não tivesse de fato realizado algum ataque contra os EUA. Além disso, o governo estadunidense utiliza a Guerra ao Terror para promover os valores dispersados por ele nesses países, como a democracia e a liberdade, afirmando que a estabilidade só viria com a presença deles no país (PEREIRA et al, 2012). 2.4.2. USO DE VEÍCULOS AÉREOS NÃO TRIPULADOS (VANTS) Dentro dessa visão de contraterrorismo de intervenção estrangeira, em que a eliminação dos prin- cipais líderes é o ponto focal, os Estados Unidos passaram a utilizar veículos aéreos não tripulados para isso. Essa nova face da política norte-americana de combate ao terrorismo é típica do governo de Barack Obama, que pretende utilizar a força, porém de maneira mais precisa e eficaz (ROHDE, 2012). Os VANTs atuam por meio de uma base de controle, constituída por técnicos especializados, que, através de um sis- tema complexo, comunicam as ações para o veículo, que pode também contar com alguma autonomia (AUSTIN, 2010). Esses veículos, também chamados de “drones”, constituem uma maneira de não utilizar as tropas para ações mais perigosas, como era característico da gestão de George W. Bush, e possibilitam a presença em áreas de difícil acesso. No entanto, os ataques de VANTs também ameaçam a população civil, que muitas vezes já foi atingida. Segundo um relatório apresentado pelo Relator Especial da ONU para contraterrorismo e direitos humanos, já foram efetuados 330 ataques de VANTs no território pa- quistanês, e o número de mortes pode ter chegado aos 2200 (CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS, 2014). O uso de VANTs para eliminação dos líderes radicais islâmicos é considerado assassinato extrajudi- cial, ou seja, sem um julgamento do réu antes da execução, e extraterritorial, ou seja, em um território que não é estadunidense e que não é regido pelas leis estadunidenses. Existe muita discussão acerca desse tipo de assassinato e, por isso, essa política de utilização de “drones” do governo norte-americano deve ser muito bem desenvolvida. Por isso, os Estados Unidos vem tentando desenvolver uma política para o uso dos VANTs, considerando que a opinião pública é fortemente contrária a essa utilização (BYMAN, 2013). É importante o fato de que o assassinato de Bin Laden, principal vitória estadunidense nessa guerra ao terrorismo, não foi realizada com “drones”, mas com tropas regulares. Além disso, alguns autores acre- ditam que a utilização de VANTs pode estar gerando novos inimigos, já que muitos inocentes são alvos desses veículos, o que está causando novos problemas aos Estados Unidos. Fica claro que, para combater um grupo que não tem uma sede específica, como a Al Qaeda, os drones são uma ferramenta eficiente, mas, se estiverem contribuindo para o surgimento de novos grupos radicais, podem comprometer toda a estratégia norte-americana (CRONIN, 2013). O uso de VANTs, no entanto, não se dá somente pelos Estados Unidos. Diversos países vêm desen- volvendo suas próprias tecnologias em busca de uma maior autonomia da resolução de seus problemas. China, Rússia e Brasil são países que já produzem “drones” e que pretendem utilizá-los na defesa de suas fronteiras e de seu território. O que gera a discussão no âmbito internacional acerca da utilização por parte dos Estados Unidos é o fato de que esses veículos são usados indiscriminadamente, atingindo inocentes e gerando terror nas regiões mais instáveis, onde eles são mais utilizados, como o Paquistão (ROHDE, 2012). 3. AÇÕES INTERNACIONAIS PRÉVIAS Tendo conhecido tanto o histórico da situação do Paquistão quanto às complexidades que envol- vem o país atualmente, ainda é muito importante saber o que já foi realizado a respeito do tema por orga- nizações internacionais e pelos países envolvidos. Apesar de não constarem aqui resoluções, acordos ou outros tipos de ações prévias que tratem exclusivamente do Paquistão, foram descritos alguns fatos que parecem relevantes para o entender a questão, situando-a dentro do contexto da Guerra ao Terror em- pregada pelos estadunidenses e do surgimento do terrorismo como ameaça internacional. Além disso, há uma retrospectiva do envolvimento da ONU na relação indo-paquistanesa, bem como dos acordos feitos entre esses dois rivais históricos, a fim de tirar conclusões sobre como é a melhor maneira de encará-lo e de tentar solucioná-lo. 19 CSNU 3.1. TERRORISMO E CONTRATERRORISMO Para se discutir a situação nos países que passaram por intervenções estrangeiras e de resolver conflitos na região, diversos encontros e acordos foram promovidos, com o objetivo de se chegar a um consenso, minimizar ações consideradas terroristas, além de lidar com outros problemas, como o uso de armas químicas, por exemplo. Uma ação relevante do Conselho de Segurança da ONU para resolver o impasse entre Paquistão e Afeganistão foi a resolução 622 que, aprovada por unanimidade em 1988, pos- sibilitou ao Conselho tomar medidas para uma regularização da situação no Afeganistão (DEPARTAMEN- TO DE ASSUNTOS POLÍTICOS, 2007). A resolução levou à criação da “Missão dos Bons Escritórios das Nações Unidas no Afeganistão e Paquistão”, que tinha a finalidade de acompanhar e auxiliar a confecção de acordos durante a guerra contra os soviéticos e de investigar as violações desses acordos (ORGANI- ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2014a). A fim de construir um panorama sobre as ações prévias sobre o terrorismo e o contraterrorismo, vale lembrar algumas resoluções do Conselho de Segurança da ONU que trataram da intervenção estran- geira, questão chave para entender as medidas de contraterrorismo atualmente. Em 1990, após a invasão iraquiana no Kuwait, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 678, na qual reconheceu que o Ira- que desafiava o Conselho e se opunha às medidas de retirada das suas tropas do Kuwait. A resolução per- mitia que os países-membros do Conselho utilizassem de todos os meios para que o país implementasse a resolução, permitindo, assim, o uso da força (MURPHY, 1996). Assim, nota-se que o Conselho, quando percebe que há alguma ameaça à estabilidade de uma região ou aos interesses de países como os EUA – afinal, não se pode ignorar sua influência sobre que temas serão discutidos no Conselho –, considera o uso da força como alternativa. Considerando a situação do Afeganistão, em 1996 o Conselho de Segurança aprovou a resolução 1076, que previa que os conflitos entre as partes internas da região fossem resolvidos de maneira pacífica visando, principalmente, às questões humanitárias de refugiados, discriminação de mulheres e violações dos direitos humanos. Além disso, a resolução salientava a não interferência de estrangeiros no país de forma que as Nações Unidas pudessem controlar a situação respeitando a integridade, a soberania e a independência do território afegão (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1996). A resolução ainda rei- terava que o conflito no Afeganistão era um terreno ideal para o terrorismo e o tráfico de drogas, o que poderia desestabilizar a região (ONU, 1996). É relevante salientar, aqui, o princípio da Carta da ONU de defesa da soberania sendo respeitado pelo Conselho de Segurança. Após inúmeras resoluções visando ao desmantelamento dos grupos como Al Qaeda e Talibã atra- vés de sanções, em 2001, os Estados Unidos sofrem o ataque às torres do World Trade Center que, mais tarde, teria a autoria assumida por Osama Bin Laden e pelo grupo Al Qaeda. Os Estados Unidos rapida- mente anunciaram e concretizaram uma invasão ao Afeganistão, contando com amplo apoio internacio- nal. Mais tarde, em dezembro do mesmo ano, o Conselho aprovaria a resolução 1386, na qual autoriza a formação da Força Internacional de Assistência para Segurança (ISAF, na sigla em inglês): uma missão liderada pela OTAN que teria como objetivos ajudar no crescimento da capacidade das Forças de Segu- rança Nacional Afegã. Declaravam, ainda, que o emprego da ISAF no Afeganistão facilitaria melhorias do governo e ajudaria a promover o desenvolvimento socioeconômico do país, de forma a fornecer um ambiente seguro e estável (INTERNATIONAL SECURITY ASSISTANCE FORCE, 2001). Na prática, o objetivo de empregar a ISAF era o de controlar a transição de governo do Afeganistão, que passou do regime dos Talibãs para um governo aliado ao Ocidente, o do presidente Hamid Karzai (VISENTINI, 2012, p. 97-98). Dois anos mais tarde, uma intervenção externa sem consentimento do Conselho de Segurança ocorre em outro país do Oriente Médio: em 2003 os Estados Unidos invadem o Iraque. O país ocidental afirmava que o Iraque ainda possuía grandes quantidades de armas de destruição em massa, desrespei- tando, assim, a resolução 687 de 1991 após o fim da Guerra do Golfo (BUSH’S “16 WORDS” ON IRAQ..., 2004), na qual o Iraque saíra derrotado. Várias resoluções da ONU deram oportunidades ao país para se desfazer do programa nuclear, porém houve pouca cooperação com a comissão responsável pelo moni- toramento das armas. Dessa forma, não atendendo à resolução 1441, a última delas, os Estados Unidos, apoiados pelo Reino Unido, interviram sem o consentimento do Conselho de Segurança e com forte condenação internacional, mesmo de países como França e Alemanha (BBC, 2003). Os EUA utilizaram a justificativa de que o país do oriente seria uma ameaça terrorista para a segurança mundial (CENTER FOR AMERICAN PROGRESS, 2004). Com as ameaças e ações militares cada vez mais frequentes e ganhando a denominação de “Guer- ra ao Terror”, que se configurou como eixo central para a política externa estadunidense a partir de 2001, os movimentos contra o terrorismo ficaram cada vez mais conhecidos. Em 2011 surgiu o “Centro das Na- ções Unidas Contra o Terrorismo” a partir de uma força tarefa já existente na ONU, a Força Tarefa de Im- plementação das Nações Unidas contra o Terrorismo (CTITF), com a finalidade de reforçar a especializa- 20 UFRGSMUNDI ção das Nações Unidas contra os atos terroristas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2014b). O novo órgão depende da experiência da CTITF e conta com sua ajuda para reforçar as iniciativas e promover novas ideias contra o terrorismo. O novo centro contra o terrorismo busca a cooperação a nível mundial, visa à implementação e ao desenvolvimento de estratégias antiterroristas e busca colaboração através dos grupos de trabalho para reforçar a capacidade dos Estados-membros no combate (ONU, 2014b). Outra agência especializa em contraterrorismo é o Instituto Internacional de Combate ao Ter- rorismo, um dos principais institutos acadêmicos para o combate ao terrorismo no mundo, facilitando a cooperação internacional na luta global contra o terrorismo. O instituto fornece conhecimentos em terrorismo, contraterrorismo e segurança interna, além realizar avaliações de riscos e análises de inte- ligência, de segurança nacional e de defesa (INTERNATIONAL INSTITUTE FOR COUNTER-TORRORISM, 2014). A conferência anual que a ICT promove é um dos eventos mais influentes do mundo no combate ao terrorismo atualmente, servindo de oportunidade para a cooperação internacional e para ampliar a compreensão acerca da questão do terrorismo e dos seus desafios (ICT, 2014). 3.2. A RELAÇÃO INDO-PAQUISTANESA No âmbito das relações indo-paquistanesas, já em atrito a partir de 1947 devido à questão da Ca- xemira, a primeira ação prévia que pode ser citada é a resolução 39 do Conselho de Segurança, adotada em janeiro de 1948, um ano depois da independência dos dois países. Essa resolução estabeleceu a Co- missão das Nações Unidas para a Índia e o Paquistão (UNCIP, na sigla em inglês), para mediar a disputa. Em fevereiro deste mesmo ano, em outra resolução – a resolução 47 -, o Conselho aumentou o número de membros da comissão e recomendou novas medidas para solucionar a disputa (DEPARTAMENTO DE INFORMAÇÕES PÚBLICAS, 2003). Essa resolução também é muito importante por ter em seu texto que: “tanto a Índia quanto o Paquistão desejam que a questão da adesão de Jammu e Caxemira à Índia ou ao Paquistão deve ser decidida através do método democrático de um plebiscito livre e imparcial” (MISSÃO PAQUISTANESA PARA AS NAÇÕES UNIDAS, 2014). Essa afirmação passou a ser muito importante para o debate sobre a posse da região. Em 1949, depois da primeira guerra indo-paquistanesa (1947-1949), os dois países firmaram o Acordo Karachi, mediado pela UNCIP, através do qual estabeleceram uma linha de cessar-fogo que dividia a Caxemira. Em 1951, com a extinção da UNCIP, o Conselho resolveu dar ao Gru- po de Observadores Militares da Índia e do Paquistão (UNMOGIP) a tarefa de supervisionar o cessar-fogo na Caxemira (DPI, 2003). Em 1965, com o retorno das hostilidades, o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se novamente, passando duas novas resoluções – resoluções 209 e 210 – pedindo, na primeira, um novo cessar-fogo e a pela colaboração com a UNMOGIP e, na segunda, para que o Secretário-Geral da ONU desse especial atenção ao caso e fizesse esforços para que essas resoluções fossem cumpridas. Apesar desses esforços, o conflito se alastrou para além da linha de cessar-fogo, também ocorrendo atritos em outros pontos da fronteira indo-paquistanesa. Assim, o Secretário-Geral da ONU estabeleceu outro órgão, a Missão de Ob- servação da Índia e do Paquistão (UNIPON, na sigla em inglês), com o objetivo também de supervisionar o cessar-fogo na fronteira indo-paquistanesa fora da Caxemira. Tendo em vista que as hostilidades não cessavam, o Conselho passou novas resoluções sobre o assunto, sem, contudo, convencer os dois países a pararem seus esforços militares. Assim, em 1965, foram passadas 5 resoluções a respeito do conflito, até que em janeiro de 1966 chegaram a um acordo, mediado por um representante da ONU, de retomar o cessar-fogo. No mesmo ONU, a UNIPON foi terminada e os observadores da UNMOGIP foram se reti- rando da região (DPI, 2003). Percebe-se, portanto, que, desde a independência, a ONU esteve envolvida no conflito entre os dois países. Além disso, foram feitos alguns acordos entre a Índia e o Paquistão, representando momentos de aproximação e diálogo que se alternavam com momentos de tensão mais acirrada. Entre as tentativas de diálogo entre os países, destaca-se o Acordo de Simla, de 1972, que marcou o fim da guerra indo-pa- quistanesa de 1971, da qual resultou a criação de Bangladesh (antes, o Paquistão Oriental). O acordo foi assinado pela primeira ministra Indira Gandhi, da Índia, e o presidente Zulfiqar Ali Bhutto, do Paquistão, que prometeram, no acordo, trabalhar pela melhora das relações entre os dois países, resolvendo suas controvérsias de maneira bilateral, ou seja, sem intervenção externa. Concordaram também que, para a reconciliação, é essencial que um país não interfira nos assuntos internos do outro. Apesar de estas e al- gumas outras cláusulas não citadas terem sido desobedecidas, esse acordo abriu importantes preceden- tes para essa relação, principalmente por ter estabelecido o bilateralismo como melhor forma de resolver as disputas entre os dois países (GOPALAN, 2012, p. 702-705). Esse precedente de negociação possibilitou diversas iniciativas, dentre as quais talvez a mais importante seja a criação da Associação Sul-Asiática para Cooperação Regional (SAARC, na sigla em inglês) em 1985, organização da qual os dois países fazem parte (BRANDALISE et al., 2012, p. 75). 21 CSNU Em 1988, os dois países fizeram mais um acordo, dessa vez comprometendo-se a não atacar as instalações nucleares um do outro, pois ambos já faziam pesquisas nucleares neste período. Em 1992, acordaram sobre a completa proibição de armas químicas. Em 1998, contudo, os testes de armas nuclea- res aumentaram as tensões entre os países e o temor internacional dos resultados que uma nova guerra poderia trazer. Em 1999, em um novo movimento para melhorar as relações, os dois países publicaram a declaração de Lahore, que reafirmou alguns princípios declarados no Acordo de Simla em 1972, além adicionar a promessa de evitar riscos de uma guerra nuclear, entre outros comprometimentos (GOPA- LAN, 2012, p. 706-708). Em 2008, assumiu a presidência no Paquistão Asif Ali Zardari, um dos presidentes que, segundo Tharoor (2012), buscou o apaziguamento das relações com a Índia. Além de pressionar pela expansão das relações comerciais, também buscava liberalizar o regime de vistos de viagem entre os dois países. Seu ministro de relações exteriores chegou a visitar Nova Déli para dialogar sobre essas questões, mas o ataque terrorista em Mumbai (que, posteriormente, descobriram ter sido manejado pelo grupo LET, o qual teria conexões com a Agência de Inteligência Paquistanesa ISI) ocorreu no mesmo momento (THAROOR, 2012, p. 35-36), complicando novamente as relações entre os dois países. Além disso, recentemente outros avanços têm ocorrido, como a concessão paquistanesa do título de Nação Mais Favorecida 22 para a Índia, em 2011 (HAIDER, 2011) e a permissão indiana ao Investimento Direto Estrangeiro 23 paquistanês em seu território em 2012 (SHETTY, 2012), bem como discussões sobre medidas contra terrorismo (JAUHARI, 2012, p. 49). 4. POSICIONAMENTO DOS PAÍSES Os Estados Unidos da América possuem, historicamente, sérios interesses no Afeganistão, devido à sua posição geográfica, seus recursos naturais e também por motivos políticos. Logo, é interessante para os EUA que haja um governo aliado e estável no país. A fim de contribuir para isso, os EUA buscam eliminar forças que se opõem a sua intervenção e que causam instabilidade, como as redes terroristas, empregando, assim, a “Guerra ao Terror”. Antes do onze de setembro, o Paquistão era tido como Estado patrocinador do terrorismo internacional. Depois do evento, emergiu, para os EUA, a necessidade de aliar-se ao governo paquistanês (NAWAZ, 2008, p. 538), que faz fronteira com o Afeganistão e que hos- peda e tem ligações com diversos grupos terroristas. Essas ligações, contudo, que envolvem, principal- mente, a Agência de Inteligência paquistanesa ISI, são motivo de preocupação para os EUA, que duvidam da capacidade do governo de controlar seu exército e seu serviço de inteligência (MAZZETTI & SCHMITT, 2008). Os EUA também estão envolvidos na região através do uso de Veículos Aéreos não Tripulados (VANTs), os quais objetivam atingir terroristas e suas bases. Esse uso, contudo, é muito condenado por carregar consigo o risco de atingir alvos civis e inocentes. Por fim, cabe salientar que os EUA buscam uma conciliação entre a Índia e o Paquistão, uma vez que é de seu interesse que o Estado Paquistanês possa dirigir todos os seus esforços para combater os terroristas na sua fronteira com o Afeganistão (JAUHARI, 2012, p. 47; THAROOR, 2012, p. 37). A Nigéria enfrenta em seu próprio território um grupo islâmico radical, o Boko Haram, oriundo do norte do país, região mais pobre, com baixos índices de emprego e educação. Seu governo, apesar de já ter tentado dialogar com o grupo, tem uma atuação contraterrorista bastante repressiva (BOAS, 2012). Logo, percebe-se que, em seu próprio território, o país opta pela opção militar de contraterrorismo, em detrimento do investimento e de medidas que buscassem o desenvolvimento socioeconômico da região norte do país. Para a análise da situação Paquistão, contudo, importa lembrar que a Nigéria defende prin- cípios como o de não intervenção (VISENTINI, 2012, p. 110); logo, não se posiciona necessariamente a favor dos EUA no que concerne ao combate ao terrorismo através do uso de VANTs, por exemplo. Apesar disso, cabe lembrar que a Nigéria possui importantes laços comercias com os países ocidentais, como os EUA, cujas empresas de petróleo atuam há bastante tempo na Nigéria (U.S. ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION, 2013). O Chade foi colônia francesa até 1960, quando conquistou sua independência; sua política ex- terna, contudo, segue atrelada à francesa. O governo é extremamente dependente da França, principal- mente em termos militares (JANE’S, 2009). Assim, o Chade deve seguir, no debate, uma posição próxima à francesa, apoiando a Guerra ao Terror estadunidense e defendendo suas medidas de contraterrorismo, 22 Título previsto como cláusula da Organização Mundial do Comércio (OMC) que provê a países em desenvolvimento vantagens comerciais. 23 Investimentos estrangeiros direcionados ao território nacional. 22 UFRGSMUNDI que, além da intervenção, também prezam pela formação de boas instituições no país onde há terroris- mo, para que este se desenvolva (EMBAIXADA DA FRANÇA EM LONDRES, 2010). Neste âmbito, vale res- saltar que suas relações com os EUA também são muito boas, principalmente pela ajuda econômica que recebe (BUREAU OF AFRICAN AFFAIRS, 2013a). Ruanda é reconhecida pelo genocídio, praticado por forças extremistas da etnia hutu, contra a etnia tutsi (além de contra hutus moderados), ocorrido em 1994. O presidente Kagame, que liderou as forças que lutaram contra o genocídio, é bastante nacionalista e tem praticado medidas relevantes para o desenvolvimento nacional. A fim de atrair investimentos para seu país, ele possui boas relações com os EUA e com o Reino Unido, principalmente por receber ajuda financeira e militar (BUREAU OF AFRICAN AFFAIRS, 2013b; THE ECONOMIST, 2011). O governo tem se empenhado para combater o terrorismo na sua região e em suas fronteiras; para isso, já recebeu ajuda estadunidense (TUCKEY & JACQUES, 2008). Assim, como não possui interesses específicos no caso do Paquistão, a Ruanda deve mostrar suporte à Guerra ao Terror estadunidense. A França possui uma visão contrária a todas as maneiras de terrorismo existentes e busca formas de eliminá-lo através da cooperação, do investimento e também, por vezes, da intervenção. O país pro- cura auxiliar em questões jurídicas, defendendo instituições democráticas e o desenvolvimento socioe- conômico dos países afetados pelo terrorismo (EMBAIXADA DA FRANÇA EM LONDRES, 2010). Apesar desse discurso, o governo francês, desde o 11 de setembro, vem tomando uma posição de apoio às po- líticas estadunidenses de contraterrorismo e vem defendendo mais as intervenções, principalmente nos países da África, onde possui grande influência. Sua concordância com a intervenção como medida para o contraterrorismo ficou clara após as intervenções realizadas no Mali, em 2013, onde foram, inclusive, utilizados VANTs (IRISH & PENNETIER, 2013). A Argentina, assim como o Chile, vem desenvolvendo a produção de VANTs para controle de suas fronteiras e para combate ao tráfico de drogas na região, logo, são contrários somente à forma como são utilizados no Paquistão. Ambos os países sofrem com suspeitas de terrorismo em seus territórios (RUSSIA TODAY, 2013). Além disso, o governo argentino defende ações contraterroristas mais voltadas para o de- senvolvimento dos países através de mudanças estruturais, que acabem com a pobreza e marginalização e que sejam feitas através da coordenação da comunidade internacional (BUENOS AIRES HERALD, 2013). A Argentina também já sofreu com ataques terroristas de grupos islâmicos e, por isso, mantém uma pos- tura fortemente antiterrorista (MUNSON, 2011). O novo governo chileno, em fase de transição de política externa, que antes era muito ligada aos Estados Unidos, deve buscar laços mais estreitos com o Brasil e a Argentina. Assim, sua posição quanto ao combate ao terrorismo deve se dar de forma semelhante à deste país: através de medidas de longo prazo e investimento nos países (LULKO, 2013). A Lituânia é signatária de 8 convenções que tratam sobre contraterrorismo e atua em conjunto com o Reino Unido e a União Europeia nessas questões. O país defende uma maior relação comercial com o Paquistão por parte da União Europeia (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO PAQUISTÃO, 2012) e, em relação ao uso de VANTs, apoia uma maior regulamentação (15 MIN, 2013). O governo sul-coreano possui uma forte política contraterrorista e é membro de todas as con- venções existentes sobre o assunto. A Coreia do Sul sofre com ameaças terroristas do vizinho do norte e, por isso, atua em conjunto com os Estados Unidos para treinamento de seu exército e para utilização de VANTs. Além disso, já desenvolveu um VANT capaz de atacar a Coreia do Norte (HAN, 2014). O Reino Unido possui uma posição muito forte em relação ao terrorismo existente no Paquistão. O país defende que o governo paquistanês tome maiores medidas para controle dos setores com ligação com os grupos radicais e incentiva a democracia na região. O Primeiro Ministro, David Cameron, afirmou que condena o apoio a grupos que possam “exportar o terror” para outras regiões do mundo (BBC, 2010). O governo britânico é forte aliado dos Estados Unidos na guerra contra o terror e o apoia nas interven- ções contraterroristas. Além disso, considera a Al Qaeda uma ameaça real a seus interesses no país, já que possui boas relações comerciais com o Paquistão e espera conseguir um ambiente mais estável (REINO UNIDO, 2013). A República Popular da China é aliada de vários anos do Paquistão, principalmente por causa dos seus conflitos com a Índia. Assim como no resto do mundo, a China normalmente não costuma discutir a política interna de seus aliados; no entanto, nos últimos anos, o Paquistão tem sido problemático para China em alguns pontos. O mais importante deles talvez seja as constantes notícias e relatórios de in- teligência mostrando que grupos extremistas-separatistas de Xinjiang (estado situado na fronteira oeste chinesa, o qual clama por autonomia política e possui maioria da população islâmica) são acobertados e possuem centro de treinamentos no Paquistão (BBC, 2012; SUMBAL, 2013). O principal grupo é o ETIM (Movimento Islâmico do Turquestão Oriental), o qual vem sendo responsável por diversos atentados em toda a China. Por tudo isso, a China apoia a ONU e a ISAF nos projetos de reconstrução afegã, pois vê na retomada do desenvolvimento e da infraestrutura do país a melhor forma de estabilização da região e, consequentemente, da resolução de seus próprios problemas com os separatistas internos; ainda, a 23 CSNU melhor plataforma para isso acontecer seria, para os chineses, a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) (ZYCK, 2012; REIS & SIMIONATO, 2013, p. 152). É através da OCX que China e Rússia procuram de- senvolver políticas em conjunto com os países da região, buscando o desenvolvimento pela integração regional, contrapondo-se de certa forma ao intervencionismo de potências estrangeiras na região. Nesse sentido, a Rússia é uma das principais interessadas na estabilização do Afeganistão e do Paquistão, seja para evitar o transbordamento até suas fronteiras (países da Ásia Central), ou até mesmo dentro de suas fronteiras, como no caso dos separatistas chechenos, que, assim como os rebeldes do ETIM, recebem armas e treinamento vindos de instalações ligadas a Al Qaeda no Paquistão. Entretanto, ao mesmo tempo, a Rússia desejava voltar a ter forte influência na região, não vendo com bons olhos o fortalecimento dos Estados Unidos em pontos estratégicos da região (KATZMAN, 2013, p.53). Nesse sentido, o país é um forte incentivador de um maior papel para OCX na região. Essa parceria com a China costuma render bons frutos para a Rússia, visto que ambos convergem em diversos pontos nos projetos de desenvolvimento da região, principalmente no desejo de garantir autonomia para esses países, tiran- do-os da influência direta e desigual dos países ocidentais. A Austrália sempre foi um dos maiores apoiadores dos Estados Unidos e da OTAN na luta contra o terrorismo, sendo o segundo país fora da OTAN com a maior tropa operando no Afeganistão (ORGANI- ZAÇÃO DO TRATADO DO ATLANTICO NORTE, 2013, p. 2). A própria Política Externa e de Segurança do país sobre o terrorismo, em seu Livro Branco, (AUSTRÁLIA, 2013, p. 16-17), é moldada a partir do entendi- mento de que é do interesse nacional australiano o combate direto aos extremismos, visto que a Austrália é um país asiático e sofre de perto com o problema. Compartilhando dessa mesma visão de combate ao terrorismo, o Grão Ducado de Luxemburgo em parceria, principalmente, com a União Europeia, não mede esforços para acabar a ameaça terrorista em seu território (CONTACTO, 2011). Uma vez vítima de atentados na década de 1980, o país se com- promete com a promoção e a proteção dos direitos humanos, principalmente nos locais atingidos pelas ameaças terroristas, bem como na concretização da democracia, do cumprimento das leis e da boa governança nos países que hospedam organizações terroristas em seu território (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2013). A Jordânia segue uma política voltada às visões de países ocidentais, como os EUA e o Reino Unido, em relação às ações terroristas. O país se encontra em uma área de conflito cercado de grupos terroristas dos seus vizinhos islâmicos e, até mesmo, sofre com invasões de algumas organizações (TE- LES, 2005). A postura pró-ocidente do país causa atritos na relação com demais países do Oriente Médio, sendo que sua luta contra o terrorismo pode ser considerada, por esses, uma traição (TELES, 2005). Vale destacar, ainda, que o país encontra-se engajado com a ONU em missões de paz em todo o mundo (JOR- DAN TIMES, 2007). REFERÊNCIAS 15 MIN. Drone regulation becoming increasingly important, Lithuanian ofcial says. 2013. Disponível em: <http://www.15min.lt/en/article/eu-presidency/drone-regulation-becoming-increasingly-important-lithua- nian-ofcial-says-722-351053>. Acesso em: 26 fev. 2014. AFRIDI, Jamal. Kashmir Militant Extremists. Council On Foreign Relations. [s.l.], 9 jul. 2009. Disponível em: <http://www.cfr.org/kashmir/kashmir-militant-extremists/p9135>. Acesso em: 28 fev. 2014. AUSTIN, Reg. Unmanned Aircraft Systems: UAVs Design, Development and Deployment. Chippenham: John Wiley and Sons, 2010. AUSTRÁLIA, Commonwealth of. Defence White Paper 2013. 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O tópico trata das redes existentes de terrorismo na região, tanto as que atuam na fronteira Paquistão-Afeganistão, quanto aquelas que atuam na Caxemira, área disputada entre o Paquistão e a Índia. Para isso, é necessário entender o histórico dos movimentos, que envolve a disputa de diversos interesses, entre eles os dos EUA e da antiga URSS. Até hoje interesses extra-regionais estão vivos na região: os EUA possuem interesses sérios no Afeganistão, a China possui relações de amizade com o Paquistão e os diversos países europeus sempre foram muito atuantes na “cruzada” contra o terrorismo. Além disso, a discussão sobre este tema traz uma controvérsia interessante: devemos combatê-lo diretamente ou via desenvolvimento da região afetada? Assim, o comitê do Conselho de Segurança das Nações Unidas busca um envolvimento dos delegados na análise do terrorismo enquanto nova realidade internacional e da situação complexa que permeia a região Afeganistão – Paquistão – Índia. Dada a alta polemização e importância do tema, o debate pode trazer importantes lições sobre como se dá a polariza- ção internacional, tanto de forma geral quanto especificamente no assunto debatido. 28 UFRGSMUNDI PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços Eduardo Dondonis 1 Michelle Baptista 2 Raíssa Mattana 3 Roberta Preussler 4 INTRODUÇÃO O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) é a principal autoridade das Na- ções Unidas responsável pelas questões ambientais, a nível regional e global. Entre os principais objetivos do PNUMA estão: manter o contínuo monitoramento do meio ambiente global, alertar os povos sobre problemas e ameaças ao meio ambiente e recomendar medidas que melhorem a qualidade de vida das pessoas sem comprometer os recursos naturais das gerações futuras. Com sede em Nairóbi, no Quênia, o PNUMA conta ainda com seis escritórios regionais espalhados por todos os continentes. Suas reuniões são compostas por 58 membros eleitos pela Assembleia Geral das Nações Unidas, tendo o mandato de cada membro duração de quatro anos. Mesmo que o cumpri- mento de suas recomendações não seja obrigatório, as resoluções do PNUMA são capazes de exercer forte pressão moral frente a todos os países das Nações Unidas. 1. HISTÓRICO Historicamente, a importância das águas remonta à própria origem do homem. Até aproximada- mente 6 mil a.C, os homens se reuniam em grupos nômades, ou seja, não fixavam moradia em nenhum local específico, apenas vagavam caçando e buscando sobreviver (COTRIM, 2005). Posteriormente, os homens começaram a passar mais tempo em um único lugar, para, por fim, se tornarem sedentários 5 e começarem a utilizar a agricultura para sobreviver; foi neste momento que percebeu-se a relevância dos recursos hídricos para a sobrevivência. Os registros informam que a primeira das civilizações foi a criada na região entre o rio Tigre e o rio Eufrates, denominada Mesopotâmia 6 . A necessidade da água fica explícita nesse caso: não haveria forma de construir uma civilização sem que os homens que faziam parte dela tivessem água para sua própria 1 Graduando no curso de Relações Internacionais do quinto semestre na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 2 Graduanda no curso de Relações Internacionais do quinto semestre na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 3 Graduanda no curso de Relações Internacionais do terceiro semestre na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 4 Graduanda no curso de Relações Internacionais do quinto semestre na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 5 Ou seja, os homens passaram a viver em apenas um local, fixando sua residência, ao invés de viverem como viajantes procurando pela sobrevivência em um lugar de cada vez. 6 Uma região do Oriente Médio, parte do atual Iraque. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.28-51 29 PNUMA sobrevivência, assim como terras férteis 7 para praticar a agricultura, além da criação de animais que os ali- mentariam. Outras civilizações antigas seguiam o mesmo padrão, como a antiga civilização dos egípcios, às margens do rio Nilo; a dos hindus, no rio Indo; e a dos chineses, no rio Amarelo. Porém, em nenhuma destas primeiras civilizações a paz prevaleceu por muito tempo. A Mesopotâ- mia, por exemplo, foi habitada por diferentes povos (sumérios, acádios, babilônios, assírios, caldeus, entre outros) em diferentes épocas. Isso porque, apesar de existirem muitas regiões inabitadas no globo, alguns grupos nômades ou seminômades viam, nas terras em volta dos rios, a fertilidade e os recursos necessá- rios para a sobrevivência, percebendo sua importância. Assim, ocorriam ataques e guerras que acabavam por substituir um povo por outro na mesma região, modificando cada uma das antigas civilizações. Mais tarde, por volta do ano 2000 a.C, o povo hebreu, que anteriormente vivia em parte da Me- sopotâmia, migrou para a região da Palestina, ao redor do rio Jordão (COTRIM, 2005). Foi lá que eles viveram por quase três séculos, até que uma forte seca desolou a região e fez com que este povo tivesse que ir para o sul, até a civilização egípcia. Depois disto, os hebreus só conseguiram retornar às suas terras após 500 anos, não sem muitos conflitos com os povos que agora habitavam lá, como os cananeus e os filisteus (COTRIM, 2005). Esta é mais uma prova de que, em tempos antigos, a sobrevivência sedentária se tornava completamente inviabilizada pela existência de alguma seca ou algum outro fator que afetasse as águas dos rios; ainda, de que as civilizações invariavelmente buscavam estabelecer-se ao lado de grandes rios. Já no século VII a.C., estruturou-se o povo Fenício, que vivia em uma região entre o Mar Medi- terrâneo e o rio Jordão, assim como na ilha onde atualmente se encontra o Chipre (COTRIM, 2005). Os Fenícios fizeram diversas descobertas e invenções importantes, mas o interessante é ressaltar que eles foram os primeiros povos mercantes que utilizavam as águas para o comércio. Sua proximidade com o Mar Mediterrâneo fazia com que eles conseguissem mais facilmente chegar a outras civilizações, revelan- do, assim, mais uma utilidade em viver perto de recursos hídricos abundantes. Como já dito, contudo, as regiões de prosperidade sempre tenderam ao conflito, e não tardou muito para que isto acontecesse nessas áreas citadas. No século V a.C., a civilização persa começou a expandir seu território e, após derrotar vários povos em várias guerras, acabou por criar um império que ia desde o rio Indo até o Egito, incluindo a região da Mesopotâmia, da Palestina e do antigo povo Fenício (COTRIM, 2005). Figura 1: O Crescente Fértil Fonte: CLIO FRANCE 7 As recorrentes inundações dos rios no mundo antigo faziam com que suas margens fossem extremamente irrigadas e férteis (COTRIM, 2005). 30 UFRGSMUNDI Os conflitos pelo controle das águas e sua consequente importância não se restringiram apenas aos tempos antigos. Muito embora o progresso das sociedades e da tecnologia tenha permitido-as se desenvolver longe das margens dos rios, a água ainda continuou a ser fator crucial de sobrevivência, visto a facilidade que trazia ao transporte. As grandes navegações dos séculos XV e XVI mostraram que os rios e mares eram aliados importantes no transporte de cargas e no descobrimento de novas áreas, visto que os espaços em terra eram mais facilmente bloqueados por outros países, enquanto os obstáculos em água eram menores. Além disso, no final do século XVIII, a primeira Revolução Industrial 8 reforçou a importância da água em todo o mundo. Não apenas era necessária água para que funcionassem as recém inventadas máquinas a vapor, como também a população urbana passou a crescer cada vez mais, juntamente com a agricultura nas regiões rurais 9 , tornando-se necessário transportar água rapidamente e em grandes quantidades. Era neste cenário que a Inglaterra se tornava a hegemonia mundial 10 , não apenas pela sua grande produção, mas também por ter poder sobre o rio Tâmisa, que faz parte inclusive de sua capital, e por ser uma ilha, tendo largo acesso aos mares. O domínio dos mares, assim como dos rios, é de suma importância para a sua navegação (ou seja, o transporte), e também para a própria segurança do país, que não possui vizinhos que possam atacá-lo diretamente por terra. Da mesma forma, a água passaria, pouco a pouco, a se tornar uma fonte importante de energia, o que viria a causar ainda mais conflitos. A importância do pleno acesso à água nos séculos XVIII, XIX e XX se mostrou tão crucial que, inclusive, os países começaram a lutar entre si por novos territórios, que os propiciariam não apenas uma população consumidora maior, mas também recursos hídricos. Um exem- plo disto foram os constantes embates que existiram na região do rio Nilo, no Egito, nos séculos XVIII e XIX, entre potências europeias que desejavam ter o poder sobre o rio para seu próprio uso. Além disso, também deve ser ressaltado o Canal de Suez 11 , construído em 1859 numa parceria entre França e Egito, que por sua importância tão grande aos países da Europa (visto a importância de se acessar o Oceano Índico), teve a sua parcela egípcia comprada posteriormente pela Inglaterra. A Primeira e Segunda Guerras Mundiais 12 não foram exceção à regra. Apesar do motivo principal dos embates não ter sido totalmente relacionado com as fontes de água, elas se mostraram de extrema relevância por sua utilização no transporte e na logística para o abastecimento de soldados. Além disso, os países em guerra buscavam alcançar rios e mares dentro dos territórios inimigos, a fim de possuir uma nova fonte de abastecimento e obter um ponto estratégico em território inimigo. Este domínio também era crucial para que se bloqueassem estes rios e mares, fazendo com que os soldados inimigos não pudessem fazer uso deles. Um exemplo disto foi o fato de que, na Segunda Guerra Mundial, os rios poloneses 13 eram sempre considerados pontos estratégicos, tanto pelo Eixo quanto pelos Aliados, e eram normalmente os alvos a serem atingidos ou dominados para que assim o país pudesse ser completamente invadido e tomado com sucesso (BEST et al, 1997). O mesmo padrão se concretizou também na Guerra Fria 14 . Nas regiões de embates, os rios e mares eram utilizados da mesma forma que foram nas duas grandes guerras passadas. Por exemplo, no início da guerra travada na península coreana, em 1950, o conflito passou a ser mais acirrado no momento em que as tropas americanas tomaram o rio Yalu, que fica na fronteira entre a Coréia do Norte e a China, fazendo com que os chineses adentrassem com grandes números de soldados na guerra para restaurar o poder sobre o rio em questão (COTRIM, 2005). Outro exemplo que também poderia ser citado é o do próprio Rio Reno, que corta boa parte da Europa, fazendo com que fosse um rio estratégico para os conflitos que ocorreram em sua região. 8 A primeira Revolução Industrial se trata, basicamente, da criação da máquina a vapor na Inglaterra. Desta forma, a maioria dos produtos deixou de ser feita a mão (manufatura) para ser feita pelas máquinas a vapor (COTRIM, 2005). 9 Com a maior produção propiciada pelas máquinas nas grandes cidades, a população urbana começou a crescer, ao mesmo tempo em que a agricultura era expandia nas áreas rurais para prover essa produção como um todo. Este fenômeno, a urbanização, não apenas ocorreu durante a Primeira Revolução Industrial, como também foi intensifica- do durante as próximas revoluções e continua sendo uma questão vital até hoje (COTRIM, 2005). 10 Basicamente, um país é uma hegemonia mundial quando este tem um papel de liderança perante os outros Estados soberanos, de forma a gerir o Sistema Internacional corriqueiramente (ARRIGHI, 1996). 11 Canal artificial no Egito, que liga o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho (FREITAS, 2014a). 12 Foram as duas maiores Guerras dos tempos contemporâneos, tendo atingido direta e indiretamente todos os países do mundo. A primeira foi, basicamente, uma guerra entre a Tríplice Entente (Reino Unido, França e Rússia) e a Tríplice Aliança (Alemanha, Itália e Império Austro-Húngaro), sendo a Entente a vencedora. Já a Segunda Guerra Mundial foi principalmente travada entre os Aliados (União Soviética, Estados Unidos, Reino Unido, França e China) e o Eixo (Ale- manha, Japão e Itália), tendo os Aliados como vencedores (COTRIM, 2005). 13 Como os rios Warta, Vistula e Oder. 14 Foi a guerra entre os blocos capitalista (comandado pelos Estados Unidos) e socialista (comandado pela União So- viética), caracterizada por combates em vários países do mundo todo, menos nos territórios das superpotências (os EUA e a URSS) (COTRIM, 2005). 31 PNUMA Há outro fato que também fez com que as águas fossem cruciais durante a Guerra Fria. Como os embates da época ocorriam principalmente em Estados que haviam se tornado independentes há pouco tempo (como o Vietnã), existia uma necessidade maior para que estes países construíssem uma infraes- trutura própria mais rapidamente, para que os primeiros pilares do desenvolvimento do país pudessem ser formados. Desta forma, a proximidade com a água facilitaria tanto a criação de uma infraestrutura completa para a sociedade, como também o transporte de estruturas de outras partes do mundo que pudessem ser utilizadas nas futuras reconstruções necessárias no pós-guerra. Ainda assim, os conflitos e a necessidade de utilização da água não pararam com o fim das grandes guerras, principalmente entre Estados que possuem suas fronteiras delimitadas por rios ou mares. Além disso, algumas regiões do mundo, como o Oriente Médio, têm sofrido constantemente com as secas em seu solo já árido. Sendo assim, no século atual, o problema das águas tem sido tratado com muita cautela. Os países agora se preocupam inclusive com um problema antigo, mas que não era tido como importan- te anteriormente: a poluição. 2. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA 2.1. A UTILIZAÇÃO DA ÁGUA A água é um recurso natural de extrema importância para a sobrevivência de todas as espécies. Necessita-se da água para higiene pessoal, saneamento básico, limpeza de habitações e cidades, cons- trução de obras, irrigação de jardins, além de ser essencial na produção de alimentos. Dentre os diversos consumidores da água, as indústrias são responsáveis por utilizar grandes quantidades desse recurso; é a atividade agrícola, contudo, a maior consumidora, pois utiliza cerca de 70% da água consumida no planeta Terra (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2005). Gráfico 1: Consumo de Água Fonte: Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (2014). A superfície terrestre é composta de aproximadamente 70% de água, sendo 97,5% encontrada na forma salgada. Da parcela restante de água doce, 68,9% se encontram nas geleiras, calotas polares ou em regiões montanhosas; 29% em águas subterrâneas; 0,9% compõem a umidade do solo e somente 0,3% constituem a porção superficial de água doce presente em rios e lagos (MEC, 2005). Essas quantidades se encontram em contínua circulação através do fenômeno conhecido como ciclo hidrológico 15 . Através desse processo, a água dos oceanos, dos rios, dos lagos, da camada superficial dos solos e das plantas evapora por ação dos raios solares, passando a constituir as nuvens que, em condições adequadas, se condensarão e se precipitarão em forma de chuva, neve ou granizo (MEC, 2005). Parte dessa precipita- ção vai penetrar o solo, abastecendo os aquíferos 16 que vão alimentar rios e lagos; enquanto outra parte escorre pela superfície até os cursos de água, ou regressa à atmosfera por evaporação, formando novas nuvens (MEC, 2005). 15 O ciclo hidrológico, também chamado de ciclo da água, é o fenômeno referente à circulação contínua da água no planeta (FREITAS, 2014b). 16 Aquíferos são formações geológicas que podem armazenar águas subterrâneas (MARTINEZ, 2006). 32 UFRGSMUNDI Figura 2: O ciclo da água Fonte: Brasil Escola Conclui-se, então, que o volume total de água disponível no planeta não aumenta nem diminui, sendo sempre o mesmo. Essa quantidade não é distribuída de forma uniforme entre o globo, ou seja, existem regiões com mais abundância de água do que outras. Além da disponibilidade de água do local, o consumo médio de água também varia de país para país, dependendo de seu nível de desenvolvimento. Uma das utilidades mais importantes da água é seu uso para o consumo doméstico, principal- mente na alimentação, na higiene, na limpeza de roupas, entre outros. Assim, uma pessoa necessita em média de 40 litros de água por dia para suprir suas necessidades. Entretanto, não são todas as pessoas que possuem o acesso devido a esse recurso, como apontam dados da ONU; um europeu, por exemplo, con- some em média 150 litros de água por dia, enquanto um indiano consome 25 litros por dia (MEC, 2005). Ou seja, há milhares de pessoas que sobrevivem com uma média menor de água do que a necessária, ou que só possuem acesso à água não tratada adequadamente ou poluída, devido também à má gestão dos recursos hídricos, o que causa inúmeras doenças. Enquanto o uso doméstico representa 8% do consumo de água, as indústrias respondem por apro- ximadamente 22% do consumo total do recurso, que é utilizado para produção de materiais, equipa- mentos, instalações, sistemas de refrigeração e geração, até a lavagem de vapor (MEC, 2013). Também nesse tipo de utilização, nota-se que, dependendo da tecnologia usada, a água resultante dos processos industriais pode carregar resíduos tóxicos, como metais pesados e restos de materiais em decomposição, podendo causar sérios danos à população, principalmente às pessoas que residem próximas aos rios e mares onde a água contaminada é lançada. A utilização responsável pelo maior consumo de água, como já dito anteriormente, é a agricultura. Esse alto consumo é causado pela prática da irrigação 17 , uma vez que, frequentemente, as chuvas não são suficientes para suprir a umidade necessária para a produção, restando a utilização da água como alter- nativa. A irrigação consome mais de dois terços da água doce utilizada no planeta (MEC, 2005). Assim, a agricultura pode desperdiçar muita água, caso a irrigação seja feita de maneira indevida 18 . Além disso, essa prática também afeta a qualidade dos solos e dos recursos hídricos devido aos agrotóxicos e fertili- zantes empregados na produção. Por fim, entre outras diversas utilizações, a água também é importante na navegação das hidrovias interiores 19 . Para permitir a navegação nessas hidrovias, entretanto, é necessário que o curso de água tenha caudal 20 suficiente para garantir a passagem de determinadas embarcações. Em outras palavras, 17 Irrigação é uma técnica usada na agricultura com a finalidade de fornecer água para as plantas em quantidade sufici- ente e no momento adequado, assegurando assim a produtividade e sobrevivência da plantação (REZENDE & JUNIOR, 2005). 18 A irrigação pode causar enormes desperdícios, pois grandes quantidades de água não atingem as plantações, sendo perdida pela infiltração do solo (MEC, 2005). 19 Denominação para rios, lagos ou lagoas navegáveis (MEC, 2005). 20 Também conhecido como fluxo ou vazão, que é o volume de fluido que atravessa uma dada área por unidade de tempo (CASSIOLATO & ALVES, 2008). 33 PNUMA a navegação nas hidrovias interiores depende do regime fluvial 21 que, por sua vez, é definido pelas chu- vas e a capacidade de escoamento do solo da Bacia Hidrográfica 22 onde estão localizados os rios. Esse escoamento se dá pela quantidade de cobertura vegetal presente na Bacia, ou seja, quanto menos co- bertura, maior será o escoamento e maior será a mudança nos níveis dos rios. Dessa forma, uma vez que a as hidrovias requerem a presença da cobertura vegetal para um melhor funcionamento, a preservação ambiental da Bacia Hidrográfica se torna fundamental (MEC, 2005). Percebe-se, então, a extrema importância da água na manutenção da vida. Entretanto, a água, muito embora seja um recurso renovável, é finita. Dados do Programa das Nações Unidas para o Desen- volvimento (PNUD) de 2006 afirmam que, em 2050, mais de 45% da população mundial não terá acesso à quantidade necessária de água potável para suprir necessidades básicas. Assim, frente a uma futura escassez, a água, que já foi motivo de muitas guerras no passado, novamente pode ser a responsável por conflitos futuros causados por disputas pelo controle dos recursos hídricos. 2.2. OS RECURSOS HÍDRICOS TRANSFRONTEIRIÇOS E SUA GESTÃO Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, ou UNDP na sigla em inglês), a segurança humana se baseia no bem-estar de cada indivíduo, assim como no seu acesso aos Di- reitos Humanos Universais 23 . O PNUD salienta que, para se ter acesso à segurança humana, se fazem ne- cessárias atingir sete esferas de segurança, sendo elas: 1ª) segurança econômica; 2ª) segurança alimentar; 3ª) segurança de saúde; 4ª) segurança ambiental; 5ª) segurança pessoal; 6ª) segurança comunitária; e 7ª) segurança política (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2006). Pode-se constatar, portanto, que a segurança não está ligada apenas a ataques militares, guerras, confrontos armados: a segurança de cada pessoa se relaciona com uma série de outros fatores essenciais à vida. Duas dessas esferas de segurança estão diretamente relacionadas aos recursos hídricos: segurança alimentar e segurança ambiental. Dessa forma, o acesso à água, levando-se em consideração seus mais variados usos cotidianos, é fator fundamental para a segurança e bem-estar de cada pessoa. Pela história, os seres humanos têm se assentado no entorno de lagos, rios, mares; e, diferente- mente das pessoas, as águas atravessam fronteiras sem precisar de passaporte, ignorando delimitações políticas. De acordo com a ONU, cerca de 40% da população mundial habita as margens de rios e lagos multinacionais, e 90% vive em países que detêm bacias hidrográficas compartilhadas por dois ou mais países (UN-WATER, 2008). Existem, no mundo, 263 bacias hidrográficas transfronteiriças 24 , o que corres- ponde a mais da metade das terras emersas do planeta e a 60% do fluxo de água doce global (UN-WATER, 2008). Com base nesses dados, é possível compreender que a água é um forte elo entre diferentes Es- tados, em especial aqueles que, por motivos óbvios, se localizam numa mesma região. Dos 196 Estados atualmente reconhecidos no mundo, 145 compartilham bacias hidrográficas, e 30 se encontram total- mente dependentes dessas (UN-WATER, 2008). Podemos afirmar que os países que compartilham um mesmo recurso hídrico tornam-se, em grande medida, interdependentes entre si. A gestão desses recur- sos transfronteiriços se faz, portanto, de grande relevância nas relações internacionais, uma vez que são fatores de íntima relação entre Estados ribeirinhos. Eles são muitas vezes instrumentos de poder regional, podendo ocasionar eventuais tensões entre as partes. Para o melhor entendimento de como se dão as relações internacionais referentes aos recursos hídricos transfronteiriços, é importante compreender a dimensão espacial das partes, ou seja, a posição geográfica dos Estados ribeirinhos. A posição de cada Estado na bacia compartilhada é o que lhe concede possíveis vantagens ou desvantagens em relação aos demais Estados. Observe a figura a seguir: 21 Regime fluvial se refere ao comportamento do rio quanto à variação de seus níveis (FREITAS, 2014b). 22 A bacia hidrográfica é usualmente definida como a área na qual ocorre a captação de água (drenagem) para um rio principal e seus afluentes, devido às suas características geográficas e topográficas (FARIA, 2006) 23 Os Direitos Humanos Universais foram estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela ONU em 1948. É o documento mais aceito internacionalmente sobre o assunto, tendo sido assinado pela quase totalidade dos países do mundo (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). 24 O Brasil, por exemplo, tem cerca de 60% de seu território banhado por bacias hidrográficas transfronteiriças e uma série de países têm a quase totalidade de sua água consumida proveniente de fora de seus territórios, como Turcome- nistão (98%), Egito (97%), Hungria (95%), Mauritânia (95%), Holanda (89%), entre outros (QUEIROZ, 2012; SELBORNE, 2001). 34 UFRGSMUNDI Figura 3: A geopolítica das águas Fonte: QUEIROZ (2012) Dado um determinado ponto de referência (A), tudo o que se encontra acima, em direção à nas- cente (B) do rio, denomina-se montante; da mesma forma, todo e qualquer ponto que estiver abaixo, em direção à foz (C), do ponto de referência (A), denomina-se jusante. A nascente do rio está à montante do ponto de referência, e a foz à jusante. Assim, a lógica nos faz afirmar que qualquer impacto ocasionado na bacia hidrográfica à montante causará necessariamente algum tipo de resultado na região à jusante – o contrário também ocorre, mas é menos comum. Figura 4: Rio Paranhana Elaboração: Eduardo Dondonis Podemos pensar em alguns exemplos hipotéticos: o rio Paranhana é um rio do estado do Rio Grande do Sul, localizado na microrregião do Vale do Paranhana, passando pelos municípios de Igrejinha, Parobé, Rolante, Riozinho, Taquara e Três Coroas. Entre as cidades de Três Coroas e Igrejinha, há uma distância de cerca de 13 quilômetros, estando a primeira à montante e a segunda à jusante. Pois bem, supondo que, por algum motivo, a população de Três Coroas triplique de tamanho, o resultado seria três vezes mais consumo de água em Três Coroas e três vezes maior volume de esgoto despejado no rio Paranhana; consequentemente, poderia haver menor volume de água chegando a Igrejinha, assim como seria três vezes maior a poluição por dejetos domésticos a poluir o leito do rio na cidade. Da mesma forma, caso uma nova indústria instalada na cidade de Três Coroas passasse a despejar metais pesados e altamente tóxicos em forma de lixo industrial no leito do rio, Igrejinha teria sérios problemas quanto à qualidade de sua água. Caso Três Coroas construísse uma barragem para uma nova usina de geração de energia hidrelétrica, o regime de água a chegar a Igrejinha seria seriamente diminuído; por outro lado, se fosse Igrejinha a construir essa barragem, haveria grande possibilidade de inundação em Três Coroas. Tanto efeitos sobre a qualidade, quanto sobre a quantidade da água de recursos hídricos transfronteirços podem ser causados por sua gestão unilateral 25 . Há muitos exemplos de causas e consequências no manejo das bacias hidrográficas que banham diferentes populações. No exemplo acima, estamos fazendo hipóteses em relação a cidades; no entan- to, quando nos referimos a países, os problemas tendem a ser mais complicados. Países têm interesses 25 Referente a somente uma das partes, sem a participação da(s) outra(s). 35 PNUMA distintos, buscam sua própria sobrevivência e segurança, tendo como prioridade seu próprio benefício. Além de não haver uma autoridade supranacional, ou seja, superior aos países, que possa coordenar as relações entre os Estados ribeirinhos, as legislações de cada país também tendem a ser distintas, por di- versas razões históricas e culturais. O fato é que frequentemente pode haver situações de tensão entre diferentes Estados de uma mesma região em função do manejo unilateral de um recurso hídrico com- partilhado. A água é vital para a sobrevivência humana (tanto pelo próprio consumo, quanto para uma infinidade de outras atividades), o que a torna um importante instrumento de poder regional. É corriqueiro que países de uma mesma região tenham realidades políticas, econômicas e sociais distintas. A assimetria entre os Estados não se dá somente entre Estados distantes, mas também em uma mesma região. A posse de recursos naturais – entre eles, os recursos hídricos – é fator de poder. Nor- malmente, os países que se encontram à montante de uma bacia tendem a ter maior poder sobre ela, mesmo que uma bacia hidrográfica seja compartilhada. Além disso, muitas vezes os países que são mais dependentes desses recursos se encontram à jusante, se tornando assim altamente vulneráveis às ações do país à montante. Neste caso, o país à montante tem um grande poder relativo sobre o país à jusante. Entre dois ou mais países que compartilham um mesmo recurso hídrico, há duas possibilidades: tensão ou cooperação. Em geral, os desentendimentos referentes a recursos hídricos transfronteiriços costuma dar-se entre Estados com um passado já de inimizade, de desavença. Atualmente, dificilmente a gestão de uma bacia hidrográfica transfronteiriça é motivo de guerra; no entanto, corriqueiramente é agravante de conflito iniciado por outra razão. Por outro lado, a cooperação 26 tende a demorar a se consolidar, por não haver necessariamente a alocação totalmente satisfatória dos recursos. No entanto, com base nos casos já ocorridos, pode-se afirmar que, quando a cooperação entre Estados ribeirinhos é alcançada, ela tende a durar (QUEIROZ, 2012). Neste contexto, pode surgir a seguinte pergunta: por que um Estado à montante, que teorica- mente detém maior poder sobre determinado recurso hídrico, aceitaria cooperar com outro Estado à jusante, e não somente usar a bacia a seu bel-prazer? Pois bem, os acadêmicos Stephen McCafrey (1993) e Philippe Le Prestre (2000) afirmam que a disposição de um país à montante cooperar é, de fato, menor; contudo, podem-se elencar algumas situações nas quais a cooperação tende a ser escolhida por esses países: 1. Os Estados ribeirinhos têm um histórico de amizade e/ou os benefícios da cooperação são evidentes; 2. O Estado à jusante tem recursos militares superiores aos demais ou um dos Estados é mais poderoso e pretende resolver controvérsias pacificamente; 3. O Estado à montante depende do Estado à jusante para navegação (o Estado à jusante tem posse da foz do recurso hídrico em questão, que liga a bacia ao mar ou a um grande lago 27 ); 4. Os países ribeirinhos se encontram num processo de cooperação e interesse mútuo mui- to superior à manutenção de uma disputa envolvendo bacias hidrográficas transfronteiriças (exemplo: União Europeia). O fracasso de uma tentativa de cooperação pode causar verdadeiras catástrofes sociais e ambien- tais, como ocorrido no Lago Chade e no Mar de Aral. O Lago Chade tem sido historicamente essencial para oito países: Argélia, Camarões, Chade, Líbia, Níger, Nigéria, República Centro-Africana e Sudão; to- davia, devido a secas, escassez de chuva e má gestão dos Estados ribeirinhos, atualmente o lago conta com apenas 10% do volume de água que tinha há 50 anos. Projetos de irrigação mal concebidos, a cons- trução de barragens, a pesca desenfreada e a frágil e insuficiente cooperação entre as partes são alguns dos motivos que contribuíram fortemente para a diminuição e quase extinção do Lago Chade. Um caso ainda pior foi o desastre ambiental ocorrido com o Mar de Aral, compartilhado por Afeganistão, China, Cazaquistão, Paquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão. Tal mar, que outrora já fora o quarto maior lago do planeta, hoje detém menos de 10% de seu volume original e está em avan- çado processo de desertificação. Principal razão para isso foi que, há cerca de 50 anos, a então União Soviética 28 determinou que dois importantes rios (Syr Darya e Amu Darya), que tinham foz no Mar de Aral, 26 A cooperação não necessariamente beneficia as partes em igual medida. Mesmo que cooperar não lhe traga um benefício tão grande, é possível que determinada parte concorde em cooperar apenas em função de que o resultado de não cooperar pode ser muito mais desvantajoso do que cooperar. 27 Neste caso, o país à montante é altamente dependente do comércio, por exemplo. Por ser muito mais barato, a maior parte do transporte de mercadorias no planeta se dá pelos oceanos, sendo os rios importantes rotas de ligação entre o mar e o interior dos continentes (CAUBET, 2006). 28 A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ou simplesmente União Soviética, foi um Estado que existiu entre 1922 e 1991 e que abrangia um imenso território entre a Europa e a Ásia. Foi um país de extrema importância para as relações internacionais do século XX, tanto por seu então inovador regime político-econômico (regime socialista), quanto por ter participado das mais importantes guerras do século: a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais e a Guerra Fria, na qual confrontou os EUA (HOBSBAWM, 1995). 36 UFRGSMUNDI seriam desviados para irrigação de alimentos e algodão, o “ouro branco”. Na década de 1990, o Mar de Aral recebia menos de um décimo de seu caudal anterior e passou a transformar-se em pequenos lagos separados, de alta concentração salina. A morte do Mar de Aral é considerada uma das maiores catástro- fes ambientais de todos os tempos (PNUD, 2006). 2.3. ESTUDOS DE CASO 2.3.1. BACIA DO CONGO Localizada no coração da África Central, a Bacia do Congo é formada por treze países (Angola, Bu- rundi, Camarões, Congo, Gabão, Malawi, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Ruanda, Sudão, Tanzânia, Uganda e Zâmbia) e é um dos ecossistemas mais ricos do mundo em recursos hídricos e biodiversidade (PNUD, 2006). Com uma área de extensão de 3,69 milhões de quilômetros quadrados, é a maior bacia da África e a segunda maior do mundo, atrás somente da Bacia Amazônica (OLIVEIRA, 2010). Nela está presente o segundo maior rio da África e o quinto maior rio do mundo, o Rio Congo, que tem extensão de 4.700 quilômetros e tem o maior poder energético do continente africano (WWF, 2014). Figura 5: A Bacia do Congo Fonte: US Forest Service International Programs (2000). Com a vastidão de recursos naturais presentes na Bacia do Congo, estima-se que 40 milhões de pessoas dependam dela para sobreviver, o que intensifica os conflitos já constantes pelo controle e acesso a essas riquezas (OLIVEIRA, 2010). O interesse na exploração dos recursos hídricos do rio Congo se tornou vital a partir do final do século XIX e início do século XX, acarretando conflitos na bacia que envolvem grupos guerrilheiros. Estes estão em contínuo deslocamento a fim de ganhar controle tem- porário sobre determinados espaços. Tais fatos mostraram a necessidade de cooperação entre os países da bacia, que já vem se materializando em acordos internacionais, como a criação da União Aduaneira e Econômica da África Central (UDEAC) (OLIVEIRA, 2010). A partir disso, então, foram sendo criados novos mecanismos e medidas que preveem as condições de manutenção das hidrovias navegáveis, a coordenação de obras e dos transportes de superfície, a cria- ção do escritório comum aduaneiro e a assistência mútua à navegação no Rio Congo e Oubangui (OLI- 37 PNUMA VEIRA, 2010). Ainda com o intuito de coordenar a utilização da Bacia, foi elaborado um código comum de navegação adotado entre os países em 1999. Para aplicação do código e para o gerenciamento dos recur- sos hídricos, Camarões, a República Centro-Africana, a República do Congo e a República Democrática do Congo assinaram um acordo que criava a Comissão Internacional da Bacia do Congo-Oubangui-Shangha (CICOS) (OLIVEIRA, 2010). Inicialmente, a CICOS coordenava as atividades de instituições nacionais que tratassem da navegação interior de interesse internacional; entretanto, ao longo dos anos, a Comissão se tornou responsável pelo gerenciamento integrado das águas do Congo (OLIVEIRA, 2010). Com inúmeras disputas internas e externas, evidencia-se a necessidade de cooperação entre os países inseridos na bacia, assim como uma coordenação supranacional que irá contribuir para a melhor utilização dos recursos hídricos. Além disso, existem populações carentes que dependem dos recursos presentes no rio Congo para sua sobrevivência, tornando-se ainda mais necessária a redução dos riscos decorrentes das tensões pelo controle da Bacia do Congo (OLIVEIRA, 2010). 2.3.2. A BACIA DO PRATA Localizada na América do Sul, a Bacia do Prata se estende pelo sul do Brasil, sudeste da Bolívia, Uruguai, Paraguai e nordeste da Argentina 29 , totalizando uma área de 3.107.000 km², o que a caracteriza como sendo a segunda maior bacia do continente e a quarta maior do mundo (QUEIROZ, 2012). A Bacia conta com os Rios Bermejo, Iguaçu, Panamá, Pilcomayo, Tietê, Prata, Paraguai e Uruguai, sendo os três últimos seus principais, além de compreender também um dos maiores aquíferos do mundo, o Aquífero Guarani 30 (SELL, 2005). Figura 6: Bacia do Prata A Bacia do Prata possui uma grande importância, que provém da sua posição estratégica e de sua abundância em recursos naturais, o que acarretou em grandes tensões históricas entre os países ribei- rinhos. Inicialmente, a Bacia serve como uma ligação, através do Rio do Prata e seus afluentes, entre o litoral sul do Atlântico e o interior do continente, sendo uma via fundamental de acesso às riquezas mi- nerais e caminho para regiões mais distantes. Dada esta relevância, a Bacia do Prata serviu como palco de disputa no processo de construção dos Estados no século XIX, culminando na Guerra do Paraguai 31 , e hoje caracteriza-se pela seu potencial hidrográfico e hidroelétrico fundamentais para os países presentes na região (QUEIROZ, 2012). Dessa forma, a história desses países foi marcada por períodos de conflitos, desconfiança e cooperação quando se tratava sobre a gestão dos recursos hídricos da Bacia, o que resul- tou em inúmeros tratados. 29 A maior parte da Bacia se localiza no Brasil e na Argentina (MELOS, 2007). 30 Estima-se que as reservas do Aquífero Guarani sejam equivalentes a 40 mil quilômetros de água, cobrindo uma área aproximadamente de 1,2 milhão quilômetros quadrados (SELL, 2005). 31 A Guerra do Paraguai ocorreu entre 1864 e 1870 e é o maior confronto armado já ocorrido nas Américas. A Tríplice Aliança - formada por Brasil, Argentina e Uruguai - derrotou o Paraguai após cinco anos de conflito, tornando-o um dos países mais atrasados da região até hoje (DORATIOTO, 2002). 38 UFRGSMUNDI A regularização da utilização das águas da Bacia do Prata começou na década de 1960, tendo como marco jurídico a criação do Comitê Intergovernamental Coordenador dos Países da Bacia do Prata (CIC), que tem como objetivo realizar estudos sobre navegação, hidroeletricidade, usos doméstico, sa- nitário, irrigação, controle de inundações e erosão, flora e fauna (SELL, 2005). Reconhecido como órgão permanente da Bacia encarregado de promover e coordenar ações multilaterais para o desenvolvimento da região, o CIC elaborou um tratado que estabelecia uma estrutura institucional para o gerenciamento da Bacia, o Tratado da Bacia do Prata. Assinado em 1969 pelos cinco países envolvidos, o Tratado prevê a conjugação de esforços para promover o desenvolvimento harmônico e a integração física da Bacia e de suas áreas de influência (SELL, 2005). Ainda em 1971, os países da Bacia adotaram a Declaração de Assun- ção sobre Utilização de Rios Internacionais, a qual trata sobre o tratamento diferenciado para rios contí- nuos e sucessivos, prevendo direitos e deveres para os países ribeirinhos para cada situação (SELL, 2005). Até a década de 1980, muitos acordos bilaterais e trilaterais foram negociados sobre a utilização da bacia com a finalidade de resolverem disputas e tensões entre os países da região. Em 1973, por exemplo, Brasil e Paraguai assinaram o Tratado de Itaipu, o qual autoriza legalmente o aproveitamento hidrelétrico do Rio Paraná pelo Brasil e Paraguai, através da Itaipu Binacional, empresa responsável por construir uma barragem para a produção de energia (SELL, 2005). Entretanto, no mesmo ano, Argentina e Paraguai as- sinaram o Tratado de Yacyretá, muito semelhante ao Tratado de Itaipu, que previa a construção de uma barragem, chamada Corpus Christi na proximidade do Rio Paraná, o que resultou em tensões entre os três países. Essas hostilidades somente foram solucionadas pelo Acordo Tripartite de Cooperação Técnica e Operacional entre Itaipu e Corpus, assinado por Argentina, Brasil e Paraguai em 1979 (SELL, 2005). A Bacia do Prata, por fim, é considerada uma das maiores bacias hidrográficas transfronteiriças do mundo. Assim, na medida em que as economias dos Estados ribeirinhos se desenvolveram em torno da Bacia, cresceram os conflitos entre os países na região; entretanto, com a cooperação regional entre esses países, se tornou possível normatizar o uso das águas dessa Bacia, diminuindo a tensão entre os cinco países nos últimos anos. 2.3.3. BACIA DO MEKONG Figura 7: Bacia do Mekong Fonte: PNUD 39 PNUMA A Bacia do Mekong se estende sobre Camboja, China, Mianmar, República Democrática Popular do Laos, Tailândia e Vietnã e forma um dos principais sistemas hídricos do mundo (PNUD, 2006). No cen- tro da bacia, está localizado o rio Mekong, o décimo maior rio do mundo em volume e o mais importante do sudeste asiático (TATEMOTO, 2012). A nascente desse rio e quase metade de sua extensão estão loca- lizados na província de Yunnan, na China, passando a fluir no Camboja, formando seu delta 32 no Vietnã (TATEMOTO, 2012). O Mekong possui uma extrema importância social e econômica, uma vez que a maioria da popu- lação, principalmente nas zonas mais pobres, dependem dos recursos oriundos no rio para sobreviver. A maioria da população do Camboja, Laos, Tailândia e Vietnã, que residem na chamada Bacia Inferior de Mekong, dependem do rio como fonte de água potável, alimentação, energia hidroelétrica e comércio. O Lago Tonle Sap, no Camboja, é alimentado pelo Mekong e é um dos maiores bancos de pesca de água doce do mundo, o que faz com que a Bacia ofereça até 80% da proteína animal para as populações do Camboja que vivem ao longo do rio Mekong (TATEMOTO, 2012; PNUD, 2006). Já no Vietnã, o Delta do Mekong possibilita mais da metade da produção de arroz do país e um terço do seu Produto Interno Bruto (PIB) 33 (TATEMOTO, 2012). A grande dependência e consequente vulnerabilidade dos Estados ribeirinhos fez com que nos últimos anos surgissem mecanismos que promovessem o desenvolvimento regional para uma melhor gestão da bacia, como o Comitê de Mekong, em 1957 (TATEMOTO, 2012). No mesmo ano, os países da Bacia Inferior ainda adotaram o Estatuto para o Comitê de Coordenação de Pesquisas do Baixo Rio Me- kong, contando com comitês locais e um corpo burocrático central (TATEMOTO, 2012). A partir disso, foram construídas várias represas, estruturas de irrigação e programas de dados e pesquisas, tudo visando à melhor gestão dos recursos hídricos da bacia. Em 1975, foi ratificado pelo Comitê a Declaração Conjunta de Princípios para Utilização das Águas da Bacia do Baixo Mekong, a qual determinava que qualquer acordo para a construção de grandes pro- jetos deveria contar com o consenso de todos os membros, fortalecendo a cooperação na bacia (TATE- MOTO, 2012). Entretanto, o desenvolvimento da Bacia do Mekong foi desacelerando, o que fez com que o Comitê perdesse sua importância na região frente às hostilidades entre os países inseridos na Bacia e também devido à mudança de política externa de alguns desses 34 . Entretanto, em uma tentativa de constituir um novo patamar de cooperação entre os países, em 1995, Tailândia, Laos, Camboja e Vietnã assinaram o Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia do Rio Mekong, o qual transformou o Comitê de Mekong e, seu sucessor, o Comitê Provisório de Mekong, na Comissão do Rio Mekong (MRA) (PNUD, 2006). A MRA passou a ser a agência intergovernamental para os quatro países da Bacia Inferior. Além desses países, Mianmar foi convidado a participar da Comissão; entretanto, não aceitou o acordo, o que pode ser decorrente da sua pouca pretensão em cooperar, além de o Mekong representar pouca impor- tância para seu país. Enquanto isso, a China, que também não aderiu, tem se mostrado pouco disposta a discutir projetos de uso do rio, principalmente sobre seus projetos de represas, o que prejudica a susten- tabilidade da Comissão, uma vez que a China é um importante ator na região (TATEMOTO, 2012). Já quanto à estrutura da Comissão, foram constituídos três departamentos permanentes: o Se- cretariado, Comitê Técnico Conjunto e o Conselho Ministerial (PNUD, 2006). Foram instituídos ainda comitês nacionais do Mekong em cada Estado membro, que são responsáveis por fazer a conexão entre a Comissão e as políticas nacionais, administrar os projetos de cada país, além de também estabelecer uma ligação desses com o Secretariado (TATEMOTO, 2012). A sociedade civil também é convidada a participar das reuniões dos comitês e dos conselhos. O princípio mais reforçado no Acordo é o do uso equitativo e razoável das águas entre os Estados membros, atingido através de notificações e consultas prévias entre os Estados sobre o uso das águas. Tal princípio garante que todos os países tenham igual direito sobre o uso da água (TATEMOTO, 2012). Além disso, o Acordo também trata da proteção do meio ambiente e do equilibro ecológico; ou seja, ele prevê a utilização e a gestão dos recursos hídricos de maneira sustentável. Com a tamanha importância da Bacia do Mekong para o desenvolvimento dos países ribeirinhos, 32 Um delta é um terreno, mais ou menos triangular, que fica na embocadura de um rio, formando canais até o mar (VOCÁBULARIO DE RIOS, 2001). 33 O Produto Interno Bruto (PIB) representa a soma daquilo que foi produzido em um país durante um determinado período de tempo (MINISTÉRIO DA FAZENDA, 2013). 34 Com a ascensão do regime do Khmer Vermelho no Camboja, o país se retirou do comitê, o que fez com que no período de 1978-1991, durante a ausência do país, funcionasse o Comitê Provisório de Mekong. Após esse período, o Camboja tentou retornar ao comitê; entretanto, a Tailândia mostrou forte oposição à tentativa. A Tailândia condicio- nava o retorno do Camboja à entrada da China e do Mianmar no comitê, países que com suas utilizações da água da Bacia prejudicam diretamente a Tailândia (TATEMOTO, 2012). 40 UFRGSMUNDI como também da sobrevivência de suas populações que dependem principalmente do Rio Mekong para sobreviver, torna-se essencial a coordenação e a normatização do uso dos recursos hídricos na região, com a finalidade de diminuir as tensões. Entretanto, apesar de todas as medidas já tomadas, a indisponibi- lidade da China em negociar representa um grande obstáculo para avançar na cooperação. Uma vez que a nascente do Rio Mekong se encontra em território chinês, o país adquire vantagens quanto ao uso do rio, tornando-se assim um poderoso ator na região. Além disso, a China tem um forte poder de influência sobre os países da região, principalmente Tailândia, Vietnã e Laos, problematizando ainda mais a coope- ração entre os países da região (TATEMOTO, 2012). 3. AÇÕES INTERNACIONAIS PRÉVIAS Existem atualmente três tratados internacionais multilaterais referentes à gestão de águas trans- fronteiriças: a Declaração de Helsinque (1996), a Convenção sobre Cursos de Águas das Nações Unidas (1997) e a Declaração de Berlim (2004). 3.1. DECLARAÇÃO DE HELSINQUE (1966) Durante a Primeira Revolução Industrial 35 , que representou a transição para novos processos de manufatura com a revolução das máquinas, juntamente com o inicio do uso do carvão como combustí- vel, os países europeus fizeram tratados regionais de uso livre das águas para questões de navegação 36 . Entretanto, após a Segunda Guerra Mundial - a qual implicou o uso massivo dos recursos dos países en- volvidos, como o energético e o territorial -, o uso das águas e as normas que o regulam ficaram restritos ao julgamento dos países ribeirinhos, isto é, daqueles que possuem acesso das águas através de suas fronteiras (SALMAN, 2007a). Vemos tal configuração prevalecer até hoje no direito internacional de águas compartilhadas. A Declaração de Helsinque (1996) foi assinada em Helsinque, Finlândia, e aplica suas normas para bacias hidrográficas, como também ao uso de águas subterrâneas, inovando em tais quesitos em relação aos tratados até então vigentes. O documento estabeleceu como princípio básico a utilização “razoável e equitativa” de águas de bacias internacionais entre Estados ribeirinhos. Para tal efeito, as normas espe- cificam uma série de fatores que determinam qual a medida correspondente de uso das águas para cada Estado, fazendo referência ao seu grau de dependência e a sua necessidade vital da bacia, conforme reconhecidos pela Comissão (SALMAN, 2007b). Alguns exemplos são: o clima que afeta a bacia, as ne- cessidades econômicas e sociais de cada Estado ribeirinho da bacia, a disponibilidade de outros recursos, etc. (INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, 1966). A declaração é também considerada o primeiro instrumento jurídico internacional que abordou quesitos de ordem navegacional e não navegacional. Dessa maneira, as regras em sua composição in- cluem procedimentos para prevenção de conflitos, notificação de outros Estados ribeirinhos de constru- ções ou alterações que alterem o regime da bacia, entre outros. Assim, o documento padroniza todos os usos de bacias hidrográficas internacionais, cobrindo uma grande gama de questões referentes ao tema (SALMAN, 2007b). A Declaração de Helsinque não possui observância Pacta Sunt Servanda 37 , não tendo obrigato- riedade para os que o assinaram. Porém, até a adoção da Convenção da ONU para Cursos de Águas, 30 anos depois, suas normas permaneceram o único conjunto de regras que regulam a proteção dos cursos de águas internacionais, sendo invariavelmente adotadas por outros tratados que utilizam o Pacta Sunt Servanda (SALMAN, 2007b). 35 A primeira Revolução Industrial, que data de meados de 1780, significou, em termos gerais, a capacidade do homem de passar a promover uma rápida, constante e ilimitada multiplicação de bens, serviços e população (HOBSBAWN, 1962). 36 Questões navegáveis empreendem o uso hidroviário, ou seja, para transporte de mercadorias ou pessoas. Já as questões não navegáveis se aplicam ao uso das águas para produção agrícola, construção de hidrelétricas, extração mineral, etc. (SALMAN, 2007b). 37 Pacta Sunt Servanda: todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé (MAZZUOLI, 2012). 41 PNUMA 3.2. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DE RIOS IN- TERNACIONAIS PARA FINS DIFERENTES DE NAVEGAÇÃO (1997) Em 1997, mais de cem países se uniram na sede da ONU, em Nova York, para adotar a Convenção das Nações Unidas sobre a Utilização de Rios Internacionais para Fins Diferentes de Navegação (ORGA- NIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1997; WWF, 2009). A convocação dos países da Assembleia Geral das Nações Unidas 38 representou um marco, em relação ao comprometimento das nações, para o arcabouço de tratados sobre o uso das águas internacionais. Teve como premissa a consciência da importância dos cursos de águas internacionais, restringindo-se a abordagem de uso não navegável dos mesmos. Apoia- da no artigo 13 da Carta das Nações Unidas 39 , “a Assembleia possui a liberdade de iniciar estudos e fazer recomendações a fim de encorajar o desenvolvimento progressivo do direito internacional” (ONU, 1997). Seu escopo 40 é feito de medidas para proteção, preservação e gestão relacionadas ao uso das bacias hidrográficas. O uso das águas internacionais para navegação não está presente neste desígnio, somente se as outras utilidades não navegáveis citadas forem afetadas pela navegabilidade (ONU, 1997). Apesar da existência de normas de obrigação geral para cooperação (Art. 8, ONU, 1997), depois de dez anos da adoção da Convenção, somente 15 países ratificaram seu conteúdo. Nenhum país ame- ricano ou asiático está entre eles (SALMAN, 2007a). Os países que assinaram, mas não ratificaram a Con- venção (ou seja, não confirmaram sua obrigação de cumprir com a Convenção), alegam não tê-lo feito devido a clausula que inclui “não causar danos à nenhum curso de águas”. Tal afirmação fica clara quando reconhecemos a China dentre os países não ratificadores. 3.3. DECLARAÇÃO DE BERLIM (2004) Com o passar do tempo, algumas das questões abordadas na Declaração de Helsinque foram sendo especificadas. Desse modo, a ILA (2004) passou a complementar algumas regras que estavam, de certo modo, generalizadas, e que abriam espaço para conflitos (SALMAN, 2007a). A necessidade da complementação baseia-se nas significativas alterações no uso das águas, demonstradas pelo declínio na água disponível per capita em grande parte do mundo, o qual representa por si só um sério desafio ao direito internacional (ILA, 2004). Ao longo dos 30 anos após a Declaração de Helsinque (1966-1996), a formação de regras com- plementares também foi foco do Comitê de Recursos Hídricos, levando em consideração a formação de importantes órgãos internacionais de direito ambiental e a adoção da Assembleia Geral das Nações Unidas da Convenção da ONU para Cursos de Águas (ILA, 2004). Tiveram fim a construção e complementaridade das normas sobre as águas internacionais a tem- po para a conferência bienal a realizar-se em Berlim, na Alemanha, em 2004. A Declaração de Berlim foi fundamentada no conjunto de regras existentes, as quais refletiam o rumo que o direito global sobre a água estava se dirigindo. As águas subterrâneas tinham sido negligenciadas pelas normas nacionais e internacionais até então (DELLAPENA & GUPTA, 2013). Mesmo que muitos países não tenham ratificado a Convenção, ela já demonstrou influência em vários outros acordos feitos (SALMAN, 2007a). Além dos acordos citados, os quais são multilaterais 41 , há os bilaterais e regionais, que podem ser importantes precedentes para acordos de maior escala. A Comissão do Rio Mekong é um exemplo disso. Vale ressaltar ainda que a soberania dos Estados continua sendo fator determinante na governança da água. A fim de se adequar a uma realidade regional, a governança hídrica deverá ter suas regras redefinidas, visto a diversidade dos atores – Estados – participantes (KARKKAINEN, 2005). 3.4. OUTROS TRATADOS A Convenção de Estocolmo 42 (1972), assinada em Estocolmo, Suécia, regularizou no seu sétimo princípio que “Os Estados devem tomar as medidas possíveis para impedir a poluição dos mares (...)” 38 A Assembleia Geral da ONU representa a norma de igualdade entre os Estados soberanos, devido ao princípio de um voto para cada Estado em processos decisórios. A Assembleia também é a grande arena da ONU onde as mais diversas questões são discutidas (HERZ & HOFFMAN, 2004). 39 É a resolução que forma e estabelece a entidade da ONU, construída logo após a Segunda Guerra Mundial, no ano de 1945 (CENTRO DE INFORMAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O BRASIL, 2001). 40 Escopo: alvo; fim; objetivo (LUFT, 2001). 41 Tratado assinado por vários países, diferente do bilateral (por dois países) (AQUINO, 2014). 42 A Convenção de Estocolmo, em 1972, adotou uma declaração que contem uma série de “princípios comuns para inspirar e guiar os povos do mundo na preservação e aprimoramento do ambiente humano” (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE, 1972). 42 UFRGSMUNDI (PNUMA, 1972). Também é dos princípios da Convenção, em conformidade com a Carta das Nações Uni- das e os princípios do Direito Internacional, que (...) os Estados terão direito soberano de explorar os seus próprios recursos de acordo com a política de ambiente, e a responsabilidade de assegurar que as atividades exerci- das nos limites da sua jurisdição ou sob seu controle não prejudiquem o ambiente dos outros Estados ou as regiões situadas fora dos limites de qualquer jurisdição nacional (Princípio 21, Declaração de Estocolmo, PNUMA, 1972). Ou seja, a Convenção estabelecia que os Estados são soberanos, desde que respeitando seus vizi- nhos e, principalmente, os recursos naturais. Outro evento que deve ser levado em conta é a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida também por Eco 92 ou Rio 92, assinada no Rio de Janeiro, Brasil (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE, 1992a). Esta conferên- cia consagrou o conceito de desenvolvimento sustentável, o qual significa o desenvolvimento social e econômico, porém sem que tal desenvolvimento gere prejuízos à conservação e preservação do meio ambiente. O principal documento produzido na conferência foi a Agenda 21 43 , na qual o capítulo 18 re- presentou um avanço nas negociações até então tidas, pelo fato de que colocou em voga que os recursos hídricos transfronteiriços e seu uso são de grande importância para os Es- tados ribeirinhos. Nesse sentido, a cooperação entre esses Estados pode ser desejável em conformidade com acordos existentes e/ou outros arranjos pertinentes, levando em consideração os interesses de todos os Estados ribeirinhos envolvidos (MINISTÉ- RIO DO MEIO AMBIENTE, 2001). Também foi importante a conscientização quanto à responsabilidade dos países mais desenvol- vidos perante a grande poluição por eles gerada (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AM- BIENTE, 1992b). Vale lembrar ainda que neste mesmo ano da Eco 92, a ONU redigiu um documento intitulado Declaração Universal dos Direitos da Água (1992), a qual expõe dez pontos sobre a importância da água e de como ela deve ser altamente preservada. 4. POSICIONAMENTO DOS PAÍSES Angola é um país localizado na costa oeste da África, o qual depende muito da Bacia do Rio Con- go. Atualmente, a drenagem 44 das águas para o país dá-se em direção a áreas secas e costeiras, ao mesmo tempo em que o potencial energético das águas também é aproveitado. Sabe-se que Angola possui mais de 140 bilhões de metros cúbicos disponíveis para irrigação, os quais, entretanto, não são utilizados ple- namente (ANGOLA HAS OVER 70..., 2013). A navegação dos afluentes 45 da bacia é de grande importância para o transporte e comércio internos e externos dos angolanos. Angola é país-membro da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla em inglês) (STRATEGIC FORESIGHT GROUP, 2013). A Argentina está inserida na segunda maior bacia hidrográfica da América do Sul, a Bacia do Prata, na qual está presente o aquífero Guarani. Assim, devido a sua localização relevante, o país esteve envol- vido historicamente em grandes tensões e conflitos, principalmente com o Brasil e o Uruguai. Embora as relações com o Brasil tenham melhorado nos últimos tempos e os dois países hoje cooperarem, as relações entre a Argentina e o Uruguai ainda não são muito amistosas quanto à questão de gestão de re- cursos hídricos. Desde 2003, as relações entre Argentina e Uruguai tem estado sob tensão em função da construção de uma fábrica de papel e celulose em território uruguaio às margens do rio Uruguai, compar- tilhado por ambos os países. A poluição causada prejudica a Argentina, e o Uruguai, em 2013, anunciou que vai expandir a fábrica. Assim, o país busca uma melhor gestão de recursos hídricos com a finalidade de proteger seus recursos naturais e também sua população. País muito pobre da Ásia, Bangladesh é altamente dependente da bacia do Ganges-Brahmaputra- -Meghna – o país tem 91% de toda sua água consumida vinda da Índia, através destes rios (PNUD, 2006). 43 A Agenda 21 foi um plano global adotado para um desenvolvimento sustentável. O plano foi desenvolvido durante a Convenção do Rio, em 1992 (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2002). 44 Drenagem: ato de fazer escoar (água) por meio de canais, vales ou fossos (LUFT, 2001). 45 Afluente: 1. Que aflui; 2. Curso de água que desemboca em outro; tributário (LUFT, 2001). 43 PNUMA Apesar de Bangladesh utilizar somente 6% dos recursos da bacia, ela ocupa aproximadamente ¾ de seu território. Em oposição à Índia, o país reivindica a posse dos rios Brahmaputra e Ganges, alegando que eles são vitais para seu desenvolvimento nacional (PNUD, 2006). Bangladesh tem 73% de sua população vivendo no campo, a qual planta majoritariamente arroz para sua subsistência. Além disso, Bangladesh frequentemente é atingido por inundações e é um dos países do mundo mais vulneráveis a mudanças climáticas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA AGRICULTURA E ALIMENTAÇÃO, 2011). A Bolívia está inserida nas duas maiores bacias da América do Sul, a Bacia do Prata e a Bacia Ama- zônica, sobre as quais existem tratados importantes como o Tratado da Bacia do Prata e o Tratado de Cooperação Amazônica, assinado em 1978, dos quais o país é signatário (ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA, 2013). Apesar dos tratados regionais, o país não possui uma estrutura jurídica interna sólida para a gestão dos recursos hídricos, o que dificulta o aproveitamento das águas na região. A temática transfronteiriça é vital para o Brasil, uma vez que cerca de 60% de seu território está inserido em bacias hidrográficas que se estendem por países vizinhos, reunindo 83 rios fronteiriços ou transfronteiriços (SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2013). Assim, posto que o Brasil possui uma das maiores disponibilidades hídricas do mundo, o país segue ex- plorando esta capacidade 46 . Entretanto, para uma melhor gestão dessa riqueza, o país possui legislação e instituições avançadas, como inúmeros tratados bilaterais e regionais sobre o tema. Um exemplo é o Tratado de Cooperação Amazônica, assinado em 1978, responsável por criar a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, que visa o desenvolvimento sustentável da Amazônia (OTCA, 2013). Esses esfor- ços brasileiros resultaram no Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) de 2006, um dos instrumentos que orienta a gestão das águas no país e que forma um conjunto de diretrizes, metas e programas para tal finalidade (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2010). Burundi compreende duas bacias em seu território: a do Rio Nilo e a do Rio Congo (BURUNDI EMBASSY USA, 2007). O país faz uso das águas da Bacia do Rio Congo para a atividade pesqueira e, tam- bém, especialmente, para irrigação, sendo que 30% do PIB do país é proveniente da agricultura (NATURAL RESOURCES MANAGEMENT AND ENVIRONMENT DEPARTMENT, 1997). São conhecidos vários conflitos com o país em função de águas compartilhadas, como é o caso do Lago Tanganyka, o qual é comparti- lhado por Burundi, Tanzânia, República Democrática do Congo e Zâmbia (SHAH, 2010). Os países menores da bacia do Mekong, como Camboja, são contra a construção de hidrelétricas e barragens pela China, por serem extremamente prejudiciais para o fluxo do rio, o que prejudicaria a utilização de suas águas. O país depende largamente da bacia do Mekong, visto que a utiliza não apenas para consumo doméstico, mas também para a agricultura. O arroz, principal cultivo do país, depende das margens férteis do rio Mekong para ser plantado (JAPAN DEVELOPMENT INSTITUTE, 2014). Ao mesmo tempo, o país ainda tem grandes interesses na produção de energia hidrelétrica. O Cazaquistão se encontra na bacia Amu Dária e possui vastos interesses na manutenção dos rios da bacia e principalmente do Mar de Aral, que tem cerca de metade de sua área dentro do país. Esta preo- cupação se deve principalmente ao fato de que as áreas próximas aos rios da Ásia Central têm começado a sofrer um processo de desertificação (INTERPRESS SERVICE, 2012). Sendo assim, o país acredita que não é apenas necessário discutir a utilização dos rios, mas também sua preservação. A República Popular da China faz parte da bacia do Rio Mekong, onde tem grandes interesses na construção de barragens e hidrelétricas, visto que 15% da energia elétrica do país é produzida por recur- sos hídricos (WORLD NUCLEAR ASSOCIATION, 2014), além de o país possuir uma grande preocupação com a produção de energia verde. Além disso, é na China que se encontra a hidrelétrica de Três Gargan- tas, a maior hidrelétrica do mundo (a segunda maior hidrelétrica em termos de energia gerada, atrás de Itaipu). Sendo assim, o país acredita que é de seu direito utilizar estes rios, visto que os mesmos nascem em seu território, mas não se opõe de forma alguma à utilização das outras partes dos rios pelos demais países ribeirinhos. Além do rio Mekong, a China também possui interesses no rio Bramaputra (INDIA TI- MES, 2013). A Colômbia está inserida na Bacia Amazônica e conta com uma grande rede fluvial que deságua, além dessa bacia, da área hidrográfica do Caribe. Para um manuseio sustentável da primeira, o país as- sinou o Tratado de Cooperação Amazônica em 1978, responsável por criar a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA, 2013). Isso mostra que, apesar de não possuir uma estrutura jurídica sólida para a gestão de recursos hídricos, o país está disposto a cooperar e adotar novas medidas para a preservação ambiental das bacias hidrográficas. Tendo sido umas das primeiras civilizações do planeta, o Egito sempre teve enorme dependência do rio Nilo. Atualmente, 99% da população egípcia se concentram às margens do rio (GUIA DEL MUNDO, 2007). A bacia do Nilo é vital para o Egito, tanto para o consumo e geração de energia elétrica, como para 46 Atualmente, está sendo construída, no Rio Xingu - localizado no estado do Maranhão -, a Hidrelétrica de Belo Monte, que será a terceira maior hidrelétrica do mundo (MINISTÉRIO DE MINAS E ENEGIA, 2011). 44 UFRGSMUNDI a agricultura – principal fonte de renda do país, juntamente com a produção de petróleo e o turismo. 97% de toda a água utilizada pelo Egito chega através do Nilo, vinda de outros países (SELBORNE, 2001). Ainda assim, em virtude de seu maior poder na região, o Egito detém o monopólio da Bacia do Nilo, sendo o país que mais tem influência e poder de decisão sobre a bacia – os demais países que compõem a bacia do Nilo (Burundi, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Ruanda, Sudão, Sudão do Sul, Tanzânia e Uganda, entre outros) precisam pedir a permissão do Egito para fazer uso da bacia, mesmo que estejam à montante (SCHRADER, 2013). Em razão de disputas relacionadas aos rios que compartilham com o México, os Estados Unidos da América adotaram em 1895 a ‘Doutrina Harmon’ (PNUD, 2006). Essa doutrina defendia a soberania absoluta dos Estados, que, na ausência de legislação contrária, poderiam fazer livre desfrute dos recursos hídricos sobre suas jurisdições, não tendo de se preocupar com os efeitos causados para além de suas fronteiras (PNUD, 2006). Ainda hoje, o México sofre por falta d’água em virtude de desvios dos rios Grande e Colorado provocados pelos EUA, destinados à indústria, agricultura e cidades – tal fato tem sido fator de tensão constante nas negociações entre EUA e México (PNUD, 2006). A França está localizada na bacia do Rio Reno, também compartilhada por Alemanha, Áustria, Bélgica, Itália, Listenstaine, Luxemburgo, Países Baixos e Suíça. O Rio Reno é um dos maiores e mais importantes sistemas fluviais de toda a Europa. Em 1987, foi estabelecido o Plano de Ação do Reno, que demarca a última etapa de uma cooperação que visa a melhorar a qualidade da água do rio (PNUD, 2006). Já em 1950, França, Alemanha, Luxemburgo, Países Baixos e Suíça criaram a Comissão Internacional para a Proteção do Reno (CIPR): atualmente, o CIPR é um organismo intergovernamental eficaz, ao qual os Estados membros têm de prestar contas de tudo que fazem em relação ao rio – além disso, há a partici- pação também de ONGs em suas conferências (PNUD, 2006). País mais poderoso e influente do sul da Ásia, a Índia depende de três bacias hidrográficas trans- fronteiriças em seu território: a bacia Ganges-Brahmaputra-Meghna, a bacia do Tarim e a bacia do Indus (PNUD, 2006). A população da Índia (2ª maior do planeta) se concentra nas margens dos rios, tendo eles importância para o consumo, para a irrigação da agricultura e mesmo para a religião (os rios indianos são considerados sagrados pela religião hindu). A Índia vê os caudais dos Rios Brahmaputra e Ganges como seus recursos nacionais, sendo tais essenciais para seu desenvolvimento – tais rios também são reivindicados como propriedade por Bangladesh. Além disso, a Índia tem demonstrado receio quanto à construção de barragens por parte da China à montante do rio Brahmaputra, o que poderia diminuir o fluxo de água a chegar ao seu território por esse rio (INDIA TIMES, 2013). O Laos é um país membro da bacia do Mekong que se encontra em situação de reivindicar seus di- reitos perante países mais influentes dentro da bacia. Isto se deve ao fato de que o país também necessita da utilização da bacia do Mekong para manter suas fronteiras e produzir energia hidrelétrica, sua fonte energética majoritária (ASIAN DEVELOPMENT BANK, 2010). Contendo sete estações hidrelétricas em seu território, Malawi depende essencialmente dessa fonte de energia. O Lago Malawi é causa de conflito com o país vizinho, a Tanzânia. Além disso, no ano de 2010, houve o surgimento de outro conflito, desta vez com Moçambique, pelas águas compartilhadas no Rio Zambeze e pelo uso de uma hidrelétrica que produz energia para ambos (CHIMWALA, 2010). Outro ponto é que Malawi faz parte da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), a qual compromete seus membros a tomarem providências pacíficas quanto à gestão de águas transfronteiriças (STRATEGIC FORESIGHT GROUP, 2013). O problema da opressão sofrida por países menores também segue seu padrão em Mianmar, que não desfruta do rio Mekong em si, mas desfruta de outros rios de sua bacia, como o rio Salween e o rio Irauádi. O país conta com uma necessidade de energia hidrelétrica enorme, visto que não possui outros tipos de recursos energéticos (ASIAN DEVELOPMENT BANK, 2012). Além disso, o país também possui fronteiras delimitadas por estes rios, o que exige ainda mais sua preservação. Já em Moçambique, a preocupação com recursos hídricos transfronteiriços se torna maior, visto que as maiores e mais importantes bacias dentro de seu território são divididas com outros países, como Angola e Zâmbia. Assim, a gestão conjunta destes recursos é o interesse principal deste país, que exige que os direitos de todos os países sejam respeitados (TAUACALE, 2002). Vários rios dividem o Paraguai de outros países da América do Sul, o que faz com que a temática de recursos transfronteiriços seja também muito importante para o país. O Paraguai está inserido na Bacia do Prata, e compartilha também o aquífero Guarani com Uruguai, Brasil e Argentina. Com esses dois últi- mos, o país possui as usinas binacionais de Itaipu, com o Brasil, e de Yacyreta, com a Argentina, ambas no rio Paraná (ULLOA & BELLINI, 2009). Por fim, o país é signatário da Convenção sobre os Cursos da Água das Nações Unidas que estabelece a obrigação de cooperar, além de modos de proteção, preservação e manutenção dos cursos da água (ONU, 1997). O Reino Unido, por meio da União Europeia (da qual é membro), tem algumas das mais avançadas legislações a respeito de recursos hídricos transfronteiriços. Dentre os vários tratados da União Europeia, 45 PNUMA há, por exemplo, um Plano de Assistência destinado à Ásia Central, que considera os recursos hídricos de água doce como sendo diretamente relacionados à segurança internacional e, portanto, fonte potencial de conflito (EUROPEAN COMMUNITY, 2007). Além disso, tanto a União Europeia, quanto o Reino Unido são signatários da Convenção de Helsinque. Partindo do fato de que 65% do território da República Centro-Africana é acessado pela Bacia do Rio Congo, é conhecida a importância do país dentro da gestão das águas. Além disso, a República Centro-Africana é país-membro da Comissão Internacional do Congo-Oubangui-Sangha (CICOS), jun- tamente com Camarões, República do Congo e República Democrática do Congo (CICOS, 1999), a qual promove a integração dos países quanto à gestão das águas transfronteiriças. A capital do país, Bangui, é estritamente movida à energia elétrica proveniente da hidrelétrica instalada no Rio Mbali, parte da Bacia do Rio Congo. Esta hidrelétrica é compartilhada com a República Democrática do Congo. A República do Congo divide uma das seções navegáveis do Rio Congo com a República De- mocrática do Congo, a qual serve para o país de rota de transporte e comércio. A construção de duas hidrelétricas no Vale do Inga, capitaneadas pela República do Congo, serve como fonte de exportação energética a dois países: República Democrática do Congo e República Centro-Africana (INTERNATION- AL RIVERS, 2014). Tal fato, com o passar do tempo, pode trazer desavenças entre as partes por conta de uma futura escassez energética, dadas as eventuais secas da região. Ao mesmo tempo, ambos os países são membros da Comissão Internacional para Congo-Oubangui-Sangha (CICOS), conjuntamente com Camarões e a República Centro-Africana. A instituição é referência para a gestão de águas compartilha- das (CICOS, 1999). A República Democrática do Congo é o país mais beneficiado pela Bacia do Rio Congo, sendo perpassado por 60% das águas da bacia. A sua capital, Kinshasa, tem como rival Brazzaville, capital da vizinha República do Congo. O embate se dá devido às águas compartilhadas do Rio Congo, pois ambas as cidades fazem da atividade pesqueira no rio sua fonte econômica. A RDC é país-membro da Comissão Internacional do Congo-Oubangui-Sangha (CICOS), sendo o país mais influente dentro da gestão das águas da bacia (CICOS, 1999). Ao mesmo tempo, também é membro da Comunidade para Desenvol- vimento da África Austral (SADC), fazendo uso do preceito de que as águas compartilhadas e a paz são termos inseparáveis (COMUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA AUSTRAL, 2012). A exploração de metano 47 no Lago Kivu, na Bacia do Rio Congo, confere a Ruanda grande cota energética e, ao mesmo tempo, lucros pela venda da mesma. Além disso, Ruanda também contém em seu território parte da Bacia do Rio Nilo (NILE INFORMATION SYSTEM, 2014). Suas relações com Burundi não são tão amistosas, devido a conflitos pelos lagos e, também, aos grupos étnicos 48 ali dominantes (Hutus e Tutsis), os quais preservam conflito desde o ano de 1994. Maior país do planeta em extensão territorial, a Rússia é riquíssima em recursos naturais – inclu- sive em água. O Mar Negro é de importância vital para Rússia, tendo em vista que é sua principal saída para o Oceano Atlântico. No que se refere ao Mar Cáspio, a Rússia considera inadmissível a presença de países extrarregionais no local, sendo que apenas devem explorar os recursos naturais do mar o “quinte- to” Rússia, Cazaquistão, Turcomenistão, Azerbaijão e Irã (VOZ DA RÚSSIA, 2013). Além disso, a Rússia tem demonstrado apoio ao Tajiquistão e Quirguistão no que se refere à controvérsia entre estes e o Uzbequis- tão: o Uzbequistão é contra a construção de barragens na bacia do Rio Amu Dária por parte do Tajiquistão e Quirguistão (WATER POLITICS, 2010; 2012). O Sudão tem sua importância dentro da Bacia do Rio Nilo por ser atravessado de norte a sul pelo rio e, principalmente, por ser o rio drenado majoritariamente pela mesma bacia (LIBRARY OF CONGRESS & CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY,1991). Ao mesmo tempo, o Rio Nilo abastece, após atravessar Ruan- da, Burundi e Uganda. Por isso, qualquer atividade exercida por Ruanda poderá acarretar consequências a toda a extensão das águas e, consequentemente, aos países que se servirem dela. Do mesmo modo, é importante a sua saída para o Mar Vermelho 49 , pelo Porto Sudão. O país também faz uso da bacia como fonte energética, tendo uma hidrelétrica situada no Nilo, ao norte do Sudão (DAMS IMPLEMENTATION UNIT, 1995). A Tailândia é um país extremamente dependente do rio Mekong, pelo fato de que este rio é uma fonte importante de energia e água potável, além de ser uma grande via de transporte do país com seus vizinhos (ASIAN DEVELOPMENT BANK, 2008). Da mesma forma, os rios da bacia do Mekong também ser- vem de fronteira para a Tailândia com o Laos e Mianmar, se tornando assim sua preservação uma questão de segurança para o país. 47 Gás metano (CH4): forma-se na decomposição, na ausência de ar, de materiais orgânicos. É encontrado em jazidas de petróleo e bolsões, sendo o principal constituinte do gás natural. É utilizado como combustível. Quando formado nos aterros sanitários é chamado de gasolixo. (USBERCO & SALVADOR, 2003). 48 Grupo étnico: grupo relativo a um povo ou raça; racial (LUFT, 2001). 49 Deve-se ter em conta a grande importância do Mar Vermelho pelo fato de que é passagem do Mar Mediterrâneo ao Oceano Índico e vice-versa, através do Canal de Suez. Desse modo, faz o papel de encurtar a distância entre Europa e Índia, por exemplo. (KAPLAN, 2011). 46 UFRGSMUNDI A Tanzânia adota um posicionamento ameno em relação ao uso das águas da Bacia do Rio Congo para energia hidrelétrica. Tal fato é baseado na sua escassa reserva de águas com potencial hidrelétrico, apesar de haver construído hidrelétricas. Entretanto, a irrigação é estritamente necessária para o desen- volvimento da agricultura no país. É conhecido o conflito existente com Malawi quanto à questão de soberania 50 do Lago Malawi, devido à delimitação de soberania de cada país nas águas compartilhadas, afetando a atividade pesqueira de ambos. A Tanzânia também é país-membro da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), cujo intuito, dentro da questão de águas transfronteiriças, é promover a gestão pacífica de águas compartilhadas (SADC, 2012). O Lago Victoria é compartilhado por Tanzânia, Quênia e Uganda. Já o Lago Tanganyika, é compartilhado por Tanzânia, República Democrática do Congo, Burundi e Zâmbia (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY, 2014). No Tajiquistão, o setor hidrelétrico é de suma importância para sua economia, sendo necessária para isso a construção de barragens nos rios da bacia Amu Dária. Isso faz com que países como o Uzbe- quistão sintam-se ameaçados (JALILOV, 2010). Porém, o país também acredita que a utilização dos rios é um direito de todos e que apenas um tipo de uso – como a construção de barragens – não deve ser refreado. Uganda conserva conflito com o Egito por parte da construção de uma hidrelétrica no Rio Nilo, devido à queda do nível de água da bacia do mesmo rio dentro do território egípcio que esta usina impli- caria. Entretanto, o Nilo abastece energeticamente o Quênia e a Tanzânia, não sendo somente dever de Uganda a consequência da escassez hidrográfica. Além disso, Uganda divide com os dois países citados as águas do Lago Victoria. A irrigação é vital ao desenvolvimento deste país e, consequentemente, à sobre- vivência da população, pelo fato de que o país sofre de secas recorrentes (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA AGRICULTURA E ALIMENTAÇÃO, 2006). O Uruguai está inserido na Bacia do Prata, onde importantes rios colaboram para o crescimento da economia do país. O país compartilha esses rios com importantes parceiros comerciais, como a Ar- gentina, que apesar das tensões dos últimos anos a respeito da construção, funcionamento e expansão de usinas de celulose 51 , continua sendo um dos principais exportadores para o Uruguai, assim como o Brasil. Com a vasta área hídrica no Uruguai, o país tem sido signatário de importantes tratados e colabora- do para a existência de importantes instrumentos que visam à gestão desses recursos, como a Comissão Mista Brasileiro-Uruguaia para o Desenvolvimento do rio Quarai, assinado em 1991 (CONSELHO NACIO- NAL DE RECURSOS HÍDRICOS, 2009). Outra bacia de suma importância é a bacia do rio Amu Dária, que se encontra na Ásia Central. O Uzbequistão, país que faz parte desta bacia, é extremamente dependente dela para sua agricultura. Sem as cheias deste rio, seria impossível que o país conseguisse se sustentar. Sendo assim, as ameaças de construções de barragens por países como o Tajiquistão trazem grande preocupação ao país (JALILOV, 2010). Além disso, este rio também faz parte da fronteira uzbeque com vários outros países da Ásia Cen- tral, como o próprio Tajiquistão e o Cazaquistão, fazendo com que a segurança nos rios seja fundamental, por se tratarem de um limite entre Estados. A Venezuela conta com uma vasta rede fluvial e faz parte também da Bacia Amazônica, sendo mais uma signatária do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA, 2013). O país também é signatário da Con- venção das Nações Unidas sobre a Utilização de Rios Internacionais para Fins Diferentes de Navegação, que trata da obrigação de cooperar, dos modos de proteção e da preservação e manutenção dos cursos da água (ONU, 1997). Assim, o país vem se mostrado disposto a cooperar e comprometido com uma mel- hor gestão dos recursos hídricos. Já o Vietnã possui uma parte importantíssima da bacia do Mekong: o Delta do Rio Mekong. Este delta é extremamente fértil e garante boa parte da economia agrícola do país, porém fica ao final do rio Mekong, fazendo com que seja extremamente vulnerável a qualquer má utilização feita por outros países que se encontram mais próximos da nascente do rio (VAN DAT, 2014). A conscientização quanto à sustentabilidade é defendida pela Zâmbia. Entretanto, a drenagem das águas é vital à agricultura do país e, consequentemente, ao bem estar da população. É essencial- mente a bacia do Rio Zambeze a fonte das águas para irrigação, sendo 135 km² a área irrigada. Zâmbia é país-membro da Comunidade para Desenvolvimento da África Austral (SADC), a qual determina, dentro da questão de águas transfronteiriças, que a pacificação de regiões de águas compartilhadas, como as bacias, é inevitável para a gestão dos recursos hídricos (SADC, 2012). 50 Soberania: é o Estado que têm plenos poderes sobre seu povo e seu território, ao mesmo tempo em que é inde- pendente dos outros Estados. O princípio da igualdade de soberanias é mencionado no Artigo 2 da Carta das Nações Unidas (PECEQUILO, 2010). 51 As tensões entre Argentina e Uruguai quanto às papeleiras ficaram conhecidas como “O Caso das Papeleiras”. É vá- lido ressaltar que, em 2013, o governo uruguaio decidiu em 2013 aumentar a produção da fábrica de celulose UPM, o que reacendeu as tensões entre os governos (ARGENTINA E URUGUAI..., 2014). 47 PNUMA 5. QUESTÕES PARA REFLETIR 1. De que forma a cooperação entre os países de uma mesma bacia hidrográfica transfronteiriça pode melhorar a gestão dos recursos hídricos? 2. Como instrumentos jurídicos internacionais podem equalizar o acesso aos reursos hídricos entre países que compartilham uma mesma bacia hidrográfica? 3. Os países à montante devem ter maior acesso e usufruto dos recursos da bacia hidrográfica compartilhada? Ou os países que são mais dependentes da mesma devem ter prioridade? 4. Uma vez que, frequentemente, há interesses divergentes entre países sobre uma mesma bacia hidrográfica, quais medidas podem ser tomadas a fim de evitar conflitos? 5. Como os mecanismos de gestão coletiva das bacias hidrográficas transfronteiriças podem contribuir para a preservação do meio ambiente? REFERÊNCIAS _____. AQUASAT: Uganda. 2006. Disponível em: <http://www.fao.org/nr/water/aquastat/countries_regions/ uganda/index.stm>. Acesso: 12 abr. 2014. _____. AQUASTAT: Ganges-Brahmaputra-Meghna river basin. 2011. Disponível em: <http://www.fao.org/nr/ water/aquastat/basins/gbm/index.stm>. Acesso em: 23 fev. 2014. _____. Everything you need to know about the UN Watercourses Convention. Suíça: Revive 100, 2009. Di- sponível em: <http://www.unwater.org/downloads/wwf_un_watercourses_brochure_for_web_1.pdf>. Acesso em: 24 jan. 2014. ANGOLA HAS OVER 70 hydrographic basins for irrigation. 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Dito isso, uma vez que a água é um recurso finito, a posse e gestão de recursos hídricos (sejam eles rios, lagos, aquíferos) têm se tornado cada vez mais um objeto de disputa entre países. De acordo com dados da ONU, cerca de 40% da população mundial habita as margens de rios e lagos multinacionais, e 90% vive em países que detêm bacias hidrográficas compartilhadas por dois ou mais países. Uma vez que não haja uma gestão internacional eficiente dessas bacias compartilhadas, os diversos interesses envolvidos, muitas vezes conflitantes, podem resultar em controvérsias e ameaçar a sobrevivência das populações ribeirinhas. 52 UFRGSMUNDI CONFERÊNCIA DE SÃO FRANCISCO (1945) A criação da ONU Giovana Esther Zucatto 1 Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi 2 Henrique Pigozzo 3 Rodrigo Milagre 4 Victor Merola 5 INTRODUÇÃO Este comitê simulará a Conferência de São Francisco de maio de 1945, responsável por assinar a Carta das Nações Unidas, documento responsável pela criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Dessa maneira, é preciso ter em mente todo o panorama histórico que levou os países a fundarem uma organização baseada na manutenção da paz; ela é resultado de um processo histórico que atraves- sou duas grandes Guerras Mundiais e resultou não só na destruição de diversos países como também na morte de milhões de pessoas. Assim, os países vão a São Francisco com as feridas recentes de um mundo em guerra; o que buscam é garantir a segurança de seus cidadãos, de suas riquezas e de seus territórios, outros buscam garantir a independência das nações ainda assoladas pelo colonialismo, e há aqueles que procuram um mundo mais justo, em que os países mais poderosos respondam por seus atos e aqueles menos poderosos tenham alguma voz. São esses múltiplos desejos que convergem na Conferência de São Francisco. Ao se tratar de um comitê histórico, ou seja, que já aconteceu, os delegados devem estar atentos ao fato de que eles estarão imersos na realidade de 1945. Durante os dias da simulação, eles não viverão em 2014, mas em maio de 1945. Os fatos históricos que vieram depois devem ser ignorados e o posicio- namento das nações deve ser condizente com aquele que adotavam no período da Conferência. Será, sem dúvidas, uma experiência muito enriquecedora de imersão histórica em uma realidade passada – mas que de certa maneira, não só influencia nos dias de hoje, mas tem muito a nos ensinar. 1. HISTÓRICO Na aurora do século XX, o otimismo tomava conta dos povos do mundo – especialmente, dos europeus. Os sinais de que nas próximas décadas duas das mais devastadoras guerras da história humana eclodiriam eram abafados pelo progresso científico-tecnológico; teias ferroviárias cobriam os continen- tes, as comunicações eram mais rápidas, os telefones se difundiam e, acima de tudo, a eletricidade revo- lucionava o dia-a-dia das pessoas. No entanto, esse desenvolvimento acelerado não era compartilhado igualmente por todas as partes do mundo. A partir de meados do século XIX, as potências europeias – e depois os Estados Unidos – empreenderam uma onda de dominação política e econômica sobre nações africanas e asiáticas, o neocolonialismo. Das novas colônias, veio o motor da industrialização nesses paí- ses: não só eram fontes de matérias-primas, como também representavam uma parcela importante do 1 Estudante do 7º semestre de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 Estudante do 7º semestre de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Estudante do 3º semestre de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Estudante do 5º semestre de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 5 Estudante do 7º semestre de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.52-67 53 CSF 45 mercado consumidor dos bens produzidos pelas potências. Foi nas zonas periféricas que se concentra- ram, também, muitos dos conflitos diretos e indiretos que originaram as grandes guerras do século XX, conflitos sem precedentes que mataram milhões de pessoas e dizimaram países inteiros. Com a revolução industrial do século XIX, em que os países europeus – e depois os Estados Unidos – começaram a produzir em grande escala, essas potências ocidentais cada vez mais se voltaram para outras regiões do mundo, intensificando as práticas imperialistas. Elas buscavam colônias para instalar parte de seu excedente populacional e encontrar mercados consumidores, fornecedores de matérias- -primas e novas áreas de investimento. O grande diferencial da primeira onda de colonialismo europeu - iniciada no século XV e que se voltou especialmente para as Américas e a África, levado a cabo pelas então potências Portugal e Espanha - é que esse novo movimento era dominado pelas grandes empresas. Não eram os Estados que movimentavam os empreendimentos coloniais – esses serviam agora apenas como o braço armado e político que garantia o acesso das grandes empresas às novas áreas. O modo de dominação se deu através de uma aliança com as elites locais: apesar da falsa sensação de independência política, as estruturas políticas e econômicas das áreas dependentes foram moldadas de acordo com as necessidades externas dos países imperialistas (VICENTINO; DORIGO, 2005). Esse sistema atingiu seu ápice na segunda metade do século XIX, quando os grandes impérios já haviam articulado e estabelecido eficientes sistemas administrativos para suas colônias que cobriam extensas áreas em diversos continentes. Essas áreas coloniais foram palco de intensas disputas entre as potências ocidentais, o que agravou os conflitos fora de seus territórios e estimulou o armamentismo. Exemplo disso foram as Guerras dos Bôeres, na atual África do Sul, onde França e Holanda enfrentaram o Império Britânico pelas reservas de ouro do país. Assim, os países rivais se uniam em blocos e o clima de tensão só aumentava (VICENTINO; DORIGO, 2005). Nas duas grandes guerras que eclodiram, as áreas coloniais tiveram participação essencial. Em alguns casos, foram o palco de conflitos tanto entre potên- cias, quanto de levantes de movimentos locais. Boa parte do contingente de algumas potências, inclusive, era formada por soldados oriundos das colônias. Sobre estas grandes guerras, a Primeira Guerra Mundial é, sem dúvidas, o grande marco do sécu- lo XX. Seus efeitos não se limitaram aos horrores do conflito, mas perduraram direta ou indiretamente por todo o século. O conflito esteve na raiz de movimentos transformadores, como a Revolução Russa de 1917 e a Grande Crise de 1929; impulsionou os sentimentos de revanche e ascensão dos regimes de extrema direita na Europa, como o de Hitler e Mussolini (BLAINEY, 2010). A ordem internacional vigente até então desmoronou. Em primeiro lugar, marcou o declínio da ordem internacional estruturada pelo Concerto Europeu de Viena em 1815 6 ; mais do que isso, despertou a grande procura por uma forma de evitar novos conflitos, dado o horror causado pelas proporções que o conflito tomou. Esse conflito teve início em 28 de julho de 1914, devido a atritos entre sérvios e austríacos. Em pouco mais de sete dias, diversas outras nações entraram em guerra e as grandes potências já se en- frentavam por toda a extensão de seus domínios imperiais. As origens da Primeira Guerra Mundial, dessa maneira, podem ser encontradas na rigidez da política de alianças que se estabeleceu no início do século XX. A divisão básica se deu na oposição entre a Alemanha e a Inglaterra: a primeira encabeçava a Tríplice Aliança, junto ao Império Austro-Húngaro e à Itália – com apoio também do Império Turco-Otomano no Oriente Médio; já a Inglaterra se aproximou em um primeiro momento da França, formando a Entente Cordiale em 1904. Nesse momento, as duas potências uniram-se sob a égide do inimigo comum, que no caso era a expansão imperialista da Alemanha. Esta foi a razão que levou a Rússia a juntar-se a elas e formar a Tríplice Entente (VICENTINO; DORIGO, 2005). São esses dois agrupamentos – Tríplice Aliança e Tríplice Entente – os protagonistas da Primeira Guerra Mundial. Os países, ao entrarem em guerra, acreditavam que o conflito se resolveria de maneira rápida. Os avanços tecnológicos em termos militares e a experiência histórica recente levavam as potências a prever um conflito com grande número de perdas, mas de duração curta. A crença era de que a guerra se encer- raria antes do Natal do mesmo ano, assim, os países estavam preparados para um suporte de curto prazo – previa-se, ainda, que a crescente escassez de comida e material bélico facilitaria o armistício (BLAINEY, 2010). O que se seguiu, no entanto, foi bastante diferente do esperado. O conflito se prolongou, levando os envolvidos ao total desgaste econômico, político e social. Ocorreram milhões de mortes. Na Rússia, desde o início do século, forças internas de influência socialista se agitavam para der- rubar o czar (equivalente russo de imperador). Em 1905, uma tentativa de golpe foi duramente reprimida pelas forças do czar. Entretanto, em 1917, as forças socialistas, agora melhor organizadas e mais podero- sas, empreenderam com sucesso uma Revolução. É preciso entender que essa Revolução se deu em dois momentos: primeiro, em fevereiro, os menchevique (de cunho mais republicano e liberal) derrubaram o 6 O Congresso de Viena de 1815 resultou em um sistema que durou até a 1ª Guerra Mundial. Nesse sistema, a Europa ficava dividia entre cinco grandes nações – Império Austro-Húngaro, Império Russo, Império Britânico, França e a Prússia. 54 UFRGSMUNDI czar; depois, em outubro, os bolcheviques (comunistas marxistas), derrubaram o regime menchevique e instauraram a república socialista na Rússia. A Revolução Russa foi um evento que marcou o século XX, ao instaurar no maior país do mundo um regime que se opunha ao tradicional capitalismo das outras potên- cias, inaugurando um modelo mais voltado para dentro. Ainda, possibilitou que a Rússia se reorganizasse internamente, ascendendo como potência e se reafirmando como um dos países mais poderosos do mundo, ao fundar, em 1922, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), com governo centrali- zado em Moscou. Essas diferenças econômicas políticas e ideológicas com o Ocidente viriam a influir na divisão do mundo no pós-Segunda Guerra Mundial. Na esteira da Revolução, a Rússia retirou-se do conflito. No mesmo ano, os Estados Unidos, gover- nados pelo Presidente Woodrow Wilson, que até então se mantinha neutro, declararam guerra à Alema- nha. A Tríplice Aliança ia, aos poucos, perdendo espaço e poder. A Itália já havia se retirado, a monarquia austro-húngara estava em pedaços, e os iugoslavos, tchecos e húngaros formavam suas próprias nações; no fim de outubro os turcos firmaram uma trégua (BLAINEY, 2010). A Alemanha, lutando sozinha contra as forças da Tríplice Entente, resistiu até novembro de 1918, quando assinou o armistício. O que se seguiu, no entanto, não foi a tão esperada paz no continente europeu e, consequentemente, no mundo, mas sim uma série de tratados que aprofundaram a crise na Europa e fizeram nascer movimentos nacionalistas de forte caráter revanchista. Em janeiro de 1919, as nações vencedoras da Primeira Guerra Mundial reuniram-se em Versalhes, na França, para discutir os rumos do mundo nos próximos anos, bem como as punições a serem impostas às nações derrotadas (especialmente a Alemanha). Dentre as punições estava o retorno da Alsácia-Lorena à França, a perda das colônias ultramarinas, a limitação do Exército Alemão a 100 mil homens e uma inde- nização a ser paga pelos danos da Guerra. Um ano antes, o presidente norte-americano Woodrow Wilson apresentara ao Congresso Norte-Americano seus “14 pontos”, onde, dentre outros aspectos, defendia uma “paz sem vencedores” e a formação de uma associação geral de nações sob aspectos específicos com o pro- pósito de fornecer garantias mútuas de independência política e integridade territo- rial, tanto para os Estados grandes quanto para os pequenos (GRIFFITHS, 2004, p. 53). Nesse sentido, um dos resultados da conferência realizada em 1919 foi a criação da Liga das Na- ções, apoiando-se nos princípios de democracia, segurança coletiva (ou seja, os países uniriam esforços para garantir a paz e evitar novos conflitos) e autodeterminação; funcionaria, assim, como um fórum internacional no interesse da paz mundial. Contudo, a Liga não logrou alcançar seus objetivos. É possível afirmar, até mesmo, que a organização nasceu fadada ao fracasso: por discordar de muitas das decisões de Versalhes, os Estados Unidos, idealizadores da Liga, não integraram o pacto e assinaram um acordo de paz em separado com a Alemanha (VICENTINO; DORIGO, 2005). Inclusive, de início, esta e a Rússia socialista igualmente se recusaram a participar da nascente organização. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos se configuraram como a principal po- tência do planeta: passaram a ser o maior credor mundial e ser responsável por cerca de um terço da produção industrial mundial (VICENTINO; DORIGO, 2005). Ao mesmo tempo, os EUA adotaram uma postura isolacionista, retraindo sua projeção mundial após a Primeira Guerra. As políticas econômicas e financeiras liberais, aliadas a esse fechamento, acabaram culminando em uma crise sem precedentes em 1929, que se estendeu pela década de 1930 e abalou as nações capitalistas. A depressão também causou um protecionismo comercial, através de barreiras para a importação de produtos de outros países que poderiam ser produzidos internamente, como uma tentativa das nações fortalecerem seus mercados. Essa medida, contudo, acabou acentuando as disparidades entre as chamadas “potências ricas” – EUA, Reino Unido e França – e as “potências pobres” – Alemanha, Itália e Japão – que, ao contrário das pri- meiras, não possuíam grandes impérios ultramarinos ou reservas financeiras e materiais. Nesses países, se instaurou um cenário de depressão econômica e agitação social, muito propício à ascensão de regimes autoritários. As falências e demissões em massa geraram fome e revolta, ao passo que milhões de traba- lhadores desempregados alinhavam-se a movimentos de caráter radical, aumentando a força dos parti- dos de esquerda nos países capitalistas. Somando-se a isso, a URSS despontava como potência industrial, alheia à crise devido ao seu sistema socialista, o qual inspirava diversos grupos ao redor do mundo. Os partidos de direita, ou conservadores, preocupados com essa nova tendência socialista, foram cada vez mais se concentrando em formas de combater essa nova onda. É nesse contexto que se dá a ascensão do fascismo, resultando em regimes extremistas, “essencialmente nacionalistas, antidemo- cráticos, antioperários, antiliberais e antissocialistas”, baseados em ideários autoritaristas e militaristas (VICENTINO; DORIGO, 2005). Esses movimentos tiveram como seus principais expoentes Adolf Hitler, na Alemanha, e Benito Mussolini, na Itália. Na Alemanha havia ainda outro fator de bastante peso: o anti-se- mitismo, a perseguição e exterminação dos judeus. No entanto, a característica desses regimes que mais veio a impactar na conflagração da Segunda Guerra Mundial foi seu expansionismo territorial. 55 CSF 45 A Alemanha foi, provavelmente, o país mais abalado pela crise de 1929. Os comunistas estavam enfraquecidos, e o Partido Nazista ascendia rapidamente ao trazer consigo a promessa de transformar a Alemanha novamente em uma potência forte, além de convir aos interesses da burguesia, assustada com a Revolução Russa e uma possível revolta comunista. Assim, em 1933, Hitler foi nomeado chanceler, com ampla maioria nazista no Reichstag (Parlamento Alemão). O contexto interno era favorável ao novo Führer (título designado a Hitler), que com sua oratória impecável e contagiante, reacendia a esperança do povo alemão em ser uma nação grandiosa, “um império que durasse mil anos”. Já na Itália, o governo fascista se instaurou antes da Quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. Sem o apoio inicial popular tão abrangente quanto o dado aos nazistas na Alemanha, igualmente se tratava de um país em caos social, onde, aos poucos, a possibilidade do surgimento de um líder forte e centralizador, que devolvesse a tranquilidade à sociedade, fez com que as massas populares passassem a acreditar na necessidade da figura do “Dulce” (como Mussolini era chamado por seus seguidores). Em ambos os casos, os ditadores foram exitosos não só na tentativa de legitimar seus governos, mas também em reerguer seus países em tempos tão conturbados, apostando fortemente no militarismo. Através do fortalecimento da indústria e dos grandes investimentos militares, esses países recuperaram suas econo- mias (ainda que não totalmente) e se colocaram como potências belicosas. Os regimes fascistas europeus por ver seus interesses como muito próximos, acabam, então, se aliando ao igualmente expansionista Império Japonês. É esse o cenário da Segunda Guerra Mundial. Quando, em 1º de setembro de 1939, a Alemanha invade a Polônia, Inglaterra e França, de acordo com compromissos públicos previamente assumidos em seus tratados de aliança, reagiram dando início ao conflito (VICENTINO e DORIGO, 2005). Contudo, os conflitos em larga escala só iniciaram quando, em abril de 1940, as forças alemãs dão início à Blitzkrieg, uma invasão rápida baseada na velocidade dos tan- ques alemães, estendendo seus domínios rapidamente até a França: Paris foi tomada por Hitler em junho de 1940. Na Inglaterra, Churchill assumira como Primeiro-ministro cerca de um mês antes da conquista de Paris. Enfrentava, agora, maciços ataques aéreos da Luftwafe (Força Aérea Alemã) à ilha inglesa, ao mesmo tempo em que as tropas inglesas combatiam as italianas nas colônias do norte da África. Era bastante claro para os dirigentes alemães que o Reich não dispunha de recursos energéticos e materiais para lutar uma guerra de longa duração – a despeito de possuir grandes reservas de carvão, a Alemanha não era uma potência colonial que pudesse depender de abastecimento externo proveniente de suas colônias. Essa necessidade de matérias-primas, especialmente de petróleo, aguçou ainda mais o expansionismo alemão. Assim, em junho de 1941, Hitler rompeu com o pacto de não agressão que assi- nara com Stálin em 1939 e marchou sobre a União Soviética. Ao mesmo tempo, na Ásia, o Japão buscava expandir seus domínios: estava em guerra com a China desde 1937, e agora chegava até a Indochina. Em dezembro de 1941, o ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor, ao buscar dizimar o poderio norte-americano e garantir seu domínio sobre o Pacífico, acabou trazendo os Estados Unidos de Franklin Delano Roosevelt para a Guerra. “Até o início de 1942, Alemanha, Itália e Japão dominaram a guerra, executando uma contínua expansão e conquistando gigantescas e estratégicas regiões da Europa, África e Ásia. Mas, a partir de então, iniciou-se a derrocada do Eixo” (VICENTINO; DORIGO, 2005, p.450). As forças Aliadas – encabe- çadas pelos Estados Unidos e a URSS – começam a vencer as primeiras importantes batalhas: a vitória soviética sobre os alemães em Stalingrado pode ser considerada um ponto de virada na Segunda Guerra Mundial, estabelecendo a primeira frente aliada que viria a marchar em direção a Berlim. No Pacífico, os Estados Unidos conseguiram uma importante vitória sobre o Japão na batalha de Midway, passando a adotar uma postura ofensiva. A segunda frente aliada, através de forças anglo-americanas, marchou no norte da África em 1943 em direção à Europa; o controle do Mediterrâneo possibilitou o desembarque na Itália. A terceira frente, por fim, foi estabelecida com o desembarque estadunidense na Normandia, norte da França, em 6 de junho de 1944 na operação conhecida como “Dia D” (VICENTINO e DORIGO, 2005). As três frentes rumavam em direção à Alemanha, o centro vital do Eixo. A vitória aliada na Europa já era irreversível. Nos primeiros meses de 1945, pouco antes da rendição, tanto Hitler quanto Mussolini morreram – o primeiro suicidou-se, o segundo, foi preso e fuzilado. O Exército Vermelho da URSS, com- pondo a primeira frente, marchou sobre Berlim e, a 1º de maio de 1945, hasteou a bandeira soviética no Parlamento Alemão. Já no Pacífico, a guerra continuou por mais alguns meses. Ao mesmo tempo em que os Estados Unidos avançavam sobre as ilhas japonesas, os soviéticos marchavam em direção a Manchúria, região no nordeste chinês ocupada pelos japoneses. A rendição japonesa e o fim do maior conflito da his- tória da humanidade veio no dia 19 de agosto de 1945, pouco mais de uma semana depois de os Estados Unidos lançarem as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. O fim da Segunda Guerra Mundial, especialmente, trouxe mudanças significativas para o cená- rio internacional. A ascensão dos Estados Unidos da América e a perda de poder dos antigos impérios europeus – os mais atingidos pelo conflito – foram consequências deste conflito e tiveram um impac- 56 UFRGSMUNDI to direto nesta nova realidade. Nela, um sistema colonial outrora grandioso em meados do século XIX deixaria para trás vastos e populosos territórios, flagelados pela decadência de suas Metrópoles. França, Inglaterra, Holanda e Bélgica já não conseguem manter os custos de gerenciamento de suas colônias quando têm o dever de recuperar-se da devastação que os assolou. Além disso, os países pertencentes ao Eixo – Alemanha, Japão e Itália – tiveram suas colônias ultramarinas confiscadas pelos vitoriosos. Tais territórios coloniais estavam extremamente propensos a conflitos armados, uma vez que o poder central era inexistente ou enfraquecido. Desta maneira, o pós-guerra cria uma vastidão de territórios órfãos, cuja população sofre com a falta de amparo do Estado (GILCHRIST, 1945). Esta veio a ser uma das principais questões a ser abordada pelos grandes líderes mundiais em 1945, ao passo que estes ansiavam pela paz e pela segurança em um novo mundo sob a égide de uma organização internacional eficiente. 2. AÇÕES INTERNACIONAIS PRÉVIAS As decisões que serão tomadas na assinatura da Carta das Nações Unidas não aconteceram da noite para o dia. A Conferência será o resultado de um longo processo político no qual os países pro- curavam obter vantagens e segurança para a sua população. Por isso, devemos nos atentar ao fato de que, para entender a forma de como a Carta das Nações Unidas será aprovada, é necessário analisar os documentos e as declarações feitas antes da possível assinatura da Carta em 1945. Porém, dada a grande quantidade destes, é necessário nos restringirmos apenas aos mais importantes e de maior impacto. A criação da Organização das Nações Unidas tem como precedente uma tentativa de alcançar a paz mundial, a Liga das Nações, instituição criada após a Primeira Guerra Mundial, a partir do Tratado de Versalhes. Com este tratado de paz, terminou oficialmente a Primeira Guerra e a Alemanha sofreu fortes punições por parte dos países vitoriosos, o que acabou por colocá-la em ruína econômica e social nos vinte anos seguintes, abrindo espaço para ascensão de partidos de extrema-direita, liderado por Adolf Hitler (VISENTINI, 1996). Percebe-se assim que o Tratado de Versalhes falhou em seus objetivos de manter uma estabilidade mundial, pois somente favorecia os poucos países vitoriosos, e a Liga das Nações não incluía todos os países existentes naquele período (BERTRAND, 1995). Esse último ponto, o fracasso da Liga das Nações, se deve, entre outros motivos, ao alto grau de divergência que existia durante o Tratado de Versalhes. Todavia, as intenções existentes no Pacto da Liga das Nações referentes à primeira parte do Trata- do de Versalhes merecem nossa atenção, devido à sua grande importância para a criação da Organização das Nações Unidas. Nele havia o compromisso de criar uma Assembleia Geral, representando todos os países, e um Conselho Executivo, cujos membros permanentes seriam somente as grandes potências (HERZ; HOFFMAN, 2004). Deve-se ressaltar a importante atuação dos Estados Unidos nesse processo, principalmente do presidente Woodrow Wilson. A Liga das Nações representa um novo modelo de atua- ção mais intervencionista dos Estados Unidos na política internacional, sendo uma forma de legitimar valores da democracia liberal ao resto do mundo (PECEQUILO, 2005). Todavia, as divergências na política interna estadunidense inviabilizaram a continuidade dessas ideias no período entre as Guerras Mundiais. Junto com o Tratado de Versalhes, foram assinados, nos anos seguintes, vários outros tratados que acabariam por configurar o Sistema de Versalhes (VISENTINI, 1996). Destaca-se dentre estes o Tratado de Washington em 1922, um exemplo de como os países decidiram mensurar força em uma época na qual não existia ainda a bomba atômica. Como neste período o poder naval era, por convenção, o mais signi- ficativo em relação ao poder terrestre e aéreo, este tratado procurou hierarquizar as grandes potências por meio das suas frotas navais, para assim restringir a quantidade de navios militares no mar (MAGNOLI, 2004). Dessa forma, esse tratado ilustra a forma de como os países mensuram o poder dos outros países para assim, no momento da negociação, estipularem acordos que sejam aceitos por eles. Em 1928, foi assinado o Pacto de Kellogg-Briand, proposto pelos Estados Unidos e pela França. Este pacto estipulava a renúncia da guerra como um meio de política internacional, ou seja, os países não deveriam mais utilizar a guerra para resolver conflitos com outros Estados (NYE, 2009). O Pacto foi assinado por todos os mem- bros da Liga das Nações e incorporado nas normas da Liga. O Sistema de Versalhes não garantiu a estabilidade mundial, que, em 1939, foi rompido pela eclo- são da Segunda Guerra Mundial. Neste conflito, houve uma participação direta e indireta de todos os países, afetando toda a população mundial. Isso é importante, pois, já que a guerra é um meio para al- cançar um objetivo político, todos os países tinham em mente um tipo de ideal político para o futuro no pós-guerra. Os estadunidenses e os alemães, por exemplo, divergiam fortemente quanto à sua concep- ção do mundo. A visão de respeito à autodeterminação dos povos e do território nacional, presente no 57 CSF 45 discurso do presidente estadunidense Woodrow Wilson em seus 14 Pontos, será um valor compartilhado pelos Aliados durante a Segunda Guerra (PECEQUILO, 2005). O consenso sobre esses valores evoluirá nas próximas conferências, as quais configurarão o sistema das Nações Unidas, denominação que já vinha sendo usado em documentos oficiais desde 1942. Os interesses dos Estados Unidos e de seus aliados, contudo, já podem ser vistos um pouco antes, a partir do conteúdo da Carta do Atlântico de 1941, assinada entre Estados Unidos e Inglaterra. Este docu- mento já prefigura um mundo após a guerra mundial. Em resumo, os seus oito pontos eram: 1) Nenhum ganho territorial seria buscado pelos Estados Unidos ou pelo Reino Unido; 2) Qualquer ajuste territorial deve estar de acordo com os desejos dos países que o demarcam; 3) Os povos têm direito à autodetermi- nação; 4) Barreiras comerciais devem ser excluídas; 5) Deve haver uma cooperação econômica global e um avanço do bem-estar social; 6) Os países trabalhariam em prol de um mundo livre do medo da guerra; 7) Liberdade dos mares; 8) Desarmamento das nações agressoras (WAACK, 2008). Cabe destacar o ponto três, pois alguns desses países, como a Grã-Bretanha e os Países Baixos, eram ainda impérios, possuidores de colônias. Concordar com esse princípio significava – na teoria – concordar com desejos de indepen- dência de suas colônias. Durante a guerra, um grande grupo de países aderiu aos princípios dessa carta, lançando a Declaração das Nações Unidas contra o nazismo em 1942. A partir de então, os princípios inseridos na Declaração das Nações Unidas serão retomados em todas as subsequentes conferências de guerra. Na terceira Conferência de Moscou, em 1943, onde foi emitida a Declaração de Moscou, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a União Soviética concordaram na ideia de que seria necessário criar uma organização internacional baseada no princípio de igualdade entre as soberanias dos países. Na Conferência de Teerã, em 1943, além de lançarem algumas bases de definições da partilha dos territórios no pós-guerra (a forma de como seria dividida a Alemanha), foi de- cidido que as forças estadunidenses interviriam na França (o conhecido Dia D), completando o cerco de pressão à Alemanha, juntamente com as forças orientais soviéticas. Também nessa conferência destaca- -se a divisão da Alemanha e as fronteiras da Polônia ao terminar a guerra. O líder soviético Stalin queria de alguma forma manter os alemães subjugados por duas décadas ou mais, já que este acreditava que a Alemanha conseguiria se reerguer em menos de trinta anos (OLIVEIRA, 2006). Quanto às fronteiras da Polônia, Stalin concordou com a linha Curzon – uma linha de armistício entre a Polônia e a União Soviética, estabelecida ao final da Primeira Guerra Mundial, e em torno da qual Stalin havia se acertado com Hitler (no acordo Germano-Soviético) –, mas exigiu que a Polônia fosse compensada com parte do território da Alemanha. A Conferência de Dumbarton Oaks, ocorrida entre agosto e outubro de 1944, constituiu o pri- meiro passo importante tomado para executar o estabelecido na Declaração de Moscou de 1943. Os objetivos eram: 1) Tomar medidas coletivas eficazes, como acordos, para prevenir e remover ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz; 2) Desenvolver relações amistosas entre as nações e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3) Desenvolver a cooperação internacional na solução de problemas humanitários econômicos e sociais; 4) Criar um centro institucional destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos co- muns (BERTRAND, 1995). Em outubro de 1944, os delegados concordaram em um conjunto preliminar de propostas (criação de uma Organização Internacional Geral) para atender a esses objetivos. As discussões nesta conferência sobre a construção institucional das Nações Unidas incluíam quais Estados seriam convidados a se tornarem membros, a formação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, para resolver os conflitos globais pendentes, e o direito de veto que seria dado a mem- bros permanentes do Conselho de Segurança. Embora muitos objetivos tenham sido alcançados nesta conferência, duas questões ficaram pendentes: o processo de votação no Conselho de Segurança e a pressão soviética para a admissão de todas as dezesseis das repúblicas soviéticas na Assembleia Geral. Além disso, a delegação soviética argumentou que cada nação deve ter um veto absoluto que poderia bloquear as questões antes mesmo de serem discutidas, enquanto a Grã-Bretanha argumentou que as nações não deveriam ser capazes de vetar resoluções sobre os litígios em que elas estavam relacionadas (OLIVEIRA, 2006). O método da votação no Conselho de Segurança foi deixado aberto em Dumbarton Oaks para discussão futura, ou seja, para a Conferência de São Francisco. Para o Conselho de Segurança, foi decidido que França, República da China, União Soviética, Reino Unido e EUA seriam os membros permanentes do Conselho de Segurança. Os EUA tentaram adicionar o Brasil como um sexto membro, porém essa questão também não foi definida nesta conferência (GARCIA, 2011). Tudo ficou para ser re- solvido somente na Conferência de São Francisco, em 1945. Mas antes desta importante conferência acontecer, no balneário soviético de Yalta, Churchill, Roosevelt e Stalin reuniram-se no início de fevereiro de 1945 e referendaram a fixação da fronteira so- viético-polonesa na Linha Curzon e a entrega dos territórios alemães à Polônia, como indenização pela destruição e pelo genocídio desencadeado pelos nazistas (WAACK, 2008). Os países ocidentais concor- daram em conceder à União Soviética uma parte substancial da Polônia, deixando a fixação dos limites 58 UFRGSMUNDI ocidentais do país (isto é, com a Alemanha) para uma futura conferência de paz. Também permitiram aos soviéticos a anexação dos Estados bálticos Estônia, Letônia e Lituânia, igualando o tamanho do território soviético com o do Império Russo às vésperas da Primeira Guerra. O significado maior, implícito na Conferência, foi a chamada divisão de esferas de influência de acordo com a região das grandes potências. O que houve, concretamente, foi um acordo segundo o qual os países vizinhos com a URSS na Europa não deveriam possuir governos antissoviéticos, como forma de garantir suas fronteiras ocidentais. Quanto à “concessão” do leste europeu aos soviéticos, cabe destacar que nela já se encontrava o Exército Vermelho e que as guerrilhas lideradas pelos comunistas nacionais eram muito fortes na maioria dos países dessa região. Em outras palavras, estes já controlavam de fato a região. Já quanto a posição internacional dos países do hemisfério sul dentro do Sistema de Yalta nos é revelado não apenas um confronto entre os dois blocos antagônicos (Leste x Oeste), mas também uma poderosa estrutura de dominação das potências do Norte sobre os países do Sul (VISENTINI, 1996). A subordinação dos países periféricos em relação à potência dominante de seu próprio bloco (esfera de influência dos EUA ou da URSS) tornou-se um fator importante ao longo da evolução do Sistema criado em Yalta. Neste sentido, a percepção de Yalta pelos países do Terceiro Mundo difere significativamente das interpretações correntes no hemisfério Norte. O Acordo de Yalta originou um Sistema Internacional bipolar protagonizado pelas superpotên- cias estadunidense e soviética. Tratava-se tanto de um confronto entre dois sistemas sociais antagônicos quanto de um conjunto de regras (informais, ou seja, cada país entendia o seu limite de atuação sem criar conflitos) que regulava este antagonismo. Também em Yalta, um regime de tutela foi proposto para tomar o lugar dos sistemas de mandatos da Liga das Nações. Por fim, as delegações estadunidenses, britânicas e russas concordaram que cada um dos “Grandes Cinco” (EUA, Grã-Bretanha, França, URRS e China) po- deriam vetar qualquer ação do conselho, mas não resoluções processuais (os membros permanentes não poderiam impedir o debate sobre uma resolução). 3. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA 3.1. O CONSELHO DE SEGURANÇA A época que imediatamente procedeu a Segunda Guerra Mundial foi consagrada pela criação de fortes consensos entre os Estados do sistema internacional. Talvez o mais importante deles diga respeito ao repúdio ao uso da força. Grandes líderes, assim como a população em geral, percebiam que a livre agressão estatal direcionada a outro território unicamente resultava em saldos negativos em termos de perdas humanas e econômicas, ainda mais com a possibilidade de desencadear conflitos em proporções mundiais, como as duas Grandes Guerras. Há, portanto, a noção geral de que a modernização do con- ceito do Conselho Executivo da Liga das Nações seria desejável. Este seria um importante primeiro passo para o estabelecimento de um órgão internacional responsável pela segurança global. Desta forma, era importante que os erros do Conselho da Liga, que eventualmente levaram ao seu fracasso, servissem de lição para o futuro (HERZ; HOFFMANN, 2004). Primeiramente, o antigo órgão permitia a permanência da lógica da balança de poder 7 como meio para atingir objetivos políticos. Ele não modificava o processo de tomada de decisão dos grandes líderes. Isto ocorria devido à falta de assertividade por parte do Conselho, cujas resoluções não eram obrigatórias, mas apenas de caráter recomendatório - significando que, caso um Estado decidisse ir contra as reco- mendações da Liga, não era esperado que houvesse qualquer sanção ou punição contra ele. Segundo, sua abrangência era deveras limitada para que suas decisões teoricamente universais obtivessem o apoio requerido de todas as potências do mundo. Deve-se ressaltar que, em uma época de franca ascensão de poderes localizados fora da Europa, os Estados Unidos não participavam da Liga. Tal situação era ainda mais agravada com as subsequentes saídas de países 8 . Por fim, mesmo com este número limitado, o Conselho ainda era composto por quinze países em seu ápice, sendo que decisões emitidas por este tinham como obrigatoriedade o voto favorável de todos os membros. O consenso era, portanto, extre- mamente difícil de ser atingido em questões de maior relevância (HERZ; HOFFMANN, 2004). 7 A balança de poder consistia no ato de um Estado forjar alianças estratégicas de modo a “contrabalancear” o poder de outro país rival. Tal situação cria um cenário de competição entre blocos, o que pode levar a um gradual aumento de tensões até o advento de um conflito armado – assim como no claro exemplo das Guerras Mundiais. 8 Como exemplo, a Alemanha e o Império Japonês retiraram-se voluntariamente em 1933, enquanto a União Soviética foi expulsa em 1939. 59 CSF 45 Assim, a necessidade urgente da criação de um novo e eficiente instrumento para a imposição da paz por meio das capacidades de uma organização internacional universal é o principal motivo que leva as nações do mundo a se reunirem na Conferência de São Francisco de 1945. Acreditava-se que a assertividade que faltava no Conselho da Liga das Nações seria obtida pela criação de uma sequência de normas às quais todos os países ficariam subordinados. Através delas, seria estabelecido que a comunida- de internacional não mais aceitaria que nações utilizassem a força umas contra as outras. O desrespeito a tais princípios acarretaria, em última instância, na ação armada conjunta contra o agressor em questão. Estas normas idealmente obrigariam os Estados a resolverem todos seus litígios através do diálogo (HERZ; HOFFMANN, 2004). Negociações racionais tomariam o lugar da barbárie da guerra. É neste momento que os princípios do Direito Internacional ressurgem com toda sua força. A noção do compartilhamento da responsabilidade de manter a estabilidade global seria concre- tizada através de um sistema de segurança coletiva, cujo principal objeto é o ato guerra. A “coletividade” do sistema advém do compartilhamento da responsabilidade de manter a paz por todos os Estados. Sua coordenação seria feita através de um órgão da organização. Visto que este órgão seria responsável pela função de maior importância, fica claro que ele adquire um caráter de grande fundamento, vital para o funcionamento geral de todo o aparelho organizacional. Desta maneira, é imprescindível para todos os Estados que sua visão seja considerada neste novo Conselho, visto que ele viria a regular a nova ordem internacional. Há, basicamente, a ideia de administração da segurança, ou seja, da criação de um novo órgão com plenas capacidades para enfrentar ameaças à paz e segurança, promover o diálogo pacífico entre as nações, buscar resoluções moderadas para litígios, sancionar transgressores de normas contrárias à agressão, organizar intervenções, promover estudos e investigações acerca de questões relevantes para a manutenção global, regional ou local da paz, entre outros. Acima de tudo, há a ideia de um órgão com plenas capacidades de coação 9 . Como elucidado previamente, muito do funcionamento do chamado Conselho de Segurança já havia sido combinado entre as grandes potências em conferências como Yalta e Dumbarton Oaks. Em especial, existia o reconhecimento do “papel especial” dos Estados poderosos dentro do esforço coletivo para o estabelecimento de um regime pacífico e institucionalizado. Utilizando outras palavras, seriam eles os principais responsáveis pelos esforços em nome da convivência pacífica empreendidos na organiza- ção. O símbolo máximo deste caráter ímpar das grandes potências seria o seu direito exclusivo ao veto em processos de votação, assim como sua posição permanente dentro do Conselho de Segurança (como já dito, o órgão mais importante da Organização). Segundo Herz e Hofman (2004), o veto funciona como um fusível, congelando o processo decisório quando há um perigo de colapso do sistema. Ou seja, o veto seria o elemento necessário para que pontuais divergências não impusessem obstáculos intransponíveis para o progresso dentro do Conselho. Visto que o Conselho de Segurança seria o centro do qual irradia- riam todas as decisões mais importantes da organização, travar suas conversas indefinidamente significa- ria travar todo o sistema de segurança coletiva. Contudo, o veto e o assento permanente representariam uma contradição muito pertinente. Para os países destituídos deste direito especial das grandes potências, o veto é uma afronta aos próprios princípios da organização que se pretende criar em São Francisco. Percebe-se um claro paradoxo no fato de que, ao mesmo tempo em que o mundo reúne-se em 1945 sob os preceitos da igualdade e da representatividade, uma minoria de Estados recebe importantes privilégios que outros não terão. Seria um atestado de que um conjunto de nações encontra-se em uma posição de superioridade em relação às outras. E há ainda o caso de outras nações que se veem injustiçadas por constatarem que também mere- cem estes privilégios, como é o caso específico do Brasil (GARCIA, 2011). Assim, mesmo tendo em mente a importância das boas relações com os líderes Aliados, uma boa parte das delegações não contempladas não demonstra seu apoio a esta medida de existência do poder de veto por alguns países (STAIRS, 2005). Outro argumento contrário ao veto é respaldado nos antagonismos políticos-ideológicos que já surgem entre as grandes potências. Enquanto Estados Unidos, Inglaterra e França defendem o conjunto de valores baseados na liberdade, a União Soviética defende os valores da igualdade. Por mais que não haja sinal de confrontação direta entre os dois grupos de países, o estabelecimento de áreas de influência sob diferentes blocos já é uma realidade 10 . Dar o poder de veto para países com visões antagônicas traz o risco de impedir a universalização de determinados princípios que devem reger o bom funcionamento da organização. Em outras palavras, os países deveriam, em teoria, seguir uma linha de pensamento conjun- ta, mas as divergências ideológicas não permitiriam que isto se concretizasse. 9 Coação consiste em compelir alguém ou alguma entidade a determinado ato pelo uso da força, intimidação ou ameaça. 10 No continente europeu, por exemplo, observava-se a divisão competitiva entre as duas esferas. Com os países da Europa devastados pela Guerra, era papel dos líderes Aliados dos Estados Unidos e da União Soviética reconstruir estes centros industriais. Todavia, esta reconstrução garantia uma importante influência política e econômica sob os ajuda- dos. Assim, os países da Europa Ocidental são captados pelos EUA e os da Europa Oriental pela URSS. 60 UFRGSMUNDI Uma perspectiva diferenciada sobre o assunto pode afirmar também que é justamente este risco de paralisar o bom funcionamento da organização que levaria os membros permanentes a procurarem sempre o consenso; dessa forma, a instituição do veto seria positiva. Se as grandes potências sabem dos prejuízos da divergência, elas deveriam então evitar impasses a todo custo e buscar a cooperação. Ademais, existem outros mecanismos e práticas que poderiam abrandar o impacto que o veto possui. Caso sejam permitidas as abstenções nas votações do Conselho, os Estados podem sabiamente escolher a alternativa menos drástica de não votar em vez de votar contrariamente e vetar (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1989). Por mais que as críticas às iniciativas prévias tomadas pelos Estados Unidos, Inglaterra, França, China e União Soviética em relação à estruturação do Conselho sejam numerosas e muitas vezes con- tundentes, os representantes destes países dificilmente abrirão mão desta posição privilegiada em São Francisco. Para eles, a manutenção de suas condições especiais frente aos demais membros é essencial para a criação da organização, afirmando até que este princípio não seria negociável (HERZ; HOFFMANN, 2004). Tendo em vista este posicionamento inflexível, é de se questionar o quanto valeria a pena retirar os poderes de veto das grandes potências se isto acarretasse no desmantelamento dos esforços em direção ao sistema de segurança coletiva. Cabe aos delegados reunidos na Conferência de São Francisco o questionamento acerca de di- versos aspectos do funcionamento do Conselho de Segurança, de certa forma vital para o viés que o órgão terá. Antes de tudo, é de suma importância que seja classificado o que para o Conselho constitui uma agressão. Considerando que este agirá impositivamente no caso do uso da força, importa delimitar quando que ele poderá exercer suas capacidades de coação. Dada esta permissão, uma série de incerte- zas procede. Primeiramente, não se sabe com qual força militar que a missão de paz agirá. De um lado, acredita-se que o ideal seja a criação de um “exército internacional”, que conte com a participação dos membros da organização em proporções equitativas. Esta estratégia, apesar de consolidar os ideais de igualdade entre as nações, envolveria também a movimentação tremenda de recursos para uma mobi- lização a começar do zero. Por outro lado, é necessário reconhecer que poderosas e eficientes forças armadas já existem submetidas a determinados Estados. Desta maneira, talvez fosse mais interessante dar a autorização do uso da força para estas tropas por parte do Conselho. Todavia, argumenta-se que esta situação seria na prática uma continuação do que já ocorria: uma intervenção armada – e legitimada – dos mais fortes e capazes contra adversários em posição de vulnerabilidade. Quanto a questões operacionais das missões do Conselho de Segurança, resta também apontar os detalhes de tecnicalidades pertinentes para o seu funcionamento. Uma vez que a intervenção do órgão seja vista como necessária, uma análise deve ser feita para que as dimensões das tropas utilizadas nas operações sejam adequadas ao problema. Para que erros de cálculo estratégico não sejam cometidos, é importante que tal tarefa de análise recaia sob um ator responsável. Além disso, há também a questão do comando destas forças, visto que tropas precisam de uma liderança tática. Seria de responsabilidade do Conselho realizar a escolha dos comandantes mais aptos para as operações. Porém, a mesma questão da escolha das tropas retorna: se seria melhor buscar a diversificação dos altos escalões das tropas a serviço do Conselho – agregando, desta maneira, comandantes de nacionalidades variadas – ou escolher líderes militares das grandes potências, mais experientes. Tendo em mente que a função do órgão é evitar a qualquer custo que conflitos armados entre Estados aflorem e perturbem a estabilidade do sistema internacional, é cabível ressaltar a opção de ações preliminares por parte do Conselho de Segurança, ou seja, agir antes da catástrofe para evitá-la. Se a comunidade internacional percebe que determinada região do globo está em uma situação de guerra iminente, resta a dúvida da validade de operações contra um Estado agressor que nem ao menos come- teu o ato de agressão ainda. Estas poderiam facilmente ser vistas como imperialistas aos olhos de países que clamam pela autonomia e igualdade das nações. Evidências históricas demonstram que este tipo de ataque – ou de defesa, dependendo da concepção – pode tanto implicar em graves erros estratégicos, como perdas humanas, quanto ser considerado uma escolha racional para a manutenção da paz. Neste contexto, é relevante ponderar acerca de diferentes medidas de sanção não militar contra agressores que possam evitar o uso da força direta por parte da organização. Tais medidas poderiam ter o poder de pacificamente constranger as ações agressivas de Estados ao colocá-los em complicadas situa- ções econômicas e políticas. Exemplificando, poderiam ser realizados embargos econômicos, boicotes a eventos, quebra de relações diplomáticas, restrições políticas, isolamento de telecomunicações, entre diversos outros. Novamente, cabe a discussão acerca da eficiência e validade destas medidas, tendo as ações militares como parâmetro. Por fim, restariam os possíveis casos em que Estados clamariam pela ajuda do Conselho dentro de seu território em questões percebidas como subversivas à paz doméstica e com potenciais consequên- cias negativas internacionalmente. Considerando suas pesadas responsabilidades dentro do sistema de 61 CSF 45 segurança coletiva, é difícil estabelecer se deveria o Conselho agir com missões de observação e de ma- nutenção da paz ou se este deveria focar-se em situações mais graves de agressão entre Estados; logo, a discussão sobre essa questão também é relevante. Por ser a coexistência de diferentes visões acerca dos moldes a serem assumidos pelo Conselho de Segurança um assunto de tamanha importância, deve haver muita cautela, diplomacia e estratégia para que todos os delegados presentes na Conferência de São Francisco saiam desta com algum grau de satisfação com a decisão final. Novamente, destaca-se que qualquer Estado que obtiver a preponderân- cia de suas respectivas políticas externas sob a construção do Conselho assumirá uma posição de grande privilégio político no mundo do pós Guerra, sendo assim vital que cada delegado defenda as instruções dadas por seus governos nacionais com ímpeto e determinação. 3.2. A QUESTÃO DA TUTELA Como esclarecido anteriormente, o colonialismo surgiu no século XVI como uma forma de ex- pansão do poderio europeu para além de suas limitadas fronteiras. Após amadurecimento, este sistema veio a representar uma fonte vital de ganhos econômicos para as Metrópoles. Estes territórios possuíam aquilo que era de mais vantajoso para o fortalecimento do Estado-nacional europeu: recursos naturais abundantes que serviam como matéria-prima, mão de obra barata e volumosos mercados consumidores para produtos industrializados produzidos na Europa. Com as grandes guerras, no entanto, o poderio das potências sobre seus impérios coloniais enfraquece e diversos movimentos de emancipação começam a surgir. Mesmo antes do término das Guerras, já se falava acerca da importância do autogoverno de todas as nações. O princípio jurídico de autodeterminação dos povos surge para dar força a esta ideia. Segundo este, os povos possuem o direito a sua própria soberania se assim desejarem, podendo emancipar-se do controle econômico e político estrangeiro. Os Estados Unidos foram os grandes defensores deste princí- pio, tendo os países recém-independentes ou ainda colonizados como seus seguidores. Após seu papel central na vitória dos Aliados, resultando em vultuosos ganhos econômicos, seus ideais liberais estavam em franca expansão. Se por um lado a autodeterminação teoricamente permitia maior autonomia aos povos, melhores condições de vida e preservação de sua cultura local, estes também estavam sujeitos ao comércio internacional liberalizado. Outrora, colônias eram obrigadas a comercializar somente com suas Metrópoles, através de contratos de exclusividade. Uma vez independentes, poderiam comercializar com o país que lhes desse as condições mais favoráveis de troca – papel que poderia prontamente ser exercido pelo gigante norte-americano. Desta forma, fica clara que a defesa à autodeterminação possui dois lados de interesses: o estadunidense e o das antigas metrópoles (ZUCATTO et al, 2013). A tutela internacional surge como uma possível solução para a obtenção do autogoverno. A par- tir de um sistema regulamentado por uma organização internacional da qual poderosos Estados fazem parte, as colônias podem obter a ajuda necessária para a obtenção da sua autonomia (GILCHRIST, 1945). Tal ideia foi levada adiante na Liga das Nações, sob a Comissão Permanente de Mandatos. Seu principal objetivo era dar um status legal para colônias que haviam sido separadas de suas respectivas Metrópoles. Ao tornar estes territórios seus Mandatos, a Liga procurava assim evitar o embate entre os poderes impe- riais europeus pelo domínio estratégico destes vazios de poder. Pode-se dizer, portanto, que o objetivo principal da Comissão não era tanto o bem-estar das populações dos Mandatos, mas sim o apazigua- mento de possíveis conflitos. Nota-se, além disso, que em momento algum a Liga questionava o sistema colonial 11 – o que era enfatizado pela ausência de membros fora do continente europeu que exercessem algum poder de influência relevante nas decisões tomadas pela organização (FOX, 1950). Em 1945, a questão dos territórios não autogovernáveis e dependentes surge novamente frente a Conferência de São Francisco. Aproximadamente 750 milhões de pessoas, quase um terço da população mundial, vivem nestes territórios atualmente (ONU, 2014). França, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Espanha, Portugal, Itália, Dinamarca, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia são detentores de colônias. Segundo H. Duncan Hall (1948 apud FOX, 1950) “Mandatos e tutela internacional estão enraizados no declínio e na queda de impérios, na expansão de Estados em áreas fracas e atrasadas, na rivalidade dos Estados, em es- feras de interesses, e na balança de poder” - exatamente o cenário do pós-guerra. Os Estados Unidos e a União Soviética estão suficientemente fortalecidos para questionar o poderio europeu sob suas colônias e veem a modernização do tradicional sistema colonial como uma necessidade urgente. Entretanto, os países da Europa Ocidental estão preparados para resistir o máximo possível a qual- quer tentativa de internacionalização dos assuntos coloniais, ainda levando em consideração todas as 11 Sob determinado ponto de vista, as ações da Comissão Permanente de Mandatos poderiam ser interpretadas como uma nova forma de colonização, na medida em que este dava às potências europeias o direito de administração de certas áreas periféricas – como foi o caso da divisão do Oriente Médio entre França e Inglaterra mediante o Acordo de Sykes-Picot em 1916, após a queda do Império Otomano. 62 UFRGSMUNDI mudanças já citadas (FOX, 1950). Para eles, mesmo com suas capacidades administrativas enfraquecidas, não é interessante perder tais fontes de renda dedicadas exclusivamente a seus centros financeiros e também áreas estratégicas para suas bases militares. Inglaterra, França e Bélgica, que por anos lucraram com a exploração dos recursos naturais de suas colônias, não têm motivos positivos para apoiar a inde- pendência dos territórios. Além disso, consideram o discurso norte-americano e de seus aliados (China, Austrália, Nova Zelândia) de apoio a um sistema que interferisse na administração colonial uma afronta à soberania europeia. Afirmam ainda que é desejoso aos próprios territórios dependentes manterem- -se sob seu controle, visto que este controle lhes dava, segundo sua concepção, estabilidade política e econômica. A partir deste momento, em que o interesse nas colônias não fica mais confinado à Europa e os poderes coloniais se tornam uma minoria política, há o desaparecimento do consenso em relação à política colonial, dando lugar à divergência (FOX, 1950). Deve-se ressaltar, porém, que por mais que as ideias liberais norte-americanas questionem um sistema já enraizado e consolidado da política europeia, é necessário que a Europa e os Estados Unidos permaneçam fortes aliados políticos. O continente devastado precisa de ajuda econômica para se reer- guer e ganhar de volta parte de seu poder industrial. Já os norte-americanos veem os europeus ociden- tais como aliados indispensáveis no combate à expansão do comunismo – além dos enormes ganhos econômicos para os EUA que a reconstrução dos polos industriais europeus acarretaria, principalmente por constituírem importante mercado à produção estadunidense. Assim, concessões devem ser feitas para que as boas relações permaneçam. Há ainda que se mencionar o papel das nações subdesenvolvidas neste processo, que neste mo- mento de intensa agitação política não deixam de vociferar suas opiniões perante a comunidade interna- cional. Países da Ásia, África, Oriente Médio e América Latina, anteriormente colonizados pelos impérios europeus, estão livres para discursar na Conferência de São Francisco. Todas as experiências negativas sofridas por sua população durante seu período de dependência servirão agora de combustível para in- flamadas denúncias e acusações. Apesar de não terem sua economia necessariamente beneficiada com políticas de abertura comercial – tendo em consideração seu atraso no processo de industrialização 12 –, estes países são fortes aliados do discurso liberal de autodeterminação. Para eles, debater em um organismo internacional representa sua chance de demonstrar sua relevância política. É ainda de suma importância que as grandes potências reconheçam a superação do modelo de colônia de exploração e concedam a tutela ou a independência formal. A questão da tutela é, portanto, um assunto frágil a ser debatido na Conferência, sujeito a opiniões altamente divergentes. Um fato que contribui para esta noção de iminente discordância é a falta quase total de pré-levantamentos sobre o que poderia ser acordado na reunião (GILCHRIST, 1945). Ao contrário das discussões sobre o Conselho de Segurança, sobre o qual muito já se tem estabelecido através dos encontros anteriores entre as grandes potências, quase nada foi combinado sobre o sistema de tutela e seu funcionamento. O encontro das grandes potências em Dumbarton Oaks, tão importante para os ar- ranjos do já mencionado Conselho de Segurança, não possuía a tutela em sua agenda de tópicos a serem discutidos. A Conferência de Yalta foi uma exceção por deixar elucidada uma importante questão: quais ter- ritórios estariam sujeitos ao sistema de tutela. Seriam estes os territórios que i) estavam mantidos sob Mandato da Liga das Nações após a Primeira Guerra Mundial, ou ii) foram separados de “Estados inimi- gos” como resultado da Segunda Guerra Mundial, ou iii) fossem voluntariamente colocados no sistema pelos respectivos Estados de sua administração (ONU, 2014). Destas condições, fica claro que nenhum território estaria sob tutela automaticamente; há a necessidade de consentimento por parte dos poderes coloniais. Por um lado, isto representa uma vitória para a Europa, uma vez que seus países não seriam obrigados a internacionalizar suas colônias e não haveria intromissão em seus assuntos econômicos. Por outro, a mera existência de um sistema de tutela aberto a receber territórios dependentes, cuja população reconhecidamente possui o direito ao autogoverno, já é o bastante para exercer uma importante pressão política sob os europeus. Caso se siga o princípio da não obrigatoriedade da colocação de territórios sob tutela internacio- nal, seria direito das potências coloniais – não somente das europeias – conservar determinadas áreas sob seu domínio armado, alegando questões de segurança nacional e internacional. Tendo em vista que a organização internacional planejada pelos grandes líderes busca acima de tudo a paz e a segurança in- ternacional, não faria sentido desmilitarizar uma área potencialmente instável em nome do autogoverno. Ao passo que a Comissão Permanente da Liga das Nações pregava pela desmilitarização de territórios sob Mandatos, o novo mundo regido por um sistema de segurança coletiva que não deseja novamente pre- senciar a escalada de conflitos armados pode buscar mais cautela (GILCHRIST, 1945). Assim, cabe avaliar 12 Críticos à corrente do liberalismo econômico advogam que a abertura comercial irrestrita é prejudicial à indústria de países em desenvolvimento, visto que esta se torna dependente da importação de bens industrializados (como máqui- nas e produtos ricos em tecnologia) e, assim, não desenvolve sua capacidade produtiva autônoma. 63 CSF 45 se permitir a manutenção de tropas em regiões de alta tensão e possibilidade de conflito será válido pelos princípios da nova Organização. A Conferência de São Francisco, portanto, torna-se o principal palco onde o sistema internacio- nal de tutela será construído. Para que este venha a ser efetivo na erradicação das mazelas que asso- lam populações dependentes, é necessário que o sistema vá além do que foi estabelecido na Comissão Permanente de Mandatos da Liga das Nações, explorando os limites de seu poder (FOX, 1950). Todavia, tais avanços não devem extrapolar normas preestabelecidas de convivência internacional. O sistema de tutela deve exercer o papel de supervisão dos territórios sem autogoverno para que estes possam obter autonomia. Esta supervisão pode vir a ser feita por meio de visitas, relatórios, questionários, entrevistas, coletas de dados, pesquisas, observações, entre outros; mas é importante que em nenhum momento sua ação deva ser interpretada como uma afronta à soberania de um determinado Estado. Ademais, ainda existe a necessidade de criar-se um órgão administrativo para coordenar as ações do sistema de tutela, um Conselho. Este órgão ocuparia uma posição de suma importância em uma organização internacional, uma vez que exerceria uma função separada de outros organismos dentro desta. Desta maneira, sua composição é também um assunto de primeira importância e que exige cau- tela. Como mencionado anteriormente, um dos motivos pelo qual a Comissão Permanente não era am- plamente efetiva se devia à participação de um número muito limitado de Estados em seus assuntos. Para a expansão de suas funções, um conselho administrativo do sistema de tutela efetivo daria voz a atores relevantes do sistema internacional, com menos limitações à atuação destes. Os delegados reunidos na Conferência de São Francisco são encarregados por seus governos nacionais a criar um sistema internacional de tutela dentro de uma nova e promissora organização inter- nacional. Tal ato trará satisfação para a comunidade internacional, pois terá o reconhecimento do direito de todos os povos ao autogoverno e ao bem-estar, restringindo as mazelas de um antiquado sistema co- lonial exploratório. Apesar disso, os Estados reunidos na Conferência divergem em muito sobre a forma como tal objetivo será atingido e devem encontrar pontos de convergência para que possam estabelecer de fato um eficiente sistema de tutela. 3.3. A ASSEMBLEIA GERAL Em meio às prováveis controvérsias a serem levantadas durante a Conferência de São Francisco, cabe ressaltar as questões acerca do funcionamento e da constituição de outro dos principais órgãos da nova Organização: a Assembleia Geral. Da mesma forma que o Conselho de Segurança e o Conselho res- ponsável pela tutela serão criados a partir da modernização de suas contrapartes previamente existentes na Liga das Nações, a Assembleia também possui a necessidade de renovação. Na Liga, este órgão con- tava com a participação de todos os Estados-membros. Neste espaço, eram discutidos tópicos variados acerca dos assuntos administrativos – questões orçamentárias e coordenação de agências e comissões auxiliares – e responsabilidades da organização para com a manutenção da paz. Acredita-se que tais moldes devam ser seguidos em linhas gerais e que a ideia de igualdade de todos os Estados perante as normas do Direito Internacional deva ser reforçada neste âmbito (HERZ; HOFFMANN, 2004). Todavia, existem diferenças pontuais acerca do que é esperado desta nova Assembleia em relação à antiga em termos de estruturação. Suas funcionalidades seguem praticamente inalteradas. Por outro lado, sua composição, seu processo decisório e seu peso dentro da Organização são objetos de atenção em 1945. No passado, as resoluções da Assembleia só eram aprovadas mediante a aprovação de todos os membros do órgão, ou seja, todos os membros da Liga das Nações. Conforme elucidado anteriormente, tal forma de decisão pode ser prejudicial pela dificuldade de se obter o consenso entre um número ele- vado de representantes. Assim, cabe a reflexão acerca da validade de um processo decisório que presa pela unanimidade ou pela vitória da maioria. Além disso, apesar de muitos países expressarem sua intenção de fortalecer o papel da Assembleia no sistema de segurança coletiva e, consequentemente, dar mais poder a todos Estados-membros e au- mentar a sua representatividade, esta é uma ideia que encontra resistências (STAIRS, 2005). É de visão de determinados Estados, notavelmente da União Soviética, que assuntos direta e indiretamente relaciona- dos à segurança internacional devem ser debatidos dentro do Conselho de Segurança, onde as grandes potências possuiriam o seu poder de veto e, possivelmente, encontrariam menos opiniões divergentes para lidar. Ao contrário do Conselho de Segurança, que, segundo a vontade expressa pelos principais líderes mundiais, terá o poder de criar resoluções vinculantes 13 , surge a proposta das decisões da Assembleia 13 Uma resolução vinculante implica na obrigatoriedade de todos os signatários a seguir o que consta no documento oficial, com de punições caso ocorra o contrário. 64 UFRGSMUNDI seguirem sendo de caráter recomendatório. Em outras palavras, após discutir temas relevantes para a es- tabilidade do sistema internacional – como questões de alimento, saúde, condições de trabalho, imigra- ção, agricultura, escravidão, etc. – o documento final confeccionado a partir destas reuniões serviria para expressar a visão das partes envolvidas acerca do assunto e, após, recomendar práticas para melhor lidar com o problema (HERZ; HOFFMANN, 2004). Neste caso, a análise a ser realizada recai sob a importância de seguir tal proposta ou de dar mais poder ao órgão de maior representatividade da nova Organização, reforçando a norma de igualdade baseada na soberania, versus a praticidade de se resolver assuntos de grande urgência ou relevância em um espaço mais restrito e, em teoria, mais eficiente. Por fim, a questão da composição da Assembleia também é objeto de deliberação, tendo em vista as controvérsias existentes em relação a determinados Estados que desejam participar como membros plenos deste órgão e encontram devida oposição. Primeiramente, existe a controvérsia acerca da adesão da Argentina. Este país, ao contrário de todos os outros que estarão presentes na Conferência de São Francisco, não havia declarado guerra contra as forças do Eixo até o ano de 1945, decidindo manter a neutralidade até então 14 . Tal posicionamento é visto com extrema desconfiança pelos líderes Aliados, que advogam por manter afastado do sistema de segurança coletivo um país potencialmente subversivo à nova ordem mundial. Para os países latinos, entretanto, é de suma importância que um dos maiores e mais poderosos países da América Latina seja devidamente representado na Assembleia e, consequente- mente, na Organização. Em segundo lugar, está o problema da adesão das repúblicas soviéticas da Ucrânia e da Bielorússia. Segundo a visão dos países ocidentais, estas repúblicas simplesmente não possuem autonomia suficiente para serem considerados soberanos e, por conseguinte, Estados. Logo, não faria sentido juridicamente que ambos façam parte da Assembleia e obtenham poder de voto. Todavia, percebendo que a Confe- rência conta com a participação de um número alarmante de países que se identificam com o discurso capitalista e podem posicionar-se contra os interesses soviéticos, a União Soviética e seus aliados dese- jam que o maior número possível de países de seu bloco tenha seu lugar assegurado na Assembleia e, portanto, insistirão neste quesito. 4. POSICIONAMENTO DOS PAÍSES As nações da América Latina – Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Guate- mala, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, República Dominicana, Uruguai e Venezuela – posi- cionam-se de maneira similar no transcorrer da Conferência de São Francisco. Dentre outros assuntos relevantes, como os acordos relacionados à assistência recíproca em questões de segurança, a Confe- rência de Chapultepec, realizada em território mexicano apenas alguns meses antes das tratativas de São Francisco, serviu para que os países dessa região definissem as diretrizes conjuntas que seriam defen- didas durante a construção da Carta das Nações Unidas. Este alinhamento concedeu significância para as propostas encaminhadas por estes países, já que contavam com um total de vinte participantes dos cinquenta e um presentes. No que diz respeito ao Conselho de Segurança, apesar de manifestarem apoio à criação do ór- gão, entendem que algumas mudanças poderiam ser feitas à ideia inicial: o poder de veto deveria ser destituído, e um país latino-americano adicionado a seus membros permanentes. Além disso, manifestam concordância com uma Assembleia Geral de poder reforçado, suporte à criação do Conselho de Tutela e aprovação à manutenção da importância das organizações regionais. Por fim, consideram indispensável que a Argentina tenha a oportunidade de participar das Nações Unidas como um de seus membros fun- dadores, mesmo que estivesse envolvida na controvérsia de ter se mantido neutra ao longo de grande parte da II Guerra Mundial, tendo cedido aos anseios internacionais apenas no final do conflito, quando demonstrou apoio aos Aliados (KRASNO, 2001). Assim como os latino-americanos, os países árabes – Egito, Iraque, Líbano e Síria – também se articularam previamente à Conferência, construindo uma perspectiva muito próxima quanto à maioria dos temas que serão tratados. No âmbito da recém-formulada Liga Árabe, decidiram apoiar a existência do poder de veto para os membros permanentes do Conselho de Segurança, defender a concepção de uma Assembleia Geral mais relevante no contexto das Nações Unidas e argumentar a favor de um Conse- lho de Tutela que promova gradativamente a independência política dos territórios sob seu mandato. As 14 Os motivos pelos quais a Argentina decidiu manter tal posição são fonte de controvérsia, mas, em geral e de maneira simplificada, aponta-se a simpatia de determinadas facções dentro do país com ambos os blocos Aliado e do Eixo, além dos ganhos econômicos em comercializar com as duas partes sem restrições ideológicas. 65 CSF 45 nações árabes também chegam a São Francisco com outro marcante interesse comum: o de que tanto a Síria, quanto o Líbano, tivessem garantias de que a França não tentaria, através do Conselho de Tutela, recolocar ambos os países sob uma situação de dependência em relação a ela (JAMALI, 1988). Vale, ainda, ressaltar a postura egípcia de considerar que os membros não-permanentes do Conselho de Segurança deveriam ser escolhidos de acordo com o princípio da distribuição regional (STAIRS, 2005). A China, que ainda se preocupa com a ameaça japonesa no Pacífico, defende principalmente dois pontos. O primeiro é a defesa do poder de veto para os membros permanentes do Conselho de Segurança. O segundo é o consentimento em relação à formulação de um Conselho de Tutela que coor- dene a administração de territórios sem a capacidade do autogoverno, tendo como objetivo central que esses territórios alcançassem a emancipação política (KRASNO, 2001). Já a URSS, prestigiada pelo papel decisivo que vem tendo para a derrota das forças do Eixo, concorda tanto com o poder de veto irrestrito no âmbito do Conselho de Segurança, quanto com a constituição de um Conselho de Tutela que, assim como pensavam os chineses, objetive a independência dos territórios sob seu mandato. Ademais, apoia de sobremaneira a presença na futura Organização das duas repúblicas soviéticas permitidas em São Francisco – Ucrânia e Bielorrússia –, além da República da Checoslováquia, como forma de tentar equilibrar a composição dos participantes das Nações Uni- das num contexto internacional que já se encaminha para a bipolaridade (KRASNO, 2001). Entretanto, mostrava-se contrária à adesão Argentina à entidade. Segundo os soviéticos, só deveriam ser permitidos como membros aquelas nações que tivessem declarado guerra contra o Eixo até o primeiro dia de março do ano de 1945, caso em que a Argentina não se encaixa. Tanto as Filipinas quanto a Etiópia consideram-se as defensoras dos interesses dos países que ainda enfrentam o domínio colonial. Ambas acreditam na capacidade das Nações Unidas de construir uma nova ordem mundial mais justa e igualitária e na possibilidade do Conselho de Tutela agir em prol do desenvolvimento socioeconômico e da emancipação política não somente dos territórios sem governos próprios, como também daqueles que continuam sob o status de colônia. Os dois países ainda partilham da resistência quanto à concessão do poder de veto aos membros permanentes do Conselho de Segu- rança (KRASNO, 2001). As Filipinas também demonstram simpatia à ideia de o princípio da distribuição regional permear a escolha dos membros não permanentes do Conselho de Segurança. Já a Etiópia cor- robora a concepção de uma organização internacional com primazia sobre as regionais. Embasado no princípio da funcionalidade e na noção do poder intermediário, o Canadá vai a São Francisco com o propósito de tornar-se importante no contexto das Nações Unidas (STAIRS, 2005). Divi- dido entre um alinhamento com o Reino Unido e com os Estados Unidos, o país defende que os membros permanentes do Conselho de Segurança tenham acesso a um poder de veto restrito – ou seja, que não permitisse a sua aplicação a questões processuais –, enquanto que a Assembleia Geral seja revigorada. Ademais, acredita que a entidade deva promover políticas inclusivas, que oportunizem a todos os seus membros a participação efetiva no seu funcionamento. A República Federativa do Brasil defende sua candidatura como membro permanente do Con- selho de Segurança, além de se opor a concessão do poder de veto aos membros permanentes, pois acredita que a Assembleia Geral, onde o voto de todos os membros possui o mesmo peso, se tornará praticamente obsoleta. Com base nessa preocupação, o Brasil propõe um mecanismo automático de re- visão da Carta pela Assembleia Geral, a ser ativado a cada cinco anos, tornando a nova organização mais democrática. O Brasil também advoga por um Conselho de Tutela que busque, além da transição para o autogoverno de territórios administrados internacionalmente, a independência de fato e de direito dos mesmos (HAAG, 2014). Sobre a composição e formato do Conselho de Segurança, a República Francesa defende sua candidatura como membro permanente, bem como o poder de veto exclusivo aos membros permanen- tes. A França defende a criação do Conselho de Tutela, porém com a restrição de seus mandatos, de for- ma que sejam mantidos os mesmos da antiga Liga das Nações e que territórios coloniais sejam mantidos sob controle de suas respectivas metrópoles. Conforme acordado em conferências anteriores com os países líderes dos Aliados, os Estados Unidos da América tratam como essencial o estabelecimento do poder de veto exclusivo aos membros permanentes, sob risco de não aprovação da Carta em seu Senado. Defendem também a inclusão da Re- pública Popular da China e da República Federativa do Brasil como membros permanentes do Conselho de Segurança. Propõem, ainda, a criação do Conselho de Tutela como uma via para a progressiva desco- lonização mundial. A fim de reduzir custos do policiamento da Europa e da Ásia e de auxiliar na manutenção da or- dem nos dois continentes, o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte defende a inclusão da República Popular da China e da República Francesa como membros permanentes do Conselho de Se- 66 UFRGSMUNDI gurança, bem como a concessão do poder de veto para aqueles detentores de tal status. O Reino Unido é pouco flexível quanto à redução dos poderes do Conselho de Segurança, e ainda defende a criação do Conselho de Tutela, porém com a restrição de seus mandatos, de forma que sejam mantidos os mesmos da antiga Liga das Nações e que territórios coloniais sejam mantidos sob controle de suas respectivas metrópoles (HAAG, 2014). A Comunidade da Austrália, Nova Zelândia, República da Índia, República da África do Sul tem, por um lado, a ciência de que a concessão do poder de veto aos membros permanentes do Con- selho de Segurança tornará ainda mais fracos os países de menor expressão no cenário internacional durante negociações multilaterais, mas, por outro, acreditam que a existência do poder de veto é pré-re- quisito para que as grandes potências levem o projeto da nova organização adiante. Portanto, os países citados apoiam o estabelecimento do poder de veto, mas estão abertos a discussão de propostas alterna- tivas, assim como o fazem quanto à questão da criação do Conselho de Tutela, que deverá trabalhar para a progressiva independência, de fato e de direito, de territórios que atualmente não se autogovernam. Defendem a restrição dos mandatos do Conselho de Tutela aos territórios já mandatados pela antiga Liga das Nações, de forma que a os processos de descolonização de outros territórios se resolva bilateralmen- te, entre colônia e metrópole (STAIRS, 2005). O Reino da Bélgica e os Países Baixos, assim como a República Francesa, defendem a restrição dos mandatos do Conselho de Tutela aos territórios já mandatados pela antiga Liga das Nações, de forma que os processos de descolonização de outros territórios se resolvam bilateralmente, entre colônia e me- trópole. Defendem, também, o estabelecimento do poder de veto exclusivo aos membros permanentes do Conselho de Segurança. A República Socialista Federativa da Iugoslávia defende a proposta do poder de veto exclusivo aos membros permanentes do Conselho de Segurança, porém com a ressalva de que o poder de veto não deve submeter decisões administrativas da Assembleia Geral, como, por exemplo, o encaminhamento de pautas ao Conselho de Segurança. A Iugoslávia defende também a criação do Conselho de Tutela, órgão que deverá ser importante para combater a colonização, a qual está presente, principalmente, na África e na Ásia. A República Helênica (Grécia) e o Reino da Noruega apoiam a proposta de poder de veto exclu- sivo aos membros permanentes do Conselho de Segurança, pois acreditam que a responsabilidade pela manutenção da paz é de todos, mas o fardo de policiais do mundo recai sobre os países mais poderosos, que devem possuir poder político equivalente ao de ação militar. No tocante à descolonização, repudiam países europeus que ainda possuem colônias na África e na Ásia, e veem o Conselho de Tutela como re- ferência para a descolonização mundial (POLYDORAKIS, 2014). REFERÊNCIAS BERTRAND, Maurice. A ONU. Petrópolis: Vozes, 1995. BLAINEY, Geofrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Editora Fundamento Educacional 2010. FOX, Annette Baker. The United Nations and Colonial Development. International Organization: v. 4, n. 2, p. 199-218, mai. 1950. GARCIA, Eugênio V.. De como o Brasil quase se tornou membro permanente do Conselho de Segurança da ONU em 1945. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 54,n. 1, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?s- cript=sci_arttext&pid=S0034-73292011000100010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 27 Fev. 2014. GILCHRIST, Huntington. V. Colonial Questions at the San Francisco Conference. American Political Science Review: v. 39, n. 5, p. 982-992, out. 1945. HAAG, Carlos. 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Nela se reuniram 45 países que uniram esforços para a construção de uma organização internacional que buscasse a construção de um mundo pacífico e mais justo. Serão discutidos com maior relevância dois órgãos da futura Organização: o Conselho de Tutela e o Conselho de Segurança. So- bre a fundação do Conselho de Tutela, entram em pauta diversos aspectos do neocolonialismo: a continuidade de práticas consideradas exploratórias pelos grandes impérios dentro da conjuntura da crescente valorização da soberania estatal a todos povos que anseiam por autonomia. A fundação do Conselho de Segurança reúne questões acerca dos futuros moldes de um sistema de segurança coletiva a ser implantado em uma época na qual acredita-se na superação dos conflitos armados para a resolução de disputas políticas e na proibição do uso da força pelo Direito Internacional. Todavia, ambos os assuntos levanta divergências entre os países parti- cipantes, diferenças as quais incidem diretamente na constituição da Organização. 68 UFRGSMUNDI CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA Mandado de Prisão: República Democrática do Congo x Reino da Bélgica Bruna Leão Lopes Contieri 1 Diego Bortoli 2 Giovana Hof 3 Vitória Maturana 4 PARTE I 1. HISTÓRIA DA CORTE Em 1945, a Carta das Nações Unidas criou a Corte Internacional de Justiça (CIJ), mas esta só começou a funcionar um ano depois (art. 7 da Carta da ONU). A Corte é o principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas (ONU) e a sua sede fica em Haia, Holanda (art. 92 da Carta da ONU). O objetivo desse órgão é resolver, em conformidade com o Direito Internacional, as disputas entre Estados, além de fornecer opiniões consultivas sobre questões legais, requisitadas por agências ou outros órgãos da ONU (PELLEGRINO, 2008). O Estatuto da CIJ é baseado no da Corte Permanente de Justiça Interna- cional, principal tribunal da Liga das Nações, uma das razões pelas quais a Corte Internacional de Justiça é considerada sucessora da CPJI. O Estatuto é o único anexo da Carta da ONU e nele ficam dispostos os objetivos, os meios e a organização da Corte. Conforme o artigo 95, a Corte Internacional de Justiça não é o único órgão de justiça internacional e podem existir outros, como, por exemplo, o Tribunal Penal Internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que pertence à Organização dos Estados Americanos (OEA). 2. ORGANIZAÇÃO DA CORTE A Corte é composta por 15 juízes de nacionalidades diferentes, os quais são eleitos para mandatos de nove anos pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança da ONU, em eleições que acontecem simultaneamente (PELLEGRINO, 2008). Esses juízes devem representar os principais sistemas legais e for- mas de civilização do mundo. Eles não representam, no entanto, seus governos nem suas nacionalidades. Cada juiz se compromete a exercer seus poderes de modo imparcial e a propor a melhor solução para cada caso. Quando algum Estado 5 torna-se parte 6 de um caso perante a Corte Internacional de Justiça, ele tem direito a um juiz com a sua nacionalidade para participar dos trabalhos. Se não houver um no corpo permanente, ou seja, dentre aqueles que atuam diariamente em todos os casos da Corte, esse Es- 1 Graduanda do 5º semestre de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing- Sul e do 3º semestre de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2 Graduando do 3º semestre de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Graduanda do 3º semestre de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Graduanda do 7º semestre de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 5 Estado, quando com letra maiúscula, é sinônimo de país. 6 Um ou mais Estados tornam-se parte de um caso quando apelam à Corte Internacional de Justiça para que esta resolva uma situação litigiosa; a outra forma de ser parte é ser intimado pela Corte. Conforme o artigo 35 do Estatuto da Corte, qualquer Estado que tenha assinado o Estatuto pode ser parte de um caso. O Artigo 93 da Carta das Nações Unidas ainda relembra o fato de que todos os membros da ONU aceitam a CIJ como órgão máximo de resolução de contendas interestatais. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.68-81 69 CIJ tado pode indicar um juiz ad hoc 7 , que não precisa ter, necessariamente, a nacionalidade do Estado que o indica. Vale frisar que, embora normalmente seja nacional do país de uma das partes, é obrigação do juiz ad hoc, da mesma forma que todos os outros, prezar pela imparcialidade e agir sempre de maneira ética. 3. COMPETÊNCIA: QUEM PODEMOS JULGAR? Existem duas formas de atuação da Corte Internacional de Justiça, o procedimento consultivo e o contencioso (MARTINS, 2012). O primeiro não é motivado por nações em conflito ou em disputa, muito pelo contrário, já que não envolve, sequer, países. O procedimento consultivo tem por objetivo servir de apoio à ONU como instituição, emitindo pareceres sobre questões legais complementares ao escopo de cada órgão. Devido a isso, só podem iniciar essas demandas junto à Corte os cinco órgãos principais das Nações Unidas ou as suas 16 agências especializadas. Depois de receber um pedido, a Corte elabora uma lista com os países que podem participar en- viando informações sobre a demanda. Ao contrário do procedimento contencioso, a decisão final não é obrigatória e tem como objetivo servir de auxílio às discussões em uma organização internacional. Em- bora não tenha caráter mandatário, a opinião da Corte Internacional de Justiça é da mais alta importância para qualquer resolução de um órgão da ONU - ou equivalente -, possuindo grande peso moral sobre os diplomatas responsáveis pelo trabalho em questão. O procedimento contencioso é o mais tradicional, já que esse é o que envolve duas partes (países) que acionam o tribunal a fim de resolverem uma disputa. Ele é submetido à Corte por Estados que acei- tam a sua jurisdição e desejam resolver alguma disputa legal. Antes de trabalharmos, especificamente, no quesito da jurisdição da Corte Internacional de Justi- ça, é importante que expliquemos, minimamente, no que consiste esse conceito de forma geral. Essa palavra, que deve ser usada com cautela, tem mais de um significado, que dependem do uni- verso na qual ela é utilizada (MALANCZUK, 2007), quando se fala de direito doméstico, pode ser definida como a capacidade que os juízes e os tribunais possuem de dizer o Direito para cada caso. Quando se trata do campo internacional, Shaw afirma que “é o poder do Estado, sob o Direito Internacional, de re- gular ou criar impacto em pessoas, propriedades e situações, sendo um reflexo dos princípios básicos de soberania estatal, igualdade entre os países e não interferência em assuntos domésticos” (SHAW, 2008, p. 646). Vale, ainda, citar o autor Malanczuk: Soa impressionantemente técnica e muitas pessoas pensam que têm uma vaga ideia de seu significado, logo, há uma tentação de usá-la sem parar para se perguntar sobre o que ela significa [...]. Às vezes, pode significar tão somente território, por exemplo, em casos a respeito de custódia de crianças na Grã Bretanha. Cortes britânicas podem ordenar que quem tem a guarda do filho não leve-o para “fora da jurisdição”, o que quer dizer “fora da Grã Bretanha” [...]. Mas, frequentemente, “jurisdição” se refere a poder exercido por um Estado sobre pessoas, propriedades ou eventos (MALANCZUK, 1997, tradução nossa). Podemos, então, concluir que jurisdição, como abordaremos nesse trabalho – que diz respeito ao campo internacional, à relação entre países -, consiste no poder, na permissão, no direito que os Estados têm para proceder a julgamentos, prisões e atos originados por acusações a cidadãos. Se uma nação não tem jurisdição sobre determinado caso, significa que ela não pode levar adiante seu julgamento. Dito isso, faz-se necessário, então, explicar como um Estado pode ter o direito de recorrer ou o dever de obedecer à Corte. Como citado anteriormente, os Estados o fazem por terem aceitado a juris- dição da Corte, ou seja, eles, de alguma maneira, permitiram que a CIJ tivesse a capacidade de julgá-los em casos a ela apresentados. Para que esse tribunal possa julgar o caso, tendo a sua sentença o caráter de cumprimento obriga- tório às partes, é preciso que os países envolvidos tenham reconhecido a sua jurisdição. Tal procedimen- to pode ser feito a partir de uma série de opções, constantes no artigo 36 do Estatuto da Corte. A mais 7 Ad hoc significa “para esta finalidade”. Um juiz ad hoc recebe a competência de julgar apenas para aquele caso es- pecífico. Ele se submete ao mesmo juramento ao qual os juízes eleitos se submetem, mas não tem o direito de julgar os outros casos da Corte. 70 UFRGSMUNDI comum dentre elas é a aceitação da jurisdição compulsória, na qual o Estado se submete à jurisdição da Corte para toda e qualquer disputa com outro Estado que tenha a mesma obrigação. O termo de aceite pode ser assinado em qualquer momento e fica depositado com o Secretário-Geral das Nações Unidas (Estatuto da Corte, art. 36). Atualmente, 170 países aceitaram a jurisdição da Corte dessa maneira (CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 1945). Cada governo indica um agente para representar o país que seja capaz de argumentar a seu favor; esse agente torna-se a ponte entre a nação e a CIJ. Seu papel é total e completamente distinto daquele do juiz ad hoc: o primeiro deve advogar a causa do seu país de origem, fazendo sua defesa, enquanto o segundo deve ser imparcial para julgar corretamente o caso, não tendo relação alguma com a nação de onde vem. Os agentes são responsáveis pela parte oral, precedida por uma parte escrita - os memoriais –, as quais são examinadas e deliberadas. O julgamento final é obrigatório, ou seja, deve ser seguido por ambas as partes. Quando algum Estado falha em cumprir com as suas obrigações, fica sujeito à intervenção do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). 4. FONTES DE DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO A Corte não pode julgar baseada no que os juízes veem como certo. Para que eles julguem da maneira mais justa e imparcial possível, o próprio Estatuto da Corte no artigo 38 estabelece as fontes autorizadas (PORTELA, 2011). 1. A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvér- sias que lhes forem submetidas, aplicará: a) as convenções internacionais, quer gerais quer especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b) o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo direito; c) os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas; d) sob ressalva da disposição do art. 59, as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito (CIJ, 1945). Não existe hierarquia entre as fontes (PELLEGRINO, 2008), mas geralmente a preferência é dada aos acordos firmados entre os Estados em litígio, pois nesse momento é reconhecida uma relação jurídica formal entre eles. Embora o artigo utilize a palavra convenção, tratado e acordo significam a mesma coisa (documento escrito firmado entre as partes - um ou mais Estados - que reconheça alguma relação jurídi- ca). Existem diversos tipos de tratados: de paz, de cooperação econômica, de intercâmbio estudantil, de proteção ao meio ambiente, entre outros. Uma convenção tem a capacidade de consolidar o direito; as divergências irão surgir conforme as interpretações do que está escrito nela. É justamente nesta questão que os juízes deverão concentrar seus esforços. Apesar do conceito de costume internacional estar presente no artigo acima como sendo “prática geral aceita como sendo direito”, esta definição não é muito clara. O costume internacional possui um grau de informalidade, pois diferencia-se dos acordos por não ser escrito. Além disso, não são todos os Estados que aceitam necessariamente o costume; em comparação com os tratados, eles perdem em grau de força jurídica, pois o que uma parte em um caso contencioso submetido à Corte afirma ser direito, outra parte pode negar afirmando que não reconhece tal costume (PELLEGRINO, 2008). Logo abaixo, estão os princípios gerais de direito. Estas normas têm caráter genérico e orientam a elaboração e a aplicação das normas internacionais. É importante destacar os seguintes princípios - estes aceitos pela grande maioria dos Estados: soberania nacional, autodeterminação dos povos, cooperação internacional, igualdade jurídica entre Estados e a solução pacífica das controvérsias internacionais. A doutrina e a jurisprudência, por sua vez, são consideradas meios auxiliares para a resolução dos conflitos. Enquanto a doutrina é o conjunto de estudos, ensinamentos, teses e pareceres de grandes juristas, a jurisprudência é o conjunto de casos e de suas respectivas decisões judiciais. De caráter muito menos global e com um nível menor de consenso, estas duas fontes serão utilizadas pelos juízes da Corte quando este não encontrarem suporte jurídico nos níveis superiores. A própria argumentação dos juízes ao exporem seus pontos de vista cria bases para futuros julgamentos. 71 CIJ PARTE II 1. INTRODUÇÃO Acrescentado à lista de casos da Corte Internacional de Justiça, o mais importante tribunal in- ternacional da atualidade e principal órgão jurídico das Nações Unidas, em 17 de outubro de 2000, uma disputa foi proposta pela República Democrática do Congo (RDC), que a coloca em litígio com a sua ex-metrópole, o Reino da Bélgica. O pedido refere-se ao mandado de prisão expedido pelo país europeu contra o então Ministro das Relações Exteriores congolês, Senhor Yerodia Abdoulaye Ndombasi. No dia 11 de abril de 2000, Damien Vandermeersch, juiz do Tribunal de Primeira Instância de Bru- xelas, Bélgica, emitiu um mandado de prisão contra Abdoulaye Yerodia Ndombasi, o Ministro das Rela- ções Exteriores da República Democrática do Congo. Yerodia foi acusado de ter incitado o ódio racial entre tribos no Congo por meio de discursos durante o ano de 1998, contribuindo para ataques a pessoas da etnia Tutsi residentes em Ruanda. O juiz expediu tal mandado embasado nas acusações, contra o mi- nistro congolês, de graves violações aos direitos humanos, pela prática de crimes contra a humanidade. A ordem do mandato de prisão foi enviada para a Interpol 8 e para todos os Estados, incluindo a República Democrática do Congo. Em outubro de 2000, Congo iniciou procedimentos na Corte Internacional de Justiça, pedindo anulação do mandado de prisão, declarando que a Bélgica teria violado, primeiramente, o princípio da soberania da República Democrática do Congo, ao exercer autoridade em seu território e ao exercer a ju- risdição universal, apenas reconhecida pelo Estado Belga (ou seja, a Bélgica acredita que tem o direito de proceder a julgamos fora de seu território). Além disso, com o mandado de prisão, a Bélgica teria ferido a imunidade diplomática do Sr.Yerodia, o qual, na posição de Ministro das Relações Exteriores, não poderia ser julgado por tribunais de um país estrangeiro (HARRIS, 2010). 2. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA 2.1. FATOS PRINCIPAIS Em 1885, os belgas iniciaram uma violenta colonização na atual região da República Democrática do Congo, impondo a governança do rei Leopoldo II (THE INDEPENDENT, 2006). Muitos nativos foram mortos. Após 73 anos de colonização e constantes tentativas de conseguir a liberdade por parte dos congoleses, os belgas permitiram que aqueles criassem partidos políticos. Após intensas negociações, os belgas notaram que não conseguiriam cumprir as demandas dos congoleses e saíram abruptamente da região, concedendo direitos políticos 9 ao povo do Congo em 1960, tornando o país independente. No entanto, durante todo o tempo em que esteve presente no território, a Bélgica privou o povo congolês de mobilidade social, de participação política e de oportunidades educacionais (SHAH, 2010). Os belgas continuaram, entretanto, sua intervenção armada no país africano apenas uma sema- na após as eleições para o cargo de primeiro-ministro congolês. Após alguns dias da independência do Congo, a região de Katanga se autodeclarou independente do resto do país, apoiada pelo governo belga. Além disso, depois de algumas semanas no poder, o então primeiro-ministro, Patrice Lumumba, foi re- movido do seu cargo e assassinado por membros do Exército Congolês liderados pelo Coronel Joseph Mobutu, insuflados pela Bélgica e por membros da CIA que temiam uma aproximação de Lumumba com a União Soviética. Após 5 anos, Mobutu Sese Seko promoveu um golpe de Estado, subindo ao poder e ins- taurando uma ditadura que durou 30 anos - período marcado pela corrupção e pela lavagem de dinheiro e durante o qual o nome do país foi modificado para “Zaire” (HISTORY OF THE CONGO, 2014). Em 1973, em Ruanda, subiu ao poder Juvénal Habyarimana, de etnia Hutu. Ruanda é um país vi- zinho ao Congo/Zaire, que, desde antes de sua colonização, já possuía problemas étnicos. Quando foi 8 International Police Organization 9 Direitos Políticos dizem respeito à atuação dos cidadãos nas decisões políticas do país e à participação desses na vida política do Estado. Dentre eles podemos destacar os direitos: ao poder de votar, ao voto secreto e à capacidade de se eleger a cargos públicos. 72 UFRGSMUNDI colonizada, primeiro por alemães e depois por belgas, manteve-se como reino independente, criando um sistema de separação de etnias que submeteu a minoria Tutsi que vivia no local. Quando Juvénal assumiu o poder do país, as tensões étnicas e sociais aumentaram. Muitas pessoas da etnia Tutsi, por essa razão, migraram para Zaire, Uganda, Burundi e Tanzânia, fugindo dos ataques promovidos pelos Hutus desde a independência de Ruanda. Em 1990, a Fronte Patriótica Ruandesa (FPR), formada por Tutsis refugiados, realizou um ataque massivo a Ruanda, o que ocasionou uma política deliberada de propaganda, por parte do governo ruandês, de rotular todo Tutsi que vivia no país como cúmplice do ataque e todo Hutu mem- bro dos partidos de oposição como traidor. Em 1993, o Conselho de Segurança da ONU estabeleceu a Missão de Assistência para Ruanda das Nações Unidas (UNAMIR, na sigla em inglês), na tentativa de esta- belecer a paz e ajudar na questão humanitária. Em abril de 1994, os presidentes de Ruanda e do Burundi foram assassinados por um foguete lançado por rebeldes ao avião em que voavam, o que desencadeou novos massacres (OUTREACH PROGRAMME ON THE RWANDA GENOCIDE AND THE UNITED NATIONS, 2014). Em 1997, Laurent-Désiré Kabila, ex-guerrilheiro, torna-se governante do Congo, invadindo o país com as tropas Tutsis e derrubando a ditadura de Mobutu, instaurando uma caçada aos Hutus que habita- vam o país, que agora passava a se chamar República Democrática do Congo. Um ano após a queda de Mobutu, Abdoulaye Yerodia Ndombasi é nomeado Ministro das Relações Exteriores pelo então presiden- te Kabila. Em tal cargo, Abdoulaye encorajou publicamente, em discursos, a população da RDC a matar Tutsis que tinham se rebelado contra o governo instaurado. Como resultado, milhares de pessoas foram mortas no país (BBC, 2001). Em 1993, o Parlamento belga aprovou o “Ato de Junho de 1993 Concernente à Punição a Graves Violações às Convenções de Genebra de 1949 e aos Protocolos Adicionais I e II de 1977”. Em 1999 tal ato foi atualizado pelo “Ato de 1999 Concernente à Punição de Graves Violações ao Direito Humanitário Internacional”, conforme será melhor explicado na sessão três dessa parte (NATIONAL LEGISLATIVE BO- DIES, 1999). Por tais atos, o Parlamento revestiu a Corte belga de jurisdição universal para crimes contra os direitos humanos. A Corte da Bélgica, dessa forma, atenderia denúncias de vítimas de crimes contra os direitos humanos cometidos pelo mundo, julgando tais violações cometidas por estrangeiros, ocorridas fora da Bélgica e sem requisitos como o de a vítima ser belga ou a presença de um cidadão belga no local (HUMAN RIGHTS WATCH, 2003). Dessa forma, em resposta aos supostos discursos fomentadores de ódio de AbdoulayeYerodia Ndombasi, o juiz belga Damien Vandermeersch emitiu, em 11 de abril de 2000, com base na jurisdição universal da Corte belga em casos de crimes contra direitos humanos, um mandado de prisão contra o Ministro das Relações Exteriores da República Democrática do Congo. A ordem foi envia- da à Interpol e a todos os Estados, inclusive à República Democrática do Congo (CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2002). No dia 17 de outubro de 2000, a República Democrática do Congo iniciou procedimentos contra a Bélgica na Corte Internacional de Justiça, requerendo que a Corte declarasse que a Bélgica deveria anular o mandado de prisão. Ao mesmo tempo, a RDC requereu indicação de medidas provisórias, de acordo com art. 41, I do Estatuto da CIJ, argumentando que o mandado de prisão estava barrando Abdoulaye de exercer seus deveres de Ministro das Relações Exteriores, pois o impedia de cumprir missões em qualquer outro Estado. Yerodia cessaria suas funções de Ministro das Relações Exteriores em 20 de novembro de 2000, motivo pelo qual a Corte negou o pedido de indicação de medidas provisórias (CORTE INTERNA- CIONAL DE JUSTIÇA, 2000). O presidente da Corte indicou o dia 15 de março de 2001 como limite para entrega do memorial da República Democrática do Congo e 31 de maio de 2001 para o memorial da Bélgica. Após os devidos pedidos de extensão de prazo, o memorial da RDC foi entregue em 15 de maio de 2001 e o da Bélgica em 28 de setembro de 2001 (CORTE INTERNACIIONAL DE JUSTIÇA, 2001a; CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2001b). 2. ALEGAÇÕES DAS PARTES 2.1. ALEGAÇÕES DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO 2.1.1. ALEGADA VIOLAÇÃO À SOBERANIA DA RDC POR PARTE DA BÉLGICA Demonstrando que houve violação da sua soberania, a República Democrática do Congo afirma que apenas normas de direito internacional poderiam contrabalancear a regra das imunidades, ou seja, normas internas de direito doméstico, por si só, não poderiam cumprir tal função. Ainda, defende que 73 CIJ cada Estado internaliza as regras de direito internacional da forma que entender ser mais benéfica ao seu país. Por fim, não se deve esquecer do princípio essencial à existência das relações entre nações civiliza- das: o respeito à soberania e à imunidade daqueles que conduzem tais relações (CIJ, 2001a, p. 11). Na tentativa de defender sua posição, o país africano afirma que a administração da justiça criminal é, em princípio, territorial, ou seja, as jurisdições 10 penais são diretamente relacionadas ao local instituí- do para tal poder. Assim, o poder de punir do Estado está diretamente relacionado com o local em que acontecem os crimes: dentro de seu território. Há, contudo, possibilidades de extensão dessa jurisdição; contudo, estas não podem ultrapassar os limites impostos pelo direito internacional. A questão da jurisdi- ção penal está ligada, também, com o princípio da personalidade, que possui dois lados: a nacionalidade do acusado e a nacionalidade da vítima (CIJ, 2001a, p. 21). Por fim, ao emitir o mandado de prisão, a Bélgica violou seriamente o princípio de soberania, segundo o qual um Estado não pode exercer autoridade no território de outro Estado. Ainda, feriu o prin- cípio de igualdade de soberania entre todos os membros na ONU, exposto no artigo 2°, parágrafo 1, da Carta das Nações Unidas: A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios: 1.A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros [...] (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945). 2.1.2. ALEGADA VIOLAÇÃO AO DIREITO COSTUMEIRO INTERNACIONAL Inicialmente, o Congo defendeu que a Bélgica acredita que as regras de direito interno tem prece- dência sobre as regras de direito internacional. O artigo 5°, parágrafo 3°, da lei belga de 16 de junho de 1993 define que a imunidade inerente ao caráter oficial de uma pessoa não impede a aplicação de tal lei: “§ 3 - L’immunité attachée à la qualité of- ficielle d’une personne n’empêche pas l’application de la présente loi.” (LEI DE 16 DE JUNHO..., 1993). Ou seja, mesmo que a pessoa seja oficial de um Estado e tenha imunidades devido a sua posição e suas ações oficiais, a Bélgica pode exercer sua jurisdição universal em relação ao possível caso judicial. A RDC alega que esta lei pode ter outra interpretação, em conformidade com as suas obrigações e com os princípios do direito internacional (CIJ, 2001a, p. 7). Deve se ter em conta que as regras de direito internacional a respeito da proteção das imunidades são superiores àquelas de direito interno dos Esta- dos. Assim, tendo em vista a prática belga, é fundamental que a Corte freie tal comportamento. Ainda, há a violação diplomática da imunidade do Ministro das Relações Exteriores e da soberania do Estado, como reconhecido pela jurisprudência da Corte e pelo artigo 41, parágrafo 2, da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 18 de abril de 1961: Artigo 41 Inviolabilidade Pessoal dos Funcionários Consulares [...] 2. Exceto no caso previsto no parágrafo 1º do presente artigo, os funcionários consulares não podem ser presos nem submetidos a qualquer outra forma de limitação de sua liberda- de pessoal, senão em decorrência de sentença judiciária definitiva. [...] (CASA CIVIL, 1965). 2.2. ALEGAÇÕES DA BÉLGICA Primeiramente, em seu memorial, o Reino da Bélgica defendeu que a Corte Internacional de Jus- tiça não teria jurisdição para esse caso. Para embasar tal discurso, apresentou quatro motivos e um argu- mento subsidiário perante a Corte: 1. Tendo em vista que Yerodia Ndombasi não é mais o Ministro das Relações Exteriores e ocupa qualquer outra função ministerial, não há mais uma disputa entre as partes neste sentido na Cláusula Opcional de Declarações das Partes. A Corte, consequentemente, não tem jurisdição no caso. 2. Pelo fato do Yerodia Ndombasi não ocupar mais posições ministeriais na República Democrá- tica do Congo, o caso está sem objeto e a Corte não deve proceder com o julgamento dos méritos do caso. 3. Atualmente, o caso está materialmente diferente do que quando apresentado pela RDC. Sendo assim, ou a Corte não tem jurisdição no caso ou a aplicação do caso perante a Corte é inadmissível. 10 Jurisdição é o poder que o Estado detém para aplicar um direito a um determinado caso, visando à solução do con- flito, sendo a jurisdição penal a aplicação desse poder no âmbito do direito penal. 74 UFRGSMUNDI 4. Pelas novas circunstâncias em relação a Yerodia Ndombasi - e aqui refere-se à sua saída da função de Ministro das Relações Exteriores -, o indivíduo perdeu sua imunidade diplomática, logo, o caso assumiu caráter de simples ação de proteção do indivíduo por parte do governo congolês. A partir disso, sabendo que, antes de se recorrer à Corte Internacional de Justiça, todas as instâncias domésticas devem ter sido esgotadas e não o foram, não há jurisdição para a Corte. 5. O princípio non ultra petita, de que uma Corte não pode decidir um caso para além do que foi pedido pelas partes, limita a jurisdição da Corte sobre as alegações finais feitas no Memorial da RDC (CIJ, 2001b, p.35). 2.2.1. ALEGADA LEGALIDADE DO MANDADO DE PRISÃO PERANTE O DIREITO BELGA E O DIREITO INTERNACIONAL A Bélgica, em seu memorial, procurou defender-se primeiramente alegando que o mandado de prisão não estaria violando nenhuma lei belga ou de direito internacional. Ademais, alega que o mandato de prisão de Yerodia não infringe a soberania da RDC e nem cria uma obrigação para tal Estado. O deman- dado esclarece que tal mandado é nacional, não sendo necessários requerimentos internacionais para sua expedição (CIJ, 2001b, ps. 68-69). Buscando comprovar a legalidade do mandado de prisão, a Bélgica citou as bases legais e jurisdi- cionais de tal ordem: primeiro, a lei do “Ato de Junho de 1993 Concernente à Punição a Graves Violações às Convenções de Genebra de 1949 e aos Protocolos Adicionais I e II de 1977”, que inicialmente tinha a função apenas de adaptar a lei belga às Convenções de Genebra de 1949 e ao Primeiro Protocolo Adicio- nal de 1977. No entanto, com a abrangência do Segundo Protocolo Adicional, tal lei belga passou a ser base da jurisdição universal da Corte belga para julgar os crimes estipulados. Já com a emenda de 1999, ficou estipulado que a imunidade associada à capacidade oficial de uma pessoa não previne a aplicação da lei da jurisdição universal para violações de direitos humanos (CIJ, 2001b, ps. 74-76). Em segundo lugar, foram apresentadas acusações suficientes para que fosse instaurado um pro- cesso, com base na lei de 1993/1999. A Bélgica deixa claro que não foi uma investigação com cunho pessoal. Das doze pessoas que prestaram queixa, cinco eram belgas e sete eram congoleses; oito desses indivíduos reclamaram por injúrias sofridas possivelmente por serem da etnia Tutsi (CIJ, 2001b, p. 78). Em terceiro lugar, em relação à alegação da RDC de que não seria possível, de acordo com leis internas belgas, haver um processo perante a Corte sem que ambas as partes estejam no país, a Bélgica alega que, de acordo com tal legislação, o juiz não teria agido fora da legalidade (CIJ, 2001b, p. 79). A fim de comprovar que a Lei da Jurisdição Universal in abstentia (contra alguém que não se en- contra no território belga, por exemplo) é permitida pelo Direito Internacional, a Bélgica alega que a lei de 1993/1999 apenas incorpora nacionalmente uma obrigação reconhecida pelo direito internacional (a punição contra crimes de direitos humanos). Assim, a jurisdição universal não viola a soberania de um Estado, apenas corresponde à luta contra a impunidade de crimes contra os direitos humanos interna- cionais (CIJ, 2001b, p. 95). 2.2.2. EXCEÇÃO DA REGRA DA IMUNIDADE EM CASOS DE CRIMES CONTRA O DIREITO HUMANITÁRIO INTERNACIONAL Em relação à possível violação do direito de imunidade dos Ministros de Relações Exteriores, a Bélgica levantou a questão de que é implícito que a função e a aplicação desse privilégio são limitadas pelas circunstâncias envolvidas nas ações da pessoa que possui funções oficiais. Ou seja, tais imunidades são reconhecidas para que a pessoa possa exercer suas funções oficiais, não para que ela esteja imune a ser punida por atos praticados na sua vida pessoal ou meramente pela sua posição oficial (CIJ, 2001b p. 118-119). Nesse sentido, são elencadas proposições de situações: Ministros das Relações Exteriores em ofí- cio são geralmente imunes a processos perante cortes estrangeiras; com exceção, os ministros em ações oficiais são responsáveis por atos que ocasionam graves crimes internacionais; a imunidade não cobre atos realizados na vida pessoal do ministro; e, por fim, um ex-ministro não possui mais imunidade por atos oficiais exercidos em função de seu cargo (CIJ, 2001b, p. 120). Por fim, a Bélgica afirma que as imunidades são relativas em casos de crimes contra humanidade. Assim, mesmo que o Sr. Yerodia estivesse em função do seu cargo de Ministro das Relações Exteriores, praticando atos oficiais (discursos), ele cometeu um crime contra o direito internacional humanitário ao incitar o ódio e a discriminação à população, o que resultou na morte de milhares de pessoas. 75 CIJ 3. PRINCÍPIOS JURÍDICOS ENVOLVIDOS 3.1. JURISDIÇÃO SOBRE O CASO Sabendo-se que, no nosso caso de estudo, tanto a Bélgica como o Congo aceitaram a jurisdição da Corte, pode-se partir para o julgamento da questão. No nosso caso, a Bélgica, ré da ação, propôs quatro argumentos, por meio dos quais sustentava a impossibilidade de a Corte julgar o caso em função da sua falta de jurisdição. Todos eles tiveram por base o fato de o senhor Yerodia não mais ser, à época da emissão do mandado, Ministro das Relações Exte- riores do Congo e, logo, segundo a Bélgica, não gozar mais de imunidade diplomática. Os argumentos foram, em suma: 1) ausência do objeto - o que não foi aceito, já que o mandado de prisão ainda estava em circulação -; 2) mudança drástica na situação do caso - o que o tornaria substancialmente diferente e re- quereria sua anulação -; 3) alegação de que o caso estava relacionado a proteções diplomáticas de cunho político e não mais envolvia a imunidade diplomática em si, apenas a ação de proteção diplomática (que se refere a qualquer indivíduo comum); e 4) ausência de disputa legal entre as partes (GOLDMANN, 2009). Todos os argumentos, de maneira geral, são desarmados pela norma de que só se pode contestar a jurisdição por ações ocorridas até a data de entrada pela parte autora (no caso, a RDC). Ou seja, havendo mudanças na situação dos envolvidos já ao decorrer da ação, a presença ou ausência de jurisdição não pode mais ser questionada. 3.2. JURISDIÇÃO UNIVERSAL 3.2.1. ESCOLHA DO FORO COMPETENTE Antes de adentramos no terreno propriamente dito do princípio da Jurisdição Universal, faz-se ne- cessário que discutamos algumas noções preliminares de uma parte da doutrina do Direito Penal Interna- cional. O primeiro aspecto a ser analisado é a escolha do foro competente 11 para processar e julgar o ilícito. Tal dilema pode ser de baixíssima complexidade, quando, por exemplo, todos os elementos - ví- timas, suspeitos, consequências, objetos e local do crime - são pertencentes à mesma nação. Como se pode imaginar, para esses casos, o juiz com competência para o julgamento é o designado pelo ordena- mento jurídico doméstico 12 do país, sem qualquer envolvimento de cortes internacionais, já que, como parte do princípio básico de igualdade entre os Estados - todos soberanos dentro do anárquico Sistema Internacional 13 - e da não intervenção destes nos assuntos internos de outros, é regra geral que cada na- ção tenha competência exclusiva para o julgamento de seus nacionais sobre crimes cometidos dentro de suas fronteiras (SHAW, 2008, p. 673). Em se tratando, entretanto, dos crimes chamados transnacionais, a escolha do tribunal adequado se dá de maneira mais complexa, já que, como complemento à regra geral - que as cortes domésticas julgam os crimes de seu país -, há a possibilidade de um juiz ser competente para um caso ocorrido no exterior. Pode-se, pois, inferir que, embora o quesito “território” seja, de fato, o mais importante para se analisar a jurisdição de um caso, ele não é o único (SHAW, 2008, p. 654). Tal dificuldade é observada, por exemplo, no estudo do nosso caso, no qual a Bélgica tem a in- tenção de processar o autor de um crime que não foi perpetrado em seu território e, além disso, não tem como seu nacional o suspeito ou, tampouco, as vítimas (BBC, 2000). Pode, então, a Bélgica processar e julgar um cidadão de outro país, acusado de cometer um ato que não tem qualquer vinculação com al- gum habitante belga? A fim de discutir essa questão, serão expostos, abaixo, brevemente, alguns pontos relacionados aos direitos dos países de julgar crimes que se passaram além de suas fronteiras. 3.1.2. JURISDIÇÃO TERRITORIAL E JURISDIÇÃO EXTRATERRITORIAL O Reino da Bélgica tem jurisdição para acusar e julgar os crimes dos quais denunciou o então Ministro das Relações Exteriores do Congo? Essa pergunta, que é apenas outra forma de colocar a inter- 11 Qual tribunal tem legitimidade, tem a permissão, para proceder ao julgamento. “Competente” significa detentor de competência, nesse contexto, sinônimo de capacidade, autorização e permissão. “Foro” é a Corte em sentido amplo - englobando não só os juízes responsáveis, mas também o ordenamento jurídico (as leis) a ser levado em conta. 12 Conjunto de leis (escritas ou não) de um país. 13 Na relação dos Estados com os outros Estados, eles se encontram na mesma posição. Não há um que tenha mais poder que o outro, ou que possa mandar dentro de assuntos internos que não sejam os seus, assim como também não existe uma entidade que possa fazê-lo, como, por exemplo, um governo global. 76 UFRGSMUNDI rogação feita ao final da sessão anterior, carrega um termo de fundamental importância para os assuntos tratados daqui para frente: jurisdição. Recapitulando o que já foi discutido na Parte 1 do trabalho, segun- do definição da Anistia Internacional, jurisdição é, em seu sentido amplo, “simplesmente a legítima au- toridade legal de uma instituição (legislativa, executiva ou judicial) para decidir questões legais” (ANISTIA INTERNACIONAL, 2007, tradução nossa). Como foi dito, há casos em que o Direito Internacional, por meio tanto de costumes como de tratados, prevê e permite que uma corte nacional julgue um crime que ocorreu fora de suas fronteiras. A essa possibilidade dá-se o nome de e jurisdição extraterritorial - em oposição à jurisdição territorial. Então, embora jurisdição esteja intimamente ligada ao território, não está exclusiva- mente amarrada a este. Muitos Estados têm jurisdição para julgar crimes que aconte- ceram fora de seu território e, além disso, há pessoas, propriedades ou situações que estão imunes à jurisdição territorial, muito embora o caso lá tenha se passado (SHAW, 2008, p. 647, tradução nossa). Como mais comumente aceitos, existem alguns princípios que norteiam a legitimação do proces- so conduzido extraterritorialmente. O país interessado em proceder ao julgamento deve-se enquadrar em pelo menos um desses, conforme observamos no apontamento da Anistia Internacional: Cortes nacionais, frequentemente, citam pelo menos um desses princípios de ju- risdição extraterritorial, referindo-se a crimes sob a legislação nacional, quando eles [os países] exercem jurisdição sobre crimes internacionais ou de interesse do Direito Internacional (AI, 2007, tradução nossa). O princípio da personalidade (ou nacionalidade) ativa está relacionado à origem do suspeito autor do crime, de forma que o Estado ao qual pertence o cidadão acusado tem jurisdição sobre o caso, ou seja, tem o poder de julgar o processo. O princípio da personalidade (ou nacionalidade) passiva funciona de maneira similar ao primeiro, mas diz respeito à vitima do suposto crime. O país de nacionalidade da vítima pode pedir o caso para si. O princípio do interesse nacional é menos objetivo que os dois primeiros, já que se refere a uma situação que pode gerar consequências e repercussões para a segurança, a economia, a população ou algum outro aspecto importante de um determinado país. O Estado que se sentir amea- çado ou prejudicado pode, então, solicitar o caso para ser julgado em suas cortes domésticas (AI, 2007). Voltando, agora, ao nosso caso de estudo: sabendo que as incitações de ódio que, supostamente, geraram muitos homicídios a cidadãos da etnia Tutsi não se passaram na Bélgica, em qual categoria de jurisdição extraterritorial esse país se enquadra, para ter tido a intenção de ter o réu extraditado para den- tro de suas fronteiras e ter seu próprio tribunal procedendo ao julgamento? 3.1.2.1. Princípio da Jurisdição Universal Como observado a partir da breve explicação de três dos quatro tipos de jurisdição extraterritorial na seção anterior, o Reino da Bélgica não preenche nenhum dos requisitos expostos para invocar o di- reito legítimo de julgar o processo - já que o réu e tampouco as vítimas não são de nacionalidade belga e o crime não representa ameaça direta ao país ou exerceu qualquer outro tipo de influência sobre ele. Há, entretanto, uma última categoria que não foi explanada e que o será a partir de agora, que é a que dá nome a este subcapítulo. A jurisdição universal é um princípio que diz respeito à permissão, ao poder que o país tem de punir certos crimes, tendo eles sido cometidos por quem quer que seja, de qualquer que seja a nacio- nalidade, com ou sem alguma conexão com o território, os cidadãos ou o interesse nacional desse país (MALANCZUK, 1997, p. 123). É mais comumente aceito internacionalmente que, ao menos de maneira implícita, essa doutrina tenha ganhado força no final da Segunda Guerra Mundial (MALANCZUK, 1997, p. 113). É equivocado, entretanto, imaginá-la como um dispositivo legal bem definido e com as suas linhas rigorosamente tra- çadas, já que esse é um princípio claramente pertencente ao direito costumeiro, não havendo um tratado multilateral assinado por todos os países abordando detalhes sobre o que todos consideram ser a juris- dição universal (KHOJASTEH, 2007). Mais largamente aceitas, há duas categorias de crimes que estão sujeitas a tal jurisdição pelos países que demonstram interesse em exercê-la, que são a dos crimes de guerra 14 e a da pirataria (SHAW, 14 Uma definição de Crimes de Guerra pode ser encontrada no artigo 8 do Estatuto de Roma (formador do Tribunal Pe- nal internacional), que contém, dentre outros vários exemplos: tortura e tratamento desumano, inclusos exper- 77 CIJ 2008, p. 668). Com a tendência internacional de maior atenção à proteção aos direitos humanos e ao combate à impunidade - de, por exemplo, estadistas que cometem violações a direitos humanos em es- tados de exceção 15 -, porém, o princípio tem ganhado força e sua abrangência vem se tornando maior. Malcolm Shaw reconhece que outros crimes também caminham para a submissão à jurisdição universal, tais como: crimes contra a paz 16 e crimes contra a humanidade 17 . Há, também, outras definições como, por exemplo, a da Aliança das Organizações Não Governamentais Americanas para o Tribunal Penal Inter- nacional, que incluem, ainda, os crimes de tortura, genocídio e tráfico de escravos (KHOJASTEH, 2007). É importante salientar, mais uma vez, que não há um conceito certo ou errado sobre os assuntos relativos à jurisdição universal, já que, como costuma acontecer com tópicos que não estão previstos legalmente de forma escrita e explícita, as características do caso concreto, juntamente com a interpre- tação e a argumentação das partes, podem ser os fatores decisivos. 3.1.3. A BÉLGICA E A JURISDIÇÃO UNIVERSAL Como foi bastante explorado no estudo do nosso caso, a Bélgica, fazendo uso de uma doutrina bastante aceita, porém não unânime, incorporou o princípio da jurisdição universal ao seu ordenamento jurídico 18 de forma bastante peculiar. Esse trabalho de elaboração de um estatuto que regule a Jurisdição Universal dentro do seu ordenamento - sabendo que, segundo as leis belgas, toda a conduta legal de caráter internacional que for seguida internamente deve ser incorporada à legislação doméstica 19 - é de longa data. Os primeiros esforços começaram ainda na década de 1950, após as Convenções de Gene- bra de 1949, e culminaram com a promulgação da primeira lei sobre o assunto em 16 de junho de 1993 (BAKER, 2009, p. 152). La loi du 16 Juin, como ela é chamada no seu país, relativa à repressão de infrações graves às Con- venções Internacionais de Genebra de 12 de agosto de 1949 e aos Protocolos I e II de 8 de junho de 1977, tinha, inicialmente, em seu texto, elementos que davam ao Reino belga condições de poder processar e julgar crimes de guerra, não importando onde, por quem ou contra quem eles haviam sido cometidos. Essa mesma lei foi estendida, em 10 de fevereiro de 1999, adicionando os crimes de genocídio e crimes contra a humanidade em seu escopo, além de não mais reconhecer a imunidade diplomática a chefes e ministros de Estado. Por mais fora do comum que pudesse parecer essa permissão - de processar um presidente de outro país, por exemplo -, quando questionada acerca desse assunto, a corte belga com- petente para dar esse posicionamento afirmou que era, de fato, possível que esses oficiais fossem alvo de julgamento desde que já tivessem deixado a função. Logo, só estariam imunes a essa jurisdição os portadores de imunidade diplomática no exercício de sua função. A decisão belga foi baseada no Direito Costumeiro Internacional (BAKER, 2009, p. 154). 3.2. IMUNIDADE DO MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES Anteriormente, vimos situações em que um Estado tem a competência – ou seja, o poder de ju- risdição – para apreciar um caso. Nesse capítulo, trilharemos o caminho reverso: abordaremos a peculiar situação em que, devido a determinado fator, um país não possui o poder de jurisdição que, em situações ordinárias, deteria. Especificamente, no nosso caso, o fator impeditivo de jurisdição a ser analisado é a imentos biológicos; sérias injúrias mentais ou físicas; ataques massivos a populações civis não diretamente envolvidas nas hostilidades da guerra; e ataques a materiais e infraestrutura de missões de ajuda humanitária. Estes se enquadram como sendo sérias violações à Convenção de Genebra de 1949 e aos costumes internacionais relativos ao Direito da Guerra (CENTRO DE INFORMAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O BRASIL, 2001). 15 Segundo definição da Encyclopaedia Universalis, estado de exceção é aquele no qual se encontra um país que está frente a um grave e excepcional perigo, que não existe em tempos normais - como, por exemplo, a guerra ou uma invasão estrangeira em seu território. Com ele, a nação tem que abrir mão das regras normais de conduta (leis e dis- positivos legais, inclusive) que regem a vida civil, em prol da segurança e da defesa da soberania. É o oposto a Estado de Direito (ENCICLOPAEDIA UNIVERSALIS, 2014). 16 Sinônimo de Crime de Agressão que, segundo definição dada pela Anistia Internacional - formulada pela Assembleia Geral das Nações Unidas -, é “o emprego de força armada por um Estado contra soberania, a integridade territorial ou a independência política de um outro Estado, de maneira incompatível com a Carta da ONU” (ANISTIA INTERNA- CIONAL, 2012, tradução e grifo nossos). 17 Definição de Crimes Contra a Humanidade pode ser encontrada no artigo 7 do Estatuto de Roma. Estes são uma série de crimes cometidos como parte de uma ação sistemática contra a população civil, como, por exemplo, o assas- sinato, a escravização, a deportação ou a transferência forçada, dentre outros (CINUB, 2001). 18 Conjunto de leis e outros dispositivos jurídicos de um país. 19 O adjetivo “doméstico” quer dizer relativo ao país internamente. Ex: o contrário de voos internacionais são voos domésticos (ou nacionais). 78 UFRGSMUNDI instituição da imunidade do Ministro das Relações Exteriores 20 , uma das razões pelas quais a República Democrática do Congo recorreu à Corte Internacional de Justiça após o mandado de prisão expedido pelo juiz belga Damien Vandermeersch (CIJ, 2000, p. 3). A imunidade de jurisdição 21 , seja aquela exercida por Estados soberanos ou a exercida por diplo- matas ou outros representantes estatais, tem como fundamento o princípio de direito internacional do respeito à integridade territorial e à independência política entre os Estados (SHAW, 2008, p. 697), não existindo, entre esses, relação de autoridade, mas sim de igualdade. A imunidade pressupõe que as cortes domésticas de um Estado não podem julgar os atos de outros Estados soberanos (BROWNLIE, 2008, p. 323-325). Por uma interpretação extensiva, tal restrição de jurisdição também se aplica aos representan- tes desses Estados no desempenho das relações internacionais 22 (CASSESE, 2005, p. 128). Ressalta-se, logo, que os oficiais de Estado são beneficiários da imunidade que é conferida ao Estado (COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2011, parágrafo 15). O Estado, por seu turno, ao ser o verdadeiro titular da imunidade de seus oficiais, pode suspendê-la se julgar necessário, o que eventualmente permite que uma corte estrangeira aprecie casos relacionados a esses oficiais. A imunidade do Estado soberano e dos agentes ligados a ele sofreu alterações no decorrer de his- tória. O desenvolvimento das relações internacionais, em especial do comércio internacional, contribuiu para que surgissem diversas correntes que oscilaram entre si no tocante aos limites impostos à institui- ção da imunidade de jurisdição, existindo, assim, desde teorias mais extremistas de defesa absoluta das imunidades até teorias que defendem a limitação de certas imunidades – especialmente a imunidade do Estado (SHAW, 2008, p. 701-8). Atraindo nossa atenção à imunidade diplomática, pode-se dizer que esta foi de fundamental im- portância para o desenvolvimento do direito diplomático 23 . O desenvolvimento deste ramo do direito internacional – não completamente codificado, possuindo em muitos aspectos o costume como fonte geradora de direito (WICKREMASINGHE, 2003, p. 388) – teve seu marco com a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, adotada em 1961 na Conferência das Nações Unidas sobre Intercâmbio e Imunidades Diplomáticas. Diplomatas sempre necessitaram, no decorrer da história, de imunidades e privilégios para a efetiva desenvoltura de suas funções nos países aos quais são enviados (MALANCZUK, 1997, p. 124). Sobre o tema, expõe Chanaka Wickremasinghe: A cooperação internacional, de onde fluem benefícios políticos, econômicos, sociais e culturais, é inteiramente dependente de um efetivo processo de comunicação [expres- so nas relações diplomáticas]. É essencial, por isso, que o direito internacional proteja e facilite esse processo de comunicação, e é para esse fim que o direito diplomático moderno procura garantir uma balança apropriada entre o país que envia e o país que recebe uma missão diplomática. (WICKREMASINGHE, 2003, p. 389, tradução nossa). Apesar de todo o privilégio atribuído aos agentes diplomáticos, a Convenção de Viena deixa claro, em seu preâmbulo, que “a finalidade de tais privilégios e imunidades não é beneficiar indivíduos [em seus interesses privados], mas, sim, a de garantir o eficaz desempenho das funções das Missões diplomáticas” (CASA CIVIL, 1965, p.1), ou seja, proporcionar e facilitar o funcionamento da tarefa diplomática do agente, atendendo ao interesse público do Estado que ele representa. A imunidade atribuída a diplomatas e a outros oficiais de Estado possui, para o direito internacio- nal, basicamente duas formas: a imunidade ratione personae, ou imunidade pessoal plena, e a imunidade ratione materiae ou imunidade funcional. A imunidade ratione personae ou imunidade pessoal plena é atribuída a determinados oficiais de Estado em virtude de seu ofício. Esse tipo de imunidade geralmente cobre atos tanto oficiais quanto da vida privada do seu detentor, visto que a interferência nas funções oficiais do indivíduo pode se dar por atos de ambas as naturezas – oficial e privada (WICKREMASINGHE, 2003, p. 389). A imunidade plena, por esse motivo, é privilégio geralmente atribuído aos mais altos escalões de oficiais de Estado, como os Chefes de Estado e de Governo, o Ministro das Relações Exteriores e os agentes diplomáticos 24 . Seu 20 O Ministério das Relações Exteriores de um país é a ponte entre este e a comunidade internacional. É o principal meio pelo qual um Estado conduz suas relações diplomáticas (WATTS, 1994, p. 98). 21 A imunidade pode ser entendida como o direito de uma entidade, indivíduo ou propriedade de não estar sujeito a uma determinada jurisdição (COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2008, p. 27-8). 22 Logo, sob uma primeira análise, uma entidade que não está ligada ao aparelho estatal, em termos gerais, não goza de imunidade (SHAW, 2008, p. 728). 23 “O direito diplomático é o direito por meio do qual as relações internacionais são conduzidas e os processos de co- municação, no nível internacional público, são facilitados” (WICKREMASINGHE, 2003, p. 388, tradução nossa). 24 Chefes de governo e ministros das relações exteriores, por desempenharem funções semelhantes às do chefe de Estado de um país no que tange às relações internacionais, gozam de inviolabilidade pessoal e de imunidade da ju- risdição criminal – aspectos que caracterizam a imunidade ratione personae a qual tais agentes detêm. O Ministro das Relações Exteriores tem imunidade jurisdicional criminal em qualquer Estado, não estando limitado à imunidade 79 CIJ fundamento repousa na importância das funções exercidas por essas pessoas. O Ministro das Relações Exteriores, cargo analisado no nosso caso, por exemplo, é um dos mais importantes representantes de um Estado no cenário internacional, sendo responsável pela conclusão de tratados em nome do Estado que representa (WICKREMASINGHE, 2003, p. 400) – função que compartilha, nos termos da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (artigo 7º, parágrafo 2º, alínea “a”), apenas com os chefes de Estado e de governo e cujo desempenho é fundamental para a manutenção das relações internacionais de qualquer país. A imunidade ratione materiae ou funcional, por sua vez, é mais restrita e ligada apenas aos atos oficiais do agente – seus atos privados não estão sujeitas a esta imunidade. Em detrimento de estar ligada à condição do indivíduo, tal imunidade é atribuída a determinados oficiais de Estado cujas funções são de menor importância para a manutenção das relações internacionais (WICKREMASINGHE, 2003, p. 390). Em resumo: enquanto a imunidade ratione personae tem seu foco no status do indivíduo que dela é detentor, indiferentemente da natureza – oficial ou privada – dos atos realizados, a imunidade ratione materiae preocupa-se com o ato sem si – este deve ser oficial -, não estando atrelada à pessoa do agente estatal e, portanto, não o protegendo de atos privados. Vale lembrar que, ao contrário da imunidade diplomática, cujas garantias estão na Convenção de Viena, as imunidades de Chefes de Estado e de Governo e de Ministros das Relações Exteriores ainda dependem do direito internacional costumeiro (WATTS, 1994, p. 36) para serem evocadas – embora a Co- missão de Direito Internacional tenha desenvolvido trabalhos no sentido de codificá-las (torná-las normas escritas) (AKANDE, 2013). Exposta essa dificuldade adicional, os juízes da Corte Internacional de Justiça devem apurar, no presente caso do Mandado de Prisão, se existe uma norma costumeira que indique a imunidade ratione personae do Ministro das Relações Exteriores (dadas as acusações, contra o Sr. Ministro Yerodia Ndom- basi, de incitação a crimes previstos na Convenção de Genebra de 1949 e em seus Protocolos adicionais). Para a decisão, deve-se levar em conta que não existem casos anteriores que abordem a questão da imu- nidade pessoal plena do Ministro das Relações Exteriores. A jurisprudência pertinente, por isso, é referente às normas costumeiras de imunidade ratione personae atribuídas a chefes de Estado. Assim, o caso mais emblemático talvez seja o caso Kadhafi, da Cour de Casssation francesa. Nele, o líder líbio Muammar Ka- dhafi foi denunciado pelo crime de homicídio, como cúmplice do bombardeio de uma aeronave em 1989, que matou 156 passageiros, incluindo 15 cidadãos franceses. A corte francesa, pelo status de Chefe de Estado de Kadhafi, acabou por decidir, em 2001, que este gozava de imunidade perante a jurisdição penal estrangeira (ZAPPALÀ, 2001, p. 595-6). Apesar da comparação entre os dois casos, é importante salientar que muitos juristas defendem que a analogia não é uma base confiável para fundamentar decisões judi- ciais e criar normas jurídicas (WATTS, 1994, p. 40). Portanto, guardadas as semelhanças existentes entre as figuras do Chefe de Estado e do Ministro das Relações Exteriores, suas diferenças devem ser levadas em conta para evitar que a analogia seja um método equivocado de solução de conflitos. A decisão da Corte deve ser fundamentada na necessidade funcional do cargo do Ministro das Relações Exteriores e, por isso, devem ser elaborados critérios que estabeleçam a legalidade ou não de determinada medida processual penal dirigida contra um oficial de Estado, para que essa medida não impeça ou atrapalhe o exercício de suas funções. Ademais, é essencial analisar se o objetivo da imunidade ratione personae, na hipótese desta ser atribuída ao Ministro, não está sendo ampliado de maneira abusiva, abrindo espaço para que excessivas violações (de direitos humanos, por exemplo, como no caso estuda- do) estejam imunes de punição. REFERÊNCIAS AKANDE, Dapo. 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A disputa judicial do tópico que será debatido nessa edição da Corte Internacional de Justiça das Nações Unidas é motivada pelo Mandado de Prisão (que dá nome ao caso, em inglês, chamado de Arrest Warrant), expedido por um juiz belga, contra o ex-Ministro das Relações Exteriores da República Democrática do Congo (RDC), o Senhor Abdulaye Yerodia Ndombasi. A acusação feita pelo juiz foi a de que o Senhor Abdulaye, quando discursou para a população congolesa em 1998, teria incitado ódio racial contra a etnia tutsi, o que configuraria um crime de violação dos direitos humanos. O conflito se deu em torno, principalmente, de duas questões: 1) a legitimidade da Bélgica em invocar o Princípio da Jurisdição Universal – baseado em uma lei doméstica, conhecida como Lei de 18 de junho de 1993 – e 2) a suposta não consideração, por parte da Bélgica, da imunidade diplomática do réu – o Senhor Abdulaye -, uma vez que ele era Ministro das Relações Exteriores da RDC quando teria cometido o crime alegado pelo juiz belga. 82 UFRGSMUNDI ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS HISTÓRICA (1974) A Crise do Petróleo de 1973 e seus Impactos Internacionais Bruna Lersch 1 Gabriela da Costa 2 Guilherme Lara 3 João Arthur Reis 4 João Gabriel Burmann 5 Patrícia Machry 6 INTRODUÇÃO A Assembleia Geral é o maior órgão da Organização das Nações Unidas (ONU). Nela participam todos os membros da organização, inclusive os observadores e organizações convidadas. Por ser o maior órgão da ONU, as pautas discutidas em suas reuniões são bastante variadas, pois são impostas por um grande número de países, que possuem condições diferentes de poder econômico e político no mundo. As decisões desse comitê não possuem caráter vinculante, ou seja, não são de cumprimento obrigatório. Contudo, o fato de ser uma decisão da totalidade dos países da ONU torna as decisões da Assembleia Geral moralmente vinculantes: aqueles países que não as cumprem podem ser vistos como desrespeita- dores das regras feitas elaboradas pela maioria. Esse comitê de Assembleia Geral aqui simulado será histórico, no sentido de que ocorrerá no passado. Será simulada uma sessão ordinária do órgão do ano de 1974, mais especificamente do dia 30 de setembro de 1974, data da entrega das credenciais de participação dos delegados dos países. Nessa simulação está prevista a participação de 40 representações de país, previamente selecionados pelos or- ganizadores do comitê. O fato de ser um comitê histórico, no passado, significa que os delegados devem tomar cuidado com seu comportamento, seus discursos e a utilização dos fatos históricos, que devem se restringir até a data da simulação. Não serão permitidas o uso de informações posteriores a essa data, que possam modificar os rumos do debate, sob a possibilidade de intervenção da mesa para que isso não aconteça. 1. HISTÓRICO 1.1. A BALANÇA DE PODER NO ORIENTE MÉDIO O Oriente Médio é o território onde se encontram três continentes: a África, a Ásia e a Europa. É a ligação da porção leste da Ásia com a bacia do Mediterrâneo, conectando assim o ocidente e oriente 1 Graduanda do 5º semestre de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 Graduanda do 3º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Graduando do 3º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Graduando do 7º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 5 Graduando do 7º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 6 Graduanda do 5º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.82-104 83 AGH 74 do mundo. Por este motivo, é desde muito tempo uma região por onde passam inúmeras rotas de co- mércio que levam produtos de todas as partes do mundo aos portos da Europa, e vice-versa. Em virtude desta posição geográfica estratégica e da presença de recursos energéticos como petróleo e gás natural, o Oriente Médio foi, principalmente a partir do século XIX, objeto de cobiça das potências 7 ocidentais. Além disso, a existência de expressivas divergências étnicas, culturais e religiosas na região fez dela um local de contínua tensão e conflito ao longo dos últimos dois séculos. A ambição dos países ocidentais e seus desejos de influência direta neste local devido a seus recursos, somados à ascensão de uma série de movimentos nacionalistas dos povos árabes e judeus, fez o equilíbrio de poder 8 no Oriente Médio alte- rar-se inúmeras vezes, estando ainda hoje sensível a todas essas variáveis. A polêmica criação do Estado 9 de Israel é um ponto crítico na compreensão desta balança, bem como as consequências causadas pelo seu estabelecimento. 1.1.1. CRIAÇÃO DO ESTADO DE ISRAEL: PROBLEMAS COM ÁRABES, PALESTINOS, SÍRIA E LÍBANO A criação do Estado de Israel relaciona-se diretamente às origens do sionismo político 10 e do con- flito entre árabes e judeus. Para entender esse conflito, é importante saber quem exatamente são estes povos. Os árabes são os povos provenientes da península arábica e que falam a língua árabe. Os árabes palestinos são, mais especificamente, aqueles que têm suas origens na região da Palestina. A maioria dos povos árabes é muçulmana, ou seja, é seguidora da religião islâmica, uma religião fundada por Maomé no século VII. Contudo, há ali também árabes cristãos e judeus, sendo estes últimos os seguidores da religião judaica. Fonte: YOSHIDA, Mario. ATLAS Geográfico Escolar. Rio de Janeiro: IBGE, 2007 Ainda no início da era cristã 11 , a região que corresponde ao Estado de Israel foi conquistada pelos romanos, e grande parte dos judeus que lá viviam foi expulsa (MOSHE, 1997). Eles espalharam-se pela Europa, onde passaram a viver entre cristãos, e por outras regiões do Oriente Médio e do norte da África, vivendo entre os árabes. A região ficou sob o controle dos romanos até 1516, quando foi conquistada pelo 7 Potências são países que conseguem exercer influência em todos os demais, expandindo seu poder em escala glob- al. São considerados importantes e poderosos em virtude de suas grandes forças militares, econômicas e políticas. Costumam ter suas opiniões ouvidas por outros países e tem a capacidade e o poder de intervir militarmente e investir na economia de praticamente qualquer lugar. 8 O equilíbrio de poder se verifica quando as potências possuem capacidades militares similares, de forma que nenhu- ma seja mais poderosa ou possa sobrepor-se a outra (KEGLEY & WITTKOPF, 2005). 9 “Estado” é um país dotado de estrutura própria e instituições públicas (governos, forças armadas, administração) que o controlam (HOUAISS, 2004). Na ciência política existem diversas interpretações do conceito, mas a utilizada aqui entende o Estado como um território delimitado por fronteiras, composto de população e um governo, cuja principal função é prover segurança para a população e manter o controle do território. 10 Movimento dos judeus que defende a criação de um Estado judeu na “terra de Israel” (MOTYL, 2000). 11 Era Cristã ou Era Comum é o período que se inicia a partir do nascimento de Jesus, considerado o primeiro ano do nosso calendário (BBC, 2009). 84 UFRGSMUNDI Império Turco-Otomano. Os turcos estabeleceram uma dominação feudal na região que foi responsável pelo empobrecimento da civilização 12 que, até então, era extremamente desenvolvida e próspera. Desde a dominação romana, os judeus espalhados pelo mundo sofreram fortes ondas de perse- guição. Em meados do século XIX, foram vítimas de massacres por parte da Rússia (quando esta ainda era governada por czares), que, em conjunto com outras nações da Europa Oriental, contribuiu para espalhar o anti-semitismo 13 . A situação foi ainda mais agravada com a ascensão do nazismo na Alemanha no pe- ríodo entre as duas guerras mundiais, resultando nas perseguições de Adolf Hitler aos judeus europeus. Milhões deles foram vítimas do genocídio 14 que ficou conhecido como Holocausto. Assim, desde o fim do século XIX, o sionismo crescia como uma forma de reação judaica a essa discriminação. A partir de meados do século XIX, as potências europeias começaram a voltar seus interesses para essa região devido a sua grande importância geopolítica 15 , aproximando-se dos cristãos e dos poucos judeus que permaneceram na região para estabelecerem sua influência. Em 1917, a Inglaterra promove a Declaração Balfour, que prometia a criação de um lar para os judeus na Palestina. Tal Declaração permitiu uma aproximação com as comunidades judaicas, algo que os ingleses desejavam para obter apoio dos judeus contra os turcos. Ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, a Inglaterra derrota os turcos e divide a região com seus aliados franceses: sob o domínio francês ficaram a Síria e o Líbano, deixando a Palestina, a Transjordânia e o Iraque sob o controle britânico (KRAMER, 2008). Essa repartição do territó- rio entre Inglaterra e França foi realizada secretamente, através do Acordo de Sykes Picot 16 . Fonte: BBC, 2001. Disponível em: <http://bit.ly/imagem2agh74>. Último acesso: 15/05/14 12 A região era dotada de grandes rotas comerciais que ligavam o Ocidente ao Oriente por terra. Através delas, circu- lavam os produtos que geravam riqueza para a civilização. Com a invasão dos turcos, o comércio foi desviado para os oceanos, e a infraestrutura de estradas existente por terra foi abandonada (VISENTINI, 2012). 13 Preconceito ou ódio direcionado a judeus por motivos étnicos, religiosos e culturais. 14 “Genocídio”, segundo o dicionário Houaiss (2004), é um crime contra a humanidade, um assassinato em massa, que extermina uma comunidade ou grupo étnico, racial ou religioso. Na Segunda Guerra Mundial, cerca de seis milhões de judeus foram assassinados, em um extermínio liderado pelos alemães nazistas no governo de Adolf Hitler. 15 Por ser, como mencionado anteriormente, a região onde se encontram a Europa, a África e a Ásia, e também por ser rica em petróleo e recursos naturais. 16 O Acordo deixava a Palestina sob administração internacional, não sendo área de influência especificamente britânica e nem francesa. 85 AGH 74 Desde então, baseados na Declaração de Balfour, um enorme número de judeus passou a migrar de volta para a região palestina, comprando terras e instalando fazendas coletivas militarmente fortifica- das, chamadas de Kibbutz. Os ingleses, estabelecidos no Oriente Médio em virtude da divisão de Sykes Picot, permitiam que essas massas de judeus migrassem de volta à Palestina. Esses fatos causaram res- sentimento entre os árabes palestinos que habitavam a região desde a expulsão dos judeus pelos roma- nos, levando os judeus a estabeleceram organizações armadas para se protegerem. No final da Primeira Guerra Mundial, a Palestina contava com aproximadamente 60 mil judeus e, ao final da Segunda Guerra Mundial, com aproximadamente 400 mil. Os judeus desejavam o estabelecimento de um lar judeu na região, ao passo que os árabes desejavam a retirada dos britânicos (VISENTINI, 2012). Em 1943, no Oriente Médio, a Síria e o Líbano tornavam-se independentes da França e a Trans- jordânia livrava-se também da dominação britânica. Nesta onda de independências, começa a emergir um nacionalismo árabe, e, em 1945, é criada a Liga dos Estados Árabes/ Liga Árabe, formada por Arábia Saudita, Egito, Iêmen, Iraque, Líbano, Síria e Transjordânia. A Liga era, teoricamente, uma tentativa de dar maior expressão política às nações árabes, criando um espaço para se discutir problemas econômicos e políticos destes países (THE NEW COLUMBIA ENCYLOPEDIA, 2013). Contudo, na prática, quem partici- pava eram as elites conservadoras destes países, que mantinham seus vínculos com a Inglaterra para as- segurarem apoio desta internacionalmente, no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, e regionalmente, devido aos problemas da questão judaica (VISENTINI, 2012). Fonte: BBC, 2001 Disponível em <http://bit.ly/imagem3agh74>. Acesso em 15/05/14 Em 1942, através de uma declaração conhecida como “Programa Biltmore” 17 , a Palestina foi de- finida como o local onde seria estabelecido o Estado judeu, acentuando o conflito com os árabes da região - já existente desde a Declaração Balfour (FELDBERG, 2008). O Holocausto, contudo, gerou uma pressão psicológica que tornou esta uma questão de urgência. Assim, em 1947, a Organização das Na- ções Unidas (ONU) elabora um plano de partilha, segundo o qual o território palestino compreenderia um Estado judeu e outro Estado árabe palestino, com a cidade de Jerusalém sendo internacionalizada por ser considerada sagrada pra muçulmanos, cristãos e judeus. Os judeus aceitaram o plano, porém os árabes opuseram-se fortemente à criação do Estado judeu na região. Nesse contexto, os britânicos retiram-se da região, pois manter sua dominação na Palestina estava sendo muito custoso em virtude da situação ex- tremamente conflituosa que criaram (FELDBERG, 2008). Com a retirada britânica, os judeus proclamam, 17 Resultado da Conferência de Biltmore, em Nova Iorque. 86 UFRGSMUNDI em 14 de maio de 1948, o Estado de Israel, sem o consentimento dos países vizinhos. Estes consideravam a partilha uma violação ao direito de cada povo de decidir seu destino (ou “direito de autodeterminação dos povos”, que consta na Carta das Nações Unidas), e consideravam negativa a segregação do país para dar vantagens aos judeus. Além de todos os ressentimentos existentes entre árabes e judeus desde o início das migrações judaicas de volta para a Palestina, estes países também viam na criação de Israel um meio através do qual os países ocidentais imperialistas - interessados no controle do petróleo e em garantir seus interesses econômicos - penetrariam no Oriente Médio. Assim, no dia seguinte, a Liga Árabe declara guerra contra o novo Estado. Porém, as forças is- raelenses eram superiores em treinamento e equipamento e, entre dezembro de 1948 e janeiro de 1949, Israel já conquistara 80% da Palestina, o que gerou pressão para que um cessar-fogo fosse rapidamente assinado (VISENTINI, 2012). Uma série de acordos de armistício entre Israel e os demais países - Egi- to, Líbano, Síria e Transjordânia – foi realizada com supervisão das Nações Unidas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1949a; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1949b; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1949c; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1949d). Os palestinos se viram sem seu Estado proposto pela ONU e passam então a constituir uma enor- me massa de refugiados em países vizinhos. O Estado de Israel foi imediatamente reconhecido pelos Estados Unidos e pela União Soviética, e os palestinos começaram a organizar-se em grupos anti-impe- rialistas e antisionistas, fundando, em 1964, a Organização para a Libertação Palestina (OLP). A Organi- zação é a principal representação dos povos palestinos, e defende a criação de seu Estado. É favorável à luta armada para atingir esse fim, e também se posiciona fortemente contra o sionismo. Muitos países, como os Estados Unidos, consideram a OLP uma organização terrorista e se opõe à sua existência, não a reconhecendo nos fóruns de discussão internacional. 1.1.2. GUERRA DOS SEIS DIAS Após a vitória israelense na chamada Guerra do Estado de Israel, verificou-se uma eclosão de revo- luções com um viés socialista e anti-imperialista na região. Na década de 1950, Tunísia, Marrocos e Argélia tornaram-se independentes de sua metrópole europeia, a França. No Egito, um golpe militar transformou o país em uma República sob a liderança do oficial Gamal Abdel Nasser, que se tornou extremamente popular graças a seus discursos anticolonialistas, consolidando-se como a mais importante liderança árabe. Essa revolução desencadeou um processo de radicalização sentido não só no Egito, mas em todo o mundo árabe (HALLIDAY, 2005). Juntamente com esses países, outros como a Síria, a Líbia, o Iêmen e o Omã simpatizavam e cooperavam com a URSS, que os abastecia com material bélico e aumentava assim sua influência na região (VISENTINI, 2012). Este aumento de influência preocupava aos Estados Unidos, que iria, assim, fortalecer cada vez mais seus laços com Israel, como forma de aumentar sua atuação na região e contrapor-se à influência soviética 18 . Fonte: Elaboração própria. 2014. Com base em: <http://bit.ly/imagem4agh74>. 18 Terminada a Segunda Guerra Mundial, o mundo passou a ser marcado pela Guerra Fria, disputa por poder e influên- cia entre os Estados Unidos (maior símbolo do capitalismo e potência do Ocidente) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (o mais significativo expoente do comunismo e a maior potência do Oriente). Assim, ambos disputavam por aliados e por zonas de influência em todas as partes do mundo. 87 AGH 74 O regime de Nasser preocupava enormemente os países do Ocidente - em especial França e In- glaterra, que tinham ânsias de recuperar sua posição influente no Oriente Médio -, devido a seu caráter anticolonialista e anti-imperialista. A aproximação dos países da região com o comunismo também preo- cupava, inclusive a Israel, pois uma relação forte com a União Soviética resultaria, para os árabes, em uma fonte significativa de armamentos. Todos esses acontecimentos deixaram os israelenses preocupados com sua posição no mundo árabe. Apesar de possuírem uma economia forte e um aparato militar pode- roso, temiam os levantes árabes e desejavam, portanto, manter sua superioridade na região. A situação atingiu seu ponto crítico em 1956, com o episódio que ficou conhecido como Crise do Canal de Suez: em uma tentativa de obter os recursos necessários para as reformas sociais e econômicas prometidas para o Egito, Nasser nacionalizou o Canal de Suez. Construído no século XIX, tem importân- cia porque liga o Mar Vermelho a um porto do Egito no Mar Mediterrâneo, mar que dá acesso a vários países da Europa. Através desse canal, nações europeias como a Inglaterra e a França podiam ter acesso ao comércio com o Oriente. Com a nacionalização, o porto israelense no Golfo de Áqaba (que acessa o Mar Vermelho através do Estreito de Tiran) ficaria inutilizado, visto que o acesso ao Mediterrâneo estaria bloqueado. Ingleses e franceses, que detinham o controle do canal antes da nacionalização, alinharam-se a Israel, pois viam nisto uma forma de enfrentar os movimentos árabes e recuperar sua influência na re- gião. Juntos, os três países atacaram o canal e derrotaram o exército egípcio. Suas ações foram, contudo, barradas por um ultimato soviético que exigiu a retirada das tropas do Egito, situação que consolidou a influência e presença da União Soviética no Oriente Médio, sendo reforçada posteriormente através dos acordos de cooperação assinados com o Egito, e também com a Síria e o Iraque. Fonte: TexasGOPVote.com. Sem Data. Disponível em: <http://bit.ly/image- m5agh74>. Acesso em 11/05/14. O período que se seguiu à crise de Suez caracterizou-se pelo acirramento das tensões entre árabes e judeus. Cresciam os movimentos nacionalistas e a força dos movimentos palestinos. Em 1967, Nasser proíbe navios israelenses de acessarem o Golfo de Ákaba, através do fechamento do Estreito de Tiran (acesso de Israel ao Mar Vermelho). Duas semanas depois, em resposta motivada por toda a situação que se arrastava desde a Guerra de Suez, Israel ataca o Egito, a Síria e a Jordânia em um conflito que ficou conhecido como Guerra dos Seis Dias, devido a sua curtíssima duração. A vitória israelense é rápida e lhe rende a anexação de territórios com enorme importância estratégica: do Egito, conquista a Península do Sinai; da Jordânia, a Cisjordânia; e da Síria, as Colinas de Golã (VISENTINI, 2012). A ONU exigiu que Israel retirasse suas forças dos territórios ocupados, ordem que não foi acatada (UN, 1967). Após o ocorrido, todos os países socialistas do Oriente Médio romperam relações diplomáticas 88 UFRGSMUNDI com Israel, que, por sua vez, encontrava-se em uma posição mais confortável: o mundo árabe estava derrotado, os palestinos começavam a fugir e o alinhamento com as potências ocidentais fortificava-se (HALLIDAY, 2005). Uma enorme massa de judeus que vivia em outros países árabes migrou para Israel, agora consolidada como a nação militarmente superior da região, enquanto os países vizinhos recebe- ram um contingente ainda maior de refugiados palestinos, já que no Estado de Israel sofriam ainda mais represálias. Os países árabes recusaram assinar acordos de paz com Israel e, em 1970, reconheceram o direito palestino de criar um Estado nacional (VISENTINI, 2012). Fonte: Elaboração própria. 2014. Com base em MUNDO VES- TIBULAR, 2008. Original disponível em: <http://bit.ly/image- m6agh74>. Acesso em 11/05/14 1.2. A GUERRA DO YOM KIPPUR 1.2.1. O CONFLITO ISRAEL X EGITO E SÍRIA Em 6 de outubro de 1973, uma coalizão árabe (composta por Iraque, Jordânia, Argélia, Marrocos e Tunísia, liderados por Egito e Síria e recebendo apoio de Cuba), aproveitando-se do feriado judaico de Yom Kippur (dia do perdão), iniciaram uma ofensiva contra Israel, ainda em resposta à Guerra dos Seis Dias. O ataque foi motivado por uma tentativa de recuperar os territórios perdidos para Israel na guerra de 1967 e pela recusa de Israel em reconhecer os direitos de soberania e autodeterminação do povo pa- lestino (HUSSEIN, 1977), bem como por uma tentativa dos países árabes de expandir seu prestígio e poder de barganha. Na primeira semana de guerra (a quarta guerra árabe-israelense), devido ao fator surpresa do ata- que, Egito e Síria tiveram êxito em suas investidas. Contudo, Israel possuía um poder militar superior, desenvolvido com apoio militar dos Estados Unidos, que passara a ajudar os israelenses através de uma ponte aérea durante a guerra. Assim, por conta desses dois fatores, ainda na segunda semana de confron- to, Israel pode recuperar suas forças na ofensiva militar, conseguindo fazer a Síria retroceder nas Colinas de Golã. A partir de então, Israel manteve o controle da guerra que, em 26 de outubro, terminou com a 89 AGH 74 sua vitória, com o recuo egípcio e sírio e com o retorno das fronteiras estabelecidas em 1967. Com a Guerra de Yom Kippur e seus desdobramentos, os países árabes alteraram a configuração regional corrente em 1967 e provaram para o mundo não serem atores políticos desprezíveis, bem como mostraram que as potências ocidentais teriam que cumprir algumas de suas exigências (HUSSEIN, 1977). Em suma, ao fim dessa guerra não houve grandes vencedores, mas uma das repercussões desse conflito foi o fim do mito de invencibilidade israelense, pois ao sofrer o ataque surpresa os israelenses tiveram grandes perdas humanas que abalaram a própria autoconfiança de Israel. Além disso, é inegável que os israelenses só tiveram condições de reagir no momento em que os Estados Unidos interviram, concluin- do-se que foi somente por conta desse apoio norte-americano que Israel conseguiu enfrentar a guerra (GRINBERG, 2002). 1.2.2. PARTICIPAÇÃO EXTERNA NO CONFLITO: APOIO DOS EUA, DA URSS E DE PAÍSES DA REGIÃO Em 1973, a conjuntura internacional da Guerra Fria era de novas disputas por esferas de influên- cia 19 . Potências médias como Japão e Alemanha buscavam ampliar seus domínios para conquistar um grau de influência semelhante à influência exercida pelas grandes potências. Desse modo, eram favorá- veis a um equilíbrio baseado em um mundo dividido em 5 blocos (EUA, URSS, China, Japão e Alemanha). Já os EUA buscavam a coexistência pacífica com a União Soviética, pois acreditavam ser mais benéfico para seus interesses um mundo dividido em três blocos (EUA, URSS e China), onde poderiam exercer sua hegemonia. Por fim, a URSS almejava um mundo bipolar, somente divido entre ela e os EUA (MASSIAH, 1977). Esse contexto de busca por esferas de influência tornam essa fase da Guerra Fria especialmente complexa no que se refere a alianças e apoios. Assim sendo, surge a possibilidade de alguns países con- quistarem alguma autonomia, optando por não se alinhar a nenhuma potência. Nesse sentido, a derrota árabe na Guerra dos Seis Dias, que abalou a autoridade moral da região 20 , intensificou a resistência dos países árabes à submissão aos Estados Unidos, que era o grande apoiador de Israel (HUSSEIN, 1977). É assim que a Arábia Saudita deixou de ser um país incondicionalmente defen- sor dos interesses norte-americanos 21 e passou a figurar ainda mais como uma potência regional árabe, mesmo que ainda mantivesse essa sua aliança com os EUA. Já o Egito, enquanto via sua resistência à expansão israelense fracassando e países de sua região aumentando sua magnitude política, a partir de 1967, resolve deixar de tentar ser a única potência regional fazendo frente a Israel no norte da África e no Oriente Médio e passa a promover a aliança entre todos os países árabes contra o Estado judaico. Enquanto isso, a Argélia estava buscando se tornar o centro industrial do Magreb 22 . Para conquistar essa industrialização, o presidente Boumediene apostou em uma economia socialista controlada pelo Estado, em que foram tomadas medidas como a nacionalização da indústria do petróleo em 1971. Em suma, a coligação dos países árabes era dirigida por Egito e Síria, tendo como potências secundárias a Arábia Sau- dita, que atuava como controladora da produção de petróleo, e a Argélia, maior incentivadora do mundo árabe da luta por libertação nacional e contra o colonialismo (HUSSEIN, 1977). Por sua vez, Israel, ciente de seu poderio militar e político, também resolve adotar uma postura de autonomia em relação aos Estados Unidos. Israel torna-se determinada a constituir-se como a potência regional que faz frente a todos seus vizinhos. Assim, acaba transformando-se em uma ameaça ainda maior para os países árabes, pois na medida em que Israel estivesse dependente dos Estados Unidos, este garantiria uma moderação de força para que Israel não desestabilizasse de forma definitiva a região com investidas desproporcionais. 19 Uma esfera de influência é uma área ou região onde um Estado tem um grande prestígio ou exerce uma dominação cultural, econômica, política e/ou militar. Durante a Guerra Fria as duas superpotências (EUA e URSS) praticaram uma con- stante busca por esferas de influência com o intuito de se defender da superpotência inimiga, bem como enfraquecê-la. 20 Quando o Império Otomano teve seu fim, a identidade árabe que era garantida pelas autoridades otomanas se per- deu ao mesmo tempo em que os países do ocidente introduziram nos países árabes parte de seus valores e princípios. Com o sionismo e a Guerra Fria cresceu o desejo da comunidade árabe de retomar sua identidade. Nesse sentido, Israel representava “uma nova versão do colonialismo das grandes potências“ ocidentais (GRINBERG, 2002). Desse modo, a moral da comunidade árabe ficou fragilizada ao ser derrotada por uma das inimigas da sua busca pela iden- tidade árabe. 21 Durante a 2ª Guerra Mundial os EUA haviam protegido os sauditas de ataques dos italianos, de modo que o governo saudita permitiu a construção de base militar norte-americana em seu território. Mas foi no início da Guerra Fria que a relação entre Arábia Saudita e Estados Unidos foi fortalecida. Com o intuito de conter o aumento de influência so- viético no Oriente Médio os EUA deram grande destaque às relações EUA-Arábia Saudita. Contudo, a divergência entre árabes e norte-americanos fez com que a Arábia Saudita se posicionasse, em relação aos conflitos árabe-israelenses, divergentemente dos EUA. Além disso, as relações econômicas entre os dois países, com empresas estadunidenses explorando petróleo no país, datam do período entreguerras, com a criação da California-Arabian Standard Oil Co., em 1933 (posteriormente chamada Aramco). 22 Região Noroeste do continente Africano; é considerada a parte ocidental do mundo árabe. 90 UFRGSMUNDI Os Estados Unidos tentavam manter relações estreitas com Israel devido a sua posição estratégica no Oriente Médio, com muitos americanos vendo a razão para a existência do Estado de Israel somente sob a ótica dos benefícios que isso traz para os EUA. Todavia, não se deve concluir a partir disso que os Estados Unidos ignoraram a importância estratégica dos Estados árabe. Ainda que apoiando a perspectiva israelense do conflito, os EUA mantiveram o fornecimento de equipamentos militares para países árabes aliados, como Líbano e Arábia Saudita 23 . Já a URSS, buscando estender sua esfera de influência e fazer contraposto aos EUA, passa a in- condicionalmente apoiar os países árabes na luta por maior poder regional e reconhecimento do Estado palestino. O apoio da URSS passou a aumentar posteriormente a Guerra dos Seis Dias, quando uma das potências regionais árabes mais influente, o Egito, passou a ser considerado definitivamente pelos norte- -americanos como aliado soviético. 1.3. O AUMENTO DO PREÇO DO PETRÓLEO E A CRISE ECONÔMICA 1.3.1. A ORGANIZAÇÃO ECONÔMICA MUNDIAL PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E A ORGANIZAÇÃO DOS PAÍSES EXPORTADORES DE PETRÓLEO (OPEP) Após a Segunda Guerra Mundial, a economia mundial passou por um processo de reestruturação de suas estruturas. Seguindo a tendência da criação de instituições para a solução de problemas de segu- rança, como a Organização das Nações Unidas (ONU), foram criadas instituições específicas para assun- tos econômicos. Esse conjunto de instituições multilaterais e fóruns de diálogo viriam posteriormente a compor o Sistema ONU 24 . Em 1944, ainda antes do fim da Segunda Guerra Mundial, foi criado o Sistema Bretton Woods, nome dado ao conjunto de acordos econômicos, monetários e financeiros assinados por 44 países para reorganizar a economia mundial. Algumas dessas instituições, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, existem até hoje para auxiliar países com problemas financeiros e pro- mover projetos de desenvolvimento e infraestrutura. A novidade implementada pelos Acordos de Bretton Woods foi a submissão de todos os países signatários a um novo sistema monetário: cada país deveria adotar uma política para sua moeda nacional que mantivesse sua cotação 25 dentro um determinado valor ligado ao dólar. O dólar, por sua vez, estaria ligado ao ouro em uma taxa fixa de equivalência (no caso 35 dólares a cada 31,10 gramas). O significado disso tudo era inédito: todas as moedas do mundo estariam agora relacionadas a um determinado mon- tante em dólar, que estaria ligado a um montante em ouro. Em outras palavras, se reconhecia a proemi- nência da economia estadunidense, concedendo a ela o papel de referência de todas as demais moedas, ou seja, a garantia de que aquela moeda valia o que valia porque estava relacionada ao dólar (VISENTINI, 1992a; VISENTINI, 1992b, p. 16). Esse foi o chamado padrão dólar ouro. Esse padrão monetário não possui muitas diferenças do existente anteriormente, baseado na libra esterlina, a moeda inglesa, com relação ao ouro. Contudo, marcava a mudança de hegemonia 26 , de país com maior capacidade econômica do Reino Unido para os Estados Unidos. Portanto, toda a organização econômica mundial, o valor das moedas e, por conseguinte, o valor das mercadorias estava agora rela- cionado ao dólar ouro. Os Estados Unidos de 1944 até a década de 1970, todavia, não mantiveram sua economia sempre no mesmo ritmo de crescimento. Ao papel de guardião da economia mundial, os EUA somaram o de “po- lícia do mundo”. Percebendo suas capacidades militares e o respaldo internacional que possuía, os EUA adotaram como política principal a contenção da expansão do socialismo soviético e com isso passou a realizar intervenções em várias partes do mundo, aumentando fortemente seus gastos militares. Entre esses conflitos destacam-se e a Guerra da Coreia (1950-1953) e a Guerra do Vietnã (iniciada em 1956, 23 Os EUA precisavam de muitos parceiros na região do Oriente Médio por ela ser uma região estratégica. Dessa forma, eles não se limitaram à aliança com Israel, investiram também em alianças com países árabes, mesmo que esses países, como é o caso da Arábia Saudita, fossem inimigos de Israel. Isso foi uma forma de também garantir que a região, que é composta majoritariamente por países árabes, não acabasse sendo dominada pela URSS, já que ela tinha a “simpatia” de boa parte desses países. 24 Conjunto de mecanismos internacionais de discussão centralizados na estrutura da ONU. 25 Cotação é o valor de um bem ou título com base na moeda de um país. Nesse caso, a cotação significa o preço da moeda de um país com relação a moeda aceita internacionalmente como padrão – ou seja, que todos países usam para comerciarem entre si. A cotação de uma moeda em relação a outra é determinada pela unidade monetária – no Brasil, por exemplo, o Banco Central – com base na quantidade disponível daquela moeda dentro do país (oferta) e na busca por essa moeda (demanda). 26 Hegemonia, como aqui entendemos, significa o país que possui maiores capacidades dentro do sistema internacio- nal de Estados. Três elementos principais definem uma hegemonia: as capacidades militares (ou seja, poder exercer a força sem medo de retaliações), as capacidades econômicas (ou seja, a posse dos meios de pagamento que permita comprar outros países), e a legitimidade de suas ações (ou seja, que suas ações tenham o apoio da maior parte dos outros países). 91 AGH 74 com a entrada estadunidense no conflito em 1961 e se estendendo até o presente ano, 1974, ainda que esteja procurando retirar-se de lá). Enquanto isso, países como o Japão e a Alemanha Ocidental, que apesar de fortemente afetados pela derrota na Segunda Guerra Mundial, se tornavam os principais beneficiados com os investimentos de reestruturação por parte dos EUA. Consequentemente, estes países voltavam a demonstrar economias fortes e altas taxas de desenvolvimento. Deve-se ressaltar também outro fator de grande importância na economia mundial pós-guerra: o petróleo. Desde a Primeira Guerra Mundial, o petróleo já havia se convertido na principal fonte de energia do mundo. Assim, o desenvolvimento dos países está fortemente vinculado à disponibilidade de petróleo para fazer funcionar suas indústrias, desenvolver produtos ou mover meios de transporte. Até o ano de 1960, não havia nenhuma organização internacional responsável pelo controle da exploração ou dos preços do petróleo. A exploração mundial de petróleo era fortemente concentrada em 7 empresas, conhecidas como Sete Irmãs 27 , que agiam como um cartel 28 para controle do produto. Em 1960, foi criada a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), com o objetivo de coordenar as políticas petrolíferas dos países produtores, tornando possível controlar a oferta mundial e impulsionar os preços e os lucros para os países produtores. Com a OPEP, os maiores produtores de petróleo passa- riam a discutir e a adotar ações comuns com relação à venda desse produto. O objetivo era aumentar os lucros para os países que detinham as reservas, através de políticas regulatórias da exploração por parte de empresas estrangeiras, que pagavam pouco pelo petróleo extraído, e o vendiam a preços muito maio- res. Até 1973, seus membros eram: Argélia, Líbia, Nigéria, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos (EAU), Irã, Iraque, Kuwait, Catar, Indonésia, Equador e Venezuela. Em 1968, foi criada a Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo (OPAEP), pelos países árabes integrantes da OPEP. Essa organização surgiu com o objetivo de utilizar o petróleo como um instrumento político. Em outras palavras, os países reconheceram a importância do petróleo na eco- nomia mundial, e seus consequentes poderes enquanto detentores desse recurso. Assim, a OPAEP sur- giu como uma forma de fazer uso do petróleo para melhorar as condições econômicas e de influência internacional dos países membros. Essa percepção da importância do petróleo e do potencial de uma organização que unisse os países produtores surgiu com a Guerra dos Seis Dias de 1967 e o embargo 29 de petróleo realizado por alguns países árabes do Oriente Médio, como retaliação ao apoio ocidental a Israel durante a guerra. O embargo foi movido inicialmente aos EUA, à Holanda, a Portugal, à Rodésia e à África do Sul. Aos EUA por serem os maiores apoiadores de Israel; à Holanda por deter a posse da Shell, uma das maiores empresas de petróleo do mundo; à Portugal devido a luta contra a independência de suas colô- nias africanas; e à Rodésia e à Africa do Sul, devido aos regimes de apartheid que mantinham. Em 1973, a OPAEP era formada por Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Egito, EAU, Iraque, Kuwait, Líbia, Qatar e Síria. 1.3.2. A CRISE ECONÔMICA DOS ANOS 1970 E O AUMENTO DO PREÇO DO PETRÓLEO O início da década de 1970 é de fundamental importância para entender os acontecimentos du- rante a Guerra do Yom Kippur. Em 1969, Richard Nixon foi eleito presidente dos EUA e assumiu um país envolvido na Guerra do Vietnã e com uma economia problemática: os altos gastos no conflito, as políti- cas públicas internas e a concorrência de Japão e Alemanha Ocidental diminuíram significantemente a reserva estadunidense de ouro, impactando em uma desvalorização 30 do dólar e, por conseguinte, uma valorização das outras moedas 31 . Como o Sistema Bretton Woods determinava uma taxa fixa da relação entre o ouro e o dólar, uma diminuição nas reservas significava uma diminuição no valor do dólar. Pelo 27 Nos anos 1960 as Sete Irmãs eram: Esso, Texaco, Socony, Socal, Shell e a British Petroleum (BP). Atualmente, após fusões entre as próprias empresas, são apenas quatro: Shell, BP, ExxonMobil e Chevron. 28 Forma de concorrência em que empresas, voluntaria ou involuntariamente, passam a agir de modo coordenado para fixar preços ou cotas de produção, dividir clientes e mercados ou para eliminar concorrentes e aumentar os preços dos produtos, a fim de obter maior lucro. É comum em mercados em que existe um número pequeno de firmas e com produtos homogêneos (iguais). 29 Embargo aqui significa a restrição ao comércio com algum país. No caso, alguns países árabes como o Iraque, a Síria, o Kuwait, a Líbia e a Arábia Saudita, limitaram a venda de petróleo aos EUA e a Inglaterra, que apoiavam Israel na Guerra contra o Egito. 30 Uma desvalorização de uma moeda é quando esta, em regime de câmbio fixo (que não flutua livremente pelas in- fluências do mercado), perde valor em relação a outra moeda. Uma desvalorização do dólar em relação à libra esterli- na, por exemplo, significa uma queda no preço de cada dólar em termos de libras. Basicamente, é quando uma moeda perde poder de compra em relação a outra moeda ou, como no caso, perde poder de compra de maneira geral (em relação a várias moedas), visto que se precisa de mais dessa moeda (a desvalorizada) para importar a mesma quanti- dade de bens do exterior. Em oposição, a valorização é quando, em câmbio fixo, uma moeda se valoriza perante outra moeda ou perante várias, ou seja, ganha poder de compra. 31 Foi o caso do marco alemão, moeda da Alemanha Ocidental. Em maio de 1972, o país deixou o Sistema de Bretton Woods, o que significava não manter mais uma taxa fixa de conversão da sua moeda. 92 UFRGSMUNDI fato de o dólar ouro ser o padrão internacional de valor, uma diminuição no preço do dólar significava uma diminuição também nos preço das outras moedas. Objetivando recuperar a economia estadunidense e controlar as taxas de inflação e de emprego, em agosto de 1971 Nixon declara o fim do padrão dólar ouro: em outras palavras, o dólar estadunidense não seria mais convertível a um valor de ouro – não era mais necessário que o dólar estivesse relaciona- do a uma quantidade específica de ouro fisicamente existente. Era o fim do padrão surgido em Bretton Woods. Agora o preço do dólar poderia ser determinado pelos EUA da forma que eles quisessem. O preço da moeda passou assim a variar devido à oferta e a demanda por dólar, no que ficou conhecido com pa- drão dólar flutuante – ou seja, o valor do dólar variava diariamente. O economista Paul Krugman, explica os impactos do ato de Nixon: O atual padrão monetário [padrão pós-Bretton Woods] não especifica nenhum papel especial para o ouro; na verdade, o Federal Reserve [equivalente ao Banco Central dos EUA] não é obrigado a vincular o dólar a nada. Ele pode imprimir a quantidade de moeda que achar apropriado (KRUGMAN, 2014, tradução nossa). O fim do padrão dólar ouro e o início do padrão dólar flutuante causou uma desvalorização geral de todas as moedas, à medida que grande parte dos Bancos Centrais do mundo passou a emitir moeda 32 , pois não se sabia quais seriam as consequências do ato de Nixon. Como havia mais quantidade de moeda nacional na maior parte dos países, o valor delas com relação ao dólar era diminuído. A diminuição abrup- ta do valor das moedas não foi acompanhada por uma diminuição no valor dos produtos, acarretando um aumento da inflação mundial – ou seja, os bens passaram a ficar mais caros para os consumidores. A inflação se espalhou pelos setores da economia mundial, e como era de se esperar, chegou até o petróleo – insumo básico para produção industrial e de energia –, aumentando em muitas vezes o seu preço de mercado. A situação piorou quando do início da Guerra do Yom Kippur em outubro de 1973 por ação da OPAEP, ao erguer o embargo de petróleo e consequentemente aumentar ainda mais seu preço. Em janeiro deste ano, os presidentes do Egito e da Síria – países membros da OPAEP e beligerantes da guerra contra Israel – encontraram-se para discutir sobre o uso do petróleo como uma arma política. A guerra se inicia no dia 06 de outubro e, seis dias depois, os Estados Unidos dão inicio a Operação Nickel Grass para apoiar Israel com suprimentos e armamentos. Como retaliação ao apoio estadunidense, em 16 de outubro, a Arábia Saudita, Irã, Iraque, EAU, Kuwait e Catar anunciam unilateralmente um aumento do preço de petróleo em 70%, de 3,57 para US$ 5,11 o barril, e um corte progressivo de produção (YERGIN, 1991, p. 606). Um dia depois, a OPAEP declara apoio às ações de uso do petróleo como retaliação ao apoio ocidental a Israel na guerra e recomenda um embargo do produto. O presidente Nixon parece não se importar e anuncia um pacote de ajuda para Israel, no dia 19 do mesmo mês. É o ponto decisivo para o embargo de petróleo movido pela OPEP contra os EUA e posteriormente levantado a outros países. Tam- bém iria se cortar 5% a produção de petróleo com relação a setembro e continuar os cortes de maneira progressiva, mensalmente, até que seus objetivos fossem alcançados. A guerra se encerraria no dia 26 de outubro, mas o embargo sobre o petróleo se manteve. Em novembro, os países árabes anunciaram um corte de 25% na produção – esses cortes na produção, por diminuírem a quantidade de petróleo produzido, levavam a aumentar o preço do produto, que agora por ser mais escasso se tornava mais caro. Em janeiro de 1974, foi anunciado um congelamento de preços até abril. Todavia o impacto do embargo total para os EUA, a Holanda, Portugal, a Rodésia e a África do Sul já havia se espalhado pelo sistema econômico mundial. As empresas de petróleo foram obrigadas a aumentar seus custos drasticamente e o preço do petróleo subiu a US$ 12 o barril até o fim do ano. A redução da produção do produto também causou fortes impactos nas economias europeias e no Japão. O embargo foi encerrado em 17 de março de 1974, após avanços no processo de paz iniciado entre os beligerantes e mediado pelos EUA. Todavia, os impactos do embargo continuaram sendo sentidos ao longo do ano. Com o aumento do preço e com a menor disponibilidade do produto, foi causada uma reação em cadeia: as empresas petrolíferas aumentaram o preço do petróleo por elas comercializado; os países passaram a economizar seu consumo de petróleo; e o preço dos derivados do petróleo – por exemplo, combustíveis e produtos industrializados em geral – para o consumidor final se elevou. Por fim, teve início o racionamento e o temor da falta do produto, colocando em risco o funcionamento de fábri- cas, meios de transporte e geração de energia elétrica nas grandes cidades de muitos países do mundo. Houve também um impacto no preço dos produtos industrializados, que se mostrou significativo principalmente para os países em fase de industrialização ou para os países não industrializados. O preço 32 O ato de emitir moeda significa imprimir mais notas ou títulos – papéis com valor de dinheiro – e disponibilizá-los no mercado para utilização dos consumidores. Geralmente é feito pelo Banco Central ou por uma autoridade mone- tária do país. 93 AGH 74 dos alimentos e matérias-primas também tem um grande aumento, uma vez que diminuem os subsídios 33 para produção destes já que os países não possuem mais tantas reservas disponíveis. Em outras palavras, por não terem mais abundância de recursos disponíveis os governos de países subdesenvolvidos não podem continuar financiando a produção agrícola em seu país. Assim, esses produtos tem um aumento nos preços, dificultando a venda e a competitividade com os produtos semelhantes de outros países do mundo. Resumidamente, o aumento do preço do petróleo e o embargo significavam que os países do Ocidente não poderiam mais manter seu consumo de energia crescendo a 5% ao ano, como estava ocor- rendo, nem comprar petróleo barato e exportar produtos industrializados a preços muito mais altos do que o de produção. Em outras palavras, não era mais possível manter os mecanismos de exploração dos países em desenvolvimento. Nesse sentido, as palavras do Xá do Irã, Reza Pahlevi, em entrevista ao jornal New York Times em 1973, parecem ser uma boa síntese: É claro que [o preço do petróleo] vai aumentar, [...] Vocês [países do Ocidente] au- mentaram o preço do trigo vendido a nós em 300%, o mesmo ocorreu com o açúcar e com o cimento […] Vocês compram nosso petróleo bruto e nos vendem ele de volta beneficiado na forma de produtos petroquímicos, por uma centena de vezes o preço que vocês o compraram [...] Seria no mínimo justo que, daqui para frente, vocês pa- guem mais pelo petróleo. Poderíamos dizer umas 15 vezes mais (SMITH, 1973). 2. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA 2.1. CESSAR-FOGO E SITUAÇÃO DO ORIENTE MÉDIO EM 1974 A Guerra do Yom Kippur arrastou-se durante cerca de duas semanas. Após o ataque surpresa dos egípcios e sírios, Israel organizou-se e convocou os reservistas das Forças de Defesa de Israel (FDI), mobi- lizando grande parte da população que serviu como reforço às tropas nacionais regulares: era o início da contraofensiva israelense. Os territórios ocupados pelos árabes nos primeiros dias do conflito já come- çavam a ser cercados por Israel e as capitais Cairo, do Egito, e Damasco, da Síria, já estavam ameaçadas (MISHAL, 2008). Ao mesmo tempo em que Egito e Síria percebiam o quanto as forças israelenses tinham penetra- do em seus territórios, aumentavam as hostilidades entre os protagonistas da Guerra Fria, com a URSS ameaçando intervir efetivamente no confronto a fim de defender os países árabes de um massacre, e os EUA apoiando e armando Israel. Essa generalização do conflito começou a preocupar as duas grandes superpotências, levando-as a apoiar a decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) de emitir, no dia 22 de outubro, a resolução número 338, estabelecendo o cessar fogo e o início das nego- ciações (MISHAL, 2008). O documento da ONU decretava que todos os grupos envolvidos na guerra deveriam cessar as ações militares em um período de até 12h após a adoção da resolução. Além disso, ainda era expressa a necessidade de se fazer cumprir a resolução de número 242, adotada em 1967, que dizia respeito à Guerra dos Seis Dias (CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1973a). Tal resolução afirmava que, para manter uma paz justa e duradoura no Oriente Médio, era fundamental que Israel devolvesse os territórios ocupados durante aquela guerra, reconhecendo a soberania, integridade territorial e indepen- dência políticas de todos os Estados da região (CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1967). Apesar dos esforços da comunidade internacional para pôr fim ao conflito, o prazo previsto pelo CSNU não foi atendido. Durante dois dias ainda houve ataques militares, resultando no total isolamento do exército egípcio pelas forças israelenses e na retomada dos últimos territórios que ainda se encontra- vam sob o domínio árabe. Apenas no dia 24 de outubro os combates terminaram e o cessar-fogo entre Egito e Israel foi finalmente assinado, em 11 de novembro, não sendo formalmente ratificado pela Síria. A partir do momento em que o embate militar estava suspenso, começou o período das nego- ciações: ambos os países deveriam retornar às posições ocupadas em 22 de outubro, dia de adoção da resolução do CSNU; as linhas de suprimento 34 , que antes isolavam o exército egípcio, seriam reestabe- 33 Subsídios governamentais tem a intenção de reduzir o preço final dos produtos vendidos pelos produtores, para que estes produtos possam competir com os produzidos por outros países. Pode ser feito através de empréstimo de dinheiro, diminuição de impostos cobrados, e até mesmo pagamento de valores para que se produza determinado produto. 34 Linhas de suprimento referem-se à infraestrutura que possibilita o abastecimento de tropas durante conflitos. Em 94 UFRGSMUNDI lecidas a fim de liberar mantimentos e medicamentos para os soldados e para a população; tropas das Nações Unidas, as quais haviam sido mandadas para o local como forma de proporcionar estabilidade pós-conflito, foram alocadas em pontos estratégicos com o objetivo de garantir que os acordos fossem cumpridos (MISHAL, 2008). Depois da guerra, a situação do Oriente Médio fragilizou-se ainda mais. Embora Israel tenha obti- do êxito devido a sua superioridade militar, o país teve seu status na região afetado, pois se percebeu, nos primeiros dias do conflito, que o seu poderio não era inabalável. Ficou claro que, mesmo com suas con- quistas territoriais, Israel não era capaz de impor um acordo de paz baseado somente em seus interesses. Chegou-se ao ponto de, em novembro de 1973, instalar-se, por decisão governamental israelense, a Co- missão Agranat com o intuito de investigar os possíveis responsáveis pela falta de preparo de Israel diante de um conflito eminente (DERSHOWITZ, 2003). Além disso, os próprios EUA, enquanto superpotência aliada do país, mudaram sua postura internacional, envolvendo mais ativamente os interesses árabes nas negociações e reatando relações diplomáticas com o Egito em novembro de 1973 (MAGNOLI, 2006). 2.1.1. DISPUTAS ACERCA DA DELIMITAÇÃO DAS FRONTEIRAS ISRAEL-EGITO E ISRAEL-SÍRIA A delimitação das fronteiras entre Israel e seus vizinhos árabes é um problema que causa insta- bilidade na região desde a criação do Estado judaico. Com o armistício da Guerra do Estado de Israel assinado em 1949 entre os países da região, desenhou-se limites territoriais, denominados como Green Line (Linha Verde, em inglês) 35 . No entanto, com a já citada Guerra do Seis Dias, Israel ocupou e anexou todos esses territórios, aumentando a extensão de suas fronteiras. Mesmo com a resolução número 242 do Conselho de Segurança da ONU, a qual determinava as retiradas das tropas israelenses e devolução das áreas dominadas aos países árabes, Israel manteve tais regiões sob seu domínio. O país alegava que só negociaria a devolução dos territórios se a comunidade árabe os reconhecesse enquanto Estado so- berano e estivesse disposta a firmar um tratado de paz (MISHAL, 2008). Sendo assim, a Guerra do Yom Kippur teve um caráter de busca pela retomada dessas regiões que estavam ocupadas por Israel. Ao final do conflito, o Egito ocupava parte significativa da Península do Si- nai, reconquistada nas primeiras três horas de guerra, enquanto Israel expulsou as forças sírias das Colinas de Golã e manteve-se ocupando a Cisjordânia e a Faixa de Gaza (MISHAL, 2008). Entretanto, mesmo após a tentativa não muito bem-sucedida de recuperação de seus territórios, os países árabes continuavam reclamando o seu direito de posse sobre as regiões. A ONU mantinha-se reafirmando o que fora estabelecido na resolução 242 e pressionando Israel para que retirasse suas tro- pas. Nesse contexto, em janeiro de 1974, Israel e Egito acordaram a retirada de Israel da margem ocidental do Canal de Suez (MAGNOLI, 2006). As negociações entre Israel e Egito foram fortemente incentivadas e apoiadas pelo Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger 36 . Esse teve importante papel na nego- ciação com a Síria e a resolução do confronto nas Colinas do Golã. Quando aprovada a resolução do CSNU declarando o cessar-fogo haviam ainda muitas disputas entre Israel e Síria e por isso não houve modificações naquela frente. Uma solução foi obtida em Maio de 1974 quando os dois países assinaram um Acordo de Desengajamento. 2.1.2. POPULAÇÕES REFUGIADAS - PALESTINOS NO LÍBANO, SÍRIA E JORDÂNIA A criação do Estado de Israel resultou num problema conhecido como “A Questão Palestina”: cerca de 1 milhão de árabes tiveram que deixar a região palestina onde foi determinado pela ONU o estabelecimento do Estado judeu. Esse fator está na raiz de todos os conflitos que se seguiram entre os dois povos. As Guerras Árabe-israelenses resultaram em um escala enorme de refugiados, tanto que, em 1964, um grande grupo formado por lideranças árabes fundou a Organização para Libertação da Pales- tina (OLP), com o objetivo de defender a Palestina da expansão judaica por meio da luta armada, bem como reafirmar a autodeterminação dos povos, como já explorado (CLEVELAND, 2004). A Questão Palestina se agravou a partir da Guerra dos Seis Dias, quando Israel tomou territórios de maioria árabe, resultando em grandes fluxos migratórios das populações dessas regiões para países vizinhos que não estavam ocupados. Em grande parte, esses refugiados destinaram-se à Jordânia, esta- belecendo bases da OLP no país. No entanto, em 1970, o governo jordaniano voltou-se contra as forças guerrilheiras da OLP, pois as ações armadas destes contra Israel estavam gerando inúmeras represálias israelenses ao país. O episódio ficou conhecido como “Setembro Negro” e resultou na morte de milhares de palestinos e na expulsão da OLP da Jordânia. Após esse fato, os árabes expulsos seguiram para o Líba- termos práticos, são estradas ou mesmo rotas marítimas por onde passam transportes abastecidos com alimentos, remédios e armamentos, por exemplo. 35 Regiões como Cisjordânia, Faixa de Gaza, Colinas de Golã e Península do Sinai permaneceram como possessões árabes. 36 O Departamento de Estado dos EUA é o equivalente ao Ministério de Relações Exteriores do Brasil. 95 AGH 74 no e para Síria, transferindo suas bases para lá (BAILEY, 1984). Com a Guerra do Yom Kippur, o número de refugiados aumentou, agora incluindo também par- celas significativas das populações egípcia e síria, as quais fugiam de um novo conflito que se desenhava. Embora os enfrentamentos tenham tido um fim com o cessar-fogo, as hostilidades ainda permaneceram, principalmente entre Israel e as guerrilhas da OLP. O principal objetivo da OLP é a criação de um Estado Palestino, assunto veementemente negado de ser negociado por Israel. Além disso, algumas facções mais radicais da organização palestina, com seu discurso abertamente contra a existência de Israel, aca- bavam por dificultar o contato entre palestinos e israelenses. Portanto, a guerra do Yom Kippur não trou- xe nenhum avanço para essa causa da OLP, pelo contrário somente agravando a situação dos palestinos, que seguiram enfrentando problemas nos países onde se instalavam. 2.2. INFLUÊNCIAS REGIONAIS E INTERNACIONAIS: O CONFLITO COMO PONTE ENTRE A SITUAÇÃO DE INSTABILIDADE REGIONAL E O CONFRONTO URSS-EUA Para uma melhor compreensão da maior parte dos acontecimentos internacionais ocorridos des- de 1945, deve-se levar em consideração a disputa por áreas de influência existente entre Estados Unidos e União Soviética: a Guerra Fria. A Guerra do Yom Kippur não é diferente. Nesse conflito, a participação dos EUA e da União Soviética e de outros países da região foram de grande relevância nos impactos que a guerra trouxe para o sistema internacional como um todo. Apesar do ambiente político do Oriente Médio ser muito mais complexo do que a dicotomia da disputa entre Israel e palestinos, a simplificação no caso da guerra do Yom Kippur é válida. A despeito de suas rivalidades internas, marcadas principalmente pelas divisões do islamismo que predominam em cada um dos países, o grupo árabe de países produtores de petróleo agiu de modo mais ou menos homogê- neo. Até mesmo o país persa da região, o Irã, historicamente um país opositor à Arábia Saudita – princi- pal força política da região –, aderiu ao embargo de petróleo. Desse modo, procurar-se-á demonstrar a influência da disputa estratégica entre EUA e URSS na conjuntura da Guerra do Yom Kippur e quais os impactos do comportamento dos atores regionais, dentro dessa lógica. Os EUA desde o início foram grandes defensores e parceiros de Israel, inclusive sendo o primeiro país a reconhecê-lo internacionalmente. A principal forma de auxílio dos EUA para Israel é na forma de forma de doação de recursos, através do forte poder de influência da comunidade judaica estaduni- dense. Essa comunidade se formou principalmente com a migração de judeus europeus no período do entreguerras e na Segunda Guerra Mundial. Aos poucos, constituiu relações profundas com setores da sociedade americana e obteve representação no Congresso, além de fundar instituições de financiamen- to ao sionismo ao redor do mundo, mas principalmente em Israel. A execução do lobby se dá através de instituições de financiamento, grandes empresas de comunicação, e através de presença em centros de estudo que mantém contato com o Congresso. Portanto, o poder de Israel na região tem por trás o apoio dos EUA, seja na provisão de armamentos, seja no fornecimento e desenvolvimento de novas tecnologias de produção de armamentos. O apoio estadunidense age como um fator de dissuasão para Israel contra ataques de seus inimigos regionais – ou seja, devido a seu grande poderio, Israel tem a ideia de que per- suadiria seus rivais a não ataca-los: seria isso a dissuasão aqui tratada. Durante o conflito de 1973, os EUA mantiveram seu apoio incondicional a Israel, inclusive com o envio de suprimentos e armamentos, através de uma ponte área, na chamada Operação Nickel Grass. Durante 32 dias, os EUA entregaram cerca de 22 toneladas em tanques, artilharia, munições e suprimen- tos. É sabido que o embargo de petróleo movido pela OPEP foi uma reação a essa operação de apoio dos EUA a Israel. De acordo com Visentini (2012, p. 44), a guerra do Yom Kippur foi impulsionada pela postura estadunidense favorável a intransigência de Israel na região: A alienação ocidental constituiu um reflexo da vitória do pró-sionista [Henry] Kis- singer sobre os interesses petrolíferos do Departamento de Estado. Na verdade o governo dos EUA sentia-se feliz, pois a debilidade árabe desmoralizava a URSS, que Washington desejava ver fora do Oriente Médio. Se considerarmos que os EUA foram, em alguma parte, responsáveis por essa conflagração, po- demos considerar que o objetivo final dos árabes não era recuperar os territórios ocupados por Israel naquele momento. Antes disso, travavam uma guerra limitada 37 : as ações militares possuíam objetivos 37 Guerra limitada é aquele confronto em que o uso da força é de baixa intensidade e totalmente dentro do controle do Estado beligerante. Além disso, as guerras limitadas são marcadas por terem um objetivo político bem delimitado antes do uso da força. Assim, a força é utilizada como um modo de levar um conflito para resolução através de nego- ciações diplomáticas. 96 UFRGSMUNDI políticos bem definidos e claros. Não buscavam senão uma vitória tática 38 contra Israel para, assim, atrair uma mediação mais equilibrada dos EUA: imaginavam que assim seria buscada uma negociação mais séria, para que então os árabes finalmente conseguissem reconquistar seus territórios. Se os EUA estavam envolvidos no conflito, a URSS também estava. Mantendo relações com o Egito desde o governo de Nasser, os soviéticos eram os responsáveis pela configuração militar do Egito devido aos repasses de armamentos. Contudo, essa relação não era muito estável. Com a ascensão de Sadat à presidência egípcia e as poucas perspectivas de avanço nas relações Egito-URSS – que só forneciam um pequeno apoio econômico e armamentos de penúltima geração, especialmente armamentos táticos, como fuzis de assalto e armas leves para os soldados –, esse expulsa os cerca de 18 mil técnicos soviéti- cos presentes no país (VISENTINI, 2012, p. 43). Esse fato marcará o início de um afastamento progressivo entre os dois países. As relações mais significativas da URSS eram com a Síria, principalmente desde que Hafez al-Assad assumiu o poder em 1970. Em 1972, foi assinado um pacto de segurança entre os dois países, com o porto de Tartos 39 sendo cedido para uso dos soviéticos, e esses fornecendo cerca de US$ 135 milhões em arma- mentos para a Síria. Durante a guerra de 1973, os soviéticos também forneceram apoio à Síria e o Egito, principalmente com armamento antiaéreo e tanques que iam sendo destruídos no conflito. 2.3. IMPACTOS DA CRISE ECONÔMICA NO SISTEMA INTERNACIONAL Entende-se aqui a crise econômica decorrente da Guerra do Yom Kippur e do embargo do petró- leo como uma parte de um movimento mais complexo de reestruturação do poder mundial dos Estados Unidos. São sabidas as condições em que os EUA saíram da Segunda Guerra Mundial e o papel de lide- rança econômica assumida por estes no período do pós-guerra, expresso pelo padrão dólar ouro. Já se mencionou também o fim do padrão dólar ouro em 1971 e os impactos imediatos desse ato. Contudo, cabe levantar questões mais complexas acerca desse acontecimento. Primeiramente, faz-se útil esclarecer a opinião de Samir Amin (1978) sobre esse processo. O cres- cimento do poderio econômico do Japão e da Europa Ocidental colocaram em cheque a predominância econômica dos EUA, que no fim da década de 1960 e início da década de 1970, passa por um período de pouco destaque nesse aspecto, sofrendo com taxas crescentes de desemprego e inflação. A diferença dos EUA face a seus concorrentes se dava, em um primeiro momento, devido a maior diferença entre as taxas de produtividade e o preço dos salários. Isso significa que pelos salários no EUA serem mais baixo no país, restava maior lucro para as empresas, e os produtos podiam ser vendidos a um preço mais baixo, se tornando mais competitivos em relação aos outros países. Todavia, essa diferença desapareceu em um momento, principalmente devido ao aumento do salário, e a segunda vantagem estadunidense, a exis- tência de reservas para cobrir custos internacionais, também – ou seja, o dólar, ainda com lastro no ouro, usado para pagar gastos em outros países, na época advindos principalmente da Guerra do Vietnã. Aos poucos a credibilidade econômica e de polícia do mundo do país diminuía – devido aos maus resultados no Vietnã. As consequências foram conhecidas: fim da conversibilidade do dólar em ouro e a queda do preço do dólar e de outras moedas. Visentini (1992b, p. 12) explica melhor o processo: O dólar inflacionava-se ao ser emitido em maior quantidade para cobrir o rombo or- çamentário [com a guerra do Vietnã], o que depreciava as exportações do Terceiro Mundo, valorizava as americanas e dava início a uma inflação mundial. O que a passagem acima quer dizer é que o poder de compra do dólar – o que se pode comprar em um dia com determinada quantidade de dinheiro – se alterava rapidamente, encarecendo os produ- tos. Isso ocorria pelo fato de haver muita moeda circulando, que passava a impressão para as empresas de que haveria maior procura pelos bens, ao que era respondido com um aumento dos preços. Contudo, essa moeda era usada para pagar gastos no exterior, e não dentro dos EUA. A questão importante para os demais países se deve ao fato de que o dólar é a moeda padrão de comércio internacional: no momento em que ela se desvaloriza – compra menos coisas hoje do que comprava ontem – todos os países sofrem. Os principais afetados são os países do Terceiro Mundo que dependem da venda de seus produtos para 38 Vitória tática significa vitória no campo de batalha. Esta é diferente da vitória estratégica, que implicaria em algum tipo de derrota plena das forças armadas israelenses ou então uma rendição devido aos constrangimentos econômi- cos e de recursos da guerra. 39 Porto sírio localizado no litoral do Mar Mediterrâneo. Sua importância para a URSS se deve por ser um dos poucos locais em que navios de guerra soviéticos – ainda que em pequena quantidade – podem ficar estacionados em águas quentes e de fácil acesso aos Oceanos. A URSS possui frotas no Mar Negro – impedida por tratado de passar pelo Estreito de Bósforo em casos de guerra; no Mar do Leste, mais vulnerável a Marinha dos EUA; e no Mar de Barents, próximo ao Polo Norte, que tem seu acesso bloqueado durante parte do ano. 97 AGH 74 outros países – exportações – mas que não vendiam mais tanto, devido ao aumento do preço de seus produtos com relação ao dólar – devido à desvalorização dessa moeda. Assim, com seus produtos enca- recidos, eles foram menos comprados e os países do Terceiro Mundo passaram a ter prejuízos. Esses acontecimentos em 1971 aconteciam ao mesmo tempo em que a produção de petróleo nos EUA atingia seu pico. Enquanto isso, demais países concorrentes (especialmente Japão e Alemanha Ocidental) alcançavam um pico de importação do produto. Em outras palavras, os EUA eram menos dependentes de petróleo estrangeiro do que seus concorrentes no sistema internacional pelo fato de o produzirem internamente. A URSS na época encontrava-se em situação semelhante a dos EUA, inclusive sendo fornecedora de petróleo para todo o campo socialista na Europa Leste. Assim, é preciso entender que o embargo de petróleo movido pela OPEP contra os EUA em 1973, decorrente da Guerra do Yom Kippur, não foi tão prejudicial ao país quanto foi para os outros países desenvolvidos não produtores de petróleo, como o Japão e a Alemanha Ocidental. Por mais paradoxal que pareça essa análise, também se pode estendê-la para a URSS: na época, um dos países mais autos- suficientes do mundo, produtor de petróleo e demais matérias-primas, os soviéticos seriam beneficiados em caso de um aumento no preço desses produtos, permitindo adquirir de forma mais barata tecnologia avançada estrangeira. Ou seja, devido ao ganho que o país teria vendendo petróleo por um preço mais alto, poderia comprar tecnologia estrangeira sem prejudicar tanto suas reservas de dinheiro. A tendência também para o longo prazo é que essas tecnologias passassem a custar menos, devido a crise que asso- laria os países dependentes de importações de petróleo. No entanto, além de Japão e Europa Ocidental, quem sai prejudicado pela crise são os países do Terceiro Mundo, principalmente aqueles em desenvolvimento. Dependentes de importações de produtos industrializados produzidos pelos países desenvolvidos, esses países se veem fortemente afetados pelo aumento do preço desses produtos 40 . Ainda que tenham incorrido lucros maiores para suas economias, decorrentes do aumento do preço das matérias-primas ou do petróleo – no caso daqueles exportadores do produto – essa diferença não é significativa para diminuir as consequências do aumento do preço dos produtos industrializados. E mesmo que tal evento pudesse beneficiar a produção industrial caso os governos se utilizem de políticas de promoção da industrialização e diminuição da importação de produtos industrializados de outros países, a tendência em países do Terceiro Mundo não é a conversão desse ganho econômico em capacidade do país. Como a renda é concentrada e as empresas do setor industrial desses países possuem grande quantidade de capital estrangeiro – vindo dos EUA, da Europa Ocidental – os ganhos tendem a se concentrar em uma elite não interessada nos interesses daquele país, mas sim nos interesses de onde vem o capital que criou sua indústria. Isso ao contrário de emancipar, dar maior independência de ação internacional ao país, fortalece ainda mais o ciclo de dominação dos EUA e de outros países oci- dentais (AMIN, 1978, p.43). Os países produtores de petróleo, organizadores do embargo, também não são beneficiados. Vi- sentini (2012, p. 47) fala em especial dos países árabes: […] apesar de certos ganhos imediatos, a nova renda do petróleo acabará não favore- cendo os países árabes e muçulmanos. Os desequilíbrios internos das sociedades lo- cais se aprofundaram, desestruturando o tecido social e corrompendo as elites, pois cresceram a dívida, o consumo e a inflação. Muitos dos países do Golfo sequer pos- suíam um Banco Central e os petrodólares [dólares advindos da venda do petróleo] acabaram retornando ao Ocidente. Paradoxalmente aqueles que se beneficiam são as empresas produtoras de petróleo, justamente aquelas as quais os países da OPEP se opunham e que foram a motivação para a criação da organização. O aumento do preço do petróleo pela organização não passou de 70% do valor de setembro de 1973. Boa parte do aumento que alcançou quatro vezes o valor do produto foi causado pelas companhias petrolíferas que manipularam a crise e o medo de escassez com uma especulação para aumentar seus lucros (VISENTINI, 2012, p. 47). Essa manipulação era feita visando a aumentar seus lucros, vendendo um produto que era altamente demandado, mas com uma pequena oferta. Em outras palavras, independente do preço que as empresas atribuíssem ao petróleo, ele seria vendido, pois era uma necessidade básica da população e das indústrias dos países – por isso que aproveitaram para aumentar ainda mais o preço. O poder de cartel da OPEP também foi afetado após o embargo, devido à criação da Agência Internacional de Energia. Proposta por Kissinger ainda em 1973, ela foi criada em 1974 com o objetivo de organizar a política energética de seus países membros e de intervir no mercado de petróleo quando 40 Os produtos industrializados exigem grandes quantidades de petróleo para serem produzidos, seja em sua com- posição, seja na geração de energia. Assim, quando o preço do petróleo aumenta, a tendência é haver um aumento também no preço desses produtos. 98 UFRGSMUNDI necessário (SCOTT, 1994). Em outras palavras, era a criação de um órgão equivalente a OPEP, mas com- posta pelos países desenvolvidos e consumidores de petróleo, que também detinham a sede das maiores empresas petrolíferas. Assim, essa foi uma tentativa dos países desenvolvidos de reagir internacional- mente aos privilégios políticos e econômicos obtidos pelos países do OPEP com o controle do petróleo. 3. AÇÕES INTERNACIONAIS PRÉVIAS A discussão sobre a guerra entre árabes e israelenses de 1973 não demorou a ser levada ao Con- selho de Segurança da ONU. A primeira Resolução sobre esse conflito foi aprovada no dia 22 de outubro, após intensas negociações entre os Estados Unidos e União Soviética. A Resolução 338 exigia um cessar fogo imediato entre as partes conflitantes, que deveria ser implementado em um máximo de 12 horas a partir da aprovação da resolução (CSNU, 1973a). Como os combates não foram interrompidos, uma nova resolução foi aprovada no dia seguinte - a Resolução 339 - renovando o pedido para um cessar fogo imediato, nos termos estabelecidos na resolução anterior. Além do mais, uma equipe de observadores da ONU deveria ser enviada para supervisionar o cessar fogo entre Israel e Egito (CONSELHO DE SEGURAN- ÇA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1973b). Novamente, a tentativa de encerrar as agressões falhou, e os observa- dores da ONU foram impedidos de se posicionar de ambos os lados da linha estabelecida no cessar-fogo. Os combates só se encerraram no dia 26 de outubro de 1973, quando o Conselheiro de Segurança Nacional do Egito, Hafez Ismail, entrou em contato com os Estados Unidos, declarando que o Egito es- tava disposto a começar diálogos diretos com Israel para a paz. No dia anterior, havia sido aprovada uma nova Resolução do Conselho de Segurança da ONU, a Resolução 340. Dessa vez, demandava-se que as forças militares retornassem para as posições anteriores às que ocupavam no dia 22 de outubro. Também foi decidido enviar uma Força de Emergência das Nações Unidas, que deveria ser composta de pessoal de Estados-membros da ONU que não estivessem compondo o Conselho de Segurança. O número de observadores militares em ambos os lados do conflito deveria ser aumentado e relatórios diários seriam enviados ao Secretário-Geral da ONU (CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1973c). A Re- solução 341, do dia 27, aprovava o envio dessa Força de Emergência (UNEF, do inglês United Nations Emergency Force) para a zona do conflito (CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1973d). Desse momento em diante, Henry Kissinger – Secretário de Estado dos Estados Unidos à época – serviu como intermediário entre os países árabes e Israel, criando as bases para uma possível futura conferência de paz. Após a derrota contra Israel, tanto o Presidente do Egito, Anwar Sadat, quando o da Síria, Hafez Assad, demonstraram interesse em abandonar posições mais radicais e prosseguir os esforços de paz com a mediação estadunidense (KISSINGER, 1994, p. 739). No dia 15 de dezembro, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 344, apoiando a organização de uma Conferência de paz a ser organi- zada em Genebra (CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1973e). Esta teve início no dia 21 do mesmo mês e foi presidida conjuntamente pelos Estados Unidos e pela União Soviética, com apoio do Secretário-Geral da ONU. Participaram os ministros de Relações Exteriores da Jordânia, do Egito e de Israel, mas não da Síria. Dessa forma, após algumas discussões, a conferência foi adiada. Embora a conferência em si não tenha resultado em nenhum acordo, possibilitou o desenvolvimento posterior das negociações entre Israel, Egito e Síria. Depois disso, Henry Kissinger seguiu cumprindo papel de intermediário entre as partes, o que resultou na assinatura de um Acordo de Separação de Forças, assinado entre Israel e Egito, no dia 18 de Janeiro de 1974. Conhecido como Sinai I, seus termos garantiam que Israel retrocedesse suas tropas das áreas ocupadas a oeste do Canal de Suez, que se encontravam sob sua posse desde o final das hostilida- des. As forças israelenses na fronteira foram recuadas de modo a se estabelecer zonas de segurança para o Egito, Israel e a ONU. Um acordo em moldes semelhantes foi assinado com a Síria em 31 de maio do mesmo ano. Fo- ram devolvidos os prisioneiros de guerra de ambos os lados, Israel recuou da maior parte dos territórios que havia ocupado durante os confrontos e foi estabelecida uma zona tampão entre os dois países. No mesmo dia, foi aprovada a Resolução 350 do Conselho de Segurança, estabelecendo a Força das Nações Unidas de Observação da Separação (UNDOF, do inglês United Nations Disingagement Observer Force). Essa força atua de modo a supervisionar o cessar-fogo entre Síria e Israel e o respeito às áreas de separa- ção (CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1974). 99 AGH 74 4. POSICIONAMENTO DOS PAÍSES As posições de Egito e Síria, os dois beligerantes árabes do conflito, são muito semelhantes. Am- bos objetivam avançar na reconquista dos territórios perdidos nos conflitos anteriores com Israel, prin- cipalmente no de 1967. Além disso, ambos os países são aliados da União Soviética, que participou da guerra fornecendo armamentos e suprimentos para os dois países – ainda que o Egito esteja progressiva- mente se afastando de Moscou e aproximando-se de Washington. A decisão da OPEP de usar o petróleo como arma política partiu da sugestão dos dois países, ambos membros da OPAEP. A aliança com a União Soviética se dá mais por motivos estratégicos do que por alinhamento ideológico: esta serve na medi- da em que os soviéticos fornecem armamentos e assistência econômica, demonstrando quão perigoso pode ser a presença soviética na região, de apoio a países críticos a Israel. A Líbia talvez seja o país desse bloco que mais incondicionalmente apoie Egito e Síria, inclusive sendo um aliado da URSS. A posição de Israel, o outro beligerante do conflito, é fortemente condenatória da agressão militar que sofreu por parte do Egito e da Síria, que articularam os demais países árabes produtores de petróleo para fazerem uso do petróleo como arma econômica e política contra Israel e seus aliados. A força de Is- rael para resistir contra os ataques árabes residiu principalmente no apoio que recebeu dos EUA, seu prin- cipal apoiador na resistência, fato que dá a Israel uma grande capacidade de dissuasão no Oriente Médio. As demais relações de Israel se articulam através do eixo de relações do bloco capitalista aliado dos EUA. A Arábia Saudita é um dos países de maior destaque no debate. Forte opositor de Israel, mas também aliado histórico dos EUA no Oriente Médio, a Arábia Saudita é o centro de referência para o posicionamento da maior parte dos países árabes e usa esse fator como centro de sua política externa, marcada pela unidade árabe e solidariedade islâmica. O país defende que a Guerra do Yom Kippur não é uma tentativa de destruição do Estado de Israel, mas sim uma forma dos Estados árabes recuperarem os territórios ocupados por Israel e de chamarem a atenção dos EUA para a região, em busca de um aliado de maior confiança do que a URSS. A Arábia Saudita possui as maiores reservas de petróleo do mundo e foi um dos principais organizadores do aumento do preço do petróleo. O país se opôs inicialmente ao embargo de petróleo devido sua aliança ao EUA, mas, ao perceber a intransigência desse quanto ao apoio a Israel, aprovou juntamente aos países da OPAEP um embargo aos países apoiadores de Israel. O Kuwait teve um forte papel nessa mudança de posição da Arábia Saudita quanto ao embargo, demonstrando o protagonismo de quem é um dos países fundadores da OPEP. O Kuwait é também um forte defensor do Egito e da Síria contra Israel e não mantém relações diplomáticas com esse país. Apesar das relações com os EUA, o Kuwait é um dos países que mantém o posicionamento mais assertivo em prol da unidade árabe, tendo importante peso na decisão da Arábia Saudita em seguir apoiando os esforços árabes e clamando pela devolução dos territórios ocupados por Israel. As grandes reservas de petróleo desse país o fazem grande defensor do aumento do preço realizado pela OPEP, em reunião convocada e realizada nesse país. Os Emirados Árabes Unidos possuem um posicionamento bastante semelhante ao da Arábia Sau- dita, uma vez que mantêm relações próximas com os EUA, mas também se posicionam contrariamente a Israel, em prol da unidade árabe, e favoravelmente ao aumento do preço do petróleo e ao embargo. Posição semelhante é a do Iraque, outro país de destaque na região, que defende fortemente o direito dos países produtores de petróleo de aumentar o preço do produto e do uso do mesmo como arma política contra Israel. Cabe lembrar que existe uma grande rivalidade entre Iraque e Israel, bem como entre o Iraque e o Irã. As posições dos três são antagônicas também nessa discussão, e achar uma convergência entre elas é uma grande dificuldade que os países terão de resolver. Omã mantém uma posição de apoio aos interesses dos árabes e alinhada à Arábia Saudita, porém menos crítica ao Estado de Israel do que os outros países anteriormente citados. Apesar de não ser da OPEP ou OPAEP, Omã apoia o aumento do preço do petróleo, conforme a posição do Irã, seu maior alia- do regional. Com posição condizente a da Arábia Saudita também podemos mencionar a Tunísia, tanto no apoio ao aumento do preço do petróleo, quanto a posição anti-Israel e pró-árabe. Dentro desse bloco, encontra-se a Jordânia, um país com boas relações com os EUA e o Iraque e com um relacionamento conturbado com Israel e com a Síria. No que consta à questão do petróleo, a Jordânia se posiciona favoravelmente à OPEP, uma vez que passou a receber maior auxílio econômico de seus vizinhos árabes produtores de petróleo. Sobre a Guerra do Yom Kippur, a neutralidade jordaniana foi decisiva, pois aumentou as chances de resistência de Israel contra os árabes. O país possui relações conturbadas com Israel e Síria devido ao problema dos palestinos que migram em massa para território jordaniano, fugindo das opressões cometidas por Israel e Síria. Antes do conflito, a Jordânia tinha rela- ções estáveis com Israel, inclusive alertando-o do risco de um ataque. Contudo, no conflito, posicionou- 100 UFRGSMUNDI -se como apoiadora da Síria e da causa dos árabes. Todavia, esse foi um posicionamento tímido devido às relações desse país com os EUA e com a Inglaterra, apoiadores de Israel. O posicionamento do Líbano segue um pouco a linha do apoio aos árabes – inclusive na questão do petróleo –, mas tendendo para a neutralidade. O apoio se deve aos fortes laços com a Síria e com a Arábia Saudita, bem como ao problema dos palestinos, que se refugiam em grande número no país. Por isso, o país defende fortemente a criação de um Estado Palestino, para reduzir essa população em seu país, posicionando-se contrariamente a Israel. Entretanto, a aliança com os Estados Unidos e a proximi- dade de Israel tornam essa posição libanesa pouco assertiva. Outra posição bastante singular é a do Bahrein, que se posiciona favoravelmente ao Egito e à Síria, advogando a devolução dos territórios ocupados por Israel, mas contrariamente ao aumento do petróleo. O país não faz parte da OPEP, apesar de sua economia depender basicamente dos recursos do petróleo. Por esse motivo, com o aumento do preço do petróleo e com o consequente aumento dos preços de outras matérias-primas e produtos industrializados, o Bahrein teve sua economia afetada. Portanto, vai contra as ações da OPEP e mantém-se fortemente alinhado aos EUA. Posição semelhante é a do Afega- nistão, que apoia a causa dos árabes, pois depende de boas relações com esses países, mas condena as decisões da OPEP, conforme posição dos EUA. Antes próximo da URSS, em 1973, o Afeganistão passou a ter relações externas mais independentes e próximas do Irã, Paquistão e EUA. O Paquistão, vizinho do Afeganistão, é também um grande aliado dos EUA e se posiciona favoravelmente ao Estado de Israel e contra as ações da OPEP, pelos mesmos motivos de Afeganistão e Bahrein. O Irã foi um dos países que capitaneou o aumento do preço do petróleo, como um membro da OPEP. Contudo, devido a sua aliança com os EUA, o Irã é contra o embargo aos países que apoiam Israel. O país também apoia os israelenses no conflito contra os árabes, utilizando essa disputa como forma de aumentar o antagonismo com seu maior rival regional, o Iraque. A posição da Indonésia é bastante seme- lhante à do Irã, pois também é membro da OPEP, teve sua economia beneficiada pelo aumento do preço do petróleo, mas vai contra o embargo por ser aliada dos EUA. A maior diferença reside na assertividade com que a Indonésia apoia Israel: não vai contra o país, porém busca uma mediação dos interesses dos EUA com os países árabes da OPEP. Como países-membros da OPEP, temos também Equador e Venezuela, dois países sul-ameri- canos que apoiam fortemente a decisão da OPEP de aumento do preço do petróleo, mas que não se posicionam sobre o embargo devido a suas relações próximas com os EUA e à sua distância da região do Oriente Médio. Buscando maior autonomia no cenário mundial através da OPEP, ambos os países se mantêm neutros quanto ao conflito árabe-israelense, mas favoráveis a medidas que tragam maior esta- bilidade para a região. A Nigéria é um país-membro da OPEP e apoia o aumento do preço do petróleo. A política externa do país é marcada por uma característica de não-alinhamento aos interesses capitalistas dos EUA nem aos socialistas da URSS. Busca uma posição independentista que garanta as melhores condições para o desenvolvimento de sua nação. Nesse sentido, conta com o apoio de Gana, que defende o aumento do preço do petróleo como uma forma de os países que antes eram explorados pelas grandes potências possam obter maiores recursos econômicos de suas riquezas naturais. Apesar do não-alinhamento, a Nigéria rompeu relações com Israel e por isso se posiciona mais favoravelmente aos árabes, numa posi- ção mais próxima da Argélia, outro país não-alinhado. A Argélia é uma forte opositora a Israel e grande patrocinadora de movimentos de libertação nacional pelo mundo, inclusive das iniciativas palestinas de criarem seu próprio Estado. Como país-membro da OPEP, aderiu ao aumento do preço e ao embargo de petróleo. Outro país de posicionamento não-alinhado é a Iugoslávia, que, apesar de ter um regime socialista, rompeu com a URSS. O país defende a criação de um Estado Palestino e apoia os árabes na luta contra Israel. Devido a sua economia frágil e dependente, contudo, a Iugoslávia se manifesta contraria- mente ao aumento do preço do petróleo, que afetou de maneira considerável sua economia, causando instabilidades e crescimento da dívida externa. Os Estados Unidos são a superpotência capitalista da Guerra Fria e consigo reúnem o posicio- namento de diversos países que fazem parte do chamado bloco capitalista ocidental do sistema inter- nacional. O país é historicamente o maior aliado de Israel e um dos principais mantenedores da grande capacidade militar daquele país. Por isso, os EUA dão total apoio às iniciativas israelenses e se opõem vee- mentemente às ações do Egito e da Síria, as quais os EUA interpretam como parte da estratégia soviética de ganhar maior influência e poder no Oriente Médio. Os EUA foram alvo direto do embargo de petróleo movido pelos países da OPEP em represália ao seu apoio a Israel durante o conflito. Assim, manifestam-se fortemente contra esse embargo e contra o aumento do preço do petróleo, que, no entendimento es- tadunidense, criou uma situação de instabilidade econômica no mundo. Todavia, os Estados Unidos não mencionam o fato de que suas empresas petrolíferas se beneficiaram das ações da OPEP, pois passaram a lucrar muito mais com a venda do petróleo, nem que as consequências desse aumento não foram tão 101 AGH 74 grandes na economia do seu país – que já estava com problemas –, mas que, pelo contrário: serviu para desestabilizar outros países concorrentes a sua economia, ainda que aliados no bloco ocidental. Um dos países que foi afetado pelos efeitos da decisão da OPEP foi a República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental), que teve uma redução do suprimento de petróleo justo em um momento de grande cresci- mento econômico baseado fortemente na importação de petróleo vindo do Oriente Médio. Por esse mo- tivo, o país se manifesta contrariamente ao aumento do preço do produto e contrariamente ao embargo. Quanto ao conflito árabe-israelense, o país possui um comprometimento grande com a segurança de Israel e condenou as ações do Egito e da Síria, mantendo a posição da OTAN de apoio a Israel. Dentro do bloco capitalista, essa posição também é defendida pelo Reino Unido da Grã-Breta- nha, que possui grande participação no conflito árabe-israelense, visto que tinha controle da região antes da criação do Estado de Israel. O país foi vítima do embargo de petróleo e possui uma das posições mais contundentes de apoio a Israel, junto com os EUA, tendo também fornecido suprimentos a Israel durante a guerra. A posição de Portugal e da Austrália – apesar dessa não fazer parte da OTAN – é semelhante à dos EUA e da Inglaterra, estando alinhados ao bloco capitalista. O Canadá também é alinhado aos in- teresses do bloco da OTAN, condena as ações da OPEP e apoia o Estado de Israel, apesar de manter uma postura mais moderada, em busca de esforços que estabilizem a região e atuando inclusive através de missões da ONU. Como membro da OTAN e aliada dos EUA, a Turquia é o país mais próximo da região do Oriente Médio que se opõem às ações da OPEP e também apoia o Estado de Israel contra os árabes e luta contra os esforços soviéticos de aumentar sua influência na região. A França, apesar de fazer parte do bloco capitalista ocidental e de ser membro da OTAN, é favo- rável aos países árabes nas questões territoriais e tem uma postura bastante crítica a Israel. Com uma política externa marcada por uma tentativa de se afastar da disputa entre EUA-URSS, a França é uma fornecedora de armamentos para alguns países árabes e mantém bastante proximidade com Egito, Síria e Líbano, fruto de seu passado colonialista na região. Por isso, defende a criação de um Estado Palestino, bem como a devolução dos territórios ocupados ilegalmente por Israel. Contudo, ainda é contra as ações da OPEP de aumento do preço do petróleo e ao embargo e, nesse ponto, mantém a posição de seus aliados do bloco capitalista. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é a superpotência antagonista aos EUA na Guerra Fria, com uma ideologia socialista. Possui grande influência sobre o posicionamento de seus países saté- lites, como são conhecidos os países também socialistas da Europa Oriental. A URSS apoia o Egito e a Síria no conflito árabe-israelense como uma forma de aumentar sua influência na região e diminuir o poder de Israel e dos EUA. Forneceu apoio aos países beligerantes, porém não possui relações muito estáveis com esses países. Essa aliança está condicionada fortemente ao apoio soviético com material e recursos eco- nômicos. A manutenção dessas ações é fundamental para que a URSS continue aumentando sua influên- cia naquela região. O país não se posiciona claramente quanto às ações da OPEP, uma vez que estas não a afetam diretamente, pois possui autossuficiência energética. Assim, a superpotência socialista entende essas ações como mais uma forma de enfraquecer o poder dos países capitalistas no mundo e, princi- palmente, no Oriente Médio. A Ucrânia possui um posicionamento semelhante ao da URSS, apoiando os países árabes, buscando diminuir a influência das potências capitalistas na região e apoiando as ações da OPEP, pois o aumento do preço também elevou o preço de outras commodities, como alimentos, que a Ucrânia é uma grande exportadora. A posição da República Democrática da Alemanha (Alemanha Oriental) é semelhante à da URSS também, apoiando fortemente os países árabes contra Israel e também apoiando as ações da OPEP. Há um grupo de países que se encontram na chamada sub periferia do sistema internacional, que se encontram em condições de desenvolvimento econômico acelerado e que possuem um posicio- namento semelhante. México, Argentina e Brasil passam por um acelerado processo de crescimento econômico, baseados em uma estratégia de substituição de importações, com grande dependência de petróleo estrangeiro. A decisão de aumento do preço do petróleo pela OPEP afetou o crescimento desses países e desencadeou situações de crise de dependência energética. Por esse motivo, os três são contra as ações da OPEP e contra o embargo. Quanto ao conflito árabe-israelense, os países possuem uma posição neutra, defendendo o direito internacional, condenando a agressão cometida por Egito e Síria, mas também criticando a ocupação ilegal de territórios por Israel. Nesse aspecto, o Brasil é quem se po- siciona de modo mais autônomo, sendo mais crítico de Israel, numa tentativa de aumentar suas relações com países árabes, como Iraque e Arábia Saudita, para obter vantagens econômicas no suprimento de petróleo mais barato. Por fim, na Ásia, três países possuem posições bastante singulares. A República Popular da China era aliada da URSS, mas, a partir de 1971, passou a se aproximar dos EUA. Atualmente é um forte opositor do socialismo soviético, defendendo um regime socialista maoista, conforme os preceitos do governo de Mao Zedong. Defende a libertação dos povos do Oriente Médio do julgo dos soviéticos e uma aproxima- ção desses países com a China e com os Estados Unidos. A China apoia as ações da OPEP, pois o aumento 102 UFRGSMUNDI do preço do petróleo permitiu o aumento das exportações chinesas e a exploração de petróleo na China, com um consequente aumento das vendas para outros países da Ásia. A Índia, por sua vez, é contrária às ações da OPEP, pois o aumento do preço do petróleo afetou a frágil economia indiana. O país entende que a desregulamentação do sistema monetário e financeiro mundial, com o fim do Sistema de Bretton Woods em 1971 e com o aumento do preço do petróleo, são os principais fatores para o desemprego, a recessão econômica, o aumento da inflação e a eclosão de greves e revoltas no país. Quanto ao con- flito árabe-israelense, a Índia se posiciona favoravelmente aos árabes e condena as políticas agressivas de Israel, defendendo também a criação de um Estado Palestino. De modo geral, é próximo da URSS, mas mantém uma política de não-alinhamento, privilegiando as relações com países do Terceiro Mun- do. Por último, o Japão mudou sua política externa em função dos eventos ocorridos durante a guerra do Yom Kippur. Passando por uma fase de grande crescimento econômico, recuperando-se das perdas econômicas decorridas da Segunda Guerra Mundial, o Japão é fortemente dependente do petróleo árabe vindo do Oriente Médio. Contudo, é aliado dos EUA e constitui o chamado bloco capitalista. Antes um apoiador de Israel, o Japão passou a apoiar os países árabes, após ter sofrido um embargo provisório de petróleo, movido por Arábia Saudita e Kuwait. Por já sofrer gravemente os impactos do aumento do preço do petróleo, o país mudou de seu apoio a Israel e passou a condenar a ocupação ilegal dos territórios árabes, inclusive de Jerusalém Oriental. Na questão do petróleo, ainda se posiciona de modo fortemente contrário ao aumento abusivo do preço do petróleo realizado pelas empresas petrolíferas estrangeiras, que comprometem a capacidade de crescimento e competitividade internacional da economia japonesa. 5. QUESTÕES A PONDERAR: 1. Quais serão os impactos do cessar-fogo e como se configurarão as relações entre os países do Oriente Médio, principalmente Egito, Síria e Israel? 2. Como as disputas territoriais poderão ser resolvidas? O que fazer para que as fronteiras sejam delimitadas de um modo que seja aceito por ambos os países beligerantes? Como os demais países podem participar desse processo? 3. A quem o aumento do preço do petróleo beneficiou e a quem prejudicou? Com base nisso, a ação da OPEP foi benéfica para os países membros da organização? 4. O que os países podem fazer para diminuir a vulnerabilidade de suas economias e da econo- mia mundial a crises como essa do petróleo? 5. Qual o impacto da Guerra Fria e das disputas por área de influência no Oriente Médio na Guerra do Yom Kippur de 1973? Como os países podem utilizar esse conflito para definirem sua postura internacional frente à disputa da Guerra Fria e ao mundo dividido entre o bloco capitalista e o bloco soviético? REFERÊNCIAS AMIN, Samir. 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RESUMO A Assembleia Geral da das Nações Unidas (AGNU) é o principal e mais representativo da órgão ONU, or- ganização responsável por manter a paz e a estabilidade do sistema internacional de Estados. Na terceira edição do UFRGSMUNDI, a AGNU será simulada historicamente, como o encontro ordinário do órgão no ano de 1974. O tópico a ser debatido será A Crise do Petróleo de 1973 e seus impactos no sistema internacional. Deverão ser abordados nas discussões dos delegados, aspectos referentes aos impactos econômicos e estratégicos da crise causada pelo aumento do preço do petróleo por países membros da OPAEP (Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo) em retaliação ao apoio estadunidense à Israel durante a Guerra do Yom Kippur, e em apoio à Síria e Egito, beligerantes do conflito. A guerra do Yom Kippur durou de 6 de Outubro de 1973 até o dia 26 daquele mesmo mês, enquanto o aumento do preço do petróleo só teve fim em março de 1974. Espera-se que durante o comitê os delegados possam debater os impactos econômicos da crise do petróleo, ao mesmo tempo em que buscam solucionar as instabilidades da região do Oriente Médio e Levante, marcados pela inten- sa disputa entre árabes e israelenses. 105 CDH CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS Impacto de Sanções Econômicas sobre os Direitos Humanos Luiza Lopes 1 Othon Schenatto 2 Joana Vaccarezza 3 Lívia Costa 4 INTRODUÇÃO O Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU) é um órgão intergovernamental criado em 2006 para fortalecer e promover a defesa dos Direitos Humanos no mun- do, bem como reconhecer as violações de direitos humanos e criar recomendações para elas. O órgão é composto por 47 países eleitos pela Assembleia Geral 5 da ONU 6 , e substitui a Comissão de Direitos Humanos da ONU 7 – existente entre 1946 e 2006 – exercendo funções similares a esta. Sediado em Genebra, na Suíça, o CDH cria recomendações 8 para a Assembleia Geral da ONU. Dentre diversos assuntos, o CDH trabalha com proteção e promoção dos direitos de minorias, de po- pulações nativas, diminuição das desigualdades de gênero, promoção da democracia, da liberdade de expressão, do direito à alimentação, da liberdade de crença e religião, combate à escravidão e ao tráfico de pessoas, etc (CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS, 2014). 1. HISTÓRICO Sanções internacionais são medidas que um país (ou grupo de países, como a União Europeia) toma contra outro país (ou contra outro alvo, como empresas, grupos ou pessoas) 9 . Essas medidas são contrárias ao interesse do país alvo das sanções e são uma reação a alguma ação ou comportamento do país-alvo que desrespeite alguma lei do Direito Internacional 10 ou que ofereça alguma ameaça ter- 1 Estudante do 5º semestre de relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 Estudante do 5º semestre de relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Estudante do 3º semestre de relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Estudante do 5º semestre de relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 5 A Assembleia Geral da ONU é o órgão que reúne todos os países membros da organização. Nela, os países podem discriminar sobre qualquer assunto que quiserem, tendo cada membro um voto. As resoluções aprovadas por esse órgão não são obrigatórias. 6 Os países são eleitos de acordo com a seguinte paridade por região: 13 da África, 13 da Ásia, 6 da Europa Oriental, 8 da América Latina e Caribe, e 7 da “Europa Ocidental e Outros” (que inclui a América do Norte, a Oceania e a Turquia). 7 A Comissão de Direitos Humanos da ONU foi extinta e substituída em 2006 em função de receber inúmeras críticas por permitir que países com pouco ou nenhum respeito pelos direitos humanos fizessem parte dela. 8 Ao contrário de outras medidas tomadas por órgãos da ONU, como as resoluções do Conselho de Segurança, as recomendações aprovadas pelo CDH não são obrigatórias, ou seja, os países não são obrigados a segui-las. Mesmo assim, as recomendações do CDH exercem grande pressão sobre os países, pois possuem grande legitimidade. 9 Neste guia de estudos, nós concentramos nossa atenção nas sanções internacionais voltadas para outros países, e não a grupos de pessoas ou indivíduos. 10 Direito Internacional é o conjunto de normas e valores que guiam as relações entre os países. Essas normas podem vir tanto de tratados internacionais, como de costumes repetidos e obrigatórios de comportamento nas interações ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.105-128 106 UFRGSMUNDI ritorial a outros países. Elas buscam pressionar um país para que este modifique e repare estas ações e comportamentos, para prevenir impactos maiores dessas ações e para punir o país em questão. Dentre outros motivos, as sanções podem ser utilizadas para levar países em guerra a encerrá-las, deter e punir o terrorismo, promover direitos humanos, restaurar líderes políticos eleitos democraticamente, promover o desarmamento de um país (DECAUX, 2008). A noção disseminada sobre as sanções diz que ela é uma alternativa pacífica à guerra. Como disse o ex-presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, em 1919: “Uma nação que sofre um boicote é uma nação prestes a se render. Aplique este re- médio econômico, pacífico, silencioso e mortal e não haverá necessidade para o uso da força. É um remédio terrível. Não custa nenhuma vida fora da nação boicotada, mas faz um tipo de pressão que, no meu julgamento, não pode ser resistido por ne- nhuma nação.” (KONDOCH, 2002?, tradução nossa). Entretanto, como veremos adiante, nem sempre as sanções levam a nação a “se render” ou a bus- car modificar seu comportamento, o que levanta dúvidas sobre sua eficácia. Muitas vezes, elas apenas trazem privações à população do país, sem afetar a elite política e, consequentemente, não conseguindo atingir o seu objetivo de modificar a política interna do país. As sanções internacionais podem ser aplicadas por diversos motivos, desde violações de direitos humanos a ameaças à paz internacional, e podem assumir várias formas. Vamos separar essas formas em cinco categorias diferentes (BOSSUYT, 2012), a fim de melhor compreensão: 1. Sanções econômicas: são medidas que afetam a capacidade de produção e de consumo de um país, e que atingem grande parte – se não toda – a população do país. Exemplos de san- ções econômicas são a imposição de limitações a importações e/ou exportações de produtos do/para o país, ou sanções que atinjam o seu sistema financeiro. Esse tipo de sanção será mais bem trabalhado adiante; 2. Sanções diplomáticas: diminuem as relações diplomáticas entre os países. Medidas como a expulsão de embaixadas e embaixadores, o cancelamento de vistos diplomáticos 11 de políti- cos e autoridades do país estão entre os exemplos de sanções diplomáticas. Embora diminua significativamente o diálogo entre os países, esse tipo de sanção não afeta tão diretamente a população como um todo; 3. Sanções militares: afetam as capacidades de defesa do país-alvo. Entre os exemplos desse tipo de sanção está a interrupção de vendas e transferência de armamentos ou de suprimentos militares para o país e a interrupção de assistência ou treinamento militar entre os países; 4. Sanções culturais: tem como exemplos o banimento de atletas do país de competições inter- nacionais ou de artistas de eventos internacionais. Embora não afete o país de maneira ma- terial, esse tipo de sanção busca causar um impacto psicológico na sua população, causando constrangimentos morais que levariam a uma mudança de comportamento do país; 5. Outros tipos de sanções: como exemplo, o impedimento de viagens a cidadãos de um deter- minado país, ou de passagem de determinados navios ou aeronaves. Para compreender melhor essa dinâmica entre o uso de sanções e o seu impacto sobre os direitos humanos, cabe retomar a trajetória histórica do uso de sanções buscando um maior entendimento das sanções econômicas e perceber suas nuances ao longo do tempo, em meio às diferentes correlações de força no sistema internacional de países. 1.1. PRIMEIROS REGISTROS DE SANÇÕES ECONÔMICAS Sanções econômicas fazem parte da prática diplomática desde a Grécia Antiga. Um dos casos caso mais conhecido é o Decreto de Megara feito por Péricles em 432 a.C. como resposta ao sequestro de três mulheres (STE. CROIX, 1972, p. 252-260; FORNARA, 1975, p. 222-26). A sanção consistia na limitação à entrada de produtos de Megara no mercado de Atenas. No longo prazo, essa medida contribuiu para a eclosão da Guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas. Por terem sido pouco documentadas e estudadas ao longo da história, costuma-se fixar o início histórico das sanções econômicas em 1765 com a Lei do Selo, lançada pelo governo da Inglaterra, que entre países, ou ainda dos chamados princípios gerais de direito. 11 Vistos diplomáticos são vistos concedidos às autoridades e aos diplomatas de um país, que permite a sua livre cir- culação entre os países, bem como a inviolabilidade de seus bens. 107 CDH dizia que os habitantes das treze colônias inglesas na América do Norte tinham de afixar selos em todos os jornais, folhetos e em numerosos documentos legais que circulassem por elas. Como os selos eram ingleses, na prática essa lei servia como uma forma de exploração, pois ao comprá-los os colonos trans- feriam recursos para a Inglaterra. Em resposta a essa medida, os colonos passaram a boicotar produtos ingleses e, por fim, a medida foi revogada no ano seguinte (RENWICK, 1981, p. 5). Além desse caso citado, costuma-se englobar nos primeiros registros de sanções econômicas outros acontecimentos anteriores à Primeira Guerra Mundial, tal como o ocorrido entre 1767-70, mais uma vez envolvendo a Inglaterra e suas então colônias norte americanas: mais um decreto, dessa vez o Ato Townshend, que criou impostos sobre diversos produtos, como o chá, vidro, papel, é rechaçado pelos colonos, dando origem aos primeiros anseios do Boston Tea Party 12 e seus desdobramentos no processo de independência dos Estados Unidos (RENWICK, 1981, p. 5). Fazendo um salto histórico até 1912 13 , chegamos à Itália com seu bloqueio econômico sobre a Turquia com vistas a conquistar a Líbia. Com o apoio de outras correlações de força internacionais, a Itália consegue tomar a Líbia do então Império Otomano (DUPUY, 1970, p. 926). 1.2. SANÇÕES ECONÔMICAS PÓS GUERRAS MUNDIAIS. A maioria dos episódios de sanções econômicas que antecederam a Primeira Guerra Mundial cul- minou em conflitos armados, seja entre grupos civis de um país, seja entre potências 14 ou entre metrópo- les e suas colônias ou regiões subordinadas. É somente a partir de 1918 e mais claramente após 1944 que se começa a pensar que a vantagem de uma sanção econômica estaria principalmente em seus reduzidos custos em comparação com a guerra, em poder substituí-la. Durante a Segunda Guerra Mundial, o objeti- vo das sanções econômicas era justamente desencorajar ações militares do país atingido por sanções, ou servir como ferramenta a um objetivo estratégico de desmobilização do inimigo de modo que um futuro embate militar fosse evitado, como no caso das sanções dos Estados Unidos sobre o Japão entre 1940- 41. Essas sanções visavam a cortar o suprimento de petróleo do Japão, sem o qual suas forças armadas não poderiam agir, e redesenhar o equilíbrio de forças no Sudeste Asiático. Outro exemplo são as sanções dos Estados Unidos sobre a Argentina (1944-47), que tinha o objetivo de neutralizar a influência nazista sobre a região, além de fragilizar o governo de Juan Domingo Perón. É no período após a Segunda Guerra Mundial, a partir da consolidação da superioridade bélica e econômica norte-americana, que as sanções econômicas passaram a ser aplicadas com outros fins diplo- máticos, sem esquecer a centralidade de sua capacidade de desmobilização militar. Esse período é mar- cado por fortes pressões econômicas encabeçadas pelos Estados Unidos para assegurar o cumprimento de sua agenda de interesses internacionais. A pressão que fez sobre a França e Reino Unido para retirar suas tropas de Suez, no Egito, e a coerção sobre Egito para que parasse de apoiar o Iêmen e o Congo em troca de ajuda alimentícia servem de bons exemplos dessa nova aplicação das sanções (HUFBAUER et al, 2007, p. 34). Sanções econômicas também foram utilizadas para alterar regimes políticos de diversos países. No período da Guerra Fria, por exemplo, os Estados Unidos aplicaram sanções contra o governo socialista de Cuba (que duram até hoje), República Dominicana, Brasil e Chile (HUFBAUER et al, 2007, 48). É possível afirmar que as sanções econômicas às quais esses países foram submetidos contribuíram – ainda que não se possa determinar o quanto contribuíram – para os golpes aplicados nos presidentes democraticamen- te eleitos Rafael Trujillo, da República Dominicana em 1961, João Goulart no Brasil em 1964 e Salvador Allende no Chile em 1973. Aliás, é a partir do século XX que se nota uma grande utilização de sanções econômicas com objetivo de alterar regimes governamentais, visto que essa é uma maneira relativamen- te menos agressiva de a opinião pública perceber agressões externas (corpo midiático, sociedade civil, etc.), mas que podem ser tão intervencionistas e violentas quanto propriamente uma intervenção militar estrangeira, desestabilizando a balança de pagamentos de um país e aumento seu endividamento exter- no, criando maiores laços de dependência com os grandes centros capitalistas de poder. 1.3. SANÇÕES ECONÔMICAS A PARTIR DE 1990 Os discursos de defesa da democracia e da liberdade de expressão encabeçados pelos EUA e pela União Europeia ganham força a partir da década de 1990, ano da Guerra do Golfo quando o Conselho de 12 Boston Tea Party foi um protesto ocorrido em 1773 em que diversos colonos invadiram navios ingleses na cidade de Boston e atiraram caixotes de chá no mar. 13 O espaço de tempo entre 1770 e 1912 pode ser consultado em nosso apêndice no final do livro. 14 O termo potência se refere ao país que é considerado de destaque no globo por ter grandes capacidades militares, econômicas e estar envolvido nas dinâmicas internacionais mais importantes. 108 UFRGSMUNDI Segurança da ONU aplica inúmeras sanções comerciais, financeiras e militares ao Iraque, por suas tropas terem invadido o Kuwait. Além do Oriente Médio, é visível a aplicação de sanções econômicas - especial- mente sob o manto do discurso de violações de direitos humanos - no continente africano (Nigéria, Togo, Burundi, Camarões, países que viviam maiores conflitos internos tais como guerras civis e de grandes recursos energéticos, como o petróleo.). Sanções econômicas também foram e são usadas principalmente para coibir ações terroristas desde 1970, com intensificação a partir dos anos 2000, depois do atentado às Torres Gêmeas nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. Em 1980, por exemplo, os EUA aplicaram sanções econômicas con- tra a Líbia, Síria, Iraque e Iêmen por apoiarem atividades terroristas com armamentos e auxílio técnico. A “Guerra ao Terror” promovida pelo ex-presidente americano George W. Bush baseou-se fortemente em sanções econômicas; é importante frisar que a utilização de sanções é uma maneira estratégica de con- seguir apoio (ou melhor, de não ser vetado) pela comunidade internacional dado que é tido como uma forma diplomática e pacífica de resolução de conflitos. No entanto, no caso da Guerra ao Terror, é notória a utilização de sanções como o início de uma futura intervenção militar propriamente dita, como ocorri- do no Afeganistão e no Iraque, locais que sofreram duras violações de guerra e de soberania. 1.4. SANÇÕES ECONÔMICAS NOS DIAS ATUAIS Sanções econômicas foram feitas primeiramente para penalizar um ator internacional sobre um determinado ato e constrangê-lo a alterar sua postura. Mas e quando o custo financeiro é tão grande e capaz de jogar um país à falência? Como avaliar a legitimidade e grau de impacto (muitas vezes violento) de sanções? Este é o foco dos estudos atuais sobre sanções internacionais. Vista como uma alternativa não violenta e menos dispendiosa em comparação com o estado de guerra, é importante lembrar que, com o uso de sanções, ocorre um processo contraditório. Isto é visível na medida em que os países que aplicam sanções utilizam um discurso de defesa dos direitos humanos para justificar o seu uso, enquanto os países alvo dessas sanções frequentemente passam por violações de direitos essenciais justamente por causa dessas sanções, que afetam mais sensivelmente grupos vul- neráveis, tais como crianças, idosos, determinados grupos étnicos e religiosos minoritários e mulheres. Para grande parte dos diplomatas, trata-se, no entanto, de uma boa alternativa à intervenção armada. Entretanto, diversas organizações humanitárias internacionais contestam esse tipo de ação pelos danos sociais delas decorrentes. O contexto internacional de uso de sanções atualmente se insere no modo de produção capitalis- ta guiado pelo poder bélico e financeiro de grandes potências como os Estados Unidos. Isso acaba tor- nando as sanções como mais um instrumento de poder da política internacional guiada por estes países e seus interesses. É importante lembrar que diversos outros instrumentos internacionais liderados pelas grandes potências, assim como as sanções, também servem para impor determinadas políticas e condições aos outros países. Nos anos 1970, por exemplo, os países latino-americanos entraram em uma situação de endividamento exterior intensivo, provocada muitas vezes pelas imposições de órgãos financeiros inter- nacionais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Interamericano de Desenvolvi- mento (BID). Isso acontece porque, apesar de estes órgãos oferecerem grandes somas de dinheiro que países com economias mais fracas precisam para o seu processo de desenvolvimento, essas ofertas de empréstimo sempre estão ligadas a algumas condições que o país deve cumprir, tais como maior abertura econômica que desfavorece os termos de troca, além de austeridade econômica que corta garantias so- ciais e privatiza os bens públicos, deixando em completo abandono a população mais pobre e explorando ainda mais a classe trabalhadora. Além disso, essas condições muitas vezes tem como efeito a subordina- ção desses países às potências que têm mais controle sobre esses órgãos; essa situação de dependência é ocasionada via os empréstimos que foram feitos com juros altos, resultando em grande endividamento. Isso gerou, no caso da América Latina, altas taxas de desemprego, níveis de pobreza extrema, crianças desnutridas e subnutridas e baixa expectativa de vida (UNICEF, 2001). No início dos anos 1980, um novo modelo de desenvolvimento começou a se impor no mundo através desses órgãos: o neoliberalismo 15 . Assim, com pressões diretas exercidas pelo FMI e pelo Ban- co Mundial, diversos países passaram de um extremo ao outro com uma série de desregulamentações, privatizações e leis de livre mercado, aumentando ainda mais o número de pessoas na linha da pobreza, violando a garantia de direitos básicos essenciais. É importante ter isso em mente na medida em que, embora diversos países sejam condenados pelas grandes potências por não conseguir garantias de di- 15 Em linhas gerais, o neoliberalismo é o conjunto de ideias políticas e econômicas capitalistas que defende a não participação do Estado / governo na economia. Ganhou força na década de 1970, através da Escola Monetarista do economista Milton Friedman, como uma solução para a crise que atingiu a economia mundial em 1973, provocada pelo aumento excessivo no preço do petróleo. 109 CDH reitos humanos aos seus cidadãos, muitas dessas violações ocorrem justamente pelo regime político e econômico mundial, por exemplo, o capitalismo neoliberal que só aumenta a margem de mais pessoas na pobreza e se preocupa prioritariamente com o lucro das grandes bancos e corporações. Farzana Bari, ati- vista paquistanesa e diretora do Centro de Excelência em Estudos de Gênero da Universidade de Quaid- -e-Azam, afirma que os organismos financeiros internacionais são os principais responsáveis pelo fato de os direitos humanos não se mostrarem prioritários para os países (BARI apud GOMBATA, 2013). Ela afirma: O tipo de monopólio do mundo hoje está cada vez mais anulando a competição em favor dos negócios e não das pessoas [...] Muitos Estados 16 e nações não conseguem assegurar direitos fundamentais. A economia neoliberal baseada em livre mercado, na liberalização e na globalização colocou ainda mais pessoas em risco. 2. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA 2.1. TIPOS DE SANÇÕES INTERNACIONAIS As sanções internacionais se dividem entre aquelas que são aplicadas pelo Conselho de Segurança da ONU, chamadas de sanções multilaterais, e aquelas que são aplicadas por um país ou grupo de países sem passar pelo crivo da ONU, chamadas de sanções unilaterais. 2.1.1. SANÇÕES MULTILATERAIS Sanções multilaterais se referem a sanções aplicadas por organismos representativos da comuni- dade internacional de países. Pode ocorrer dentro da ONU ou entre países participantes de um mesmo órgão regional, como o Mercado Comum do Sul (Mercosul) ou a União Africana. Neste guia, vamos estu- dar mais detalhadamente as sanções multilaterais aplicadas pela ONU, pois é nos moldes dessas sanções que as outras ,as multilaterais, se baseiam. A Carta das Nações Unidas prevê em seu Capítulo VII – referente a ações que podem ser tomadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) contra ameaças à paz internacional e atos de agressão – que o Conselho de Segurança (CS) é o organismo da ONU 17 que pode discriminar ações a serem tomadas em conjunto pelos países contra esse tipo de ameaça. O Artigo 41 desse capítulo prevê que tais medidas “poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou de outra qualquer espécie e o rom- pimento das relações diplomáticas” (BRASIL, 1945), medidas que, como vimos antes, constituem sanções internacionais. Este capítulo também determina que todos os países são obrigados a cumprir com as decisões do CS. A Carta das Nações Unidas é uma carta assinada por todos os países membros da Organização das Nações Unidas. Ao assinarem tal carta, eles concordam com todas as suas disposições e se comprome- tem a cumpri-las. Assim, todos os países, ao menos em teoria, concordam que o Conselho de Segurança tem o poder de decidir sobre as medidas e sanções que vão ser aplicadas por todos eles a um país ou grupo de países 18 . É importante ressaltar esse fato na medida em que, embora existam 193 países partici- pantes da ONU, apenas 15 participam do Conselho de Segurança, sendo 5 permanentes 19 . Esses 5 mem- bros permanentes possuem poder de veto sobre as decisões, o que significa que, se algum desses países não concorda com as medidas sendo discutidas, elas não poderão ser aprovadas. Os outros membros não possuem poder de veto e possuem um mandato de apenas dois anos no Conselho, o que faz com que tenham uma influência muito pequena nas decisões do CS. Na prática, isso faz com que as decisões feitas pelo Conselho de Segurança tenham uma influência significativamente maior dos interesses e per- cepções dos membros permanentes do conselho. Assim, quem tem o controle sobre esse tipo de decisão é um grupo muito restrito de países. 16 Palavra utilizada neste guia como sinônimo de país, significando a forma de organização política deste. 17 O Conselho de Segurança da ONU é, juntamente com a Assembleia Geral da ONU, o principal órgão da ONU. Ele é composto por 15 Estados membro, sendo 5 permanentes e 10 eleitos para mandatos de 2 anos, de acordo com a seguinte paridade: 2 assentos para América Latina e Caribe, 2 para África, 2 para Ásia, 2 para Europa Ocidental e Outros, e 1 para o Leste Europeu. O último assento alterna entre Ásia e África. O Conselho de Segurança zela pela manutenção da paz e da segurança internacional. 18 Além dessas sanções que devem ser impostas por todos os países obrigatoriamente, o Conselho de Segurança tam- bém pode recomendar a aplicação de sanções, sem que elas sejam obrigatórias. 19 Os membros permanentes do Conselho de Segurança são: Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido. 110 UFRGSMUNDI A maior parte das sanções que o CS já aplicou foi aprovada depois de 1990 – após a crise da União Soviética. Isso aconteceu porque a política da Guerra Fria fazia com que a União Soviética (atualmen- te Rússia, membro permanente do CS) vetasse praticamente qualquer iniciativa estadunidense no CS e vice-versa. Com o fim da União Soviética, um novo consenso político se formou, e as decisões do CS foram destravadas, aumentando consideravelmente o número de sanções aprovadas. Muitas vezes, elas são utilizadas em função de razões que não oferecem ameaça material a outros países, como violações internas de direitos humanos. Desde então, diversas organizações tem criticado as sanções do CS, indicando que elas são ine- ficazes e são aplicadas por motivos não previstos na Carta da ONU. Um exemplo do último caso são as sanções aplicadas contra a Líbia de 1992 a 1999, criadas para forçar o país a entregar para tribunais inter- nacionais alguns cidadãos líbios suspeitos de participar de um atentado terrorista que explodiu um avião da companhia aérea Pan Am, com passageiros em sua maioria dos Estados Unidos, em 1988. Em 1999, o país decide entregar estes suspeitos, tornando este um dos únicos casos em que se pode afirmar que as sanções do CS atingiram os objetivos pretendidos. Na maior parte dos casos, as sanções sozinhas não surtiram efeito no país alvo, e o uso de forças militares foi necessário para provocar as mudanças requeri- das pelo CS. Nos casos em que forças militares não foram utilizadas, pouco efeito foi visto no sentido de o país alvo modificar seu comportamento de acordo com os pedidos do CS. Por fim, a crítica mais séria a essas sanções é o fato de elas impactarem amplos setores, se não toda a população do país, enquanto é apenas uma pequena elite política que tem responsabilidade pelos atos do país (KONDOCH, 2002?). O caso das sanções abrangentes (que afetam diversos setores da população) impostas ao Iraque em 1990, às quais se seguiu uma crise humanitária no país, com aumento nos índices de desnutrição, escassez de medicamentos, dentre outros efeitos, é um dos exemplos que melhor representa essas críticas. Essas últimas críticas tem feito o CS modificar o tipo de sanção que eles adotam, priorizando san- ções com alvos mais limitados (as chamadas “sanções inteligentes”), como contra indivíduos ou grupos que influenciem diretamente no tipo de mudança ou ações buscadas pelo Conselho, ou priorizando embargos contra produtos que estejam diretamente ligados ao conflito em questão. Ou, mesmo quando aplicam sanções abrangentes, criam exceções e brechas nas sanções para que produtos essenciais, como alimentos e remédios, tenham livre circulação (KONDOCH, 2002?). Outra questão controversa é a definição de quando uma sanção deve ser interrompida. Em alguns casos, apenas outra resolução do Conselho de Segurança pode por fim às sanções por ele aprovada. Isso cria um dilema, na medida em que todos os membros permanentes do conselho devem aprovar essa resolução. Como cada membro tem suas razões políticas e interesses particulares na implementação das sanções, eles podem ter visões diferentes sobre quais são os objetivos delas e quando devem ser inter- rompidas. Isso cria sérias dúvidas sobre o quão legítima é a manutenção do regime de sanções contra um país, sobre quanto tempo elas devem ficar em vigor e em que momento os objetivos são alcançados. Afi- nal, mesmo que todos os outros membros do Conselho de Segurança concordem com o término de san- ções a um determinado país, se um membro permanente do Conselho vetar o término, ele pode sozinho manter o regime de sanções contra esse país pelo tempo que quiser (CHESTERMAN; POULIGNI, 2003). Sob a ótica do Direito Internacional, existem controvérsias sobre até que ponto são legais as san- ções do CS. Mesmo estando estas legitimadas pela Carta da ONU, outros instrumentos do Direito Inter- nacional, como o Direito Internacional Humanitário 20 e os Direitos Humanos, colocam limitações à sua aplicação. Mais especificamente no caso das chamadas “sanções abrangentes” (sanções econômicas que afetam toda a população), existem sérias violações dos direitos fundamentais das populações locais, o que as tornam ilegais no ponto de vista de muitos juristas. É mesmo contraditório que, muitas vezes, se utilize as violações aos direitos humanos praticadas por um país como motivo para aplicar sanções que violam mais ainda os direitos reconhecidos internacionalmente das populações locais (KÖCHLER, 1994). 2.1.2. SANÇÕES UNILATERAIS O outro tipo de sanção internacional existente são as chamadas sanções unilaterais. Esse tipo de sanção é aplicado sem o controle por parte da ONU e é resultante de ações independentes de um país ou grupo de países (como a União Europeia, por exemplo) contra um país de fora desse grupo. Esse tipo de sanção ocorre com muito mais frequência e pode ocorrer por motivações mais diversas do que as sanções multilaterais. Diversos tratados internacionais tornam esse tipo de sanção ilegal do ponto de vista do Direito Internacional. Por exemplo, a Assembleia Geral das Nações Unidas em 1974 aprovou um documento chamado “Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados”. O artigo 32 dessa carta determina que 20 O Direito Internacional Humanitário diz respeito a leis e direitos das pessoas que estão em territórios alvos de con- flitos armados. 111 CDH “nenhum Estado pode utilizar ou encorajar o uso de medidas econômicas, políticas ou de qualquer outro tipo para coagir outro Estado com o fim de obter deste a subordinação do exercício de seus direitos so- beranos” (tradução nossa). Na prática, isso significa que nenhum Estado pode, de acordo com o Direito Internacional, aplicar sanções por conta própria. Mesmo assim elas são muito utilizadas para fazer pres- são política entre os países (KÖCHLER, 1994). As sanções unilaterais são aprovadas de maneira diferente em cada país. Cada Estado possui uma legislação própria que regulamenta o processo de decisão sobre quando aprovar uma sanção ou não. Nos Estados Unidos, por exemplo, são atos do Congresso Nacional que aprovam ou rejeitam sanções que o país aplica. Já as sanções da União Europeia (UE) são propostas por um dos países membros e, antes de serem aprovadas, precisam passar por uma série de órgãos internos da União Europeia para análise. Estes dois últimos atores (EUA e UE) são os que mais se utilizam de sanções unilaterais para fazer pressão política. Entretanto, em diversos lugares a prática de sanções unilaterais está presente, como entre os países do Oriente Médio, entre os países africanos, etc. Algumas dessas sanções perduram ao longo das décadas, como é o caso do duro embargo econômico imposto a Cuba pelos EUA, que será posteriormente melhor explorado. Ao contrário das sanções do CS, que precisam ser negociadas e po- dem ser barradas por um dos membros permanentes que não veja motivo para sua aplicação, as sanções unilaterais dependem apenas dos interesses do país em questão e podem ser aplicadas por motivos bem mais diversos, como sobre o pretexto de “ameaça à segurança nacional” (ressaltando que o país pode in- terpretar o que quiser como ameaça à segurança nacional), ou por “violações de direitos humanos”. Esse tipo de sanção não sofre nenhum tipo de constrangimento, apesar de ser muito criticado, especialmente por países em desenvolvimento. 2.2. IMPACTOS HUMANITÁRIOS X DIREITOS HUMANOS Impactos humanitários são acontecimentos que interferem diretamente na sobrevivência física, saúde, bem-estar e aspectos críticos do desenvolvimento de um indivíduo. Os impactos podem ser cau- sados por desastres naturais, catástrofes causadas pelo homem, conflitos armados, epidemias ou, como vamos abordar em seguida, pelo uso de sanções econômicas internacionais. Uma crise humanitária ocorre quando os impactos são sentidos por um longo período de tempo e em uma área extensa de terra, impedindo o acesso de um grande grupo de pessoas a uma ou várias de suas necessidades fundamentais como comida, água potável ou um abrigo seguro. Cada crise humanitária é diferente e exige respostas de curto, médio e longo prazo. A condição humanitária de um país, região ou bairro pode ser verificada visualmente e medida através de uma série de indicadores sociais e econômicos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2004). Os Direitos Humanos, por sua vez, são direitos que todas as pessoas possuem, simplesmente por serem pessoas. São direitos que não podem ser negados, revogados ou transferidos e independem de qualquer fator particular de uma pessoa, como etnia ou religião. Os Direitos Humanos são protegidos sob o Direito Internacional e fundamentados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada em 1948 na recém-formada Organização das Nações Unidas. A Declaração, composta por 30 direitos considera- dos fundamentais, é a base da luta universal contra a opressão e a discriminação, defendendo a igualdade e a dignidade das pessoas. Apesar de seu caráter não vinculante, ou seja, de os países não serem obriga- dos por lei internacional a cumprir os seus princípios, esta estimula o comprometimento dos governos na defesa desses através da pressão internacional. Os Direitos Humanos representam opção e oportunidade. Significam liberdade de escolha, seja de uma carreira ou de um parceiro. Incluem o direito ao trabalho remunerado e o direito de viajar livremente. Em resumo, se relacionam com a própria existência de um indivíduo, seus sonhos e seus objetivos. Em função disso, não é possível medi-los. Quando as pessoas falam de indicadores de Direitos Humanos, elas estão se referindo à medida do grau em que estes estão sendo cumpridos (ONU, 2004). Para saber se um país respeita os Direitos Humanos, é preciso identificar uma série de indicadores e acompanhar suas me- didas, dentre os quais estão os indicadores de condições humanitárias. Os últimos são a base sobre a qual especialistas de Direitos Humanos consideram se existe uma violação ou constrangimento dos direitos fundamentais. Em função disso, ao abordar o impacto causado por sanções econômicas internacionais, os especialistas se referem muito mais aos impactos humanitários. 2.3. TIPOS DE SANÇÕES ECONÔMICAS As sanções econômicas podem ser dividas em duas categorias: sanções comerciais e sanções financeiras. É importante lembrar que, quando aplicadas, elas eliminam todas as relações comerciais e/ 112 UFRGSMUNDI ou financeiras que ocorrem entre o país que sanciona e o que é sancionado, e não apenas aquelas regidas por acordos comerciais ou por contratos entre empresas dos países. As sanções comerciais mais utilizadas são a limitação das importações de produtos do país-alvo e a limitação de exportações de produtos do país que aplica a sanção para o mesmo país-alvo. A tática mais utilizada para a limitação de importações é o aumento do preço de qualquer produto originário do país- -alvo. Assim, quando esses produtos entram em mercados estrangeiros, eles não são atraentes em com- paração com produtos nacionais mais baratos. Por outro lado, ao negar ao país sancionado a importação de produtos críticos, como alimentos, o país que sanciona desestabiliza o mercado interno do país-alvo, obrigando-o a pagar mais caro para substituir esses alimentos que não são produzidos internamente. As duas formas de sanção comercial são geralmente utilizadas em conjunto. Quando apenas uma delas é escolhida, é normal que exista uma preferência por sanções de exportação (de produtos do país que sanciona para o país-alvo). A preferência ocorre porque, ao sancionar importações, o país que san- ciona acaba esgotando as opções do seu próprio mercado interno, o que pode causar insatisfação da sua população (HUFBAUER et al, 2007). As duas formas, porém, são menos utilizadas do que as sanções financeiras, que são mais prejudiciais. Sanções financeiras, por sua vez, incluem a suspensão de empréstimos a empresas (geralmente realizados por bancos), interrupção de empréstimos ao país por parte de instituições financeiras inter- nacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional e fim de qualquer tipo de ajuda financeira bilateral previamente estabelecida entre os dois países. Sanções financeiras também incluem o congelamento ou apreensão de fundos de investimento (forma de aplicação financeira) do país-alvo que estejam dentro do controle do país que sanciona. Os países-alvo são frequentemente atingidos com a interrupção de ajuda externa e financiamentos oficiais. Já as restrições privadas (para pessoas físicas) de crédito ou investimento são mais raras. Quando um país pobre é o alvo, os fundos retidos são muitas vezes insubstituíveis (HUFBAUER et al, 2007). Sanções financeiras são mais prejudiciais porque um país que é sancionado dessa maneira pode demorar meses até readquirir a confiança internacional necessária para que se retome o fornecimento de empréstimos. As sanções financeiras também são mais difíceis de escapar. No caso das sanções comer- ciais, é comum que países que não apoiam o sancionamento do país-alvo se tornem seus novos parceiros de comércio. Além disso, o preço alto dos produtos embargados ou a dificuldade de se conseguir certos produtos abrem um campo de atuação ideal para contrabandistas e a formação de um mercado negro. O impacto final das sanções comerciais é, portanto, menor. 2.4. JUSTIFICATIVAS PARA O USO DE SANÇÕES ECONÔMICAS As sanções econômicas são uma ferramenta de diplomacia internacional que têm como objetivo coagir um país-alvo a responder a uma determinada situação de uma maneira que agrade ao país reme- tente da sanção O uso de sanções pressupõe a disposição do país que sanciona de interferir no processo de tomada de decisão de um outro governo soberano. No entanto, essa intervenção se dá de maneira ponderada, complementando uma eventual censura diplomática, sem a introdução imediata de ações drásticas como o uso de força militar (HUFBAUER et al, 2007). No entanto, ao sancionar outro país, o país remetente não justifica a sua ação nesses termos. As justificativas mais comuns para a aplicação de uma sanção internacional são o envolvimento do país-al- vo em comportamentos denominados censuráveis, como o descumprimento de artigos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a cumplicidade a ações classificadas como terrorismo internacional, a busca por proliferação nuclear (ou seja, pela capacidade de fabricação própria de bombas nucleares) ou passividade em relação ao desenvolvimento do cultivo de narcóticos. Na grande maioria dos casos, as sanções econômicas são utilizadas por grandes potências inter- nacionais precisamente porque estas são grandes e podem influenciar eventos em uma escala global. Grandes potências, como os Estados Unidos, buscam uma política internacional mais ativa, pois tal atitu- de é esperada delas (HUFBAUER et al, 2007). É comum que o custo para uma grande potência da emissão de uma sanção seja menor do que o custo de não tomar nenhuma ação. No último caso, tal custo se materializa na falta de confiança da comunidade internacional na capacidade de liderança e envolvimen- to do país nos conflitos mundiais. Frequentemente, sanções são lançadas para responder a indignação nacional derivada de algum acontecimento externo e para preparar o público para medidas mais severas caso estas sejam necessárias para defender os interesses vitais da nação. Outra justificativa para o uso de sanções econômicas é a transformação do país-alvo em um exemplo para a comunidade internacional, a fim de que outros países ou os líderes destes que por acaso 113 CDH estejam contemplando políticas semelhantes ao do país-alvo sejam desestimulados. Mesmo que a políti- ca externa do país sancionado mude pouco ou não mude, a aplicação de uma sanção reforça os valores do país remetente: afirma que o país que sanciona não concorda com as ações do país-alvo e que ações acompanharão a sua censura diplomática (HUFBAUER et al, 2007). Finalmente, um objetivo mais extremo no uso das sanções econômicas é a desestabilização de um alvo, geralmente um governante ou mesmo o próprio país sancionado As sanções ainda podem ser acompanhadas de ações secretas montadas pelos serviços de inteligência do país remetente, como a assistência aos opositores de um líder do país-alvo. Em situações mais severas, a força militar pode ser empregada, seja pelo estabelecimento de tropas nas fronteiras do país-alvo ou por uma ação militar completa de ocupação. 2.5. IMPACTOS DAS SANÇÕES ECONÔMICAS “Quando as Nações Unidas ou os Estados Unidos impõem sanções contra um regime [...] eles não pretendem criar dificuldades desnecessárias para as pessoas inocentes, especialmente para as crianças e bebês. Boas intenções, no entanto, não se traduzem automaticamente em bons resultados.” (ALBRIGHT, 2000, pg. 155). Impactos humanitários são consequências inevitáveis da utilização de uma política de sanções econômicas. Para que estes sejam minimizados, é necessário um acompanhamento da situação humani- tária nos países sancionados antes, durante e após o período das sanções. Os impactos variam em tipo e grau e dependem do tipo de sanção aplicada e da sua duração (EYLER, 2007). A utilização de sanções financeiras pode gerar impactos humanitários e, consequentemente, vio- lações dos Direitos Humanos ao criar um efeito negativo na economia, aumentando a inflação e di- minuído o comércio. Qualquer um desses resultados impacta negativamente no aumento do custo de mercadorias, especialmente nos setores econômicos alvos das sanções. A ameaça da imposição de uma sanção financeira também pode fazer com que doadores internacionais reconsiderem o seu apoio ao fi- nanciamento de operações humanitárias no Estado sancionado. Finalmente, empresas estrangeiras, des- conhecendo a sua legislação nacional em matéria de sanções, podem limitar um comércio legítimo por medo de agir em violação destas leis (HUFBAUER et al, 2007). Já a utilização de sanções comerciais possui uma tendência maior a causar impactos nas condi- ções humanitárias. Além de diminuir a disponibilidade de empregos nos setores afetados, ela diminui o poder de compra dos seus funcionários, o que afeta todos os outros setores da economia do país que fornecem bens e serviços que eventualmente seriam consumidos por tais indivíduos. A restrição do co- mércio e do papel da indústria pode, igualmente, reduzir os fundos locais para funções governamentais, como o fornecimento de segurança e serviços sociais. Além disso, os serviços prestados por algumas indústrias, como o apoio direto no fornecimento de saúde e educação aos seus funcionários e depen- dentes e o pagamento das pensões de antigos funcionários, podem ser suspensos. Em países onde o san- cionamento afeta a importação de combustíveis, como o petróleo, um dos principais efeitos negativos é a falta de disponibilidade e o aumento do custo da energia, seja para o uso doméstico, o transporte ou a produção (HUFBAUER et al, 2007). Porém, nem sempre os efeitos experimentados pela população após a aplicação de uma sanção são facilmente identificados. Agências governamentais nacionais são geralmente a fonte principal de informação da qual muitos órgãos internacionais (ONU, Banco Mundial, etc.) dependem quando reali- zam avaliações da condição humanitária e econômica de um país. No entanto, as fontes nacionais de dados são algumas vezes tendenciosas ou imprecisas, deixando de refletir toda a população de forma abrangente (EYLER, 2007). Algumas agências humanitárias não governamentais realizam levantamen- tos mais rigorosos, porém esses são ocasionais e geralmente limitados em pequenas áreas geográficas. Fora do sistema das Nações Unidas, organizações de Direitos Humanos e agências de monitoramento da sociedade civil, como a HumanRightsWatch, o SIPRI (Instituto de Pesquisa Internacional sobre a Paz de Estocolmo - tradução livre) e o Conselho Norueguês para os Refugiados, entre outros, buscam coletar informações sobre muitos países. Abordagens tendenciosas dos efeitos de uma sanção econômica podem ser frequentemente en- contradas em propagandas governamentais (ONU, 2004). Ao ter os seus bens confiscados como parte de uma sanção econômica aplicada à Libéria, o presidente do país ordenou a confecção de outdoors que culpavam as sanções econômicas internacionais por problemas estruturais já existentes muito antes da sua aplicação, resultado de duas extensas guerras civis. Os outdoors objetivavam manobrar a opinião pública, tornando-a favorável ao governo e desfavorável ao “inimigo de fora”. Além disso, foi constatado 114 UFRGSMUNDI que o corte governamental, em dólares, realizado em programas de assistência social pelo governo ultra- passava em muito o valor da renda perdida pelos efeitos da sanção. É igualmente importante destacar que os efeitos causados por uma sanção econômica podem ser obscurecidos por eventos simultâneos que também contribuem para crises humanitárias como guerras, migrações em massa ou crises financeiras, além de problemas de governança no país-alvo. Apenas um acompanhamento da situação anterior ao recebimento da sanção pode determinar quais efeitos são causados por qual acontecimento e, ainda assim, geralmente com pouca clareza. 2.5.1. IMPACTOS DAS SANÇÕES ECONÔMICAS EM MINORIAS E GRUPOS VULNERÁVEIS Embora as sanções econômicas internacionais afetem a população dos países sancionados como um todo, alguns grupos dentro dela são mais prejudicados que outros. Indivíduos abaixo da linha da pobreza, mulheres, crianças, grupos étnicos desfavorecidos, idosos e refugiados são alguns dos grupos mais vulneráveis. Discriminados pelo resto da sociedade, estes indivíduos possuem de maneira geral ren- dimentos mais baixos. Assim, eles são menos capazes de obter bens e serviços necessários para a sua sobrevivência (ONU, 2004). Os costumes ou leis locais de alguns países podem criar vulnerabilidades. Mesmo quando um indi- víduo não possui uma renda baixa, ele pode ter negado o seu direito à participação em certos programas governamentais, a fundos ou até mesmo a propriedade ou ter que pagar um valor maior por certo serviço ou item simplesmente por pertencer a uma minoria. Qualquer lei que crie este tipo de vulnerabilidade é uma infração clara dos Direitos Humanos. Dentro dos grupos mais vulneráveis a sanções econômicas estão as crianças. Fisicamente mais vulneráveis a doenças e ao estresse físico, elas são menos capazes de identificar ou adquirir sozinhas os recursos necessários para um bom desenvolvimento e crescimento (GARFIELD, 1999). Em muitos países, o segundo grupo mais afetado são as mulheres, por possuírem menor escolaridade e rendimentos mais baixos do que os homens. Como geralmente são responsáveis pela criação dos filhos, possuem me- nor tempo para dedicação exclusiva ao mercado de trabalho e enfrentam discriminação na contratação. Além disso, mulheres e crianças são os usuários mais frequentes de serviços públicos, e a deterioração desses serviços durante crises econômicas e sociais pode afetá-los mais severamente (ONU, 2004). Finalmente, grupos que possuem menor acesso à informação e à educação se tornam imediata- mente mais vulneráveis às sanções econômicas. Entre estes estão os residentes de áreas rurais e os gru- pos sociais discriminados. Rádios, televisões e redes sociais são um meio importante para a transmissão de informação sobre como acessar, adquirir e utilizar recursos escassos. Na ausência destes meios, o indivíduo se torna dependente e frágil. 3. AÇÕES INTERNACIONAIS PRÉVIAS Apesar dos desafios humanitários, quando comparadas a intervenções militares, sanções ainda são encaradas como melhores políticas para constranger países que violem leis do Direito Internacio- nal ou que ameacem a paz e a segurança internacional, e são mais facilmente aceitas pela comunidade internacional do que uma guerra aberta (GARFIELD; DEVIN; FAUSEY, 1995). Atualmente, sofrem sanções das Nações Unidas pessoas e entidades ligadas aos grupos terroristas Al-Qaeda e ao Taliban, bem como os seguintes países: República Democrática do Congo, República Centro Africana, Costa do Marfim, Eri- treia, Guiné Bissau, Irã, Iraque, Líbano, Libéria, Líbia, Sudão, República Popular Democrática da Coreia e Somália. Mesmo assim, sanções econômicas são bastante controversas em meio à comunidade internacio- nal, especialmente as sanções unilaterais. Por um lado, elas são muitas vezes efetivas para evitar ou con- ter violações dos Direitos Humanos e do Direito Internacional e são uma alternativa à intervenção militar nos países agressores. Por outro, têm impactos profundos na economia dos países atingidos e na sua po- pulação (BOSSUYT, 2000). Desde o fracasso das sanções econômicas contra o Iraque, que causaram uma crise humanitária profunda, esse aspecto das sanções econômicas tem sido mais criticado. Desde então, diferentes pronunciamentos têm sido feitos por diversas organizações intergovernamentais (OIs) e não governamentais (ONGs) tanto defendendo quanto condenando o uso de sanções internacionais. A seguir, faremos um breve resumo de algumas dessas posições defendidas por organizações internacionais. 115 CDH 3.1. GRUPO DOS 77 + CHINA O grupo dos 77 é uma coalizão de países em desenvolvimento da ONU. O grupo discute políticas a serem tomadas buscando seu fortalecimento e o desenvolvimento econômico. Em 2000, durante a Cúpula do Sul, o G77 emitiu uma declaração, na qual criticou o efeito negativo de sanções econômicas sobre o desenvolvimento dos países. Segue abaixo o parágrafo 48 dessa declaração, que resume a con- denação expressa por esses países: 48. Rejeitamos firmemente a imposição de leis e regulamentações com impacto extraterritorial e outras formas de medidas economicamente coercitivas, incluindo sanções unilaterais contrárias a nações em desenvolvimento, e reiteramos a urgente necessidade de sua eliminação imediata. Enfatizamos que tais sanções não apenas minam os princípios consagrados na Carta da Organização Nações Unidas e no di- reito internacional, mas também ameaçam severamente a liberdade de comércio e investimentos. Portanto, apelamos à comunidade internacional para que não reco- nheça estas medidas nem as aplique (G77, 2000, tradução nossa). 3.2. COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DO CONSELHO ECONÔMICO E SO- CIAL DAS NAÇÕES UNIDAS (ECOSOC) Também no ano de 2000, a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas emitiu um estudo sobre sanções econômicas e seu impacto sobre os Direitos Huma- nos. Foi feita uma revisão das limitações e razões que são legitimas para usar sanções de acordo com o Direito Internacional e com a Carta da ONU. Nesse estudo, foi dado destaque para os efeitos negativos de medidas que restringem o aproveitamento dos Direitos Humanos e humanitários por parte da popula- ção visada pelas sanções. Reafirmou-se que “a ameaça [à paz e à segurança internacional] não pode ser determinada com base em motivos políticos”, motivos que levem em consideração políticas e interesses de Estados em particular, mas sim por genuíno interesse internacional (BOSSUYT, 2000). Nesse relatório, a Comissão pediu para que se levasse em consideração um teste de 6 perguntas ao tratar de sanções econômicas: 1. As sanções são impostas por razões válidas? Sanções devem ser impostas somente quando houver genuína ameaça ou violação de fato à paz e à segurança internacional. Não devem ser motivadas por benefícios econômicos ou políticos por parte de um ou mais Estados. 2. As sanções visam às partes relevantes? Sanções não devem atingir os civis que não estão en- volvidos com a ameaça à paz e segurança internacional, nem devem atingir, ou resultar em danos colaterais a terceiros Estados ou povos. 3. As sanções visam os bens ou objetos relevantes? Sanções não devem interferir no livre fluxo de bens humanitários e não devem atingir bens necessários para garantir a subsistência básica da população civil, nem provisões médicas essenciais ou materiais educacionais de qualquer tipo. O alvo deve ter uma relação razoável com a ameaça de violação ou real violação da paz e da segurança internacionais. 4. As sanções são limitadas no tempo de maneira razoável? Sanções legais podem perder sua legitimidade quando aplicadas por um grande período sem a obtenção de resultados signifi- cativos. Sanções que se mantiverem por muito tempo podem ter efeito negativo após o cessar dos delitos. 5. As sanções são efetivas? Sanções devem ser minimamente capazes de alcançar o resultado desejado em termos de ameaça, ou violação de fato, da paz e da segurança internacional. Sanções formatadas de modo a não afetarem o delito de forma efetiva devem ser tomadas como ineficazes. 6. As sanções são isentas de críticas motivadas por violações dos “princípios de humanidade e dos ditames da consciência pública”? A reação de governos, organizações intergovernamen- tais (OIs), Organizações Não Governamentais (ONGs), especialistas e do público geral devem ser levadas em consideração no que tange a avaliação de regimes de sanções. 3.3. HUMANRIGHTSWATCH A HumanRightsWatch (HRW) é uma organização não governamental que monitora violações dos Direitos Humanos e humanitários em todo o mundo. Ela elabora relatórios periódicos sobre a situação 116 UFRGSMUNDI dos Diretos Humanos nos diferentes países e age na esfera internacional, frequentemente apelando aos países e organizações internacionais para que tomem medidas necessárias para proteger os direitos fun- damentais dos diversos povos. Dentre essas medidas, figuram as sanções econômicas. Em setembro de 2013, um pesquisador da HRW na África publicou um relatório sobre a crise na República Centro-Africana. Na ocasião, ele pediu que a ONU condenasse as violações de Direitos Huma- nos e de leis do direito humanitário internacional perpetradas pelos integrantes do grupo rebelde Seleka. Este grupo havia deposto o presidente eleito e estava cometendo diversas atrocidades contra os civis centro-africanos. “Atualmente, os líderes Seleka estão agindo sob a suposição de que não há ameaça porque ninguém está prestando atenção. Mas nós sentimos que o Conselho de Segurança da ONU po- deria fazer algo sobre isso”, disse Lewis Mudge, o autor do relatório. “Eles poderiam colocar certos líde- res Seleka que tem cometido abusos de Direitos Humanos na lista de sanções. Isso vai enviar uma forte mensagem ao Seleka de que o mundo está começando a prestar atenção e que o mundo está assistindo” (BESHEER, 2013, tradução nossa). Mesmo assim, a ONG, fiel à proteção dos Direitos Humanos, condena sanções econômicas abran- gentes, advogando pelo uso de “sanções inteligentes”. Em 2000, ela enviou uma carta ao Conselho de Segurança da ONU pedindo pela reconsideração das sanções ao Iraque, que sofria uma grave crise huma- nitária, resultado das sanções que o país sofria, na visão da organização (GLOBAL POLICY FORUM, 2000). 3.4. LIGA DE ESTADOS ÁRABES - OU LIGA ÁRABE A Liga Árabe é uma organização composta por países árabes localizados entre o Norte da África e o Oriente Médio que buscam, desde 1945, reforçar os laços econômicos, culturais, políticos e sociais entre si. Também é um espaço para resolução de controvérsias entre os membros. Ao lidar com sanções econômicas, a Liga segue um padrão semelhante ao adotado pela ONU – de adotar sanções frente a ameaças à paz internacional e aos Direitos Humanos. Isso é visível no forte grau de intervencionismo da Liga na sua região, uma das mais instáveis do planeta (HELLQUIST, 2014). O caso mais recente de forte intervenção da organização se deu no caso da Síria, em que, desde o princípio dos conflitos, houve diversas tentativas de se chegar a uma solução em âmbito regional, sem envolver as grandes potências no conflito. As violações de direito humanitário e de direitos humanos cometidas, assim como o não cumprimento por parte do governo sírio do plano de paz que havia sido acordado ainda em 2011, levaram a Liga a suspender a Síria da organização e determinar a suspensão de todas as relações comerciais de seus membros com o país, além do congelamento dos bens do governo sírio em bancos dos Estados-membros. “A Síria é um país estimado por todos nós, então é doloroso tomar essa decisão”, disse o Sheikh Hamad, do Qatar, sobre a suspensão da Síria e as sanções. “Nós queremos achar uma solução para o problema dentro de um padrão árabe” (MACFARQUHAR, 2011). 3.5. MERCADO COMUM DO SUL (MERCOSUL) O MERCOSUL é uma união aduaneira de países sul-americanos 21 que visa à formação de um mer- cado comum, através da livre circulação de bens e serviços, o estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de uma política comercial conjunta em relação a terceiros Estados, ou agrupamentos de Estados. O bloco também visa coordenar as posições dos países membros do MERCOSUL em foros econômico-comerciais regionais e internacionais. O MERCOSUL defende o livre comércio, adotando sanções econômicas apenas para punir Esta- dos-membro que desrespeitem os acordos comerciais vigentes. Em caso de ruptura da ordem demo- crática em algum membro, o MERCOSUL pode sancioná-lo através de sua suspensão da organização, como está definido pelo artigo 5 do Protocolo de Ushuaia (MERCOSUL, 1998). É o caso do Paraguai, que perdeu o direito de participar das decisões do MERCOSUL quando o presidente eleito Fernando Lugo foi destituído do poder. Essa destituição constituiu um desrespeito às leis e à ordem democrática do país. Mesmo assim, as relações econômicas entre os outros membros do MERCOSUL e o Paraguai foram man- tidas, pois os outros países-membro do bloco entenderam que aplicar sanções econômicas seria fazer a população comum sofrer por um ato que não foi de sua autoria, na medida em que os responsáveis pela destituição do presidente foram os membros do congresso paraguaio. “Fico feliz de que não exista uma sanção ou um bloqueio econômico que prejudica o país e especialmente as pessoas humildes do Paraguai. Alegramos-nos de que não tenham exercido uma sanção assim”, afirmou Fernando Lugo sobre a reação do MERCOSUL à sua deposição (LUGO... 2012). 21 São membros permanentes a Argentina, o Brasil, o Paraguai, o Uruguai e a Venezuela. 117 CDH 3.6. ASSOCIAÇÃO DE NAÇÕES DO SUDESTE ASIÁTICO (ASEAN) A ASEAN é uma organização regional composta por países do Sudeste Asiático 22 que tem como objetivos acelerar o crescimento econômico dos seus membros, fomentar a paz e garantir a estabilidade na região. O modelo adotado pela ASEAN para a solução de controvérsias é diferenciado em relação aos comumente adotados por outras organizações intergovernamentais. Contrária à rigidez regulamentar, inflexibilidade e punições - como sanções econômicas e incursões militares a países violadores de pontos presentes em seu acordo fundamental, sejam membros da organização ou não - a organização, por meio do ASEAN way (“caminho ASEAN”, tradução nossa), procura resolver seus impasses de forma a priorizar o diálogo e a valorizar os pontos em comum presentes nos assuntos tratados no bloco de países. A busca por evitar animosidades vem das divergências entre seus membros e associados, que dificilmente serão superadas, mas são deixadas de lado visando à coesão do bloco (SEVERINO, 2000). A funcionalidade desse modelo pode ser exemplificada com o caso de Mianmar. O país passou por um período de transição política, depois de mais de trinta anos de ditadura, em que grupos progressistas e opositores se enfrentaram violentamente. A junta militar que dominava o país fazia uso de seu aparato coercitivo para a manutenção de seu poder. Em 2011, a União Europeia, Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Noruega, Suíça e Austrália impuseram sanções econômicas contra Mianmar, mas desde sempre o país encontrou na ASEAN seu principal interlocutor para amenizar as tensões em torno do caos político vivido internamente. Graças ao resultado positivo das discussões sobre o futuro de Mianmar a nível re- gional através da ASEAN e às efetivas medidas tomadas para o apaziguamento do país, para a garantia de direitos básicos, da liberdade de expressão e do desenvolvimento do país, as sanções começaram a ser suspensas em 2012. Em momento algum a ASEAN impôs medidas rígidas contra Mianmar (SANCTIONS- WIKI, 2013). 3.7. UNIÃO EUROPEIA A União Europeia (UE) é um bloco composto por 28 países da Europa. O bloco desenvolve uma política comercial comum, busca criar uma integração econômico-social e um mercado comum e repre- senta o maior Produto Interno Bruto do planeta, à frente dos Estados Unidos. Dentre os seus membros, estão alguns dos países mais desenvolvidos econômica e tecnologicamente. Ao contrário da ASEAN, o bloco possui forte inclinação ao intervencionismo e à resolução rígida de conflitos. Dada a sua alta posi- ção entre as potências do mundo atual, o papel por ela assumido de agente estabilizador se reflete muitas vezes em sua política de sanções. De acordo com a Comissão Europeia, “sanções são um instrumento de natureza diplomática ou econômica que buscam alterar significativamente atividades e políticas re- lacionadas à violação do Direito Internacional ou Direitos Humanos, ou políticas que não respeitem a soberania constitucional ou os princípios democráticos” (UNIÃO EUROPEIA, 2008). Não são raros os casos de atuação por parte da UE, tanto em conjunto com outros países quanto unilateralmente, em regiões sensíveis política e economicamente do mundo, como em Mianmar, na Síria e, mais recentemente, na Ucrânia. Suas ações em diversos momentos culminam em futuras ações ado- tadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Apesar de ser muito parecida com outras organi- zações como a Liga Árabe ou a União Africana em termos estruturais, a União Europeia, assim como os Estados Unidos, possuem grande pro atividade na imposição de sanções econômicas a países violadores de Direitos Humanos ou que tomem medidas consideradas perigosas para a segurança de seus países. Por ter um papel importante na economia global, as medidas adotadas pelo bloco costumam ter um efeito mais severo nos países sancionados do que as adotadas por outras organizações internacionais (SANCTIONSWIKI, 2012). 3.8. UNIÃO AFRICANA A União Africana (UA) é uma organização pan-africana que visa à cooperação para o desenvolvi- mento da região, a integração entre os países africanos e o fortalecimento do bloco africano. A Assem- bleia Geral da UA tem o poder de determinar a imposição de sanções contra países como punição por não pagamento das contribuições estatutárias à União, violação dos princípios constados no Ato Consti- tutivo e nas regras da organização, não cumprimento das decisões da UA e mudanças inconstitucionais de regime (UNIÃO AFRICANA, 2014). O caso mais recente de sanções econômicas aplicadas pela UA é o da República Centro-Africana (RCA), já citado. A UA suspendeu o Estado-membro da organização e impôs sanções aos responsáveis do movimento Seleka, que havia tomado o poder no país e deposto o presidente, François Bozizé. 22 Membros da ASEAN são Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Filipinas, Singapura, Tailândia e Vietnã. 118 UFRGSMUNDI A organização é uma das que emitem maior número de sanções, em especial contra seus mem- bros, normalmente por motivos de graves violações humanitárias ou da legalidade da ordem política vi- gente. A organização é considerada muito avançada em sua política proativa de paz e segurança, da qual a doutrina de sanções contra mudanças inconstitucionais de governo é uma parte vital, tendo em vista sua política de “tolerância zero” para golpes de Estado. Sua prática, apesar de intervencionista, normal- mente se restringe ao continente e tem a finalidade de manter a paz e o equilíbrio na região (HELLQUIST, 2014). A República Centro-Africana, Madagascar, Costa do Marfim e o Níger compõem os principais casos de países sancionados pelo Conselho de Paz e Segurança da União Africana dos últimos 4 anos, pelos motivos anteriormente citados. 4. ESTUDOS DE CASO 4.1. IRà A República Islâmica do Irã tem sido vítima de diversas sanções diferentes ao longo de sua história. As primeiras sanções econômicas que o país sofreu após a Segunda Guerra Mundial foram de iniciativa do Reino Unido e dos Estados Unidos, de 1951 a 1953. Elas tinham como objetivo reverter as nacionaliza- ções de companhias petrolíferas feitas pelo então Primeiro Ministro, Mohammed Mossaddeq, bem como desestabilizar seu governo. As principais companhias que exploravam petróleo no país eram estrangeiras, como por exemplo a Anglo-IranianOilCompany, companhia inglesa (que hoje se chama BrittishPetro- leum) que na época possuía o monopólio de exploração sobre as reservas no sul do Irã. As nacionali- zações tirariam muitos dos benefícios que essas empresas e seus países usufruíam na exploração do petróleo iraniano. Esta situação levou a uma crise interna que terminou com a derrubada de Mossaddeq do cargo de primeiro ministro por parte do Xá Reza Pahlavi, com o apoio da agência de inteligência es- tadunidense, Central IntelligenceAgency (CIA) (BYRNE, 2013). A segunda onda de sanções ao Irã após a Segunda Guerra Mundial veio em 1979, quando ocorre a deposição da monarquia iraniana e o Irã vira uma República Islâmica comandada por um aiatolá 23 . As sanções direcionadas ao Irã consistiam em congelamento de ativos (por exemplo, contas bancárias ira- nianas nos Estados Unidos) e duraram até 1981, tendo como objetivo pressionar a libertação de reféns estadunidenses, presos no país desde a Revolução Iraniana de 1979, bem como desestabilizar o novo regime e resolver disputas relacionadas à nacionalização de empresas estrangeiras no Irã. As sanções aplicadas ao país foram relevantes para que o Irã libertasse os reféns estadunidenses. Em 1984, um novo conjunto de sanções estadunidenses entrou em vigor contra o Irã, visando a abalar a atividade de grupos terroristas supostamente apoiados pelo governo iraniano e forçar o país a terminar a guerra contra o Iraque 24 . Essas sanções proibiam a venda de armas ao Irã e mais tarde foram ampliadas na forma de difi- culdades nas exportações e importações entre Estados Unidos e Irã (HUFBAUER et al, 2007). Em 1995, os Estados Unidos interromperam o seu comércio de petróleo com o Irã e aprovaram o ILSA, “Iran and Libia Sanctions Act” (em português, “Ato de Sanções ao Irã e à Líbia”, tradução nossa). Esse ato intensificou consideravelmente as sanções ao Irã e os seus impactos. Em vez de serem voltadas diretamente ao país, esse ato penaliza as empresas que fizerem investimentos superiores a 20 milhões de dólares no setor energético do Irã, ou superiores a 40 milhões de dólares na Líbia, sejam elas empresas estadunidenses ou não. Para as empresas que fizerem esse tipo de investimento, o presidente dos Esta- dos Unidos deve escolher duas medidas entre seis possíveis para penalizar a empresa. Essas penalizações afetam a capacidade de exportação e de importação da empresa de maneira pesada e afetam tanto em- presas estadunidenses quanto as de outros países que atuem nos Estados Unidos. Em 2006, esse ato foi renovado e renomeado para “Iran Sanctions Act” (em português, “Ato de Sanções ao Irã”, tradução nossa), na medida em que foram retiradas as sanções contra a Líbia. Estas sanções foram e vêm sendo aplica- das em função da criação do programa nuclear iraniano, que visa a desenvolver a produção e consumo de energia nuclear no país. Os Estados Unidos e seus aliados vêm acusando o país de desenvolver esse programa para fins não pacíficos e vem tentando pressionar o país de diversas formas a abandonar seu programa ou limitá-lo de acordo com as regras da Agência Internacional de Energia Atômica (HUFBAUER et al, 2007). 23 Aiatolá é o título que se dá ao líder religioso que ocupa o mais alto cargo da hierarquia religiosa do islamismo. 24 A guerra entre Irã e Iraque foi um conflito armado que durou de 1980 a 1988, por vários motivos, desde disputas por territórios na fronteira entre os dois países até medo por parte do Iraque que a Revolução Iraniana se estendesse ao país. 119 CDH Além das sanções dos Estados Unidos, o Irã vem sofrendo desde 2006 com sanções do Conselho de Segurança da ONU e da União Europeia, além de outros países, pelo mesmo motivo. Enquanto o CS aplicou sanções praticamente voltadas apenas para a venda de armas para o Irã, a União Europeia aplicou sanções econômicas e em 2012 aplicaram um embargo ao petróleo iraniano. Estima-se que as sanções econômicas sobre o Irã façam com que ele perca cerca de 60 bilhões de dólares em investimentos anuais (KRAUSE-JACKSON, 2010). Considerando-se que o país possui um PIB de 548 bilhões de dólares, esse valor representa uma perda de mais de 10% de seu PIB, uma quantia con- siderável. As vendas de petróleo do Irã caíram mais de 40% após as sanções. Como as sanções também afetam uma série de produtos de importação, o país não consegue comprar diversos produtos demanda- dos pela população pelo mercado tradicional, o que tem aumentado significativamente as compras pelo mercado negro criminoso do país e o contrabando de produtos. O país tem tentado desenvolver uma “economia de resistência”, substituindo produtos estran- geiros por produtos internos e vendendo seus produtos através de terceiros países. O nível de inflação do país tem chegado a níveis históricos, conforme os preços dos produtos internos, especialmente de produtos básicos como alimentos, roupas e medicamentos, vão subindo e deixando a população exposta à insegurança alimentar. Também se estima que a produção interna de automóveis tenha sido duramente afetada, caindo aproximadamente 40%. Isso significa um aumento no desemprego do país, o que tem sérias implicações negativas para a população local, especialmente a mais pobre, que é a mais afetada por esses efeitos. Estima-se que a população vivendo na linha da pobreza tenha subido de 22% para 40% após as sanções (FARSHNESHANI, 2014). Um dos efeitos mais sérios das sanções é sobre a saúde da população, especialmente dos iranianos com doenças graves como câncer, HIV/AIDS, que passam a tem o acesso a medicamentos necessários para seus tratamentos drasticamente reduzido. O impacto das sanções internacionais sobre o Irã tem sido tão intenso que o país começou a si- nalizar uma mudança na sua política externa, demonstrando maior disposição de diálogo e negociação com os países árabes e ocidentais, especialmente com os Estados Unidos, tradicionalmente visto como inimigo do país. Em 2013, o novo presidente eleito, Hassan Rouhani, assumiu a liderança do país, apre- sentando um discurso diferente do seu antecessor, Mahmoud Ahmadinejad, que batia-se frontalmente com os países ocidententais e não estava disposto a desistir do programa nuclear iraniano, nem ceder às pressões internacionais. O novo discurso, que coloca a recuperação econômica do país acima de seu programa nuclear (sinalizando maior disposição de abrir mão dele), busca a resolução de disputas com países vizinhos e apresenta uma maior disposição de negociar com o ocidente, demonstra a percepção generalizada no país de que ele precisa adotar uma nova posição frente aos outros países, de que precisa modificar sua política externa. Essa percepção provavelmente foi muito influenciada pelo impacto das sanções internacionais sobre o país, o que tem sido comemorado pelo governo do norte-americano Barack Obama e sugere que as sanções econômicas podem ser efetivas para mudar a política de um país. 4.2. LÍBIA Como o Irã, a Líbia também sofreu sanções econômicas por um extenso período de tempo. As sanções aplicadas ao país possuíam diversos objetivos, que variavam em grau de acordo com a época do sancionamento. A primeira onda de sanções, aplicada pelos Estados Unidos, esteve diretamente ligada à decisão da presidência estadunidense de enfraquecer o regime de Muamar Kadafi. Sua justificativa prin- cipal, porém, foi a de que a Líbia estaria apoiando financeiramente grupos terroristas, especialmente os ligados ao atentado terrorista contra o voo 103 da companhia Pan Am. De um total de 270 vítimas, 189 eram estadunidenses. Dois líbios foram acusados pelo atentado. O clamor por justiça da sociedade estadunidense, iniciado em 1988 (data do atentado) continuou até 1996, quando o presidente estadunidense Bill Clinton assinou a “Lei de Sanções do Irã e da Líbia”, declarando que o patrocínio do terrorismo pela Líbia não seria ignorado, especialmente após o que o presidente afirmou ser um histórico longo e documentado de violações obscenas de Direitos Humanos e do Direito Internacional. A Lei, que inicialmente objetivava aumentar a pressão sobre a Líbia para que os suspeitos do atentado fossem extraditados, adquiriu como objetivos secundários negar à Líbia (e ao Irã) o dinheiro que seria utilizado para o financiamento do terrorismo, limitar os recursos necessários para a obtenção de armas de destruição em massa e reduzir as ambições regionais do presidente da Líbia. Entre o início das manifestações e a aprovação da Lei, Kadafi seguidamente manifestou-se em programas de rádio e de televisão dizendo que as ameaças de sanções pelos Estados Unidos só fariam a Líbia tentar uma aproximação maior à União Soviética. Além disso, o presidente declarou que guerri- lheiros árabes que objetivavam a libertação da Palestina poderiam treinar no território líbio. Em 1994, porém, ele afirmou que, caso os Estados Unidos decidissem por um embargo de petróleo, por exemplo, eles estariam prejudicando tanto os líbios quanto os estadunidenses que por ventura trabalhassem em 120 UFRGSMUNDI empresas no país. Segundo ele, seria errado punir todo um povo pela ação de dois indivíduos (os acusa- dos do atentado). Em janeiro de 2001, quando questionados a respeito da manutenção do sancionamento, Estados Unidos e Reino Unido declararam que a entrega de um veredito contra os suspeitos, que se encontravam em julgamento, do atentado contra o voo 103 não seria suficiente para o fim da política de sanções eco- nômicas contra a Líbia. A Organização das Nações Unidas havia aderido ao sancionamento da Líbia em 1992 com uma série de sanções econômicas próprias. Seu único motivo declarado, porém, foi a busca pela extradição dos acusados pelo atentado. Em seguida à declaração dos dois países, o Conselho de Segurança da ONU afirmou que a Líbia deveria preencher uma série de pré-requisitos como a compen- sação para as famílias do atentado e a aceitação da responsabilidade pelo ato de terrorismo para que o levantamento das sanções aplicadas pela organização fosse considerado. Em 2003, o Secretário de Estado estadunidense, Colin Powell, afirmou que o levantamento das sanções aplicadas pelas Nações Unidas não afetaria as sanções bilaterais aplicadas pelos Estados Unidos sobre a Líbia. Segundo ele, o país continuava muito preocupado com outros aspectos do comportamento da Líbia e, em especial, do seu presidente, como o registro pobre de cumprimento dos Direitos Humanos, a falta de instituições democráticas, seu papel destrutivo na perpetuação de conflitos regionais na África, e de forma mais preocupante, sua busca por armas de destruição em massa. As sanções só viriam a ser le- vantadas quando o país se comprometesse a tomar medidas definitivas contra o terrorismo internacional, melhorando seus índices humanitários e o sua taxa de envolvimento em conflitos. Finalmente, no início de 2006, Muamar Kadafi abriu mão voluntariamente do programa líbio de fabricação de bombas nucleares. Segundo ele, a Líbia não possuía inimigos contra quem utilizar uma bomba que eventualmente fosse fabricada, logo, não haveria motivos para a o gasto de dinheiro com o programa. De acordo com o presidente, o mundo e a aliança haviam mudado desde o início do sancio- namento da Líbia e o país estava consciente de tal fato. O programa de sanções aplicado pelos Estados Unidos e, por alguns anos, pela Organização das Nações Unidas foi encerrado em 2006 e considerado um sucesso. Os líbios acusados pelo ataque terro- rista ao voo 103 foram extraditados para julgamento e as famílias das vítimas foram indenizadas. A Líbia abriu mão de qualquer programa que objetivasse a produção de armas de destruição em massa. E final- mente, destacou-se através do seu comprometimento com a reformulação da Organização da Unidade Africana e, em seguida transformada em União Africana, financiando parte considerável as operações iniciais da nova organização. 4.3. CUBA A República de Cuba encontra-se sob embargo comercial, econômico e financeiro dos Estados Unidos desde 1960. O embargo foi iniciado em resposta à expropriação em massa de propriedades es- tadunidenses no território cubano e ao relacionamento estreito de Fidel Castro com a União Soviética (HUFBAUER et al, 2007). As sanções contra Cuba proibiram o comércio, viagens e investimentos diretos e tinha como objetivo principal a desestabilização do regime de caráter socialista de Castro. Em fevereiro de 1962, após a desastrosa invasão da Baía dos Porcos 25 , a administração americana de John F. Kennedy proibiu praticamente todas as importações de Cuba. Em outubro, as relações entre os países atingiram um novo ponto baixo após a descoberta de que a União Soviética estaria instalando mís- seis nucleares em Cuba. Os Estados Unidos impuseram então uma quarentena naval em torno de Cuba até que os mísseis fossem totalmente retirados (HUFBAUER et al, 2007), no episódio que ficou conhecido como a Crise dos Mísseis de 1962. Quando a União Soviética entrou em colapso no início da década de 1990, era esperado que o regime de Fidel Castro se desintegrasse devido à perda de seu principal parceiro comercial e provedor financeiro. Quando o regime de Castro não caiu, os Estados Unidos impuseram sanções econômicas mais rigorosas, criando a Lei da Democracia Cubana, que proibia empresas dos EUA com filias no exterior de negociar com Cuba (HUFBAUER et al, 2007). Apesar da pressão dos Estados Unidos por quase quatro décadas, Fidel Castro só se aposentou em 2008, quando Cuba passou a ser governada por seu irmão, Raúl Castro. Apesar disso, ele ainda é consultado em assuntos de grande importância para o país, atitude aprovada por unanimidade na Assembleia Nacional cubana. As sanções estadunidenses são regularmente condenadas no âmbito da Organização das Nações Unidas. Em 2007, uma votação na Assembleia Geral da ONU condenou, por 184 votos a 4 (os países que votaram contra foram: Estados Unidos, Israel, Ilhas Marshall e Palau), a utilização do embargo econômico. 25 Tentativa de invasão fracassada do sul de Cuba por exilados cubanos contrários ao novo regime de Castro, que foram apoiados e financiados pelos Estados Unidos. 121 CDH Apesar de esta última votação ter condenado o embargo pela 16° vez consecutiva, a Assembleia Geral não pode produzir resoluções vinculantes, ou seja, com poder de lei para encerrar definitivamente a punição. Apesar da vigência do embargo, é importante notar que nem todo comércio entre Estados Unidos e Cuba está proibido. Desde 2000 foi autorizada a exportação de alimentos dos Estados Unidos para Cuba, condicionada ao pagamento exclusivamente à vista. Durante a década de 1990, os Estados Uni- dos enviaram mais ajuda humanitária a Cuba que todos os então quinze membros da União Europeia e a América Latina. No entanto, a compra de remédios é problemática (GARFIELD; DEVIN; FAUSEY, 1995). Embora a legislação estadunidense não discorra sobre a compra de medicamentos por Cuba de empresas norte-americanas ou suas subsidiárias no exterior, os pedidos de licença são frequentemente arquivados ou negados. O desenvolvimento da medicina preventiva, porém, permitiu a Cuba a manutenção de bai- xas taxas de mortalidade infantil e de um programa de imunização e tratamento contra doenças comuns (INTER-AGENCY STANDING COMMITTE, 2004). 5. POSICIONAMENTO DOS PAÍSES A República Islâmica do Afeganistão foi palco de conflitos internacionais nos quais sanções eco- nômicas foram utilizadas para atingir fins específicos. Por essa razão, o Afeganistão se preocupa com a utilização desse instrumento de resolução de conflito e o consequente desgaste causado por ele. A República da África do Sul sofreu os impactos de sanções econômicas na época do Apar- theid 26 . No entanto, graças às sanções, o regime que subjugava a maior parte de sua população teve um fim. Como membro da União Africana, tem aplicado sanções em países vizinhos onde há instabilidade política e violação dos Direitos Humanos e atuado fortemente na busca pela estabilidade e paz regional, acatando com frequência a modelos mais duros e coercitivos para a resolução de controvérsias. A República Federal da Alemanha costuma ser muito ponderada quanto ao seu posicionamento com relação às sanções; já tendo sido historicamente alvo de sanções econômicas internacionais, atual- mente relativiza seu uso dependendo do tamanho do impacto econômico que causará com essa ação. Como membro da União Europeia, o país aplica diversas sanções em conjunto com os outros países membros dessa organização. A República de Angola é um país em desenvolvimento que faz parte da União Africana e do G77. Possui uma política externa bastante ativa em escala regional. Sua principal preocupação se encontra no fortalecimento regional e no não intervencionismo de países de fora em assuntos do bloco africano. Dentro do bloco, Angola tem uma atuação bastante forte em missões de paz, pedidos e imposições de sanções e intervenções militares, visando à manutenção do equilíbrio na região e à legalidade. O Reino da Arábia Saudita é um tradicional aliado dos países ocidentais no Oriente Médio. Mesmo cometendo diversas violações de Direitos Humanos, em especial no quesito de liberdades democráticas e de imprensa (o país é uma monarquia), e nas liberdades individuais das mulheres, o país goza do apoio dos países ocidentais, e não passou por nenhum tipo de sanções ou mesmo condenação desses países. O país tem interesse na presença dos Estados Unidos na região, e assim é favorável à prática internacional de aplicação de sanções econômicas, que serve para enfraquecer seus inimigos regionais como Irã e Síria. A República Democrática e Popular da Argélia apresenta uma postura cautelosa ao tratar de sanções econômicas. Embora tenha aprovado sanções implantadas pela Liga Árabe contra a Síria, apre- sentou ressalvas quanto ao tipo e duração destas. Sua representatividade na Liga, no entanto, é baixa. A Argélia já foi sancionada durante a década de 1990 pela União Europeia, durante a sua Guerra Civil, sob a justificativa de que as sanções seriam um estímulo ao reestabelecimento da democracia. A Comunidade da Austrália segue rotineiramente e expressamente todas as recomendações e regimes de sanções do Conselho de Segurança da ONU e aplica sanções por conta própria, como no caso das sanções a Fuji, Mianmar e Zimbábue. Isto demonstra o reconhecimento do país de que as sanções são um recurso legítimo da política internacional. No caso das sanções unilaterais, o país tem um histórico de aplicação de “sanções inteligentes”, com exceção do caso da Síria, em que o país restringiu o comércio de diversos bens e serviços, desde tecnologias à compra de produtos de luxo e petróleo. 26 O regime de Apartheid na África do Sul era um regime que excluía a população negra do país em benefício da popu- lação branca, que era dominante, apesar de minoritária. Esse regime estava instituído em leis e na própria Constituição do país. Quem não era branco deveria viver em uma área limitada do território sul-africano e não podia votar nem participar do governo nacional, além de estar sujeito a outras políticas segregacionistas. 122 UFRGSMUNDI A República Federativa do Brasil é membro do MERCOSUL e do G77. Tradicionalmente um país não intervencionista, defende a soberania e a autonomia das nações, assim como preza o diálogo como meio de resolução de conflitos e desavenças entre países. Por conta de tais características, busca inter- mediar embates internacionais através de uma solução que permeie o senso comum e decisões multila- terais. Apesar de normalmente contrário a sanções com finalidade política, atua com frequência sancio- nando países em termos de violações comerciais, que, segundo o país, não configuram intervenção na soberania de outros países. O Canadá cumpre um papel relevante na defesa da não proliferação nuclear no mundo. Sob esse argumento, o país possui uma postura rígida em relação ao Irã, principalmente, apesar da recente mudan- ça de tom da comunidade internacional na abordagem do tema. A República Centro-Africana tem passado por um aumento no número de conflitos ligado a rivalidades religiosas dentro do país. Estima-se que milícias armadas ligadas a grupos cristãos tenham perseguido políticos e civis muçulmanos, depois que um grupo rebelde tomou o poder no ano passado. Como consequência, diversos países tem ameaçado utilizar “sanções inteligentes” contra indivíduos li- gados a esses grupos, e existem sanções do Conselho de Segurança da ONU que até mesmo prevêem a atuação de tropas europeias no país para garantir a segurança da população (ONUBR, 2014). Em 2013, o país já havia sido suspenso da União Africana. A República Popular da China mantém uma política de não-intervenção nos assuntos internos de outros países e preza seus interesses econômicos. Parte dessa política é a animosidade chinesa em rela- ção a sanções econômicas. Pequim faz parte do G77, que, como já foi dito, condena sanções econômicas, especialmente as unilaterais. Junto com a Rússia, a China vetou as tentativas do Conselho de Segurança de impor medidas restritivas à Síria. No CSNU também criticou as sanções ao Zimbábue 27 e a Mianmar. Entretanto, ocasionalmente faz uso de ameaças e pressões econômicas pontuais e informais contra em- presas e países para obter um comportamento mais favorável à sua economia e à sua posição de poder na esfera internacional. Pequim não se preocupa em justificar suas medidas com base em violações do Direito Internacional ou humanitário, ao contrário do discurso utilizado pelos EUA e União Europeia, pois isso vai de encontro a sua política de não-intervenção em assuntos alheios. A República Democrática do Congo possui grupos rebeldes internos que tem utilizado força ar- mada e violência para tentar tomar o poder. O país está sob um embargo de armas do Conselho de Se- gurança da ONU para impedir o acesso a armas por parte desses grupos, porém mesmo assim diversas violações de Direitos Humanos continuam ocorrendo. Assim, diversas “sanções inteligentes” têm sido aplicadas para punir e constranger indivíduos que violem esse embargo, bem como punir os grupos re- beldes. A fraca governança desse país faz com que estes grupos tenham muita força. O governo se de- clara a favor de sanções econômicas A República da Coreia possui um papel histórico sancionador, adotando um discurso de defesa dos Direitos Humanos e de não-proliferação nuclear, semelhante ao dos Estados Unidos, na sua região. A República da Costa do Marfim apresenta uma postura cautelosa ao tratar de sanções econômi- cas. Como membro da União Africana, o país entende que esforços de cooperação regionais são a melhor alternativa para a resolução de conflitos internacionais. O país foi sancionado três vezes durante a déca- da de 2000. A primeira sanção, aplicada por Estados Unidos e União Europeia, foi justificava como uma tentativa de restauração da democracia durante a sua Guerra Civil (1999-2002). A segunda, aplicada pela Organização das Nações Unidas em 2004, foi acionada após o ataque a um campo militar francês ocupa- do por rebeldes e constituiu-se apenas em um embargo de armas. A terceira e última sanção, classificada como sanção inteligente, cassou os privilégios de viagem e ativos financeiros de três políticos do país. A República de Cuba é um país notoriamente contra sanções econômicas, haja vista as grandes mazelas sociais e econômicas sofridas ao longo de sua história por conta de embargos internacionais. Adota uma postura combativa a esse instrumento e procura apoiar outras formas de resolução de conflito que não interfiram no bem estar de grupos vulneráveis da sociedade. A República Árabe do Egito adota uma postura cautelosa ao discutir sanções econômicas. O país já foi sancionado multilateralmente em 1956, após a nacionalização do Canal de Suez e em 1978 pela Liga Árabe, que buscava a desistência por parte do Egito das negociações de paz com Israel, mediadas em Camp David pelos EUA. Em transição após acontecimentos internos, o Egito atualmente dá prioridade às relações domésticas e não internacionais. No entanto, o país recentemente colaborou com o Irã durante o período em que este foi sancionado, fornecendo auxílio financeiro através do Banco de Desenvolvi- mento Egípcio-Iraniano. 27 No Zimbábue, o CS aplicou sanções contra o comércio ilegal de diamantes, usado para financiar atividades de milícias. 123 CDH Os Estados Unidos da América se expõem como defensores dos Direitos Humanos, da demo- cracia e das liberdades individuais. Devido ao seu poder sobre a esfera internacional, adotam um forte caráter intervencionista em relação a outros países. Para punir ou prevenir abusos dos Direitos Humanos e ameaças ou violações da paz e da segurança internacional, defendem sanções econômicas, além de outras medidas. Os EUA são os maiores aplicadores de sanções unilaterais atualmente. A República Francesa adota um discurso de proteção dos Direitos Humanos e intervenção nos países agressores ou altamente instáveis politicamente. Adota a imposição de medidas restritivas contra países violadores dos Direitos Humanos, tanto as da ONU quanto sanções unilaterais impostas em con- junto pela União Europeia. Tradicionalmente tem uma atuação mais forte em regiões que já fizeram parte dos territórios franceses ultramar, em especial no norte da África, visando à estabilidade, combate ao terror e manutenção do seu interesse em tais países. Costuma fazer uso de suas forças armadas unilate- ralmente em regiões cujas sanções econômicas não surtiram o efeito desejado. A República da Gâmbia foi multilateralmente sancionada por Estados Unidos, Japão e União Eu- ropeia após a aplicação de um golpe de Estado e da instalação de um governo não democrático no país. Com economia basicamente agrária, o país sofreu principalmente com perda dos auxílios ao desenvol- vimento. Sendo assim, posiciona-se contrariamente à utilização de sanções econômicas, especialmente em países que já enfrentam dificuldades relacionadas à pobreza extrema da população. A República do Haiti é um dos países mais pobres da América Latina. Altos índices de pobreza e desemprego fizeram com que as sanções econômicas aplicadas entre 1991 e 1994, em função de um golpe de Estado contra o presidente eleito democraticamente, fossem duramente sentidas pela popula- ção mais pobre, com preços de produtos básicos importados subindo drasticamente. Desde então, o país tem passado por instabilidades políticas e sociais. Em 2004, foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU a criação de uma missão de paz no país, formada por tropas de diversos países lideradas pelo Brasil, para dar suporte à polícia nacional e maior estabilidade ao governo de transição para uma democracia no país. Em 2010, um forte terremoto atingiu o país, criando uma situação humanitária catastrófica, fazendo com que a missão de paz assumisse diversas atividades de auxílio humanitário. Em 2013, o país propôs à Caricom, uma comunidade de países do Caribe, que ela adotasse sanções contra a República Domini- cana, país vizinho ao Haiti, quando este negou cidadania a mais de 300 mil pessoas, filhos de imigrantes haitianos no país. A República da Índia possui posicionamento ambíguo quando se trata de imposição de sanções e intervenções. Um dos mais importantes países emergentes, dotado de uma enorme população e de uma poderosa economia, o país se apresenta como um dos líderes do mundo em desenvolvimento. Segue as recomendações do G77 sobre a imposição de sanções, caso se julguem necessárias, tendo em vista a busca do bloco e da própria Índia por fazer frente ao intervencionismo exagerado. O posicionamento indiano acerca das rodadas de sanções impostas contra o Irã demonstra essa atitude. Por outro lado, no que tange a questões internas e diretamente ligadas ao interesse indiano, a intervenção pelas mais diver- sas vias se dá com frequência, como nas disputas comerciais, políticas e territoriais com Bangladesh, Sri Lanka e Paquistão - regiões com fortes laços históricos, onde há grande ação indiana econômica, política e militar desde a independência desses países. A República Italiana, preocupada com a consequência da imposição de sanções econômicas so- bre países vizinhos, pondera criticamente seu uso. Seus principais parceiros comerciais apreciam uma dose de tolerância maior em situações onde o uso de sanções econômicas seria normalmente conside- rado. A República Islâmica do Irã tem sido vítima de diversas sanções desde a sua criação em 1979. Atualmente, o país sofre embargo ao seu petróleo por parte dos Estados Unidos e da União Europeia, além de sofrer sanções para compra de armamentos por parte do Conselho de Segurança da ONU e sanções à importação e exportação de produtos por parte dos Estados Unidos. Os Estados Unidos e seus aliados se opõem ao programa de energia nuclear do Irã, o qual eles suspeitam que possa estar sendo de- senvolvido para fins militares, e aplicam sanções para pressionar o país a abandonar o programa nuclear, ou no mínimo dar sinais claros de que não desenvolve o programa para fins militares. As sanções têm afe- tado severamente as condições de vida do país, com um número crescente de famílias vivendo na linha da pobreza, com o acesso a medicamentos ficando cada vez mais restrito, com o desemprego aumen- tando e o preço geral de bens básicos crescendo consideravelmente. Apesar disso, o país não tem dado sinais de que pretende abandonar seu programa nuclear, afirmando que não possui ambições militares. O antigo presidente Mahmoud Ahmadinejad fazia diversas declarações hostis ao ocidente, mostrando relutância em negociar sobre o programa com países ocidentais. Para amenizar os problemas derivados das sanções, o ex-presidente tentou substituir os produtos importados por nacionais ou por substitutos de países asiáticos que não sancionaram o país. Em 2013, um novo presidente, Hassan Rohani, assumiu o poder e tem se mostrado mais aberto ao diálogo com os Estados Unidos, interrompendo algumas opera- 124 UFRGSMUNDI ções do programa nuclear em novembro de 2013 para sinalizar disposição de negociar com o ocidente. O presidente recentemente deu um discurso sobre a ilegalidade das sanções internacionais e seu fracasso enquanto instrumento político, uma vez que elas não alcançam geralmente seus objetivos. A República do Iraque é um país fortemente marcado pelas aplicações de sanções econômicas em seu território, tendo tido inúmeros problemas socioeconômicos por essa atuação. É sabido que essa região vem sido alvo de um jogo internacional de longa data e por isso esta deve ser analisada com cuida- do. Os impactos sociais que o Iraque sofreu fazem dele um opositor a esse tipo de resolução de conflito. O Estado de Israel é um país cuja história se sustenta na utilização de sanções internacionais. Dado a longa questão da Palestina – conflito de terras entre árabes e judeus, a aplicação de sanções é uma ferramenta comum para manutenção de seu poder na região, mesmo com pressão internacional para eliminação desse tipo de instrumento coercitivo. Adotando um posicionamento semelhante à vizinha Coreia do Sul, o Japão igualmente estabelece uma identidade de defensor dos Direitos Humanos. Em uma postura combativa a qualquer desestabiliza- ção da sua região, o país defende com veemência a utilização de sanções econômicas, aplicando-as com frequência à Coreia do Norte. O México, assim como o Brasil, vem aumentando sua influência e buscando um papel cada vez mais proativo nas questões inerentes ao meio. A busca por empoderamento internacional se dá, inclusive, com posicionamentos contrários aos norte-americanos, seus maiores parceiros, em questões de grande relevância, como na defesa contra o uso da força em território sírio e na sua disposição ao comércio com nações que sofreram sanções unilaterais. São contrários ao uso da força para a resolução de conflitos e observam na não intervenção e no diálogo as únicas possibilidades viáveis para resolução controvérsias políticas. A República da União de Mianmar desde a sua independência e adoção de uma política externa independente preza pela coexistência pacífica entre os diversos Estados da comunidade internacional. Sua projeção de política externa se dá baseada nos princípios da igualdade dos povos, da autonomia decisória (e não-alinhada) frente ao sistema internacional e na oposição ao colonialismo, imperialismo, agressão, hegemonia e intervenção estrangeira. Desta forma, Mianmar busca, assim como a ASEAN, OI da qual faz parte, o diálogo e a não intervenção como formas de resolução de controvérsias, visto que medi- das coercitivas não são consideradas profícuas para a manutenção das boas relações entre países. Ajuda estrangeira, que tenha o desenvolvimento como finalidade, não é entendida como forma de intervenção em assuntos internos pelo país. Os Países Baixos alinham-se com outras potências ocidentais quanto ao embargo de países chave no Oriente Médio, endossando seu apoio ao combate de redes terroristas ao redor do mundo. A República do Paraguai, tradicionalmente um país não-intervencionista, sofreu recentemente ameaças de sanções econômicas devido à deposição de Fernando Lugo, presidente do país de 2008 à 2012. O processo de impeachment, que durou apenas 36 horas, foi considerado um golpe de Estado pela maior parte dos países da América do Sul. Apesar das ameaças, o Paraguai não foi sancionado multila- teralmente pelo MERCOSUL ou pela UNASUL. A única sanção econômica imposta partiu da Bolívia, que interrompeu o fornecimento de gás para o país. Antes disso, o Paraguai já havia sido sancionado pela Liga das Nações durante a Guerra do Chaco (1932-1935) e pelos Estados Unidos durante uma tentativa de gol- pe de Estado aplicada pelo General Cesar Oviedo, comandante das forças armadas. Seguindo a política anterior, o governo atual posiciona-se contrariamente à utilização de sanções econômicas. O Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte é outro país que defende a intervenção que for necessária para proteger os Direitos Humanos e a democracia e combater o terrorismo. Assim como a França, faz parte da União Europeia e impõe sanções econômicas acordadas por essa organiza- ção, além das impostas ou sugeridas pela ONU. A Federação Russa é cética quanto ao discurso ocidental de proteção aos Direitos Humanos para defender sanções econômicas. Considera medidas restritivas um tipo de intervenção estrangeira nos as- suntos internos dos países sancionados. No CSNU, a Rússia tem se posicionado contra sanções econô- micas, condenando especialmente as sanções unilaterais por parte da UE e dos EUA. Moscou geralmente aplica sanções econômicas voltadas a países vizinhos, especialmente antigos membros do bloco sovié- tico, quando questões diretamente ligadas aos interesses econômicos e geopolíticos russos estão em questão. A República do Senegal tem participado de sanções multilaterais através da Comunidade Econô- mica de Estados da África Ocidental, organização internacional da qual participa. As sanções colocadas sobre todos os Estados-membros são uma moratória 28 sobre a importação, exportação e produção de 28 Moratória, neste contexto, se refere à proibição de importação, exportação e produção de armas leves, ou de com- ponentes destas. 125 CDH armas leves. A moratória tem por objetivo diminuir o acesso de milícias locais e grupos rebeldes a esse tipo de arma, visando a aumentar a segurança local. Além disso, em 2012 o país ameaçou sancionar o vizinho Gâmbia, em função de diversas execuções de prisioneiros que não passaram por julgamentos adequados, em uma clara violação aos Direitos Humanos desses indivíduos. A República da Serra Leoa foi alvo de sanções econômicas durante o período em que esteve em Guerra Civil (1991-2002). As principais sanções aplicadas ao país foram sanções comerciais relacionadas especificamente a produção de armas leves. Além disso, o país já foi sancionado devido ao seu envol- vimento no tráfico de diamantes. Setenta por cento da população da Serra Leoa vive em situação de pobreza extrema. Em função disso, o país foi um dos primeiros onde as chamadas sanções inteligentes foram aplicadas. Uma sanção econômica usual, seja financeira ou comercial, teria aniquilado a economia já extremamente fraca do país. O país é contrário à utilização de sanções econômicas, mesmo as consi- deradas “inteligentes”. Desde que grandes manifestações contra o governo de Bashar al-Assad resultaram numa guerra civil entre o governo e grupos opositores no país em 2011, a República Árabe Síria tem sido alvo de di- versas sanções por parte de uma ampla gama de atores, como o Conselho de Segurança da ONU (com relação a venda de componentes de uso militar), a União Europeia, os Estados Unidos, a Liga Árabe, den- tre outros (sanções econômicas). O governo de Assad diz que essas sanções, somadas à expulsão do país da Liga Árabe, visam a enfraquecer o governo da Síria, e afirmar os interesses americanos na região. O governo é acusado de reagir de maneira extremamente violenta contra a oposição do país, e mesmo de utilizar armas químicas contra civis. Entretanto, as sanções têm como efeito uma exposição ainda maior- da população a situações de risco humanitário, somadas aos efeitos da guerra. A República Federal da Somália é um dos países com situação política mais instável de todo o globo. Sem um poder estatal centralizado nem uma ampla aceitação interna, o país vive há décadas imer- so num panorama crítico. Grupos terroristas e milícias têm liberdade para fazer frente ao poder estatal, que sofre com a grande ineficácia na formulação e implementação de políticas públicas, inclusive de uma política externa. Por conta do ambiente caótico presente no país, várias sanções e incursões militares fo- ram propostas e impostas, de modo a tentar combater as quimeras desse Estado, proteger civis inocentes e constituir um governo amplamente reconhecido e estável - condições essenciais para a pacificação da região de grande importância para o mundo. De toda forma, o governo somali permite, e várias vezes solicita, ajuda estrangeira, sendo uma das medidas aprovadas o uso de sanções econômicas contra seus ofensores, desde que em consonância com a execução de seu interesse maior. Tal ajuda não pode ser confundida com intromissão estrangeira em assuntos internos, o que é amplamente criticado pelo país. A República do Sudão tem sua história demarcada negativamente pela aplicação de sanções eco- nômicas em seu território e por isso posiciona-se contra ao uso delas; a longa questão de Darfur originou inúmeros embargos (seja como sancionador ou alvo) e serviu parcialmente para o início da resolução do conflito, descrito como genocídio por inúmeros países da comunidade internacional, na mesma localidade. A República do Sudão do Sul não vê com bom grado a aplicação de sanções econômicas inter- nacionais, ainda que tenha sido auxiliada por elas no seu processo de independência. Há uma disputa internacional na região que envolve outros Estados edificulta a compreensão da situação atual da região. Sanções econômicas que fragilizam sobremaneira a economia local são vistas com distanciamento e não como a primeira forma de resolução de conflitos. A Confederação Suíça é um país neutro historicamente, mas que vem adotando uma postura que tem incomodado seus vizinhos europeus; um polêmico plebiscito sobre restrição à imigração europeia foi aprovado pela população suíça com maioria “sim”. Países da Comunidade Europeia prometem revidar com possíveis sanções econômicas, tais como a França. A Confederação Suíça tem a tradição do ponde- ramento quando o assunto é sanção econômica. A República de Uganda sofre, atualmente, ameaças de sanções de econômicas graças à procla- mação de uma lei anti-homossexualidade. A lei, vista com reprovação por inúmeros países ocidentais e pela Organização das Nações Unidas, endurece penalidades já existentes contra homossexuais, esta- belecendo a prisão perpétua para “reincidentes”. Há pouco tempo, o Banco Mundial cancelou um em- préstimo de R$ 90 milhões para Uganda pela mesma razão. Em 1978, a Uganda já havia sido sancionada pelos Estados Unidos sob a justificativa de desrespeito aos Direitos Humanos. Uganda reprova o uso de sanções econômicas com este fim, pois acredita que elas são utilizadas com o objetivo de impor uma visão ocidental sobre o país. A República da Turquia possui uma atuação muito forte em termos regionais e globais. Seu po- sicionamento costuma ser a favor de sanções e da intervenção para a manutenção da estabilidade ou defesa de seu interesse. Apesar de ter buscado uma solução pacífica para o cessar das sanções contra o Irã, o histórico turco demonstra muito mais ações incisivas e intervencionistas. O caso de maior repercus- 126 UFRGSMUNDI são atualmente é a ação turca na situação na Síria: a Turquia interveio econômica e militarmente contra o regime de Bashar al-Assad, em defesa dos rebeldes, atitude que aproximou a Turquia à União Europeia em termos de política externa. Sanções de caráter mais brando também são adotadas contra países que venham a ferir o interesse ou a história turca como contra a França quando esta condenou um episódio de suposto genocídio cometido pela Turquia em 1915. No momento atual, a Ucrânia enfrenta ameaças de sanções econômicas da Rússia, após a deposi- ção do seu ex-presidente Viktor Yanukovych. Entre a União Europeia e a Rússia, o país é considerado uma espécie de território-tampão, sujeito às vontades do bloco e da grande potência. Além disso, sanções ameaçadas pelos Estados Unidos contra a Rússia, após a invasão de territórios ucranianos, podem afetar a Ucrânia, que depende quase que exclusivamente de suas relações comerciais com os russos. Previa- mente, o país já foi sancionado pela Rússia após o desmantelamento da União Soviética, da qual fazia parte. As sanções tinham como objetivo a devolução de ogivas nucleares da URSS que permaneciam no território da Ucrânia. De 2003 a 2012, a República do Uzbequistão sofreu sanções dos Estados Unidos na forma de corte à assistência militar em função da situação deplorável dos Direitos Humanos no país. A União Eu- ropeia também aplicou um embargo de armas ao país de 2005 a 2009. O país está sendo ameaçado de receber novas sanções, em função de denúncias de aumento do tráfico de pessoas no país. O país assume uma posição neutra frente às sanções, buscando de maneira fraca resolver os problemas relacionados aos Direitos Humanos, para evitar receber novas sanções. A República Bolivariana da Venezuela é radicalmente contrária à utilização de sanções econômi- cas como método punitivo. O país já demonstrou tal fato auxiliando países sancionados, como Cuba, na recuperação de sua economia. Em 2006, os Estados Unidos estabeleceram a proibição da venda de arti- gos e serviços relacionados à defesa para a Venezuela devido à suposta falta de cooperação venezuelana em ações de contra-terrorismo. Em 2011, a Venezuela foi novamente sancionada pelos estadunidenses porque sua companhia de energia estatal apoiou o Irã durante a sua crise energética. A República Socialista do Vietnã já foi sancionada em diferentes períodos da sua história. As sanções econômicas de maior duração foram aplicadas pelos Estados Unidos durante a Guerra do Viet- nã (1955-1975), quando o país encontrava-se dividido entre Vietnã do Sul (apoiado pelos EUA) e Viet- nã do Norte (apoiado pela URSS). As sanções estadunidenses buscavam enfraquecer as forças militares, apoiadas pelos soviéticos, do Vietnã do Norte. Após a vitória deste e a formação da República Socialista do Vietnã, as sanções diminuíram gradualmente até que as relações comerciais foram normalizadas. O Vietnã voltou a ser sancionado pelos Estados Unidos em 1978 devido a acusações de violação de Direitos Humanos. O país posiciona-se contrariamente à utilização de sanções econômicas. REFERÊNCIAS ALBRIGHT, Madeleine K. 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RESUMO O Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU) é um órgão inter- governamental criado em 2006 para fortalecer e promover a defesa dos Direitos Humanos no mundo inteiro, bem como reconhecer e discutir as violações a estes direitos, além de criar recomendações para que tais vio- lações sejam evitadas. Decisões de um país, sejam elas a afirmação de uma política econômica, a decisão da entrada em um conflito ou o posicionamento em uma questão importante da Agenda Internacional, podem ser coagidas por outros países através de uma série de medidas. Isso significa que um Estado com maior poder no Sistema Internacional pode convencer outro a ações convenientes aos seus interesses. Entre as principais ferra- mentas de convencimento na política mundial estão as Sanções Multilaterais e as Sanções Unilaterais. Aplicadas pela Organização das Nações Unidas, por um grupo de países ou individualmente, elas se dividem em sanções econômicas, militares e diplomáticas, entre outras. Porém, é importante destacar que estas, em especial as San- ções Econômicas, também constituem uma forma de violação de direitos, especialmente de populações vul- neráveis como minorias étnicas e religiosas, pessoas da comunidade LGBTIQ, indivíduos que vivem próximo ou abaixo a linha da pobreza e, em muitos casos, mulheres e crianças. É necessário que as reais consequências da aplicação de Sanções Econômicas sejam trazidas à atenção do Sistema Internacional. Desse modo, o Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU deste UFRGSMUNDI tratará do tema O Impacto das Sanções Econômicas nos Direitos Humanos, buscando discutir a validade da sua utilização, mecanismos alternativos a ela e formas de impedir que populações muitas vezes afastadas dos grandes centros de decisão do Estado sofram por suas ações de política externa. 129 UA ASSEMBLEIA GERAL DA UNIÃO AFRICANA Atores Militares Não-Estatais e Forças Militares Estrangeiras no Continente Africano Ana Carolina de Sousa Melos 1 Júlia Oliveira Rosa 2 Katiele Rezer Menger 3 Leonardo Albarello Weber 4 “O dia em que toda a riqueza da África estiver efetivamente sob a autoridade soberana da África − da Cidade do Cabo ao Cairo, de Dar es -Salaam a Dakar − poder -se -á enfim julgar com todo rigor a exortação imperecível de Kwame Nkrumah: “Procurai primeiramente o reino político e todo o restante vos será dado em suplemento.” (WONDJI; MAZRUI, 2010, p. 149) INTRODUÇÃO O continente africano, considerado o berço das civilizações, sofreu por séculos com o domínio direto de potências 5 ocidentais em seu território. Desde o período das grandes navegações, iniciadas no século XV, países europeus se encarregaram de colonizar tais territórios, deixando seu povo total- mente dependente dessas metrópoles. Esse processo de colonização, intensificado no século XIX com a Conferência de Berlim e com a “partilha da África”, gerou consequências na dinâmica dos novos países africanos, as quais são sentidas até hoje em seu desenvolvimento. Os nos movimentos de independência dos países africanos se deram ao longo do século XX, prin- cipalmente após a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria criou um novo cenário de dominação no con- tinente africano, quando as potências em oposição, EUA e União Soviética, passaram a exercer influência direta na política dos Estados africanos, eliminando, de certa forma, a preponderância europeia, exercida por tantos séculos, e já enfraquecida pelos movimentos de independência. Cabe aqui ressaltar que o tipo de relações estabelecidas nesse período são bem diferentes daquelas que se deram desde o século XV com países europeus, na medida em que agora trata-se de países africanos soberanos, e não mais colô- nias. Enquanto os europeus buscaram subjugar os povos africanos de forma a torná-los dependentes, as superpotências da Guerra Fria enxergavam, contudo, nesses novos países, potenciais aliados, devido a sua posição estratégica (OLIVEIRA, 2009). Para garantir esses aliados, EUA e União Soviética contribuíram com ajuda financeira e militar, financiando movimentos internos que lhes eram favoráveis (OLIVEIRA, 2009). É, então, nesse contexto da eclosão de movimentos de independência e Guerra Fria que surge a Organização da Unidade Africana, uma organização criada na tentativa de promover um ambiente de estabilidade política para esses novos Estados que surgiam no globo. As fragilidades da instituição, no entanto, tornaram necessária a criação de um novo organismo, surgindo, assim, a União Africana (UA), em 2002, a qual tem como principal objetivo fomentar a cooperação entre os países-membros, visando a alcançar o desenvolvimento africano nas áreas sociais, políticas, econômicas e culturais. Trazendo uma nova mentalidade por parte dos membros, a UA vem trabalhando na tentativa de diminuir, cada vez mais, as intervenções estrangeiras nos assuntos internos ao continente. 1 Graduanda do curso de Relações Internacionais da UFRGS do 5º semestre. 2 Graduanda do curso de Relações Internacionais da UFRGS do 5º semestre. 3 Graduanda do curso de Relações Internacionais da UFRGS do 3º semestre. 4 Graduando do curso de Relações Internacionais da UFRGS do 7º semestre. 5 O termo potência se refere ao país que é considerado de destaque no globo por ter grandes capacidades militares, econômicas e estar envolvido nas dinâmicas internacionais mais importantes. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.129-154 130 UFRGSMUNDI A organização é dividida em diversos órgãos para garantir seu melhor desempenho, sendo a As- sembleia Geral da União Africana o órgão supremo da organização. A Assembleia Geral conta com reu- niões ordinárias, que ocorrem uma vez por ano com os chefes de Estado dos países-membros, e decisões tomadas por consenso. Não sendo alcançada a unanimidade, os membros trabalham com dois terços de aprovação. Durante as reuniões, cada país tem direito a um voto, não havendo o poder de veto para nenhum dos membros. Cabe ressaltar que os países preservam o direito de se abster 6 na votação. Os países podem, ainda, sofrerem sanções 7 , de acordo com o Artigo 23 do Ato Constitutivo – por falta de contribuições financeiras ou não cumprimento das decisões tomadas pela Assembleia – ou por mu- danças consideradas inconstitucionais em seus governos, perdendo, assim, o direito de participação na organização. Nessa reunião ordinária, vamos discutir o problema da militarização do continente e suas consequências para o desenvolvimento dos países africanos. 1. HISTÓRICO 1.1. O SÉCULO XIX E A PARTILHA DA ÁFRICA Nos fins do século XIX, França, Reino Unido, Alemanha e Portugal detinham entrepostos comerciais e mantinham estreitas relações de comércio em diferentes regiões da África. Apesar disso, sua influência na esfera política das províncias, com as quais se relacionavam, era muito reduzida. Todavia, entre 1876 e 1880, essa conduta de dominação passiva e contida começa a ser alterada ao passo que, quando algumas nações europeias começam a demonstrar explícito interesse no continente, é desencadeado um proces- so em que todas as potências da época buscam um domínio efetivo sobre alguns territórios africanos. Deixando de lado suas práticas de dominação indireta e fazendo anexações, ampliando seus domínios de entrepostos comerciais para controle político e transferindo um contingente da metrópole para se fixar nos territórios e consolidar sua dominação, essas potências dão início ao processo de partilha da África. Nesse contexto, teve espaço a Conferência de Berlim (em que estiveram presentes: Portugal, Alemanha, Grã-Bretanha, França, Espanha, Itália, Holanda, Dinamarca, Bélgica, Estados Unidos, Suécia, Áustria- Hungria e Império Otomano), que aconteceu entre os anos de 1884 e 1885, na qual acertou-se a distribuição de territórios, a aprovação de tratados de navegação e o estabelecimento de regras de ocupação do continente africano. Tal foi o sucesso da empreitada de partilha e conquista da África pelas potências europeias, que, em 1914, apesar dos focos de resistência africana, com exceção da Libéria e da Etiópia, toda a África estava dominada (BOAHEN, 2010). Durante o período de dominação colonial, a África foi submetida aos costumes e às regras da Europa. As religiões milenares foram suprimidas e tiveram que dar espaço ao cristianismo. As fronteiras que dividiam os povoados foram substituídas pelo mapa elaborado na Conferência de Berlim, que visava tão somente a otimizar a partilha entre as nações europeias e, portanto, ignorava quase totalmente as divisões pré-existentes (já existiam sistemas políticos e divisões territoriais na África antes da coloniza- ção). Os sistemas políticos vigentes foram substituídos por governanças europeias, e o continente passou a ser encarado como uma “área de influência e reserva estratégica à disposição dos poderes coloniais” (FERREIRA, 2008, p. 3). Apesar da usurpação física e material que os africanos sofreram nos anos de colo- nialismo, é válido lembrar que a colonização trouxe alguns benefícios ao continente, como a construção de escolas, ferrovias e estradas. 6 Abstenção, aqui, é o termo que define o ato de um membro optar por não emitir um voto a respeito de uma decisão, nem favorável, nem contrário. 7 Punição imposta a membros da organização que venham a descumprir os princípios que regem os artigos do Ato Constitutivo da União Africana. 131 UA Figura 1: Mapa da divisão do continente após a Conferência de Berlim Fonte: infoescola.com.br 1.2. A DÉCADA AFRICANA E AS INDEPENDÊNCIAS Pode-se considerar que esse domínio colonial se estendeu até a década de 1960, quando estourou a maioria dos movimentos de independência. Durante o período de dominação colonial africana, o mun- do passou por duas grandes guerras, que fizeram propagar seus efeitos sobre a África, uma vez que quase todos os colonizadores tomaram parte no conflito. Mais de um milhão de soldados africanos participa- ram da Primeira Guerra Mundial. Já na Segunda Grande Guerra, as relações africanas com o mercado de armamentos foram expandidas consideravelmente. O declínio das potências europeias e o prestígio de ideais progressistas e democráticos, também consequências da Segunda Guerra Mundial, seriam fatores fundamentais para a explosão dos movimentos de libertação africanos. Os Estados Unidos e a União Soviética, que, depois da Segunda Guerra Mundial, adentraram for- talecidos no cenário internacional, não haviam tomado parte na partilha da África e, portanto, não inte- ressava a eles que a Europa continuasse com seus domínios no continente. Para os Estados Unidos, o exclusivismo europeu sobre os recursos e mercados africanos não os era conveniente, pois eles expan- diam sua indústria e buscavam novos mercados, enquanto, para a União Soviética, dar apoio ao processo de descolonização era uma oportunidade de ampliação de sua área de influência internacional, sendo o próprio processo emancipatório um expoente da diminuição dos domínios das potências imperialistas. Entretanto, à medida que acirravam as tensões entre Estados Unidos e URSS, os norte-americanos foram alterando sua postura frente aos movimentos de libertação nacional africanos, ao ponto de se aliarem a potências imperialistas e condenarem movimentos emancipatórios que estivessem alinhados aos ideais soviéticos – afinal, grande parte dos movimentos emancipatórios tinha ligações com a URSS e, logo, inclinação política a ideais de esquerda. Contudo, a luta pela independência dos países africanos ganhou força em fóruns internacionais e, apesar dos entraves promovidos pelos colonizadores europeus e mesmo pelos Estados Unidos, as primeiras independências não tardaram a se concretizar. A forma e o tempo de luta por independência variou muito em cada um dos 54 países africanos. O tipo de colonização que sofreram também foi um dos determinantes de como seria sua emancipação. Além disso, os Estados Unidos, preocupados com a influência que a URSS poderia ter sobre as jovens nações, não mediram esforços para substituir a influência europeia nos países africanos pela sua própria 132 UFRGSMUNDI preponderância. Isso foi facilitado pelo fato de que, logo que rompiam alguns vínculos com os antigos colonizadores, as nações africanas se encontravam à margem do mercado mundial e ainda dependentes das nações europeias em muitos aspectos, dado que sua indústria e agricultura eram atrasadas, des- preparadas para concorrer no mercado internacional em posição de igualdade. Alguns líderes africanos empreenderam esforços para superar essa realidade, identificando os principais problemas de seus países e tentando fortalecer seus países recém-criados por meio de iniciativas de industrialização ou de coope- ração coletiva para a solução de seus problemas. Muitos países africanos se juntaram ao Movimento dos Países Não Alinhados 8 , que compreendiam também países da América Latina e da Ásia que padeciam das mesmas demandas. Cientes das carências dos novos países africanos, os Estados Unidos fizeram a eles ofertas de inclusão em programas de ajuda militar e econômica, condicionando tal ajuda a benefícios a serem con- cedidos a empresas norte-americanas em solo africano. Não obstante a isso, deu assessoria e financia- mento a grupos armados que se opusessem a governos cuja orientação era claramente anticolonialista e socialista alinhada às políticas da URSS. Na contramão de tais práticas, muitos países buscaram um alinhamento à URSS e a Cuba, o que, em plena Guerra Fria, acirrou as tensões entre os países africanos alinhados às políticas dos EUA e os alinhados às políticas soviéticas, levando a uma militarização ainda maior do continente e a um acirramento de muitos conflitos intra e interestatais. Foi na década de 1970 que a África tornou-se, mais claramente, um dos palcos da Guerra Fria. Interpretando erroneamente lutas de libertação nacional ou guerras civis como mero embate entre co- munismo e capitalismo, os EUA e a URSS maximizariam o impacto desses conflitos na África e no mundo, militarizando-os ainda mais. A França, muito mais motivada por seus interesses neocoloniais do que por ideologia, também atuaria nessas guerras, ora com ajuda militar, ora com intervenções diretas, principal- mente na derrubada de governos de viés mais nacionalista que agissem em desacordo com a dependên- cia para com a antiga metrópole. Na década de 1980, a crise econômica mundial, iniciada nos anos 1970, mostraria seus resultados, aprofundando a vulnerabilidade das economias africanas frente aos países desenvolvidos. Na primeira metade dos anos 1980, a retomada da corrida militar pelos EUA contra a URSS acabaria gerando um recuo do lado soviético, que gradualmente retirou seu apoio às lutas de revolução nacional e aos governos de esquerda (VISENTINI, 2007). Tal conjuntura desestabilizou o continente africano, e a década de 1980 veio a ser repleta de golpes militares. Figura 2: Mapa da África – movimentos de indepen- dência durante a Guerra Fria Fonte: leste4aquecimentoglobal.blogspot.com 8 O Movimento dos Países Não Alinhados teve sua origem na Conferência de Bandung, em 1955. Composto, de modo geral, de países em desenvolvimento, o movimento negava o alinhamento a um dos dois blocos da Guerra Fria, pregando um posicionamento independente e uma agenda de discussão mais adequada aos problemas do Terceiro Mundo. 133 UA 1.3 O CONTINENTE NO CONTEXTO DO PÓS GUERRA FRIA Como citado, a crise econômica mundial iniciada na década de 1970 começaria a pôr em xeque o incipiente desenvolvimento alcançado pelos africanos. As duas crises do petróleo dessa década, que resultaram no aumento do preço dos hidrocarbonetos, foram uma das principais dificuldades econômi- cas do continente, que não produzia petróleo pronto para uso, precisando importá-lo. Somado a isso, o preço das commodities 9 , que compunham a maioria das exportações africanas, decaiu. Ou seja, as importações tornaram-se mais caras, e as exportações, mais baratas 10 . Para enfrentar a falta de recursos que a atingiu na década seguinte, a África precisou contrair mais empréstimos com países e instituições financeiras internacionais, principalmente com o Fundo Monetário Internacional e com o Banco Mundial. Guiadas por princípios econômicos liberais 11 , essas organizações dispunham-se a ajudar o continente em troca de “ajustes estruturais” em suas economias. De modo geral, as medidas exigidas envolviam a redução dos gastos do governo, de tarifas comerciais, desregulamentação do mercado de trabalho e privatizações. Uma das medidas que mais teria efeito na fragilização da ordem social nos países africanos foi a diminuição do papel do Estado na economia, o que significou, entre outras coisas, o fim de certos sub- sídios 12 à produção agrícola, e mesmo os gastos sociais com educação e saúde. Funcionários públicos e soldados foram demitidos, gerando um número maior de desempregados e de pessoas desalojadas da economia. Mesmo parte das elites viu-se prejudicada, a qual acabaria se dedicando ao mercado negro ou mesmo se tornando senhores da guerra. Essa expressão refere-se normalmente a chefes militares que não se submetem ao comando central das Forças Armadas de seus países. Neste contexto, porém, trata- -se, de modo mais amplo, daqueles indivíduos que acabaram estabelecendo controle sobre uma região do país que habitavam. Muitas vezes, isso ocorreu com parceiros estrangeiros, que tinham interesse no controle de regiões estratégicas, principalmente nas regiões ricas em minérios e recursos energéticos (SCHMIDT, 2013, p. 197). Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos haviam ajudado a reprimir movimentos nacionalistas e pró-democracia, caso isso significasse aproximação com a URSS ou projetos muito independentes do Ocidente. No lugar deles, os EUA apoiaram governos autoritários que assegurassem a estabilidade em suas regiões e fossem aliados seus. Entretanto, com a erosão da bipolaridade, a partir da metade da déca- da de 1980, o interesse estadunidense em sustentar o autoritarismo dos governos que ele havia apoiado diminuiu. Porém, embora esse tipo de governo – não-democrático- perdesse força, o que se seguiu não foi a prevalência de processos graduais de democratização e melhoria de vida na África, mas sim a disper- são do poder militar e o surgimento, ou agravamento, de conflitos. Uma multiplicidade de novos e velhos atores protagonizaria os conflitos africanos na década de 1990: senhores da guerra, grupos paramilitares e gangues sem ideologia ou programas definidos avan- çaram sobre o vácuo de poder que se formava em função do desengajamento dos Estados Unidos e da URSS na África, além da própria falta de capacidade dos países em ocupar tal vácuo. O declínio de regimes autoritários abriu espaço para o agravamento de divisões baseadas na etnia ou clã, de forma que diferen- tes grupos armados passassem a reivindicar o controle de suas respectivas regiões (SCHMIDT, 2013). No caso da presença estrangeira na África, ocorreram algumas transformações. Ao contrário das interven- ções militares estrangeiras de antes, agora não era mais o governo africano e seu apoiador externo que detinham o monopólio da coerção, no caso de uma ação conjunta. Esta agora envolveria países vizinhos, soldados renegados, antigos mercenários transformados em empresas militares privadas, forças de ma- nutenção de paz baseadas localmente, forças enviadas pela ONU, ou seja, formas distintas e irregulares de poder militar (SCHMIDT, 2013). O financiamento das guerras também se diversificou, não estando mais apenas a cargo de alguma potência extrarregional, mas passando a ser sustentado pelo tráfico de drogas e armas, lavagem de dinheiro, pilhagem das populações locais e dos recursos naturais. Assim, já que distintos grupos lucravam, e ainda lucram, com as guerras na África, muitos acordos de paz ou de cessar-fogo encontraram dificuldade em sua implementação efetiva. 9 O termo commodity é normalmente utilizado para se referir a bens cuja produção é mundialmente padronizada, ou seja, em que não há diferença de qualidade significativa. São habitualmente substâncias extraídas da terra e que mantém até certo ponto um preço universal. Exemplos: café, trigo, soja, petróleo, minério de ferro. 10 Importações mais caras e exportações mais baratas significam que o saldo da balança comercial dos países afri- canos, isto é, a diferença entre o que eles compravam de outros países e o que eles vendiam para outros países, tor- nou-se negativo. Logo, esses países africanos acabavam desenvolvendo dívidas, agravando sua situação econômica. 11 O Liberalismo Econômico é a escola de pensamento dominante na Economia e engloba uma série de teóricos. Os princípios liberais básicos envolvem uma visão pessimista acerca da atuação do Estado na economia, além de acredi- tarem que os indivíduos (ou as empresas) sempre fazem investimentos de forma mais eficiente e contribuem para o bem-estar geral. Assim, as chamadas “forças de mercado” deveriam ser deixadas livres, e o papel regulador e interven- tor do Estado deveria ser minimizado. 12 Auxílio financeiro a pessoas ou empresas com o objetivo de fomentar determinada atividade econômica. 134 UFRGSMUNDI Uma das crises mais relevantes no pós Guerra Fria ocorreu na República Democrática do Congo (RDC), antigo Zaire. Devido à sua posição central no continente e à sua riqueza em recursos naturais, o país tem papel estratégico nos conflitos africanos e ainda se mantém como grande foco de instabilidade. Embora tenha experimentado algum tempo de governo de viés nacionalista e que buscava um maior desenvolvimento para o país após sua independência da Bélgica, em 1960, o Congo acabaria sendo go- vernado por mais de 30 anos por Mobutu Sese Seko que, com a ajuda das Nações Unidas e do Ocidente, manteve-se no poder até 1997. Nesse ano, o guerrilheiro Laurent Kabila, apoiado pelos vizinhos Ruanda e Uganda, conduziu a derrubada de Mobutu. Entretanto, depois de chegar ao poder, Kabila rompeu com seus antigos aliados, os quais responderam apoiando grupos separatistas dentro do território congolês. Para resistir, Kabila pediu ajuda a Angola, Zimbábue e Namíbia, que contiveram a ofensiva contra o novo presidente. A crise congolesa é emblemática em demonstrar que certos conflitos, embora tenham traços de guerras civis, facilmente extrapolam as porosas fronteiras africanas, transformando-se em guerras entre países. Por isso, os violentos conflitos separatistas na República Democrática do Congo foram cha- mados de Primeira e Segunda Guerra do Congo (Guerra Mundial Africana) (SPOHR; ANDRIOTTI; CERIOLI, 2013, p. 118). Embora a ONU tenha enviado missões de paz, o país continua instável, mesmo depois que Joseph Kabila assumiu o lugar de seu pai, em 2001, conduzindo à realização de eleições. País vizinho da RDC, Ruanda herdou da colonização alemã e belga a rivalidade étnica entre a mi- noria tutsi e a maioria hutu: um divisão étnica artificial e criada pelos belgas, inexistente anteriormente à colonização. Em 1990, depois de quase duas décadas do governo pró-hutu do presidente Juvénal Hab- yarimana, os tutsis, refugiados em países vizinhos, invadiram o país, culminando no assassinato de Hab- yarimana em 1994. A situação deu origem a um violento genocídio em Ruanda contra os tutsis e hutus moderados. Por isso, parte da população ruandesa se refugiou em países vizinhos e até mesmo integrou as milícias ruandesas que invadiram a RDC entre 1996 e 2003, participando da extração ilegal de minerais congoleses e apoiando grupos separatistas, tornando tais fronteiras foco de ilegalidade e violência. Além disso, cabe mencionar o caso das independências das colônias portuguesas. Essas ocor- reram muitos anos depois da maioria do continente, reflexo da manutenção da ditadura de Salazar na metrópole, Portugal. Desgastado internamente, o regime de salazarista só permitiu a independência de Angola em 1975. Entretanto, Angola mergulhou em uma longa guerra civil entre grupos de orientação marxista, apoiados pela URSS, e outros grupos, apoiados pelo Ocidente e pela África do Sul do apartheid. O conflito só terminou, de fato, em 2002, com vitória do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Outra colônia portuguesa de grande extensão, Moçambique passou por um processo semelhan- te, com uma guerra civil findada apenas em 1992. Paralelamente às crises no centro do continente, o regime racista do apartheid ainda vigorava na África do Sul. Basicamente, o apartheid era um regime de segregação racial entre brancos e não brancos no qual a minoria branca governava o país. Mesmo que recebesse críticas do Ocidente, a segregação dentro do país só seria derrubada na década de 1990. É importante destacar que a minoria branca que governou a África do Sul envolveu-se nas guerras civis angolana e moçambicana, contra os grupos que acabariam vencendo tais conflitos, além de só ter dominado política e territorialmente a Namíbia por longo período, dando independência ao país somente em 1990. Em parte, o fim do apartheid no país deveu-se à atuação dos Países da Linha de Frente. Pertencente à região da África Austral, esse grupo de países atuou conjuntamente em organismos internacionais pela condenação e pressão sobre o regime, culminando em eleições democráticas sul-africanas em 1994. O grupo era constituído por Angola, Mo- çambique, Botsuana, Tanzânia e Zâmbia. Por fim, cabe contextualizar o surgimento da União Africana (UA), em 2002. O continente africano presenciou, desde a época das independências, processos de integração distintos 13 , que estiveram ini- cialmente vinculados ao Pan-Africanismo 14 e ao anticolonialismo. A predecessora da UA foi a Organiza- ção da Unidade Africana (OUA), criada em 1963, que gradualmente englobou os países que se tornavam independentes em torno do ideal de autodeterminação dos povos, ou seja, de que cada nação tem o direito de escolher seu governo, de definir sua própria história. A Organização cresceu até 1994, quando a África do Sul pós-apartheid tornou-se membro. Entretanto, como a África passava por crises econômi- cas e políticas, por um esvaziamento estratégico em virtude do fim da Guerra Fria e por novos conflitos intra-africanos, a OUA mostrou-se incapaz de fornecer uma base de ação que respondesse tanto aos problemas do subdesenvolvimento como aos de caráter mais político (PAES; HOSCHEIDT; FILHO, 2013, p. 141-143). Nesse contexto, a OUA foi substituída pela União Africana, a qual engloba as várias iniciativas de âmbito regional que surgiram no continente. Destaca-se uma das mais importantes diferenças entre as duas organizações: a possibilidade de a UA realizar intervenções em seus países-membros quando 13 Alguns exemplos são: a ECOWAS, sigla em inglês de Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental e a SADC, sigla em inglês de Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral. 14 O Pan-Africanismo propõe a unidade política de todos os povos africanos como forma de superar a dependência econômica e política dos países desenvolvidos. 135 UA estes passam por crises, via sanções ou mesmo incursões militares ou de manutenção de paz (PAES; HOSCHEIDT; FILHO, 2013, p. 141-143). Atualmente, dentre os países africanos, apenas o Marrocos não faz parte da organização, enquanto que Guiné-Bissau, Egito e República Centro Africana estão suspensos visto que seus governos chegaram ao poder através de golpes de Estado. 2. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA A partir dos atentados terroristas de 11 de Setembro contra os EUA, torna-se perceptível uma al- teração na política de segurança ao redor do mundo, seguindo uma tendência já iniciada com a invasão ao Kosovo 15 , em 1999, de invasão territorial sob a justificativa de intervenção humanitária. O principal foco desse novo século tem sido a forte campanha contra o terrorismo, encabeçada especialmente pelos EUA e Europa, após o anúncio de George W. Bush de uma “Guerra ao Terror Global”. Tal campanha tem sido usada amplamente como justificativa para intervenções, tanto no Oriente Médio, quanto na África. A doutrina da Guerra ao Terror mundial e as políticas da ONU de combate ao terrorismo têm servido como argumento, principalmente por parte dos EUA e de países europeus, como a França, para a realização de invasões embasadas na proteção aos direitos humanos, mas que muitas vezes são, de fato, motivadas pela busca por recursos naturais, principalmente petróleo. Outro grande desafio da União Africana em sua luta contra a multiplicação de conflitos no territó- rio africano está relacionado à questão da proliferação de armas e à facilidade com que elas chegam ao continente. Não se pode dizer que essa disponibilidade de armas é a responsável pelos conflitos na África de forma direta, mas indiretamente ela os agrava e intensifica. A facilidade de acesso está relacionada ao fim da Guerra Fria, dados os baixos preços com que os produtos foram ofertados no mercado mundial 16 . Outra consequência da Guerra Fria no continente foi o problema das minas terrestres, instaladas num sistema de “lay and forget” (do inglês, “instale e esqueça”) que impede localização do material hoje em dia, não permitindo o acesso a áreas muitas vezes férteis, o que gera problemas de segurança alimentar. O continente africano, em especial, tem visto um crescimento rápido da militarização em seu ter- ritório, tanto pela Guerra ao Terror quanto pela percepção, por parte das potências europeias, da impor- tância dos seus recursos energéticos e das novas parcerias com os países emergentes (ROBERTO, 2013). Enquanto a existência de grupos armados remete à época das independências, as empresas militares privadas, que serão explicadas posteriormente, assim como as missões de paz da ONU, têm levantado questões sobre a legitimidade das novas políticas de segurança implementadas na África. Ademais, a cria- ção de comandos estabelecidos por forças estrangeiras, principalmente de grandes potências, e a cres- cente presença das Forças Armadas francesas em suas ex-colônias, justificada pela herança das relações coloniais como uma obrigação em continuar protegendo os povos africanos, contrapõem-se aos ideais da União Africana como um organismo que vem lutando pela construção de um mecanismo próprio para solução dos conflitos internos. 2.1. GRUPOS ARMADOS: A PRESENÇA DOS ATORES NÃO ESTATAIS Segundo documento da UNICEF (MCHUGH; BESSLER, 2006, p.1), grupos armados são aqueles que utilizam-se de armamentos e força para atingir objetivos que promovam mudanças dentro de um país, região ou na própria forma de interação entre os países no mundo. Isso poderá ser feito em âmbito econômico, político, ou social. A principal característica é a sua falta de ligação com o aparato oficial dos governos dos países de uso da força ou de organizações governamentais, por isso a identificação como “atores não estatais”. Por sua vez, o terrorismo não é algo recente no continente, já existindo desde as independências e, não ocasionalmente, patrocinado por países mais poderosos, os quais, por sua vez, procuravam am- pliar sua área de influência na região. A definição de terrorismo é ampla e, por vezes, contestada. Para os propósitos desse tópico de militarização na África, terrorismo será toda aquela atividade que visa a 15 A invasão do Kôsovo pelas forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), liderada pelos EUA, ocor- reu em 1999, durante a guerra da Iugoslávia. Poder-se-ia considerar como o início da política de invasão de territórios soberanos no pós Guerra Fria. 16 Com o final do conflito, que por décadas opôs a União Soviética, socialista, e os EUA, capitalista, chegou ao fim tam- bém a corrida armamentista protagonizada pelos dois rivais, pela falta de um inimigo iminente à hegemonia estaduni- dense. Dessa forma, muitas das armas produzidas em massa por esses países e seus aliados passaram a ser ofertadas a baixos preços no mercado de armas internacional, chegando à África. 136 UFRGSMUNDI interromper uma ordem vigente, por meio de violência e pânico, com efeitos colaterais e objetivando intimidar o alvo – geralmente, o governo de um país (SCHMID, 2011, p.35-36). Nesse sentido, não é difícil perceber que grupos não estatais podem estar envolvidos em atos de terrorismo, uma vez que admitam que este – o terrorismo - possa ser um dos caminhos para atingir seus ideais. Uma das características desse novo século nas questões securitárias é a forte presença de atores não estatais nas questões relacionadas à defesa e à segurança dos países. O continente africano possui um vasto histórico de presença de atores não estatais disputando o papel político. Tendo surgido, em sua grande maioria, durante a Guerra Fria nas lutas de independência, diversos desses grupos foram for- mados dentro de uma política das grandes potências, especialmente dos Estados Unidos, de fomentar a derrubada de governos favoráveis ao comunismo. Ao mesmo tempo, tentava-se colocar no poder grupos que pudessem suprir as necessidades por recursos naturais das grandes potências. Na última década, foi possível notar uma concentração maior de grupos armados e organizações terroristas, como o Exército de Resistência do Senhor (LRA, do ingês, Lord’s Resistence Army) e o M23, que atuam na fronteira de Uganda com Ruanda, células da Al-Qaeda, e o Boko Haram (atuante na Nigéria), focando suas atividades em regiões específicas, como o Chifre da África e o norte e noroeste do continente. Uma característica marcante dos conflitos atuais nos países africanos é, certamente, o seu caráter intraestatal/internacional, com camadas de complexidade devido à presença de diferentes facções e gru- pos rebeldes. No Sudão, por exemplo, em fevereiro de 2003, o governo entrou em combate contra dois movimentos rebeldes 17 que o acusavam de preconceito aos cidadãos sem origem árabe. Para defender o governo foi, então, armada uma milícia, os Janjaweed, desenvolvendo-se um conflito, o qual teve como resultado uma crise humanitária com diversas mortes e refugiados. Somente no ano seguinte foi assinado um Acordo de Cessar-Fogo, organizado pelo Chade, além da criação de uma missão da União Africana, a AMIS. As obrigações da operação estavam inteiramente relacionadas ao conflito na região de Darfur. Mais tarde, porém, o mandato foi entregue à ONU na missão UNAMID (Missão das Nações Unidas e da União Africana para Darfur), inaugurando uma operação de paz híbrida – chefiada tanto pela organização regional, quanto pelas Nações Unidas. Vale lembrar, no entanto, que a missão da UA não obteve muito sucesso, e países, como o Chade, ainda sofrem com o transbordamento do conflito para suas regiões de fronteira (SANTOS, 2011, p. 85). As fronteiras, extremamente porosas dos países africanos, são, não à toa, outra das causas da grande quantidade de grupos armados presentes no continente. Nesse quesito, a cooperação entre as nações vizinhas é de grande importância para evitar que os conflitos transbordem para outros países, alastrando-se pelo continente. Como um grande exemplo dessa porosidade e suas consequências têm- -se os conflitos da década de 1990, que, com os genocídios em Uganda, Burundi, Ruanda e República Democrática do Congo, envolvendo os hutus e tutsis, contou com a fuga de líderes de grupos rebeldes, os quais acabavam por atuar em conflitos de países vizinhos ou apoiar movimentos armados na região. O caráter internacional que as lutas armadas ganharam no continente africano, durante a Guerra Fria, deixou como herança armamentos e pessoal capacitado, criando uma oposição forte e treinada. A falta de representatividade de diversos grupos, conjuntamente às independências e à lógica de “dividir para conquistar” aplicada pelas metrópoles - que incentivavam as desavenças sem grande lógica - deixou cicatrizes profundas no continente. Isso ficou visível no conflito entre hutus e tutsis, em Ruanda, em que diferenças físicas, praticamente inexistentes, foram utilizadas durante o domínio belga para opor social- mente as duas etnias, dando maior representação política aos hutus em detrimento dos tutsis, como comentado anteriormente. Os anos de conflito social culminaram na guerra civil, após o fim do domínio colonial, quando ambos os lados tiveram que disputar o poder desse novo país independente. As conse- quências dessa política de “dividir para conquistar” foram sentidas, em 1994, com o genocídio de tutsis e hutus, sobre o qual falaremos mais na sessão mais adiante. Outro caso emblemático é o de Uganda, com o Exército de Resistência do Senhor, um grupo armado contra o governo, criado em 1987 e liderado por Joseph Kony, que proclama ser mensageiro de Deus. O grupo tem sido acusado de cometer mutilações e estupros em massa, além de sequestrar e treinar crianças como soldados. Forçado a sair do país, em 2004, por forças militares da Uganda, o grupo acabou por transferir sua base – via fronteiras mal protegidas – para a República Democrática do Congo, Sudão do Sul e República Centro Africana. (BIRYABAREMA, 2014). Em junho de 2012, uma ofensiva da ONU foi lançada, em parceria com a União Africana, que cedeu 5 mil homens, para acabar com o LRA. As causas do conflito ainda não são exatamente claras, abarcando desde fatores econômicos até étnicos, assim como a própria intervenção de países mais poderosos têm criado retaliações frequentes, especialmente ações dos Estado Unidos, que, desde o início do século têm patrocinado esforços do governo de Uganda no combate ao LRA.Como viemos tentando demonstrar, 17 SLM/A. do inglês Sudan Liberation Movement/Army (Movimento/Exército de Liberação do Sudão) e o JEM, do inglês Justice and Equality Movement (Movimento de Igualdade e Justiça). 137 UA sempre há um interesse estratégico por detrás dessas ações empreendidas por grandes potências. Nesse sentido, Uganda já era considerado um país rico em cobre e cobalto, mas, em 2006, foram descobertas grandes reservas de petróleo na região, tornando o território ugandense muito visado. A República De- mocrática do Congo, por sua vez, também sofre ainda com diversas facções rebeldes, muitas formadas antigos membros do LRA, mostrando, mais uma vez, o caráter transnacional dos conflitos africanos e a porosidade das fronteiras. No norte e noroeste da África, na região conhecida como Sahel e Magreb (representadas nos ma- pas a seguir), no Deserto do Saara, é possível perceber uma crescente militarização não estatal, em que grupos de caráter transnacional 18 aproveitam a instabilidade dos países e governos locais para garantir seus interesses. O conflito no Mali foi um exemplo, quando a organização da Al-Qaeda do Magreb Islâmi- co (AQMI), que objetiva a construção do califado islâmico 19 , apoia e arma movimentos rebeldes aliados. Figura 3: Mapa região do Sahel Fonte: enca.com Figura 4: Mapa da região do Magreb Fonte: terramaganize.terra.com.br As origens da AQMI remontam uma ligação direta com o governo argelino, que estaria em busca de alianças para superar os embargos internacionais em armamentos que sofria, acreditando que a luta conta o terrorismo seria a maneira de fazer parcerias com os poderes ocidentais. Assim, o governo aca- bou por impulsionar o conflito, a partir da sua participação na Guerra Global ao Terror, para fins de obter as capacidades militares que anteriormente, lhe eram vetadas em função dos embargos. Assim, a Argélia passa a militarizar-se de maneira mais consistente, apoiada por uma nação externa – os EUA-, ao mesmo 18 Um grupo transnacional pode ser definido como um que não se restringe a apenas um país, atravessando fronteiras e agindo em diferentes lugares. É necessário que exista intensa cooperação entre os países para lidar com esse tipo de ameaça. 19 O califado islâmico seria um tipo de reino do Islã, que reuniria todas as nações islâmicas e retomaria o auge da religião islâmica, com prosperidade e de nacionalismo árabe. A ideia tem origem nos reinados em 660 a.C., quando houve a expansão do Império Muçulmano. 138 UFRGSMUNDI tempo em que oferece uma justificativa para a presença estadunidense na região, num espaço em que diversas células terroristas irão responder com contínuo aumento de violência (ROBERTO, 2013). A pre- sença francesa é igualmente marcante na região, tentando manter controle de suas antigas colônias e já tendo assinado acordos de parceria militar com a região francófona. Em adição a isso, após a derrubada de Muammar al-Gaddafi, que governou a Líbia entre 1969 e 2011, o norte da África e o Oriente Médio foram inundados por armas provenientes do conflito líbio, pois tanto os rebeldes quanto os apoiadores do ex-presidente líbio dirigiram-se a outros países após a morte deste. Portanto, fica visível a diferença em termos de origens dentre os próprios grupos armados não-es- tatais africanos. Como já foi apresentado anteriormente, os países africanos contemporâneos congregam diversas etnias numa só nação. Assim, algumas vezes, atores não-estatais armados surgem devido a uma insatisfação, de determinado setor populacional, frente à falta de representação política em um país, por exemplo. Desta maneira, surgiram muitos movimentos separatistas em diversas nações africanas. A am- pliação do número de países democráticos, com a onda de independências nos anos 1960, abre espaço para que o sentimento de opressão de certas minorias étnicas ou religiosas manifeste-se na vontade por criar um novo país. Esse processo era intensificado pelas duas superpotência, EUA e União Soviética, à época da Guerra Fria, pois estas fomentavam, cada uma de um lado, grupos separatistas dentro de países que convinham a seus interesses estratégicos, ou seja: aliando-se ao inimigo do seu inimigo. Uma conse- quência desse fenômeno seria uma divisão interminável – afinal, sempre existirá uma minoria, até mesmo dentro de outra minoria. Consequentemente, os países – responsáveis por congregar diferentes grupos étnicos sob uma mesma identidade nacional - por vezes, falha na hora de oferecer representatividade, o que faz com que setores da população respondam com violência a tal fato. Além das ambições separatistas descritas acima, movimentos terroristas podem, também, ser im- pulsionado por outros países mais poderosos, interessados em apoiar grupos favoráveis a eles em de- terminada região. Existem organizações terroristas transnacionais que trabalham em busca de objetivos mais amplos, além do separatismo, muitas vezes sendo auxiliadas por grandes potências. O que fica claro nessa discussão sobre movimentos separatistas e a ascensão de atores não esta- tais é que o papel dos governos dos países é enfraquecido: ou ao não servir como representante dos seus cidadãos, ou ao sofrer intervenções justificadas de maneira ambígua, ou ainda ao reprimir manifestações de insatisfação com apoio externo de países interessados na manutenção do poder como está, respon- dendo apenas com força, e não com diálogo. Enquanto um país não consegue criar a coesão nacional necessária para controlar o seu território, surgem problemas para a manutenção da segurança, a qual deveria ser o principal bem comum que um goveno pudesse proporcionar a seus cidadãos. O sentimento de insegurança também alimenta, por sua vez, a insatisfação daqueles que já não têm representatividade. É preciso, portanto, pensar em como reintegrar as minorias e os antigos membros de grupos armados de volta à sociedade daquela nação. 2.2. MISSÕES DE PAZ DA ONU Desde sua criação, em 1945, as Nações Unidas têm sido presença marcante na África. Das 68 operações categorizadas como missões de paz, entre 1948 e 2013, um total de 29 ocorreu no continente africano. Missões de paz se definem como operações desenvolvidas geralmente por organismos inter- nacionais, objetivando a promoção, manutenção, imposição e consolidação da paz. Por promover um ambiente pacífico, compreendem-se todas as ações posteriores ao início de um conflito, utilizando me- canismos de solução pacífica de controvérsias, previstos na carta da ONU. As missões de manutenção de paz são as missões voltadas para um cenário pós-conflito. Já as missões de imposição de paz são aquelas em que a ação externa – nas mãos da ONU – torna-se necessária para restaurar a paz e a segurança em um ambiente de desordem. Por fim, as missões de consolidação da paz são todas as medidas que visam a solucionar os efeitos remanescentes do conflito após seu término (MARINHA DO BRASIL, 2014). O Conselho de Segurança das Nações Unidas que é responsável por votar a utilização de missões de paz, enquanto o orçamento destas deve ser aprovado pela Assembleia Geral da ONU. No Conselho de Segurança, há discordâncias frequentes entre membros, o que tem continuamente afetado sua imple- mentação, principalmente em função de que, dentro do Conselho, existem países com poder de veto – ou seja, seu voto automaticamente anula a decisão (CONCEIÇÃO, 2009, p.2). Em termos de composição, cada missão conta com civis, militares e especialistas, autorizados a utilizar força somente para autode- fesa em caso de ataques. É muito importante ter em mente que ao contingente militar dessas operações não é permitido o uso indiscriminado da força, na medida em que se entende que não se pode construir um ambiente de paz com mais violência (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2014). Além da aprovação do Conselho de Segurança, as missões de paz da ONU só podem ser estabe- lecidas se houver o consentimento do governo do país em que ela será implantada (ONU, 2014). Quanto 139 UA à discussão sobre aprovação ou não de operações, vale destacar que existe hoje uma discussão corrente acerca de a presença das missões de paz da ONU serem realmente eficazes na busca dos seus objetivos. O que se pode afirmar é que, embora não apresentem eficácia garantida, as missões de paz ainda são o melhor mecanismo para estabilização de um ambiente de conflito (VASCONCELOS, 2012, p. 69). A maior problemática envolvendo as missões de paz tornou-se ainda mais complexa, em 2009, quando a Assembleia Geral da ONU estabeleceu o princípio da “responsabilidade de proteger”, através da resolução A/63/677 (ONU, 2014). De acordo com esse conceito, então, os países ficariam obrigados a proteger seus cidadãos em situações de guerra e genocídio. Porém, não havendo ações nesse sentido, outros países teriam o direito - e o dever - de intervir militarmente, desconsiderando a decisão soberana do governo do país em questão (SCHMIDT, 2013, p.194). No que tange à África, importa ressaltar que o continente continua sendo um foco importante das missões de paz da ONU e conflitos atualmente: das quinze operações vigentes atualmente, oito são na África (ONU, 2014) 20 . Segundo Ferreira (2010, p. 150), enquanto, na primeira década do século XXI, é possível perceber o declínio do número de conflitos na África, houve, ao mesmo tempo, um crescimento significativo das missões de paz da ONU. Ademais, é importante observar as missões de paz como ferra- mentas de resolução do conflito e não soluções finais (SCHMIDT, 2013, p.194). Contudo, no pós Guerra Fria, muitas vezes as missões de paz, apoiadas pelas grandes potências, foram utilizadas como forma de beneficiar esses países poderosos. Observa-se que, por vezes, a situação problemática dos países assolados por conflitos é, de certa forma, intensificada em importância para que as potências conseguissem atingir objetivos próprios, como colocar no poder um governo favorável a seus objetivos. Haveria, portanto, um conflito de interesses entre os dessas potências e os das próprias forças rebeldes e grupos armados, contra os quais as missões de paz eram designadas para lutar (SCH- MIDT, 2013, p.194). Um dos locais mais voláteis no continente, o qual conta com uma presença constante da ONU, com a missão UNOSOM I e II, é a Somália. O país foi tomado por um conflito durante os anos 1990 21 , no país tornou-se uma granada prestes a explodir, quando milícias islâmicas e clãs passaram a disputar o poder entre si, enfrentando-se pelo poder, devido à retirada do apoio dos EUA, os quais não viam mais necessidade em empreender esforços ali dado o fim da disputa com a União Soviética. Dessa forma, em 1992, o Conselho de Segurança decide enviar a UNOSOM I (primeira missão de paz para a Somália), obje- tivando proteger o auxílio humanitário que chegava ao país e organizar um cessar-fogo. A operação, no entanto, não obteve nenhum sucesso. Mais tarde – ainda no mesmo ano – foi enviada uma força multinacional, a UNITAF, cuja finalidade era garantir a proteção para a chegada de comida, remédio e outros recursos básicos para a população. Apesar de apresentar um grande contingente militar, a UNITAF não era autorizada a intervir no conflito militarmente. Ambas as operações foram desenvolvidas somente até 1993, quando foram, então, segui- das pela UNOSOM II (que durou até 1995), a qual visava a acabar com as milícias da Somália. Entretanto, a violência contra a população culminou em massacres e protestos contra a ONU e os EUA – que co- mandavam as forças ali empregadas -, levando ao encerramento da missão, em 1995, sem resultados (SCHMIDT, 2013, p.203-204). Esse não foi o único fracasso das missões de paz das Nações Unidas no continente. O massacre em Ruanda, em 1994, é um dos pontos mais sensíveis da história da ONU, em que a tomada de decisão para prevenir o genocídio de tutsis foi feita tarde demais: cerca de 800 mil pessoas foram mortas. A mis- são da ONU, a UNAMIR, esteve no país de 1993 até 1996, sem sucesso em prevenir o acontecimento. A grande crítica remanescente dessa atuação das Nações Unidas está na sua incapacidade de lidar com o conflito, permitindo que a guerra civil se alastrasse e trouxesse maiores consequências. O caos em que se transformou Ruanda, durante esse período, provocou um medo generalizado nas forças internacionais que ali atuavam, causando a retirada de tropas de diversos países: em abril de 1994, após a morte de 10 soldados belgas, o Conselho de Segurança da ONU determinou a retirada de 90% do contingente militar, comprometendo a continuidade da operação (SILVA, 2003, p. 84). Da mesma maneira, as missões no Sudão 22 , apesar de terem logrado a assinatura de acordos de paz serem assinados, vêm se mostrando incapazes de encontrar uma solução permanente para o conflito 20 Segundo o site da ONU, as missões estão no Mali, República Árabe Saaraui Democrática, República Democrática do Congo, Darfur (no oeste do Sudão, sendo essa uma operação em conjunto com a União Africana), em Abyei (também no Sudão), Sudão do Sul, Costa do Marfim e Libéria. Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/resources/ statistics/factsheet.shtml>. Acesso em 15 fev 2014. 21 O conflito na região data das décadas de 1960 e 1970, devido a disputas territoriais com a Etiópia, vizinha somali. 22 A UNISFA existe desde 2011 e fica em Abyei (zona de conflito entre Sudão e Sudão do Sul), com a Etiópia sendo o maior contribuinte com tropas; a UNMIS durou de 2005-2011, era no Sudão; e a UNMISS, que está no Sudão do Sul, iniciou em 2011. 140 UFRGSMUNDI ou para evitar massacres, estupros e o grande número de refugiados que foge para os países vizinhos. A situação em Darfur tem, inclusive, transbordado para países vizinhos, como para a República Centro-Afri- cana e para o Chade. Apesar desses problemas, houve casos de missões bem sucedidas, como a ONUMOZ, em Mo- çambique, esgotada pela guerra civil quando da época da implementação da operação. Nesse caso, os dois lados, rebeldes (Resistência Nacional Moçambicana - RENAMO) e governo, assinaram um acordo de paz, em 1992, criando, a partir disso, um mandato para a missão foi criado. O sucesso da operação foi condicionado pela realização de uma eleição democrática, em 1994, e tornou-se coerente por ter obje- tivos palpáveis e realistas dentro do seu contexto, assim como pelo apoio de ambas as partes do conflito (BRANCO, 2003, p.97). Da mesma forma, a missão de paz na Namíbia, a UNTAG, de 1978, também foi exemplo de opera- ção bem sucedida por ter ambos os lados em conflito enxergando a solução diplomática como melhor saída. Cabe aqui ressaltar que a UNTAG foi responsável pelo processo de independência da Namíbia em relação à África do Sul, a qual, ainda na época sob o regime do apartheid , ocupava o seu território (BRAN- CO, 2003, p.86-88). Fica, dessa forma, vê-se que o mandato da ONU só é eficiente quando há uma parti- cipação das forças internas na criação do acordo de paz a ser implementado, assim como flexibilidade e cooperação das partes com a presença estrangeira no território (BRANCO, 2003, p. 99). Como um exemplo mais atual, há a República Centro Africana (RCA), país que tem hoje sua partici- pação suspensa na União Africana 23 devido a um golpe de Estado, em 2002, o qual desencadeou confli- tos internos – os quais foram motivados pelo grupo de forças aliadas rebeldes Séléka. Com a subsequente crise humanitária beirando ao genocídio, o país tem sido a mais recente pauta nas discussões de envio de missões de paz. No início de 2014, o Conselho de Segurança da ONU autorizou a extensão do mandato do Escritório da ONU, responsável pela construção de paz 24 dentro da RCA, além de autorizar a União Europeia a utilizar forças militares para intervir no país. 2.3. FORÇAS MILITARES ESTRANGEIRAS Em um contexto de relação entre colônia e metrópole, a presença de forças militares estrangeiras era lógica dentro do continente africano. Tal política permaneceu durante o período de independências até os dias atuais. O estabelecimento de bases militares estrangeiras dentro do continente tem sido, as- sim, pauta de diversas discussões após os ataques de 11 de Setembro de 2001, empreendidos contra os EUA. Como consequência do ocorrido, uma das principais preocupações do governo estadunidense pas- sa a se configurar na organização islâmica Al-Qaeda, criada por Osama Bin Laden, que atua de maneira constante no norte da África, em países como Mali, Níger, Argélia e Mauritânia. Esse novo contexto, que se inaugura a partir do 11 de Setembro, denominado “Guerra ao Terror”, é marcado pela ampliação do braço militar das grandes potências em outros continentes, tendo a África como um dos focos. Além disso, cabe ressaltar que as investidas militares, visando a marcar presença cada vez mais ativa no continente, objetivam também garantir o fornecimento do petróleo africano a essas potências, as quais tendem a aumentar gradativamente sua dependência em relação aos recursos energéticos existentes na região (ROBERTO, 2013). A criação do AFRICOM (Comando dos Estados Unidos para a África), em 2006, demonstra, portan- to, a configuração desse objetivo de acabar com as supostas ameaças terroristas no continente. A orga- nização nasce, assim, visando a defender os interesses estadunidenses no território africano, de modo a criar uma capacidade para lidar com crises e acabar com ameaças transnacionais. Ativado somente em 2008, o AFRICOM apresenta uma sede central na Alemanha e conta hoje com um contingente de 2 mil homens. Visando sua finalidade, o AFRICOM tem auxiliado no treinamento de Forças Armadas de países africanos aliados, como a Nigéria. Vale ressaltar, no entanto, que a presença estadunidense ainda é relativamente pequena e, por isso, busca apoio de outros países dentro e fora da África, a exemplo da França e Espanha – onde ficam alocadas forças de resposta rápida para o norte africano. O fato de sua sede estar localizada em um país fora da África – a sede está localizada em uma localização próxima a cidade de Stuttgart, na Alemanha - é um ponto de grande discussão, pois entende-se que o país que abrigar essa sede pode vir a ser alvo de di- versas ameaças, como as que os EUA sofre em suas embaixadas, instaladas em outros países (ESTERHUY- 23 Segundo o Ato Constitutivo da União Africana (Artigo 30), países-membros, cujo governo tenha ascendido através de golpe (portanto, um ato não democrático), terão seu mandato suspenso até que um governo democraticamente eleito tome o poder (UNIÃO AFRICANA, 2011. Constitutive Act of the African Union. Disponível em <http://www.au.int/ en/sites/default/files/ConstitutiveAct_EN.pdf > Acesso em 19/04/2014). 24 Do inglês, peacebuilding. O conceito diz respeito não apenas a parar com o conflito, mas também estabelecer ope- rações de criação de capacidade estatal e transparência na realização de eleições e processos democráticos. 141 UA SE, 2010). O debate sobre o local de hospedagem da sede do AFRICOM está sedimentado no medo por parte dos governos de respostas negativas de seu eleitorado, que, em boa parte, não vê como vantajosa a presença de militares estrangeiros no continente. O AFRICOM tem hoje operações na Libéria, treinando as Forças Armadas do país, assim como na África Central, onde treina militares para enfrentar o Exército de Resistência do Senhor, um grupo popu- lar cristão armado que se encontra principalmente no Norte de Uganda (DOOM; VLASSENROOT, 1999). Além disso, em 2011, participou ativamente da campanha aérea que bombardeou a Líbia , na investida que procurou derrubar o governo de Muamar Kadafi, considerado, pelas potências ocidentais, como di- tatorial (AFRICOM, 2013). Anteriormente à ativação do AFRICOM, outras políticas semelhantes já vinham sendo implemen- tadas, como os comandos menores, criados com parcerias regionais 25 . No Djibouti, por exemplo, os EUA estabeleceram, em 2002, o Campo Lemonnier, uma base naval para compor a Força Tarefa Conjunta Combinada do Chifre da África, também sob comando dos EUA. Essa, por sua vez, estabelecida apenas no ano seguinte, tem como objetivo promover operações que aumentem a capacidade dos países aliados e proporcionem um ambiente de segurança e a estabilidade regional, de modo a proteger os interesses norte-americanos na região (PLOCH, 2011). Segundo Schmidt (2013, p.218), a escolha dos países em que a AFRICOM atua não parece ter ne- nhum outro critério que não seja de interesses políticos e/ou econômicos do EUA, buscando países ricos em petróleo e gás, ou que tenham importância estratégica. Um bom exemplo dessa afirmação é a Nigé- ria: o país é hoje a principal potência econômica na África (BBC, 2014), além de contar com significativas reservas petrolíferas do Golfo da Guiné, as quais compõem cerca de 95% da pauta exportadora do país, tendo os EUA como principal destino (OEC, 2014). Igualmente importante, nesse sentido, é a região do Saara-Sahel, sendo a presença de atores não- -estatais motivada ali pelo argumento da Guerra ao Terror. Isso porque, do ponto de vista do combate a organizações terroristas, o deserto da região poderia ser utilizado por esses grupos como um campo de treinamento, já que há uma certa dificuldade em se exercer algum tipo de controle estatal. Como exemplo disso, localizada na Argélia, há a AQMI (Al Qaeda no Magreb Islâmico), um desses grupos que contribuem para justificar a presença estadunidense na região. Utilizando-se do discurso de promoção da democracia e dos direitos humanos, os norte-americanos acabam por assumir uma posição ambígua ao apoiar governos autoritários. Posição essa que contribui para exacerbar as já latentes contradições internas desses países (PREUSSER; ESTRADA, 2013; ROBERTO, 2013). Figura 5: Mapa da região Saara-Sahel Fonte: www.bbc.co.uk 25 EUCOM (Europa), CENTCOM (Comando Central) e PACOM (Pacífico). 142 UFRGSMUNDI Figura 6: Mapa da atuação da organização AQMI Fonte: calame-incisif.over-blog.com (Tradução: elaboração própria) A criação da Pan Sahel Initiative (PSI, ou Iniciativa Pan Sahel), em 2002, foi a primeira atitude a demonstrar essa política do Departamento de Estados dos EUA, a qual oferece “apoio logístico e treina- mento militar contrainsurgente que incluiu os governos da Mauritânia, Mali, Níger e Chade” (PREUSSER e ESTRADA, 2013, p. 6). A PSI foi depois ampliada para a Iniciativa Contraterrorista Trans-Saara em 2005 e em 2010 vira uma Parceria que inclui 11 países 26 . Visando a seus objetivos, a presença dos EUA no Saara- -Sahel fortaleceu suas relações com a Argélia, de forma a facilitar o acesso ao Golfo da Guiné e ao petró- leo (ROBERTO, 2013). Também nessa direção, em 2008, a reativação da IV Frota da Marinha dos Estados Unidos, posicionada no Atlântico Sul e não ativa desde os anos 1950, demonstra claramente esse objetivo de marcar presença em regiões de potenciais estratégicos. Contudo, cabe observar que se utilizar da luta contra o terrorismo internacional como justificativa para a militarização do continente africano acaba por interferir, direta ou indiretamente, nos conflitos lo- cais, dando a eles a ideia de que todos esses apresentam a mesma origem comum: os grupos terroristas. Dessa forma, vale fazer a crítica sobre até que ponto os problemas da África são, hoje, causados por con- tradições internas dos sistemas que guiam cada país ou acontecem como reflexo dessas intervenções. As ações militares estrangeiras no continente contribuem para danificar as relações entre os grupos internos dos países, impossibilitando a busca de soluções pacíficas. Além disso, a situação também piora as re- lações desses grupos com os EUA, na medida em que aqueles se sentem oprimidos pelas ações destes, incentivando a formação de grupos rebeldes. Além dos argumentos que se utilizam a Guerra ao Terror como justificativa para bases militares no continente, é possível ainda pensar na política norte-americana de presença na África como uma resposta às relações cada vez mais fortes dos países africanos com países emergentes 27 , em especial os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) 28 . Pode-se notar que China e Brasil têm investido de maneira intensa no continente em busca tanto de recursos naturais, quanto de parcerias estratégicas. No caso do Brasil, 26 Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Mauritânia, Mali, Níger, Chade, Senegal, Nigéria e Burkina Faso. 27 Os países emergentes podem ser configurados como aqueles que ainda não atingiram níveis sociais e econômicos para serem classificados como desenvolvidos, mas que, no entanto, apresentam altos índices de crescimento, já tendo superado o nível de subdesenvolvimento de países mais pobres. 28 A denominação BRICs atribuída a esses países antes citados pretende uni-los a partir das tendências semelhantes de crescimento que vêm apresentando nas últimas décadas, os quais tendem a atingir níveis de desenvolvimento econômico capazes de ultrapassar as potências ocidentais tradicionais. Fora o Brasil, que ainda não atingiu esse marco, China, Rússia e Índia já apresentam índices altíssimos de crescimento. 143 UA tais relações se desenvolvem principalmente com os países africanos localizados na costa do Atlântico Sul 29 , no sentido da proteção desse espaço como um benefício comum. Em oposição a essa ideia, a dou- trina de Guerra ao Terror, do ex-presidente estadunidense, George W. Bush, apoia-se na segurança como caminho para fortalecer relações, e não em parcerias que permitam o desenvolvimento e infraestruturas permanentes na contraparte africana (ROBERTO, 2013, p.1-2; ESTERHUYSE, 2013, p.77). Além dos EUA, nações europeias, baseadas em seus vínculos coloniais, ainda mantêm fortes rela- ções com países africanos. Como exemplo disso, em 2004, a União Europeia criou a APF (African Peace Facility), um fundo desenvolvido para custear as operações de paz africanas, com 440 milhões de euros à disposição. O uso dos recursos da APF é, porém, limitado ao uso de diárias e ajudas de custo, comuni- cação, transporte e afins, não podendo custear treinamento militar ou compra de armamentos (SANTOS, 2011, p.171). O principal exemplo de permanência das relações entre ex-colônias e metrópoles é a comunidade de países que eram antes colônia da França. A manutenção desses contatos permitiu à França possuir uma área de influência ampla na África, intervindo – tanto militar, quanto política e economicamente – de forma frequente em assuntos internos dos países africanos desde os anos 1960. Segundo o Ministro da Defesa francês, Paris manterá o foco nas suas relações exteriores na África francófona e na expansão militar nos países do Sahel, especialmente Chade, Costa do Marfim e Níger, mas também em Burkina Faso, mantendo o número de 3 mil soldados (FERSOVICH, 2014). A crise na República Centro Africana tem despertado fortes interesses da França, que apoiou a aprovação pelo Conselho de Segurança da ONU de uma missão de paz em outubro de 2013, além de outra missão com financiamento da União Europeia, ainda não aprovada. Junto aos Estados Unidos, a França mantém um grande contingente de tropas no Djibouti, país que possui uma posição estratégica por ser “caminho” para o Oriente Médio. Além disso, conta com gran- des forças no Gabão e no Senegal e forças menores na Libéria, Chade, República Democrática do Congo, Mali e Costa do Marfim (FRANÇA 2014) 30 . O principal argumento para justificar a presença francesa na África é o de apoio aos Estados Unidos no combate ao terrorismo, especialmente de fundamentalistas islâmicos. Enquanto algumas das tropas estão fora do país em missões de paz em diversos locais diferen- tes, cerca de oito mil soldados estão estacionados em bases, defendendo especificamente os interesses franceses no continente africano. Os objetivos franceses na região são bem claros: mesmo diversificando suas fontes de matéria-prima, a França ainda tem na África seus principais fornecedores de petróleo e metais. Manter a estabilidade do continente africano significa garantir os interesses franceses ao manter essa troca (HANSEN, 2008). No entanto, a presença francesa no Chade criou diversas tensões com o país vizinho Sudão, por intervenções frequentes no conflito em Darfur. Da mesma forma, o exército francês na Costa do Marfim, que auxilia a missão da ONU, teve diversos embates com a população civil durante a guerra civil ivoriana 31 . Quanto à presença francesa no continente, vale ainda citar o Níger: o país é hoje o quarto maior produtor mundial de urânio, a matéria-prima para a produção nuclear. As condições territoriais francesas tornam o país extremamente dependente desse tipo de fonte energética, sendo seu principal meio de obter energia elétrica – cerca de 75% da matriz energética (IEA, 2009). Dessa forma, a França tem mantido relações estreitas com esse país africano, buscando garantir a exploração desse recurso (FEBBRO, 2013). Nesse sentido, o país europeu agiu fortemente no Mali, país vizinho ao Níger, quando lá eclodiram ata- ques terroristas protagonizados por rebeldes islâmicos e por comunidades da etnia tuaregue (REUTERS, 2013), com medo de que o movimento se espalhasse para os países próximos, de modo a prejudicar o comércio francês (FREBBRO, 2013). 29 A parceria com países do Atlântico Sul importa para a defesa das camadas de recursos naturais do pré-sal brasileiro, uma região que pode ser suscetível a invasões, a não ser que existam parcerias militares para proteger os recursos em ambos os lados. 30 Por vezes em auxílio a missões de paz, mas também com bases próprias. Disponível em: <http://www.defense.gouv. fr/operations/rubriques_complementaires/carte-des-operations-exterieures>. Acesso em 16/02/2014. 31 A guerra civil na Costa do Marfim iniciou em 2002 quando o exército tentou derrubar o então presidente, Laurent Gbabo. Apesar do fim do conflito em 2007, em 2011 ele eclodiu novamente, com uma intervenção da ONU. 144 UFRGSMUNDI Figura 7: Mapa dos países africanos com bases militares francesas Fonte: Elaboração própria É perceptível a grande presença de Forças Armadas estrangeiras no continente africano, principal- mente dos EUA e da França. O Reino Unido também possui contingentes na África, apesar das reduzidas atividades depois da crise econômica de 2008 32 (SANTOS, 2011, p.174). Atualmente com três operações, sendo duas no Quênia e uma em Serra Leoa (THE BRITISH ARMY, 2014) 33 , existe uma pressão para que a presença na região do Deserto do Saara seja aumentada. A presença de exércitos estrangeiros para defender os interesses de nações extrarregionais (que não a soberana do seu território) é uma questão complexa: do mesmo modo como o treinamento militar é necessário em diversas Forças Armadas de países africanos, a violação aos direitos humanos da população local, cometidas pelos soldados de po- tências extrarregionais e a proliferação de armamento na região é problemática. Mais que isso, a presença estrangeira cria instabilidades e dificulta a cooperação com os países vizinhos, que, por sua vez, temem represálias e possíveis invasões. 2.4. A PRIVATIZAÇÃO DA GUERRA? Algumas missões de paz da ONU e da própria União Africana contratam Empresas Militares Privadas (EMP) ou Empresas de Segurança Privada (ESP) 34 , popularmente referidas como tropas de mercenários, que “oferecem serviços especializados relacionados com a guerra e outros conflitos, incluindo operações de combate, planejamento estratégico, inteligência, apoio operacional e logístico, treinamento, compras e manutenção.” (GENEVA, 2008, p.1). Apesar de não serem recentes – existem relatos de mercenários desse tipo há séculos, tendo atingido seu pico na Guerra dos Trinta Anos 35 e continuando em diversos conflitos na história –, essas empresas militares acabaram ganhando nova força com intervenções no Oriente Médio após os ataques do 11 de Setembro, quando os EUA incorporam tais companhias como essenciais para a realização das operações no Iraque (CRUZ, LEÃO & DUARTE, 2011). Na África, contudo, tais empresas já vinham sendo alvo de críticas desde os anos 1960. Boa parte da clientela das EMPs era formada por chefes de Estado, que buscavam essa solução para lidar com si- tuações de conflito e instabilidade internas nos seus países (CRUZ, LEÃO & DUARTE, 2011, p.5). É possível traçar a origem das empresas militares privadas no continente com a criação da Executive Outcomes, em 1989, por um ex-militar da África do Sul, cuja primeira operação bem sucedida foi em Angola durante a guerra civil. Sua atuação continuou quatro anos depois, em contrato feito com o governo e, mais tarde, em Serra Leoa, também contra grupos armados, além de ter atuar na República Democrática do Congo. 32 A Crise Financeira de 2008 inciou-se nos Estados Unidos e espalhou-se para diversos países no mundo devido à grande interdependência entre os países no mundo globalizado de hoje. 33 As unidades no Quênia são de Apoio e de Treinamento. A unidade em Serra Leoa é de Treinamento. Fonte: http:// www.army.mod.uk/operations-deployments/22724.aspx. Acesso em 16/02/2014. 34 Do inglês, Private Military Companies e Private Security Companies. 35 1618-1648. A Guerra dos Trinta Anos foi uma série de guerras entre diversas nações europeias, por motivos variados. O fim da guerra coloca início à Paz de Vestefália, que é convencionado como o começo do sistema internacional de Estados-Nação soberanos. 145 UA Contribuiu para a consolidação desse tipo de força militar o contexto de final da Guerra Fria, no início da década de 1990, a partir do desengajamento militar das grandes potências devido à ausência de um inimigo iminente. Com o fim do conflito, a demanda por armamentos caiu bruscamente no mercado internacional, causando uma queda nos preços que facilitava o acesso a eles, o que, por sua vez, tornou viável a alternativa de privatização da guerra. Dessa forma, as forças combatentes saem das mãos dos governos dos países e vão para o controle de agentes particulares (MENDES, 2010 apud CASAS, 2012). Esse processo, no entanto, enfraquece a ideia do monopólio do uso da força , que diz respeito à soberania dos Estados seus territórios. Isto é, dentro dos limites territoriais de um país, o governo desse país é soberano (supremo) nas decisões, tendo, em contrapartida obrigações (DIAS, 2010). A defesa de sua população é um desses deveres. A concepção de uso das EMPs, portanto, contribui para debilitar a função do governo dos países enquanto provedores de segurança, tirando deles a legitimidade do mono- pólio do uso da força – uma ideia do pensador Max Weber. Além disso, o fenômeno se torna ainda mais preocupante quando não há uma legislação internacional que regule crimes ou exageros cometidos por essas empresas, não havendo uma obrigação de responder por suas ações, apesar de diversas tentativas (GENEVA, 2008, p.4; CRUZ; LEÃO; DUARTE, 2011, p.10-15). Entre os exageros e crimes mais comuns cometidos por agentes de EMPs, estão os casos de tortu- ras promovidas tanto contra civis, quanto contra militares de um país onde as empresas atuam. Além dis- so, é comprovada informação de assassinatos cometidos indiscriminadamente contra cidadãos nacionais sem motivos aparentes. Em 2009, inclusive, estourou na imprensa um escândalo sobre colaboradores de EMPs que mantinham escravas sexuais na região dos Bálcãs à época dos conflitos naquela área (GASPAR; LAPA, 2011, p. 87). Infelizmente, como já dito antes, não há ainda nenhum tipo de regulamentação acerca da responsabilidade sobre os crimes cometidos por esses agentes (GENEVA, 2008, p.4). É possível perceber a importância das EMPs no continente africano não só pelas diversas empre- sas que se originaram na África, e mais especificamente, na África do Sul, mas também por legislações de alguns países que regulam a atuação das mesmas em seu território, tais como Uganda, África do Sul e Angola. A regulação legal dessas empresas militares privadas pode banir a existência de atividades mili- tares que não as do próprio governo, regular a atividade ou até mesmo proibi-la (CRUZ; LEÃO; DUARTE, 2011, p.19). Recentemente, tem surgido uma tendência, dos países ocidentais, de utilizarem firmas militares privadas para realizar treinamento de grupos armados ou das próprias Forças Armadas de nações afri- canas. Além disso, diversas empresas petrolíferas e de mineração contratam empresas militares privadas para proteger os gasodutos e o escoamento da produção (CRUZ; LEÃO; DUARTE, 2011, p.19). Enquanto os países desenvolvidos se inclinam na busca por empresas militares para missões humanitárias, os países em desenvolvimento têm demonstrado uma tendência em utilizar tais empresas para fins de reforço das suas Forças Armadas. Esse processo, como já referido anteriormente, oferece margem para o enfraque- cimento da soberania desses países, ao mesmo tempo que o torna dependente de empresas particulares em situações de instabilidade. Empresas essas que, por sua vez, visam a seu próprio benefício, não tendo em mente os interesses do Estado em que desempenham sua função. Além disso, há sempre o risco de excessos cometidos pelos agentes dessas empresas, podendo ou não eclodir, assim, uma crise humani- tária localizada. 3. AÇÕES INTERNACIONAIS PRÉVIAS 3.1. A ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA NA RESOLUÇÃO DE CONTRO- VÉRSIAS A Organização da Unidade Africana, criada em 1963 por 32 países africanos independentes, nas- ceu como uma tentativa desses novos países de se inserirem nas relações internacionais de forma ativa. Desde o começo, os países africanos entenderam que unidos eram mais fortes e tinham mais chances de alcançarem seu objetivo: ter voz no cenário global. No entanto, a organização não cumpriu a plenitude das metas que inspiraram sua criação, devido às grandes dificuldades ao longo do percurso na constru- ção de um ambiente pacífico de cooperação entre os países africanos (SANTOS, 2011, p. 45 -47). Em termos de conflitos, é sabido que o continente africano se caracteriza por ser um ambiente instável e vulnerável a ações externas, tendo em vista todas as intervenções até hoje sofridas, já referidas anteriormente. Nesse sentido, a OUA buscou, enquanto existiu, criar um ambiente mais estável no con- 146 UFRGSMUNDI tinente, a fim de promover o desenvolvimento dos países-membros. As ações desenvolvidas pela orga- nização, nessa direção, não foram satisfatórias para a resolução de conflitos na região devido a divisões internas entre os países africanos. Essa falta de articulação colaborou para tornar o continente um local propenso para ações externas, que, ao longo dos anos, ajudaram a intensificar o processo de militarização. Ainda assim, apesar de suas fragilidades enquanto organização, cabe ressaltar a Operação de Apoio à Manutenção de Paz no Chade, na década de 1980, na qual forças africanas foram empregadas no auxílio à operação desenvolvida pelas Nações Unidas para o país, numa ação de monitoramento. Embora tenha enfrentado muitas dificuldades em sua elaboração, a operação deu início ao processo de desenvolvimento de operações de intervenção próprias dos países africanos, que teria continuidade e aprofundamento com a criação da União Africana, em 2002. O surto de conflitos na década de 1990 trouxe à tona questionamentos sobre a efetividade da OUA na solução de controvérsias, levando os membros a criar o Mecanismo para a Prevenção, Gerenciamento e Resolução de Conflitos, em 1992, em busca de uma postura mais proativa em relação aos problemas internos do continente. Dessa forma, cinco missões de paz foram desenvolvidas pela organização em um curto espaço de tempo: Ruanda, Burundi, Comores, República Democrática do Congo e Eritreia-Etiópia. Vale aqui destacar o contraste entre as ações desenvolvidas pela OUA e as atividades empregadas pela ECOWAS (do inglês “Comunidade Econômica dos Estados Africanos Ocidentais”) na Libéria e em Serra Leoa, na mesma época. Essa organização, criada em 1975, conta com 15 membros 36 e tem como objetivo promover a integração econômica em todos os campos (ECOWAS, 2013). Para tal, a ECOWAS desenvolve também operações de promoção e manutenção de paz, através de intervenções militares, como a insta- lada no Mali nos dias de hoje (ROBERTO; CLOSS; RONCONI,2013, p. 16). Atualmente, há a promoção de operações conjuntas da ECOWAS com a União Africana no sentido de estabilizar o continente. 3.2. A CRIAÇÃO DA UNIÃO AFRICANA E O SUCESSO DAS INTERVENÇÕES IN- TERNAS Em 2002, em uma iniciativa encabeçada por Muammar Kaddafi - então presidente da Líbia - é criada a União Africana, uma organização cujos principais objetivos são promover a paz, a segurança e a estabilidade do continente através de uma política comum de defesa (UNIÃO AFRICANA, 2013). Para tal, estabeleceu-se o Conselho de Paz e Segurança, desenvolvido nos moldes do Conselho de Segurança da ONU, com a finalidade de discutir as ações conjuntas dos países-membros para a resolução de conflitos na África (SANTOS, 2011, p. 63). Dessa forma, o Conselho é o órgão responsável por analisar e decidir sobre a implementação de uma missão de paz protagonizada pela organização (GÉNERO, 2012, p. 136). Dessa forma, a União Africana já nasce com uma pró-atividade substancialmente superior à da organização que lhe deu origem no âmbito da paz e segurança, a OUA. Além disso, a nova organização conta com um orçamento total maior, o que lhe permite empregar ações mais ambiciosas na construção de um ambiente estável no continente. Nesse sentido, a UA tem promovido operações para treinamento de pessoal militar, intercâmbios de inteligência militar e informações, além do desenvolvimento de dou- trina militar 37 e capacidade coletiva 38 (SANTOS, 2011, p. 64). Como forma de legitimar suas ações, a União Africana adota, no âmbito do Conselho de Paz e Segurança, o princípio da “Responsabilidade de Proteger”, uma herança da ONU. Segundo esse funda- mento, em caso de conflitos internos, como já referido anteriormente, em que o Estado seja incapaz de proteger a população civil, cabe à organização fazê-lo, de modo a impedir a morte de pessoas inocentes e garantir a construção da paz no território (QUAGLIA; OLMEDO, 2013, p. 7). Assim, desde sua criação, a União Africana já estabeleceu cinco missões de manutenção de paz, aos moldes daquelas desenvolvidas pelas Nações Unidas, contando, por vezes, com seu apoio, sendo elas: AMIB (Burundi), AMISEC (Comores), UNAMID (Darfur) 39 , AMIS (Sudão) e AMISOM (Somália). A UNA- MID, uma operação compartilhada entre a União Africana e a ONU, localizada no Sudão, foi criada para lidar com o conflito em Darfur. Iniciou suas operações em 2007 e ainda está ativa. Essa parceria visa à criação de forças de paz somente formadas por africanos, provavelmente numa tentativa de diminuir a 36 África do Sul, Níger, Chade, Burundi, Etiópia, Tanzânia, Líbia, Namíbia, Guiné, Gâmbia, Costa do Marfim, Guiné Equa- torial, , Quênia, Nigéria e Zimbábue (PREMIUM TIMES, 2014). 37 Uma doutrina militar é o conjunto de princípios que um país (e, nesse caso, uma organização) adota para guiar suas ações na área militar, desde a compra de novos equipamentos e tipo de treinamento de tropas, a estratégias de defesa e ataque. 38 Por capacidade militar, entende-se todo material, tecnológico e humano do qual dispõe um país (ou, nesse caso, uma organização). 39 Missão conjunta com as Forças das Nações Unidas. 147 UA presença estrangeira, numa resposta aos fracassos da ONU, especialmente na Somália e Ruanda. Apesar da melhora em 2009, tal parceria enfrenta problemas nas suas concepções do que deveria ser a missão, falta de cooperação do governo, além da falta de equipamento adequado, tendo recebido diversas crí- ticas, por ser uma missão da ONU “disfarçada”, sendo alvo de ataques frequentes de grupos armados (SANTOS, 2011, p.81-88; LYNCH, 2014). Esse movimento teve impulso com o estarrecimento da comunidade africana frente ao genocídio em Ruanda, durante a guerra civil que opôs tutsis e hutus, sobre o qual constatou-se um atraso significa- tivo nas ações da ONU para conter as consequências do conflito. Cabe aqui ressaltar que existe uma dis- posição prévia de ação por parte da UA em situações nas quais a ONU se abstém devido aos seus critérios de instalação de missões de paz. Para as Nações Unidas, não é válida a instalação de uma missão de ma- nutenção de paz onde não há paz para ser mantida. Esse princípio, no entanto, coloca a organização re- gional em alerta, dado que a omissão da ONU pode colocar em risco a paz e a estabilidade do continente. Atualmente, a União Africana, utilizando-se da African Standby Force 40 - criada em 2003, mas que ainda não se tornou completamente operacional 41 - montou a Força Multinacional Centro-Africana (do francês, FOMAC). A FOMAC possui tropas do Gabão, Chade, Camarões, Congo e Guiné Equatorial, uma força militar sem caráter permanente e que organiza missões em nome da Comunidade Econômica dos Estados da África Central (ECCAS), que existe dentro da União Africana. A criação da African Standby Force surge, assim, como uma resposta aos problemas das missões da ONU. Em dezembro de 2013, a FOMAC tornou-se MISCA (em português, Missão de Suporte Internacional Liderada pela África para a Re- pública Centro Africana), que além de contar com apoio francês, e ainda estando sob controle da União Africana, já possui também um mandato do Conselho de Segurança da ONU. A presença francesa no país irá duplicar de 600 para 1.200 tropas (REDMAN; MOSHIRI, 2013). As forças estrangeiras, teoricamente, não devem intervir no conflito, servindo apenas como protetores de agentes da ONU, cidadãos franceses e auxiliar com a logística. Além disso, a União Africana, aliada a diversas organizações regionais dentro do continente, tem procurado utilizar a African Standby Force em situações de crises humanitárias. A utilização de forças dessas organizações regionais reduz o gasto de deslocamento das forças da ONU, assim como não colo- ca um peso tão grande na União Africana, que tem diversas limitações financeiras. Entretanto, é preciso uma cooperação continental para melhorar a infraestrutura rodoferroviária para que o deslocamento rápido e estratégico dessas forças possa ser feito (SANTOS, 2011, p.143). Além disso, as missões coor- denadas apenas pela UA na Somália (a AMISOM) e em Darfur (a AMIS) sofreram amplamente com a falta de recursos para manterem-se ativas. Dessa maneira, o sucesso das missões de paz da União Africana depende de uma gestão sustentável de recursos, tanto humanos quanto financeiros, repassados pelos países africanos ou por doações externas (FERREIRA, 2010, p.151). 3.3. AS AÇÕES DA UNIÃO AFRICANA NO ÂMBITO JURÍDICO Como já tratado anteriormente, a questão da proliferação de armas no continente, devido prin- cipalmente ao barateamento dos preços com o final da Guerra Fria, demandou uma atitude da União Africana enquanto organização que busca a estabilidade do continente. Dessa forma, em 2000, foi assi- nada a Declaração de Bamalo sobre uma Posição Comum Africana quanto à Proliferação, Circulação e Tráfico de Armas Leves e de Pequeno Calibre. A declaração tinha como objetivo acabar com o “costume” de países, externos ao continente, fazerem da África um depositório internacional de armas. Uma nova reunião, convocada em 2005, delegou, então, à União Africana o compromisso de adotar um instrumento jurídico para obrigar os signatários da declaração a cumprirem com o que havia sido acordado anos antes (SANTOS, 2011, p. 41-44). Também problemática é a questão das minas terrestres, instaladas ao longo do continente à época do conflito bipolar entre as duas superpotências, EUA e União Soviética. As dificuldades de localização dessas minas, fabricadas com sistemas pouco tecnológicos, torna grandes extensões de terras, por vezes férteis, inutilizáveis. De modo a impedir que o problema continue afetando, assim, o desenvolvimento econômico de regiões do continente, a ainda Organização da Unidade Africana trabalhou no sentido de consagrar uma Convenção para tornar o território africano livre dessas minas. O movimento africa- no acabou inspirando uma ação a nível das Nações Unidas, que, em 1999, estabeleceu a Convenção de Ottawa (SANTOS, 2011, p. 41-44), que proíbe o uso, a produção, a estocagem e a transferência de minas terrestres antipessoais (ICBL, 2014). 40 Pode ser traduzida como Força Africana de Pronto Emprego. 41 O cálculo é que será completamente operacional quando possuir 25 mil homens, entre civis e militares. O problema surge em missões que exigem um grande número de agentes, como Darfur, que ocuparia quase todo o contingente (SANTOS, 2011, p.144). 148 UFRGSMUNDI 4. POSICIONAMENTO DOS PAÍSES Uma das fundadoras da União Africana e propulsora da ideia de ‘soluções africanas para problemas africanos’, a República da África do Sul é um dos países mais importantes no tópico a ser debatido. Este país defende a autonomia das nações africanas frente às nações estrangeiras e acredita que a presença destas na África como forças militares só é aceitável em raros casos, como em conflitos em que a atua- ção diplomática, ou mesmo militar, dos países africanos mediadores de conflitos já não surte efeitos no processo de pacificação. A Força Nacional de Defesa da África do Sul desempenha um papel importante no continente, tendo atuado em inúmeras nações africanas e participado de missões de paz da ONU. A África do Sul também estabelece marcos regulatórios para organizações militares não-estatais, que visam a limitar tais atividades, bem como evitar que civis tomem parte delas. A República de Angola não é favorável à presença de forças militares estrangeiras no continente africano e busca o reforço de suas forças militares domésticas, pois acredita que elas são um meio de reforçar a independência e a autonomia. O governo angolano tem feito esforços para criminalizar ativi- dades mercenárias e regularizar companhias privadas de segurança. A Angola é um país de representa- tividade na União Africana, dada sua potencial expansão econômica e militar. Todavia, o país carece de infraestrutura e tem muitos recursos ainda não explorados. A República Árabe Saaraui Democrática se coloca a favor das intervenções protagonizadas pela ONU e União Africana, assim como da presença de forças militares estrangeiras, agindo de forma individual. A busca pelo reconhecimento de sua soberania perante o Marrocos é o principal impulso desse governo em seu apoio a essas forças externas que agem em seu território. Além disso, as incursões mi- litares promovidas pelo governo marroquino, em busca do território rebelde, tornam o Estado do Saara Ocidental frágil dentro da comunidade africana, necessitando dessas colaborações para alcançar sua estabilidade. Um dos grupos terroristas que mais preocupa o ocidente, o AQIM (Al-Qaeda no Magreb Islâmico, sigla em inglês), teve suas origens num grupo oriundo da República Popular da Argélia, o que faz este país, especialmente por sua parceria com o governo norte americano na Guerra ao Terror, ser funda- mental para o tópico a ser debatido. Há evidências de que várias ações do AQIM foram movidas pelo próprio governo argelino que, por combater grupos islâmicos contrários ao seu regime desde a guerra civil, queria mostrar-se como um possível aliado no combate ao terrorismo. Hoje a Argélia, aliada aos EUA e a onze países africanos (Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Mauritânia, Mali, Níger, Chade, Senegal, Nigéria e Burkina Faso) forma a Parceria Contraterrorista Trans-Saara que busca combater grupos terroristas na região do região do Magreb-Sahel. Os Estados Unidos têm bases militares no Burkina Faso, sendo este país favorável à presença mili- tar estrangeira no continente africano. Na região em que se localiza, há vários focos de grupos armados, o que o torna vulnerável à proliferação dessas organizações em seu território. Um dos temores do governo é que conflitos existentes em territórios vizinhos ultrapassem suas fronteiras porosas e ponham em risco a frágil estabilidade do país. A República do Burundi passa por um processo de estabilização, visto que, em 1991, teve início uma guerra civil e, apenas em 2006, foi assinado um tratado de cessar-fogo, que ainda passou por muitas violações. O país tem grupos rebeldes atuantes em seu território e em territórios vizinhos, sendo este um cenário propício à propagação da violência na região, bem como da proliferação de atores militares não estatais. Os EUA promovem missões de democratização e desenvolvimento no Burundi, que os vê como importantes aliados no processo de estabilização. Dona de milhares de jazidas de petróleo, a República do Chade tem fortes relações econômicas e militares com os Estados Unidos, com a China e com a França. Ano passado, o Chade interveio no Mali dando apoio aos franceses. Este país se comprometeu perante a comunidade internacional a não apoiar organizações militares não estatais. O arquipélago da União dos Comores tem a França como um provedor de ajuda militar. Também, os Comores veem na União Africana uma grande parceira das ilhas, pois a organização prestou apoio militar e diplomático durante as crises, em momentos de eleição e golpes de Estado. A República Democrática do Congo (RDC) é um dos países mais ricos em minérios do conti- nente, mas continua um grande foco de conflitos, mesmo depois de mais de 10 anos do fim oficial da guerra civil. Milícias apoiadas por Ruanda e Uganda continuam explorando as minas do leste do país ile- galmente. Embora o governo de Joseph Kabila tenha buscado aproximar-se deu seus vizinhos e mesmo do ocidente, as acusações mútuas acerca do apoio que cada país da região dá a determinadas milícias continua. Assim, a RDC é contrária à presença estrangeira no país, mesmo que permita observadores da 149 UA ONU e tenha se mostrado mais cooperativo nesse sentido. Devido às frágeis forças do Exército Nacional, o governo costuma associar-se a milícias, embora negue que dê apoio a grupos armados. O país também é profundamente afetado pelo fluxo de refugiados, tráfico de armas e pela porosidade de suas fronteiras. A República da Costa do Marfim conta com a presença de forças de paz da ONU e da França, lá instaladas desde 2010 para auxiliar na estabilização após um processo eleitoral conturbado. A União Afri- cana e a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS) tiveram papel fundamental no processo que garantiu a posse do presidente democraticamente eleito. Esse episódio de intervenção bem sucedida da UA teve boa repercussão, e reforçou o papel desta organização regional na estabiliza- ção do continente. A Costa do Marfim tem acordos militares bilaterais com a França e, recentemente, tem fechado parcerias de cooperação militar com a China. Entretanto, ela reconhece o papel da União Africana como um fórum importante, e acredita em programas de auxílio mútuo entre países africanos. A importância da República do Djibouti no tópico a ser debatido diz respeito, principalmente, a sua localização, pois sua costa é parte da rota do petróleo e permite acesso facilitado ao Oriente Médio, fazendo do Djibouti um território estratégico muito visado por potências estrangeiras. Os Estados Unidos, a França e o Japão têm bases permanentes lá, que acabam por movimentar a economia do país, bem como lhe trazem ganhos militares. Lá acontece a maior movimentação de VANTs (veículos aéreos não- -tripulados) depois do Afeganistão. A Eritréia tem suas relações com os Estados Unidos e com a União Europeia estremecidas, dado que algumas práticas autoritárias de seu governo acabaram por afastá-lo de parcerias com ocidente (ape- sar de a Eritreia ainda ser parceira norte-americana na guerra ao terror). O país vive múltiplos impasses territoriais com nações vizinhas e é acusado de dar suporte a grupos militares em alguns países fronteiri- ços para desestabilizar seus governos. País que se vê como irradiador de estabilidade no Chifre da África e é, de fato, uma potência re- gional, a Etiópia abriga a sede da União Africana e consolidou-se como um aliado estratégico dos EUA na luta contra o terrorismo. Os etíopes opõem-se a uma série de grupos separatistas dentro do país e atualmente têm tropas na Eritreia e na Somália. Na primeira devido a problemas de fronteira e na segunda para desmantelar a rede terrorista Al-Shabaab. O país é igualmente acusado de apoiar grupos armados em países vizinhos, embora afirme que estes são legalmente contratados para atuarem junto ao exército. Apesar de a assistência militar estadunidense ter sido limitada devido a violações dos direitos humanos, a Etiópia ainda é um dos grandes recebedores de ajuda dos EUA. Apesar de ter acordos de cooperação com os Estados Unidos e com a França, a República Ga- bonesa apoia as práticas de crescimento dos países africanos por meio do auxílio mútuo e integra mo- vimentos de não alinhados. O Gabão exerce um papel importante na União Africana enquanto mediador de conflitos e auxiliar em processos de pacificação e estabilização, além de ser engajado na promoção da estabilidade na África Central. A Líbia, depois de décadas do regime de Muammar Kadaf, agora apoia a presença estrangeira no continente, visto que o governo atual é fruto de uma intervenção da OTAN que contribuiu para a queda de Kaddafi. Além disso, inúmeros grupos armados continuam agindo no país, o que reforça o apoio líbio às iniciativas antiterroristas. O novo governo permite a atuação de empresas militares privadas, especial- mente estrangeiras, que vêm sendo contratadas para proteger a infraestrutura petrolífera. Ainda com tropas da ONU em seu território, a Libéria é um apoiador explícito de parcerias com potências extrarregionais, visto que considera a intervenção feita pela ONU algo essencial ao fim de sua guerra civil. A presidente do país também fez uma declaração bastante favorável ao AFRICOM, contra- riando os outros membros da ECOWAS. Além disso, a Libéria tem sido cada vez mais cobrada pelos mer- cenários que agem através de suas fronteiras, ao que o governo tem respondido com um combate maior a essas atividades. Madagascar passa por uma profunda crise econômica e social, com um governo não reconhecido internacionalmente desde 2009. Com um novo presidente eleito recentemente, busca reaproximar-se dos investidores internacionais para voltar a receber ajuda econômica. Embora não possua uma posição clara sobre presença militar estrangeira, o país é membro da SADC, que tem tentado afastar o AFRICOM do continente. O Malaui tem uma agenda de política externa bastante condizente com a dos EUA e participa de uma série de programas de assistência militar patrocinados pelos EUA. O país é um dos maiores aliados americanos na África Austral e defende esse tipo de cooperação. O Mali passou por um golpe de Estado em 2012 e intervenções militares da França e da ECOWAS em 2013. A instabilidade foi inicialmente causada por um movimento separatista da etnia tuaregue, que proclamou um Estado independente no norte do país. Com um novo governo civil eleito em 2013, o Mali 150 UFRGSMUNDI é um forte defensor da Parceria Contraterrorista Trans-Saara, visto que os tuaregues têm sido vistos como associados a grupos terroristas que atuam na região do Sahel, como a Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI). Como ainda passa por problemas desse tipo e tem irradiado instabilidade para seus vizinhos, o Mali deve ter um papel destacado na discussão, em defesa da presença estrangeira no continente, assim como de combate a grupos armados não estatais. A Mauritânia tem preocupações semelhantes às do Mali, já que tem recebido maior fluxo de refu- giados deste país desde o início dessa crise. A Mauritânia também deseja desalojar a AQMI de seu territó- rio e é integrante da Parceria Contraterrorista Trans-Saara Moçambique não tem uma postura tão receptiva quanto à presença estrangeira no continente. Embora o partido de oposição Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) tenha voltado a armar-se e causar violência no país, o governo moçambicano não o tipificou como terrorista e tem buscado nego- ciar. Assim, o país é menos favorável à penetração externa no país e à atuação de grupos armados e pode desempenhar um papel mais crítico na discussão, junto dos outros membros da SADC que se opõem ao AFRICOM. Do mesmo modo, a Namíbia, embora tenha uma política externa aberta e bom relacionamento com o ocidente, também integra o SADC. O grupo não rejeita a ajuda externa, mas tem recusado a cons- trução de bases militares e envio de tropas ao continente. Ao mesmo tempo, o povo namíbio teve sua independência assegurada graças a uma intervenção da ONU, o que o torna mais favorável à presença da organização. Um dos países mais afetados pela crise no Mali, o Níger apoia, assim como a maioria dos países do norte da África, a luta global contra o terrorismo e a presença estrangeira no continente. O Níger possui sua própria parcela da população da etnia tuaregue e os milhares de refugiados vindos do país vizinho geraram efeitos semelhantes no território nigerino. O aumento da instabilidade em certas regiões do país e o fortalecimento de grupos separatistas contribuem para que o governo continue apoiando a Parceria Contraterrorista Trans-Saara e os planos dos EUA de modo geral. País mais populoso e com a maior economia da África, a Nigéria tem um papel decisivo na África Ocidental. Os nigerianos veem-se como líderes da ECOWAS e buscam irradiar sua influência através da organização. O país também é alvo da atuação de grupos terroristas, como o extremista islâmico Boko Haram e o Movimento pela Emancipação do Delta do Níger (MEND). Com exceção de alguns grupos con- tratados pelo governo para questões específicas de segurança, a Nigéria geralmente é contra a atuação de milícias privadas. Além disso, o aumento da pirataria no Golfo da Guiné tem aumentado a atenção internacional sobre a região e sua riqueza em recursos. Entretanto, o governo nigeriano não deseja ver nenhum desses assuntos sendo usado como motivo para a penetração de marinhas e tropas estrangeiras nos países do Golfo. Por isso, embora faça parte da Parceria Contraterrorista Trans-Saara, a Nigéria já se declarou, através da ECOWAS, contra os objetivos do AFRICOM. O Quênia teve uma política externa estável de alinhamento ao ocidente durante décadas. Assim, constituiu-se como um dos maiores recebedores de assistência militar americana no leste africano e es- pecialmente no Chifre da África. Em 2011, o país interveio na Somália para desmantelar a rede terrorista Al-Shabaab, com respaldo da ONU e da União Africana. Em resposta, o Al-Shabaab realizou um atentado a um shopping center na capital queniana, Nairóbi, em 2013. Também no ano passado, os EUA e a União Europeia opuseram-se à eleição dos novos presidente e vice-presidente, porque estes estão com proces- sos em andamento no Tribunal Penal Internacional. Em resposta, o governo queniano buscou diversificar seus parceiros internacionais e assinou acordos de comércio, crédito e investimento com países emer- gentes, como China e Índia. Assim, essa recente mudança na política externa queniana o coloca numa posição ambígua na discussão, já que ainda mantém um papel militar e estratégico essencial aos EUA, enquanto busca novas alianças. A República de Ruanda é favorável à presença de forças da ONU e da União Africana, assim como o treinamento de forças militares estrangeiras no continente. Os acontecimentos da guerra civil no país, que opôs tutsis e hutus, e o consequente genocídio ali constatado são pontos que embasam esse posi- cionamento de Ruanda frente à questão, na medida em que o país só conseguiu alcançar a estabilidade através da ajuda externa. Assim, o país é hoje um dos grandes colaborados da União Africana em opera- ções de construção e manutenção de paz, enviando tropas e pessoal especializado para o processo de reestabelecimento da estabilidade em seus vizinhos africanos. A República do Senegal tem fortes vínculos militares com a França e com os Estados Unidos, que a apoiam com equipamentos e treinamento. Apesar de já ter feito menção a uma possível redução desse vínculo, o Senegal é favorável a programas de assistência ocidentais a países do terceiro mundo. Também, tem ele um histórico de participação em missões de paz da ONU em vários países africanos, o que o torna uma nação de peso dentro da União Africana. Ainda, importante para o tópico a ser debatido 151 UA é a insegurança na região senegalesa separatista de Casamanca, dado que os conflitos propagados pelo grupo rebelde da região fazem sentir seus efeitos na Guiné-Bissau e na Gâmbia. Para a República de Serra Leoa, um dos países mais pobres da África e do mundo, as intervenções encabeçadas pela ONU e pela União Africana são benéficas, assim como o desenvolvimento de atividades militares por potências ocidentais. Os anos de guerra civil no país só foram cessados com ajuda de tropas estadunidenses e britânicas, embasando, assim, seu posicionamento frente à questão em debate. Empre- sas Militares Privadas da África do Sul foram contratadas pelo governo local também durante o período de guerra civil, na tentativa de solucionar o conflito. A República Federal da Somália entende a necessidade das ações estrangeiras promovidas em seu território. Os anos de guerra civil, com duas missões fracassadas das Nações Unidas, deixaram con- sequências graves nos setores social e econômico do país. O problema da fome é a grande causa da ação dos piratas somalis, que atacam navios mercantes de passagem pela costa. O movimento é responsável pelo processo de forte militarização da região que vem ocorrendo nos últimos anos, protagonizado por forças marítimas de membros OTAN, além de marinhas individuais, como a Rússia. Para a República do Sudão, forças externas, sejam elas ou não nomeadas pela ONU ou pela União Africana, não são legítimas para agir em casos de conflito interno em um país. No caso de seu em- bate com o agora independente Sudão do Sul, o Sudão se coloca contrário à intervenção dessas forças, tendo inclusive, se oposto à ação denominada pela ONU para estabilizar a região. Já a República do Sudão do Sul, o mais novo país do sistema internacional, nascido em 2011, se posiciona de maneira fa- vorável às intervenções promovidas pelas Nações Unidas ou pela União Africana, assim como em relação às atividades militares desenvolvidas por países de modo individual no continente africano. O governo sul-sudanês entende a necessidade de ajuda externa nesse primeiro momento de sua história em que está se construindo, no qual a situação da população ainda se encontra debilitada em termos sociais e econômicos, além da fragilidade institucional, natural de um Estado recém-criado. Para a República Unida da Tanzânia, não há problemas na promoção de atividades militares por parte de potências ocidentais ou empresas privadas. Da mesma forma, enxerga as operações de paz da ONU e da União Africana como benéficas para a construção de um ambiente estável no continente afri- cano. A Tanzânia sempre buscou fazer parte ativamente dessas operações, enviando tropas sempre que preciso. Cabe ressaltar a presença de grupos armados não-estatais, como a Al Qaeda, que tem ameaçado presença no território nacional. A República Togolesa é favorável às intervenções promovidas pela ONU e União Africana, da mesma forma que defende as atividades militares de países externos à África, como no caso dos EUA e da França, dois de seus grandes aliados ocidentais. Além disso, o Togo sempre buscou participar ativamente das ações que tivessem como finalidade promover a estabilidade do continente africano, a fim de desen- volver a África como um todo, acreditando profundamente na efetividade da União Africana, mas sem esquecer de suas fragilidades e limitações. A República de Uganda se coloca levemente favorável a intervenções da ONU, desde que sejam voltadas para o combate de grupos rebeldes. No entanto, o país é contrário a qualquer tipo de atividade militar estrangeira no continente, embora aceite a presença de Empresas Militares Privadas. Essas em- presas foram, inclusive, responsáveis pelo treinamento de tropas de Uganda para sua atuação na missão de paz da União Africana na Somália. Isto é, o país aceita ações empreendidas pela comunidade africana, sem interferências externas diretas. A República do Zimbábue se coloca de forma extremamente contrária à presença estrangeira no continente africano. Nesse sentido, o país se posiciona em oposição também à instalação de opera- ções de paz promovidas pela ONU, de modo a defender a capacidade da comunidade africana em solu- cionar os conflitos que venham a se desenvolver na região. REFERÊNCIAS ABRAMOVICI, Pierre. Sob Nova Ocupação. 2004. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: <http://www. diplomatique.org.br/print.php?tipo=ac&id=1120>. Acesso em 16 fev 2014. AFRICOM. What We Do. 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RESUMO A União Africana (UA), criada em 2002, tem como principal objetivo promover a cooperação nas ques- tões de segurança para que se alcance o desenvolvimento africano nas áreas sociais, políticas, econômicas e culturais. Trazendo uma nova mentalidade por parte dos membros, a UA vem trabalhando na tentativa de dimi- nuir, cada vez mais, as intervenções estrangeiras nos assuntos internos ao continente. Esse ano, pela primeira vez no UFRGSMUNDI, o comitê da União Africana vai discutir o tópico Atores Militares Não-Estatais e Forças Militares Estrangeiras no Continente Africano. O debate vai se focar nas intervenções de grupos externos, ou mesmo internos, ao continente, e como elas interferem nos conflitos internos, muitas vezes contribuindo para intensificá-los. Ao mesmo tempo, buscamos mostrar a evolução da União Africana nessa última década, a qual tem se tornado cada vez mais protagonista na resolução de controvérsias na região, atuando como força pa- cificadora em ambientes de conflito e mostrando a capacidade dos países africanos em resolver seus assuntos internos. 155 AGH 47 ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS HISTÓRICA (1947) A Partilha da Palestina André França 1 Elisa Eichner 2 Jéssica da Silva Höring 3 Jordy Bolivar Pasa 4 Natália Regina Colvero Maraschin 5 INTRODUÇÃO A Assembleia Geral das Nações Unidas (AG) é um dos seis principais órgãos da ONU e o único no qual todos os membros da organização estão representados de maneira igualitária e podem votar. Entre algumas de suas funções gerais estão admitir novos membros, supervisionar os outros órgãos das Nações Unidas e selecionar o Secretário-Geral; suas funções mais importantes, contudo, são deliberar e fazer recomendações sobre assuntos dentro do escopo da Carta da ONU, tendo em vista os princípios de manutenção da paz e da segurança internacionais e a cooperação entre as nações. As decisões tomadas pela AG não são vinculantes, o que significa que esse órgão não tem capacidade para compelir a ação dos Estados; entretanto seus pareceres possuem um grande peso na opinião pública internacional devi- do a seu caráter democrático. A Assembleia Geral se reúne uma vez por ano – a não ser quando existem sessões especiais – e anualmente elege um novo presidente originário de um dos cinco grupos de países (África, Ásia-Pacífico, Europa Oriental, América Latina e Caribe e Europa Ocidental e outros). Em novembro de 1947, depois de meses de deliberação, delegações de 56 países se reuniram na sede da AG em Nova Iorque para determinar uma solução para a questão da Palestina, uma disputa entre árabes e judeus que se estendia desde o final do século XIX e havia atingido um ponto insustentável. Esse é o encontro que será simulado em nosso comitê. 1. HISTÓRICO E AÇÕES INTERNACIONAIS PRÉVIAS A Palestina é uma estreita faixa de terra que serve de passagem entre a África e a Ásia e que foi, ao longo de sua história, invadida e conquistada pelos mais diversos povos. Por abrigar a cidade de Jeru- salém, sagrada para os cristãos, os judeus e os muçulmanos, o território palestino é considerado a Terra Santa por esses três grupos religiosos 6 (FINGUERMAN, 2005). 1 Estudante do 7º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 2 Estudante do 3º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 3 Estudante do 7º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 4 Estudante do 5º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 5 Estudante do 5º semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 6 Para os judeus, esse é o local que abrigou os grandes reinos de sua civilização. Para os cristãos, Jerusalém foi o local onde Jesus Cristo pregou e acabou sendo morto. Para os muçulmanos, a cidade é sagrada, pois foi o local de ascensão do Profeta Maomé ao Islã ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.155-172 156 UFRGSMUNDI Um dos muitos povos que ocuparam o território palestino foi o judeu. Antigamente, os judeus viviam no reino de Judá e no reino de Israel, uma região que cobre o sul e o oeste da atual Palestina, mas ao longo de sua história sofreram diversas dispersões pelo mundo, as quais ficaram conhecidas como diásporas 7 . A primeira diáspora ocorreu em 587 a.C., quando o rei da Babilônia, Nabucodonosor, invadiu o território judeu e seus habitantes foram enviados para o território babilônio (onde hoje fica o Iraque), só podendo retornar 50 anos depois, em 538 a.C. Quase seis séculos depois, em 63 a.C., a Judeia sofreu uma nova invasão e foi transformada em uma província do Império Romano, fato que originou uma re- volta que foi reprimida apenas no ano 70, quando o general romano Tito destruiu Jerusalém e forçou os judeus a uma nova diáspora pela Ásia, Europa e norte da África. É com os romanos que se inicia a histórica perseguição aos judeus, devido a não aceitação de seus cultos e costumes, principalmente após o surgi- mento do cristianismo (SZKLARZ, 2013). Já no século VII, a Palestina foi ocupada pelos persas da dinastia Sassânida, que converteram toda a região em domínio e residência árabe. Mesmo não estando politica- mente unificados, os palestinos mantinham uma unidade através da língua, da religião e dos costumes (HALBROOK, 1981). Por fim, em 1516, a Palestina se tornou uma província do Império Otomano, realidade que se estendeu até o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918. O movimento nacionalista judaico, por sua vez, nasceu nos anos 1850, como resposta ao “des- membramento” do estilo de vida judeu tradicional e às tentativas dos judeus de se incorporarem aos Estados Europeus onde viviam, com o objetivo de preservar a identidade dos judeus como um povo (STE- VENS, 1962). Nesse contexto, ocorreu a emergência do antissemitismo 8 como uma força política forte, alimentada pela invenção da “ciência das raças” e pelo Darwinismo social 9 ; como consequência, os judeus passaram a ser perseguidos pelas populações e governos de diversos países: tiveram que enfrentar os pogroms na Rússia, acusações de traição como o Caso Dreyfus 10 na França, e o surgimento de políti- cas racistas em vários países da Europa Leste. Esse antissemitismo teve como resultado o fortalecimento dos movimentos nacionalistas judaicos, especialmente de um deles, o Sionismo 11 . Em 1897, Theodor Herzl, considerado o pai do Sionismo, concebeu um projeto de colonização para ser empreendido no local escolhido para acolher a nação judaica e organizou, em 1897, na Suíça, o Primeiro Congresso Sionista, que fundou a Organização Sionista Mundial e ratificou que a Palestina deveria ser o local para a criação de um Estado Judeu (GOMES, 2001). A grande premissa da ideologia sionista era de que a existência dos judeus em comunidade poderia ser conseguida apenas na terra de Israel, o lugar histórico onde a identidade judaica foi formada e que se constituía na base de suas crenças e valores. Para tentar obter apoio dos países europeus ao projeto, os sionistas afirmavam que um Estado judeu no Oriente Médio ajudaria a estabilizar a região e criaria um bastião europeizado frente à Ásia, ou, nas palavras de Herzl, uma “sentinela avançada da civilização contra a barbárie” (HERZL apud PINSKY, 1978, p.137). A estratégia de colonização da Organização Sionista Mundial era, com o apoio de uma me- trópole, promover a imigração intensiva de judeus para a Palestina e adquirir terras, que, mesmo sendo cedidas a particulares, se tornariam propriedade inalienável do povo judeu 12 (GRESH, 2002); para esse fim, no Segundo Congresso Sionista, realizado em 1898, foi criado o Fundo Nacional Judaico, entidade que centralizava a arrecadação para a compra de terras e colonização da Palestina (GOMES, 2001). É nessa época de grandes perseguições e de florescimento das ideias sionistas que os primeiros judeus começaram a imigrar da Europa; apesar de a maioria ter preferido seguir para os EUA, alguns partiram para a Palestina para se juntar a algumas pequenas comunidades de judeus já existentes nesse território. De início, os imigrantes foram bem recebidos pelos árabes nativos, mas por volta de 1880 co- meçaram a surgir atritos em torno de questões de exploração de água e terras férteis. Em 1886, com o desenrolar da situação, ocorreu o primeiro choque violento entre palestinos e judeus imigrantes quando os árabes da aldeia Yahudiya atacaram o assentamento judaico mais antigo, Petach Tikiva, acarretando ataques em outras partes do território e levando ao primeiro protesto palestino organizado contra o pro- jeto judaico de colonização, considerado uma ameaça à comunidade árabe (GOMES, 2001). Em 1907, frente ao projeto sionista e aos conflitos na Palestina, Yitzhak Epstein 13 publicou um arti- 7 Diáspora é o termo usado para definir o deslocamento, forçado ou incentivado, de uma grande quantidade de pes- soas de uma determinada região para outras. 8 Antissemitismo é a hostilidade contra judeus baseada no ódio ao histórico étnico, cultural e religioso desse povo. 9 O Darwinismo social e a ciência das raças buscavam aplicar na sociedade conceitos de evolução e sobrevivência dos mais aptos para justificar a diferenciação entre povos (superiores e inferiores) e o racismo. 10 Acusado de espionagem a favor da Alemanha, o militar judeu Alfred Dreyfus foi julgado na França por alta traição, submetido à degradação militar em 1895, e condenado à prisão perpétua. Apesar das contundentes provas de sua inocência, ele foi condenado por um tribunal militar, pela segunda vez, em 1899, sendo em seguida indultado. Sua inocência só foi verdadeiramente reconhecida em 1905 e, no ano seguinte, foi reabilitado pelo governo francês. (O CASO DREYFUS..., 2006) 11 O nome Sionista vem de Sião, uma colina de Jerusalém, representando o regresso à terra prometida (GRESH, 2002, p.22) 12 Isso significa que os árabes não podiam arrendar, comprar nem trabalhar nas terras de posse de judeus. 13 Epstein era um dos poucos líderes Sionistas que era palestino. 157 AGH 47 go no Hashiloah 14 em que ele afirma que, como as boas terras na Palestina estão em sua grande maioria ocupada, o estabelecimento judeu requereria o fim da posse dos árabes. Epstein propôs como solução a criação de um Estado binacional e um programa inclusivo de assentamentos. Contudo, essa ideia de coo- peração entre os dois povos encontrou poucos adeptos (JEWS FOR JUSTICE IN THE MIDDLE EAST, 2001). Em 1911, a disputa que se centrava na luta pela terra se estendeu também para uma luta pelos empregos. Os judeus sionistas passaram a evitar o trabalho árabe em suas fazendas e a Histadrut (Federa- ção Trabalhista Judaica) excluiu os árabes de empregos em empresas e comércio de judeus (HALBROOK, 1981). Quanto mais numerosa se tornava a imigração judaica e a compra de terras por judeus, mais se agravava o problema do desemprego e deslocamento árabes. No contexto do início dos conflitos que originariam a Primeira Guerra Mundial e pela necessi- dade de conquistar o apoio de diversos grupos, a Grã-Bretanha acabou se envolvendo em promessas e acordos contraditórios que influenciaram a situação da Palestina. Interessados em garantir o apoio dos árabes na guerra, principalmente na frente contra os turco-otomanos, os britânicos prometeram que, em caso de vitória, os povos árabes ganhariam um Estado árabe independente no Oriente Médio; esse acordo, que incluía em seus limites a Palestina, foi formalizado por meio de correspondências entre Hu- sayn, Emir 15 de Meca, e McMahon, Alto Comissário Britânico no Egito (1915-1916). Simultaneamente, a Grã-Bretanha e as outras potências da Entente 16 , prevendo a desintegração do Império Otomano ao fim da guerra, negociaram entre si a divisão do Oriente Médio, que tomou forma no acordo secreto Sykes- -Picot 17 , em 1916. Segundo esse acordo, a região da Palestina ficaria sob o controle britânico (COMITÊ PARA O EXERCÍCIO...,1990). Por fim, em 1917, como resultado da intensa busca de apoio do Movimento Sionista e da necessidade da Grã-Bretanha de conquistar o apoio das massas judaicas dos Estados Unidos e da Rússia – devido ao desenrolar da guerra –, Arthur Balfour, Secretário das Relações Exteriores britâni- co, emitiu a Declaração Balfour; nela, afirmava que seu governo oferecia apoio à iniciativa de construção de um lugar nacional para o povo judeu na Palestina. Mesmo estabelecendo que nenhuma medida que prejudicasse os direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas da palestina deveria ser tomada, a Declaração se chocava diretamente com as promessas feitas a Husayn de criação de um Estado árabe no Oriente Médio (UNSCOP, 1990). Assim, a Declaração Balfour representou uma grande conquista para os Sionistas e recebeu o apoio oficial do governo dos Estados Unidos, além de outros países. A partir dela, o movimento Sionista passou a focar seus esforços na imigração em massa dos judeus para o território Palestino e na busca de um apoio amplo ao Sionismo (GOMES, 2001). Importa ressaltar, contudo, que os sionistas permaneceram minoria entre os judeus 18 até o final da Segunda Guerra Mundial (JEWS FOR JUSTICE IN THE MIDDLE EAST, 2001). Com o término da Primeira Grande Guerra e a instalação, como previsto pelo acordo Sykes-Pi- cot, do Mandato britânico sobre a Palestina, em 1918, os sionistas tiveram autorização para criar suas próprias instituições no território palestino. A Agência Judaica, o órgão que representava a Organização Sionista e que foi reconhecida no texto do mandato como um corpo público, na prática passou a repre- sentar um governo dentro de outro. No texto do mandato britânico foi incluída também a Declaração Balfour. Um ano depois, em 1919, foi realizada a Conferência de Paz de Paris, onde foi decidido o des- tino dos países perdedores da guerra e foi criada a Liga das Nações, a precursora da ONU. No artigo 22 do Pacto da Liga das Nações foi introduzido o Sistema de Mandatos, que estabelecia que determinados territórios deveriam permanecer sob tutela de “nações mais adiantadas” para que pudessem alcançar seu desenvolvimento e a independência plena, o que levou ao reconhecimento, por parte da Liga, do Manda- to britânico sobre a Palestina em 1922 (GRESH, 2002). Simultaneamente a essa conferência, o presidente americano Woodrow Wilson enviou a Comissão King-Crane para as antigas províncias otomanas, com o objetivo de realizar uma pesquisa de opinião com os povos da região sobre o seu arranjo territorial pós-guerra. Em suas conclusões, a Comissão recomendou a modificação do Programa Sionista para a 14 O Hashiloah era um dos principais jornais que servia de suporte às ideias sionistas. 15 Emir, em árabe, significa comandante. 16 A Tríplice Entente foi uma aliança militar entre Reino Unido, Rússia e França para combater a Tríplice Aliança (Ale- manha, Império Austro-Húngaro e Itália) na Primeira Guerra Mundial. 17 A Rússia havia entrado nas negociações do Acordo Sykes-Picot, mas com a eclosão da Revolução Bolchevique em 1917 ela se retira. Posteriormente os russos denunciam a existência desse acordo para o resto do mundo. 18 Comumente toma-se judaísmo e sionismo como sinônimos, o que se trata, na realidade, de um erro. O sonho de fundar um Estado próprio, materializado posteriormente na campanha da Palestina, jamais foi unânime entre os ju- deus. A ideia Sionista de retornar ao lugar de origem conquistou muitos adeptos dentre esse povo, principalmente de- vido ao seu forte apelo religioso, mas era vista por uma parcela significativa dos judeus, especialmente pelas correntes de esquerda, como apenas um devaneio romântico. Assim, é importante afirmar que nem todo judeu é sionista, e que a diferenciação entre esses dois grupos, que apesar de relacionados não são idênticos, é essencial. 158 UFRGSMUNDI Palestina, devido a um extremo sentimento anti-sionista no território e à inevitabilidade de conflito e uso da força se os objetivos sionistas fossem alcançados (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1919). Ainda durante a Conferência de Paz de Paris, Emir Faisal, rei do Reino Árabe da Síria, e Chaim- Weizmann, personalidade da Organização Sionista Mundial, assinaram o Acordo Faisal-Weizmann de cooperação entre árabes e judeus para a construção de um lar judeu na Palestina (é importante observar que não foi utilizada a palavra Estado) e de uma nação árabe em grande parte do Oriente Médio. Esse acordo durou apenas alguns meses, sendo rompido tanto pelos árabes e pelos judeus quanto pelas po- tências mundiais, que já haviam dividido a região entre si. A Organização Sionista Mundial realizou em 1920 uma Conferência Sionista que declarou o de- sejo do povo judeu de viver amigavelmente e em paz com a população não judaica da Palestina (LIS- SOVSKY, 2009). Logo em seguida, contudo, a situação na região se agravou: os britânicos, frente aos ímpetos conquistadores de Abdullah, irmão do Rei do Iraque, dividiram o território palestino e criaram a Transjordânia (na região da Palestina ao leste do Rio Jordão), fato que limitou as possibilidades do projeto de colonização dos judeus; além disso, os Estados Unidos emitiram uma Resolução Conjunta em que aprovaram o estabelecimento na Palestina de um Lar Nacional para o Povo Judeu. Sob esse contexto, a Palestina é palco dos conflitos de 1920 e 1921 e o massacre de Hebron em 1929 19 . Como resposta à crescente violência, os britânicos estabeleceram em 1930 a Comissão de Inquérito Shaw, que identificou como causa dos conflitos a “animosidade racial por parte dos árabes, como consequência do desapontamento de suas aspirações políticas e nacionais e medo de seu futuro econômico” (THE SHAW COMMISSION..., 2014). Para definir soluções, a Comissão encarregou John Hope-Simpson de conduzir uma investigação sobre as possibilidades de futuras imigrações e assentamentos na Palestina; o Relatório Hope-Simpson concluiu que não havia terras suficientes para suportar a imigração contínua e recomen- dou o cessamento da imigração de judeus – segundo os dados levantados, cerca de 30% dos árabes já estavam sem terras (THE HOPE-SIMPSON REPORT, 2014). Com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, em 1933, a imigração de judeus aumentou e as posições se radicalizaram. Em 1936, a resistência palestina contra o governo britânico e a colonização sionista iniciou uma rebelião que ficou conhecida como Grande Revolta Árabe. Frente a esse transtorno de grandes proporções, uma nova Comissão Real, encarregada de analisar os distúrbios, emitiu em 1937 o Relatório Peel, que recomendava como solução para a crise a partilha da Palestina em um Estado judeu e outro árabe, ambos independentes, com Jerusalém e a região limítrofe permanecendo sob o manda- to britânico (GRESH, 2002). A recomendação da partilha foi aceita pelo governo britânico em seu Livro Branco 20 de 1937 e uma nova comissão, de nome Woodhead, buscava recomendar limites de fronteiras para árabes e judeus; contudo, nem os árabes nem os sionistas ficaram contentes com essas iniciativas (GOMES, 2001). Os palestinos transformam então sua rebelião em uma revolta popular armada, liquidada pelas forças britânicas apenas em 1939. Como resultado dos confrontos, os palestinos perderam vários de seus líderes, que foram em grande parte presos e mortos, fragmentando e enfraquecendo seu mo- vimento político. Nesse contexto, os países árabes assumiram a causa palestina, colocando-a em foco (GRESH, 2002). Em 1939, frente à impossibilidade de conciliar as duas partes conflitantes e diante da iminência da Segunda Guerra Mundial, na qual era novamente essencial contar com o apoio árabe, a Grã-Breta- nha publicou outro Livro Branco, o MacDonald White Paper, declarando que estava descartada qualquer intenção de criar um Estado judeu na Palestina ou de tornar a Palestina um Estado árabe. A imigração judaica foi limitada e foi dada ao alto comissário britânico carta branca para restringir a compra de terras por judeus. O Livro Branco previa ainda o fim do Mandato britânico para 1949, quando a Palestina deveria se tornar independente, com um governo partilhado entre judeus e árabes (UNSCOP, 1990). Como a po- pulação judaica estava distante de alcançar a maioria para poder controlar o governo nessa perspectiva (não chegavam a 20% da população total), os sionistas pressionaram a conquista de um Estado judeu, intensificando a violência e realizando atentados contra oficiais e sedes do Mandato britânico (REINO UNIDO, 1946). Foi após o Holocausto na Segunda Guerra Mundial – considerado o ápice do antissemitismo – 19 Os conflitos de Nebi Musa (1920) ocorreram durante a comemoração do festival árabe Nebi Musa e foram causados pela tensão crescente entre árabes e judeus. Tendo início com a perseguição árabe aos judeus da cidade de Jerusalém, o conflito causou as mortes de 5 judeus e 4 árabes. Devido à resposta lenta das autoridades britânicas, a comunidade judaica passou a buscar uma organização paralela à administração do Mandato. Os conflitos de Jafa (1921) tiveram iní- cio com uma briga entre dois grupos políticos judeus que foi entendida por árabes da cidade como um ataque. A partir disso, árabes passaram a atacar os judeus, que revidaram, tendo como resultado a morte de 47 judeus e 48 árabes. O Massacre de Hebron (1929) se refere ao assassinato de 67 judeus e à destruição de suas casas e sinagogas. Os ataques foram realizados por árabes incitados por rumores de que os judeus estavam massacrando árabes em Jerusalém e buscando controle de locais sagrados. Após o incidente, os britânicos evacuaram os judeus de Hebron. 20 Um Livro branco é um documento oficial, publicado por um governo ou uma organização internacional, que firma as políticas governamentais e serve de informe ou guia sobre algum problema e como enfrentá-lo. 159 AGH 47 que ocorreu a mobilização efetiva para a criação de um Estado Judeu na Palestina, tanto por parte dos sionistas como das potências mundiais (PILATI; PIRES, 2008). Os sobreviventes dos campos de concen- tração haviam ficado deslocados: como muitos não queriam voltar para seus países de origem e algumas nações europeias e os EUA se recusaram a acolher o fluxo de centenas de milhares, um grande fluxo de navios repletos de imigrantes começou a se dirigir para o território palestino, mas os passageiros foram em sua maioria barrados e extraditados pelas forças britânicas (GRESH, 2002). Nesse contexto, em 1945, os dirigentes sionistas denunciaram o bloqueio britânico à imigração para a Palestina, afirmando que ele representava uma “sentença de morte” para os judeus libertos (GRESH, 2002, p.27). Em resposta, a Grã- -Bretanha formou uma Comissão anglo-americana de Inquérito, junto aos Estados Unidos, com o intuito de analisar o judaísmo europeu e realizar um novo estudo da questão palestina. Durante alguns meses de 1945 e 1946, a Comissão ouviu membros de organizações judaicas, cris- tãs e árabes, além de representantes dos mais diversos países e especialmente da recém-criada Liga dos Estados Árabes 21 . Em seu relatório final, aprovado por unanimidade, a Comissão definiu que a Palestina não deveria ser um Estado Judeu nem um Estado árabe, devendo permanecer sob o mandato britânico até a realização de um acordo para que sua administração passasse para a ONU. Recomendava, também, a revogação das limitações impostas pelo White Paper de 1939 à imigração e à compra de terras. Contu- do, o relatório da Comissão não agradou nem aos sionistas, nem aos árabes, nem aos britânicos, que, em situação econômica crítica no pós-guerra, teriam que continuar arcando com o custo da administração da Palestina. Assim, quando os Estados Unidos declaram publicamente sua satisfação com os resultados da Comissão, esses grupos explodiram em protestos e violência (LISSOVSKY, 2009). Após realizar mais algumas conferências a respeito do problema da Palestina, o governo britâni- co apresentou o Plano Morrison, ou Plano Morrison-Grady, que propunha a divisão do território palestino em quatro zonas ou províncias: uma árabe, abarcando cerca de 40% da área total; uma judaica, com 17% do território; e duas britânicas, somando 43% da Palestina. As províncias árabe e judaica seriam autôno- mas, mas o governo central seria administrado pelo alto-comissário da Grã-Bretanha. A Agência judaica considerou o plano inaceitável, por não representar uma independência real e por negar, de acordo com sua percepção, os direitos judaicos em quase 85% do território. A Liga Árabe também recusou veemen- temente a proposta, afirmando que a autonomia provincial abria um caminho para o estabelecimento de um Estado Judeu na Palestina, e apresentou, por sua vez, uma proposta para que a Palestina se tornasse um Estado Árabe independente (LISSOVSKY, 2009). A violência e os ataques terroristas na Palestina – promovidos por judeus e árabes – não cessa- ram e um conflito intenso entre forças armadas judaicas e as forças britânicas estava ocorrendo. Nessa situação, o governo britânico e a Agência Judaica se engajaram em negociações informais em que os bri- tânicos ameaçaram levar o problema da Palestina para as Nações Unidas, caso não fosse alcançada uma solução. Frente a essa ameaça, os representantes sionistas chegaram a admitir que “se lhes fosse ofere- cido um Estado Judeu viável em uma área adequada da Palestina, eles estariam dispostos a discuti-lo”. O porta-voz dos árabes palestinos, contudo, afirmou que eles combateriam qualquer espécie de partilha com todos os meios de que dispusessem (LISSOVSKY, 2009, p.322). Em mais uma tentativa de resolução, em fevereiro de 1947, os britânicos apresentaram seu último projeto: o Plano Bevin. Este propunha a manutenção do mandato por mais cinco anos, nos quais seria preparada a independência da Palesti- na como um Estado binacional e nos quais os poderes administrativos, legislativos e financeiros seriam concedidos para as administrações locais árabes e judaicas. O novo plano foi prontamente rejeitado por judeus e árabes, os primeiros por motivos de delimitação de área e os segundos por já haverem afirmado que se oporiam a qualquer tipo de partilha. Assim, frente a esse novo impasse e à interminável violência, a Grã-Bretanha decidiu por transferir o problema da Palestina para a ONU (GOMES, 2001). 2. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA 2.1. PROPOSTAS PARA A PALESTINA Com o lançamento da Declaração de Balfour, a Inglaterra se viu entre dois compromissos possi- velmente contraditórios sobre o futuro da Palestina: o movimento sionista passou a interpretar aquela como afirmação da criação de um Estado judeu, enquanto aos árabes havia sido prometida a indepen- dência de toda a região. Devido a esse conflito político entre as duas comunidades do Mandato britânico 21 A Liga Árabe é uma organização de Estados árabes criada em 1945 por sete países (Egito, Iraque, Transjordânia, Líbano, Arábia Saudita, Síria e Iêmen), com o objetivo de coordenar e reforçar os laços econômicos, sociais, políticos e culturais entre eles, além de mediar disputas. 160 UFRGSMUNDI da Palestina, em agosto de 1936, foi anunciado o estabelecimento da Comissão Real ou Comissão Peel, liderada pelo Lorde Robert Peel (PRE-STATE ISRAEL..., 1998). Assim teve início o processo que, finalmente, levaria os judeus e árabes a transformar suas aspirações em demandas mais práticas, tendo em conside- ração instrumentos como o Estado, o território e as fronteiras. Várias das ideias levantadas pela Comissão influenciaram os líderes britânicos, judeus e árabes a considerar a possibilidade de utilizar a geografia para separar as duas comunidades na Palestina (GALNOOR, 1995). A Comissão Peel ouviu uma grande quantidade de depoimentos no período em que esteve em território palestino e, em julho de 1937, recomendou a partilha da Palestina entre os dois povos e a aboli- ção do Mandato Britânico nos territórios judeu e árabe. Apenas uma área que ia de Jafa, na costa do Mar Mediterrâneo, até Jerusalém ficaria sob a administração britânica e supervisão internacional. Segundo o relatório da Comissão, o Estado judeu deveria ocupar a faixa costeira, que se estende do Monte Carmelo, no extremo norte do país, até o sul de Be’er Tuvia. O Estado árabe seria instituídonas regiões de monta- nha, abarcando toda a parte central e sul do território (Imagem 1) (GALNOOR, 1995). De acordo com as recomendações feitas, até o estabelecimento dos Estados, os judeus deveriam ser proibidos de comprar terras na área destinada ao Estado árabe. Para evitar problemas de demarcação, foi proposto que as tro- cas das terras fossem feitas simultaneamente e somente com a transferência da população de uma região pra outra. A demarcação oficial das fronteiras seria feita por um comitê técnico de partilha. O Governo Britânico aceitou as recomendações da Comissão Peel sobre a partilha da Palestina e o projeto foi aprovado pelo Parlamento Inglês. Os judeus ficaram divididos quanto à decisão, mas os revisionistas 22 se posicionaram de maneira totalmente contrária a ela: no 20º Congresso Sionista, decla- raram que a proposta era inaceitável. Também os árabes rejeitaram o plano, dizendo recusarem-se a con- siderá-lo como uma solução. Como resultado, o projeto acabou sendo arquivado e o Governo Britânico deu início a uma nova onda de negociações, com o objetivo de melhorar a proposta anteriormente ela- borada. Para esse fim, foi formada uma nova Comissão de Inquérito, chamada de Comissão Woodhead, por ser presidida pelo Sr. John Woodhead. Essa nova Comissão ficaria encarregada de: recomendar os devidos limites de fronteiras para as áreas árabes e judaicas e o enclave britânico; exigir a inclusão do me- nor número de árabes e empresas árabes em território judaico e vice-versa; e possibilitar que o Governo Britânico continuasse cumprindo com as obrigações do Mandato (GALNOOR, 1995). Três formas alternativas de partilha foram analisadas pelos quatro membros da Comissão Woodhead: 1. O Plano A seguia o mesmo modelo de partilha proposto pela Comissão Peel: o Estado judeu ficaria situado na região costeira; haveria um corredor na região central do país, saindo de Jerusalém em direção ao litoral, que ficaria sob a influência britânica e onde prevaleceria o Mandato; por fim, o resto da Palestina pertenceria ao Estado árabe. A Comissão apontou que esse projeto era impraticável – pois não acabaria com as tensões entre árabes e judeus, já que as demandas dos dois povos não seriam integralmente atendidas – e que a Galileia, grande região ao norte do país, não deveria estar incluída no Estado judeu. 2. O Plano B foi elaborado nos mesmos moldes do plano A, com a diferençade que a Galileia e uma pequena porção sul foram excluídas do território judaico. Esse plano foi preferido por um dos membros; porém, foi rejeitado pelos outros membros pelo fato de que qualquer dispo- sição diferente da Galileia e de Haifa poderia causar ainda mais tensões entre os árabes e os judeus, por serem regiões de grande interesse para ambos. 3. O Plano C previa a retenção da parte sul e norte da Palestina sob Mandato e a partilha da região central do país em um pequeno Estado judeu costeiro, um Estado árabe e um corre- dor permanente, chamado “Enclave Jerusalém”. O Plano C foi preferido por dois membros, incluindo o Sr. Woodhead, que o viram como a melhor forma de partilha dentro dos termos referidos. Os quatro membros concordaram ser o Plano C a melhor opção, visto que conside- raram os Planos A e B inviáveis. 22 Os revisionistas formavam uma ala mais radical do judaísmo. Extremamente nacionalistas, os primeiros grupos re- visionistas defendiam o Mandato Britânico, a fim de obter ajuda na conquista de suas causas. Com o passar do tempo, as restrições à imigração e a busca inglesa por atender também os interesses árabes levaram a violentas campanhas do grupo contra autoridades britânicas na região. 161 AGH 47 Figura 1: Plano A Figura 2: Plano B Figura 3: Plano C Fonte: Jewish Virtual Library Devido ao resultado emitido pela Comissão, o Plano C foi o único dos três planos a receber aná- lises mais detalhadas. Ficou definido que a região norte da Palestina ficaria sob Mandato Britânico, até que ambas as novas Nações concordassem com a sua independência como parte do Estado judeu ou do Estado árabe, ou como um Estado palestino independente. Por sua vez, as regiões de Haifa e Acre, bastante disputadas, só teriam sua independência concedida se isso pudesse ser feito com segurança, considerando a responsabilidade britânica de proteger locais sagrados e defender novos Estados contra agressão. O território sul ficaria sob o Mandato por pelo menos 10 anos, e nenhum Estado independente poderia ser criado ali se mesmo uma minoria de seus habitantes se opusesse. Por fim, a imigração para os territórios, segundo o Relatório, seria regulada por “considerações políticas, sociais e psicológicas, além de econômicas”, e os judeus teriam preferência durante o processo de imigração (GALNOOR, 1995). A Comissão Woodhead também fez recomendações sobre o futuro político dos territórios sob Mandato, discutiu perspectivas orçamentárias e, finalmente, declarou que os interesses de ambos os Estados exigiam que esses territórios fizessem uso de uma forma modificada de partilha, chamada de “Federalismo Econômico”. Seguindo esse modelo, os dois Estados entrariam em uma espécie de União Aduaneira 23 apenas nos territórios mantidos sob o Mandato, nos quais o Poder Mandatório determinaria 23 A expressão União Aduaneira simboliza a associação de um grupo de países que se caracteriza por dois pontos: a adoção de uma tarifa externa comum – quer dizer que todos os países do grupo aplicarão a mesma taxação em relação à importação de bens de países fora do grupo – e a livre circulação das mercadorias oriundas dos países asso- ciados (WOLLFENBÜTTEL, 2007). Estado judeu Estado Árabe Mandato Britânico 162 UFRGSMUNDI a política fiscal 24 a ser adotada naquela região após consultar ambos os Estados. A receita aduaneira se- ria,então, recolhida pelo Mandato, e o excedente líquido distribuído entre as três áreas, de acordo com uma fórmula a ser acordada, e sujeita a revisão periódica. A proposta inicial era de que a participação de cada área seria de um terço (GALNOOR, 1995). Entretanto, após as análises dos termos, o Relatório da comissão concluiu que não se poderia esperar que os Estados árabe e judeu aprovassem um regime que iria privá-los do direito de exigir mudanças que considerassem necessárias na política fiscal dos demais Estados-membros da união. Uma União Aduaneira, portanto, seria impossível de ser estabelecida com sucesso, exceto em condições que seriam incompatíveis com a concessão de independência fiscal para os dois Estados. Assim, a proposta de “Federalismo Econômico” teve fim. Assim que o Relatório da Comissão Woodhead foi apresentado, os representantes árabes se uni- ram em oposição à partilha e demandaram a criação de um Estado árabe independente em todo o terri- tório sob Mandato. Os judeus, por sua vez, propuseram o aumento do território designado à instalação do Estado judeu. Os objetivos de árabes e judeus eram visivelmente inconciliáveis. Levando em conta esse cenário, o governo britânico declarou que a partilha não seria uma solução prática (GALNOOR, 1995), e o plano foi abandonado. 2.2. O FIM DO MANDATO BRITÂNICO E A CRIAÇÃO DA UNSCOP Em 1939, com o início da Segunda Guerra, os judeus palestinos se viram em uma delicada situação: não poderiam mais confiar nos ingleses como protetores da causa sionista, mas precisavam apoiá-los contra o Eixo, que estava exterminando a população judaica na Europa e poderia vir a dominar o Oriente Médio. Ao mesmo tempo, contudo, os ingleses ampliavam as restrições em seu Mandato, pois haviam se comprometido politicamente com os árabes a reduzir a imigração judaica para a Palestina – o que ocorreu justamente numa época muito complicada para os judeus na Europa. Em reação às restrições, o povo judaico começou a se unir em manifestações contrárias à presença britânica. Com o fim da guerra, os horrores dos campos de concentração foram amplamente divulgados, e os sionistas conquistaram a simpatia internacional para sua causa. O assassinato em massa de judeus no Holocausto levou os sobre- viventes judeus e os sionistas a perseguirem seu objetivo de formar um Estado com ainda mais urgência, em busca da segurança de seu povo (PILATI; PIRES, 2008). Como consequência, as tensões no território palestino se intensificaram. Apesar de ter saído vitoriosa da Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha sofreu enormes prejuí- zos humanos e materiais, que culminaram no declínio de seu poderoso Império Mundial. Confrontados com a necessidade de reconstrução de sua nação e com sérios problemas econômicos e financeiros, os britânicos não tinham mais condições de manter o Mandato na Palestina e controlar a situação que se agravava. Assim, em abril de 1947, o Reino Unido enviou uma carta à ONU, na qual deixava clara sua pretensão de pôr fim ao Mandato e passava à Organização a tarefa de decidir o que fazer com o território palestino (SCHULZE, 2008). Desse modo, a ONU formou em 1947 o Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina (UNS- COP – do inglês United Nations Special Committee on Palestine). O Comitê deveria elaborar um relatório, fazendo recomendações acerca da situação da Palestina, para ser apresentado na próxima sessão da As- sembleia Geral. Durante o verão de 1947, o UNSCOP foi à região para investigar a situação e recomendar a política a ser adotada, tendo por base entrevistas realizadas com árabes e judeus. O UNSCOP concluiu que as alegações de ambos os lados eram válidas, mas que seus objetivos eram inconciliáveis. A única solução encontrada era a partilha da Palestina em dois Estados diferentes, para separar as comunidades em um Estado judeu e outro árabe (SCHULZE, 2008). 2.3. A CONFIGURAÇÃO TERRITORIAL DA PALESTINA Os dados apresentados a seguir são base para a definição do futuro da região palestina, sendo informações específicas que devem corroborar os trabalhos e o debatedos delegados durante as sessões. O mapa 1, abaixo, representa a distribuição da posse territorial entre judeus e outros árabes, incluindo terras públicas, no ano de 1947. Em tons escuros as terras sob posse judaica. O mapa 2 repre- senta a distribuição populacional entre judeus e Palestinos por subdivisão do Mandato britânico. O azul representa a população judaica; o vermelho, a palestina. O tamanho dos círculos diferencia o total popu- lacional, numa escala que vai de 0 a 200 mil, passando por 10 mil, 50 mil e 100 mil habitantes. 24 Política Fiscal é o nome dado às ações do governodestinadas a ajustar seu nível de gastos, assim monitorando e influenciando a economia de um país. Basicamente, a forma de articular uma política fiscal é através da arrecadação efetiva de impostos, aplicando seus recursos da forma mais racional e eficaz possível (SANTIAGO, 2011). 163 AGH 47 O mapa 3 apresenta os aquíferos da região, que são o Costeiro e o da Montanha, demarcados em azul à esquerda e à direita do mapa, respectivamente. As setas indicam em que sentido corre as águas subterrâneas. Em azul claro está a chamada “área de recarga” do aquífero, por onde penetra a água para o subsolo. Em azul escuro, o Mar da Galileia ao Norte e o Mar Morto ao Sul. Estão também indicados os rios da região. Esses recursos hídricos são essenciais para a atividade humana e são considerados estratégicos por todos os países. Da indústria à agricultura, do consumo humano ao animal, a água é fundamental para o desenvolvimento econômico – em especial numa região árida. O controle das nascentes de um rio, por exemplo, é uma capacidade-chave que possibilita a um país afetar a todos os outros por onde passar seu curso – como no caso da construção de um desvio ou da implantação de uma hidrelétrica. Por isso, no mundo inteiro, países que dividem rios e aquíferos fazem acordos sobre o uso das águas para que não haja o benefício de um em benefício de outro. A figura 7 traz em verde as áreas com as terras mais férteis da Palestina. Destas, destaca-se o Vale do Jezeel ao Norte e a Planície Costeira. Em marrom escuro têm-se as cadeias de montanha; em marrom claro, o Deserto de Negev. A sudeste encontra-se o Vale do Jordão. Figura 4: Mapa 1 - Posse de terra judaica na Palestina (1947) Figura 5: Mapa 2 - Distribuição populacio- nal por subdivisão territorial (1946) Fonte: Palestine Rembered Fonte: Palestinian Academic Society for the Study of International Relations (PASLA) 164 UFRGSMUNDI O mapa 5 traz o oleoduto Mosul-Haifa, também conhecido como Oleoduto do Mediterrâneo, que atravessam a região, levando o petróleo produzido no Iraque para exportação através da costa do Mar Mediterrâneo. Na Palestina, o petróleo iraquiano 25 chega ao porto de Haifa aonde pode ser refinado e/ ou exportado. Esta representa uma das maiores atividades econômicas da região e o porto encontra-se, em 1947, sob domínio árabe. Outra atividade econômica de grande importância para a região é a indústria de potássio, bene- ficiada pelas maiores reservas mundiais deste componente químico, às margens do Mar Morto. Seu uso ocorre, principalmente, na produção de adubos. Estas representações gráficas serão muito importantes para a elaboração de uma proposta para administração da Palestina. Durante a Reunião da Assembleia Geral, é importante que aspectos como dis- tribuição da população, da água e de terras agricultáveis sejam levadas em consideração pelos senhores, com vistas a uma solução justa para todas as partes. Além disso, outros pontos devem ser destacados, como a importância cultural e estratégica que determinada área pode ter para os grupos e como evitar o desenrolar de um novo conflito. 25 O petróleo é produzido pela Iraq Petroleum Company, uma consórcio de empresas americanas, inglesas e francesas. Figura 6: Mapa 3 - Recursos de água na Palestina Figura 7: Mapa 4 - Regiões da Palestina Fonte: Blog do International Law Project Fonte: site do Ministério das Relações Exteriores de Israel 165 AGH 47 Figura 8: Mapa 5 - Oleoduto Mosul-Haifa Fonte: Elaborado pelos autores 2.4. AS DEMANDAS DAS PARTES 2.4.1. ÁRABES A posição dos árabes possui forte influência de um ideário denominado Pan-Arabismo, que pro- põe a união de todos os povos de origem arábica. Inicialmente, esta união era pensada como a formação de uma grande Nação árabe, do Iraque ao Norte da África. No entanto, os processos de independência e formação de Estados autônomos na região – como Arábia Saudita, Síria, Jordânia e Líbano – dificultou politicamente a viabilização dessa idéia. O Pan-Arabismo se renovou numa grande vontade popular e das lideranças políticas de aproximação e promoção da cooperação entre os países árabes. Assim, em 1947, a única parte não independente da região é o Mandato Britânico da Palestina. Por diversos motivos, a criação de um Estado judeu na Palestina significaria uma grande derrota deste movimento. O Mandato Britânico faz a ligação entre o Norte da África e Oriente Próximo e une, por terra, o Mediterrâneo ao Mar Vermelho. Ou seja, é estratégico para a integração física e econômica dos povos árabes, além de abarcar lugares sagrados para o Islamismo e ser, de longa data, ocupada por povos de origem árabe. Os povos da região tiveram um papel importante na luta dos Aliados contra o Império Turco-O- tomano, que dominava a região, durante a Primeira Grande Guerra. Lhes foi prometida pela Inglaterra a independência e, assim, a demanda pela formação de um Estado árabe na Palestina não é só a aplicação do princípio de autodeterminação dos povo, constante à Carta das Nações Unidas, mas também uma compensação de guerra (CAMASMIE, 1948). As lideranças do Oriente Próximo propõem a formação de um Estado independente e soberano, democrático e comprometido com a liberdade religiosa das minorias. Não excluem, assim, a existência de comunidades judaicas num futuro Estado palestino, mas opõe-se a qualquer forma de criação de um Estado judeu. Em sua maioria, criticam fortemente a posição das Grandes Potências interessadas na Par- tilha, acusando-as de imporem seus interesses e lançarem um novo Acordo Sykes-Picot 26 (CAMASMIE, 1948). 2.4.2. JUDEUS O movimento Sionista propõe há cerca de um século a criação de um “Lar Nacional Judeu”, onde membros da comunidade judaica através do globo possam se reunir sob uma pátria. Esse desejo advém, 26 Como explicado no histórico, o Tratado Sykes-Picot (lê-se Saiks-Picô) foi firmado secretamente entre ingleses e franceses em 1916, determinando a divisão pós-Primeira Guerra Mundial do Oriente Médio de acordo com seus inte- resses e administração. 166 UFRGSMUNDI entre outros motivos, da constate perseguição sofrida por seguidores da religião através da história, em especial na Europa. Além das recentes e trágicas políticas de massivo extermínio de judeus pelos regimes nazifascistas, a perseguição aos judeus remonta às Cruzadas do século XI, às Inquisições da Península Ibérica do século XV ao XIX, ao massacre por cossacos na Ucrânia no século XVII e aos pogroms contra judeus no Império Russo ao final do XIX. A população judaica formou, seguidamente, uma minoria apartada da população em que estava inserida no exterior, tendo descriminados seus direitos políticos, religiosos, econômicos e etc. Fortale- ceu-se, assim, o movimento para a formação de um país judeu – onde seu povo não mais fosse subme- tido a tais perseguições. Os judeus se articulam através da Organização Sionista Internacional e outros órgãos, comprando terras e incentivando a imigração à região onde se planeja a “recriação” do Reino de Israel (CAMASMIE, 1948, pag. 43-44). Com base na Declaração de Balfour, pretendem formar lá seu Lar. Em 1942, em Nova Iorque, a Conferência Biltmore, um Congresso Sionista Extraordinário devido à guerra, resultou numa declaração da comunidade judaica internacional com a intenção de que a Palesti- na se tornasse um Estado judeu. Rejeitavam o Livro Branco inglês de 1939, que impedia sua imigração e a compra de terras na região. A declaração produzida na Conferência expressamente apoiava o “desenvol- vimento econômico, agrário e nacional dos vizinhos árabes”, bem como “a plena cooperação [do povo judeu] com os vizinhos árabes” (EXTRAORDINARY ZIONIST CONFERENCE, 1942). 2.5. SITUAÇÃO ATUAL No momento em que a Inglaterra repassou o mandato da Palestina para as Nações Unidas, a dinâ- mica regional já era bastante discrepante entre judeus e árabes. A Grande Revolta Árabe (1936-1939) teve consequências que fomentaram o desenvolvimento das comunidades judaicas no território palestino, ao mesmo tempo em que enfraqueceram a coesão árabe. Este fato decorre, entre outros pontos, da supe- rioridade adquirida pelos judeus em termos de organização militar, institucional e econômica durante os anos de resistência. Ao mesmo tempo, a publicação do Livro Branco pela Inglaterra fortaleceu a atuação de grupos sionistas na região, momento em que o movimento árabe estava disperso e sem liderança. As divisões dentro do território da Palestina se acentuaram com a Declaração de Balfour, que facilitou a imigração e compra de terras pelos judeus, e também contribuiu para o processo de mar- ginalização dos árabes. Deste modo – como explicitado nos mapas acima –, aos poucos ocorreu um movimento de apropriação territorial pelos judeus e um crescente movimento demográfico na região. A Revolta Árabe de 1936-1939 foi o ponto mais alto desse processo de afastamento entre judeus e árabes, porque, apesar do sofrimento causado a milhares de judeus, o conflito fortaleceu o movimento sionista e sua luta por independência. No seu decorrer os judeus buscaram desenvolver sua economia em separado da economia árabe, e pleitearam pela construção de um porto em Tel Aviv. Importa lembrar que o con- trole de meios de infraestrutura, como portos, é um ponto essencial para a autonomia e desenvolvimento econômico de um grupo (KHALIDI, 2001). A revolta árabe também fez com que os britânicos dessem apoio à milícia judaica Haganah 27 , enquanto o principal líder dos árabes palestinos, o Haj Amin Al-Husseini, foi obrigado a se exilar. A assis- tência se deu através de armamentos e treinamento militar. Assim, em colaboração com as autoridades britânicas, muitos judeus tiveram sua primeira experiência militar. Em 1930, por exemplo, havia cerca de 6000 mil judeus participando como polícia auxiliar para deter os rebeldes, o que melhorou sua experiên- cia, treinamento e organização militar. O fim da Revolta Árabe trouxe problemas significativos para os árabes palestinos. Perdeu-se cerca de 10% da população adulta masculina, houve perda para os comerciantes e pequenos empresários, e os britânicos também confiscaram boa parte de seus armamentos, ação que foi realizada nos anos subse- quentes. Sobretudo, a expulsão de diversos líderes árabes em 1937 e o controle do Conselho Muçulmano pelos oficiais britânicos reduziram a capacidade de organização dos árabes diante dos judeus e das deci- sões inglesas a respeito do futuro da Palestina (KHALIDI, 2001). Durante o mandato britânico, judeus e árabes vivenciaram diversos momentos de tensão, em sua maioria violentos, como o Massacre de Hebron em 1929 e o atentado ao Hotel Rei Davi em 1946. Gru- pos extremistas como o Irgun – pró-judeu – e a Mão Negra – pró-árabe – atuaram não só uns contra os outros, mas também em confrontos com o próprio Governo britânico. Depois da proclamação do Livro Branco pela Inglaterra, a situação se tornou bastante caótica, devido a uma onda de insurgência judaica contra as medidas britânicas. O aumento da intensidade do conflito ocorreu a partir de 1944, com as ações do grupo Irgun. A Haganah, que em princípio se opunha a estas ações, iniciou um período 27 A Haganah foi criada com o intuito de oferecer apoio aos imigrantes judeus na Palestina. Ela se destaca dentre as demais organizações Sionistas, pois apresenta a Palmach, sua força de elite e núcleo da organização militar do movi- mento judaico na Palestina. 167 AGH 47 de cooperação com estas organizações paramilitares, criando o Movimento de Resistência Judaica, que se dissolveu um ano após sua criação, depois do episódio do Hotel Rei Davi – quando 91 pessoas foram mortas, em uma ação direcionada às autoridades britânicas. 3. POSICIONAMENTO DOS PAÍSES Os países árabes (Arábia Saudita, Egito, Iêmen, Iraque, Líbano e Síria) formam uma frente po- lítica única sob a coordenação da Liga Árabe. A proposta fundamental desta organização é o estabele- cimento de uma soberania árabe independente. Isso se traduz no fim imediato de qualquer forma de administração estrangeira e na oposição à formação de um Estado judeu na Palestina. A Arábia Saudita, como país membro da Liga Árabe, se mantém deliberadamente contra a cons- tituição de um Estado judeu no território da Palestina. No preâmbulo de sua carta fundadora, a ONU se comprometeu a combater povos e nações agressoras para, assim, estabelecer a paz mundial e garantir a segurança internacional (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945). Baseados nesse argumento, os líderes sauditas defendem que as Nações Unidas trabalhem no sentido de proteger o povo palestino das intenções vistas como tirânicas dos judeus (ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1947b). Seus discursos tendem a apelar pelo resguardo da justiça e do direito internacional acima de quaisquer outros princípios. O Afeganistão mantém uma postura semelhante à dos demais países Árabes durante o debate. Para esse grupo de países, os anseios judeus no Oriente Médio são agressivos e ameaçam não somente a sobrevivência dos povos dessa região como também a segurança do sistema internacional (AG, 1947b). O representante afegão tende a apelar para os princípios da Carta da ONU para embasar sua oposição à proposta de fundação de um Estado judeu na Palestina, buscando assim garantir a proteção dos palesti- nos e a integridade de seu território. A África do Sul, que há pouco se tornou independente do Reino Unido, passando a fazer parte da Commonwealth britânica (a comunidade de nações que faziam parte do império britânico), dissociou-se completamente da posição de sua ex-metrópole e se posiciona a favor da partilha da Palestina em um Estado árabe e um Estado Judeu, com união econômica, expressando sua posição durante as votações do UNSCOP (GOMES, 2001). A Argentina tende a se manter neutra durante o debate. Graças ao seu relativo distanciamento do conflito em questão, o país sul-americano concentra seu discurso na promoção da paz mundial e da se- gurança na comunidade internacional, reforçando os valores da carta da Organização das Nações Unidas, sem interferir de forma incisiva na resolução do tópico debatido (AG, 1947e). Acredita-se que o represen- tante argentino destacará a importância histórica da reunião e a responsabilidade depositada nas mãos dos oficiais ali presentes, enfatizando a importância da tomada de uma decisão consciente e equilibrada. Assim como o Canadá e os Estados Unidos, a Comunidade da Austrália adota uma postura cética quanto a uma possível reconciliação. Da mesma maneira que outras ex-colônias britânicas, o país defen- de o fim do Mandato Britânico e a independência, assim que possível, da Palestina. A Austrália é favorável à criação dos dois Estados a partir da partilha da Palestina; embora, assim como o Canadá, acredite que essa não é a melhor opção a ser adotada, os australianos a veem como a solução mais cabível para o momento, devido às enormes tensões regionais (AG, 1947c, 1947e). A República Federativa do Brasil está entre os defensores da partilha; contudo, acredita que essa deve ser apenas uma medida temporária, que só deve ser tomada porque seria impossível instaurar um governo único em um país envolvido em tamanha tensão interna. O país defende fortemente a preserva- ção da unidade política da região, e diz ser esse o objetivo a ser buscado (AG, 1947a). Assim como o Brasil, o Reino da Bélgica diz ter certeza de que a questão da Palestina é a decisão mais difícil enfrentada pelas Nações Unidas até então, por envolver mudanças substanciais na configu- ração política da região e abarcar interesses conflitantes. O povo belga entende o movimento sionista – visto sua relação com seus cidadãos judeus –, mas, analisando os dois lados da situação, percebe que ambos os povos estão em busca de ideais fortemente justificáveis, não conseguindo afirmar quem tem mais direito a terra. A Bélgica diz não ter certeza se a partilha da Palestina é a medida mais justa a ser tomada, mas defende essa posição por temer que, caso ela não seja instaurada, nada mais seja feito para solucionar a disputa (AG, 1947b). 168 UFRGSMUNDI O Canadá, favorável à partilha do país, também é muito cético ao tratar de uma possível reconci- liação entre os povos palestinos. Para eles, se o Reino Unido, que buscou a união entre árabes e judeus durante décadas, não conseguiu concretizá-la, não será um plano adotado na Assembleia, seja ele qual for, que fará isso acontecer. O país defende que a questão palestina é de responsabilidade internacional, e que todos os países deveriam ajudar a encontrar uma solução cabível para o problema (AG, 1947a). A China, desde o início das discussões sobre a questão da Palestina na ONU, vem defendendo que uma solução viável para a situação só pode ser alcançada através do consenso e cooperação das partes envolvidas.A China coloca os interesses dos habitantes da Palestina em uma posição de extrema impor- tância para a tomada de decisões, e acredita que todos os fatores que culminaram na presente situação devam ser levados em conta. A China busca conciliar interesses árabes e judeus, de maneira a garantir a paz na Palestina (AG, 1947c) A República de Cuba se mostra contrária à partilha da Palestina em dois Estados. Os cubanos, apesar de preocupadas com os interesses judaicos, posicionam-se dessa maneira por acreditarem que a partilha não é uma forma justa de resolução do conflito; para eles, existem muitos interesses árabes que também merecem ser considerados. Além disso, demonstram dúvidas sobre a legalidade da partilha e consideram a possibilidade de ela ser injusta, já que os árabes ocupam o território palestino há vários séculos. Cuba, por já ter sofrido a ameaça de perder parte de seu território, tende a colocar-se no lugar do povo árabe, não sendo capaz de se posicionar a favor de algo que um dia ela tanto temeu (AG, 1947c). A República Árabe Unida do Egito defende que o problema da Palestina foi artificialmente criado pelo movimento sionista, que estimulou a imigração para a região e hoje quer formar um Estado. É, por tanto, contrário a planos de partilha. No entanto, assim como o Líbano, advoga por um forte compromis- sos com a proteção das minorias, garantindo um ambiente seguro para os judeus que se encontrarem no novo Estado árabe (AG, 1947k) Os Estados Unidos da América se mostram favoráveis à criação de dois Estados, um árabe e um judeu. Para esse país, a independência da Palestina deve ser realizada assim que possível, e os locais sa- grados devem ser reconhecidos e protegidos. Os norte-americanos acreditam que não se deve perder tempo discutindo quem tem as melhores razões e o maior direito às terras. Para eles, é certo que nunca se chegará a um acordo que agrade a ambas as partes simultaneamente; a partilha se coloca, assim, como a única forma possível de solução, no momento, de um conflito de tamanho choque de interesses (AG, 1947a). A Etiópia, um dos poucos países africanos a participar da Organização das Nações Unidas, acredita que uma proposta de divisão da Palestina não apresenta uma proteção adequada aos interesses de árabes e judeus, defendendo a opinião de que a resposta para o problema não se encontra em uma partilha ba- seada na religião (AG, 1947d). Contudo, a Etiópia busca não se opor ao desejo da maioria, adotando uma posição neutra. Os etíopes têm relações estreitas tanto com povos judeus – em virtude dos Beta Israel ou Falashas, os judeus negros que habitam o país, e à contínua troca de bens e serviços entre os etíopes e os habitantes dos assentamentos judeus da Palestina – e com os países Árabes, que cercam seu território (CAROL, 2012). Sua tendência é encontrar uma solução que seja aceitável para ambos os lados da disputa. A França encontra-se dividida. Ao mesmo tempo em que o país é o abrigo europeu de uma quan- tidade expressiva de árabes e compartilha com esse povo uma forte conexão cultural, os franceses as- sistiram de perto a perseguição e o assassinato de milhões de judeus durante o holocausto na primeira metade do século XX e carregam, assim como outras nações europeias, um sentimento de culpa que é a força motriz do apoio à fundação de um Estado nacional judeu (AG, 1947c). Assim, espera-se que o representante francês defenda a procura de pontos em comum entre as exigências árabes e judaicas, de forma a possibilitar a coexistência pacífica desses povos na mesma região. O Iêmen é defensor da criação de um Estado árabe na região da Palestina. O governo iemenita entende que a criação de uma nação judaica significaria a cessão do território a um poder estrangeiro e seria, então, ilegal. De qualquer forma, entendem que a partilha não está de acordo com os princípios das Nações Unidas (AG, 1947k). A Índia foi um dos três países membros do UNSCOP que apresentou a proposta de um Estado uni- tário dividido em uma província árabe e outra judaica, tendo em vista o território limitado, a necessidade de manutenção da integridade econômica e social da Palestina e o princípio de que tanto judeus quanto árabes tem relações profundas com a região e são responsáveis por seu desenvolvimento. Segundo a delegação indiana, uma solução que não divide o território uniria as aspirações nacionais e interesses dos dois povos, além de ser um passo importante em direção à cooperação entre árabes e judeus e entre a nova nação e os países vizinhos. A Índia busca, sobretudo, uma solução que evite segregações raciais e religiosas entre a população (AG, 1947i). 169 AGH 47 O Estado Imperial do Irã defende a plena autodeterminação da Palestina. O governo iraniano crê que a população palestina deve ser consultada e ela decidir qual deve ser sua forma de governo, sua religião oficial etc. Cabe a ONU, crê a Pérsia, assegurar a independência da Palestina, sendo possível im- plantar soluções temporárias, como uma Federação provisória até a definição do novo status palestino (AG, 1947k) O Iraque é favorável a emancipação da Palestina como Estado árabe pela presença histórica na região. Defendem que o destino da região deve ser democraticamente decidido pela consulta à vontade dos locais, no verdadeiro espírito da autodeterminação (AG, 1947h). Grande detentor de reservas de pe- tróleo, inclusive exportando-o via oleodutos para a Palestina, para o Reino do Iraque a questão é estraté- gica. Sua relação com as potências ocidentais, nesse aspecto, é de interdependência, mas de oposição de posições quanto a solução para a questão. O Líbano, embora se alinhe aos países árabes, mantém uma postura mais favorável a formação de um estado laico e não ligado a nenhum grupo étnico. Dos membros da Liga Árabe, é o país mais diferente, sendo uma república de maioria cristã. Apoiam a formação de um Estado democrático que se compro- meta com a proteção de todas as minorias, assim como este o é (AG, 1947g). A República da Libéria se mostrou inicialmente em dúvida quanto à capacidade e legitimidade da ONU para determinar a partilha. Além disso, defendeu a imigração dos judeus para os territórios dos membros das Nações Unidas como solução alternativa para o destino do grande fluxo de refugiados ju- deus do pós-guerra. Como nenhuma dessas duas questões foi abordada durante as reuniões do UNSCOP, o país resolveu abster-se na votação. A Libéria tem sido alvo de fortes pressões dos Estados Unidos para que a divisão da Palestina seja aprovada e, como os liberianos possuem laços históricos com os EUA e dependem da ajuda financeira norte-americana, é provável que o país mude sua posição para se colocar a favor da partilha (GOMES, 2001). O Reino da Noruega é a favor da partilha da Palestina em dois Estados, um judeu e outro árabe. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Noruega foi controlada pelas forças nazistas e diversos judeus fo- ram vítimas das políticas segregacionistas por eles aplicadas. Diante disso, este país acredita que é dever da comunidade internacional resolver o problema enfrentado pelos judeus na atualidade. A Noruega também faz parte do Plano Marshall e costuma apoiar as decisões tomadas pelos EUA. No que diz respei- to à Jerusalém, o Governo Norueguês concorda que a cidade seja administrada internacionalmente, ao invés de pertencer a um único Estado (CAMASMIE, 1948; AG, 1947e). O Reino da Suécia é considerado um país neutro em termos de política internacional, o que per- mitiu que durante a Segunda Guerra Mundial milhares de judeus se abrigassem neste território, fugindo das ações tomadas pelas forças nazistas. O Governo Sueco é a favor da partilha da Palestina e defende o direito judeu à autodeterminação. Foi um juiz sueco que presidiu a UNSCOP, e desde então este país tem apoiado a criação de dois Estados na Palestina, além do estabelecimento de uma união econômica entre ambos e do reconhecimento de Jerusalém como cidade internacional (CAMASMIE, 1948; AG, 1947f). Os Países Baixos se mostram favoráveis à partilha da Palestina em dois Estados, mas costumam se abster das votações. Atualmente, os Países Baixos estão bastante preocupados com a independência da Indonésia, país com maioria muçulmana, e não é do interesse deste país concordar com qualquer decisão que venha a prejudicar seu relacionamento com um país muçulmano. Durante as discussões, este país deve apoiar o estabelecimento de uma união econômica entre o país judeu e o árabe, e colaborar com os EUA, devido ao Plano Marshall (CAMASMIE, 1948; AG, 1947f). O Paquistão é um forte apoiador da causa árabe. Sua história guarda semelhanças com o debate sobre a Palestina: foi criado a partir da separação da antiga colônia britânica em Índia e Paquistão, este último um país muçulmano. Defende o direto à autodeterminação dos árabes e preocupa-se com a pos- sibilidade de uma onda de separatismos após a criação de um Estado judeu. Além disso, entende como direito natural o dos árabes de deterem uma nação própria (AG, 1947h) O Reino Unido é um dos países mais importantes na discussão a respeito da partilha da Palestina, que esteve sob seu controle por muitos anos. Diante das dificuldades do pós-guerra, tornou-se difícil para o Reino Unido manter sua presença na região, principalmente com a escalada do conflito entre judeus e palestinos e com a pressão exercida pela sociedade britânica. Apesar de ser de interesse inglês criar dois Estados, o Reino Unido não quer se comprometer com um dos lados e criar problemas diplo- máticos com o outro. Assim sendo, este país deve analisar a possibilidade de se manter neutro na votação, apesar de apoiar a criação de dois Estados autônomos (CAMASMIE,1948; AG, 1947f). A Síria é um país fronteiriço ao Mandato britânico da Palestina, membro da Liga Árabe, e por isso altamente interessado na debate. Sua posição é de total oposição à criação de um Estado judeu na região, por ausência de uma base legal para que a ONU seja capaz disso, bem como por entender que a existên- 170 UFRGSMUNDI cia de uma identificação religiosa não ser legitimadora da criação de um Estado próprio. O governo sírio condena a ação das potência com interesse em dividir a região para se fazerem presentes ali (AG, 1947j) A Turquia, por sua vez, possui uma relação delicada com o tema. Segundo Fernandes (2010), apesar de, durante a Segunda Guerra Mundial, ter recebido milhares de refugiados judeus que fugiam da campanha nazista na Europa, o país muçulmano também viu a emergência de movimentos antissemitas em seu território nas primeiras décadas do século XX. Grupos conservadores que assumiram o controle político turco nesse período chegaram até mesmo a instituir leis que ameaçavam os direitos civis dos ju- deus na nação, classificando-os como inferiores aos turcos muçulmanos e os impedindo de se comunicar em suas próprias línguas. Portanto, espera-se do representante turco uma posição que leve em conta es- ses dois aspectos de seu país, balanceando a receptividade turca aos judeus durante o holocausto, o que demonstraria apoio da Turquia a causa judaica, com a rejeição interna e discriminação que esses sofreram dentro das fronteiras da Turquia, denunciando possível oposição dos turcos aos judeus. A República Popular da Polônia acredita que a única opção capaz de resolver a situação na Pa- lestina é sua divisão em dois Estados. A Polônia faz parte do eixo de influência soviética e deve apoiar as decisões que a União Soviética tomar nesta reunião, que devem ser favoráveis à criação de um Estado Judeu. Além disso, a Polônia também concorda que o estabelecimento de uma união econômica entre os Estados Judeu e Palestino possa ser a melhor opção para manter a paz e a segurança após a partilha (CAMASMIE, 1948). A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) considera claro que o problema da Pales- tina deve ser solucionado tendo em vista os propósitos e princípios da ONU de manutenção da paz e se- gurança internacionais. Partindo do princípio de que tanto árabes quanto judeus habitantes da Palestina representam um papel importante na economia e na cultura do país e têm demandas legítimas, a URSS acredita que a melhor solução para a disputa seria o estabelecimento de um Estado árabe-judeu unitário, dual e democrático (AG, 1947m). Todavia, frente aos resultados apresentados pelo UNSCOP, os soviéticos chegaram à conclusão de que ambos os povos não desejam viver em conjunto; a única solução viável para esse contexto seria, portanto, a criação de dois Estados, um árabe e outro judeu, como maneira de salvaguardar o interesse de ambas as populações e garantir o princípio de autodeterminação dos povos e a paz (AG, 1947b). A República Socialista Soviética da Ucrânia tem uma relação muito próxima com a União Sovié- tica, mas é considerada um Estado autônomo. Neste sentido, durante esta reunião da Assembleia Geral, pode se esperar que a Ucrânia vote de acordo com o voto da União Soviética, isto é, favorável à partilha da Palestina em dois Estados soberanos (CAMASMIE, 1948). Espera-se que o Uruguai, graças à parcial neutralidade e distanciamento em relação ao tema em questão e também à sua tradicional linha de defesa da paz mundial, promova uma visão equilibrada que leve em conta tanto o histórico de perseguição dos judeus e o holocausto quanto a delicada situação dos palestinos em seu próprio território. O representante uruguaio, durante os debates, deve defender a criação de dois Estados nacionais independentes na região da Palestina como meio de garantir os direitos humanos e civis de ambos os povos e possibilitar o futuro pacífico do Oriente Médio (AG, 1947b). REFERÊNCIAS CAMASMIE, Jorge. Partilha da Palestina em Estados Árabe e Judeu. Rio de Janeiro, 1948. CAROL, S. From Jerusalem to the Lion of Judah and Beyond. 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Os impasses resultantes pela posse da Palestina deram início a escalada do conflito entre árabes e judeus. A Grã-Bretanha, apesar de ter saído vitoriosa da II Guerra Mundial, sofreu enormes prejuízos humanos e materiais, não tendo mais condições de manter o Mandato da Liga das Nações sobre a Palestina e de controlar as tensões que se intensificavam na região. Foi a partir desse momento que, depois de diversas tentativas mal sucedidas de dar uma solução ao conflito, os britânicos decidem transferir o problema da Palestina para a ONU. Assim, em novembro de 1947, os países se reúnem na sede provisória da Assembleia Geral das Nações Unidas em Flushing Meadows, Nova Iorque, para determinar uma solução para a Questão Palestina, que havia atingido um ponto insustentável. 173 AC AGÊNCIA DE COMUNICAÇÃO Jade Knorre 1 Paula Moizes 2 Sarita Reed 3 Vinicius Fontana 4 INTRODUÇÃO Na cobertura de um acontecimento, o jornalista é quem reúne as informações mais importantes a fim de apresentá-las ao público em forma de notícia. Desse modo, este trabalho pretende guiar o sujeito no campo do jornalismo, mostrando parte do universo da profissão, assim como alguns de seus veículos. Considerando que se constitui em um ofício que se aperfeiçoa não só com a teoria, mas também com o exercício do dia-a-dia, os textos aqui apresentados servem de base para pôr em prática as habilidades jornalísticas. O aluno será introduzido primeiramente ao universo do jornalismo, mostrando-se o papel do jor- nalista na sociedade e alguns elementos básicos da profissão. As seções seguintes apresentam os veículos que serão colocados em prática na simulação das Nações Unidas: jornalismo impresso, radiojornalismo, fotojornalismo e webjornalismo. 1. A PROFISSÃO O jornalismo é uma forma de comunicação, útil, em sociedade. Todos os acontecimentos mun- diais e opiniões que eles estimulam constituem o material básico para o jornalismo. É partir disso que o jornalista irá interpretar os fatos e informá-los para a sociedade. O papel de “informar” (BOND, 1959) do jornalista consiste em noticiar sobre todos os acontecimentos, questões úteis e problemáticas social- mente relevantes. A informação deve ser exata e, na medida do possível, imparcial. O ideal de imparcialidade é alcançado pelo jornalista que quer evitar erros, tendenciosidade, pre- conceitos e sensacionalismo. A prática da imparcialidade talvez nunca seja plenamente alcançada por conta de uma série de fatores, mas ela deve ser buscada. Os jornalistas tardaram a descobrir que as no- tícias nunca poderiam ser objetivas, ou seja, o espelho da realidade. A objetividade pode ser uma meta, mas não uma meta alcançável. Grande parte dos jornalistas busca ser o espelho da realidade descrevendo fatos verificáveis e verificados, citando fontes credíveis e contrastando fontes (SOUZA, 2005: 36). O jornalismo é uma profissão atrativa. Os mitos por trás da profissão, a sua imagem pública, entre outros fatores fazem do jornalismo uma profissão cobiçada. Porém, ser um bom jornalista é difícil. A profissão exige grandes capacidades profissionais, assim como muito conhecimento e uma boa cultura geral. Atenção à atualidade, domínio dos assuntos, compromissos éticos, capacidade de relacionamento interpessoal, capacidade de comunicação na língua materna e em línguas estrangeiras e aptidão na ob- tenção de informação correta são apenas algumas das habilidades enumeradas por Souza (2005) que um bom jornalista deve ter. Para muitos, o jornalismo não é apenas uma profissão, mas um estilo de vida, por exigir tanto do profissional. 1 Estudante de Comunicação Social – habilitação Jornalismo, 5º semestre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2 Estudante de Comunicação Social – habilitação Jornalismo, 5º semestre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul 3 Estudante de Comunicação Social – habilitação Jornalismo, 8º semestre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul 4 Estudante de pós-graduação em Jornalismo Esportivo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.173-186 174 UFRGSMUNDI As qualidades de um bom jornalista não ficam por aqui. Um bom jornalista deve ser curioso, persistente, imaginativo e ousado. Deve estar disposto a desafiar estereóti- pos, expor mitos e mentiras (SOUZA, 2005: 29). A fim de transmitir uma informação precisa e independente, o jornalismo precisa de liberdade por parte do Estado e da própria empresa jornalística. Segundo Bond (1959: 2), “uma imprensa livre não pode estar sujeita a qualquer pressão, seja ela governamental ou social”. Assim, o jornalista com liberdade de expressão é capaz de redigir um texto livre de pressões externas e o mais próximo da realidade. Publicando uma matéria imparcial, o jornalista estará exercendo a sua função de “orientar” (BOND, 1959). Nossa sociedade está cada vez mais complexa, assim, um assunto pode se desdobrar em vários. Desse modo, o cidadão precisa ser guiado através do emaranhado de informações que o rodeiam. É papel do jornalista fazer com que chegue ao público não só a notícia, mas também explicações, interpretações e contextualizações “orientados no sentido de ajudar o indivíduo a compreender melhor o que lê ou ouve” (BOND, 1959). Souza (2005) aponta outro significado para o conceito “informar” no jornalismo. Ele assinala que a principal função do jornalismo, inserida dentro do conceito de “informar”, é a vigilância e o controle dos poderes. Um jornalista deve publicar as ações dos agentes de poder, assim como analisar essas ações, expor o contexto em que se praticam e explicar as suas consequências possíveis. Desse modo, significa igualmente “trazer para o espaço público os assuntos socialmente relevantes que poderiam passar des- percebidos” (SOUZA, 2005: 11). Além isso, o jornalismo também se dedica a entreter o público. O jornal, o rádio e a televisão bus- cam através do entretenimento atrair os leitores, ouvintes e telespectadores. O público precisa de uma distração para suportar os “efeitos desestabilizantes desta abertura ao mundo” (WOLTON, 2007) que o jornalismo proporciona. Logo, a solução para fisgá-lo consiste em levá-lo a programas de qualidade a partir dessa necessidade da banalidade. A diversidade que o jornalismo apresenta é a própria condição para que o mesmo desempenhe seu papel de abertura ao mundo. A variedade também está presente no jornalismo nas aptidões que ele engloba. Uma grande diver- sidade de pessoas, com as mais diferentes competências, é atraída para a profissão do jornalismo, pois ela faz uso dessa diversidade de talentos. O jornalismo, como um todo, é “uma modalidade de comunicação social rica e diversificada” (SOUZA, 2005: 12). Em sua extensão, o jornalismo não compreende apenas os campos do jornal e da revista, como também do rádio, da televisão, da revista especializada, do jornal comercial, entre outros. O jornalismo que se faz na imprensa regional e local é diferente do que se faz nos grandes jornais e revistas. O jornalismo esportivo é diferente do internacional, assim como o jornalismo alemão é diferente do jornalismo brasileiro. São diferenças que fazem os jornalismos diferentes entre si, no conteúdo, na forma de contar as histórias e de debater as problemáticas (SOUZA, 2005). 2. ELEMENTOS BÁSICOS 2.1. PAUTA A pauta é um projeto de cobertura de um acontecimento. É o exercício mais importante que todo aspirante a jornalista deve fazer, segundo Pinto (2009: 59). Para sugerir uma pauta, é necessário seguir etapas. Primeiro, deve-se examinar se o acontecimento escolhido é uma notícia (ver seção Valores-notí- cia). Em seguida, o jornalista deve hierarquizar as informações de sua pauta, determinando qual será o as- sunto principal a ser tratado. O profissional precisa também prever as etapas da apuração, de forma com que sejam listadas todas as fontes possíveis (ver seção abaixo) que serão usadas na notícia. Por último, é necessário que se antecipe ao máximo a edição do material, “[...] imaginar como será a reportagem, que título ela terá, se há boas imagens para acompanhá-la, etc” (PINTO, 2009: 59). 2.2. FONTES DE INFORMAÇÃO Qualquer entidade que possua dados suscetíveis de serem usados pelo jornalista na sua profissão pode ser considerada uma fonte de informação. Essas fontes podem ser classificadas de acordo com sua proveniência (internas ao órgão informativo, externas e mistas) ou de acordo com seu estatuto (oficiais 175 AC estatais, oficiais não estatais, oficiosas e informais). Podem ser fontes pessoas, livros, documentos, en- tre outras, mas o principal meio de obtenção de informação são as entrevistas pessoais. Visto a enorme quantidade de fontes possíveis, é dever do jornalista selecionar as melhores. As fontes humanas devem ser escolhidas pela sua qualificação para falar sobre algum assunto, pela sua competência e credibilidade, pela oportunidade e pertinência do contato e, obviamente, pela sua disponibilidade para falarem com o jornalista (SOUZA, 2005: 49). Quando se trata de um assunto que apresenta muitas variáveis, as fontes devem sempre ser con- trastadas. A relação dessas fontes com o jornalista é de negociação, na maioria das vezes. O entrevistado tenta divulgar o que lhe interessa e omitir o que não lhe interessa. O jornalista competente busca fugir dos significados iniciais que a fonte dá a um acontecimento, mas, acima de tudo, o profissional deve saber aproveitar as informações que a fonte lhe dá e “as pistas para encontrar novas informações que a fonte lhe sugere” (SOUZA, 2005: 51). Além disso, o jornalista deve respeitar, quando possível, o pedido que algumas fontes podem fazer de não serem identificadas e até mesmo de não divulgar o que lhe foi dito. 2.3. VALORES-NOTÍCIA Há dois sentidos para o que é notícia. Em seu sentido amplo, ou lato sensu, a notícia seria o ma- terial de trabalho do jornalista no geral. Segundo Traquina (2005), é difícil definir fora de seu contexto histórico que tipo de acontecimento possui valor para o jornalista, porém, ele estabelece alguns funda- mentos do que seria objeto de uma notícia. Se há algum dos seguintes requisitos, o acontecimento possui potencial para ser objeto de uma cobertura por parte da imprensa. É o que ele chama de valores-notícia. Resumidamente, são os seguintes: • Notoriedade: noticia-se algo sobre uma pessoa ou órgão de grande importância social. Ex: presidentes, cientistas, autoridades oficiais, times de futebol, universidades. • Relevância: são fatos que possuem importância direta na vida das pessoas. Ex: aumento das passagens de ônibus, novos direitos. • Notabilidade: algo grande em si, fácil de ser percebido por todos. Ex: manifestações públicas, acidentes de grandes proporções, grandes espetáculos. • Inesperado: quando determinada coisa foge do padrão. Ex: ataques terroristas, falecimento de alguma celebridade jovem. • Conflito: quando há violência física ou simbólica, disputas. Ex: troca de ofensas entre autori- dades, brigas em estádios de futebol. • Infração: alguma infração à lei. Ex: desvio de dinheiro, condutas repreensíveis no trânsito. A escolha dos assuntos que serão abordados por um jornal segue critérios como estes, chamados por alguns autores de critérios de noticiabilidade. Souza (2005) ainda cita outros valores-notícia, como proximidade, momento do acontecimento, continuidade e até negatividade. Há muitas listas de valores- -notícia, mas todas elas têm utilidade na construção da agenda do jornal. Segundo Benetti (2008), o discurso jornalístico possui cinco elementos a serem considerados: “quem diz e para quem?”, “para que dizer?”, “o que é dito?”, “em quais condições?” e “a forma de dizer”. Quando o jornalista produz algo, seja para a televisão, para o rádio, para a internet ou jornal impresso, o profissional deve ter em conta a responsabilidade que possui ao veicular algo. Ele deve levar em con- sideração os valores-notícia, porém não pode levar algo ao extremo. O jornalismo deve trabalhar para sociedade, para a melhoria dela como um todo, não devendo favorecer particulares ou a si mesmo. Ao profissional urge ter em mente que a informação deve ter relevância social, não podendo ser dada a todo custo, respeitando a privacidade alheia, o sigilo de suas fontes e, principalmente, o seu público, não im- pelindo-o constrangimentos e difundindo inverdades. Dito isso, tem-se a base para discutir o concreto, o material jornalístico em si. Basicamente, há três grandes gêneros jornalísticos por excelência: a notícia, a reportagem e a entrevista. 2.4. NOTÍCIA A notícia, em seu sentido textual, é geralmente um texto curto, que visa à informação precisa e mais instantânea possível. Aquele fato narrado quase em cima da hora pelo rádio, a matéria que é veicu- 176 UFRGSMUNDI lada pelos portais de notícia instantaneamente, o jornal na televisão, todos são exemplos de notícias. Ela deve possuir o caráter de imediatismo, sendo que o tempo a ser transcorrido entre o fato e a publicação deve ser o menor possível, sob pena de que todos já saibam o que aconteceu e a matéria deixe de ser interessante. Os veículos jornalísticos, ao longo do tempo, criaram rotinas para prever o imprevisto e o ines- perado. Segundo Traquina (2005), o jornalista deve estar atento para os movimentos insólitos, estando preparado para agir perante a mais adversa das situações. 2.5. REPORTAGEM Traquina (2005, p. 47) aponta que, para prender um tipo de atenção que demanda tempo e von- tade de ler, não apenas de se informar, a reportagem necessita de “a) realismo gráfico; b) criação de am- bientes, com a utilização de palavras concretas e a descrição detalhada para transmitir a sensação de que “se está ali”; e c) a utilização de metáforas, […] úteis para a dramatização do acontecimento”. 2.6. ENTREVISTA A entrevista é considerada um gênero jornalístico apenas quando é publicada isoladamente ou como parte importante de um texto. A entrevista, como gênero, deve ser distinguida da entrevista en- quanto técnica de obtenção de informações. Esse modelo consiste em expor as respostas dadas por um entrevistado às perguntas de um entrevistador, segundo Souza (2005, p. 172). 3. JORNALISMO IMPRESSO 3.1. HISTÓRICO A imprensa surge na Europa nos fins da Idade Média. O panorama sociocultural da Europa feudal era, segundo Marques de Melo (2003, p. 35), “(...) do mais sombrio isolamento rural, onde a ignorância predominava entre servos e proprietários”. As produções culturais, a leitura e a escrita confinaram-se aos bispados, abadias e mosteiros. No século XI originam-se as feiras, que consolidam a emergência de um novo grupo social nas cidades. O comerciante passa, então, a querer melhorar sua produção e a qualida- de de seu produto, procurando desenvolver-se intelectualmente, buscando assim, formas de ampliar sua atividade mercantil. Para que os jovens pudessem aprender sobre o comércio emergente, foram criadas as escolas leigas por ricos comerciantes. O comércio traz a necessidade da comunicação escrita e surge uma classe letrada independente da Igreja. A criação das primeiras universidades é que vai consolidar a formação dessa nova elite intelec- tual europeia. Segundo Marques de Melo (2003, p. 40), “[...] a efervescência cultural que estimula essas entidades, acentuaria a produção de livros manuscritos [...]”. A produção de livros manuscritos também cresce na medida em que se fortifica o Renascimento italiano. A procura de livros era tamanha que os copistas não davam conta de todos os pedidos. Surge então um comércio editorial. A necessidade da imprensa começa a emergir, também. O preço do livro manuscrito é elevado, e a imprensa torna-se uma necessidade social na Europa. Ela vem para atender a inúmeras necessidades: satisfazer as universidades e movimentos renascentistas, atividades da nascente burguesia, organizações administrativas e à Igreja. A informação como necessidade das atividades trazidas pela urbanização gera a imprensa periódica. A introdução da imprensa na colônia portuguesa acontece só em 1808, com a vinda família real e a criação de academias, bibliotecas, instituições científicas, entre outras atividades culturais. O atraso dessa implementação da imprensa no Brasil se dá por diversos fatores. Um deles é que a natureza feito- rial da atividade desenvolvida pelos portugueses leva em consideração apenas os interesses comerciais, deixando de lado o desenvolvimento e aperfeiçoamento da colônia. Não havia ambiente propício para o desenvolvimento de escolas, bibliotecas, universidades e a imprensa. A predominância do analfabetismo também ajudou para o atraso da implantação da imprensa no Brasil. Não existia um público que tinha in- teresse em livros, assim, não existia a necessidade social de uma imprensa. A predominância da vida rural no Brasil colônia, precariedade da burocracia estatal, um mercado interno fraco e o reflexo da censura e do obscurantismo português no Brasil também levaram ao surgimento da imprensa no país só em 1808. 177 AC A primeira fase autêntica da imprensa brasileira surge com a necessidade da imprensa para mo- bilizar a opinião da população brasileira em favor da Independência e contra a dominação lusa (SODRÉ, 1983). Um tipo de periódico característico da imprensa pós-Independência é o pasquim. Ele interessava o público popular e refletia o ambiente agitado da época. A imprensa no II Império é dividida por Sodré (1983) em três fases: conciliação, agitação e refor- mas. Na fase de conciliação (1840), a imprensa se aproxima com a literatura, com a publicação de roman- ces e folhetins nos jornais. Na fase da agitação, ocorre a retomada do debate político, nas campanhas de abolição e República. Em 1870, na fase das reformas, acontecem avanços tecnológicos, como a criação do telégrafo e do telefone. É nesse período em que as primeiras agências internacionais de notícias sur- gem no país. No período da República a imprensa adquire um caráter comercial. O processo de urbanização e crescimento dos centros urbanos favorece a circulação de informações. Nesse período de transfor- mações, a imprensa conheceu múltiplos processos de inovação tecnológica que permitiram o uso da ilustração. A qualidade da impressão também melhora. A imprensa começa a se tornar uma grande em- presa, com o crescimento da profissionalização nas imprensas. O conteúdo dos jornais começa a mudar, aparecendo os artigos, crônicas, entrevista e reportagens. Só em 1970, o jornalismo da Indústria Cultural consolida-se no Brasil 5 . A produção cultural da época fica sob o estreito controle do Estado. Para incentivar o conglomerado empresarial da Indústria Cultural, o regime cria instituições. Uma colaboração efetiva do regime militar na expansão dos grupos privados é observada. Consolidam-se organizações como Globo, Abril, Folha e Estadão. É neste período em que a empresa jornalística passa a ter predomínio sobre o jornal, e seu conteúdo fica subordinado à lógica empresarial. Assim, a notícia passa a ser mercadoria. 3.2. O ESTILO O jornalismo impresso impõe o domínio da língua e da sua gramática, assim como algumas técni- cas de redação. Dominar a língua escrita é imprescindível para um redator. Para isso, é necessário que se pratique a escrita e leia muito. Apesar disso, saber escrever não é o bastante. É preciso que o texto fisgue o leitor, mas sem deixar de lado o principal objetivo: manter informados os leitores. Souza (2005, p. 90) classifica algumas “regras que fazem do texto jornalístico um texto informativo capaz de chegar a um grande número de pessoas”. Uma boa notícia é escrita de forma clara, sem dúvidas ou ambiguidades. A linguagem do texto também deve ser simples, por exemplo: “entre dois sinônimos deve preferir-se o mais comum” (SOUZA, 2005, p. 90). Ao receber a pauta, o jornalista irá receber também o número de caracte- res que seu texto pode ter, ou seja, o espaço que ele poderá ocupar no jornal. Esse espaço deve ser res- peitado pelo profissional. Além disso, o jornalista deve selecionar as informações de sua notícia, deixando de lado as evidências e irrelevâncias informativas, de modo que o essencial do texto seja imediatamente compreendido. O autor também destaca que um texto jornalístico deve ser cativante e agradável, de for- ma que tenha ritmo para prender o leitor até a última frase. O jornal diário e a ideia de síntese consagraram um método de fazer notícia chamado “método da pirâmide invertida”. Fundamentalmente, consiste em colocar as informações mais importantes no topo do texto e as complementares abaixo. Assim, o redator consegue tornar sua matéria mais sintética, dando de início ao leitor o que é considerado como basilar, teoricamente prendendo a atenção do receptor para as descrições que vêm posteriormente. O primeiro parágrafo, considerado de fundamental importância, é o que os jornalistas chamam de lide. Para se fazer um bom lide, deve ser possível, somente com as informações deste, responder às seguintes perguntas: quem?, onde?, quando?, como? e por que?. Traquina (2005, p. 46) destaca que a lin- guagem jornalística, em especial a notícia, deve possuir certos traços que ajudam na compreensão, como “a) frases curtas; b) parágrafos curtos; c) palavras simples; d) sintaxe direta e econômica; e) a concisão; e f) a utilização de metáforas para incrementar a compreensão do texto”. Outro elemento importante de uma notícia é o título. Ele deve ser objetivo e curto, de forma que o leitor compreenda o que será tratado na notícia logo no título. Exemplo de notícia de impresso, publicada no Jornal do Comércio em 05/04/2013: Aumento da passagem é suspenso na Capital Uma liminar do Tribunal de Justiça do Estado (TJ/RS) concedida aos vereadores do P-Sol no fim da tarde desta quinta-feira suspendeu o aumento das passagens em Porto Alegre. Com isso, o preço da tarifa de ônibus retorna para R$ 2,85 e o de lotação para R$ 4,25 até as 19h desta sexta-feira. A decisão foi 5 Termo que designa a situação cultural da sociedade capitalista industrial. 178 UFRGSMUNDI anunciada enquanto ocorria uma manifestação no Centro da cidade contra o reajuste válido desde o dia 25 de março, que passou a tarifa para R$ 3,05 e R$ 4,50, respectivamente. “A prefeitura não irá recorrer da decisão. Se o tribunal afirma que é esse o valor, nós acolheremos”, afirmou o vice-prefeito, Sebastião Melo (PMDB), ao receber a intimação das mãos dos vereadores do P-Sol Pedro Ruas e Fernanda Melchiona, na Câmara Municipal. “A prefeitura deve agora informar esta decisão para as empresas de ônibus”, afirmou Ruas. A ação cautelar foi ajuizada contra o município de Porto Alegre, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) e o Conselho Municipal de Transporte Urbano (Comtu). As três partes precisam assinar o documento. A Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP) de Porto Alegre informou, por meio de sua assessoria, que seguirá a decisão que a EPTC e o Comtu tomarem. 4. RADIOJORNALISMO 4.1. HISTÓRICO Há uma série de polêmicas acerca da origem do rádio. Segundo Rodrigues (2008), a versão oficial é de que a primeira transmissão radiofônica foi realizada pelo cientista italiano Gugliemo Marconi em 1895. Porém, também há relatos de que, em 1893, o padre gaúcho Landell de Moura teria efetuado a transferência de voz por um canal, dois anos antes de Marconi, tornando-se o inventor extraoficial do veículo. Conforme Rodrigues (2008), a primeira transmissão civil que se tem notícia no Brasil ocorreu no dia 6 de abril de 1919, a partir de um estúdio improvisado na Ponte d’Uchoa, no Recife, pelo radiotele- grafista Antônio Joaquim Pereira, colocando em funcionamento a Rádio Clube de Pernambuco. Porém, o fato teve pouca repercussão na época, sendo que a Rádio Clube não funcionava regularmente, apenas de forma experimental. Foi nos anos 20 que o rádio demonstrou seu potencial como difusor da cultura e da informação. A primeira radiotransmissão massiva, considerada como oficial, foi realizada por Ro- quete Pinto, considerado o pai da radiocomunicação no Brasil. Em 1922, ele foi responsável pela famosa transmissão do discurso do presidente Epitácio Pessoa para a cidade do Rio de Janeiro por meio de uma antena instalada no alto do Corcovado, em plenas comemorações ao Centenário da Independência. Ele também criou a primeira emissora com funcionamento regular do país: a Rádio Sociedade do Rio de Ja- neiro, no final de 1922. A partir dessa data, o rádio não parou mais de crescer. Em 1931 o Governo Vargas permite a ex- ploração comercial das emissoras. Assim, o veículo cresce de modo a tornar-se o meio oficial de inter- locução entre o Estado e a Nação. Surgem os famosos programas de notícias “Voz do Brasil”, em 1935, e “Repórter Esso” em 1941, além de diversas transmissões esportivas em tempo real. Já em 1942, nascem as novelas do rádio, sendo “Em Busca da Felicidade” a pioneira, atingindo grandes índices de audiência. O rádio, juntamente com o jornal impresso, foi um dos veículos de comunicação hegemônicos até a década de 50. Nessa época, surgia um novo jeito de transmitir informação, que em breve estaria em todos os lares: a televisão. Segundo Prata (2008), foi um momento de crise na radiodifusão, já que aquele dispositivo aliava o som com a imagem. Contudo, ao contrário das previsões apocalípticas, a ra- diofonia permaneceu no cenário da comunicação, inclusive expandindo suas fronteiras com a melhora na tecnologia. Agora, com a internet, o rádio passa por uma reinvenção que, segundo Ferraretto, não irá extingui-lo, e sim explorar as possibilidades trazidas pela web. É o que está ocorrendo com a difusão de radiowebs e podcasts (ver seção Adaptações do jornalismo impresso, radiofônico e televisivo à internet), sem prejuízo perceptível à antiga transmissão por ondas eletromagnéticas. Conforme Ferraretto (2007, p.13), o rádio deve: Buscar complementação nas possibilidades oferecidas pelas tecnologias que [...] vão sendo introduzidas a cada dia. Acima de tudo, é necessário recordar aquilo que o faz um veículo diferente dos demais: a possibilidade de acompanhar o ser humano em simultaneidade a quaisquer de suas atividades, oferecendo seja informação, seja entretenimento. Ou seja, para os que pensavam que a radiofonia iria morrer, ela está crescendo dentro das novas plataforma e reinventando-se, ficando mais moderna e adaptado aos tempos multimídia. Seja nos mo- 179 AC dernos iPhones ou nos antiquados rádio-relógios, sempre há o charme, a confidencialidade e o compro- misso com o ouvinte que o rádio conquistou em cerca de um século de história. 4.2. CARACTERÍSTICAS DO RADIOJORNALISMO A voz, instrumento de comunicação humana por excelência. Enquanto os demais animais trinam, sibilam e até mesmo imitam, o homem desenvolveu e aprimorou dispositivos fonéticos para melhor inte- ragir com os demais. Por meio da fala é possível expressar um sentimento, contar uma história, emitir uma opinião, além de diversos outros tipos de exposição. A voz possui um determinado alcance nas situações comuns, limitado pela distância, entre o som emitido e o ouvido. Contudo, imagine a capacidade da voz de forma ilimitada, podendo ser ouvida em qualquer canto do mundo, desde que se tenha um receptor adequado. Eis então o rádio, definido por Meditisch (2001) como sendo o meio de comunicação que transmite informação sonora em tempo real – se não for feito de som e não for instantâneo, então não é rádio. O rádio é um dos primeiros veículos massivos de comunicação, utilizado por jornalistas em ampla escala devido à praticidade e à instantaneidade de suas informações. Segundo o censo de 2010 (Funda- ção Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 2011), atualmente considera-se que 100% dos brasileiros tenham acesso à radiofonia através de alguma plataforma, seja celular, internet ou o próprio. Há 300 milhões de receptores de ondas radiofônicas no país (IBGE, 2011), o que transforma este veículo no mais difundido dentro do território brasileiro. Com todo o poder de difusão da informação trazido pelo rádio, como o jornalista constrói as notícias e quais são as técnicas para melhor aproveitamento do potencial de tal meio de comunicação? Jornalismo e rádio possuem uma estreita relação: o comunicador utiliza-se das potencialidades do meio para divulgar notícias, opiniões, transmitir eventos, realizar entrevistas, etc. Enfim, as possibilidades são imensas. A radiodifusão comporta desde matérias longas, como as reportagens e os documentários, até programas com matérias curtas e concisas. Cada um dos gêneros jornalísticos possuem peculiarida- des já abordadas neste trabalho. Contudo, há determinadas diretrizes para a produção de conteúdo que se mantêm como base geral para uma comunicação eficaz e franca entre emissor e ouvinte. 4.2.1. LINGUAGEM Primeiramente, Meditisch (1999) ressalta que a “linguagem do rádio é apresentada [...] como a composição de palavra falada, música, ruídos e silêncios” (p.121). Ou seja, o silêncio pode conter tanta significação quanto uma frase, portanto, é necessário que o jornalista possua ideias articuladas e não deixe grandes espaços para não angustiar ou frustrar o ouvinte. O que mais prende a atenção do público, muitas vezes, não somente o que se diz, mas a forma que se diz. Segundo Jung (2004), o segredo de um bom locutor está em criar um padrão espontâneo de fala, sem impostar a voz como os garbosos narra- dores de outrora. Porém, isso não significa desleixo. O emissor deve quebrar um pouco o ritmo de fala para manter a atenção do ouvinte, mostrando que acredita e se importa com o conteúdo que está sendo repassado. Falar com calma as palavras, articular todos os fonemas, destacar palavras-chave e impor rit- mo à voz, são boas estratégias para não transformar uma notícia em algo monótono. 4.2.2. REDAÇÃO Pode não parecer, mas escrever é uma das tarefas mais importantes do jornalista de rádio, além de ser uma das mais desafiadoras. O texto para ser lido em voz alta possui características distintas do de leitura visual. Ele deve ser simples, conciso, ter frases curtas, ser próximo da fala e, principalmente, feito para que o leitor entenda. Klöckner (1997) e Nucci (2006), em seus respectivos manuais, apontam regras simples, mas que funcionam para a tal tipo de redação: • Preferir sempre a ordem direta: “O médico disse que o paciente deve ser operado” ao invés de “o paciente deverá ser operado, disse o médico”; • Valorizar a pontuação, destacando sua função fonética, fazendo frases curtas e com vírgulas suficientes para respirar. Evitar construções longas e sem pontuação do tipo: “o acusado foi ontem até a DELEGACIA DE POLÍCIA DO QUARTO DISTRITO para prestar depoimento à dele- gada FULANA DE TAL sobre o crime ao qual ele respondia”; • Outra dica é colocar barras após o ponto final e duas ou três no final do parágrafo: “O VATI- CANO anunciou hoje o início do Conclave./ A informação foi dada pela assessoria oficial do País.//”; 180 UFRGSMUNDI • Escrever números, nomes próprios e palavras de destaque por extenso e em caixa-alta: “O jo- gador NEYMAR, do SANTOS, marcou QUARENTA E DOIS gols na temporada passada” ao invés de “o jogador Neymar, do Santos, marcou 42 gols na temporada passada”; • Abrir siglas, a não ser que já seja consagrada pelo uso. “O MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO” ao invés de “o MPU”; “o INSS” ao invés de “o INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL”; • Se for um programa ao vivo, principalmente os de longa duração, retome algumas ideias para o ouvinte relembrar ou até mesmo para situar o receptor que chegou “atrasado na conversa”; • A capacidade de improviso é importante, porém o fundamental é preparar-se para evitar ruí- dos (falhas) na comunicação; Exemplo de notícia para rádio: LOC- Médicos, técnicos e assistentes sociais do INSS paralisaram as atividades no Rio Grande do Sul./ Conforme levantamento do Sindicato dos Trabalhadores Federais da Saúde, Trabalho e Previdência, cerca de NOVENTA POR CENTO das agências não abriram hoje./ A categoria exige a abertura de concur- so público para VINTE MIL vagas, além de gratificação por desempenho e fim do fator previdenciário./ Segundo o presidente do Sindicato, GIUSEPE FINCO, a paralização deve terminar na QUINTA-FEIRA./// 5. FOTOJORNALISMO 5.1. HISTÓRICO Na metade do século XIX, a fotografia ganhou espaço em meio à crise de confiança que atingia as imagens manuais. Desenhos e gravuras, em suas funções documentais, não mais convenciam os cida- dãos da sociedade industrial em expansão. A fotografia se adaptou melhor a realidade da nova época por assegurar o contato com o referente, além de ser produzida de forma relativamente mais rápida que as imagens feitas à mão. A imagem fotográfica ficou estreitamente ligada à mídia impressa entre os anos 1920 e a Guerra do Vietnã (ROUILLÉ, 2005). No período anterior a virada do século XX, no entanto, o valor informativo da fotografia era ínfimo, já que as máquinas ainda não estavam aptas a captar o instante. O longo tempo de exposição necessário para a captação da imagem fazia com que apenas coisas ou estados de coisas fos- sem fotografados. Não havia a possibilidade de fotografar movimentos. Outra conjunção que dificultava a inserção da fotografia na área da informação era a impossibilidade de reproduzir as imagens em grandes quantidades. Avanços técnicos possibilitaram, por volta de 1900, que o instante pudesse ser capturado e, a partir daí, eventos inesperados, guerras, atividades esportivas e outros tipos de acontecimento puderam ser fotografados. Pouco tempo depois, surgiram também as primeiras câmeras fotográficas de pequeno porte, que tornaram a atividade mais ágil e prática. Mas os progressos técnicos da câmera precisavam ainda se aliar a algum tipo de procedimento que aumentasse imensamente a capacidade de difusão das imagens. Após décadas de pesquisa, verificou-se um avanço nas técnicas de heliogravura 6 e do ofse- te 7 , o que tornou possível, enfim, a reprodução industrial de fotografias através da tipografia. Apoiado na aliança entre a imagem instantânea e a tipografia, o fotojornalismo se estabelece na metade de 1920 (ROUILLÉ, 2005). 5.2. COMPONENTES DA IMAGEM O fato da imagem fotográfica se diferenciar das anteriores por ser tecnológica, imagem-máquina, fez com que acentuassem em demasia o seu caráter automático. Por muito tempo, acreditou-se que a fotografia era uma perfeita impressão do real, ou seja, a influencia do homem no processo era subestima- da. Só que o fotógrafo não mostra sem se mostrar (ROUILLÉ, 2005). As fotos, sempre singulares e subje- tivas, se constroem através das escolhas que o fotógrafo faz entre os diversos elementos de composição de uma imagem. Abaixo, resumimos alguns desses componentes: 6 Processo pelo qual se grava uma fotografia em uma placa de metal utilizando-se uma camada de gelatina sensibilizada. 7 Técnica de impressão em que imagens passam de uma chapa metálica para uma bobina de borracha e daí para o papel. 181 AC O enquadramento, de acordo com Sousa (2004), é o espaço da realidade visível representado na fotografia. Ao enquadrar uma cena, o fotógrafo deve priorizar o que é importante para sua composição, retirando de quadro elementos que possam desviar o olhar para áreas de menor importância. São diversas as denominações e as tipologias dos planos de enquadramento. Aqui, vamos considerar quatro tipos de planos: Os planos gerais são abertos e tem como principal função ambientar o observador, mostrando uma localização. São utilizados frequentemente para imagens de paisagens e eventos de massa como protestos e shows. Os planos de conjunto são como os gerais, porém mais fechados. Esse tipo de enquadramento permite a distinção clara de indivíduos ou outros elementos. Já nos planos médios, o ambiente não é facilmente identificado. De forma geral, pode-se dizer que esse plano caracteriza-se pela ação da parte superior do corpo do personagem, da cintura para cima. 182 UFRGSMUNDI Outro tipo de plano considerado médio é o chamado plano americano, no qual o personagem é enquadrado dos joelhos para cima. O grande plano, por sua vez, enfatiza detalhes como um cadeado, uma flor ou partes do corpo humano. O ângulo que a câmera forma com a superfície quando a foto é tirada também influencia bastante a produção de sentidos de uma imagem. Quando a altura da câmera e a do objeto fotografado é a mesma, tem-se o ângulo normal. Chamamos ângulo picado quando a tomada é feita de cima para baixo. Essa angulação tende a desvalorizar o elemento fotografado. 183 AC Já quando a foto é tirada de baixo para cima, o ângulo utilizado é o contrapicado, que tende a valorizar/exaltar o motivo fotografado. Um dos princípios mais reconhecidos da fotografia é a regra dos terços. A técnica consiste em dividir uma imagem retangular em nove quadros, sendo traçadas duas linhas imaginárias na horizontal e outras duas na vertical. Os pontos de cruzamento dessas linhas são polos de atração visual (SOUSA, 2004). De acordo com a regra, o assunto principal da fotografia deve ser posicionado sob uma dessas áreas a fim de se formar uma composição harmoniosa e agradável de se ver. Outra questão importante é que ao posicionar o tema de destaque fora do centro da imagem, obriga-se o espectador a mover seu olhar pela fotografia. Isso faz com que ele apreenda melhor o contexto e o ambiente no qual o assunto principal está inserido. É importante ressaltar que existem diversos outros métodos de se fotografar além da regra dos terços. Como apontado por Sousa (2004), a composição é, de alguma maneira, instintiva. 184 UFRGSMUNDI Nas imagens que ilustram entrevistas, o fotógrafo geralmente busca evidenciar os detalhes do entrevistado que contribuam para a representação da sua personalidade. Assim como em outros tipos de fotografia, o ideal é que o fotojornalista varie as posições, o enquadramento, a iluminação e os pontos de vista (SOUSA, 2004). 6. WEBJORNALISMO 6.1. HISTÓRICO As primeiras pesquisas sobre rede mundial de computadores, ou seja, a Internet, surgiram na Guerra Fria. No início, ela era usada apenas para fins militares ou por estudantes e pesquisadores, até que começaram a comercializá-la, possibilitando ao usuário comum o uso da rede em suas próprias casas. Em 1991, o engenheiro inglês Tim Bernes-Lee desenvolveu a World Wide Web, o que possibilitou a utilização de uma interface gráfica e a criação de sites visualmente interessantes e mais dinâmicos. Com a interface WWW, aumentou consideravelmente o número de servidores conectados ao sistema e a Internet alcan- çou a população em geral, revolucionando o mundo e principalmente a comunicação. Aos poucos a tecnologia se desenvolveu e facilitou cada vez mais o envio e recebimento de mensagens, principalmente por meio do email e chats de conversa. Em 2004, surgiu a primeira rede social, o Orkut. A partir de 2005, surgiram os sites que abrigam vídeos enviados por colaboradores e que logo se tornaram uma febre, como o YouTube e Google Video. No mesmo ano apareceram também os primeiros blogs. Com o passar dos anos as redes sociais foram mudando, se reinventando e se adaptando a realidade da sociedade. Assim, surgiu o Facebook, o Twitter, entre outros. Entre tantas novidades, fez-se necessário ao jornalismo uma adaptação às novas plataformas. As- sim como as redes sociais facilitam na divulgação das notícias, a webauxilia na pesquisa e na busca de informações noticiosas. A internet exige atualmente uma comunicação multimídia, o que levanta ques- tionamentos por parte de comunicadores sobre a continuidade do jornalismo e a convergência de mídias. 6.2. CARACTERÍSTICAS DO JORNALISMO ONLINE Independentemente de suas múltiplas definições, o jornalismo online apresenta algumas ca- racterísticas específicas em relação a aspectos que quase sempre existiram nas mais diversas mídias, em diversos graus. Segundo Mielniczuk (2001), as características mais interessantes do jornalismo online são: instantaneidade, interatividade, perenidade (memória, capacidade de armazenamento de informação), programação, hipertextualidade, personalização de conteúdo, customização. O grau de instantaneidade do jornalismo online é o mais alto entre as mídias, seguido pelo rádio. A capacidade de transmitir instantaneamente um fato é o que mais impressiona na web: é muito rápido, fácil e barato inserir ou modificar notícias nesse suporte. Apesar disso, algumas falhas podem ser detec- tadas por conta da rapidez com a qual as notícias são escritas. Muitas vezes a informação deixa de ser apurada da maneira mais completa e, em alguns casos, a falta de uma conferência anterior a publicação online provoca a existência de inúmeros erros de português. A instantaneidade permitiu que se desenvolvesse a interatividade entre os usuários da web. As mídias tradicionais sempre tiveram algum tipo de troca de opiniões, como nas seções de cartas de jornais e TVs e nos telefonemas para programas de rádio, mas nessa nova fase a interatividade atinge seu ponto máximo. É possível navegar mais facilmente e escolher para que direção a leitura vai seguir, tudo isso de forma mais automatizada com a ajuda dos hiperlinks. “Esta estrutura narrativa exige uma maior concen- tração do leitor, mas esse é o objetivo do webjornalismo: um jornalismo feito por meio da interação entre emissor e receptor” (CANAVILHAS, 2001). O leitor pode também enviar formulários com comentários sobre uma notícia e ver suas observações colocadas imediatamente à disposição de outros leitores. Outro ponto interessante na web é o arquivamento de material: ele pode ser guardado indefinida- mente e o custo de armazenamento de informação é baixo. Além disso, na web é possível guardar grande quantidade de informação em pouco espaço e essa informação pode ser recuperada rapidamente com ferramentas de busca rápida. 185 AC 6.3. ADAPTAÇÕES DO JORNALISMO IMPRESSO, RADIOFÔNICO E TELEVISIVO À INTERNET O estilo de texto para a internet deve ser curto, na ordem direta, com palavras-chave destacadas. O estilo deve ser informal, porque a internet é um meio de comunicação individual e pessoal, e também porque isso capta a atenção do leitor e deixando-o informado em poucas linhas sobre as notícias. Devi- do à instantaneidade da internet, o leitor pode trocar facilmente o site ou mudar de página através dos hiperlinks, caso não se sinta satisfeito com conteúdo do texto ou até mesmo com o tamanho do texto. A plataforma mais utilizada para transmitir notícias curtas e rápidas são os sites e as redes sociais como o Twitter (onde se pode escrever no máximo 140 caracteres) ou o Facebook, usadas principalmen- te por empresas de comunicação que já se adaptaram ao jornalismo multimídia. Há também os blogs, plataformas que permitem o uso de textos mais longos com utilização de hiperlinks, fotos e arquivos audiovisuais e sonoros. Assim como o jornalismo impresso, as rádios tem se adaptado cada vez ao sistema da web. É possível transformar uma rádio tradicional em radioweb, fazendo com que ela ganhe um alcance mui- to maior em suas transmissões. Assim como é possível criar uma radioweb de qualidade, tendo apenas a internet como plataforma, usando os podcasts: arquivos de áudio digital, em geral no formato MP3, que podem ser descarregados diretamente para os tocadores de mídias. No caso da mídia televisiva, até mesmo os maiores sites jornalísticos já publicam matérias em vídeo. No Brasil, o portal de notícias G1, da Rede Globo, dedica uma seção inteira aos vídeos exibidos nos telejornais da emissora, além de transmitir, ao vivo, a programação da Globo News. A internet permite a utilização conjunta de várias linguagens, diferentemente do jornalismo tra- dicional. Na web, o jornalismo pode usar de diversos tipos de mídia e de formatos de arquivos de com- putador, como o texto e hipertexto, áudio e imagem estática (fotos) e em movimento (vídeo). Todo esse desenvolvimento da Internet deixa margem para discussões sobre o futuro das mídias convencionais. Para Jenkins (2009), esses múltiplos suportes midiáticos da internet e o fluxo de conteúdos que se dá por meio deles podem ser entendidos como convergência, mas essa palavra deve ser usada com cautela. “Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, cultu- rais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam estar falando” (JENKINS, 2009, p.29). Ou seja: quem faz a mudança são as pessoas, a convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que sejam; ela ocorre dentro dos consumidores e em suas interações sociais com outros. REFERÊNCIAS BOND, F. Fraser. An Introduction to Journalism. Nova Iorque: The Macmillan Co., 1959. CANAVILHAS, João Messias. Webjornalismo: considerações gerais sobre jornalismo na web. Portugal: Uni- versidade da Beira Interior, 2001. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/_texto.php3?html2=canavilhas- joao-webjornal.html>. Último acesso em: 01/04/2013. FERRARETTO, Luís Artur. 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A proposta é que sejam desenvolvidas matérias que serão publicadas em um blog, que será atualizado constantemente, e em um jornal, que será lançado ao final do projeto. A Agência de Comunicação irá abordar os veículos de jornalismo impresso, radiojornalismo, webjor- nalismo e fotojornalismo. No blog, as postagens serão concisas, uma vez que o tempo de apuração e redação será menor. Além de textos e fotos, na página da Agência também serão postados áudios de entrevistas com os delegados. Já as matérias produzidas para o jornal serão mais longas e elaboradas. Assim, os participantes terão a oportunidade de trabalhar com três diferentes mídias e perceber as particularidades de cada uma de- las. O principal meio de coleta de informações será através das entrevistas. Os repórteres poderão abordar os participantes dos comitês a fim de obter fontes para suas matérias. Acompanhando, estarão os fotógrafos, que serão responsáveis por registrar o andamento das sessões para ilustrar as matérias. Ao final das entrevistas, os repórteres devem editar as gravações e redigir seus textos que serão publicados no blog e no jornal. Podendo ser rotativas, as funções de repórter e fotógrafo serão imprescindíveis para a cobertura completa e verídica do UFRGSMUNDI. 187 CELAC COMUNIDADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS Regulação e Democratização da Mídia na América Latina Bruna Coelho Jaeger 1 Lucas Larentis 2 Marília Bernardes Closs 3 Thaís Jesinski Batista 4 INTRODUÇÃO A Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) tem origem na “Declaração da Cúpula da Unidade”, adotada pelos Chefes de Estado e de Governo da América Latina e do Caribe du- rante reunião de Cúpula realizada na Riviera Maya, México, em fevereiro de 2010. Naquela ocasião, houve consenso em constituir um novo mecanismo de concertação política e integração, para abrigar os trinta e três países da América do Sul, América Central e Caribe. A CELAC é herdeira do Grupo do Rio e da Calc, a Cúpula da América Latina e Caribe sobre Integração e Desenvolvimento. Segundo o então presidente do México, Felipe Calderón, o anfitrião do encontro em que foi criada a comunidade, o objetivo do novo organismo é projetar globalmente a região, em temas como o respeito ao direito internacional, a igualdade entre Estados, o respeito aos direitos humanos e a cooperação. Além disso, é consenso entre os líderes que a criaram que a comunidade deverá trabalhar sobre a base da soli- dariedade, da inclusão social e da complementaridade. Para o Brasil, a CELAC contribui para a ampliação tanto do diálogo político, quanto dos projetos de cooperação na América Latina e Caribe. O novo meca- nismo também facilita a conformação de uma identidade própria regional e de posições latino-america- nas e caribenhas comuns sobre cooperação e desenvolvimento. Tendo sido sua primeira cúpula em Caracas-Venezuela em dezembro de 2011, a CELAC pode ser vista como fruto do trabalho de afirmação política da América Latina frente aos Estados Unidos, especial- mente alavancado pelo falecido presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Depois de sua morte em março de 2013, muitos previram um futuro incerto para a CELAC. Entretanto, a presença em Havana (Cuba) dos 33 países que compõem a cúpula, em janeiro de 2014, reflete que o bloco - que não inclui os Estados Unidos nem o Canadá - se mantém vivo, mesmo com as divergências internas. Dessa forma, o UFRGSMUNDI promoverá uma próxima cúpula da CELAC, a qual reunirá os presi- dentes e chefes de Estado das nações latino-americanas e caribenhas, onde os delegados representarão os interesses da presidência e da sociedade de seus respectivos países. O tema em pauta é a questão da regulação e democratização da mídia na América Latina, a qual representa um enorme desafio a ser de- batido e superado. 1. HISTÓRICO 1.1. HISTÓRIA DA MÍDIA A história da mídia remonta ao século XV, com o desenvolvimento da tecnologia da prensa móvel, 1 Aluna do sétimo semestre do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 2 Aluno do quinto semestre do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 3 Aluna do sétimo semestre do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 4 Aluna do terceiro semestre do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.187-207 188 UFRGSMUNDI em 1440, pelo alemão Johannes Gutenberg. Pela primeira vez na história, a literatura atingia as massas, devido ao baixo custo de impressão, ocasionando um grande aumento na alfabetização da população europeia. A imprensa possibilitou o nascimento de inúmeras publicações periódicas nos séculos sub- sequentes, marcando o nascimento da mídia. Além disso, considera-se que a criação da imprensa foi essencial para a explosão do movimento renascentista 5 na Europa, um importante marco na história da civilização ocidental. Isto demonstra que, desde seu início, a mídia tem tido um papel fundamental no de- senvolvimento da nossa sociedade (WHIPPS, 2008). A imprensa não tardou a se disseminar pelo mundo. Na América Latina, é destacado o papel dos jesuítas como grandes impulsores da nova tecnologia, sendo um importante instrumento utilizado pelos colonizadores para o ensino do catecismo e propagação dos valores europeus (SANT’ANNA, 2001). Durante os séculos que se seguiram, a mídia impressa atingiu a posição de principal meio de co- municação e disseminação de ideias, alcançando um número cada vez maior de pessoas. Na segunda metade do século XIX, é evidente a ascensão das grandes agências de notícias – as europeias Havas, Reuters e Wolf e a norte-americana Associated Press. Estas eram responsáveis pelo envio de notícias do exterior para os jornais, por meio de telegramas. Sua importância foi tal que as agências fizeram uma es- pécie de partilha do mundo, ficando a América Latina sob a influência da Reuters e da Havas, o que definiu o estilo editorial dos países da região. Foi neste período, também, que a expressão “América Latina” foi utilizada pela primeira vez pelos franceses. Alguns historiadores apontam que a construção deste termo promoveu uma espécie de “separação” da América em dois continentes, caracterizando uma medida que visava contrapor o aumento do poderio estadunidense 6 . Com o passar do tempo, o termo foi apropria- do pelos defensores do ideal integracionista na região e utilizado como instrumento a fim de firmar uma identidade comum entre os países (SANT’ANNA, 2001). Ao final do século XIX é possível perceber outro grande marco da história da mídia: o surgimento do rádio. A então nova tecnologia foi amplamente desenvolvida durante a Primeira Guerra Mundial e promoveu uma grande revolução no campo das comunicações, uma vez que possibilitava que as notícias fossem transmitidas a uma velocidade surpreendente. Durante o período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o rádio popularizou-se, tornando-se gradualmente uma mídia de massas. Apesar disso, a mídia impressa manteve seu posto de veículo midiático dominante. Em tempos de guerra, a mídia assumiu o papel essencial de manter o moral dos soldados em alta e de disseminar ideias, tornando-se uma indispensável arma para qualquer Estado. Na Segunda Guerra Mundial, este papel tornou-se ainda mais importante devido aos avanços tecnológicos realizados nas décadas anteriores, ocasionando o início de uma “guerra psicológica”, caracterizada pela ampla propa- ganda. Esta foi um instrumento muito utilizado pelas potências da época para propagar seus ideais e, consequentemente, aumentar sua influencia nas mais diversas regiões do mundo. O próprio surgimento dos regimes totalitários na Europa, como o Nazismo e o Fascismo, teve como elemento fundamental a utilização da mídia para a disseminação da propaganda ideológica fascis- ta. Em contrapartida, países como Inglaterra e França passaram a utilizar os mesmos meios para comba- ter os regimes fascistas, criando rádios públicas e disseminando ideias por outros veículos de mídia. Na América Latina, o potencial do rádio também foi logo notado, marcando o surgimento e o fortalecimento das chamadas “rádios nacionais” em diversos países da região. Estas emissoras surgiram bem estruturadas e apresentavam programas culturais e musicais, mas também possuíam um fim político em si. No Brasil, por exemplo, Getúlio Vargas utilizou amplamente o potencial da Rádio Nacional para realizar propagan- da de governo. Além disso, passou a ser muito comum a disseminação dos ideais fascistas e nazistas nas colônias italianas e alemãs espalhadas pelo mundo. Os países latino-americanos eram um grande foco deste tipo de propaganda, ocasionando uma intensa reação do governo norte-americano, que passou a incentivar a produção de programas de rádio – musicais, radionovelas e noticiários – voltados para o continente. Outra forma de mídia que ganhou espaço nesta época foi o cinema, através dos cinejornais exibidos antes dos filmes de ficção e dos próprios filmes, que funcionavam como um veículo de propa- gação ideológica. Este foi o início de uma prática que se tornaria muito recorrente nas décadas subse- quentes, caracterizada pela utilização da mídia pelos EUA para aumentar sua influência na América Latina (DINIZ, 2009). 1.2. HISTÓRIA POLÍTICA E ECONÔMICA DA AMÉRICA LATINA Após o fim da Segunda Guerra Mundial, observou-se no mundo uma tendência à integração re- 5 O Renascimento foi um movimento cultural, científico e artístico que se originou na Europa, no final do século XIV. Durante o período que se seguiu, ocorreram importantes transformações em diversos campos da vida humana, demar- cando a passagem da Idade Média para a Idade Moderna. 6 Durante o século XIX, a economia dos EUA cresceu aceleradamente, tornando-se uma das maiores do mundo a fins do século. Além disso, a expansão territorial para o oeste, fazendo o país ocupar um grande território banhado pelo Atlântico e pelo Pacífico, teve o papel fundamental de aumentar enormemente a competitividade do país e de permitir a sua pro- jeção no Pacífico, fatores essenciais para o estabelecimento dos EUA como grande potência mundial (CUMINGS, 2009). 189 CELAC gional, ou seja, Estados vizinhos passaram a organizar-se em grupos, a fim de defender seus interesses comuns de forma coesa. É importante notar que estes interesses podem variar. A integração econômica, por exemplo, busca a redução progressiva de barreiras comerciais entre os países, de forma a promover uma aproximação e um fortalecimento das economias envolvidas. Já a integração política tem como objetivo principal a criação de uma unidade política regional, a fim de criar um bloco coeso no cenário internacional e integrar as políticas domésticas dos Estados membros (LOPES, 2011). Na América Latina não foi diferente. Em 1948 foi criada a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) no âmbito da ONU. Esta comissão, por meio de diversas publicações e da propagação de ideias, teve papel fundamental na construção de novas relações econômicas e comerciais entre os países da América La- tina, uma vez que seus pensadores, como Raúl Prebisch e Celso Furtado, desenvolveram o ideal integra- cionista. Prebisch vinculava os problemas do desenvolvimento dos países latino-americanos à ordem in- ternacional vigente na época, que era baseada em um centro (países desenvolvidos) industrializado e uma periferia (países subdesenvolvidos) agroexportadora. Estas ideias foram essenciais na criação, em 1960, da Associação Latino-americana de Livre Comércio (ALALC) e do Mercado Comum Centro-Americano, primeiros processos formais de integração da América Latina. (FUNDAÇÃO ALEXANDRE GUSMÃO, 2010). Também depois do fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a União Soviética dis- param como potências mundiais, em busca de áreas de influência no globo. Essa disputa, chamada de Guerra Fria, levou à “corrida espacial” e ao desenvolvimento de satélites. O primeiro lançamento de sa- télite na órbita terrestre aconteceu em 1957, pela União Soviética. Já na década de 1960, começaram os lançamentos de satélites comerciais, destinados à comunicação não militar. Estes satélites, mais tarde, seriam fundamentais para o desenvolvimento das telecomunicações que conhecemos hoje. Neste período, é evidente a utilização da mídia para a difusão do American Way of Life 7 , marcan- do um aspecto fundamental do conflito: a guerra ideológica. Esta era especialmente importante para a ordem interna dos Estados Unidos e da União Soviética, pois promovia a coesão da opinião pública (NYE, 2009). Ademais, estes ideais foram largamente disseminados por todo o mundo, sobretudo nas chamadas zonas de influência das superpotências. Este período marca também o fim da hegemonia das agências de notícias europeias, após o surgimento do conceito de livre fluxo da informação, criado pelos Estados Uni- dos. Desta forma, os norte-americanos alcançaram a “hegemonia informativa”, ou seja, os EUA passaram a ter supremacia sobre a informação mundial, possuindo as principais agências de notícias do mundo e influenciando a mídia de diversas regiões do planeta (SANT’ANNA, 2001). No auge da Guerra Fria, diversos movimentos de esquerda passaram a ganhar força na América Latina, no que se conhece como a falência do “pacto populista” 8 . Como medida para manter suas po- sições e evitar que governos afinados com o pensamento socialista surgissem na esfera de influência dos Estados Unidos, as elites de diversos países latino-americanos arquitetaram golpes militares a fim de derrubar governos democraticamente eleitos, recebendo apoio direto dos Estados Unidos (BARBIAN, 2008). A mídia nos regimes militares sofreu com censuras, mas os grandes grupos apoiaram as ditaduras em troca de concessões e isenções fiscais. Com o fim da Guerra Fria e a vitória do campo capitalista, os Estados Unidos assumiram uma po- sição dominante no mundo – constituíram uma hegemonia - e as ideias capitalistas tiveram, através das mídias e dos satélites, alcance global, já que os televisores e rádios já haviam se popularizado no mundo e na América Latina. O mundo capitalista exigia agora uma democracia liberal, com o mercado aberto. “A ideia de cons- trução de uma democracia latino-americana deveria estar vinculada à necessidade de abertura dos mer- cados e menor intervenção do governo na economia” (TONIAL, 2003, p.137). Assim, a América Latina inicia seu processo de redemocratização, mas, durante a transição dos regimes militares para os regimes democráticos, o poder se manteve com as elites de cada país, e esses grupos não foram afetados. O que aconteceu na América Latina foi uma redemocratização política, mas não econômica ou social (FERREI- RA, 2011). As elites ainda se mantinham no poder, e a mídia ainda era controlada majoritariamente pelos grandes conglomerados. Com essa “redemocratização conservadora”, a elite guiou o processo de acordo com seus inte- resses (TONIAL 2003), e esses interesses encontraram respaldo no projeto neoliberal. Na década de 1970, 7 American Way of Life é uma expressão utilizada pela mídia para se referir ao estilo de vida estadunidense, baseado nas liberdades individuais e na premissa de que qualquer um pode alcançar o “Sonho Americano”. Esta concepção também está largamente centrada no consumo como fonte de felicidade e sinônimo de qualidade de vida. 8 A expressão “pacto populista” se refere ao modelo conhecido como nacional-desenvolvimentista, de articulação entre uma burguesia nacionalista e progressista com setores do proletariado mediada pelo Estado (BARBIAN, 2008). Além dis- so, segundo Maria Helena Capelato, o populismo representa a introdução social de uma nova cultura política baseada no papel interventor do Estado, caracterizando uma resposta às reivindicações sociais como legislação trabalhista, reforma agrária (em alguns casos) e melhoria nas condições políticas e sociais do trabalhador a partir do reconhecimento deste como sujeito da história (CAPELATO, 2001). 190 UFRGSMUNDI o capitalismo atravessa um período de desaceleração, com a queda na taxa de lucro e a falta de investi- mentos, além das duas crises do petróleo, em 1973 e em 1979 (CAMPOS, 2010, p. 86). Era necessária uma nova política econômica que recuperasse as taxas de lucro e, assim, põe-se em prática o neoliberalismo, doutrina que surgiu na década de 1940, mas que até então não havia sido praticada. O neoliberalismo pregava medidas como a não intervenção do Estado na economia, as privatiza- ções, a abertura do mercado, o combate aos sindicatos, o corte de gastos públicos e o controle sobre a moeda. A primeira experiência neoliberal aconteceu no Chile, em 1973, quando o general Augusto Pinochet assumiu o poder e adotou medidas neste sentido. Depois do Chile, a Argentina, em 1976, lide- rada pelo general Jorge Rafael Videla adotou medidas neoliberais. A Inglaterra, com a Primeira-Ministra Margaret Thatcher, e os Estados Unidos, com o presidente Ronald Reagan, mergulham no neoliberalismo em 1979 e 1980, respectivamente. Na década de 1990, a maioria dos países latino-americanos (como, por exemplo, Argentina, Bolívia, Brasil, Costa Rica, Colômbia, México, Paraguai, Peru e Venezuela) elegeu representantes que colocaram em prática medidas neoliberais (AUGUSTIN, 2010). Essas práticas neoliberais na América Latina foram estabelecidas no Consenso de Washington de 1989. Esse orientava os países da região para que houvesse a redução do papel do Estado e a abertura dos mercados. As políticas neoliberais foram impostas através de pressões de órgãos internacionais, pois o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o governo estadunidense impunham regras que os países latino-americanos deveriam seguir para receber financiamentos. Alguns desses países seguiram, logo, essas regras, pois precisavam dos financiamentos para reestruturar suas economias, que estavam em crise (CAMPOS, 2010). É importante destacar que os efeitos do neoliberalismo foram divergentes nos países desenvol- vidos e nos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. A América Latina se tornou extremamente dependente do capital externo e, devido às medidas adotadas pelo governo, a desigualdade e a concen- tração de renda cresceram bastante. O neoliberalismo aumentou as desigualdades entre a elite e as clas- ses de baixa renda dos países latino-americanos, e entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos. Devido à abertura comercial, às privatizações, à desregulamentação e à liberalização financeira, a con- centração de renda e a saída de capital para os países ricos aumentaram consideravelmente (AUGUSTIN, 2010). A mídia ajudou na disseminação do pensamento neoliberal através de propagandas e apoio aos governos. Era de interesse dos donos dos grandes meios de comunicação que o neoliberalismo conti- nuasse, pois ele beneficiava sua classe, e o neoliberalismo influenciou no processo de concentração da mídia: ao pregar o livre mercado, grandes grupos compravam os menores, criando verdadeiros oligopó- lios 9 dos meios de comunicação na América Latina. Essa concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos, que pertenciam à elite do país, tem efeitos mesmo nos dias de hoje, que serão aborda- dos mais adiante (MASTRINI, 2009). Além do aumento das desigualdades e da concentração da mídia, o neoliberalismo também in- fluenciou o processo de integração na América Latina. Em 1990, com o neoliberalismo como política econômica dominante no continente americano, o governo dos Estados Unidos lança a “Iniciativa para as Américas” que tinha como objetivo a formação de uma zona de livre comércio em toda a América (ALCA - Área de Livre Comércio das Américas) (ESTEVES, 2008). Mas uma contraposição latino-americana é criada em 1991, com a assinatura do Tratado de Assunção entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que visava à construção de uma zona de livre comércio na região, o chamado Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). A partir dos anos 2000, porém, a região começa um novo processo político, com a ascensão de governos politicamente à esquerda, com projetos para o fortalecimento nacional. Alguns países, como Venezuela, Argentina, Bolívia e Equador, iniciam processos para combater o monopólio de informação que os grandes grupos de mídia possuem, através da regulamentação, por exemplo. O cenário da batalha na América Latina está nítido: de um lado, elites conservadoras e grupos de mídia que querem manter seu poderio econômico e político; de outro, governos progressistas empenhados em reverter a exclusão social provocada por décadas de neoliberalismo. Pela primeira vez, está sendo contestada a absurda con- centração dos setores de informação e entretenimento nas mãos de um reduzido número de corporações (MORAES, 2011). 9 Oligopólios são situações em que somente algumas empresas controlam todo o mercado. 191 CELAC 2. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA 2.1. MÍDIA COMO PODER: A INFLUÊNCIA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E A FUNÇÃO SOCIAL DA INFORMAÇÃO O século XX foi, sem sombra de dúvidas, o século das imagens: ocorreram o desenvolvimento do cinema, o nascimento e a consolidação da mídia televisiva e a proliferação das câmeras, dos vídeos e dos DVDs. Esse fenômeno pode ser observado também pelo crescente número de horas em que as pessoas passam em frente da televisão e das telas de computador, dos telefones celulares, etc. Tudo isso fomen- tou informalmente um treinamento e alfabetização visual capaz de fazer com que o público seja atingido rapidamente por mensagens e determinados valores. A mídia, calcada nas imagens em movimento, apre- senta um claro papel educador, pois, ao mesmo tempo em que entretém e informa, materializa, dando ao seu produto o estatuto de realidade. Ao longo da história, as imagens foram utilizadas com o objetivo de fazer propaganda de: 1) uma determinada cultura ou ideologia; e 2) um determinado estilo de vida. Nesse sentido, o cinema, a televi- são, o rádio, e mesmo a Internet servem como instrumentos para validar o poder de determinados países e grupos sociais ou econômicos. Dessa maneira, mais do que simplesmente divertir e entreter, a mídia foi assumindo um papel independente dentro da sociedade, ou seja, ela começou a participar da vida política e da vida social, interferindo nos rumos destas. Entretanto, dado que a mídia é uma indústria privada, os seus donos estão ligados às elites do país ao qual pertencem – como será posteriormente explicado. Por isso, apesar de defenderem que são órgãos autônomos, as informações veiculadas, as telenovelas, os jornais, os filmes, os videogames, os programas e até mesmo os sites muitas vezes veiculam os interesses dos donos dessas empresas, os donos dos meios de comunicação. Assim, as diversas ideias que são passadas, desde as informações até o estilo de vida que são mostrados diariamente através de uma “chuva” de imagem para todos, representam um padrão social, econômico e político que reflete os interesses dos empresários donos das principais companhias midiá- ticas (como a Rede Globo, a RBS, Bandeirantes, Facebook, Google, etc). Dessa forma, tudo o que vemos, ouvimos e sentimos através da mídia passou por um filtro: não um filtro da imparcialidade, mas um filtro de interesses dos empresários, pois importa para eles determinar o que vamos consumir, comer, vestir e, mais do que isso: o que vamos pensar. Pensar sobre o quê? Sobre a sociedade e sobre a política, seja ela nacional ou internacional. O problema é que, muitas vezes, somos induzidos a acreditar que os nossos pensamentos e cren- ças são formulados apenas a partir das nossas experiências e da nossa educação. Contudo, a mídia - sem que na maioria das vezes consigamos perceber - conduz imagens, vídeos, entrevistas e informações para formar opiniões e fazer com que acreditemos que vieram do nosso próprio julgamento. Por exemplo, durante as eleições para a presidência do Brasil em 1989, os principais grupos midiáticos atuaram com o objetivo de decidir qual seria o candidato vencedor. Primeiramente, todos os resultados das pesquisas de intenção de voto, antes de serem divulgados, eram analisados pelos editores - o trabalhador responsável por definir o texto final que vai ser publicado pelos jornalistas - para que o candidato apoiado pela mídia, na época Fernando Collor de Mello, não aparecesse muito atrás do candidato que a mídia não apoiava, Luís Inácio Lula da Silva. Além disso, jornais, como o Jornal Nacional, da rede Globo, mostravam diaria- mente mais tempo de imagens de Collor falando sobre suas propostas, enquanto mostravam Lula dando informações confusas e em um tempo menor (MUITO ALÉM DO CIDADÃO..., 1993). O telespectador não tem como calcular o tempo de aparição de cada candidato ou verificar se foi alterado o seu discurso. Assim, naturalmente passamos a prestar mais atenção no candidato mais mostrado e que aparentemente fala melhor. O resultado a história já nos contou: o impeachment do presidente Collor em 1992. Esse processo de influência da mídia sobre a realidade acontece também nas Relações Internacio- nais em dois níveis: o primeiro nível trata da maneira como a nossa mídia nacional aborda a atuação do nosso país no exterior. E, em um segundo nível, trata do modo como os países mais desenvolvidos utili- zam as imagens e a informação para consolidar seu maior poder no Sistema Internacional. Um exemplo do primeiro nível é o caso brasileiro, pois a Rede Globo, a maior companhia de televisão e rádio do país, está vinculada a grupos de interesse estrangeiros (principalmente da Europa e dos EUA) (HERZ, 2008). Nesse sentido, quando o governo brasileiro prefere aproximar-se dos aliados latino-americanos (como Bolívia, Venezuela, Cuba) a Rede Globo produz uma enxurrada de críticas a esses países, com o objetivo de gerar na sociedade uma aversão à aproximação com os vizinhos. É importante notar que, na maioria das vezes, não conseguimos perceber que estamos sendo levados e gostar ou não de alguns países. Con- tudo, todas as informações que recebemos através da mídia são para exaltar ou denegrir a imagem deles, e não temos acesso a informações primárias (livres de interesses) para formarmos nossa opinião. Tudo o 192 UFRGSMUNDI que vemos e ouvimos passa por uma lente, mas essa lente foca apenas no que interessa aos detentores dos meios de comunicação, ou seja, aos donos do poder. No segundo nível, no qual os países utilizam a mídia para manter o padrão internacional de desen- volvimento versus subdesenvolvimento (ou seja, de países ricos e pobres), podemos destacar o caso dos Estados Unidos. Os EUA são o país mais rico do mundo e, desde o início do século XX, utilizam o cinema como meio de impor o seu modelo de sociedade, de valores e de consumo. Podemos perceber que tudo que é veiculado no cinema estadunidense torna-se moda para o resto do mundo: as roupas que usamos, os nossos ídolos, o que comemos, o padrão de beleza, as músicas, etc. Somos ensinados, diariamente, sem que percebamos, a agir de acordo com a sociedade dos Estados Unidos, como se fizéssemos parte da mesma cultura mundial. Além disso, somos treinados a acreditar que tudo que é nacional é pior e que não tem valor cultural. Dessa maneira, sem querer, passamos a defender a liderança e a superioridade dos EUA. O que mostra que o uso da imagem serve aos interesses de consolidar a hegemonia (liderança, supremacia, predomínio, influência) de determinado país sobre os demais. Karl Marx, no seu livro “A Ideologia Alemã”, redigido em 1847, disse que as ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante: Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensa- mentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa so- ciedade é também a potência dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual; de tal modo que o pensamento daqueles a quem é recusado os meios de produção intelec- tual está submetido igualmente à classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas sob a forma de ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe do- minante; dizendo de outro modo, são as ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; ou seja, são as ideias do seu domínio (Marx, 1976, p.55-56). Entretanto, o acesso à informação é parte essencial para a evolução da sociedade e dos cidadãos. Por isso, perceber que as informações que recebemos são simplificadas e distorcidas é um primeiro pas- so fundamental para vermos por de trás da cortina e por de trás dos interesses dos donos dos meios de comunicação. Claramente, o acesso à informação como conhecimento, ou seja, sem interferência de interesses, é bastante complexo nas sociedades de hoje. Poucas pessoas, mesmo entre os especialistas e intelectuais, têm condições de perceber essas distorções. Por isso, o grande desafio para o acesso a informações e para o futuro da mídia é o estabelecimento de um programa de democratização das co- municações, que permita o acesso irrestrito às várias facetas da realidade da informação. 2.2. MÍDIA COMO PODER NA AMÉRICA LATINA: OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO COMO ATORES POLÍTICOS Desde a sua criação, a mídia na América Latina tem íntima relação com questões de política e po- der, como a concentração de propriedade e riqueza. Como já foi anteriormente explicado, nos anos 1990, a América Latina passou por um período no qual o neoliberalismo foi adotado como política dominante, e suas consequências disso para a mídia e para as políticas nos meios de comunicação são sentidas até hoje: em função da adoção do neoliberalismo, houve a falta de qualquer regulação por parte dos gover- nos dos países no que tange às empresas ligadas aos meios de comunicação. Ou seja, todos os tipos de atividades privadas da mídia desenvolveram-se livremente sem ações governamentais para impedir que alguns grupos se destacassem frente aos demais, seja por vias legais ou por vias ilegais. Assim, ocorreu na América Latina um fenômeno conhecido como concentração da mídia: os meios de comunicação - se- jam eles televisão, rádio, jornais, etc - ficaram concentrados nas mãos de alguns poucos donos em cada país. Tais donos dos meios de comunicação geralmente são grandes empresas ou grandes conglomera- dos, que podem ser regionais, nacionais ou até globais (MORAES, 2011). Segundo Moraes (2013), houve, à época, a concentração dos meios de infotelecomunicações - convergência tecnológica entre setores de informática, telecomunicações e mídia - na mão de um reduzido número de megagrupos, a qual persiste até hoje. A mídia latino-americana é hoje o que se chama de oligopolizada - ou seja, está concentrada na mão de poucos donos. Para compreender a atual concentração dos meios de comunicação latino-americanos, é neces- sário primeiramente que se entendam algumas noções de economia. Quanto mais uma empresa produz em grandes proporções, mais ela vai economizar em termos de custos de produção, pois esta compra matéria-prima e maquinário (seus insumos) em grandes quantidades. São as chamadas economias de 193 CELAC escala: se uma empresa produz em larga escala um determinado produto, esta vai produzir com menos custos - ou seja, de maneira mais lucrativa - do que uma empresa que produz em pequena escala. Assim, em setores da economia de um país nos quais há economia de escala, é bastante difícil que empresas pequenas e/ou novas sejam competitivas ou lucrem tanto quanto empresas maiores (e mais ricas). Em termos práticos, a probabilidade de este setor da economia ser concentrado na mão de algumas grandes empresas e, consequentemente, serem poucas pessoas as que conseguem dominar esse setor, é grande. A mídia na América Latina é um destes exemplos. Afinal, os custos de acesso a bens necessários para a introdução nas empresas na mídia são altíssimos. Assim, apesar de algumas diferenças, a economia de escala também se aplica facilmente no setor da mídia. No lugar de matéria-prima e maquinário, as empresas precisam adquirir bens como uma fre- quência de rádio, uma antena para a televisão ou os bens necessários para ter uma mídia digital; Isso se dá, também, porque, além desses bens, grupos de mídia que já estão trabalhando há bastante tempo e em “larga escala” possuem já habilidades importantes, ou o conhecimento da atividade – o “know-how” - que só são adquiridos com a experiência de mercado. Alguns exemplos do know-how adquirido por esses grupos são o conhecimento de qual tipo de programa ganha mais audiência em determinados ho- rários, ou quais são os melhores fornecedores de determinados tipos de serviços de comunicação. Ainda, existem dois conceitos fundamentais para que se compreenda a formação de oligopólio nos meios de comunicação latino-americanos: a fidelização de clientes e as barreiras de entrada. O primeiro se refere ao fato de que, quanto maior a empresa, mais capacidade ela tem de criar vínculos com os clientes e, consequentemente, novas empresas no mercado têm maiores dificuldades de captar audiência. As bar- reiras de mercado relacionam-se a isto: a existência de empresas maiores e já consolidadas no mercado dificulta o surgimento de novas firmas que consigam competir ou ser bem sucedidas, pois teriam de co- meçar “zeradas”, com novos investimentos, e competir pelos clientes já captados pelas demais empresas. Estes fatos, aliados às políticas neoliberais já descritas anteriormente e à falta de qualquer ação dos governos para evitar que isso acontecesse, tiveram como consequência a formação dos oligopólios men- cionados. Uns poucos donos dos meios de comunicação passam a lucrar e se tornam ricos proprietários de mídias, influentes em seus respectivos países tanto em termos políticos, quanto sociais e econômicos. São os chamados “barões da mídia” latinoamericanos: donos das mídias que não apenas concentram as maiores propriedades, mas também que concentram as maiores audiências (MARTÍNEZ, 2008). Exemplos disso são os quatro maiores conglomerados latino-americanos - Globo, do Brasil; Cis- neros, da Venezuela; Clarín, da Argentina; e Televisa, do México – juntos, eles têm 60% dos faturamentos dos mercados latino-americanos (MORAES, 2013). Segundo o projeto Donos da Mídia (2014), o mercado da televisão brasileiro é quase completamente dominado por apenas seis redes - Globo, SBT, Record, Band, Rede TV e CNT-, e as mesmas seis empresas são responsáveis por 92% da audiência televisiva bra- sileira. Sozinha, a rede Globo detém 16,2% da mídia impressa, 54% da TV aberta e 44% da TV paga, além de ser a maior captadora de verbas publicitárias e patrocínios (MORAES, 2013), deter mais de 120 canais no mundo inteiro e atingir mais de 120 milhões de pessoas por dia (LAMBERT, 2012). Os barões da mídia latino-americanos são muitas vezes donos não só de um meio de comunica- ção, mas, muitas vezes, de diversas mídias, muitas delas transnacionais. O grupo venezuelano de Gustavo Cisneros, por exemplo, não só detém a gigante rede de televisão Venevisión (que tem 67% da audiência venezuelana) e chega a mais de 500 milhões de pessoas do mundo inteiro, mas também possui ações na televisão chilena Chilevisión, na colombiana Caracol TV e no mundial canal de TV Direct TV (LAMBERT, 2012). O argentino Clarín, por sua vez, controla 31% da circulação de jornais, 40,5% da receita da TV aber- ta, 23% da receita da TV paga. As mexicanas Televisa e TV Azteca formam conjuntamente um duopólio que detém 69% da TV aberta e 31,3% da TV fechada (MORAES, 2013). No Chile, Álvado Saieh, dono da companhia Consórcio Periodístico de Chile S.A. (Copesa) é dono de seis jornais, seis revistas e seis esta- ções de rádios, enquanto Agustín Edwards, líder no grupo El Mercúrio, é dono de 22 jornais, 14 estações de rádio e uma agência de notícias (LAMBERT, 2012). Ainda, a concentração monopolística da mídia na América Latina está há décadas concentrada na mão de algumas dinastias familiares proprietárias de meios de comunicação. Segundo Moraes (2013), as famílias Marinho, Civita, Frias, Mesquita, Sirotsky, Saad, Abravanel, Sarney, Magalhães e Collor (Brasil), Cisneros e Zuloaga (Venezuela), Noble, Saguier, Mitre, Fontevecchia e Vigil (Argentina), Slim e Azcárraga (México), Edwards, Claro e Mosciatti (Chile), Rivero, Monastérios, Daher, Carrasco, Dueri e Tapia (Bolívia), Ardila Lulle, Santo Domingo e Santos (Colômbia), Verci e Zuccolillo (Paraguai), Chamorro e Sacasa (Ni- carágua), Arias e González Revilla (Panamá), Picado Cozza (Costa Rica), Ezerski, Dutriz e Altamirano (El Salvador), Marroquín (Guatemala) e Canahuati, Roshental, Sikafy, Willeda Toledo e Ferrari (Honduras) são exemplos de dinastias que enriqueceram e concentraram propriedades de mídias. Por outro lado, além da concentração da propriedade, alguns barões da mídia também são atores políticos nos seus respectivos países. O maior exemplo é o Brasil: um em cada dez políticos na Câmara de Deputados é também dono de propriedade de mídia, bem como um em cada três no Senado (LAMBERT, 2012). 194 UFRGSMUNDI Frente ao cenário de grande concentração e oligopolização midiática na América Latina, perce- be-se que os donos da mídia são atores extremamente relevantes na vida política e econômica de seus países. Desta maneira, em função de reterem grande parte dos meios de comunicação, são capazes de controlar o fluxo de informações em seus países, bem como são capazes de controlar quais informações chegarão a seu público. Em última instância, por possuírem grande parte dos leitores/audiência nacio- nais, os barões da mídia têm poderes de decidir quais, quando e como os conteúdos informativos irão para a casa dos espectadores e, consequentemente, influenciam grandemente na opinião popular que será formada a partir da informação advinda das mídias. Assim, além das mídias atuarem como meios de comunicação, estas atuam como formadoras de opinião, valendo-se de suas capacidades oligopolísticas. A partir de então, grande parte da mídia latino-americana começou a trabalhar a divulgação de informações conforme entendessem. Ou seja, determinados meios de comunicação passaram a subjugar seu trabalho - especialmente, o jornalismo - à vontade política de seus donos: parte da imprensa latino- -americana hoje divulga fatos, dados e informações se - e somente se - estas forem úteis para as vontades e demandas sociais dos “barões”. Assim, a mídia - que devia ser imparcial e plural e devia ter como função exclusiva a divulgação dos fatos sociais de seus países - passa a atuar como ator político e é capaz de mudar toda a opinião social nacional. É importante, também, que se compreenda a posição das mídias hegemônicas no atual contex- to latino-americano. Historicamente, as dinastias familiares que dominam os meios de comunicação na América Latina são ligadas a governos conservadores e politicamente posicionados à direita. Dois exem- plos claros disto são o apoio de empresas como a rede Globo e o grupo Clarín às ditaduras militares da segunda metade do século XX de seus respectivos países. Desde a ascensão de uma série de governos de esquerda na América Latina nos últimos anos, a atuação dos meios de comunicação destacou-se ainda mais como uma atuação política e não apenas midiática. Como será melhor trabalhado na seção de es- tudo de casos, em países como Brasil, Venezuela, Argentina, Equador e Bolívia, a mídia hegemônica atua hoje como oposição declarada aos governos atuais. Percebe-se que há clara divergência de interesses entre os donos das mídias de tais países e os governos de esquerda, o que se reflete no fato de os meios de comunicação exercerem o papel de oposição aos atuais comandantes dos Estados. A atuação da mídia como ator político é tão forte que, em países como Brasil e Argentina, especialistas chamam os meios de comunicação oligopolísticos de “Partido da Imprensa” (ARAÚJO, 2010). Segundo Fonseca (2012), a mídia latino-americana hoje atua seguindo seus interesses privatistas - ou seja, seus próprios interesses - em detrimento dos interesses públicos da sociedade. Já segundo Matta (2011), os meios de comunicação hoje prezam muito mais por seus próprios lucros do que pela qualidade de seus serviços. Assim, uma mídia que tem atuação política e que é concentrada em termos de propriedade busca a manutenção de governos neoliberais nos países latino-americanos, questão que será tratada na seção a seguir. Existe outro fator que aumenta a complexidade da situação latino-americana: além da descrita existência de oligopólios sobre os meios de comunicação, tais oligopólios se dão sobre um produto es- pecífico: a informação que advém das mídias. A informação tem a função social comunicar os fatos da realidade aos cidadãos. Consequentemente, a oligopolização deste bem é mais séria que a de outros bens comercializáveis. Por exemplo, a oligopolização do mercado de sapatos traria sérias consequências para uma sociedade; entretanto, a oligopolização dos meios de comunicação faz com que a divulgação da notícia fique concentrada em poucas mãos – consequência bem mais grave que a concentração da produção de sapatos. 2.3. REGULAÇÃO DA MÍDIA: IMPORTÂNCIA, MODELOS E DESAFIOS A regulação da mídia é um ponto bastante polêmico nos debates atuais. Isso se deve principal- mente ao fato de que a mídia é uma indústria privada e bastante concentrada, como já explicado anterior- mente. É fácil perceber esse fato no nosso dia-a-dia, quando procuramos sites, jornais e revistas para nos informar: a grande maioria repete informações, ou seja, sempre nos deparamos com as mesmas notícias, artigos e opiniões, apenas escritos por autores ou jornalistas diferentes. A função essencial da mídia é informar a sociedade, ou seja, não é emitir nem formar opiniões, mas sim fornecer a nós a informação em sua forma pura, para que possamos dar o nosso próprio juízo de valor de acordo com nossa cultura e experiências. Contudo, já vimos que a realidade não corresponde ao ideal de informações sem distorções e interesses. O problema maior é que nos encontramos totalmente inseridos em um sistema no qual os meios de comunicação dominantes refletem apenas os interesses e os valores das elites (sejam nacionais ou internacionais). Não é que essas elites não tenham o direito de expressar suas visões de mundo, a questão é que não há pluralidade de opiniões, nem todos tem o direito de expressar através dos meios de comunicação as suas opiniões e suas ideias. Esse problema é reflexo do oligopólio referido anteriormente. 195 CELAC Frente a um cenário de profunda oligopolização da mídia, que traz como consequência a manipu- lação da informação, tem-se a necessidade de fazer o que se chama de regulação dos meios de comuni- cação. Regular os meios de comunicação significa estabelecer regras mínimas para o cenário midiático – via legislação internas ao país. Atualmente, os processos de regulação dos meios de comunicação na América Latina se dividem em duas formas básicas. A primeira é a regulação da mídia cujo objetivo é regu- lar os conteúdos que são veiculados em um país. Por exemplo, existem leis hoje em países como Bolívia e Jamaica que proíbem a veiculação de qualquer incitação ao ódio, à violência ou ao preconceito, seja este étnico, religioso ou sexual (ESTADO PLURINACIONAL DA BOLÍVIA, 2011; JAMAICA, 2005). Este tipo de regulação também pode ter como objetivo evitar certos tipos de parcialidades na mídia no que se refere à política destes países, ou evitar que informações errôneas ou difamações sejam divulgadas. Ainda, pode- -se regular os conteúdos midiáticos no que tange ao uso de drogas e ao tabaco, para evitar publicidades deste gênero. A segunda é a regulação dos meios de comunicação no que tange às propriedades midiá- ticas. Este tipo de medida tem como objetivo desfazer os grandes oligopólios midiáticos que hoje temos no continente americano, pois geralmente estabelece uma quantidade máxima de tipos de mídia ou de audiência que um único dono ou uma única rede pode ter. Grande parte da regulação de propriedade de mídia existente na América Latina hoje não permite, por exemplo, que o dono de um tipo específico de mídia – televisão ou rádio, entre outros – possua ações ou propriedades em outro tipo de mídia: é a chamada Lei de Meios, a qual não permite o “cruzamento de propriedades”. Outra maneira de regular a propriedade dos meios de comunicação é estipular um máximo de canais de televisão/tiragem de jornais/ frequência de rádio que uma determinada rede pode obter. Por outro lado, a regulação da mídia pode permitir que os governos estabeleçam censura sobre os meios de comunicação, evitando que críticas sejam veiculadas, o que pode ser prejudicial à prevalência da democracia e da liberdade de expressão. O debate em torno da regulação da mídia também se baseia em um conceito bastante difundi- do na nossa sociedade: a democratização. Democratizar as mídias significa passar por um processo de regulação que faz com que os meios de comunicação de um país sejam um espaço mais plural, no qual mais atores, com as mais diversas opiniões, tenham voz – e não apenas as grandes e poderosas mídias. Enquanto a regulação, como visto anteriormente, diz respeito ao controle dos conteúdos veiculados e da estrutura do setor dos meios de comunicação, a democratização dos meios de comunicação é o pro- cesso que faz com que estes sejam plurais, com mais grupos de comunicação atuando e demonstrando diferentes pontos de vista sobre as notícias e informações transmitidas. Assim, entende-se que regulação dos meios de comunicação e democratização destes são coisas diferentes, mas não necessariamente separadas: a regularização da mídia de forma democrática não deve ser entendida como censura em si ou como meio de acabar com os meios de comunicação dominantes, mas sim uma forma de criar novos canais, sites, jornais e revistas que tenham o mesmo alcance de distribuição e veiculação do que aqueles que já dominam o mercado. Essas novas agências poderiam fornecer à sociedade contrapontos às informações dominantes, e outras ideias que não estamos habituados a receber pela mídia (tais como relacionadas à cultura, política, sociedade, valores, diversão, etc). Atualmente, existe um complexo debate na América Latina que envolve, de um lado, aqueles que defendem a regulação dos meios de comunicação, por acreditarem que regular significa democratizar, e, de outro, aqueles que entendem que qualquer tipo de regulação dos meios de comunicação representa uma ameaça à liberdade de expressão e à liberdade de mercado. Para estes, a regulação em termos de conteúdo fere a liberdade de discurso – que deve, para muitos, ser plena inclusive quando divulgando inverdades ou conteúdos racistas -, bem como a regulação em termos de propriedade fere a liberdade de mercado, o que lhes seria prejudicial, pois, com esta mantida, as empresas com maior qualidade e com maior eficiência dominam o mercado. Desta maneira, o debate sobre a regulação dos meios de comuni- cação se polariza entre por aqueles que querem a manutenção da situação vigente e aqueles que querem uma atuação mais ativa dos governos quanto à regulação. Para os primeiros, a regulação dos meios de comunicação é um desrespeito aos princípios da liberdade de expressão. Como será posteriormente melhor comentado, diversos documentos de legis- lações internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ou a Convenção Americana de Direitos Humanos, clamam pela irrestrita liberdade de expressão. Liberdade de expressão significa o direito de manifestação de qualquer tipo de opinião, ideologia ou pensamento, sendo estes li- vres de qualquer censura, punição ou coerção. Assim, para que os meios de comunicação possam exercer seu papel fundamental - o de informar o cidadão - é essencial que seja assegurada a liberdade de expres- são. Do contrário, se existem mecanismos que impeçam ou dificultem esta - a censura, por exemplo -, o trabalho das mídias e dos meios de comunicação acabam tendo seus trabalhos prejudicados. Assim, o limite entre a regulação dos meios de comunicação e práticas como censura é muito tênue. Um exemplo disso foi a censura exercida pelo regime militar brasileiro, que durou entre 1964 até meados da década de 1980: sob a justificativa da regulação dos meios de comunicação - à época, a justificativa era evitar o avanço da “ameaça comunista” -, o governo militar limitou e censurou grande parte das mídias brasileiras, especialmente aquelas que tinham críticas ou contestações ao regime vigente. Ademais, muitas vezes a 196 UFRGSMUNDI regulação dos meios de comunicação é feita por motivos políticos e objetiva tirar a voz de atores políticos opositores. Desta maneira, percebe-se que muitas vezes a regulação midiática extrapola a finalidade de democratizar os meios de comunicação e acaba tolhendo direitos fundamentais, como a liberdade de expressão. Ademais, existem outros argumentos utilizados contrariamente à regulação dos meios de comuni- cação. A regulação das mídias pressupõe necessariamente a interferência dos governos dos países neste setor do mercado. Assim, há quem argumente que haveria perda de eficiência de mercado. Afinal, se de- terminados grupos são oligopólios na área dos meios de comunicação - ou seja, conseguiram conquistar espaço significativo no mercado de um país -, estes grupos conseguiram desenvolver seus negócios de maneira lucrativa e, provavelmente, conquistaram seus clientes porque têm produtos de qualidade. Consequentemente, a regulação dos meios de comunicação por parte dos governos só faria com que a qualidade das mídias caísse, segundo tal lógica, pois as empresas ou grupos midiáticos que eram do- minantes no mercado perderão espaço para firmas menores e, supostamente, com menos qualidade e eficiência para conseguir audiência e clientes. Desta maneira, pode-se perceber que, assim como existem argumentos em prol da regulação dos meios de comunicação, esta pode ser um fator que tanto censura quanto limita as qualidades dos meios de comunicação de um país. Em alguns países que têm governos ditatoriais, por exemplo, é comum que as mídias, extremamente reguladas, não sirvam como meios de comunicação de fato, mas como canal de propaganda do regime. Entretanto, é ilusório que isso ocorre somente em países governados por ditaduras: em regimes considerados democráticos, pode-se ver o mesmo acontecer. O jornalista da revista Veja, Rodrigo Constantino, aponta que “Defender a liberdade apenas quando estamos de acordo com o que é dito é muito fácil. O teste vem justamente quando precisamos defender essa liberdade para ideias que abominamos, que rejeitamos com toda a nossa força, que batem de frente com nossas ideologias” (CONSTANTINO, 2014, 1). Além disso, aqueles que se posicionam contrariamente à democratização da mídia argumentam que não é preciso promover uma regulação, visto que a mídia já se encontraria democratizada, pois como há muitas empresas, canais, jornais e estações de rádio diver- sos, compostos por profissionais diferentes. Dessa forma, muitas ideias e opiniões diversas já estariam à disposição da sociedade. Por fim, outro argumento central é de que os meios de comunicação, como se encontram atualmente, buscam ouvir todos os lados de uma questão, diferentes opiniões e ideologias. Por outro lado, é importante que se esclareça uma importante questão a respeito da regulação midiática: muitas vezes, por mais que pareça um paradoxo, a regulação da mídia de um país pode signifi- car até mais liberdade de expressão. Isso porque, em países com uma mídia extremamente oligopolizada, apenas uns poucos grupos de poder podem emitir suas opiniões e divulgar as informações conforme lhes convêm. Assim, regular pode significar dar espaço – e liberdade de expressão – àqueles que, sem regulação, jamais o teriam. É importante ressaltar que a democratização da mídia não pode ser garantida apenas com a cria- ção de novas agências. Esses novos canais, jornais, revistas, sites, etc, devem ter a mesma oportunidade de veiculação (ou seja, de chegar facilmente a todos nós) que aqueles que dominam os meios. Garantir essa facilidade de circulação não é tarefa fácil e depende dos legisladores e governantes de cada país. Cabe relembrar que a mídia é como qualquer outro setor econômico e que, portanto, torna-se difícil que todos os estratos da sociedade consigam obter um espaço nesse mercado, já que a manutenção e o desenvolvimento de uma empresa de comunicação são bastante custosos financeiramente. Assim, a democratização da mídia só pode ser viabilizada se houver leis que estabeleçam a concessão de espaços para novas agências. Na televisão, por exemplo, isso quer dizer que os canais que costumamos assistir continuarão existindo normalmente, contudo, haveria um espaço obrigatório (ex: 50% das opções de canais) para aqueles que ainda não são veiculados por não terem condições financeiras e influência que os outros já detêm - tais como canais públicos e comunitários. O desafio é ainda maior do que parece. Para que todos nós possamos ter acesso a informações de qualidade, é preciso cobrar dos nossos candidatos a partir do momento das eleições. Contudo, esse não é um processo simples, pois se trata de reverter uma estrutura histórica dos meios de comunicação, que data da época do regime militar (HERZ, 2008). Portanto, é natural que encontremos grandes dificuldades para romper com essa lógica de mercado que não prioriza o bem estar da sociedade, mas sim o lucro das grandes empresas. Dessa forma, tal como escreveu o jornalista Daniel Herz, em sua famosa obra “A História Secreta da Rede Globo”, estabelecer um controle público e democrático sobre os meios de comunicação de massa é um problema em aberto para as democracias contemporâneas. Do contrário, os referidos meios ficarão sujeitos apenas aos ditames autoritários e às conveniências exclusivas do mercado (HERZ, 2008: 324-325). 197 CELAC Dado que grande parte do financiamento das grandes companhias de comunicação de massa ad- vém dos investimentos feitos com dinheiro público (seja via impostos, na forma de isenção e de constru- ção de redes de cabos e antenas de transmissão, seja via comerciais de órgãos públicos) seria fundamen- tal que houvesse transparência por parte dessas empresas, já que elas fornecem um bem público, que é a informação. A censura, por outro lado, diz respeito à proibição de veiculação de determinadas informa- ções que contrariam os interesses de um governo autoritário. Esse é o processo que ocorreu na América Latina durante as décadas de 1960 e 1970, quando as ditaduras desses países impediam a livre circulação de informações. Curiosamente, a maioria das companhias de comunicação de massa que atuam hoje na América Latina foram fundadas durante esse período, atendendo aos interesses dessas ditaduras, como é o caso da Rede Globo, que foi criada em 1965 (HERZ, 2008; CASTRO, 2011). 2.4. PRINCIPAIS CASOS NA AMÉRICA LATINA 2.4.1. ARGENTINA Desde 2003, a Argentina vem passando por um processo de reformulação política muito similar ao que ocorreu no Brasil. Os governos progressistas de Néstor Kirchner (2003-07) e de Cristina Kirchner (2007-14) buscaram adotar um programa de reformas políticas, sociais e econômicas que distanciassem o país da dependência externa (CARMO, 201). Em relação aos meios de comunicação, os conflitos entre o governo e a mídia se intensificaram nesse período. Ainda em 2004, foi formado um fórum, La Coalición por una Radiodifusión Democrática, que reuniu centenas de personalidades e organizações políticas (sindicatos, universidades, movimentos sociais). Esse fórum elaborou 21 propostas para a democratização da radiodifusão no país. Segundo La Coalición, um dos graves problemas era a estrutura do mercado de comunicação, cuja estrutura jurídica era a mesma desde a ditadura na Argentina. Essa proposta popular de democratização defendia que toda pessoa tem direito a investigar, pesquisar, receber e difundir informações, opiniões e ideias sem censura prévia, através do rádio e da televisão, observando o respeito ao Estado democrático e aos direitos huma- nos. Essa proposta evoluiu, até que, em 2009, foi lançada a Lei de Meios, que organizou o sistema de co- municação no país. Segundo essa nova lei, nenhum grupo privado de comunicação pode deter diversos meios de comunicação simultaneamente (ou seja, não controlar jornais, revistas, rádio, televisão, etc, ao mesmo tempo). As empresas que possuírem mais do que 24 licenças 10 (canais) de TV a cabo e 10 licenças de serviços abertos (TV aberta, rádio AM-FM, jornais), terão que devolver o excesso de concessões no prazo de um ano a partir da validação da lei, que ocorreu em outubro de 2013(REPÚBLICA ARGENTINA, 2014). O já mencionado Grupo Clarín, principal oligopólio de comunicação do país da América Latina, entrou na justiça para impedir que a lei fosse implementada, alegando que feria a liberdade de expressão. Entretanto, a justiça não considerou verdadeira a alegação. Além disso, o Grupo Clarín havia sido um dos principais articuladores da oposição ao governo Kirchner, promovendo e estimulando as manifestações que ocorreram contra o governo em 2012. Cabe destacar que a Lei de Meios já permitiu instalar 152 rádios em escolas públicas de primeiro e segundo grau, 45 canais de TV e 53 rádios FM universitárias. Além de criar o primeiro canal de TV aberta e de 33 estações de rádio vinculados aos povos originários (os descendentes diretos das comunidades indígenas que já ocupavam o território antes da chegada dos colonizadores europeus). Por fim, a Lei de Meios resguarda 33% dos meios de comunicação do país para entidades sem fins lucrativos (os estados da federação, o governo argentino, o município, as universidades, as comunidades, entre outros). Nesse sentido, a Argentina aparece como um exemplo de um país que iniciou o processo de democratização das comunicações. Entretanto, esse processo não tem sido simples, visto que o governo tem sofrido for- tes pressões dos setores conservadores da mídia. 2.4.2. BRASIL Como já mencionado, a mídia brasileira é extremamente concentrada nas mãos de algumas pou- cas redes ou empresas. A televisão é concentrada, tanto em termos de propriedade quanto em termos de audiência, na mão de seis grandes empresas, dentre as quais a rede Globo é a maior e mais influente. Tais empresas também possuem outros tipos de mídia - as chamadas mídias cruzadas -, como jornais e frequências de rádio. Assim, onze famílias hoje controlam grande parte das propriedades dos meios de comunicação brasileiros (FONSECA, 2012). Além das dinastias familiares, que dominam principalmente o mercado televisivo, outros grupos destacam-se, como a Editora Abril - responsável pela propriedade de 69% dos mercados de revistas e 14% dos mercados de TV por assinatura (HERZ, 2014) - e jornais como O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, que representam, sozinhos, 10% da tiragem nacional (HERZ, 10 Licença é o nome dado à concessão de direito de transmissão de televisão ou rádio. 198 UFRGSMUNDI 2014). Segundo Daniel Herz (2014), os dois grupos mencionados são os dois primeiros “times” de donos da mídia brasileira. Há mais dois grupos de pessoas que controlam grande parte dos meios de comunica- ção social no Brasil, quais sejam grupos regionais menores, ligados a redes maiores de TV, especialmente, e os “pequenos donos da mídia” - grupos regionais ainda menores e veículos independentes, com pouca influência na comunicação social brasileira e longe da parte mais dinâmica do mercado (HERZ, 2014). As- sim, as seis principais redes (Globo, SBT, Rede TV, Record, Bandeirantes e CNT) dominam hoje 667 veícu- los de comunicação, dos quais, além da televisão aberta, a Rede Globo domina a televisão por assinatura e segmentos de jornais e revistas, enquanto a Record e a Rede TV dominam também emissoras de rádio (DONOS DA MÍDIA, 2014). Assim como em diversos outros países da América Latina, a mídia brasileira tem atuado como ator político no cenário do país. Historicamente, as dinastias familiares das grandes redes de comunicação brasileiras são ligadas a grupos politicamente conservadores, politicamente direcionados à direita e/ou neoliberais. Afinal, com governos neoliberais, a mídia brasileira não corre riscos de que medidas em favor da desconcentração sejam feitas. O exemplo mais claro de atuação da mídia brasileira como ator político é a rede Globo. A rede Globo nasceu na década de 1960, no Brasil, e foi criada por uma família de empresários que já tinha propriedades de rádio e jornais. A partir de então, a rede Globo começou a crescer e a manter contato com redes de meios de comunicações menores e regionais, criando aquilo que Herz, Osório e Görgen (2002) chamam de coronelismo eletrônico: criação de redes de contato e influência entre grupos maiores e menores, os quais se alinham política e ideologicamente, em um momento em que a televisão começava a se interiorizar no Brasil. O já mencionado apoio da Globo à ditadura civil-militar brasileira e a sua atuação no período de redemocratização brasileira são provas disto: nas eleições de Tancredo Neves (1985), Fernando Collor (1989) e Fernando Henrique Cardoso (1994), a rede Globo atuou ativamente em prol destes candidatos - fato que foi decisivo para os resultados eleitorais (GOULART, 2008). Apesar de o Brasil ter hoje uma mídia extremamente concentrada na mão de poucos donos, ne- nhum tipo de regulação consistente até hoje foi feita para mudar tal situação: o Brasil é um dos países mais atrasados na América Latina no sentido de democratização da mídia. Grande parte das legislações sobre o assunto é do período da ditadura civil-militar, com regras arcaicas e que pouco servem para a democratização dos meios de comunicação brasileiros. A atual Constituição Federal brasileira, de 1988, prevê, no seu capítulo de Comunicação Social, que os meios de comunicação não podem ser objeto de monopólio ou oligopólio. Entretanto, tal capítulo nunca foi plenamente cumprido. No ano de 2010, último ano que o Brasil esteve sob o mandato do ex-presidente Lula, este apre- sentou um projeto de lei com o objetivo de regular os meios de comunicação brasileiros. Segundo Lam- bert (2012), o texto propunha medidas de regulamentação de conteúdo - como a proibição de qualquer apologia ao racismo e de discriminação social - e a redução da concentração de propriedade. À época, o texto foi considerado autoritário por grande parte dos donos de meios de comunicação no Brasil e, pou- co depois, o projeto de lei já estava arquivado. Muito disto se deve à já mencionada grande presença dos “barões da mídia” no Senado e na Câmara de Deputados, montando o que alguns especialistas chamam de “bancada das telecomunicações”. Durante o governo Lula, com o intuito de tornar a mídia um espaço mais democrático, foi criada uma empresa pública de comunicação - a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) - em 2008. Ainda, foi realizada a Conferência Nacional de Comunicação (I Confecom), com obje- tivos semelhantes. Tais medidas, entretanto, não foram suficientes para que a concentração de poder na mídia se alterasse. 2.4.3. MÉXICO Assim como o Brasil, o México tem atualmente seus meios de comunicação extremamente con- centrados nas mãos de alguns poucos e influentes donos. Ainda, no país também se identifica uma forte relação entre os empresários donos dos meios de comunicação e a classe política mexicana (SOUSA et al, 2014). O meio midiático mais popular e mais concentrado no México é a televisão. O principal canal de televisão mexicano, a rede Televisa, concentra atualmente 70% da audiência do país (LAMBERT, 2012), além de ter uma penetração de 96,5% do território nacional (SOUSA et al, 2014). O grupo é controlado pela família Azcarraga - uma das mais ricas do país. A segunda maior emissora é a TV Azteca, também com grande alcance e influência no país. O México tem, todavia, uma característica bastante diferente do Brasil: há uma grande concentração no setor das telefonias, sendo grande parte desta de propriedade de Carlos Slim, atualmente o segundo homem mais rico do globo. Sua empresa, a América Móvil, controla 84% do mercado de telefonia fixa e da internet do país (BORGES, 2014). Até 1988, quando Carlos Salinas de Gortati assume a presidência mexicana, não houve algum tipo de articulação política no México em prol da regulação da mídia. Além disso, a partir do governo de Gor- tati, as tendências neoliberais são exacerbadas no país, além de ser promovida uma série de privatizações 199 CELAC (SOUSA et al, 2014). A partir de então, foram aprovadas leis de caráter neoliberal, culminando na chamada “Lei Televisa”, de 2006, que deu ainda mais liberdade para a formação de monopólios no país (SOUSA et al, 2014). O México tem atualmente um dos governos mais neoliberais dentre os latino-americanos. O país é governado, hoje, por Enrique Peña Nieto, político do Partido Revolucionário Institucional (PRI), de cen- tro-direita. Recentemente, tem-se noticiado escândalos de ligações entre o PRI e a Televisa. O jornal The Guardian divulgou que, em 2012, a Televisa vendeu seus serviços ao PRI, com o declarado objetivo político de “aumentar o status” do então candidato à presidência, Peña Nieto (LAMBERT, 2012). Assim, percebe-se que a questão da regulação da mídia mexicana é um fator extremamente relevante para os cálculos políticos. Em uma aparente contradição, o país hoje empreende um processo de regulação da mídia. O pro- jeto atualmente debatido, apresentado pelo presidente Nieto, prevê a instituição de um órgão delegado de poderes para obrigar a venda de ações de empresas com mais de 50% do mercado, além de regula- ções de preços e multas para grandes concentrações, com o objetivo de ajudar o crescimento de em- presas menores (LIMA, 2013). Ainda, o projeto prevê a criação de novas redes de transmissão digital para a televisão aberta, além de um canal estatal com programas culturais e educacionais. Ademais, as redes existentes serão obrigadas a oferecer programações gratuitas para TV a cabo (LIMA, 2013). Atualmente, o projeto encontra-se tramitando na Câmara de Deputados. O principal e declarado objetivo da regulação da mídia mexicana é a democratização dos meios de comunicação e um mercado com empresas com maiores capacidades de concorrência. Entretanto, exis- tem outros fatos que devem ser levados em consideração. O mercado televisivo mexicano - concentrado nas duas grandes redes mencionadas acima - ainda não tem grande participação das ações e dos investi- mentos de Carlos Slim. Assim, percebe-se que a regulação será uma grande oportunidade para que atores como Slim - com muitos recursos financeiros e capacidade publicitária - dominem esta parcela do merca- do. Desta maneira, a regulação dos meios de comunicação mexicanos tem de ser avaliada com cuidado. 2.4.4. VENEZUELA Desde 1999, a Venezuela vem passando por um processo de transformação política, social e eco- nômica, que de certa forma impulsionou o movimento de governos progressistas na região nos anos consecutivos (como Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, El Salvador, Nicarágua, Uruguai). Desde o início do governo de Hugo Chávez, que construiu a chamada Revolução Bolivariana, a sociedade venezuelana as- sistiu a enormes mudanças estruturais no país. Além das reformas econômicas que procuraram diminuir a concentração de renda - que era uma das piores da América Latina -, o governo Chávez buscou ampliar os direitos sociais da população carente, financiando essas políticas através da nacionalização dos lucros do petróleo – fonte de energia abundante no país (BARROS, 2007). Esse movimento foi acompanhado por um processo de busca por democratização das comu- nicações. Assim como nos outros países da América Latina, a maioria da mídia estava ligada a interesses estrangeiros, se opondo à nacionalização do petróleo e aos programas sociais propostos pelo governo Chávez. Nesse contexto, o governo venezuelano implementou a Lei de Responsabilidade Social no Rádio, na Televisão e em Meios Eletrônicos, que basicamente procura estabelecer um maior acesso da popula- ção às informações. Além disso, a Lei estabelece que ao menos 3 horas diárias de programas de rádio e televisão devem ter conteúdo cultural e educativo, com enfoque pedagógico para crianças e adolescen- tes. No mínimo 7 horas diárias da programação deverá ser de produção nacional. Os únicos meios que não têm essa obrigatoriedade são aqueles sem fins lucrativos. Além disso, 85% da publicidade veiculada devem ser produzidos nacionalmente. Os rádios devem veicular ao menos 50% de sua programação com músicas venezuelanas e 10% com músicas latino-americanas e caribenhas (REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA, 2010). Além de procurar estabelecer um maior acesso à informação, a Lei se enquadra nos objetivos gerais do governo venezuelano, que são: a defesa da aproximação com os vizinhos da região, a ampliação da cidadania, a diminuição da dependência externa e o aprofundamento do acesso à educação pública e de qualidade. 3. AÇÕES INTERNACIONAIS PRÉVIAS A comunidade internacional e órgãos internacionais diversas vezes já debateram o tema dos meios de comunicação e da liberdade de expressão. Aqui, destacam-se as resoluções e decisões mais 200 UFRGSMUNDI importantes sobre o assunto. Primeiramente, a Declaração Universal dos Diretos Humanos, de 1948, disse a respeito do Direito de Privacidade (Artigo 12): Ninguém deve ser submetido à interferência arbitrária sobre sua privacidade, família, lar ou correspondência, nem a ataques sobre sua honra e reputação. Todos têm o direito de proteção da lei contra tais interferências ou ataques (ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). Ainda, sobre o Direito de Liberdade de Opinião e de Expressão (Artigo 19): Todos têm o direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de sustentar opiniões sem interferência e a liberdade de procurar, receber e transmitir in- formações e ideias através da mídia e independentemente de fronteiras (AGNU, 1948). Por sua vez, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, afirma que: (Capítulo 1, Artigo 4): “Todos têm o direito de liberdade de investigação, ou de opinião e liberdade de expressão e disseminação de ideias, por qualquer meio de comunicação” (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1948). Outro documento importante sobre o assunto é o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966). Segundo seu Artigo 19: Todos devem ter o direito de liberdade de expressão; esse direito deve incluir a liber- dade de procurar, receber e transmitir informações e ideias de todos os tipos, inde- pendentemente de fronteiras, sejam elas de forma oral, escrita ou impressa, em forma de arte, ou através de qualquer meio de comunicação escolhido (ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1966). Assim, percebe-se que os quatro documentos buscam assegurar internacionalmente a liberdade incondicional de expressão. Por outro lado, o Artigo 20 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 diz que qualquer propaganda para guerra deve ser proibida por lei (AGNU, 1966), mostrando uma aparente contradição no documento, pois, primeiramente, este clama pela total e incondicional liberda- de de expressão, mas, posteriormente, rege pela proibição de propagandas de guerra. Já a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, em seu Capítulo 2, Artigo 12, diz que: (1) Todos têm o direito de pensamento e de expressão. Esse direito inclui liberdade de procurar, receber e transmitir informações e ideias de todos os tipos, independen- temente de fronteiras, sejam elas de forma oral, escrita, impressa, na forma de arte, ou através de qualquer meio de comunicação. (2) O exercício do direito fornecido no inciso anterior não deve ser submetido à censura prévia, mas deve ser estar sujeito à imposição de responsabilidades que devem estar expressamente estabelecidas por leis em toda a sua amplitude necessária para assegurar: Respeito aos direitos ou re- putação de outros; Proteção da segurança nacional, ordem pública, saúde pública ou moral. (3) O direito de expressão não deve estar restrito a meios ou métodos indire- tos, tais como abuso de controle governamental ou privado sobre jornais, emissoras de rádio, ou equipamentos utilizados na disseminação de informação, ou por outros meios que impeçam a comunicação ou a circulação de idéias e de opiniões (4) Qual- quer propaganda para guerra ou toda a apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitações à violência sem lei ou qualquer outra ação similar contra qualquer pessoa ou grupo em qualquer nível, incluindo raça, cor, religião, idioma, ou nacionalidade deve ser considerada como ofensas puníveis por lei (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969, grifo nosso). Assim, percebe-se que o documento supracitado, apesar de clamar pela liberdade de expressão e proibir qualquer tipo de censura a esta, dá limites a este, pois assegura o respeito a algumas respon- sabilidades, como a segurança nacional e a ordem pública, além de proibir a propaganda à guerra ou incitação ao ódio e ao racismo, entre outros. Por sua vez, a Declaração dos Princípios sobre Liberdade de Expressão, de 2000, diz que: Princípio 1: Liberdade de expressão, em todas as suas formas e manifestações é um direito fundamental e inalienável de todos os indivíduos. Adicionalmente, é um requi- sito indispensável para a existência de uma sociedade democrática. [...] Princípio 4: O acesso à informação em poder do Estado é um direito fundamental de cada indivíduo. Os Estados têm a obrigação de garantir o pleno exercício deste direito. Este princípio 201 CELAC só admite limitações excepcionais que devem estar previamente estabelecidas em lei, em caso de perigo real e iminente que ameace a segurança nacional em socie- dades democráticas.[...] Princípio 12: Os monopólios ou oligopólios na propriedade e controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis anti-trust, uma vez que conspiram contra a democracia ao restringir a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito dos cidadãos à informação. Em nenhum caso essas leis se aplicam exclusivamente aos meios de comunicação. A concessão de fre- quências de transmissão de rádio e televisão deve considerar critérios democráticos que garantam a igualdade de oportunidades de acesso para todos os indivíduos. (OR- GANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2000). Em adição ao documento anteriormente comentado, a Declaração dos Princípios sobre Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA) assegura que é função dos Estados – e, con- sequentemente, dos governos – assegurar o acesso à informação aos cidadãos e que este não deve ser desvirtuado pela formação de oligopólios ou monopólios – questão que é fundamental para a regulação dos meio de comunicação. A CELAC também tem as seguintes manifestações sobre o assunto: primeiramente, a Declaração Especial sobre a Defesa da Democracia e a Ordem Constitucional na CELAC, de 2011, diz que: Reafirmamos que a democracia, o desenvolvimento sustentável, o respeito de todos os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais, inclusive o direito ao desenvolvi- mento, são interdependentes e se reforçam mutuamente, com igual base nos prin- cípios de objetividade, imparcialidade e universalidade (COMUNIDADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS, 2011). Já o Plano de Ação da CELAC, de 2014, afirma sobre Cultura e Diálogo entre Culturas: Promover a integração cultural da região, trabalhando em conjunto para a prote- ção do patrimônio e para a promoção e divulgação da diversidade das expressões culturais que caracterizam a identidade da América Latina e do Caribe e promover em todos os níveis da cultura em favor do crescimento econômico, erradicação da pobreza, desenvolvimento sustentável, geração de emprego e da integração latino- -americana e caribenha (COMUNIDADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARI- BENHOS, 2014a). A Declaração de Havana, também da instituição e afirmada em 2014, diz que: Ratificando hoje o nosso compromisso irrevogável para fortalecer esta área do diá- logo político eficaz. Temos sido, somos e seremos diferentes e, a partir dessa diversi- dade, é que temos de identificar os desafios e objetivos comuns de convergência que nos permitam avançar na integração da nossa região. Fortalecer nossa democracia e todos os direitos humanos para todos, dar mais oportunidades para o nosso povo, construir sociedades mais inclusivas; melhorar a nossa produtividade; estreitar o nos- so comércio, melhorar a nossa infraestrutura e conectividade e redes necessárias que cada vez mais unam nossos povos; trabalhar pelo desenvolvimento sustentável, para superar as desigualdades e por uma distribuição mais equitativa da riqueza, a fim de que todos e todas possam sentir que a democracia dá sentido às suas vidas. Essa é a missão da CELAC, essa é a tarefa que fomos convocados e essa é a responsabilidade política que teremos adiante, e da qual deveremos prestar contas a nossos povos (COMUNIDADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS, 2014b). Finalmente, a Declaração Especial sobre a Cultura como Promotora do Desenvolvimento Huma- no, de 2014, afirma: Artigo 4: Enfatizar a contribuição da cultura para erradicar a pobreza, reduzir as de- sigualdades sociais, ampliando as oportunidades de emprego e redução das taxas de exclusão social, como parte da promoção de sociedades mais equitativas [...] Artigo 8: Apoiar a adoção das medidas necessárias para proteger o conhecimento tradicional e o conhecimento como parte da identidade da América Latina e do Caribe (COMUNI- DADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS, 2014c). Assim, percebe-se que os países da CELAC estabeleceram que a informação, a cultura e, conse- quentemente, os meios de comunicação têm uma grande função social no desenvolvimento dos países latino-americanos. 202 UFRGSMUNDI 4. POSICIONAMENTO DOS PAÍSES Historicamente, a Argentina tem enfrentado um grande debate acerca do projeto de democrati- zação dos meios de comunicação. Desde 2003, a Argentina passou a adotar medidas políticas e econômi- cas que tinham como objetivo ampliar o acesso da população a bens básicos e, especialmente, diminuir as altas taxas de desemprego do país. Esse caráter progressista do governo sofreu forte oposição da mídia argentina que, seguindo o padrão latino-americano, é controlada por apenas alguns grupos privados, verdadeiros oligopólios empresariais. Em 2009, foi promulgada a lei de meios (2009) que terminou com o direito desregulado das companhias midiáticas de possuírem dezenas de canais de televisão e rádio, bem como jornais. Nesse sentido, o governo argentino crê que a democratização da mídia é um processo fundamental para o aumento da educação e da cultura de um país. Afinal, acredita que a privatização da informação se opõe ao interesse de consolidar uma mídia livre e democrática. Semelhantemente, a Venezuela, a partir do governo do presidente Hugo Chávez, adotou inúme- ras medidas para melhorar a distribuição de renda e as condições de vida do povo venezuelano de renda mais baixa. Nesse processo, o governo venezuelano incluiu o acesso à informação entre os itens básicos para a promoção da cultura e educação. Por isso, o governo implementou a Lei de Responsabilidade Social no Rádio, Televisão e Meios Eletrônicos (RESORTE), cujo objetivo principal é permitir que a popu- lação tenha maior acesso às informações através dos meios de comunicação. Nesse sentido, o governo venezuelano entende que os meios de comunicação não devem ser exclusivamente privados e voltados para a obtenção de lucros. Afinal, a informação é um bem público. Para a Venezuela, uma mídia livre é uma mídia que possa atender os interesses de toda a população (SCHOOL OF THE ARTS & MEDIA, 2013). A posição venezuelana se assemelha à de Cuba, pois ambos defendem a democratização da mídia. Pela constituição do país, é proibida a posse privada de meios de comunicação, já que o acesso à infor- mação é considerado um bem essencial da população; assim, toda mídia é pública. Existem três grandes jornais de circulação nacional e mais quatorze jornais regionais, além de diversos canais de televisão e rádio (SCHOOL OF THE ARTS & MEDIA, 2013). Seguindo a tendência dos governos progressistas latino-americanos, desde o governo de Mau- rício Funes (2009-2014), El Salvador vem passando por um processo de mudanças políticas, sociais e nos meios de comunicação. Em 2013, o governo apresentou um projeto de lei de meios públicos e lei de radiodifusão comunitária. O objetivo dessas leis é criar normas e políticas para a correta apresentação do serviço público de comunicação, visando apoiar o respeito à cultura, ao meio-ambiente, à igualdade de gênero e à integração na América Central. Além disso, define a comunicação como um serviço público de interesse social, um direito da população e um dever do Estado em prestar esse serviço, e não das empresas privadas. As leis também preveem a possibilidade de o governo expropriar empresas privadas de comunicação com fins lucrativos (ou seja, tornar públicas essas empresas). Além disso, as leis estabe- lecem um código de ética para o jornalismo (SCHOOL OF THE ARTS & MEDIA, 2013). No Haiti, por outro lado, a principal preocupação é implementar uma reforma nas comunicações, com o objetivo de modernizar e desenvolver a mídia, criar códigos de ética, qualificar os profissionais de mídia e fornecer assistência técnica às associações de imprensa. Dado o quase estado de guerra civil que vive o país devido à miséria e à atuação de rebeldes armados, a mídia não tem um grande papel como ator político no Haiti. Em comparação aos outros países da América Latina, a estrutura de comunicação do Haiti é bastante precária (SCHOOL OF THE ARTS & MEDIA, 2013). O Haiti, dessa forma, é favor da regula- ção da mídia, apesar de não possuir uma estrutura bem desenvolvida de mídia em seu país. A mídia no Suriname segue o padrão da América Latina de ser bastante concentrada em poucas empresas privadas. Cabe destacar que a maioria das empresas de comunicação tem origem estrangeira, especialmente holandesa (a Holanda foi colonizadora do Suriname até 1975). Assim, com o caráter pro- gressista do governo, que aderiu à UNASUL em 2010, a mídia ampliou suas críticas ao presidente Bouter- se. Em suma, o governo do Suriname se posiciona de maneira favorável à regulação da mídia. Ao contrário da realidade da grande maioria dos países latino-americanos, os meios de comuni- cação de Barbados são predominantemente públicos e estatais. Para isso, foram criadas duas entidades públicas, o Serviço de Informação do Governo (1958) - que é responsável pela disseminação de infor- mação pública para a população - e a Corporação de Transmissão do Caribe (1963) que se tornou CTC TV e CTC Rádio. Isso não significa que não existam empresas privadas, mas sim que há o predomínio de empresas públicas. Até mesmo essas empresas privadas são compostas por alguma parcela de capital estatal. Nesse processo, foi criada também uma empresa pública de TV a cabo, a One Caribbean Media, que atua também em outros países da região, como Trinidad e Tobago e Granada. Ou seja, Barbados se coloca a favor da regulação midiática. 203 CELAC O Brasil posiciona-se favoravelmente à regulação dos meios de comunicação. No país, os meios de comunicação são extremamente concentrados na mão de algumas poucas famílias e, portanto, a regulação da mídia é questão de democratização da comunicação social. Nos últimos anos, o país tem tomado algumas medidas neste sentido, como a criação da Empresa do Brasil de Comunicação e da TV Brasil e a promoção de eventos para a discussão do assunto, como o Fórum Nacional para a Democrati- zação da Comunicação. Entretanto, tais atitudes não foram suficientes, e o país continua sendo um dos mais atrasados dentre os latino-americanos em termos de regulação. Granada é atualmente um dos países latino-americanos com a maior quantidade de leis regula- mentando seus meios de comunicação. O objetivo declarado do país é o controle da informação, para evitar qualquer tipo de difamação. Entretanto, o país hoje é, dentre os latino-americanos, dono de um dos maiores níveis de censura. Recentemente, escândalos envolvendo a demissão do jornalista Rawle Titus – supostamente em função de este ter divulgado escândalos de corrupção do governo – são exemplo disso. Desta maneira, percebe-se que o país possui um dos mais baixos níveis de liberdade de expressão no continente americano. Assim como Granada, a Guiana também se posiciona favoravelmente à regulação dos meios de comunicação, pois entende que este é um fator fundamental para a democracia plena no país. Recente- mente, o país tem tomado medidas positivas neste sentido, como a Lei de Acesso à Informação, de 2011. Dentre os países latino-americanos, a Jamaica é um dos mais avançados em termos de regulação da mídia, especialmente no que tange à regulação de conteúdos. O país tem legislação específica para proibir qualquer tipo de incitação à violência, ao ódio e ao preconceito, seja este religioso, sexual, étnico ou racial. Ainda, o país hoje regula todo tipo de informação ou publicidade relacionada à infância e proíbe terminantemente qualquer tipo de publicidade relacionada ao tabaco e ao uso de drogas. Atualmente, o México é portador de um dos maiores paradoxos em termos de regulação da mídia na América Latina: há duas décadas, o país é governado por presidentes que são ideologicamente posi- cionados à direita e seguem dogmas econômicos e políticos neoliberais. Em função disto, o país hoje tem sua mídia extremamente concentrada nas mãos de alguns poucos donos. Entretanto, nos últimos anos, o país vem empreendendo um processo de regulação da mídia no sentido de desconcentração de proprie- dade. Ressalta-se, contudo, que o país não defende qualquer tipo de regulação em termos de conteúdo, por considerar que este tipo de medida fere o princípio da liberdade de expressão. Antígua e Barbuda se posiciona contrariamente a qualquer tipo de regulação da mídia, pois acre- dita que isso ameaça a liberdade de expressão. O país defende que tanto o tipo de concessão quanto o conteúdo veiculado não devem ser regulados, a fim de preservar a liberdade e a democracia. O país ainda defende que a regulação da mídia é um assunto interno. Como Antígua e Barbuda , o Panamá defende a liberdade de expressão, e, em função disto, é con- tra a regulação dos meios de comunicação. Além disso, o país também defende que a mídia é um assunto interno e que, por ameaçar a liberdade de expressão, a regulação dos meios de comunicação ameaça a democracia. Com uma tradição de monopólio na mídia, a Bolívia tem adotado medidas para democratizar os meios de comunicação e promover o pluralismo de opiniões. O país defende que a comunicação é um direito básico e só pode ser atingido plenamente quando há meios democráticos onde todos possam se manifestar. Um exemplo para os demais países latino-americanos sobre como regular a mídia é a Lei Ge- ral de Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação, promulgada em 2011, que dividiu as concessões dos meios de comunicação igualmente entre os setores público, comercial e social. O governo do Chile posiciona-se favoravelmente em relação à regulação dos meios de comuni- cação. O atual governo acredita ser urgente a criação de uma legislação que limite os altos graus de con- centração da propriedade dos meios de comunicação do país. Além disso, faz-se necessária a ampliação do espaço público na mídia e o desenvolvimento da mídia comunitária. Contudo, historicamente, o Chile sempre se posicionou contra este tipo de regulação e o debate ainda é muito recente no país. Assim sen- do, a posição chilena tende a ser mais cautelosa, atentando para o fato de que a regulação da mídia pode ser usada por governos autoritários como censura estatal. A Colômbia defende, acima de tudo, o Estado democrático, e vê na regulação da mídia uma amea- ça à liberdade de expressão e à própria democracia, pois abre espaço para a censura estatal. Além disso, para a existência plena da democracia, os meios de comunicação não devem se subordinar à aprovação estatal. O país acredita que a liberdade de expressão é um direito fundamental e deve ser assegurado. Assim, a Colômbia se posiciona contrariamente à regulação dos meios de comunicação sociais. A Costa Rica considera que a regulação da mídia é uma ameaça à liberdade de expressão, que é um direito fundamental dos cidadãos e um dos pilares da democracia. A mídia do país é considerada por 204 UFRGSMUNDI entidades internacionais uma das mais livres da América Latina, dados os poucos constrangimentos le- gais existentes no setor. Desta forma, o país se apresenta como um importante opositor à regulação dos meios de comunicação. A República Dominicana também é um grande defensor da liberdade de expressão, considerando que a regulação de meios de comunicação promove a censura e o controle da informação pelo Estado, sendo uma ameaça à democracia. Defende que a única maneira de existir uma mídia realmente livre é fomentando a livre concorrência, sem ingerências do Estado no setor. Por estes motivos, o país preocu- pa-se com a situação dos meios de comunicação de alguns países da América Latina, nos quais se observa uma progressiva diminuição na liberdade de imprensa. O Equador possui posição favorável à regulação da mídia, considerando-a fator essencial para que haja plena liberdade de expressão e democracia no país, uma vez que a concentração da propriedade dos meios de comunicação estabelece um monopólio sobre a informação e impede que a pluralidade de interesses seja representada. Nos últimos anos foram realizados diversos avanços rumo à regulação da mídia, dentre os quais se destaca a Lei Orgânica de Comunicação, a qual dispõe de diversas medidas que objetivam desconstruir o oligopólio detido pelos principais veículos de mídia do país, além de aumentar a participação de meios públicos e comunitários no setor de comunicação. Estas medidas colocam o Equador em posição de grande relevância no debate quanto à democratização da mídia. A Guatemala é contra qualquer tipo de regulação midiática e defende que as concessões sejam feitas por leilões, beneficiando quem apresentar as melhores condições técnicas, pois assim é garantida a qualidade da transmissão de informações. O país é contrário a qualquer medida de democratização mi- diática, pois acredita que esta é uma questão interna e que a regulação ameaça o princípio da liberdade de expressão. Honduras se posiciona de maneira contrária à regulação dos meios de comunicação. No país, a legislação e os governantes prezam pela livre concorrência, considerando-a pressuposto fundamental da democracia e da liberdade. O governo atual considera que regular a propriedade e os conteúdos dos veí- culos de mídia é uma afronta à livre concorrência e à livre imprensa e, portanto, é uma ameaça à própria liberdade individual dos cidadãos. Embora o Paraguai tenha iniciado, em 2008, um processo de democratização da mídia com o governo de Fernando Lugo, o atual posicionamento do país vai contra a regulação dos meios de comu- nicação. O atual governo defende a liberdade de expressão como um direito fundamental, e acredita que uma regulação da mídia ameaça esse direito. O Peru se posiciona de maneira favorável à regulação dos meios de comunicação. O debate to- mou grande importância no país no final de 2013, quando o grupo El Comércio comprou o grupo Enpen- sa e passou a deter 77% do mercado de mídia impresso. Este fato motivou o presidente Ollanta Humala a fazer um discurso favorável à regulação da mídia, afirmando que a concentração neste setor é uma afronta à liberdade de expressão e à democracia. O governo atual tem estudado maneiras para diminuir a concentração da mídia e um novo projeto de lei esta sendo elaborado. Por este motivo, o Peru se tornou um país importante na discussão quanto à regulação dos meios de comunicação. São Cristóvão e Nevis se posiciona contrariamente à regulação dos meios de comunicação. O país acredita que é necessário prezar por uma mídia democrática, portanto condena qualquer tipo de censura à liberdade de expressão. Por este motivo, o país observa com preocupação os processos de mudanças nas legislações referentes ao assunto de alguns países da América Latina - como Equador, Argentina e Venezuela. São Cristóvão e Nevis se orgulha de possuir uma mídia livre e plural e acredita que esta representa os mais diversos interesses da sua população. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Francisco de Paula. A Lei de Meios e o fim da propriedade cruzada. 2013. Disponível em: <http:// www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed772_a_lei_de_meios_e_o_fim_da_propriedade_cruza- da>. Acesso em: 12 maio 2014. ARAÚJO, Washington. A Inversão de Papeis: A Imprensa como Partido Político. 2010. 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RESUMO A Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) tem origem na “Declaração da Cúpula da Unidade”, adotada pelos Chefes de Estado e de Governo da América Latina em 2010. Os objetivos do novo organismo são a integração e a cooperação regional, a construção de uma agenda comum à América Latina e ao Caribe, a elaboração de respostas próprias à crise financeira internacional e a promoção do desen- volvimento regional – com ênfase para o desenvolvimento sustentável. Além disso, a CELAC visa projetar glo- balmente a região, em temas como o respeito ao direito internacional, a igualdade entre Estados, o respeito aos direitos humanos e a cooperação. O tópico discutido na CELAC será a regulação e a democratização dos meios de comunicação na América Latina. Historicamente, as mídias latino-americanas são de posse de alguns poucos donos e, portanto, são oligopolizadas. Como consequência, a distribuição de informação está hoje concentra- da nas mãos de alguns poucos proprietários e de algumas poucas famílias. Assim, será debatido na CELAC quais medidas podem ser tomadas pelos países para a democratização dos meios de comunicação. 208 UFRGSMUNDI
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