Luís Cláudio FigueiredoTransferências, contratransferências e outras coisinhas mais ou Esquizoidia e narcisismo na clínica psicanalítica contemporânea ou A chamada pulsão de morte1 Para Chaim Samuel Katz e Flávio José de Lima Neces Os três títulos colocados como alternativas para o presente trabalho correspondem aos três aspectos focalizados. Em primeiro lugar, partindo-se da experiência clínica, sugerese uma concepção das “relações terapêuticas” em que se articulam diversas modalidades ou dimensões do vínculo: a transferência, a identificação projetiva e o enactment. Em seguida, propõe-se uma correlação entre as formas dominantes do vínculo e os adoecimentos psíquicos – o das psiconeuroses (neuroses de transferência), o dos adoecimentos narcísicos e o dos adoecimentos esquizóides –, acentuando-se a relevância destes dois últimos para a clínica contemporânea. Finalmente, a esquizoidia e o narcisismo são considerados no plano metapsicológico como expressões da compulsão à repetição comandada pela chamada pulsão de morte que é, ela mesma, revisitada e diferenciada em seus diversos aspectos: o do desligamento e auto-extinção, o da constituição e preservação do próprio in extremis e o da procura reiterada de um objeto primordial. > Palavras-chave: Esquizoidia, narcisismo, transferência, identificação projetiva, enactment, pulsão de morte. 1> As idéias apresentadas neste trabalho foram sendo elaboradas ao longo de diversas oportunidades durante o ano de 2002: na palestra de encerramento da Jornada da Formação Freudiana (junho, Rio de Janeiro), no VI Congresso de Psicopatologia Fundamental (setembro, Recife) e na palestra de abertura da jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (setembro, Belo Horizonte). A presente versão é inédita e se beneficiou dos comentários, críticas e revisões efetuadas gentilmente por Elisa Ulhoa Cintra, Miriam Uchitel e Zeferino Rocha, a quem agradeço; Pedro Henrique Bernardes Rondon colocou à nossa disposição toda a sua capacidade de leitor e editor criterioso, pelo que sou particularmente agradecido. A presente versão contou, finalmente, com a leitura, sugestões e críticas de Elisa Ulhoa Cintra, Charles Lang, Mauro Meiches, Nelson Coelho Júnior, Octávio de Souza, Paulo Carvalho Ribeiro, Pedro de Santi, Sidnei Cazeto e Vera Lúcia Blum, reunidos para a discussão do trabalho em novembro de 2002. pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 168, abr./2003 artigos> p. 58-81 >58 The three titles chosen to name this present paper correspond to its main subjects. First, I suggest that therapeutic relationships include different forms of linking: transference, projective identification, and enactment. Secondly, I refer to a relationship between predominant forms of linking and different forms of psychic pathologies: psychoneuroses (transference neuroses), narcissistic disorders, and schizoid diseases. Thirdly, schizoid and narcissistic disorders are considered expressions of the repetition compulsion ruled by the so-called death drive. The theory of the death drive is discussed in order to reveal its various facets, which include unbinding and self-extinction, constitution, self-preservation and the recurrent search for a primary object. > Key words: Schizoid disorders, narcissistic disorders, transference, projective identification, enactment, death instinct. ... o modo como o psicanalista se coloca diante-de (Gegen) também constitui a possibilidade do psicanalisar. (Formação Freudiana, 2002) pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 168, abr./2003 O termo “contratransferência” refere-se a uma dimensão fundamental do modo do analista colocar-se diante – ou, melhor dizendo, deixar-se colocar diante – do analisando e ser por ele afetado. Embora, no nosso entendimento, o termo não contemple todas as possibilidades conceituais necessárias para pensarmos as diversas posições do analista em um processo terapêutico, ele não pode, como se verá logo mais, ser descartado em uma compreensão do psicanalisar. Contudo, infelizmente, este termo também pode nos levar a um equívoco, o de supor que a posição do analista é apenas da ordem de uma resposta e de uma reação às transferências de que é efetivamente alvo por parte do analisando. Tentarei desenvolver neste trabalho a hipótese de que, aquém das contratransferências no sentido estrito, que são efetivamente respostas do analista às transferências do paciente e, nesta exata medida, um aspecto essencial da dinâmica do trabalho analítico – embora seja também uma fonte de impasses – há uma condição de possibilidade do psicanalisar – qualquer que seja a modalidade do trabalho clínico em curso – que se configura como uma contratransferência primordial, um deixar-se colocar diante do sofrimento antes mesmo de se saber do que e de quem se trata. Esta contratransferência primordial corresponde justamente à disponibilidade humana para funcionar como suporte de transferências e de outras modalidades de demandas afetivas e comportamentais profundas e primitivas, vindo a ser um deixar-se afetar e interpelar pelo sofrimento alheio no que tem de desmesurado e mesmo de incomensurável, não só desconhecido como incompreensível . Todo o psicanalisar, no que implica lidar com as transferências – e as outras coisinhas mais, que emergem e podem ser tratadas nestes processos – dependem, portanto, desta contratransferência primordial. O cultivo desta disposição subjetiva, provavelmente, é um as- artigos >59 como venho-a-ser como resposta a e responsabilidade pelo outro. Encontramos em alguns filósofos e psicanalistas algumas idéias aparentadas. que nos aponta para uma passividade radical na base da constituição subjetiva. antes de mais nada. ao que estamos chamando de contratransferência primordial. Quanto à natureza e origens desta contratransferência primordial. mais ainda. cabem algumas considerações. Uma segunda referência filosófica nos vem de Emmanuel Lévinas (1974). Não só dependo do outro para vir-a-ser eu. De qualquer forma. e de que é a partir desta condição que uma subjetividade se organiza. onde ele se configura e pode ser nomeado. propriedade do que tem em si mesmo seus princípios. que aqui fazemos nossa. este que me interpela desde sua própria condição de mortal e padecente. 168. Assim. presente.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. sugerimos que também seja universal e básica a nossa disposição a servir como suporte para as transferências alheias . como destinatário e depositário de seus afetos e como coadjuvante de suas encenações. 1909) que uma propensão ao estabelecimento de relações transferenciais faça parte do psiquismo humano em sua universalidade (sendo apenas mais acentuada entre os neuróticos). O filósofo Henry Maldiney (1991). Vale dizer. não apenas um objeto de seus cuidados desinteressados. em contrapartida. a idéia de contratransferência primordial pode ser mais facilmente inscrita no campo da teo- artigos >60 . e sua preservação ao longo do tratamento é também um dos elementos fundamentais de uma cura. A contratransferência primordial de que estamos falando teria algo desta qualidade. acordado e bem. n. Lembremo-nos. na forma de uma resposta à transferência. Assim como podemos supor (seguindo Ferenczi. com a ressalva importante que o outro em Laplanche padece não tanto de sua mortalidade como de sua condição de sujeito afetado pela própria sexualidade inconsciente e cindido. o que tanto acarreta uma vulnerabilidade extrema a toda sorte de abusos e traumatismos como./2003 pecto essencial na formação do analista. é a base da constituição do psiquismo. coloca no outro e nos seus impactos a origem an-árquica do sujeito. Sugerimos. com outras palavras. de Donald Winnicott (1962) dizendo que seus objetivos ao começar uma análise são manter-se vivo. na teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche. que esta disponibilidade esteja nas raízes de todos os processos de singularização. mantém-se a hipótese de que. por sinal. Esta passividade. é a de que é preciso admitir um nível de afetação pelo outro anterior à entrada deste outro em nosso mundo. mas se aproxima a esta concepção levinassiana. pelo que está fora do campo do que pode ser representado e interpretado. Creio que ele está se referindo. Embora ele trabalhe quase sempre a partir da experiência estética (mas também das situações extre- mas da loucura). Nossa contratransferência primordial não se confunde. nos fala da transpassibilidade – uma afetação pelo impossível. é algo que já está presente em um recém-nascido e é um dos aspectos da nossa condição humana de desamparo. por exemplo. um bebê é o suporte para as transferências de seus pais. sendo que a noção de anarquia deve ser entendida na estrita oposição à de aut-arquia. abr. anterior à própria separação entre passividade e atividade. a propósito. sua suposição. mas do vir-a-ser sujeito. mas de sobrevivência em uma condição de desamparo em que a dependência em relação ao ambiente é extrema e em que a manutenção dos “objetos” em bom estado e em bom funcionamento é essencial ao indivíduo. um começo de mim antes de Eu ter começado. anterior. há. principalmente. 2> Por exemplo. Há pais e mães. O préoriginal é a exposição traumática à alteridade. Para Searles. desde os primeiros anos e mesmo desde os primeiros meses de vida. nestes casos. antes mesmo de que se tenha constituído um Eu. suas intenções e suas defesas. entre as forças inatas mais poderosas que empurram o homem na direção de seus semelhantes. a inveja e a rivalidade nos filhos. mães narcisistas que atrelam seus bebês e filhos pequenos à própria necessidade de serem “cuidadas” por eles. seja por outros mecanismos de defesa mais primitivos e radicais. Em contrapartida. a contratransferência primordial é não só a condição do psicanalisar.ria psicanalítica como um aspecto atinente à constituição do psiquismo do sujeito. e essa nos parece ser uma dimensão decisiva do que estamos denominando de contratransferência primordial. 1973) nos propor a hipótese ousada de que . deprimida – de que nos fala Green (1983). os abusos pelos pais desta função contratransferencial primária dos filhos2 e. a incapacidade daqueles reconhecerem. Rigorosamente falando. seria como um concern pré-original. Ou seja. do existir como subjetividade. aliás. poderíamos supor que para estes indivíduos estaria dificultado ou in- artigos >61 . que reúnem os dois aspectos: exigem tudo dos filhos em termos de cuidados. mas se mostram não educáveis e incuráveis. está na base dos sofrimentos que fazem parte inevitável da constituição e funcionamento do psiquismo. 168. de uma forma ou de outra. Assim sendo. explorando a propensão daqueles tratarem a psicose de suas mães.. o que alimenta o ódio. a tendência essencialmente psicoterapêutica. pode estar na origem dos mais terríveis sofrimentos psíquicos. reunindo as propostas de Searles às de Winnicott. Não se trata de samaritanismo. à configuração de um próprio. que ficarão insatisfeitas. Trata-se. com seus atos. a abertura à alteridade da contratransferência primordial foi de alguma forma atacada e destruída ou teve de ser objeto de algum contra-investimento. no campo da clínica da psicanálise. pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. n. de uma recusa ou invalidação destas “tendências psicoterapêuticas”. No entanto. então. portanto. abr. Como se verá adiante./2003 Se pensarmos em termos winnicottianos. coube a Harold Searles em um de seus mais instigantes trabalhos (Searles. Recordemos que Lévinas nos remete ao âmbito do pré-original como sendo o do que expõe uma subjetividade a outra antes mesmo de haver um sujeito. seja pelo recalque.. admitirem e aceitarem a condição de serem “cuidados por seus bebês” – o que pode incluir tanto a educação como a cura de males físicos e mentais – figuram entre as mais importantes causas dos adoecimentos psíquicos. mesmo quando são bebês. não é necessário nem conveniente interpretar estes cuidados como emanando de alguma boa vontade intrínseca ao ser humano. efetivamente. bem como. É o caso da “mãe morta” – vale dizer. uma espécie de preocupação com o outro anterior à própria constituição do aparelho mental do indivíduo. pela via das formações reativas. ou. mesmo que aí também ne- nhum analisando seja propriamente “fácil”. mesmo que o paciente não melhore. ser cuidado pelo analista que. Apenas se diz que em uma análise padrão a contratransferência primordial não é atacada como ocorre em uma análise difícil. tiveram eles mesmos sérios problemas em sua constituição subjetiva no que concerne os abusos e desperdícios de sua contratransferência primordial. indivíduos que. Voltemos agora a nosso tema. em termos winnicottianos. até a aceitação da transferência como o ob- artigos 3> Deve ficar claro para o leitor que. naturalmente. desde que bem conduzido. pelos chamados “pacientes difíceis”. o trabalho analítico. o analista melhorará” (Caper.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. ou seja. ele mesmo. Um pouco de história Relembremos com a maior brevidade os passos decisivos da descoberta freudiana que vão desde a percepção da transferência como uma “falsa conexão” e como um problema a ser enfrentado e contornado na relação do paciente com o médico. p. 1995. Quando isso ocorre. desde que o analista se sinta satisfeito com o trabalho que realizou. No seu lugar. tende a alimentar e a enriquecer a contratransferência primordial. o analista ficará mais. Aqui. cabe refazer um certo trajeto bem conhecido de todos. Os maiores problemas na condução de um processo terapêutico surgem justamente quando algo da contratransferência primordial do analista parece ser atacado. abr. não se está sugerindo que a evolução clínica do paciente não importa. ao colocar “melhora” entre aspas e ao acentuar o caráter jocoso da frase de Caper. Nos dois casos estariam comprometendo bastante a possibilidade do paciente. e não menos. “uma das peculiaridades do trabalho de análise é que se o analista o fizer bem-feito. Nos casos da análise padrão. provavelmente. ele enriquece e consolida a posição do analista. 168. Mas se isso ocorrer. o que é proporcionado pela condução de uma análise padrão e que se torna tão mais espinhoso (ou quase impossível) quanto mais perturbado for o paciente. sensível ao sofrimento do analisando. a passagem do amor voraz e cruel (ruthless love) para a preocupação (concern) e para a verdadeira capacidade de reparação. Tentaremos fazê-lo da forma mais rápida e simples possível. o que se sugere é que o analista seja capaz de se manter na posição de analista apesar da ferida narcísica que sofre em decorrência da continuidade do sofrimento de seu paciente e da sua própria incapacidade de salvá-lo deste sofrimento. Vale dizer. na situação de análise.3 Mas antes de chegarmos a esta tese. se sentirá ameaçado em sua posição./2003 terditado o acesso ao concern que é próprio da passagem da posição esquizoparanóide para a posição depressiva. Creio que esta “melhora” do analista corresponda à possibilidade que uma psicanálise lhe oferece de elaboração e enriquecimento da sua contratransferência primordial. por seu turno. tais pacientes exigirão do terapeuta uma determinação e uma habilidade excepcionais para se preservar em suas reservas anímicas. ou operariam muito intensificadas assumindo a forma de reparações maníacas. Como afirma jocosamente Robert Caper em um texto que utilizaremos adiante. ao contrário. as “tendências psicoterapêuticas” precoces ou não operariam (interditadas pelo ódio e pela inveja). n. pode ser desenvolvida. >62 . 74). é o contrário do que resultaria de um fortalecimento do narcisismo patológico do terapeuta. se originam nas fraturas irremediáveis.). 1915. além mesmo destas repetições que assumem as formas de reedições. tanto no âmbito dos afetos como no das representações. 1920). Ao longo dos anos da prática clínica freudiana. as emoções. Mais precisamente. o que foi se impondo como objeto privilegiado de observação e análise são estas reedições dos velhos padrões impulsivos. não devêssemos incluir estas repetições no conceito de “transferência”. n. Ou seja. em grande medida. seja ela fora do setting analítico – acting out – ou dentro dele – acting in./2003 jeto essencial da análise (Freud. Ao menos no contexto do setting (mas também. No entanto. Além dos limites do rememorável. impõe-se. A reserva do analista. mais importantes que as recordações e as narrativas acerca do passado. idéias e atuações do paciente terão como alvo a figura do analista ou. os sentimentos. ódios. além dos limites do que pode ser lembrado. nome que dissimula o fato de que estas repetições correspondem ao mais pulsional das pulsões. 1914. a figura do analista tal como constituída na transferência. o que se repete na relação com o analista e se apresenta como objeto vivo e atual de análise e de elaboração. e defensivos. 168. à pulsionalidade propriamente dita em seu estado bruto de desligamento e em sua urgência à descarga (Freud.. Tanto os impulsos. mais propriamente. 1916-17). está o passado que só poderá de fato comparecer na análise sob a forma de uma revivência e de uma atuação. angústias. abr.) que isto só é parcialmente verdadeiro. entre outras funções.4> Sobre a conveniência de se incluir a tendência à descarga como uma qualidade essencial da chamada “pulsão de morte”. embora. nos impasses e nos fracassos desta história. como será enfatizado por Melanie Klein [1952] e seus seguidores). as que se produzem além do princípio de prazer e sob o império da chamada “pulsão de morte”.. Embora a tendência a “viver” e atuar. talvez.1912. como as representações e os afetos (amores. acionados e irão se expressar de forma mais ou menos óbvia e direta na relação com o analista que irá ser configurado segundo os modelos das figuras mais significativas do passado afetivo do paciente. a de proporcionar as condições para que se estabeleçam ao longo do tratamento estas montagens transferenciais. talvez pudésse- >63 . pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVI.. por razões que se irão expor adiante. emergem as repetições ainda mais radicais.4 Embora o próprio Freud inclua as repetições transferenciais entre as manifestações da pulsão de morte. sempre vá ser também entendida como um fenômeno de resistência – um dispositivo para evitar o sofrimento psíquico e o contato com as experiências precoces de maior conflito – percebe-se que. elas incidam sobre os processos re lacionais em uma análise e de alguma forma se originem na história passada do indivíduo. sua discrição e sua “neutralidade” têm. conforme os recursos e possibilidades de cada analisando. ver-se-á adiante (As desordens de caráter. fora dele.. em vez de recordar. assim. como as defesas que organizam a dimensão do infantil no psiquismo do analisando serão mobilizados. sem dúvida. se originem no que mais tarde denominarei de malogros na procura e no encontro de objetos primordiais. mais o processo normal de introjeção será acionado como forma de dirigir e procurar satisfazer pela via das reedições dos objetos arcaicos a energia libidinal (ou agressiva) sobrante e livre. seus objetos são remetidos ao inconsciente e cria-se uma quantidade de energia livre que precisa buscar novos alvos. Mas retornando ao fio da meada. porém mais ativa e imperiosa nos neuróticos. o que acarreta uma sobrecarga de afetos e fantasias em objetos que seriam mais bem considerados em suas propriedades meramente pragmáticas. os novos objetos. também ela universal. Repetições desta natureza são. como partes de uma realidade atual e presente. em um regime de funcionamento que permanece além (aquém) do princípio de prazer. como boa parte do mundo será constituída como objeto de transferência. Quando o recalcamento incide sobre as experiências mais primitivas e intensas de prazer. do trauma a um modo muito mais primitivo de operação que o de um psiquismo bem constituído. um duplo prejuízo. artigos >64 . Nestes casos. Em um de seus primeiros e mais elucidativos textos – “Transferência e introjeção”. ou que foi reduzido. São processos que ainda não contam com um aparelho psíquico suficientemente estruturado para que nele vigore o princípio de prazer. nos processos de constituição psíquica normais e neuróticos novos objetos de amor e de ódio são criados – e introjetados – à medida das necessidades impostas pelo recalcamento a uma mente que já funciona sob o regime do princípio de prazer e de sua forma modificada. constituem o analista segundo os modelos do passado e no âmbito de operação do princípio de prazer e do princípio de realidade. entre outros./2003 mos reservar o conceito de “transferência” para as repetições que se mostram sob a forma de reedições dos padrões infantis e inconscientes – libidinais ou agressivos – que. de 1909 – Ferenczi apresenta a tese de que o processo de introjeção em sua universalidade inclui a transferência. em termos de vida afetiva e sexual e em termos de adaptabilidade. justamente. as que atacam e põem à prova a contratransferência primordial do analista. por exemplo. radical e ”neurotizante” o processo de recalcamento. Em contrapartida. portanto. abr. Nesta medida. como o do neurótico. os processos de criação de novos objetos e de sublimação. barrados pelo excesso de repressão. pelo efeito. Mas esta distinção entre repetições transferenciais e repetições de outra ordem pode ser ajudada pelo recurso a algumas idéias de Ferenczi. em uma relação terapêutica. 168.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. Vale aqui uma pequena digressão. procuraríamos outros nomes para as repetições movidas pela pulsionalidade em estado puro. Aí se originam. Há. n. Quanto mais intenso. vale dizer. Eles são novos e velhos objetos simultaneamente. não só o indivíduo está efetivamente privado de inúmeras possibilidades de satisfação legítima para a expressão de seus impulsos e desejos. são reconhecidos em sua relativa diferença e especificidade. como princípio de realidade. procu- rando novos objetos que possam ocupar os lugares dos que foram vítimas do recalque. A introjeção é o processo pelo qual os objetos do mundo são incluídos nas esferas de interesses do eu como alvos substitutos de impulsos e afetos. embora moldados pelos velhos padrões. maior a propensão a transferir. É ela que confere ao analista o grande poder de intervir no psiquismo do paciente “desde dentro”. Ao contrário. Ferenczi (1924./2003 Ao longo de seus trabalhos iniciais sobre questões da técnica. uma atualização que deve mais à compulsão à repetição do que à procura substitutiva do prazer interditado pelo recalque. quanto mais o analista deve se haver com pacientes portadores do que. incrementando de modo ilimitado a propensão normal à introjeção e a procura de soluções de compromisso sintomáticas. Vale dizer. É assim que ele instaura a tradição clínica que elabora o conceito de “regressão terapêutica” que terá em Balint e em Winnicott seus maiores expoentes. 1930) também percebe que a importância da atualidade da relação com o analista em muitos casos transcende o âmbito das reedições no sentido estrito. de “relaxamento” ou “indulgência” – o “deixar rolar” do Nachgiebigkeit – e à neo-catarse como tentativas de acessar estes recantos profundos e mudos do psiquismo traumatizado. Os movimentos repetitivos podem então nos remeter a momentos da história passada que foram marcados por acontecimentos traumáticos ocorridos fora do âmbito do sentido e das fantasias de desejo e que nada devem ao processo de recalcamento no sentido próprio do termo. não sofrem de uma doença introjetiva. o analista é destituído do poder que o paciente neurótico normalmente lhe confere na transferência em sentido estrito. mais o trabalho de recuperação das lembranças recalcadas pela via das associações livres. No entanto.Na história do pensamento sobre a técnica. n. Ou bem neles se desenvolve um adoecimento projetivo – em que predominam fortes traços paranóides – ou bem o processo de introjeção é interrompido e convertido no que alguns autores (Abraham e Torok. Pacientes que repetem principalmente desta forma. Ferenczi enfatizará a importância desta propensão à introjeção e à transferência no tratamento psicanalítico da neurose. 1928. De qualquer forma. a análise da transferência veio a se tornar uma prática sistemática e decisiva nas elaborações de James Strachey. como um objeto incluído em suas esferas de interesses passionais e alvo de amores e ódios primitivos. mais precisamente. É o que o vai levar às propostas de elasticidade da técnica. no seu texto “The nature of the therapeutic action of the PsychoAnalysis” de 1933-34. ao contrário dos neuróticos. têm uma dificuldade enorme em introjetar novos objetos de amor e de ódio. Para estas formulações. Derivações do pensamento clínico sobre a transferência e seus impasses artigos >65 . Em acréscimo. 1987) vieram a chamar de “fantasia de incorporação”. mais tarde o discípulo Balint (1968) denominará de “falha básica”. embora possam estabelecer relações aparentemente muito intensas e passionais. 168. e exigentes com o analista. relatos de sonhos e interpretações cede espaço à atualização das experiências precoces na relação analítica. Strachey valia-se de seu bom conhecimento das obras de Freud e Ferenczi e de sua apreciação positiva da obra de pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. ou seja. é o que se reedita na relação com o analista que poderá ser observado e analisado como uma presentificação daquele passado que está na origem do adoecimento neurótico e inscrito em sua dinâmica. abr. Um conceito sugerido por Strachey me parece particularmente esclarecedor para compreendermos a transferência na relação terapêutica e fora dela. já está sendo. Uma forma de entendermos o alcance da proposta é relacionando-a à idéia winnicottiana de paradoxo quando aplicada ao objeto transicional. a abolição do superego. como o presente pode incidir sobre o passado. outro conceito fundamental do autor. Caper.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. desconcertando-o e ressignificando-o. n. gerando uma realidade de nova espécie. mas sem se confundir com nenhum destes pólos. Neste espaço. Nesta realidade. propiciando a introjeção do analista como superego normal e brando (realista). criam-se as condições para o exercício de seu poder. Segundo Strachey. tanto o passado irrompe no atual. um superego em “mangas de camisa”. chegam a sugerir que a meta da análise seria. Há um verdadeiro acontecimento quando a trama do tempo domesticado. A realidade assim constituída é essencialmente o lugar em que transcorre a análise padrão no tratamento da neurose. Este tanto é um elemento da fantasia na área da onipotência. 1995). Vale assinalar que é neste espaço que se pode constituir o uso da linguagem qua linguagem pois os símbolos são justamente o que pode mediar o subjetivo e o objetivo. seguindo nesta direção. É bem isso o que se passa quando se instalam e cultivam as transferências. ainda incipiente mas já muito inovadora no final da década de 1920. 168. É a partir destas condições que se pode entender a dinâmica e a eficácia das “interpretações mutativas”. convertendo-se em uma espécie de objeto transicional. Alguns autores (por exemplo. Winnicott (1962) o afirma claramente: o analista é tanto um objeto subjetivo como um suporte do princípio de realidade. os objetos são ao mesmo tempo inventados e descobertos e este é justamente o estatuto do analista na transferência. abr. o analista na transferência tem o estatuto de um “objeto externo da fantasia”. eventualmente. Segundo ele. quando se ampliam os horizontes para as relações transferenciais com sua ambigüidade e não-consistência características. e não artigos >66 . se entrelaçam sem grandes dificuldades para nossa compreensão as experiências de transferência. É nesta realidade precária e heterogênea do espaço da transferência que vigora uma dimensão da temporalidade complexa e não-consistente marcada pela coincidência e não coincidência simultâneas entre o passado subjetivo do indivíduo e a atualidade das suas relações de objeto. seja na forma de sugestão. (protetor/sedutor e persecutório). criando o presente fraturado em que se pode verificar uma propensão para o acontecimento. como algo que já incorpora a condição de um objeto “não-eu”. seja na de análise. quando se dá a projeção sobre o analista do superego arcaico do paciente. em parte. Uma interpretação mutativa é a que efetua o golpe da discriminação entre o analista fantasiado e o novo objeto que ele pode vir a ser e. linear e progressivo é desfeita e rompida e este rompimento é tão mais provável quanto mais aquela trama já traz em si mesma as marcas de uma desconstrução. incorporando dimensões de ambos. o brincar. o ato criativo e o relato do sonho. Nesta medida./2003 Melanie Klein. pois todos transitam neste espaço sui generis em que o subjetivo e o objetivo se acoplam sem coincidir. Importa. Em contraposição. sendo que o seu foco e a sua oportunidade são dados pelo ponto de emergência da angústia do paciente na relação transferencial. um caráter mais psicótico do que neurótico. neste momento.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. Ora. bem como. abr. por seu turno. conluios e resistências contratransferenciais que interditarão as interpretações destinadas a desfazer o conluio. Não entrarei no mérito do que diz Strachey sobre as outras formas de interpretação – não-mutativas – pois elas não têm a transferência como objeto. 168. porém. o esclarecimento dos mecanismos e origens históricas da neurose. este. aquilo mesmo que a torna apta à análise da neurose. muda de status e se converte em uma realidade alucinada pela dupla e a ser defendida pelo paciente e pelo analista com o recurso a mecanismos de defesa neuróticos e psicóticos. R. pensase a transferência como implicando a transferência de emoções. n. O conceito de “grupo de suposto básico”. mesmo que analista e analisando sejam predominantemente neuróticos. Na tradição kleiniana. Recordemos que em um grupo de suposto básico. Isso ocorre quando analista e paciente se unem para a defesa e manutenção de um conluio que tem. no jogo transferencial-contratransferencial. embora tenham sua força e eficácia nela baseada. elaborado por Bion (1961). Um outro passo notável. mas que. conceito desenvolvido posteriormente por Betty Joseph em 1985. é a própria condição essencial da relação terapêutica./2003 apenas seu abrandamento. permitirá que se constituam fusões superegóicas. é claro. Assim sendo. uma inspeção cuidadosa do campo contratransferencial é indispensável para a detecção do quando e do como propiciar uma interpretação mutativa. mas igualmente perigoso. A pre- artigos >67 . no desenvolvimento do pensamento clínico e técnico sobre a transferência deu-se com a proposta de Melanie Klein de tomar a transferência como situação total (Klein. este ponto de emergência da angústia deve ser acessado com acuidade pelo analista e nisso o que mais importa é sua sensibilidade contratransferencial. defesas e relações objetais do passado para o presente em um sentido bastante amplo. o que vem a ser a fonte dos maiores riscos de que o processo analítico se interrompa. e os processos analisados por Freud (1921) no seu exame da psicologia das massas ajudam Caper a esclarecer o que se passa no campo das transferências e contratransferências quando o analista se deixa capturar pelo que poderia ser um jogo ou um sonho compartilhado. Assim sendo. ao contrário do que ocorre em um grupo de trabalho. os membros se reúnem exclusivamente para manter o grupo e defendê-lo das forças externas ou internas de dissolução. Caper (1995) mostra que. Nada mais antagônico a essa modalidade de funcionamento grupal (ou dual) do que o efeito analítico e desconstrutivo que se espera das interpretações mutativas. por sinal. é exatamente isso que pode acarretar as maiores dificuldades para a elaboração e oferta de interpretações mutativas. se o paciente deve projetar seu superego sobre o analista. 1952). objetivo já bem explicitado por Strachey. realmente. caso introjete o superego arcaico do paciente e tenha seu próprio superego arcaico ativado (processos que são em parte inevitáveis). ressaltar que interpretações mutativas para Strachey não ocorrem contínua e freqüentemente. se mantêm narcisicamente entrelaçados. para colocar para fora as partes boas e ameaçadas de destruição no interior de um psiquismo muito perturbado pelo ódio. há artigos 5> Vale recordar.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. como a cisão. A repressão opera e a projeção a complementa. porém. porém. n. No segundo. pode ser interpretado como referido à relação transferencial e assim interpretado. 168.. ao contrário. principalmente quando este objeto é um ser humano. Além de suas funções defensivas. seja. casos em que a identificação projetiva tem apenas o status de uma fantasia e só comporta a dimensão defensiva. >68 . A distinção entre os processos estudados por Freud e Ferenczi e os estudados pelos kleinianos foi bem explicitada por Kernberg (1998) quando contrapõe. a idealização e a identificação projetiva. que pode ser um animal e mesmo um aspecto do ambiente inanimado. intervêm mecanismos de defesa mais primitivos. Além de ser uma fantasia e um mecanismo de defesa. a projeção em Freud à identificação projetiva em Melanie Klein. bem como às introjeções. com os quais o indivíduo estabelece relações narcisistas muito primitivas e resistentes à análise. implicou também algumas imprecisões. Isso pode ocorrer seja para colocar para fora as partes más e insuportáveis. por iniciativa de Paula Heimann (1950). em primeiro lugar. uma ampliação e uma ênfase no conceito de contratransferência: ele deixa oficialmente de ser apenas um obstáculo e uma ameaça para ser reconhecido como condição. ao longo de uma psicanálise. a rigor. embora não se es- gote necessariamente nisso. dá-se uma comunicação afetiva e inconsciente muito intensa e imediata entre o sujeito e o objeto que. por exemplo. Diz ele: Clinicamente. mesmo o que se passa fora de um setting analítico. que precedem ou colocam o recalcamento em segundo plano. Mais ainda. o recalcamento gera as condições mais propícias à formação de laços transferenciais. é que esta ampliação conceitual do par “transferência-contratransferência”. O que penso. uma fantasia por intermédio da qual partes do psiquismo do paciente são expelidas e colocadas sobre e dentro de seus objetos. que foram o de dar uma maior acuidade à escuta analítica e um maior alcance ao campo das interpretações mutativas. ela passa a ser vista como um processo que mobiliza efetivamente os afetos do “objeto”. ao lado de seus efeitos positivos. A esta ampliação do conceito de transferência correspondeu. No caso da identificação projetiva. objeto e instrumento da análise.5 Nestes casos. a projeção importa em atribuir a outro algo que está profundamente reprimido. a partir de Rosenfeld (1971) e de Bion (1962) foi se tornando consensual o reconhecimento de uma função comunicativa na identificação projetiva. A identificação projetiva é. forma-se uma confusão entre o sujeito e seus objetos de identificação projetiva. A mais importante delas foi a de reunir sob um mesmo conceito os processos estritamente transferenciais no sentido freudo-ferencziano e os estudados e nomeados por Melanie Klein e seus seguidores como identificação projetiva (Klein. a inveja e a culpa. 1946. 1955) No primeiro caso. contudo. entre outros.. abr./2003 missa é a de que tudo que se traz para uma sessão e tudo que nela emerge tem a relação com o analista como causa e como eixo. Em ambos os casos. Na década de 1970 Joseph Sandler (1976) chamou a atenção para esta dimensão comportamental da transferência: a do role enactment do paciente e a da role responsiveness requerida ao analista. (p. é a que envolve o desempenho de papéis pelo analista e pelo paciente. o paciente oferece e exige papéis (roles) a serem desempenhados pelo analista em processos de encenação tanto nos planos da realidade como na fantasia. sujeito a contra-identificações projetivas) artigos . eventualmente. Uma outra dimensão do fenômeno transferencial. as transformações envolvem a projeção de afetos que o psiquismo do paciente não pode conter. mais ainda. Transformações em movimentos rígidos são características de funcionamentos predominantemente neuróticos. 168. de que falaremos adiante. desde que bem utilizada e controlada. na transferência. No segundo. perca sentido a distinção proposta por Bion. de forma padronizada e regular seu campo de experiências e relações de objeto.. uma ausência de repressão madura. são características de funcionamentos predominantemente psicóticos e borderline. manutenção da empatia com o que é projetado. mesclando passado e presente. 21) >69 pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. n. Diga-se de passagem que também na tradição kleiniana esta dimensão de role enactment veio a ser reconhecida como um dos aspectos da identificação projetiva sempre que esta consegue efetivamente induzir no receptor (o analista. controlar e muito menos simbolizar e pensar sobre a relação com o analista e sobre ele. que veio mais tarde a ser reconhecida em termos mais condizentes com sua especificidade.. No primeiro caso. as transformações em alucinose./2003 Uma distinção desta natureza também está na base da diferença estabelecida por Bion (1965) entre as transformações em movimentos rígidos e as transformações projetivas. A role responsiveness seria uma dimensão importante da sensibilidade contratransferencial que. enquanto as transformações projetivas e. foi em um belo texto sobre a técnica ainda no final da década de 1920 que a psicanalista inglesa Ella Sharpe (1930) pela primeira vez acentuou o fato de que. a meu ver. os padrões do passado recalcado modelam as transformações operadas pelo paciente sobre o material oferecido pelas suas relações atuais com o analista. sobre o setting e mesmo sobre os seus arredores. abr. E isso parece indicar. configurando assim. Mesmo que este não chegue efetivamente a responder e a contracenar. se converteria em um instrumento importante na condução de uma análise. de forma indistinta. a disponibilidade afetiva para captar e. É claro que em uma relação transferencial podem emergir aspectos marcados pelas transformações projetivas sem que. Em conseqüência.uma combinação primitiva de projeção. a necessidade de controlar o objeto e uma tendência inconsciente para induzir o que é projetado sobre o outro ou dentro dele. no entanto. responder de forma incipiente às encenações do paciente. Trata-se de um psiquismo cuja capacidade de pensar e simbolizar está na verdade profundamente atrofiada. sua capacidade de configurar objetos e diferenciá-los está pouco desenvolvida e por isso há como que um esparrame de afetos sobre o analista. Até onde sei. seriam condições para o processo de análise caminhar. sobre tudo que o cerca e tudo com que ele pode ser associado. de parte a parte. nas relações transferenciais-contratransferenciais e nas interpretações que daí emergem. 1998). contém um poder de renovação e transformação (cf. abr. o uso que fazem das palavras pode ser bem peculiar. as ressignificações e ressubjetivações etc./2003 os afetos. o de “contratransferência”. às situações em que. Algumas dimensões ou características desta relação podem ser realçadas. que se o objeto da identificação projetiva for um animal de estimação ou uma parte inanimada do ambiente. as interpretações. É claro. estes diversos processos costumem combinar-se nas situações da clínica. Os conceitos de “transferência” e de “identificação projetiva” em parte enriqueceram-se. Apesar dos movimentos de repetição tenderem à rigidez. n. tende a confundir-se no plano conceitual com o de transferência e mesmo a subsumir a identificação projetiva. ou. Repondo a questão: Uma proposta para a discriminação entre tipos e/ ou dimensões da “relação terapêutica” 1) Proponho que se reserve o conceito de “transferência” ou “transformação em movimento rígido”. acreditamos que a manutenção das diferenças conceituais pode nos ser muito vantajosa. portanto. nem por isso vamos dizer que a identificação projetiva está ausente ou atenuada. por exemplo. o que corrobora a pertinência da distinção que estamos estabelecendo. o analista constitui-se para o paciente e por ele como objeto externo da fantasia. No entanto. A partir destes textos freudianos e kleinianos que nos chamaram a atenção para as encenações. É claro que os pacientes difíceis também são falantes. tal como ocorrera com a literatura sobre transferência e sobre identificação projetiva. Jacobs. mas não é essencial na caracterização da identificação projetiva (Bell. os insights. predomina a convicção entre os kleinianos de que a identificação projetiva pode estar ocorrendo sem que se manifestem estas dimensões de enactment. 2002.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. Isto implica reconhecer que a tendência a atuar a fantasia projetada ou a responder a ela pode ser freqüente. Novamente aqui. em alguns autores. e. Nela experimenta-se. como se verá adiante. mas em parte perderam seus contornos com a introdução e com o uso irrestrito do conceito de enactment que. 2001). e com base na obra de alguns autores americanos provenientes da tradição de uma interactional psychoanalysis . um espaço de sonho e um campo de jogo em que são possíveis as associações livres. há aqui um potencial de criação e os “jogos de palavras”. 168. mutativas ou não. os ganhos em termos de acuidade na escuta da transferência foram pagos com alguma imprecisão. a linguagem como linguagem e abre-se. Embora. As situações em que predominam a transferência e a fala como fala são aquelas em que se desenrola uma análise padrão – com os “pacientes fáceis” – e em que a contratransferência primordial constitutiva do psicanalisar é continuamente realimentada. correlativamente. 1991. No entanto. porém. acerca da dimensão criativa da transferência). os acontecimentos. artigos >70 . no caso de um humano. a literatura sobre enactment cresceu muito nas últimas décadas (cf. Rocha. Elman e Moskowitz. se este não se sentir de fato invadido pela fantasia do paciente. efetivamente. a postura e os comportamentos correspondentes e complementares. como se verá mais tarde. seja no plano das comunicações. O que se observa predominantemente nestes casos são as atuações. as transformações em alucinose em que a realidade é construída na medida das necessidades do paciente de forma a que este não chegue nem a experimentar a diferença. entonação. 168. Nas relações marcadas pela forte incidência de identificações projetivas. n. p. Como objeto da fantasia. Estas dimensões conseguem “transmitir” e provocar afetos de uma forma muito direta. continência e capacidade de rêverie. pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. 2000). mesmo quando estão originalmente associadas à fala. as identificações projetivas ou transformações projetivas. Há. como timbre. em estados mais radicais de psicotização. em última aná- artigos >71 . colorido semântico. a sua função primordial. Por isso. ou seja. processo no qual o analista se defende devolvendo as projeções que lhe foram endereçadas em estado bruto ou enviando as suas próprias sobre o paciente. do lado do analista esperaríamos encontrar identificações introjetivas. seja na ordem das defesas. metabolização simbólica. mas pura e simplesmente como objeto da fantasia. clima e atmos- fera do discurso (cf. o que efetivamente se observa tanto nos pacientes francamente psicóticos como na “psicose branca” dos chamados pacientes concretos. bem como de toda a presença do paciente em termos de expressões faciais e corporais. muito mais primitivas. vítima de uma verdadeira “desobjetalização”. elas são partes da vida psíquica e afetiva. de parte do paciente. eventualmente de comunicação. melodia. As palavras não representam. quando prevalece a identificação projetiva como defesa e como forma de comunicação. aspectos não-verbais da fala e da voz. Bass. Ogden.6 > “Na raiz mais primitiva da identificação projetiva está a tentativa de retornar ao objeto – tornar-se como que indiferenciado e sem mente para evitar toda a dor psíquica” (Joseph. o que confirma. o analista não se institui como objeto externo da fantasia. o que retomaremos adiante. (cf. 1998). Quaisquer que sejam as funções da identificação projetiva. as evacuações. estilo retórico. instalando estados subjetivos nos eventuais receptores cujas causas e razões dificilmente podem ser postas em palavras. são elementos decisivos nas operações das identificações projetivas e na sua recepção. Nesta medida. porém. Nesta medida. 1998 e Figueiredo. as falas não são linguagem como linguagem. é claro. ritmo. estrutura gramatical. a diferença do analista em relação ao paciente é negada e ele comparece como objeto narcísico (um self -objeto nos termos de Kohut) sendo. é uma recusa radical da diferença./2003 2) Já quando dominam. mas meios de efetuação destas operações de defesa. a possibilidade das identificações projetivas produzirem no analista contra-identificações projetivas.6 é a de negar a separação. são coisas. quando ocorre a identificação projetiva maciça nos pacientes narcisistas. destinatário e depositário de afetos sem mediação simbólica. verifica-se também uma ausência de transferência stricto sensu. vale dizer. em uma certa medida. 1987. conforme sublinha Betty Joseph (1987). a falta e a frustração. tal como sugere Green (2002). o que foi tão acentuado por Bion. as alucinações e os delírios que caracterizam as transformações projetivas e. 178). vale dizer. abr. 168.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. isso ocorre porque nestes casos. mesmo que toda a prudência seja necessária e. irritando-os e não produzindo transformações terapêuticas. Isso não significa uma ausência de vida interior. abr. Aqui. não estamos lidando com relações transferenciais. Se empreendermos aqui um breve retorno a Ferenczi (1909) assumindo que a primeira relação objetal já implica uma transferência – no caso. Creio que todas as considerações de Kohut (por exemplo. Kohut 1968) sobre as chamadas “transferências narcisistas” (termo que teríamos preferido evitar para não criar confusão) com self-objetos especulares e idealizados podem nos ser muito úteis no acompa- nhamento destes casos. sem mediação simbólica. mas. Provavelmente. Nestes casos também. pois não se constituiu um espaço potencial no qual o subjetivo e o objetivo. Ao artigos >72 . mas existe como objeto externo com o qual uma parte do paciente “interage” continuamente nos planos inconsciente e consciente para produzir efeitos e manter distâncias (controlar)./2003 lise. o uso das formas mais primitivas da comunicação emocional está interditado. o eu e os outros possam se encontrar e se incorporar. um equívoco técnico decorrente de uma falha na conceituação do que se passa na relação terapêutica. espera-se e requer-se do analista alguma disponibilidade para os counterenactments. como tantos pacientes falso self – não deve nos enganar quanto ao nível de funcionamento psíquico do indivíduo. insuficiente. As encenações contínuas e a exigência de contra-encenações são características dos pacientes esquizóides afetados pela falha básica (Balint). a rigor. “Interpretações da transferência”. 3) Finalmente. quase sempre. é claro. A capacidade de sonhar e brincar está seriamente afetada. mas sim com transformações projetivas e identificações projetivas maciças ou transformações em alucinose. para lidar com estas situações. a objetos transicionais. portadores do falso self (Winnicott). de fato. o analista não é constituído como objeto externo da fantasia em um espaço de jogo. de vida de fantasia. bem como. a transferência da experiência auto-erótica sobre o primeiro objeto de amor e de ódio –. Igualmente. os conceitos de “continência” e de “rêverie” criados por Bion para descrever esta instalação primária de um “aparelho para pensar”. traumatizados e vítimas do que Shengold (1999) chamou de soul murder. paradoxalmente. Cabe assinalar que muitos analistas kleinianos vieram a admitir o fato de que “interpretações da transferência” com pacientes muito narcisistas são contraproducentes e ineficazes. a posição de Freud. transformações em movimentos rígidos. portanto. quando predominam os “enactments”. Para tratá-los. não seriam apenas pouco oportunas nestas circunstâncias. n. novamente. o recurso à fala – e há pacientes que abusam dos enactments e são extremamente bem articulados no plano verbal. o analista deve ser capaz de assisti-los no que pode ser concebido como a procura primordial de um objeto apto a propiciar a transição oferecendo ao paciente o apoio (holding) e um aparelho para a metabolização – ou simbolização – de suas sensações e impulsos. poderíamos sugerir que estes pacientes ainda estão contínua e repetidamente tentando a passagem do auto-erotismo ao amor objetal e nela fracassando. o que é. conta-me uma seqüência de sonhos. Se diante do paciente que abusa de identificações projetivas. cumprem bem este objetivo. Estes ficam sob controle. ausência e presença se sobreporem e coincidirem sem coincidência. escondem uma real ausência afetiva: trata-se da quase total inacessibilidade do mundo interno das fantasias e afetos nos pacientes “fora de alcance” (cf. 168. ao modo de um paradoxo. abr. uma posição de antemão fadada ao fracasso neste caso. proteger-se de uma verdadeira separação. E neste jogo de esconde-esconde pode decorrer toda uma sessão. O que. como a me dizer que sua vida interior é muito densa a ponto de ser impenetrável. nesta modalidade de recusa da separação. porém. recusa-se simultaneamente a fusão com os objetos. e isto é o que transcorre no plano inconsciente do enactment . que não avança. 1975). levada inclusive a extremos. mas como externos. também assim. a dificuldade para o analista é a de ter alguma eficácia como objeto externo diferenciado. É certo que também as fantasias atuadas dos pacientes narcisistas requerem uma interpretação de novo tipo. aqui a dificuldade é a de ocupar alguma posição como objeto interno no âmbito da fantasia. No entanto. ou mesmo fases inteiras do trabalho terapêutico. o esquizóide aceita a diferença. trazendo-o à consciência. Enquanto o paciente narcisista nega a diferença e a separação. Apenas como exemplo: um paciente esquizóide quando está particularmente retraído chega à sessão e. ou seja. em um arremedo do que seria uma sessão de análise (uma encenação de “análise”). mas também não se interrompe. mas forma um sistema fechado e excludente. que continuam povoando a agitando a mente do paciente esquizóide. Ele os apresenta como totalmente enigmáticos e não consegue oferecer nem uma única associação. um aparelho cujo funcionamento deixa de fora os objetos do mundo real e compartilhado. muito mais apta a conter e a simbolizar os afetos do que propriamente ter acesso ao recalcado e a interpretálo.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. na área de onipotência. contudo. Nos casos dos pacientes esquizóides. Os objetos deste mundo exterior precisam ser mantidos sob controle e as encenações que impõem ao analista um papel e nele o tentam fixar. como ocorre na transferência. precisa ser continuamente reconhecido pelo analista é que estas encenações de presença. para controlar o diferente e./2003 contrário. o que nos remete a Fairbairn (1958) e seu conceito de closed system. por sinal. ela pode existir e ser muito poderosa. ele me atribui e me fixa na posição do “analista decifrador de sonhos”. Joseph. (ou seja. sem se confundirem com os objetos internos maus. em que o paciente ocupa uma porção muito efetiva na “realidade” e chama o analista para ela de forma imperiosa e controladora. ao menos na aparência. em acréscimo. os limites da fala interpretativa podem ser maio- artigos >73 . sedutores e persecutórios. Daí a necessidade tão bem percebida e teorizada por Winnicott de reconhecer nestes casos os limites da interpretação. encenando-se aí formas excessivas de presentificação). Há uma cisão entre a parte presente na encenação e a ausente – afetos enclausurados na fantasia e em estado de congelamento (Winnicott) – em vez de. inclusive porque não se trata efetivamente de análise o que ele está me propondo. n. e o valor diagnóstico destas modalidades de comunicação e relação terapêutica. na interseção dos adoecimentos narcisis- artigos >74 . n. como. para as comunicações entre suas partes dissociadas. as formas brandas. muitas vezes. igualmente. pois venho observando que os efeitos dos chamados antidepressivos talvez variem em função da qualidade e da natureza da “depressão” a ser tratada. O que se observa em geral são estados de retraimento. portanto. diante dos fracassos e perdas irremediáveis. rigidez. em boa educação e polidez). como nos aponta Bion (1959). deve ter indicado a importância que atribuo aos processos de identificação projetiva e de “enactment” na clínica contemporânea. muitas vezes. espero. No outro pólo. a serviço do manejo da regressão e da instalação da confiança como passos preliminares para o descongelamento afetivo. a depressão esquizóide. com a alteridade externa. a projeção paranóide desenfreada. em que. O inconsciente parece emudecido. identifico um pólo de adoecimento esquizóide com a ênfase nas separações. de outro. com o objetivo de manutenção da onipotência infantil pela via da imersão fusional. mediações e trocas. Retomando brevemente. inclusive em termos medicamentosos. com o objetivo de manutenção da onipotência infantil pela via da auto-suficiência. a fúria destrutiva como reação às feridas narcísicas e. creio que as interpretações podem ocorrer com a função de holding verbal. uma espécie de auto-anestesiamento. para a superação das cisões e dissociações. pois não faz sentido a tarefa de interpretar comportamentos dissociados de fantasias e afetos congelados. 2000). normais e saudáveis do contato afetivo pela via das identificações projetivas foram invalidadas. Trata-se. como venho sugerindo em diversos trabalhos (cf. é como se o aparelho psíquico não se houvesse “fechado” e constituído em termos de barreiras de contato capazes de produzir tanto diferenças como. na negação da diferença. para o contato com o mundo dos afetos e das fantasias na regressão e para a instalação subseqüente da capacidade do sonho e do espaço de jogo. Este fechamento é. casos. gerando freqüentemente os casos de pseudomaturidade. Aqui cabe uma pequena observação lateral: dada a proliferação atual do discurso acerca e dos procedimentos de controle da chamada “depressão”. em que a incorporação traumática dos maus obje- tos “entupiu” os canais de comunicação. No entanto. de natureza quase exclusivamente defensiva: muito pouco de Eros está operando. em poucas palavras. Figueiredo. acho relevante chamar a atenção para as diferenças entre. a melancolia. Creio que esta distinção deveria ser mais considerada. abr. cisões e dissociações. intolerância (disfarçada. na ausência de limites. a do tédio e da auto-anestesia. de um aparelho psíquico excessivamente fechado tanto para as comunicações com o mundo externo. São casos em que o processo de introjeção foi obstruído. de um lado. na ausência de barreiras. a depressão narcísica e melancólica e. uma depressão de caráter autoprotetivo. também. temos o adoecimento narcísico com a ênfase na unidade. portanto. 4) Tudo o que foi dito até aqui. 168./2003 res. Nestes casos.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. Finalmente. senso de futilidade e tédio e. O que observamos em geral é a voracidade e a impaciência (em relação ao self-objeto especular e ao idealizado). Sugerimos como primeira hipótese que a repetição. vale dizer. As desordens do caráter (patologias do self) e três hipóteses sobre a chamada pulsão de morte pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. quando estas mesmas funções estiverem internalizadas. isto é. encontramos. embora não sejam as únicas. n. dos afetos e da linguagem de formas distintas do que se costuma encontrar nas psiconeuroses. Mais tarde. da pulsão em busca de descarga a qualquer preço por não ter encontrado nos objetos primários o apoio (holding) e a continência para o exercício das operações mais básicas de mediação./2003 O campo acima circunscrito é. principalmente. A crise da mediação simbólica. ligação e separação.tas e esquizóides. a pulsionalidade ela mesma aflorando. com suas angústias e defesas características e. Vale considerar. seja na constituição de um aparelho psíquico capaz de mediação interna. como será sugerido adiante. Isso quer dizer também que nem sempre é a transferência no sentido estrito que teremos como objeto de análise e manejo. por assim dizer. Neles. o símbolo como mediador inter e intrapsíquico – mediando entre corpo e mente. são as que permitem o efetivo desenvolvimento das funções simbólicas e da linguagem. seja na formação de laços sociais. Nestes distúrbios. grosso modo. abr. a crise da capacidade de ligação. entre afetos e sentido e entre um e outro. Como se disse antes. Estas operações. tanto nas identificações projetivas maciças como nos enactments contínuos. que estas oscilações podem ser tão rápidas e freqüentes que o analista se verá quase que simultaneamente engolfado e excluído diante da vida mental do paciente. o das desordens do caráter no qual as psicopatologias dispõem do corpo. Chegando a este ponto de nossa trajetória. corresponde a manifestações da chamada “pulsão de morte”. quando a pulsão não encontra em seus objetos a capacidade de exercerem as funções primárias que são as bases de todos os processos artigos >75 . está em crise. 168. com as oscilações abruptas entre os pólos esquizóide e narcisista. O que estamos sugerindo é que esta pulsionalidade só se manifesta de forma nua e crua (sem ligação e sem representação possível). encontramos o paciente borderline. seus comportamentos e processos. não é a condição de falante que garante que é de linguagem que se trata quando um paciente abre a boca. também. o símbolo como instrumento da Bindung em todas as suas dimensões. efetuadas no início da vida pelos “objetos” que se dispõem a integrar os circuitos pulsionais. podemos ensaiar uma compreensão multifacetada destas manifestações da compulsão à repetição. Isso é o que teria ficado faltando nos pacientes com adoecimentos narcisistas e esquizóides significativos. sempre lembrando que a chamada “pulsão de morte” já era identificada por Freud como o que de mais pulsional há na pulsão. 2002). (Green. de ligação e diferenciação é o que vai caracterizar a operação do psiquismo em um regime além ou aquém do princípio de prazer em que as funções de desligamento e desobjetalização operam com todo vigor e são as mais evidentes na compulsão à repetição. a dependência primária em relação aos objetos poderá ser atenuada sem que o psiquismo se veja lançado no modo de funcionamento mental que opera além do princípio de prazer. O mesmo fazem os pacientes com seus terapeutas. conforme nos ensina Bion (1959). Onde não se admite diferença. seja artigos >76 . 168. No entanto – e esta é nossa segunda hipótese – não se deve perder de vista o fato de que. aos afetos (-L e -H) e ao conhecimento (-K). mas é. vamos à terceira hipótese: se nas operações da pulsão de morte e nas repetições que se dão além do princípio de prazer há. que se entrega à nãovida com extrema facilidade). as condições para a manifestação de Eros e para a vigência dos princípios de prazer e de realidade. “ataque aos elos de ligação”. n. ainda assim. Bebês. Portanto. nas repetições ainda se encontra uma vitalidade profunda. podem provocar e disparar as forças de descarga e do desligamento. 1983). constituição do próprio . uma vida in extremis. É o contrário do que se passa. uma auto-afirmação no limite. a destruição parcial ou total dos objetos (função desobjetalizante) e a própria morte (como na “criança mal acolhida” descrita por Ferenczi [1929]. mas sempre) – é o que o leva desde muito cedo a precisar cuidar de seus “objetos – curando-os e mesmo educando-os – para que eles possam assumir as funções decisivas na sua constituição psíquica e física”. nem sujeito nem objeto se constituem e o paradoxal é que seja neste nível que o próprio deva se afirmar. pode ser entendida como “narcisismo de morte” (Green. É claro que “a afirmação do mesmo à revelia do outro” passa pela destruição do outro – e as descargas têm também este sentido. em que predomina a apatia. Assim sendo. mesmo quando. podem conduzi-la às ligações ou. pois ela seria experimentada como desintegração. e já é o suficiente. É só então que a tendência à descarga e à desobjetalização vem à tona. além de serem formas de redução da tensão – sem que a desobjetalização seja a finalidade última do processo. a segurá-los e a contê-los. mesmo quando reduzida à pulsionalidade mais primitiva. nem liga nem desliga. São os objetos primários que. o psiquismo parece preferir o desligamento. na síndrome do hospitalismo descrita por Spitz (1965). a testemunha de uma procura de afirmação do mesmo à revelia do outro. Finalmente. as pulsões pulsam. A dependência do indivíduo em relação ao ambiente – o extremo desamparo do indivíduo humano (não só no início da vida. abr./2003 de ligação e. a rigor. Quando isso não é possível. portanto. nem eu nem outro. A pulsionalidade enquanto tal.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. diante das falhas ambientais precoces. por sua ausência ou por suas insuficiências. desesperada) na procura de um objeto vivo e saudável e na restauração dos objetos danificados ou mortos. narcisismo. e crianças ajudam os pais a serem pais e mães a serem mães. a repetição é também. tendemos a concordar com Fairbairn (1958) e também com Green (2000) que vêem na chamada “pulsão de morte” uma espécie de malogro da procura de objeto pela pulsão. certamente. há um próprio que se constitui na pura repetição do mesmo. No que pode aparecer apenas como auto-aniquilamento. sem que alguma diferença possa ser admitida. há também aí a insistência da vida e mesmo a exacerbação daquela “tendência psicoterapêutica” que Searles identificava em seus pacientes graves e que pode ser agora reconhecida em sua verdadeira natureza: é a repetição como insistência (muitas vezes. por exemplo. interceptando esta pulsionalidade. foi a grande lição que (intuitivamente) nos legou Ferenczi em seus últimos textos (Ferenczi. Por isso. desde este vértice. 2002). é preciso deixar-se curar por estes pacientes para que eles possam ser minimamente cuidados.7> É nesta direção que nos parece ir a interpretação de Octavio Souza sobre certos efeitos do consumo de drogas. abr. ao menos parcialmente. E as remissões a Ferenczi não são casuais neste momento. antes de mais nada. Talvez possamos. focalizando as situações em que elas produzem um movimento regressivo nas relações objetais e favorecem o restabelecimento de formas mais primitivas de relação com o ambiente (Souza. aliás. Descobrir a vida pulsante nos estados de quase-morte. A compulsão à repetição. (3) uma reiterada procura do objeto primordial. entender a desobjetalização como uma tentativa canhestra de dissolução da “objetalidade” dos objetos para que os aspectos do ambiente capazes de proporcionar holding e continência possam ser recuperados em sua dimensão pré-objetal. creio eu. como. e assim por diante. 1999). em vez disso. 168. Foi das leituras cruzadas de Além do princípio de prazer e de Thalassa (Figueiredo. justamente. 1999). perceber a dialética entre desobjetalização e restauração do “objeto” primordial. O instinto de morte. por formação reativa. e não apenas isso. que pude chegar a propor esta concepção da chamada “pulsão de morte”. condição na qual estas funções podem ser efetivamente exercidas. Mas atenção: nossas três hipóteses não devem ser tomadas como alternativas mutuamente exclusivas. Dizia ele: “Nada além de instintos de vida. a desobjetalização pode ser entendida. eventualmente. ao contrário. como. no sentido estrito. de sua fúria curativa. Eles nos ensinam e curam para que possamos curá-los.. como sugere Searles. como entrelaçadas segundo a lógica da suplementaridade (Figueiredo. De sorte que o termo “pulsão de morte” acaba se revelando bem pouco adequado e muito restritivo para dar conta de tudo que está implicado – ainda que de forma contraditória – nos processos de repetição compulsiva. mas. inclusive curá-los. ódio ou./2003 porque se trata de objetos incuráveis e não educáveis. um erro (Pessimista)”. com sua ênfase na capacidade de sobrevivência do artigos >77 . pela (1) destruição das diferenças e dissolução de si e do outro. como a destruição do objeto. comandada pela chamada pulsão de morte (1) reflete não só a tendência à descarga e ao zero de tensão. pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. destinada a reconduzi-lo à condição de self objeto. seja porque a capacidade de cuidado do bebê ou do paciente não é reconhecida. uma procura que passa. a conclusão a que chegara Ferenczi em uma nota recentemente descoberta. pois. de reparadores maníacos. (2) uma afirmação e mesmo uma preservação in extremis do próprio. É. em vez disso.7 Enfim. reconhecer nos estados-limite uma preservação paradoxal da vida. 1932-33/ 1985). A clínica winnicottiana com os pacientes esquizóides parece-me ser a grande herdeira desta tradição. n. pela via da destruição das diferenças e da dissolução de si e do outro. estes se fixarão patologicamente nas posições de inveja. três grandes obstáculos ao processo terapêutico. será apenas na condição de objetos vivificados ou ressuscitados por eles que poderemos tratá-los. fecundadas pelas observações clínicas.. como o controle puro e simples da mente alheia: podem ser usados para matar e para morrer. como no caso dos pacientes com “pensamento operatório” e psicossomáticos (cf. vir a sofrer um ataque violento seja pela via da fúria narcisista. 2001. não há dúvidas de que se trata de pacientes difíceis. Mas também nos deparamos. reconhecendo a dimensão da descarga. que engloba os adoecimentos narcisistas e os esquizóides. Bion (1963) com sua Grade nos ensinou a distinguir entre o grau de elaboração de um pensamento e a modalidade funcional de seu uso. logo em seguida. Encontramos tanto em Ferenczi como em Winnicott um contraponto importante à ênfase na destrutividade e no ataque aos elos de ligação que tanto marcam os pensamentos de Klein e Bion. sem que se caia. sugiro como hipótese a vantagem de compreendermos estes casos a partir do paradigma da esquizoidia. ou muito perniciosas nos planos intra e interpsíquico. por exemplo. mas também a insistência da vida. seja a do congelamento afetivo esquizóide. embora continuem também servindo para manter a vida nos extremos e nos limites. Símbolos muito sofisticados podem ser usados para tarefas muito pouco nobres. em que se consuma a destruição. com sua mortífera estabilidade (cf. 1998) do que do narcisista. nas pegadas de Ferenczi. e quanto a isso não parece haver dúvidas.pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. de uma patologia do self . Esta concepção menos “pessimista” da pulsionalidade que aqui estamos elaborando. posto que se trata. nem mesmo em estado de dissociação e enquistada. Talvez sejam estes exemplos radicais de esquizoidia. O trágico em certas repetições comandadas pela chamada “pulsão de morte” é justamente o fato de que os três pólos ou direções se articulam e podem se alternar sem uma real possibilidade de transformação. por outro lado. cabe aqui uma pequena observação de cautela. penso que os psicossomáticos se aproximam muito mais da descrição do paciente esquizóide. Um objeto primordial. Bromberg. dores e amores exaltados. abre-se um horizonte clínico muito mais promissor. Na clínica psicanalítica contemporânea. com os “maus usos dos símbolos” nos pacientes narcisistas e esquizóides em geral. que articula a tradição da escola psicossomática de Paris com a psicanálise de André Green). 168. Por isso. pois. em um otimismo fácil. Contudo. como a evacuação. Creio que ao conceber a chamada “pulsão de morte” pelos três vértices acima mencionados. artigos >78 . seja pela via do desprezo esquizóide. não nos deve iludir quanto à real dificuldade destes processos terapêuticos. n. Nesta condição. a do caráter mortífero do narcisismo. uma vida afetiva e de fantasia. vamos encontrar áreas reconhecidas como de ausência do pleno funcionamento dos dispositivos simb ólicos. seja a da dissolução e da turbulência narcisista. abr. com grande freqüência na clínica contemporânea. em que prevalece o motivo da auto-suficiência. tão sofridamente procurado e eventualmente encontrado na figura do analista pode./2003 analista às vicissitudes do processo que a análise deflagra e tem como responsabilidade própria sustentar quando se depara com indivíduos que até este momento se mantiveram vivos na mais absoluta precariedade. com suas fúrias. embora em tais pacientes pareça mesmo não haver. Smadja. tão facilmente observado na clínica. 2001). em todos estes casos verificamos e sentimos na pele e na alma os ataques à função analítica. afetos e manifestações corporais. nossa capacidade de ser afetado e interpelado pelo sofrimento. n. as instituições e a família oferecem hoje em dia para proporcionar aos indivíduos este milagroso encontro da pulsão com os objetos primordiais. se conseguirmos preservar e oferecer esta condição em meio às vicissitudes e tempestades de uma análise difícil. Uma cultura do traumático. a proliferação de “objetos” excitantes e calmantes (entre os quais. Sugerimos que se considere a precariedade dos modos que a sociedade. Mas aí reside. cada vez mais repleto de sexo e violência. nossa capacidade de pensar. de um soul murder. o que de mais precioso podemos oferecer e. Nesta reserva de alma residem nossas teorias. de que as identificações projetivas e os enactments podem ser entendidos como dimensões colaterais da transferência. É./2003 Depois desta breve tentativa de discriminar as modalidades de relações terapêuticas em que corpo. É sempre bom que o analista cultive sua escuta e monitore suas intervenções levando em conta este conjunto de falas. Finalizando pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. e menos regido por Eros. uma talking cure. de forma apenas sugestiva. sendo a psicanálise. simbolizar e sonhar. Sofremos como que ataques às reservas (Figueiredo. as drogas) dá o testemunho pelo avesso da ausência a que estamos aludindo. É bem possível que nestas ocasiões o analista sinta-se como uma vítima. 2000a). ele mesmo. ou ainda. mas não só. ameaças à contratransferência primordial: dificuldades imensas para a preservação e reposição da contratransferência primordial que pode. o que é o característico das neuroses – cabem alguns assinalamentos. neste momento. 168. ser concebida como uma “reserva de alma”. 1992). antes de mais nada. Retomando o que dissemos na abertura. quando identificações projetivas e enactments mostram-se alternados ou simultâneos em pacientes borderline. portanto. Seja quando as dimensões colaterais são muito fortes. afeto e linguagem ocupam posições muito diferentes. Mas é preciso ir além: quando as identificações projetivas e os enactments assumem uma certa proeminência. 1997). gerando o que muitas vezes entendemos como “transferências intensas” – com a projeção de superego arcaico sobre o analista em neuroses de transferência graves – seja quando as identificações projetivas são maciças em pacientes narcisistas e os enactments são contínuos em pacientes esquizóides. ou à sua linguagem (Fédida. Em contrapartida. nossos desejos. efetuar separações. capazes de holding e continência. por exemplo. como disse Caper. falar. o que é a situação mais difícil. à mente própria do analista (Caper. podemos sugerir que são. marcadas pelo não-encontro dos objetos em suas funções básicas – mais do que pela perda dos objetos de satisfação. fundamentalmente. afinal de contas. eles po- dem funcionar como obstruções à transferência stricto sensu. mesmo artigos >79 .Quanto à incidência na contemporaneidade destas patologias do self. Figueiredo. Tratase de um universo cultural cada vez mais repleto de estímulos e cada vez menos apto a fazer ligação. mediar e dar sentido (cf. abr. convém reafirmar o fato. Corpo. P. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. BION. 2000.C. 1993. afeto e linguagem. (1912). _____ (1915). 605.III. Op. W.que o paciente não melhore. ao menos. 1998. 1967. N e Torok. 1995. Essays on clinical process. M. (1995). _____ (1928). 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Creio que se formos capazes de reconhecer o triplo sentido disto que. Experiências com grupos. São Paulo: Martins Fontes. L. _____ Modernidade. abr. 2001. _____ (1914). N. procurei transmitir a vocês como matéria para pensar. São Paulo: Escuta. Sobre la dinâmica de la transferencia. B. Nome. A falha básica. A linguagem na situação analítica. In: Obras Completas – IV. (1909). NJ. 1990. cit. Sobre a dificuldade de fazer uma interpretação mutativa. Toward a pulsional > revista de psicanálise > ano XVI. e PLASTINO. _____ (1924). R. P. 32. Attacks on linking. 1992. p. São Paulo: Escuta. repetir y elaborar. Selected papers of W. S. 1985. Op. In: Tendo mente própria. A casca e o núcleo. 1991. _____ Transformations . 61-87.C. In: BEZERRA JÚNIOR. On the nature and aims of Psychoanalysis. _____ Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. C. Perspectivas da técnica em psicanálise. trauma e dissociação. Diário Clínico. Referências ABRAHAM. Tendo mente própria. Hillsdale. 2000a. 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Report "Transferências, contratransferências e outras coisinhas mais"