Tudo aquilo que escapa - Volatilidade e visualidade na contemporaneidade

March 28, 2018 | Author: Guy Blissett Amado | Category: Modernity, Fuzzy Logic, Reality, State (Polity), Aesthetics


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TUDO AQUILO QUE ESCAPA - VOLATILIDADE E VISUALIDADE CONTEMPORÂNEAGuy Amado No panorama a um só tempo complexo e fugidio dos dias atuais, em pleno curso – ou ocaso? - de um processo de globalização que se desenrola de modo tão inexorável quanto incerto, alimentando expectativas progressistas e integradoras ambíguas, desenhou-se uma nova configuração cultural e sociopolítica do mundo que ressalta contrastes e acena com o abalo de crenças e referenciais sólidos. A dinâmica que modularia a forma contemporânea do homem embater-se com o real, sua mediação com o mesmo, se dá sob a égide de influxos diversos, de onde sobressaem a potente indústria da comunicação e os avanços tecnológicos que mais e mais influem diretamente em nossos modos de vida. A classificação convencionada de pós-moderno como emblema de uma época ou estado da cultura foi exaustivamente empregada de diversos modos, sensivelmente desde meados dos anos 1970, na tentativa de se buscar uma teoria que traduzisse o zeitgeist das últimas décadas. Fosse como tentativa de definição de um estilo ou de apreender um “estado de coisas” impulsionada por certa insatisfação ou sentimento de dissonância em relação ao cânone do modernismo, fosse como tendência filosófica, ou ainda - de modo mais raso e abrangente - como a então mais recente época cultural do Ocidente, as teorias da pós-modernidade sempre esbarravam em inúmeras questões, contradições ou problemas conceituais que se insinuavam tanto na descrição quanto na avaliação da arte e do pensamento que se propunha investigar, até que se passou a considerá-la tacitamente superada, ou insuficiente para abarcar com consistência a complexidade do mundo atual. O ceticismo que permeia boa parte do discurso pós-moderno, investindo na anulação ou suspensão de noções tais como verdade objetiva ou universalidade de significado, foi intensamente combatido por seus detratores, que de modo geral não viam nessa linha de pesquisa uma plataforma suficientemente consistente para abordar com propriedade a complexidade dos eventos que se propunham analisar. Nesse contexto, fez-se pertinente a busca por outros canais de identificação com a realidade e de apreensão das transformações de nossa era, mais atualizados e ajustados às condições de confecção de um diagnóstico possível para a mesma, atravessada pelos signos do excesso – de signos, 1 ou da ideia-conceito que a gerava. que visa assim verificar a contribuição de áreas externas às questões da estética. contudo.ruídos. o que se propõe a seguir é uma tentativa de reflexão buscando amalgamar uma leitura sobre o mote temático acima introduzido a partir de uma breve apresentação de modelos de pensamento externos ou em princípio não diretamente ligados a questões da visualidade. Tal tendência foi primeiramente enunciada com consistência pela crítica e historiadora da arte norte-americana Lucy Lippard. do nebuloso e do fugidio. No campo da arte e. mas em áreas transversais ao conhecimento especializado nesse setor. apresentando-se mesmo indissociados da própria condição de habitar a contemporaneidade. da visualidade contemporânea1. em sentido mais amplo. no melhor dos casos logrando esboçar um diagnóstico possível para tempos onde a experiência estética se efetiva marcada pelo signo do volátil. percebe-se como recorrente a incidência de práticas e motivos associados às noções do intangível. Visando desenvolver a discussão a partir do escopo temático ora introduzido. de um dado fugidio na experiência fenomenológica do mundo. em que parece haver sempre “algo que nos escapa”. Matrizes da evanescência na arte da contemporaneidade Sobretudo a partir da segunda metade do século 20. Aspectos que. até ser definitivamente posta em xeque a partir de propostas conceituais mais radicais. 2 . Interessa aqui buscar articulações possíveis a partir do que parece convergir para uma tônica de volatilidade na experiência da visualidade atual. Uma opção deliberada. não limitam-se a se manifestar apenas no âmbito da arte.da “desmaterialização da 1 O ponto de vista que pretende-se ser o foco principal deste artigo será o da arte e da experiência da visualidade nos dias que correm. desigualdades – e da intangibilidade. a componente material da obra de arte contemporânea viu-se passível de sofrer alguns abalos. em que tal instância era mesmo preterida em favor de seu enunciado. do fugidio. aceleração. ao analisar as propostas que se desenrolavam na primeira vaga da chamada arte conceitual.hoje já algo desgastada . quando cunharia a célebre expressão-conceito . no que irá se referir como um processo de estetização da experiência. com a expansão dos meios e modalidades de expressão artística. ou do volátil na produção da experiência estética dos dias de hoje. Tal proposta será estruturada a partir da associação de tópicos e modelos de pensamento praticados por teóricos não necessariamente atuantes no campo da estética ou de teoria da arte. podendo prescindir da plasticidade da obra de arte. Cornelia. Reflections on the Roots and thePerspectives. em parte por mostrar-se insuficiente para abranger outras tantas manifestações do mesmo período e dos anos que se seguiram. no trabalho de Joseph Beuys. Por exemplo. Em parte por conta de tal terminologia sugerir uma dimensão “trágica” que os trabalhos a ela ligados nunca efetivamente apresentaram. 3 . como sabido. Movimento esse que gradualmente passou a estar associado não apenas à produção artística. A propósito desta injunção a especialista em conservação de arte Cornelia Weyer afirma que “no período do pós-2ª Guerra Mundial parecia que a materialidade estava mais entrelaçada ao assunto da arte do que nunca. Foi somente com o surgimento da arte conceitual e sua rejeição radical ao mercado da arte que alguns pensadores sentiram-se tentados a reconsiderar o conceito”3. subentendida como procedimento regular à época que Lippard publicava seu artigo. hoje poderá já soar um tanto anacrônico. O sintoma da desmaterialização da arte apontado por Lippard. o termo caiu em desuso até a década de 1990. 3 In: WEYER. Lucy.obra de arte”2. Nas práticas em arte conceitual. quando será recuperado para designar outro leque de tendências ou manifestações na arte contemporânea. A ruptura com o suporte – ou mesmo sua ausência –. “Media art and the limits of established ethics of restoration”. e que irá paradoxalmente ajudar a “dar corpo”. Tradução livre pelo autor do presente artigo. Berkeley: University of California Press. em que a materialidade é mera codjuvante da ideia ou pulsão intelectual. “Escape attempts”. ou a fixar no tempo um determinado tipo de produção artística de vanguarda dos anos 1960. Londres: Archetype Publications Ltd. pouco da arte produzida hoje terá como negar o legado dessa vertente.. o processo de execução e a ideia original não raro sobrepunham-se hierarquicamente à materialidade. 2010. a desmaterialização da arte se contrapunha às categorias tradicionais e à dinâmica oficial do meio da arte. in Theory and Practice in the Conservation of Modern and Contemporary Art. 2001. mas à 2 LIPPARD. Contudo. sobretudo no que se referia à condição da obra como produto mercadológico. se abraçarmos a definição de arte conceitual de Lippard. Para Lippard. é no entanto apenas uma das facetas ou aspectos em um movimento mais amplo de desmaterialização. In: Six years: the dematerialization of art object from 1966 to 1972. Os tempos agora são outros e as relações entre arte e vida se produzem em termos menos essencialmente dicotômicos. In: BOURRIAUD. como se poderia talvez depreender do trecho final da citação. por exemplo. Um grande número de artistas e teóricos irá se interessar justamente pelas possibilidades contidas nessa ausência. apagar os próprios rastros. A propósito desta linha de abordagens e procedimentos. e que o território da arte por excelência permite levar adiante. o vazio é descrito como uma falta ou lacuna. não ser nada. Uma pulsão não necessariamente alimentada pelo niilismo ou por laivos existencialistas. mas antes pelo desejo de perseguir. alinhando-se ao tédio e à apatia tão caros na contemporaneidade.5 ” Nas palavras da pensadora francesa estão os indícios que resumem aquilo que irá constituir um caminho aberto para uma enorme parcela de artistas. Freqüentar os Incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea. 4 . mas da ordem do imaterial. plataformas discursivas e da adoção de recursos técnicos que acentuam essa dimensão. e de alguma forma sintetizam muito do que interessa apresentar neste artigo.poderá ser um assunto recorrente. nesses espaços não preenchidos por matéria. desejar o nada. Da fugacidade de ações incorpóreas derivadas da performance e de instalações e intervenções efêmeras a propostas participativas de cunho semi-assistencial e à abstração intelectualizada da “forma-viagem” que o curador e teórico da arte Nicholas Bourriaud propõe como modelo em sua plataforma estética “AlterModern”4. São Paulo: Martins Fontes. onde por exemplo o vazio – seja como o intangível. CAUQUELIN. pretender-se transparente. visar ao inefável. a partir de linguagens. e é motor do desejo. e vários artistas contemporâneos têm em mente a mesma busca ou exigência. Nicholas. é inerente ao sentimento de incompletude humana e ganha contornos existenciais. a teórica e historiadora da arte Anne Cauquelin pontua: “Pistas não faltam. como metafórico. precisamente esta: perseguir o invisível. a arte contemporânea viu-se fortemente perpassada por propostas e demandas da ordem do intangível. tanto num registro mais literal. Novos modelos de práticas artísticas em curso nos anos 90 convergem para certo grau de intangibilidade. que alimenta parte considerável da criação artística atual. Londres: Tate Britain. ou como afirmativo de uma ausência . dar forma e extrair potência de algo que prescinde de materialização ou concretude. No modelo postulado por Gilles Lipovetsky. no original. Altermodern Manifesto. 4 5 Journey-form. 2008. 2009.própria condição e modos do homem habitar o mundo em finais do século 20. Anne. nas quais “se encontra uma disfunção ao abrir este campo invulgar inesperado”7. em relação às funções que são desempenhadas socialmente. carregando consigo uma complexidade semântica que aqui não se terá condições de ser propriamente desenvolvida em profundidade. BREA. Aí estaria a essência do que será referido por Rüdiger Bubner como certa “estetização do mundo da vida”6. Sob um viés mais pragmático e imediatista. portanto. Madrid: Aleph Pensamiento. mesmo que nem sempre nos apercebamos do fato. 5 . 143. J. onde a experiência estética cria um estado singular. atendo-nos ao campo da reflexão que ora se apresenta. como utilizado nos dias de hoje. 1997. e carente de alguma consistência em BUBNER.] After the digital divide? New York: Camden House. produzir um sentido. In: Rebentisch. pode se mostrar potencialmente ambíguo e pleno de interpretações. Para este autor. 1989. O autor vê a arte como um vetor de autonomia. Tal fenómeno permite afirmar. Lutz. [orgs. é aqui empregado a partir de um entendimento da estética enquanto veículo de expressão do sensível em modo expandido. a indeterminação e a imaginação. confundindo-se assim com a existência. em que algo pode se relacionar consigo mesmo. parece inevitável remeter a origem do fenômeno de estetização à expansão das indústrias audiovisuais e de massmedia e à iconização exaustiva do mundo contemporâneo. Observa-se uma aproximação e mesmo uma interpenetração das fronteiras entre arte e os eventos cotidianos. “Art. Esse enfoque permite um breve comentário complementar a partir do que é descrito como uma "estetização difusa do mundo contemporâneo". Juliane. La estetización difusa de las sociedades actuales y la muerte tecnológica del arte. realidade e ficção. KOEPNICK. progress”. nos termos do teórico de estética espanhol Jose Luis Brea8. que irrompe deslocado da lógica habitual. Frankfrurt am Main: Suhrkamp. no mundo moderno. Bubner fala ainda das experiências estéticas que existem por detrás do complexo das funções cotidianas.Estetização difusa O termo estetização. medium. de maneira a incorporar suas manifestações no plano da vida cotidiana. Essa conjuntura implicaria em conseqüências fundamentais sobre os modos de nossa experiência – e ainda sobre a própria constituição efetiva dos mundos da vida. com a internet desempenhando igualmente um papel decisivo nesta equação. no plano do real. realidade e simulação. p. Este mundo "estetizado" e debilmente definido. ibidem. Luis. p. GLOTHLIN. Ästhetische Erfahrung. associada à progressão das indústrias da imagem. 151. do desenho e da publicidade. Rüdiger. ainda que de maneira arriscada. o que o filósofo alemão designava como um movimento que se dá no âmbito onde se misturam vida e arte. Erin. que a experiência de estetização do mundo da vida potencializa a volatilidade. 2009 7 8 6 Idem. seria a teoria da fuzzy logic.doravante aqui levianamente aliterada para borrosidade10. “borroso” e difuso A esta idéia de uma estetização difusa das sociedades atuais.tanto estéticas como éticas – seria um cenário em que o homem já haveria perdido qualquer possibilidade de estabelecer seu próprio projeto frente à ascensão da tecnociência. tal qual postulada pelo teórico. "A borrosidade é uma escala de cinzentos". parece-me oferecer uma aproximação mais favorável ao português e à abordagem aqui buscada. e que se anuncia como uma plataforma conceitual eminentemente relativista e heterodoxa. e as "áreas cinzentas" traduzidas num modo de raciocínio por aproximação. e "a verdade encontra-se neste intervalo". Bart. e que é preciso aplicar uma lógica "nebulosa". 6 . ao invés da exatidão. pode revelar-se pertinente. no enfoque reticente de Brea. Uma das noções que interessam ser aqui abordadas. poder-se-ia sobrepor ainda alguns conceitos específicos que de certa maneira potencializam ou alargam o alcance daquela. desse ruído que permeia os modos de vida e as formas da experiência . colaborando na configuração de uma experiência difusa em nossos modos de apreensão do mundo. Uma posição decerto polémica em sua curiosa combinação de singeleza e pretensão. permitiriam reflexões e descrições mais adequadas para determinados aspectos da realidade que nos cerca que o pensamento da lógica dicotômica. Aspectos do intangível: líquido. matemático e engenheiro norteamericano Bart Kosko9 . E é também o mundo hiper-real diagnosticado por Jean Baudrillard. mas que se abraçada com ressalvas e aplicada ao contexto que aqui nos interessa. Barcelona: Crítica.que assentar algum princípio firme de valoração das práticas .a própria realidade. de acordo com Kosko. as nuances contidas nas “escalas de cinzento” ali propostas podem ser de grande serventia na análise do espectro 9 10 KOSKO. 1995 A transcrição espanhola do termo. invocando mais imediatamente a qualidade “nebulosa” que aqui interessa e que na língua inglesa apresenta-se menos familiar. borrosidad. ou “borrosidad”. As verdades e certezas tomadas como relativas. em que a cultura do simulacro e a polissemia de signos prevalecem sobre o cânone da representação. onde nada é absolutamente preto e branco. Pensamiento borroso – La nueva ciencia de la lógica borrosa. por efeito de adequação ao mote da volatilidade. Afinal. ou binária. que capte os matizes acinzentados do mundo real. justaposta desta maneira ao mundo da cultura e da arte -. O pensamento borroso sustenta de modo geral que a forma de raciocinar em termos absolutos de “verdadeiro ou falso” já não nos serve. aristotélica. A fuzzy logic ou borrosidade introduziria um instrumental inovador em uma análise do estatuto incerto e polissémico que conforma a visualidade na contemporaneidade. em procurar compreender o mundo em suas nuances "cinzentas". descobrir quais seriam as mecânicas de suas instâncias de comunicação. O autor assim classifica o âmbito dos novos paradigmas estabelecidos na sociedade atual a partir da globalização. portanto. Essa condição de fluidez é para o autor antes de tudo a imagem de um novo tempo. em que medida é ainda possível ou relevante pensar no significado visual e verbal da arte.em que a importância da obra de arte (e não raro do artista) é mensurada em termos da publicidade e da notoriedade por ela atingida. e.“claro-escuro” que de modo geral conforma nossa experiência de apreensão visual do mundo. imagens e estímulos sensoriais de toda sorte e que conformam nossa existência. frente às demandas e imposições do mercado e da presente cultura do espetáculo . A investigação dos fenómenos que abarcam a experiência da contemporaneidade pelas vias difusas da borrosidade consistiria. Cada passo em um processo racional requer uma simplificação desse tipo e. o estágio atual da era moderna – contraposto à “modernidade sólida” que teve início com as transformações operadas pelo pensamento racionalista clássico e que fez emergir um conjunto estável de valores e modos de vida cultural. 7 . ou chaves interpretativas possíveis para a vida atual pode estar na condição a que Zygmunt Bauman nomeia de estado líquido (“da modernidade”). as ingerências do estado e instituições sociais sobre os mesmos. Outro desses vetores. e identificar com mais precisão aspectos eventualmente fugidios ao juízo (estético e não só) e à percepção contidos no fluxo contínuo de movimentos. Emprega a metáfora da liquefação (ou fluidez) no intuito de demonstrar as conseqüências que essa configuração social implica para os relacionamentos entre as pessoas. por exemplo. em caso positivo. Ao se aplicar um raciocínio amparado no binômio "preto-no-branco" para tentar compreender ou explicar um mundo cinzento. assim. em detectar a policromia de cinzas. tende a adicionar outra camada de arbitrariedade e erro ao mesmo processo. deve-se tratar algo que é tomado como verdadeiro em certa medida como se fosse ou inteiramente verdadeiro ("o copo está cheio") ou inteiramente falso ("o copo está vazio"). fornecendo talvez uma via de acesso que permita introduzir "nuances de cinza" sobre esse cenário. político e religioso. nas esferas pública e privada. processos de individualização. abrangendo relacionamentos humanos. Verificar. pode-se acrescentar mais um tópico às noções já apresentadas. um tempo de provisoriedade. enfim. Yves. A condição líquida incute também um dado temporal e de instabilidade. Repare-se que se transpusermos essa última para o contexto da visualidade contemporânea. com seu próprio conjunto de presunções tácitas. El arte en estado gaseoso. tendo alcançado certo grau de independência da realidade "não-artística". assumindo uma fisionomia e uma dinâmica de apresentação volátil – num movimento que radicaliza a tendência que já se tentou definir como desmaterialização na arte. gêneros e subgêneros que lhe é peculiar. com a perda de estabilidade e consistência na vida em conjunto. Em vez de refletir a vida. Liquidez e fluidez traduziriam metaforicamente. na medida em que indica um processo de transformação tão acelerado que não permite solidificar tendências. como comentado inicialmente -. serviria igualmente à perfeição. além de romper com antigos dogmas como a premissa da "obra exclusiva". mesmo nas relações humanas. especificamente para a produção artística. estas tendem a evanescer. E que é refratária à idéia de estabilidade de princípios e de “certezas” tão caros ao projeto moderno. à sombra da ascensão do individualismo. procedimentos e mecanismos abertamente proclamados para sua auto-afirmação e autenticação. e sobretudo da perda de referenciais “sólidos”. Para Michaud. A produção artística atual. ou espectador.Em sua modernidade líquida impera a tônica do volátil. se apresentaria assim como “em estado gasoso”. com a profusão de estilos. a arte contemporânea pode ser entendida como uma dentre muitas "realidades alternativas". Uma de suas características mais acentuadas reside numa perda sensível de seus elos tradicionais com o compromisso da representação: ela já não admitiria que a "verdade" a ser captada pela obra de arte se ache em ocultação "exterior" – na realidade não–artística – esperando ser encontrada e receber uma tradução artística. Tal proposição poderia ser descrita.para usarmos dois outros clichês em voga para referir essa época: aquilo que o filósofo Yves Michaud define como uma situação de arte em estado gasoso11. flutuante. México: FCE. por meio de imagens e signos 11 MICHAUD. 2007 8 . As noções de permanência e durabilidade encontram-se falidas. em termos bem gerais. igualmente emblemático da experiência de visualidade difusa da presente era supermoderna ou pós-industrial . instabilidades e confusão. ou valores de qualquer tipo. na medida em que tende mais e mais a se expandir para todos os lados. No âmbito mais demarcado da teoria estética da contemporaneidade. como uma condição da arte em que importa menos o objeto em si do que a experiência fugidia. ela passa a se somar a seus conteúdos. do receptor. 13 DANTO. After the end of art. insinuante. de que toda referência desapareceu"12. parte de sua dimensão aurática. e em que a arte. Londres: Routledge. como postulado por Baudrillard. sobretudo se constatarmos que a própria estética "não mais se revelaria como uma propriedade essencial ou definidora da arte"13. Tradução livre de minha autoria. ou a "proximidade que manifesta uma distância". Essa perda ou mudança de referenciais no âmago da visualidade contemporânea certamente contribui de modo incisivo para acentuar uma percepção "gasosa" da realidade.) se refere a um mundo sem referência. Arthur C. voltada para o prazer – mas uma nova forma de prazer. e de outro. bem como à profusão de códigos específicos que passaram a ser requeridos para a efetivação desta experiência pela produção contemporânea. uma hedonista. o que é facilmente percebido ao menos desde Duchamp. E o modo como a experiência estética se dá no bojo desta arte é cada vez mais nebuloso: se o seu repertório aumenta. 12 In Baudrillard Live: selected interviews. na bela definição de Walter Benjamin. mas simulam – e a simulação. marcada pelo signo do cool. ou tem sua intensidade deslocada na experiência de fruição da arte contemporânea. teria perdido parte de seu poder de transformação. ed. A arte em estado gasoso apresentaria duas facetas ou tipos de "função": de um lado. mas sim seus modos de intervenção nas condutas artísticas. Pensa-se aqui. com práticas de lazer.. Princeton. a diversão.. 9 . "Proximidade" esta que parece perder força.que mediam esse processo e que não mais representam. enfim. que se dá em uma época em que as capacidades perceptivas humanas de base não mudaram. mas contaminada por temas e referências cada vez mais provenientes de universos em princípio a ela estranhos. no sentido de simbolizar uma realidade transcendente. em função do bombardeio de informações e estímulos visuais e subseqüente instâncias de "anestesiamento" a que nosso olhar vem sendo submetido. 1997. em certa medida. Uma arte ainda calcada na experiência e no sensitivo. Mike Gane. se vê reduzida na mesma proporção a capacidade de atenção e fruição do espectador diante da mesma. segundo Michaud. processo no qual essa arte. em uma arte que tenha a ver com o jogo. uma função expressiva cujo objetivo é demarcar identidades – inclusive suas próprias. ao menos no sentido – ou talvez este se apresente transmutado em outros graus de verificação. 1993. "(. e a própria instituição-arte perdeu. espera-se. um momento em que a arte certamente se volatiliza enquanto objeto. tem-se a impressão que vivemos num momento em que nunca se viu à disposição tanto aparato teórico especializado para se investigar o estatuto da própria condição da contemporaneidade – o ato de definir o que é “ser contemporâneo” -. É preciso construí-los como objetos teóricos". contexto que reforçaria. Trata-se. 1988. etc. como lembra Omar Calabrese14. Ao fim e ao cabo. Pode ser apenas uma questão de definir os modos de percebê-la e [re]interpretá-la. o que paradoxalmente tem conduzido seguidamente a diagnósticos elegantes mas nebulosos. a pertinência de conceitos como os que estimulam uma leitura da visualidade contemporânea pelas vias de certa volatilidade em sua experiência. de um postulado que no fim das contas mostra-se positivo em relação à produção artística da atualidade. mas que [ainda] permite uma compreensão hedonista da experiência estética – de natureza envolvente mas “flutuante” e instável. portanto. essas questões e teorias sugerem que vivemos num tempo em que os fenômenos. A idade neobarroca. como aqui se propôs. é porque reforça-se a impressão que habitamos cada vez mais um mundo em que os signos flutuam em busca de significados e os significados se deixam levar em busca dos signos. E se é difícil proceder a uma "objetividade imediata dos fatos". Conclusão Para encerrar. instigantes mas herméticos. Omar. "já não falam por si sós e pela evidência. talvez “nem tudo que é sólido desmanche no ar”: aquilo que paira no limbo imaterial que conforma boa parte da vida na sociedade contemporânea pode estar carregado de substância. 14 CALABRESE.O termo "estado gasoso" designaria assim um estágio determinado da evolução da cultura. apesar da “insustentável leveza do ser”. Lisboa: Edições 70. Por outro lado. 10 . BREA. Baudrillard Live: selected interviews. p. Berkeley: University of California Press. Erin. Yves. Reflections on the Roots and thePerspectives. 2001 MICHAUD. Londres: Tate Britain. Nicholas. La estetización difusa de las sociedades actuales y la muerte tecnológica del arte. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. KOEPNICK. CAUQUELIN. BUBNER. Pensamiento borroso – La nueva ciencia de la lógica borrosa. Rüdiger. Madrid: Aleph Pensamiento. “Escape attempts”. Lisboa: Edições 70. Lutz. São Paulo: Manole. GLOTHLIN. 2007 WEYER. DANTO. “Art. In: Six years: the dematerialization of art object from 1966 to 1972. Altermodern Manifesto.. “Media art and the limits of established ethics of restoration”.). Frankfrurt am Main: Suhrkamp. 143. 2009 CALABRESE. São Paulo: Martins Fontes. 1988. A idade neobarroca. Ästhetische Erfahrung. 1995 LIPOVETSKY. Gilles. Bart. Luis. El arte en estado gaseoso.] After the digital divide? New York: Camden House. 2005 LIPPARD. Barcelona: Crítica. In: Rebentisch. México: FCE. Londres: Routledge. progress”. Freqüentar os Incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea. Princeton. 2010 11 . in Theory and Practice in the Conservation of Modern and Contemporary Art. 1997. [orgs. 2009. 1989. Lucy. medium.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURRIAUD. Arthur C. Mike (org. Londres: Archetype Publications Ltd. 1997 GANE. Juliane. Cornelia. J. 1993 KOSKO. After the end of art. Anne. 2008. Omar.
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