Trabalho Direito da Cultura

March 23, 2018 | Author: hugo_mspf | Category: Cultural Heritage, Constitution, State (Polity), Statutory Law, Unesco


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Universidade Católica Portuguesa Faculdade de DireitoDireito da Cultura Regente: Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva O património cultural: a protecção portuguesa e internacional 20/01/11 Trabalho realizado por: Hugo Ferreira – 140108003 1 Sofia Moiteiro – 140108006  Introdução 1- Noção e âmbito de direito do património cultural 1.1– Património cultural e património natural 1.2 – Natureza jurídica do património cultural 1.3 – Ideia de direito do património cultural 2- Ordenamento Jurídico do património cultural 2.1 – Breve referência à evolução histórica 2.2 – O quadro constitucional 2.2.1 – O património cultural na constituição do indivíduo 2.2.2 – O património cultural na constituição da sociedade 2.2.3 – O património cultural na constituição do Estado 2.2.4 – Os princípios gerais do direito do património cultural 2.2.5 – Jurisprudência Constitucional 2.3 – O quadro do direito internacional 2.3.1 – A Concordata com a Santa Sé 2.3.2 – As Convenções da Unesco 2.3.2.1 – Convenção de Haia 2.3.2.2 – Convenção de Paris 2.3.2.3 – Convenção para a Protecção do Património Cultural e Natural 2.3.2.4 – Convenção para a Protecção do Património Cultural Subaquático 2.3.2.5 – Convenção para a Protecção do Património Cultural Imaterial 2.3.3 – Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar 2.3.4 – A Convenção da Unidroit 2.3.5 – As Convenções do Conselho da Europa 2.4 – O quadro do direito comunitário 2.4.1 – O direito originário 2.4.2 – O direito derivado 2.5 – O actual quadro legal 2.5.1 – O confronto da actual LPC com a anterior 2.5.2 – A Lei do Património Cultural 2 2.5.3 – Outros diplomas legais  Conclusão Introdução Este trabalho foi realizado no âmbito da cadeira de Direito da Cultura, regida pelo Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, e visa analisar a situação do património cultural nos dias de hoje, procurando dar a conhecer a sua protecção tanto na ordem jurídica portuguesa como internacional. De facto, a ideia de analisar este tema surgiu de uma visita à cidade de Évora, cujo centro foi declarado Património Mundial pela Unesco. Alguns dos seus principais monumentos como o templo romano, a Sé Catedral, a Igreja de São Francisco, a Capela dos Ossos ou o Palácio de D.Manuel, são elementos de uma beleza pura e transpiram história e cultura. Perante tamanho entusiasmo e nostalgia, questões começaram a suscitar: Qual o verdadeiro significado do património cultural? Como é que se encontra regulada a sua protecção? Qual a razão de ser dessa protecção? São estas perguntas que vamos procurar resolver no decurso deste trabalho. Começaremos então primeiramente por dar uma noção de património cultural, realçando a sua natureza jurídica e a sua relação com o direito. Num segundo capítulo suscitaremos alguns aspectos históricos, antes de entrarmos no âmago do nosso trabalho: a análise da protecção do património cultural no quadro constitucional e legal português, e no quadro internacional e comunitário. 3 1 – Noção e âmbito do direito do património cultural 1.1 – Património cultural e património natural Como é sabido o património cultural pode ser definido de várias maneiras. Tenhamos como referência quatro noções de património cultural: - Segundo Pierre-Laurent Frier, é o conjunto de marcas ou vestígios da actividade humana que uma comunidade considera como essenciais para a sua identidade e a sua memória colectivas e que deseja preservar a fim de as transmitir às gerações vindouras1; - Segundo o artigo 1º da LPC de 1985, são “todos os bens materiais e imateriais que, pelo seu reconhecido valor próprio, devam ser considerados como de interesse relevante para a permanência e identidade da cultura portuguesa através do tempo”; - Segundo o artigo 2º da Convenção da Unidroit, são “os bens que por motivos religiosos ou profanos, possuem importante valor arqueológico, préhistórico, histórico, literário, artístico ou científico”; - Segundo o artigo 2º, nº1, da actual LPC, são “todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objecto de especial protecção e valorização”. É importante suscitar desde já que qualquer destas noções rejeita uma concepção alargada de património cultural, porquanto referem-se a algo ligado à cultura ou à civilização, e não incidem em algo ligado à natureza. É aqui que está presente a distinção entre património cultural ou bens culturais e património natural ou bens naturais. No entanto nada impede que possamos ter um conceito de património cultural em sentido amplo, que abranjam tanto os bens naturais como os bens 1 V, do autor Droit du Patrimoine Culturel, p.13. 4 culturais. De facto, tal realidade apresenta-se no direito internacional, no direito comunitário, em diversas legislações nacionais e em alguns autores2. No que concerne a Portugal, tanto a disciplina do património cultural como a disciplina do património natural têm as suas bases na Lei de Bases do Ambiente. Ora, isto parece indiciar, no que respeita aos instrumentos e medidas a adoptar no domínio do património cultural, que estamos perante uma disciplina legal unitária. No entanto, isto na verdade não é bem assim. Por um lado, o art 165º, nº1, al. g) da CRP, parece rejeitar a solução unitária, impondo uma Lei de Bases do Património Cultural; por outro, a Lei de Bases do Ambiente faz um tratamento diferenciado do património cultural e do património natural, uma vez que a disciplina deste último tem um maior desenvolvimento. Há ainda que salientar, as diferenças no que toca ao aspecto estrutural ou organizacional, já que o património cultural e o património natural tendem a estar dependentes ou sob a tutela de um departamento governamental diferente. Enquanto o primeiro está sob a tutela do Ministério da Cultura, o segundo está sob a tutela do Ministério do Ambiente. Concluímos deste modo, que muito embora o direito do património cultural tenha uma estreita ligação com o direito do ambiente, a verdade é que no nosso sistema jurídico não há uma disciplina unitária do património cultural e do património natural. O direito do património cultural constitui tão somente um domínio relativamente especializado do direito do ambiente. 1.2 – Natureza jurídica do património cultural Numa concepção tradicional entendia-se como categoria paradigma do património cultural os bens culturais de utilidade pública, ou seja, integrantes no domínio público ou do domínio privado do Estado. Seriam estes os bens culturais em sentido próprio, os bens que formariam o lastro sobre o qual se ergueria a totalidade do regime jurídico do património cultural. Os bens 2 No direito internacional temos o exemplo da Convenção da UNESCO sobre a Protecção do Património Mundial Cultural e Natural, que refere três categorias para o património cultural (os monumentos, os conjuntos e os locais de interesse) e três categorias para o património natural (os monumentos naturais, as formações geológicas e fisiográficas e as zonas de habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas, e os locais de interesse nacional ou zonas naturais); na sede do direito comunitário temos o exemplo das directivas nº85/337, respeitante à avaliação e estudos de impacte ambiental; em termos de legislações nacionais tomemos como exemplo Itália, com o seu Código dos Bens Culturais e da paisagem. 5 culturais de propriedade ou titularidade privada não seriam mais que bens culturais em sentido impróprio, cujo regime jurídico não teria por base o interesse cultural dos bens, mas sim as faculdades que integram o direito de propriedade dos seus titulares. A concepção tradicional é de afastar por diversas razões3. É assim melhor doutrina aquela que considera que os bens culturais constituem uma categoria jurídica unitária e autónoma, assente em três traços estruturais: i) imaterialidade, pois devemos ter em consideração que o ubi consistam dos bens culturais não reside nos objectos materiais que suportam os bens, mas na função imaterial do crescimento da consciência e de desenvolvimento da personalidade individual que a sua fruição proporciona tanto à geração presente como às gerações vindouras; ii) sociabilidade, porquanto os bens culturais desempenham uma função específica de natureza social e cultural, cuja peculiaridade não se encontra no valor dos bens em si, mas no interesse que a comunidade manifesta pela sua tutela; e iii) publicidade, entendido no sentido da fruibilidade necessária dos valores culturais por parte dos membros da correspondente comunidade. 1.3– Ideia de direito do património cultural O direito do património cultural é o conjunto de normas de direito público (nomeadamente normas de direito constitucional, de direito comunitário, de direito internacional e de direito administrativo) que consagram um regime direito público que tem como objecto específico os bens culturais. Segundo CASALTA NABAIS4, para esta noção estar completa é necessário acrescentar alguns aspectos. Relativamente ao património cultural, há quem centre o seu estudo mais no campo politico do que no campo legal. Assim, o direito do ambiente, no direito do urbanismo e no direito do património cultural, seria de versar sobretudo a politica mais que o direito. Contudo, CASALTA NABAIS entende que este entendimento não deve proceder. Apesar de neste sector do ordenamento 3 4 Vide, todas essas razões em, José Casalta Nabais, Introdução ao Direito..., pp. 44 e ss. Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 50 e seguintes. 6 jurídico, a politica ter uma grande relevância, não se pode retirar a conclusão de que se deve substituir o direito pela política. Para CASALTA NABAIS, o que temos aqui é um enquadramento jurídico das políticas ou objectivos a prosseguir, que as leis dos mencionados sectores não podem deixar de estabelecer. Outro complemento à noção de direito do património cultural diz respeito à diversidade dos bens culturais. Assim, dentro dos bens culturais temos: os bens culturais materiais em que os valores culturais não dispõe de existência autónoma face ao seu suporte material ou físico, os bens materiais com suporte material fungível, e os bens puramente imateriais. Por fim, importa referir que o direito do património cultural não tem um objectivo homogéneo, tendo sim, dois grandes objectivos: por um lado a protecção dos bens culturais, e de outro, a valorização ou enriquecimento do património cultural. Relativamente ao objectivo da protecção dos bens culturais engloba-se: a conservação que respeita ao conjunto de acções destinadas a impedir a destruição, deterioração ou perda dos bens, e a preservação ou defesa que consiste no conjunto de acções ou omissões que todos devemos adoptar em defesa dos bens culturais. No que diz respeito à valorização ou enriquecimento do património cultural temos a valorização económica relacionada com a sustentação e sustentabilidade económica dos bens, e a valorização cultural ou substantiva que visa o enriquecimento e engrandecimento cultural dos bens através do aumento dos méritos artísticos e históricos. Podemos assim concluir, que se trata de uma diversidade assinalável tanto do ponto de vista vertical, como do ponto de vista horizontal. 1 - Ordenamento jurídico do património cultural 2.1 - Breve referência à evolução histórica As preocupação com a protecção e tutela do património cultural já conta muitos anos. Contudo, as preocupações em torno do património cultural que 7 estão hoje em dia subjacentes aos mais complexos ordenamentos jurídicos são relativamente recentes, porquanto remontam basicamente ao século XIX. Foi Victor Hugo, em 1832, que suscitou pela primeira vez a necessidade de preservação dos bens culturais, insurgindo-se contra a destruição de importantes edifícios que estava a ser levada a cabo em Paris, num período de grandes obras públicas. Defendeu a sua posição com base numa distinção, que passou a constituir base imprescindível da protecção e tutela do património cultural. De facto, foi no segundo quartel do século XIX que começaram a surgir inúmeros organismos vocacionados para a protecção de monumentos históricos, dos quais podemos suscitar na França a Inspecção Geral dos Monumentos Históricos criada em 1830, e em Espanha com a criação das comissões provinciais de monumentos e a Comissão Central de Monumentos, em 1844 e 1854, respectivamente. No que concerne a Portugal, a partir de 1851, por influência de D. Fernando II, começou-se a pensar na conservação e restauro dos monumentos históricos, resultando assim em 1882 na criação da Comissão dos Monumentos Nacionais, que mais tarde, por Decreto de 9 de Dezembro de 1898 passaria a designar-se por Conselho Superior dos monumentos nacionais. 2.2 – O quadro constitucional A preservação do património cultural só começou a ganhar importância no século XX, devido ao aumento do nível educativo cultural das populações, à subsistência do fenómeno nacional e à emergência de novos Estados nacionais e aos riscos crescentes da degradação e à destruição. De facto, em Portugal podemos identificar uma evolução ao longo das três fases do constitucionalismo: na fase liberal, a protecção do património cultural é bastante insuficiente; na fase autoritária, a politica do património cultural é reforçada com a criação e reforço de serviços, como a DirecçãoGeral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e, consagra-se-lhe uma 8 incumbência constitucional no art. 52º5 6; na fase actual multiplicam-se as acções do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais e de outras entidades públicas, e surgem associações de defesa nacionais ou locais7. Com efeito, nenhum dos projectos de Constituição apresentados em 1975 contemplava de forma abrangente o património cultural. O único que se lhe referia era o do Movimento Democrático Português, cujo art. 36º, nº2 estipulava que “O Estado protege o carácter genuíno e autêntico das realizações culturais do povo, defendendo-as de todas as formas de adulteração e conservando-as cuidadosamente como uma verdadeira riqueza do património nacional”8. Contudo, posteriormente terá sido aprovada uma proposta de preceito autónomo, subscrita pelos Deputados António Reis e José Luís Nunes9. Daí o art. 78º da Constituição, no texto inicial: “O Estado tem a obrigação de defender e proteger o património cultural do povo português”. Foi Jorge Miranda quem preconizou, em 1980, aquando da primeira revisão constitucional, a elevação a “tarefa fundamental do Estado” da incumbência relativa ao património cultural, em conexão com a defesa do ambiente e o alargamento do âmbito do art. 78º, de modo a tratar genericamente da fruição e da criação cultural, mas consagrando-se aqui as associações e fundações culturais e o dever defesa do património10. Já a “acção popular” para defesa do património cultural apenas foi introduzida na segunda revisão constitucional. Nos dias de hoje, o património cultural tem tutela expressa em vários preceitos da nossa Constituição. No capítulo dos direitos fundamentais, mais concretamente no art. 9º, podemos constatar que uma das tarefas fundamentais do Estado é precisamente “proteger e valorizar o património cultural do povo português”. 5 Outro preceito com relevância no património cultural, era o art. 47º segundo o qual nenhum templo, edifício, dependência ou objecto de culto poderia ser destinado pelo Estado a outro fim. 6 Uma das falhas salientada por JORGE MIRANDA nesta fase constitucional é a falta do incentivo à fruição. Cf. JORGE MIRANDA, “O património cultural e a Constituição – tópicos” in “Direito do Património Cultural” pag. 262. 7 Ainda assim, JORGE MIRANDA continua a considerar que existem falhas quer a nível de ordenamento integrado do território, quer a nível de legislação ordinária e ainda atrasos culturais. Cf. JORGE MIRANDA, “O património cultural e a Constituição – tópicos” in “Direito do Património Cultural” pag. 263. 8 Vide Diário da Assembleia Constituinte, suplemento ao nº 16. 9 Vide Diário da Assembleia Constituinte nº 61, 62, e 64, de 9, 10 e 15 de Outubro de 1975, págs. 1836, 1910 e seguintes, e 2003 respectivamente. 10 Vide JORGE MIRANDA, “Um projecto de revisão constitucional”, Coimbra, 1980, págs. 23. 24, 70 e 71. 9 Mas é nas diversas subconstituições contidas na Constituição que a tutela do património cultural português mais se manifesta. Assim iremos analisar os preceitos respeitantes à protecção do património cultural ao nível da constituição do indivíduo, ao nível da constituição da sociedade, e ao nível da constituição do Estado11. Por fim, importa ainda mencionar que o património cultural tem em sede a garantia da própria constituição, ou seja, tem em sede a constituição da constituição12. 2.2.1- O património cultural na constituição do indivíduo A protecção do património cultural manifesta-se em diversos preceitos relativos aos direitos fundamentais, mais concretamente nos arts. 52º, nº3, al. a), 66º, nº2, als. c) e e), 73º, nº 1 e 3, e 78º. De acordo com estes preceitos, o património cultural surge, primeiramente, como responsabilidade do Estado e demais entes públicos. Por exemplo, o art. 66º nº2 als. c) e e) define que é tarefa do Estado, seja por meio de organismos próprios, seja por meio da participação dos cidadãos, “criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico”, e que o Estado deve, em colaboração com as autarquias locais, promover “a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas”. Temos também o art. 73º nº3, segundo o qual é da responsabilidade do Estado juntamente com os órgãos de comunicação social, com as associações e fundações de fins culturais, com as colectividades de cultura e recreio, com as associações de defesa do património cultural, com as organizações de moradores e outros agentes culturais, assegurar o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural de modo a promover a democratização da educação. Por fim, relativamente a este primeiro tópico, temos o art. 78º nº2, relativo ao direito à fruição e criação cultural, que prescreve que incumbe ao Estado, em 11 12 Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 105 e seguintes Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 106 10 colaboração com todos os agentes culturais, “promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum”. A protecção do património cultural como tarefa do Estado e dos demais entes públicos também encontra consagração legal na Lei de bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural 13, nomeadamente nos seus arts. 1º nº2, 3º, 6º e 133º, nº5. De todos estes preceitos, é de destacar o art. 133º, nº5, que obriga o Governo a apresentar à Assembleia da República, no quadro dos poderes de fiscalização desta sobre as politicas governamentais, de três em três anos, um relatório circunstanciado sobre o estado do património cultural em Portugal. Já relativamente aos arts. 52º, nº3, e 78º da Constituição, aos cidadãos é lhes reconhecido direitos e imposto deveres fundamentais tendo em vista a tutela do património cultural. A Constituição reconhece os direitos de criação e fruição cultural, no art. 78º, nº1, e a garantia jurisdicional da sua defesa, no art. 52º, nº3, al. a) que consigna o direito de promover a prevenção, a cessação, ou a perseguição judicial da degradação do património cultural, bem como de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização. Também este aspecto tem consagração legal na LPC, nos seus arts. 7º e 9º. O exercício de tais direitos implica a intervenção proporcional de diversos princípios, como o principio da fruibilidade universal dos bens culturais, e a concordância prática na solução dos conflitos entre o direito fundamental à fruição cultural e os demais direitos fundamentais dos proprietários e detentores ou de terceiros, da graduabilidade do interesse público presente nos bens e da proporcionalidade no estabelecimento das vinculações espaciais indirectas. Finalmente, o património cultural é sobretudo um dever fundamental de todos. Este dever encontra-se expressamente consagrado no art. 78º, nº1, da Constituição, e no art. 11º da LPC, cujo conteúdo engloba o dever de preservação, o dever de defesa e o dever de valorização do património cultural. Segundo CASALTA NABAIS, estes deveres estão associados aos direitos de fruição dos bens culturais e de criação cultural14. 13 14 Lei nº 107/2001, mais conhecida por Lei do Património Cultural; Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 108; 11 2.2.2 - O património cultural na constituição da sociedade A preservação, defesa e valorização do património cultural constitui um elemento importantíssimo da constituição cultural que, para além da sua função individual, tem uma função colectiva contribuindo decisivamente para o funcionamento económico e social da nossa sociedade. Expressão desta segunda função são os arts, 73º, 74º, 76º e 79º que concretizam os direitos ao ensino e à igualdade de acesso e de oportunidades de êxito escolar, ambiente e qualidade de vida, à educação, cultura e ciência, e à fruição e criação cultural. O património cultural constitui ainda um importante factor de desenvolvimento económico tanto a nível interno como a nível internacional. Esta última realidade manifesta-se no facto de para a realização do “direito ao desenvolvimento” dos povos se considera como essencial a preservação e restituição dos bens culturais15. Esta ideia decorre da Convenção da UNESCO de 1970 que consagra a proibição da importação, exportação e a transferência ilícita da propriedade dos bens culturais. 2.2.3 - O património cultural na constituição do Estado No âmbito da constituição do Estado importa mencionar as normas constitucionais relativas ao património cultural em sede da repartição vertical de atribuições entre o Estado, as regiões autónomas e os municípios e em sede da repartição horizontal de atribuições entre o Governo e a Assembleia da República. Relativamente à repartição horizontal de atribuições entre o Governo e a Assembleia da República importa destacar que a matéria do património cultural constitui reserva relativa da Assembleia da República. Segundo o art. 165º, nº1, al. g), da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, “sobre as bases do sistema de protecção… do património cultural”. Contudo, se o regime constante das bases do sistema de protecção do património cultural se consubstanciar em 15 Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 110; 12 limites aos direitos, liberdades ou garantias fundamentais, já constitui uma matéria de reserva da Assembleia da República, mas por força da al. b) do nº1 do art. 165º. No que diz respeito à repartição vertical de atribuições entre o Estado, as regiões autónomas e os municípios, a Constituição guia-se pelo princípio da desconcentração política parcial do nosso Estado suportado pelas regiões autónomas, e pelo princípio da descentralização administrativa apoiado nas autarquias locais (com relevância dos municípios). No que diz respeito à desconcentração política, com a revisão constitucional de 1997, a Constituição passou a configurar expressamente nas alíneas b) e l) do art. 228º, como matérias de interesse específico das regiões autónomas, respectivamente, o “património e criação cultural” e o “folclore”, matérias que, segundo o art. 223º, nº1, são da exclusiva competência da respectiva assembleia legislativa. De acordo com o art. 228º nº1 as leis regionais que “incidem sobre as matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania” devem respeito às “bases do sistema de protecção do património cultural” presentes na LPC. Como exemplos da manifestação da tutela do património cultural ao nível das regiões autónomas temos o art. 3º, al. c), do Estatuto Político-Administrativo dos Açores que considera de interesse regional “a defesa e promoção da identidade, valores e interesses dos açorianos e do seu património histórico”, e o art. 40º, alíneas p), q) e u) do Estatuto PolíticoAdministrativo da Madeira que considera de interesse regional a “classificação, protecção e valorização do património cultural”, os “museus, bibliotecas e arquivos” e o “artesanato e folclore”. Também os municípios têm relevância na repartição vertical de atribuições em sede da protecção do património cultural. De acordo com o art. 235º nº2 a Constituição reconhece interesses próprios das populações das respectivas autarquias locais. Para além disso, os municípios também têm um papel relevante na actual LPC, uma vez que passaram a ter efectiva competência para classificar os bens culturais de interesse municipal. Relativamente aos municípios, CASALTA NABAIS salienta que a Constituição, uma vez que remete inteiramente para a lei a disciplina jurídica das autarquias locais e da competência dos seus órgãos, deixa ao legislador 13 alguma margem de liberdade no que diz respeito às atribuições e competências dos municípios em matéria de protecção e valorização dos bens culturais16. O autor questiona se a Constituição não terá esquecido de retirar as consequências do princípio da subsidiariedade17, pois o autr não coloca de parte a hipótese de este princípio desencadear maiores consequências em sede da Constituição no que diz respeito à distribuição vertical das atribuições do domínio da protecção e valorização do património cultural entre o Estado e as autarquias locais, designadamente a favor dos municípios18. Já relativamente às regiões autónomas esta questão não se coloca, pois o princípio da subsidiariedade foi tomado em conta pela Constituição. JORGE MIRANDA destaca a ligação feita por quase todas as normas referidas anteriormente, entre protecção do património cultural e protecção do ambiente. De acordo com o autor esta ligação tem como justificações: o facto de o património cultural fazer parte do ambiente em sentido lado; o facto de um ambiente degradado afectar o património cultural que aí se situe; pelo facto de proteger, preservar, valorizar o ambiente e o património cultural pressuporem a mesma atitude de espírito, o mesmo tipo de actividade sociocultural, a mesma vontade política; e pelo facto de as normas constitucionais pertinentes possuírem idêntica estrutura e suscitarem os mesmos problemas de efectividade19. 2.2.4 - O património cultural como garantia da constituição A protecção e valorização do património cultural têm ainda como função a garantia da própria Constituição. Na verdade, a primeira e mais eficaz garantia da Constituição reside na garantia político-cultural da Constituição que se traduz na identificação com o sentimento colectivo da correspondente comunidade política, ou seja, a Constituição deve espelhar a identidade da 16 17 Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 113 Com a Revisão Constitucional de 1997, este princípio passou a estar expressamente consagrado expressamente no art. 6º. 18 Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 113 19 Vide JORGE MIRANDA, “O património cultural e a Constituição – tópicos” in “Direito do Património Cultural” pag. 262. 14 comunidade política que a tem como lei fundamental ou não terá possibilidades de vingar e de aspirar a ser um efectivo ordenamento jurídico20. Daí que seja importante o estudo da identidade cultural da respectiva comunidade política onde o património cultural desempenha um papel fulcral tendo em conta a longa história e um vasto acervo de bens culturais ligados ao nosso país. 2.2.5 - Os princípios gerais do direito do património cultural Quer no texto da LPC, quer no texto da nossa Constituição, podemos encontrar vários princípios relativos ao direito do património cultural: I. O princípio da fruibilidade universal dos bens culturais, presente nos arts. 73º, nº3, e 78º, nº1 da Constituição e no art. 7º da LPC, é constituído por dois elementos – um elemento objectivo que se traduz na fruibilidade, que assegura a susceptibilidade de o bem cultural ser fruído como meio de valorização cultural das pessoas; e um elemento subjectivo que se traduz na universalidade, que implica a abertura dessa fruição dos bens culturais a um universo indeterminado de sujeitos; II. O princípio da tutela pública dos bens culturais tem expressão legal nos arts. 78º da Constituição, e 1º, 3º, 11º, 12º, nº2, 70º e 71º da LPC e diz respeito apenas a entidades que desempenhem ou tenham a seu cargo funções públicas, ou seja, pessoas colectivas públicas ou de direito privado que prossigam funções públicas através de uma actividade pública. Por exemplo, o art. 3º nº3 da LPC dirige o conhecimento, o estudo, a protecção, a valorização e a divulgação do património cultural ao Estado, às Regiões Autónomas e às autarquias locais. O princípio da tutela pública tem como objectivo quer a protecção do património cultural quer a sua valorização; 20 Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 114 15 III. O princípio da unidade do regime de protecção dos bens culturais encontra-se previsto no art. 165º, nº1, al. g) da Constituição. A unidade do regime de protecção do património cultural deve partir, primeiramente, da lei de bases do sistema de protecção e de valorização do património cultural português, evitando enveredar por regimes diferenciados baseados na titularidade pública ou privada dos bens culturais, como já aconteceu anteriormente21. Contudo, nada disto implica que não haja regimes relativamente especializados no que toca a determinados bens culturais; a. O princípio da ponderação de bens jurídicos é composto por três sub-princípios: pelo princípio da graduabilidade, pelo princípio da concordância prática e pelo princípio da proporcionalidade; i. De acordo com o princípio da graduabilidade o interesse público presente nos bens culturais não tem todo o mesmo peso e, sendo assim, podemos distinguir dois níveis de formas de protecção dos bens culturais – a inventariação e a classificação; três níveis de bens classificados – bens de interessa nacional, bens de interesse público e bens de interesse municipal. A cada classificação varia o órgão competente para a definição da mesma, podendo ser quer o Estado, quer a região autónoma ou a autarquia local. Relativamente aos diferentes níveis em matéria de limites aos direitos dos proprietários e detentores dos bens culturais, v. os arts. 15º nº 2 a 7, 16º, 21º, 28º, 43º, 50º, 60º nº2 e 3, 65º, 66º, e 104º a 106º da LPC; ii. O princípio da concordância prática traduz-se na resolução de conflitos entre os valores da protecção e valorização dos bens culturais e do direito fundamental 21 Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 115 16 à sua fruição com outros valores constitucionais. Este princípio encontra-se expresso, por exemplo, na confidencialidade contemplada no art. 75º do DecretoLei nº 309/2009 (relativo ao procedimento de classificação dos bens imóveis) que se traduzia na restrição à divulgação pública dos dados referentes aos imóveis classificados ou em vias de classificação, bem como na possibilidade de os proprietários, possuidores e demais titulares de direitos reais sobre bens classificados se eximirem ao regime legal de acesso e visita pública a que se encontram sujeitos esses bens22; iii. O princípio da proporcionalidade traduz-se na medida em que cada um dos bens jurídicos cede para a solução do conflito, tendo expressão legal no art. 43º da LPC; b. Também o princípio da cooperação se desdobra em três sub- princípios: no princípio da colaboração da administração do património cultural com os particulares proprietários ou detentores dos bens culturais, expresso no art. 8º e, de certa forma, no art. 13º, al. g)23 da LPC; no princípio da cooperação, presente nos arts. 4º, 13º, al. e), e 93º da LPC, traduzindo-se na contratualização da administração do património cultural; e o princípio da cooperação internacional com expressão nos arts. 6º, al. i), e 4º, nº4 da LPC; i. O princípio da colaboração visa conjugar os interesses e iniciativas dos particulares proprietários ou detentores de bens culturais com a actuação das entidades públicas. Esta colaboração passa pela atribuição de 22 23 Cf. Art. 21º, nº2, al. a) da LPC Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 120 17 contrapartidas de apoio técnico e financeiro e de incentivos fiscais aos detentores dos bens culturais; ii. O princípio da cooperação tem duas vertentes: a cooperação ligada ao princípio da contratualização e a cooperação ligada ao auxílio e apoio mútuo entre as entidades públicas. A cooperação na sua vertente de princípio da contratualização tem forte expressão no art 4º da LPC, que admite a contratualização em termos bastantes amplos. CASALTA NABAIS salienta o relevo crescente que a figura do contrato tem vindo a assumir no desenvolvimento da actividade administrativa, justificando este relevo com a crescente perda de centralidade do acto administrativo24. Por outro lado, como resulta do art. 93º da LPC, a cooperação também implica o auxílio administrativo e apoio mútuo entre o Estado, as Regiões Autónomas e os municípios no exercício das respectivas atribuições em matéria de património cultural: iii. Relativamente ao princípio da cooperação internacional, encontra-se expressamente consagrado nos arts. 7º, nº3 e 9º, al. f) da Constituição e nos arts. 2º, nº7 e 5º da LPC, e dirige-se à protecção e valorização do património cultural português que é partilhado com os outros povos, nomeadamente com os povos lusófonos devido ao facto de se exprimirem na língua portuguesa e terem antecedentes históricos comuns com Portugal. A LPC no seu art. 5º, nº 2 e 3 alarga o conceito de cooperação internacional, uma vez que incumbe o Estado português de contribuir “para a preservação e salvaguarda do património cultural sito fora do espaço 24 Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 120 18 lusófono que constitua testemunho de especial importância de civilização e de cultura portuguesas” e, para a “conservação e salvaguarda do património cultural de importância europeia ou do património cultural de valor universal excepcional, em particular quando se trate de bens culturais que integrem o património cultural português ou que com ele este apresentem conexões significativas”; c. O princípio da participação, apesar do seu cariz profundamente procedimental, tem um alcance mais geral e um significado mais profundo. O princípio da participação encontra-se várias vezes consagrado na LPC, mais concretamente no art. 9º, nº2, que reconhece o direito de participação procedimental; no art. 10º, relativo à participação dos cidadãos através de estruturas associativas, como institutos culturais, associações de defesa d património cultural e outras organizações de direito associativo; no art. 25º nº2 que impõe que a abertura do procedimento de classificação ou inventariação seja notificado ao município da área da situação do bem; e no art. 27º que prevê a audiência dos interessados antes da tomada da decisão final nos termos do Código de Procedimento Administrativo. Para além desta participação individual e constitucional, o princípio da participação também tem intrínseca a ideia de cidadania e a ideia de solidariedade, ou mesmo a ideia de cidadania solidária, de acordo com o art. 71º al. i) e j) da LPC, que integra nos instrumentos de concretização do regime de valorização dos bens culturais, os programas de voluntariado e de apoio á acção educativa; d. O princípio da inventariação encontra-se previsto no art. 6º als. a) e f) da LPC, e tem em vista assegurar o levantamento sistemático actualizado e tendencialmente exaustivo dos bens 19 culturais existentes com vista à sua identificação. Este princípio reporta-se não apenas à actividade de inventariação, mas também à de classificação dos bens culturais, bem como ao registo patrimonial de classificação e ao registo patrimonial de inventário, de acordo com o art. 16º e seguintes da LPC; e. O princípio da informação tem em vista promover a recolha sistemática de dados facultando o respectivo acesso tanto a cidadãos e organismos interessados como às competentes organizações internacionais; f. Em sede de gestão do património cultural temos o princípio do planeamento, o princípio da eficiência e o princípio da sustentabilidade; i. O princípio do planeamento vem previsto no art. 6º al. b) da LPC e exige que os instrumentos e recursos a mobilizar e as medidas a adoptar sejam resultantes de uma prévia planificação e programação. Este princípio é composto estratégica por duas dimensões: com a uma dimensão e relacionada preservação valorização do património cultural que se concretiza na aprovação de linhas de acção para assegurar a preservação e sobretudo lograr uma valorização adequada dos bens culturais; e uma dimensão mais ampla de protecção com incidência directa no ordenamento do território, que se prende com o urbanismo mais especificamente com o ordenamento do território. A própria LPC no ser art. 53º consagra uma especifica categoria de planos: os planos de pormenor, os de salvaguarda ou os planos integrados; 20 ii. O princípio da eficiência encontra-se expresso no art. 6º al. d) da LPC e tem como objectivo assegurar padrões adequados de cumprimento das imposições vigentes e dos objectivos previstos e estabelecidos. De acordo com alguma doutrina estrangeira este princípio pode conduzir à adopção de modelos recortados segundo uma privatização das tarefas públicas neste domínio25. iii. Por fim, temos o princípio da sustentabilidade que se encontra legalmente expresso nos arts. 7º, nº2 a 4, 70º, al. i), e 71º, als. e), i), j) e l) da LPC. Deste princípio resulta que a utilização dos bens culturais deve permitir a sua auto-sustentabilidade financeira através dos orçamentos públicos. Este princípio tem duas vertentes: uma primeira vertente corresponde ao princípio da sustentação económica do qual decorre a necessidade, imposta por lei, de o Estado auxiliar os proprietários e demais titulares de direitos reais de gozo sobre os bens culturais classificados ou inventariados (art. 99º da LPC); e uma segunda vertente que se traduz no princípio do património sustentável ou da rendibilização dos bens culturais, do qual deriva a necessidade de trabalhar com um conceito dinâmico de património cultural capaz no só de dar resposta às necessidades financeiras, mas também de desenvolver aproveitamentos alternativos dos bens culturais que cumpram a função de valorização ou enriquecimento cultural dos mesmos. Importa não esquecer que, assegurar o desenvolvimento sustentável, tendo em conta uma efectiva solidariedade com as gerações futuras, implica necessariamente garantir a sustentabilidade financeira do Estado e de mais 25 Para maior desenvolvimento do conteúdo desta doutrina v. JOSÉ CASALTA NABAIS, “Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 125 21 entidades públicas no presente e no futuro, ou seja, assegurar a sustentabilidade financeira no quadro de uma adequada repartição intergeracional dos encargos públicos; g. O princípio da coordenação de políticas previsto nos arts. 6º, al. c), e 13º, al. e) da LGT, promove a articulação e a compatibilização do património cultural com as políticas de ambiente, de ordenamento do território, de educação e formação, de criação cultural e de turismo, ou seja, daquelas áreas que interferem ou se sobrepõem à do património cultural; h. Temos ainda o princípio da inspecção e prevenção e o princípio da responsabilidade previstos no art. 6º, als. e) e h) da LGT. O princípio da inspecção e da prevenção visam obstar à degradação ou perda de elementos integrantes do património cultural através da instituição de organismos, processos e controlos adequados, e o princípio da responsabilidade visa garantir a ponderação das intervenções e dos actos susceptíveis de afectar a integridade ou circulação licita de elementos integrantes do património cultural. De acordo com a opinião de CASALTA NABAIS, o princípio da responsabilidade deveria designar-se por princípio da ponderação prévia das intervenções nos bens culturais26; i. Finalmente, temos os princípios da tutela penal e contraordenacional do património cultural que se encontram previstos nos arts. 100º a 110º da LGT. Apesar de fundamental, esta tutela vem em ultimo lugar, surgindo apenas quando os outros meios ou instrumentos de tutela falharem. Um exemplo desta tutela é o caso do crime perpetrado, em 2001, contra o património da humanidade constituído pelos 26 Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 128; 22 célebres budas do Afeganistão, gravemente danificados com o próprio apoio do Governo do regime talibã; 2.2.6 - Jurisprudência constitucional Por duas vezes o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre a tutela e protecção do património cultural: Acórdão nº 403/89, de 23 de Maio e Acórdão nº 280/90, de 23 de Outubro. No primeiro Acórdão estava em causa a própria Lei nº 13/65. A Assembleia Regional impugnou-a, pelo facto de a Assembleia da República a ter aprovado antes de ter expirado o prazo para a Assembleia Regional se pronunciar. O Tribunal Constitucional deu-lhe razão e declarou inconstitucional, por violação do dever de audição dos órgãos das regiões autónomas presente no art. 229º da Constituição. Relativamente a esta decisão Jorge Miranda não compreende como é que, num Estado unitário, pode uma lei geral da República ser objecto de um juízo de inconstitucionalidade parcial em razão do território. Defende que esta solução apenas se aceitaria de as disposições invalidades se destinassem exclusivamente aos Açores27. No segundo Acórdão, estava em causa o Decreto Legislativo Regional nº 30/83/A, de 28 de Outubro, que dizia respeito ao património cultural submerso nas águas dos Açores. Também aqui o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionalidade, argumentando que se tratava de bens de domínio publico sobre os quais a competência legislativa cabia à Assembleia da República. Também neste segundo Acórdão, JORGE MIRANDA manifesta algumas dúvidas sobre esta solução, uma vez que esta decisão não fez uma necessária destrinça entre domínio publico e património cultural, que, segundo a opinião do autor, são dois conceitos bastante diferentes28. 2.3 – O quadro do direito internacional 27 Vide JORGE MIRANDA, “O património cultural e a Constituição – tópicos” in “Direito do Património Cultural” pag. 269. 28 Vide JORGE MIRANDA, “O património cultural e a Constituição – tópicos” in “Direito do Património Cultural” pag. 270. 23 2.3.1 - Concordata com a Santa Sé Concordata com a Santa Sé (1940) A Concordata com a Santa Sé trata-se de uma convenção bilateral realizada entre Portugal e a Santa Sé, em 1940, e destinou-se a solucionar os diversos conflitos entre o Estado português e a Santa Sé decorrentes da política adoptada pela 1ª República (1910-1926) em relação à Igreja Católica. No que diz respeito ao património cultural é de salientar os arts. VI, VII e VIII da Concordata. De acordo com o art. IV da Concordata com a Santa Sé, reconheceu-se à Igreja Católica em Portugal, a propriedade dos bens que anteriormente lhe pertenciam, e ainda estavam na posse do Estado, com excepção dos aplicados a serviços públicos ou classificados como “monumentos nacionais” ou como “imóveis de interesse público”. Relativamente aos bens que não estivessem na posse do Estado podiam ser transferidos à Igreja pelos seus possuidores, desde que este acto de transferência fosse celebrado dentro do prazo de seis meses a contar da troca de ratificações da Concordata. Estes bens classificados, ou que viessem a ser classificados nos cinco anos posteriores à troca de ratificações como “monumentos nacionais” ou “imóveis de interesse público” ficavam “em propriedade do Estado com afectação permanente ao serviço da Igreja”, sendo da responsabilidade do Estado a conservação, reparação e restauração destes bens tendo em conta os planos acordados com as autoridades eclesiásticas, enquanto a Igreja ficava incumbida da guarda e do regime interno (como por exemplo, a regulação dos horários das visitas) respeitante a estes mesmos bens. No que diz respeito aos objectos destinados ao culto, os que se encontrassem em museus do Estado, em autarquias locais ou institucionais, seriam cedidos para as cerimónias religiosas no templo a que pertenciam. De acordo, com o art. VII da Concordata, nenhum templo, edifício ou objecto de culto podia ser demolido ou destruído sem acordo anterior da respectiva autoridade eclesiástica, excepto se estivéssemos perante uma situação de necessidade pública urgente, como guerra, incêndio ou inundação 24 que justificasse a demolição ou destruição. Este mesmo preceito estabelece ainda que, em caso de expropriação, a autoridade eclesiástica devia ser sempre ouvida, mesmo no que diz respeito à indemnização e que, não devia ser praticado nenhum acto de apropriação sem que os bens expropriados fossem antes privados do seu carácter sagrado. Por fim o art. VIII estabeleceu a isenção de qualquer imposto ou contribuição, geral ou local, dos templos e objectos nele contidos, dos seminários ou quaisquer estabelecimentos destinados à formação do clero, e ainda a isenção desses bens, relativamente a impostos ou contribuições especiais29. Concordata com a Santa Sé (2004) Em 2004, aprovou-se nova Concordata com a Santa Sé, que manteve, no geral, o que se estabeleceu em 1940, introduzindo, porém, algumas novidades, entre as quais a nova concepção menos estadualista e proprietarista do património cultural30, a criação de uma comissão arbitral para o desenvolvimento da cooperação respeitante aos bens da Igreja que integrem o património cultural português, reforçando assim o papel do princípio da cooperação. Quanto ao regime dos bens culturais da Igreja Católica, o art. 22º da Concordata de 2004 que prescreve o mesmo que estava previsto no art. IV da Concordata de 1940, e o mesmo acontece com os arts. 24º e 26º nº2 da Concordata que equivalem, respectivamente, aos arts. VII e VIII da Concordata de 1940. É de dar especial atenção ao art. 26º nº2 da actual Concordata, pois o regime fiscal dos bens culturais em causa, em nada foi alterado, apesar das modificações significativas que a nova Concordata trouxe no respeitante aos aspectos fiscais. Uma destas alterações traduziu-se no facto de os rendimentos obtidos pelos eclesiásticos e pessoas jurídicas canónicas passarem a ser tributados nos termos gerais sempre que os mesmos se reportem a 29 Relativamente à isenção em IVA a favor da Igreja Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 132 30 Vide Lei de bases da politica e do regime de protecção e valorização do património cultural (Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro) 25 “actividades com fins diversos dos religiosos”, ao contrário do que resultava da interpretação dada ao art. VIII da Concordata com a Santa Sé de 1940, que estabelecia a isenção de natureza pessoal destes sujeitos. 2.3.2 - As Convenções da UNESCO A UNESCO foi o primeiro organismo internacional a dar relevância internacional ao património cultural, nomeadamente, ao património cultural cuja protecção e valorização representa um valor para a própria comunidade internacional31. UNESCO surgiu com a Convenção de 4 de Novembro de 1946, como organismo especializado da ONU, dedicado aos assuntos da educação, ciência e cultura. Esta Convenção estabeleceu como fins da UNESCO, a manutenção, desenvolvimento e difusão do saber através da “conservação e protecção do património universal de livros, obras de arte e outros monumentos de interesse histórico e científico”. Assim, a protecção do património cultural dos povos constitui um dos fins principais da UNESCO. Foi no âmbito deste objectivo que surgiram várias convenções internacionais relativas ao património cultural relacionadas com a UNESCO: a Convenção da Haia de 195432, para a protecção dos bens culturais em caso de conflito armado; a Convenção de Paris, de 1970, relativa às medidas a adoptar para proibir a importação, exportação e a transferência ilícita da propriedade dos bens culturais; a Convenção de 1972, para a protecção do património mundial cultural e natural; a Convenção de 2001, relativa ao património cultural subaquático, e a Convenção de 2003 para a protecção do património cultural imaterial. Vamos fazer uma breve análise sobre cada uma destas Convenções em particular. 2.3.2.1 - Convenção de Haia 31 32 Vide JOSÉ CASALTA NABAIS, “ Introdução ao Direito do Património Cultural”, pág. 134 Ratificada por Portugal apenas em 2000 – v. a Resolução da Assembleia da República nº 26/2000 e o Decreto do Presidente da República nº 13/2000, de 16 de Fevereiro 26 A Convenção da Haia de 1954, tem um objecto limitado, pois reporta-se à protecção dos bens culturais em caso de conflito armado, mas ainda assim de grande importância. Ao longo da história da Humanidade, a guerra tem sido uma constante nas relações internacionais, e ao longo do séc. XIX realizaramse inúmeras tentativas de regulamentar as falhas específicos do direito da guerra, que durante muito tempo, apenas tinha como objectivo a protecção da vida humana. Com as duas Guerras Mundiais, a comunidade internacional foi palco de numerosas destruições de monumentos históricos, o que juntamente com o fraco quadro jurídico relativo à protecção dos bens culturais em caso de conflito armado levou à necessidade de criar uma regulamentação precisa, a nível internacional, que tutelasse o património cultural em tais situações. Por isso, a Organização das Nações Unidas para a educação, ciência e cultura, levou a cabo a Convenção da Haia em 1954, para a protecção dos bens culturais em caso de conflito armado, bem como um Protocolo para a protecção dos bens culturais em caso de conflito armado. Estes dois textos rapidamente entraram em vigor, aos quais aderiram um grande número de membros da comunidade internacional, o que testemunha a importância da protecção dos bens culturais em caso de guerra. Apesar da existência desta regulamentação, a barbaridade humana continuou a fazer a sua destruição de bens culturais 33, o que levou à necessidade de reforço jurídico da protecção dos bens culturais em caso de conflito armado e assim, adoptou-se, em 1999, um segundo protocolo à Convenção de 1954. Para se entender com clareza qual o objecto desta Convenção importa perceber o que se entende por bens culturais. O art. 1º da Convenção de 1954 estabelece, sem ter em conta a sua origem ou o seu proprietário, três tipos de bens culturais: os bens móveis ou imóveis, que representam uma grande importância para o património cultural dos povos; os edifícios cujo destino principal e efectivo é conservar ou expor os bens culturais móveis; e os centros 33 Como exemplo mais recente temos a destruição de igrejas, mesquitas, mosteiros e até mesmo cemitérios nos conflitos da ex-Jugoslávia ou do Cáucaso. 27 que compreendam um número considerável de bens culturais, relativamente aos quais se faz referência em termos de “centros monumentais”. O sistema plural de protecção prevista pelo conteúdo da Convenção da Haia, traduz-se na existência de um conjunto de “círculos concêntricos” de protecção dos bens culturais durante hostilidades e nas regras específicas de protecção de bens culturais de um território ocupado. A Convenção da Haia prevê três círculos concêntricos de protecção dos bens culturais em caso de conflito armado. Cada círculo obedece a um regime jurídico distinto. Assim, temos a protecção geral e a protecção especial que surgiram desde logo com a Convenção de 1954, e a protecção reforçada que surgiu no âmbito do segundo Protocolo de 1999. A protecção geral é a protecção mínima que tem de ser oferecer a todos os bens culturais em conflitos armados, na medida em que estes bens gozam de um regime de imunidade. Este regime de imunidade assenta em duas obrigações fundamentais às quais devem obediência os beligerantes: obrigação de salvaguarda dos bens culturais34 e obrigação de respeito pelos bens culturais35. Contudo, esta obrigação de protecção mínima pode ser derrogada se “uma necessidade militar exigir de uma maneira imperativa uma tal derrogação”36. A protecção especial vem prevista no art. 8º da Convenção de 1954, que estabelece um número limitado de refúgios destinados a abrigar os bens culturais móveis em caso de conflito armado, os centros monumentais e outros bens culturais imóveis de grande importância, se, em primeiro lugar, estes bens culturais estiverem localizados a uma distância suficiente de um grande centro industrial ou de qualquer outro objectivo militar importante que constitua um ponto vulnerável, e, por outro que não sejam utilizados para fins militares. A protecção especial é concedida aos bens culturais através da sua inscrição no Registo Internacional dos Bens Culturais sob Protecção Especial, que está na posse do Director-Geral da UNESCO. Estes refúgios beneficiam de uma imunidade no decurso de hostilidades, devendo os Estados absterem34 35 Vide art. 3º da Convenção de 1954 Vide art. 4º da Convenção de 1954 36 Para mais desenvolvimentos V. MAURICE K. KAMGA, “La Convention pour la proteccion des biens culturels en cas de conflit armé de 1954 et ses deux Protocoles de 1954 et de 1999” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, págs. 826 e 827. 28 se de qualquer acto de hostilidade contra eles, e até mesmo de qualquer uso de tais bens ou seus arredores para fins militares. Contudo, podem existir situações em que este regime de imunidade é levantado37 38. Por fim, temos o regime da protecção reforçada, previsto no art. 10º do Protocolo de 1999. A protecção reforçada pode ser concedida aos bens culturais se estes preencherem três requisitos cumulativos: i) que se trate de património cultural da mais alta importância para a Humanidade 39; ii) que esse beneficie de uma série de medidas internas, medidas legais e administrativas que reconheçam o seu excepcional valor histórico e cultural e que garantam o mais alto nível de protecção; e iii) que esse bem não seja utilizado para fins militares ou para proteger locais militares. Relativamente ao regime de imunidade da protecção reforçada, esta encontra-se estabelecida nos arts. 11º e 12º do Protocolo de 1999, sendo que esta imunidade poderá ser removida, tal como acontece nos outros dois círculos, embora no caso da protecção reforçada, as situações de perda de imunidade sejam mais restritas: suspensão ou de anulação da protecção reforçada40 ou se o bem protegido se tornar num objectivo militar.41 Finalmente, temos a protecção específica de bens culturais num território ocupado. A situação de ocupação militar pode ser propícia à pilhagem de riquezas do território ocupado. Assim a Convenção de 1954 teve como preocupação assegurar a salvaguarda e a conservação de bens culturais em tais circunstâncias e assim impôs o dever dos Estados-partes que venham a ocupar, total ou parcialmente, outro Estado-parte de apoiar, sempre que possível, as autoridades nacionais do território ocupado para efeito de protecção dos bens culturais. Os Protocolos de 1954 e de 1999 completaram as disposições da Convenção a este respeito, criando medidas mais concretas 37 38 Vide art. 11º da Convenção de 1954 Para mais desenvolvimentos V. MAURICE K. KAMGA, “La Convention pour la proteccion des biens culturels en cas de conflit armé de 1954 et ses deux Protocoles de 1954 et de 1999” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, págs. 829 a 832. 39 O Protocolo de 1999 faz referência à “mais alta importância para a Humanidade” o que revela uma evolução em relação à expressão de “grande importância parta o património cultural dos povos” presente na definição de bens culturais previsto no art. 1º da Convenção de 1954. 40 Vide art. 14º do Protocolo de 1999 41 Vide art. 13º do Protocolo de 1999 29 para protecção dos bens culturais quer durante a ocupação42, quer após a ocupação43 44. 2.3.2.2 - Convenção de Paris A Convenção de Paris, realizada em 197045, destinou-se à adopção pelos Estados de medidas para proibir a importação, a exportação e a transferência ilícitas da propriedade de bens culturais. Importa conhecer o enquadramento histórico que levou à realização desta Convenção. A doutrina tem relembrado que o Tratado de Vestefália de 1648 constitui uma das primeiras experiências de acordo de países no sentido de permitir a restituição de arquivos e de outros bens culturais roubados durante a guerra. O Acto Final do Congresso de Viena em 1815 generalizou a ideia de responsabilizar os Estados infractores das duas obrigações relativas à protecção dos bens culturais e definiu, também, a obrigação de restituição ou de reparar os danos causados ao inimigo durante as hostilidades. No séc. XX uma prática estatal foi criada, para reconhecer a obrigação de devolver os arquivos, os documentos de interesse histórico, as colecções, etc, através da introdução de certas cláusulas nos tratados que encerraram a Primeira Guerra Mundial: o art. 238º do Tratado de Versalhes de 28 de Junho de 1919, o art. 189º do Tratado de Saint-Germain-en-Laye de 10 de Setembro de 1919, o art. 126º do Tratado de Neuilly-sur-Seine de 27 de Novembro de 1919, o art. 420º do Tratado de Sèvres de 10 de Agosto de 1920 e o art. 11º do Tratado de Riga de 18 de Maio de 1921. Estes exemplos demonstram o nascimento de uma norma costumeira que obriga os Estados a reparar os danos da guerra e a restituir na íntegra os bens culturais ou pagar indemnização equivalente. 42 43 Vide arts. 1º e 2º do Protocolo de 1954 e art. 9º do Protocolo de 1999 Vide arts. 1º, 4º e 5º do Protocolo de 1954 44 Para mais desenvolvimentos V. MAURICE K. KAMGA, “La Convention pour la proteccion des biens culturels en cas de conflit armé de 1954 et ses deux Protocoles de 1954 et de 1999” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, págs. 836 e 837. 45 Esta Convenção foi aprovada para ratificação pelo Decreto do Governo nº 26/85, de 26 de Julho, embora só através do Aviso nº 78/2002, de 2 de Agosto, foi tornado público que Portugal depositou, em 9 de Dezembro de 1985, junto do Director-Geral da UNESCO, o instrumento de ratificação. 30 O interesse do direito internacional para a protecção do património cultural em tempos de paz, é algo recente. O fenómeno de comércio ilícito de obras de arte, que tem aumentado nas ultimas décadas, tem sido encorajado pela valorização dos objectos artísticos, etnográficos, arqueológicos, históricos, etc. Segundo as estatísticas, este problema ocupa o terceiro lugar das infracções internacionais, logo a seguir ao tráfico de armas e de drogas. A mundialização é uma das responsáveis pelo aumento do tráfico ilícito de obras de arte: as infracções contra a arte têm aumentado graças às novas tecnologias e comunicações. Outra causa para este aumento é a redução do controlo das fronteiras. Daí a grande importância desta Convenção de 1970, que impôs aos Estados Contratantes um conjunto complexo de obrigações no sentido de fiscalizarem a entrada, saída e trânsito dos bens culturais nos respectivos territórios (o que acabou por ter uma eficácia muito limitada). No domínio do tráfico ilícito de bens culturais podemos distinguir duas situações ambíguas nos países que intervêm neste mercado. Face aos países exportadores temos os países importadores. Contudo, existe uma situação menos definida que são os “países em trânsito”. Na categoria dos países exportadores, temos muitas vezes os países desenvolvidos que possuem um património histórico e artístico muito rico, que são, ainda hoje vítimas de tráfico de bens culturais. É o caso dos países como a Espanha, a França ou a Itália. Já os países importadores, são países industrializados que constituem as grandes fontes económicas, como é o caso dos Estados Unidos, ou o Japão e alguns países europeus. São países onde residem, geralmente, os coleccionadores privados, ou colecções públicas, e onde existe uma grande disponibilidade para fazer novas aquisições culturais ou artísticas. Por fim os “países em trânsito” são os países por onde as obras de arte passam até chegar ao seu destino final, e onde residem os restauradores, os 31 comerciantes de obras de arte, os leiloeiros, etc. A ausência de referência a esta situação na Convenção de 1970 é lamentável46. Olhando agora para o conteúdo propriamente dito da Convenção de Paris de 1970, importa referir, primeiramente, que esta Convenção dá uma noção de bem cultural bastante ampla47, com objectivo de tentar proteger o maior número de antiguidades e objectos culturais possíveis. Trata-se de uma opção jurídica fortemente criticada durante as negociações com os países importadores, designadamente, a Áustria, a França, os Estados Unidos e o Japão. Assim, no final das negociações da Convenção, preferiu-se adoptar uma definição que, pelo menos, facilitasse as autoridades aduaneiras responsáveis pela aplicação da Convenção, através da remoção de critérios subjectivos de avaliação. Além disso, a pedido da maioria dos Estados, decidiu-se diferençar o carácter religioso ou profano dos bens culturais. Outro aspecto fortemente criticado desta Convenção, foi a importância excessiva atribuída ao critério da territorialidade aplicável ao objecto protegido. Embora, se reconheça três critérios para determinar a propriedade de um objecto de arte a um Estado, pode acontecer que um único objecto seja reclamado por mais que o Estado48. Os bens culturais são internacionalmente protegidos pela Convenção de 1970, segundo vários critérios: i) “Ratione materiae”, ou seja, a Convenção focaliza a protecção sobre os bens móveis dada a sua exposição particular aos riscos derivados do tráfico comercial, bens estes que requerem uma salvaguarda especial em caso de roubo, de escavações clandestinas ou de confiscos por uma ocupação militar, pois estes objectos são uma forma de expressão da memória e de identidade cultural do povo ao qual pertencem; ii) “Ratione loci”, ou seja, a Convenção aplica-se aos bens situados no território de um Estado-membro ou nos limites da sua zona contígua; iii) “Ratione temporis”, ou seja, a Convenção de 1970 não tem efeitos retroactivos, e não pode ser aplicada ao tráfico ilícito praticado antes da sua entrada em vigor em 46 De acordo com a opinião de MARIA CERVERA VALLTERRA, “La lutte internationale contre le trafic illicite des biens culturels et la Convention UNESCO de 1970: l’expérience trente-cinq ans après” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, pág. 561 47 Vide art. 1º da Convenção de 1970 48 Vide art. 4º da Convenção de 1970 32 27 de Abril de 1972. Para preencher esta lacuna, a Convenção, no seu art. 15º encoraja os Estados a procurar soluções bilaterais ou multilaterais para os bens desaparecidos antes dessa data49. Relativamente aos objectivos da Convenção de 1970, podemos dividi-los em 3 áreas: o controlo das exportações, o controlo das importações e o controlo da transferência ilícita dos bens. No âmbito do controlo das exportações a Convenção propôs aos Estados, para evitar as exportações ilícitas, estabelecer um certificado que indique as características da obra de arte que saia do seu país de origem. Este certificado funciona como uma autorização ou uma licença concedida pelas administrações públicas para a circulação no mercado mundial. Relativamente ao controlo das importações50, a Convenção limita-se a um único tipo de importação: aquele que se destina aos museus, aos monumentos civis ou religiosos e às instituições similares. Assim, só neste caso existe a obrigação de restituir o bem a um Estado-membro da Convenção, e desde que se prove que esse bem figura no inventário daquelas instituições. Além disso o Estado requerente deve pagar uma indemnização compensatória ao comprador de boa-fé. Por fim, temos o controlo da transferência ilícita dos bens, e aqui a Convenção limita-se a regulamentar certos aspectos complementares à acção estatal, uma vez que o regime da propriedade dos bens, da sua posse e da sua alienação é tratada pelas legislações nacionais. A Convenção de 1970 promove ainda medidas destinadas a evitar a importação, a exportação e a transferência ilícita dos bens culturais, são elas: a acção normativa, a acção preventiva, a acção restaurativa e a acção repressiva. 49 Para mais desenvolvimentos, v. MARIA CERVERA VALLTERRA, “La lutte internationale contre le trafic illicite des biens culturels et la Convention UNESCO de 1970: l’expérience trente-cinq ans après” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, págs. 583 e 584. 50 Vide art. 7º da Convenção de 1970 33 A acção normativa diz respeito às medidas legislativas, regulamentares e administrativas que a Convenção impõe que os Estados adoptem no sentido de reger importação e a exportação de obras de arte51. A acção preventiva tem sobretudo expressão nos arts. 5º, 14º e 17º da Convenção de 1970, que se traduzem em medidas destinadas a prevenir o tráfico ilícito de bens culturais, a criação de um ou de vários serviços especializados na luta contra este flagelo, seguidas da configuração constitucional em cada Estado52. Relativamente à acção restaurativa, já se referiu, que a Convenção de 1970 foi um dos primeiro tratados internacionais a prever, embora de maneira insuficiente, a retorno dos bens culturais ao seu país de origem em tempos de paz. Seguidamente, em 1978, a Conferência Geral da UNESCO criou um Comité Intergovernamental para a promoção do retorno dos bens culturais ao seu país de origem e sua restituição em caso de apropriação ilegal. O funcionamento deste Comité é regido pelo estatuto adoptado em 1980 53. Em 1986, o Comité redigiu um formulário-tipo para a solicitação de restituições ou retornos, destinado a simplificar todo o processo. A pedido da ICOM54, em 1999, criou-se o Fundo Internacional financiado pelas contribuições voluntárias dos Estados, dos organismos internacionais ou privados, administrado pelo Director Geral da UNESCO. Este fundo destina-se principalmente a reduzir os custos que as restituições podem implicar. Por fim, temos a acção repressiva que consiste na adopção de medidas coercivas. A Convenção da UNESCO não estabeleceu um sistema internacional para penalizar os infractores neste domínio, definindo apenas no seu art. 8º que os Estados contratantes comprometem-se a impor sanções penais ou administrativas a quem incumprir o previsto no art. 6º, al. c), e o art. 7º, al. b) da mesma Convenção. O que deixa os países exportadores numa situação de grande fragilidade, embora a maioria deles gozem de legislações 51 52 Vide arts. 2º e 13º da Convenção de 1970; Para mais desenvolvimentos sobre o conteúdo da acção preventiva, v. MARIA CERVERA VALLTERRA, “La lutte internationale contre le trafic illicite des biens culturels et la Convention UNESCO de 1970: l’expérience trente-cinq ans après” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, págs. 589 a 593. 53 Vide art. 4º da Resolução 4/7.6.5, adoptada pela Conferencia Geral da UNESCO na sua vigésima sessão 54 International Council of Museums ; 34 proteccionistas que prevêem sanções administrativas e penais contra os traficantes de bens culturais55. 2.3.2.3 - Convenção para a Protecção do Património Cultural e Natural Mais eficaz mostrou-se a Convenção para a Protecção do Património Cultural e Natural, de 197256, que contém o regime de registo e de protecção internacional dos bens culturais do património da humanidade. Define a ideia de que os bens culturais de valor excepcional constituem a herança de toda a Humanidade e demonstra que o desenvolvimento económico e social têm imposto grandes obstáculos à conservação desses bens, o que torna as medidas puramente nacionais, insuficientes na protecção dos bens culturais. Esta Convenção estabelece um conceito amplo de património cultural, uma vez que nele se encaixa tanto os bens culturais como os bens naturais. Esta Convenção contém uma classificação internacional dos bens arquitectónicos culturais dividindo-os em: i) os monumentos, e aqui enquadramos as obras arquitectónicas, de escultura ou de pinturas monumentais, elementos ou estruturas de carácter arqueológico, inscrições, grutas ou grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista da historia, da arte ou da ciência; ii) os conjuntos e dentro deste grupo temos as construções isoladas ou reunidas que em virtude da sua arquitectura, unidade ou integração na paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista da historia, da arte ou da ciência; iii) os locais de interesse que constituem as obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. Apesar de a Convenção de 1972 ter definido os elementos do património cultural, o que sugere que a Convenção abrangeu todos os elementos do património, as Orientações adoptadas pelo Comité Intergovernamental para a protecção do património mundial, que são periodicamente revistos, precisaram o conteúdo desses elementos e acrescentaram dois outros elementos: 55 Para mais desenvolvimentos sobre o conteúdo da acção preventiva, v. MARIA CERVERA VALLTERRA, “La lutte internationale contre le trafic illicite des biens culturels et la Convention UNESCO de 1970: l’expérience trente-cinq ans après” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, pág. 597 ; 56 Esta Convenção foi aprovada, para adesão, através do Decreto nº 49/79, de 6 de Junho; 35 acrescentaram elementos que pertencem ao património cultural mundial, nomeadamente o património misto cultural e natural de um lado, e as paisagens culturais de outro57 e excluíram expressamente os bens móveis, ou seja, as Orientações precisaram, claramente, que somente o património imóvel pode ser tido em conta na inscrição na Lista do Património Mundial58. De acordo com a Convenção de 1972, o património cultural mundial, deve reunir um conjunto de características que testemunhem o seu valor universal excepcional, a sua integridade e a sua autenticidade59. Relativamente ao valor universal excepcional há que reservar uma atenção especial. Neste conceito temos que considerar: o carácter excepcional do bem e os bens que são considerados como os mais excepcionais. A Convenção desenvolve este conceito dizendo que “o valor universal excepcional significa uma importância cultural e/ou natural excepcional que transcende as fronteiras nacionais e que representa o mesmo carácter inestimável para as gerações actuais e futuras e de toda a Humanidade. A protecção permanente do seu património é da mais alta importância para a comunidade internacional no seu todo”. Para que o bem seja classificado como bem cultural deve corresponder pelo menos a um dos seguintes critérios: i) Representar uma obra-prima do génio criativo humano; ii) Mostrar um intercâmbio importante de valores humanos em um determinado período ou numa área cultural determinada, sobre o desenvolvimento da arquitectura ou da tecnologia, das artes monumentais, da planificação das cidades, ou da criação de paisagens; iii) Fornecer um testemunho único ou pelo menos da tradição cultural excepcional ou civilização existente ou extinta; iv) Dar um exemplo notável de um tipo de edifício ou conjunto arquitectónico ou tecnológico ou de paisagem que ilustra um período significativo ou períodos da história humana; v) Ser um exemplo excepcional de estabelecimento humano tradicional, o uso tradicional da terra 57 Para mais desenvolvimentos, v. WAHID FERCHICHI, “La Convention de l’UNESCO concernant la protection du patrimoine mondial culturel et naturel” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, págs. 459 e 460 58 Para mais desenvolvimentos, v. WAHID FERCHICHI, “La Convention de l’UNESCO concernant la protection du patrimoine mondial culturel et naturel” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, págs. 460 e 461 59 Para mais desenvolvimentos, v. WAHID FERCHICHI, “La Convention de l’UNESCO concernant la protection du patrimoine mondial culturel et naturel” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, págs. 467 a 469 36 ou do mar, que é representativo de uma cultura, ou interacção humana como meio ambiente, especialmente quando se tornou vulnerável sob o impacto de uma mudança irreversível; vi) Estar directa ou materialmente associado a acontecimentos ou tradições vivas, ideias, crenças e obras artísticas e literárias de significado universal excepcional60. Todos os bens inscritos na “Lista do Património Mundial” devem ter uma protecção legislativa para assegurar a sua salvaguarda, devendo existir textos apropriados, com uma explicação clara do modo como esta protecção jurídica funciona para proteger o bem61. Relativamente aos bens que são considerados os mais excepcionais, esta noção introduzida pelo Comité tem por efeito reduzir o número de bens culturais inscritos na Lista da UNESCO, sendo que esta ideia corresponde à necessidade de criar uma Lista de Património Mundial que seja representativa, equilibrada e credível concebida para cobrir as lacunas da Lista da UNESCO62. De acordo com a Convenção de 1972, o papel dos Estados consiste em propor a inscrição de um ou de vários bens na Lista do Património Cultural Mundial. Esta inscrição, apesar de voluntária constitui um processo complexo sendo que, todos os elementos relativos à inscrição do bem na Lista da UNESCO devem ser objecto de uma importante documentação. O que significa que o Estado que pretende inscrever um bem na Lista deve fornecer toda a informação necessária para o efeito. Uma vez inscrito o bem na Lista do Património Mundial Excepcional, o bem goza da protecção necessário por parte do Estado que propôs a sua inscrição que passa a ter uma série de obrigações a seu cargo presentes nos arts. 4º, 5º, 6º e 27º da Convenção de 1972. No âmbito das inscrições na Lista do Património Mundial, o Comité da protecção do património mundial desempenha um papel fundamental, devido às funções que lhe incumbem os arts. 8º a 14º da Convenção nomeadamente: decidir acerca da inscrição dos bens culturais, por isso se considera o Comité 60 O Comité considera que este critério deve ser, de preferência, utilizado em conjunto com os outros critérios; 61 Para mais desenvolvimentos, v. WAHID FERCHICHI, “La Convention de l’UNESCO concernant la protection du patrimoine mondial culturel et naturel” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, págs. 461 a 465 ; 62 Para mais desenvolvimentos sobre a evolução da Lista da UNESCO, v. WAHID FERCHICHI, “La Convention de l’UNESCO concernant la protection du patrimoine mondial culturel et naturel” in “Le patrimoine culturel de l’humanité”, págs. 466 e 467. 37 como o guardião da Lista do Património Cultural Mundial; decidir acerca da inscrição na Lista do património em perigo; decidir acerca da retirada de bens culturais da Lista do Património Mundial de valor excepcional ou da Lista do património em perigo; e conceder auxílio e gerir os fundos para a protecção do património cultural. Por fim importa mencionar a cooperação entre o Comité e as diferentes organizações previsto no art. 13º, nº7 da Convenção de 1972, para relevar a importância do papel desempenhado pelas organizações internacionais, nomeadamente as não governamentais, neste âmbito. 2.3.2.4- Convenção para a Protecção do Património Cultural Subaquático Em 1982, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar sublinhou a necessidade dos Estados-membros protegerem o património cultural subaquático codificando-os com o termo “objectos arqueológicos e históricos. Esta Convenção obriga a protecção dos Estados desses objectos, mas não regula a forma de fazer essa protecção, deixando em aberto para uma regulamentação internacional. Foi assim que em 1993 a Unesco começou a desenvolver o projecto de uma nova convenção referente à protecção do património cultural subaquático. Esta Convenção foi adoptada em 3 de Novembro de 2001, tendo sido ratificada por Portugal em 2006. Entre os princípios da Convenção destacam-se: a preservação do património cultural subaquático, que deve ser tomada em primeiro lugar antes de encetar qualquer actividade que tenha por objecto tais bens; os bens culturais subaquáticos descobertos devem ser depositados, conservados e manipulados de maneira que seja assegurada a sua preservação a longo prazo; o património cultural subaquático não pode ser explorado comercialmente63. 2.3.2.5- Convenção para a Protecção do Património Cultural Imaterial 63 Vide nº 5, 6 e 7 da Convenção de 2001; 38 A última Convenção adoptada pela UNESCO, foi a Convenção para a Protecção do Património Cultural Imaterial, realizada em 2003, e ratificada por Portugal em 200864. 2.3.3 - Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar Importa mencionar a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, realizada em Montego Bay a 10 de Dezembro de 1982. Em 1994, esta Convenção converteu-se no Código Internacional do Direito do Mar 65. Apesar de esta Convenção não se dirigir directamente à tutela do património cultural, contem disposições acerca do mesmo, nomeadamente, coloca sob a jurisdição da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos os achados no leito e subsolo do alto mar, ou seja, o património cultural subaquático internacional, desde que sobre esses bens culturais não haja direitos preferenciais do Estado de origem66. 2.3.4 - A Convenção de UNIDROIT A Convenção de UNIDROIT, realizada em Roma em 24 de Junho de 199567, sob a égide do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado68, tem como objectivo regular o retorno de bens roubados ou ilicitamente ineficaz. Esta ineficácia prendeu-se com facto de a Convenção de 1970 apenas abranger a protecção internacional de bens que façam parte de colecções de museus ou de monumentos públicos, deixando de fora muitos outros bens culturais, sendo considerada um elemento insuficiente na medida em que 64 exportados, tendo sido concebida como um instrumento complementar à Convenção de Paris, de 1970, uma vez que esta se mostrou Portugal aprovou o Decreto-Lei nº 139/2009, de 15 de Junho, que contém o Regime Jurídico do Património Cultural Imaterial 65 Esta Convenção foi ratificada por Portugal, pelo Decreto nº 67-A/97, de 14 de Outubro 66 Vide arts. 303º, nº1, e 149º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar 67 Aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 34/2000 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 22/2000, de 4 de Abril 68 Organização intergovernamental que foi criada em Roma, em 1926, em ligação com a antiga Sociedade das Nações, como seu órgão auxiliar, e que ainda hoje se mantém como uma instituição autónoma, tendo por missão promover a uniformização do direito privado. 39 atende apenas aos aspectos de direito público, não tendo em conta a generalidade das questões que se colocam no plano do direito privado em matéria de protecção internacional dos bens culturais, nomeadamente o conflito existente entre a necessidade de principio de restituir um bem que foi roubado ou furtado e os problemas de direito privado que se colocam nas ordens jurídicas em que as pessoas de boa-fé, ao adquirirem um bem móvel, por não saberem que ele foi roubado, adquirem ipso facto a respectiva propriedade. Outra falha da Convenção de Paris prende-se com a inexistência de uma obrigação incondicional de restituição de bens ilicitamente exportados, uma vez que essa restituição acabava por variar de Estado para Estado nos pontos mais importantes, como por exemplo, a lei aplicável ao negocio jurídico, ao prazo para intentar a acção, ao adquirente de boa-fé, à indemnização a ser arbitrada, etc. Enquanto que a Convenção da UNESCO de 1970, se baseia numa acção de nível diplomático entre os Estados, a Convenção de UNIDROIT visa a regulamentação uniforme de vias de recurso perante as jurisdições nacionais a fim de obter a restituição dos bens culturais roubados ou ilicitamente exportados. A Convenção UNIDROIT inspira-se no objectivo do princípio do não esgotamento do património cultural dos outros Estados, presente na Convenção da UNESCO de 1970, ou seja, a restituição e o retorno dos bens roubados ou ilicitamente exportados devem se efectivar no interesse de todos. Contudo, a Convenção encontrou alguns obstáculos no sentido de que, no domínio da protecção contra o furto e contra a exportação ilícita de bens culturais, há interesses divergentes: temos, por um lado, os países exportadores de bens culturais, que têm um património cultural rico e querem reforçar as medidas de protecção, entendendo que qualquer bem cultural roubado ou ilicitamente exportado deve ser devolvido, e por outro lado temos os países importadores, que não têm um grande património cultural mas dispõem de importantes recursos financeiros que visam promover e reforçar a liberdade do comércio internacional de bens culturais e no caso de tráfico ilícito destes bens entendem que se deve reforçar a protecção dos adquirentes de boa-fé. Vamos agora analisar, agora, com mais pormenor para o regime jurídico 40 da Convenção. No preâmbulo da Convenção de UNIDROIT, os Estados-partes demonstraram-se profundamente preocupados pelo tráfico ilícito dos bens culturais e com os danos irreparáveis e manifestaram a sua determinação em contribuir eficazmente para a luta contra o tráfico ilícito de bens culturais, estabelecendo o conjunto mínimo de regras jurídicas comuns aos fins de restituição e de retorno dos bens culturais entre os Estados-partes, com o objectivo de favorecer a preservação e a protecção do património cultural no interesse de todos. A Convenção, no seu Capítulo I, trata do seu âmbito de aplicação dando uma definição de bens culturais. Assim, de acordo, com o art. 1º, a Convenção aplica-se aos pedidos de carácter internacional69 de restituição de bens culturais roubados, exportados do território de um Estado contratante (alínea a)) e aos pedidos de carácter internacional de regresso de bens culturais exportados do território de um Estado contratante em violação do seu direito que regulamenta a exportação de bens culturais, em razão do seu interesse cultural (alínea b)). De acordo com ANTÓNIO MARQUES quaisquer Estados mas apenas DOS SANTOS70, em princípio, a Convenção Estados contratantes, embora não ter carácter universal na medida em que não se aplica relativamente a aos relativamente aos bens roubados, presente na alínea a) do art. 1º, segundo a interpretação do autor, a Convenção se aplique aos caos em que o roubo foi praticado num Estado não contratante desde que o bem cultural furtado tenha sido exportado para um Estado contratante. Relativamente à alínea b), este preceito pretende resolver um problema de qualificação quando diz “em razão do seu interesse cultural”, esclarecendo que a exportação ilícita é aquela que é feita em violação do direito de um 69 Neste aspecto, a Convenção não define o que deve entender-se por carácter internacional mas de acordo com ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS em “Projecto de Convenção do UNIDROIT sobre a restituição internacional dos bens culturais roubados ou ilicitamente exportados” in “Direito do Património Cultural”, deve se considerar que carácter internacional implica um contacto com mais do que uma ordem jurídica soberana, ou seja, com mãos de um Estado que seja sujeito de Direito Internacional. Contudo, o conceito de “contacto” também não é muito fácil pois é muito discutido e algo impreciso saber o que se deve entender por situação privada internacional. Acabou por se optar em nada dizer e deixar que a jurisprudência determine o que são os pedidos de carácter internacional. 70 Cf. ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, “Projecto de Convenção do UNIDROIT sobre a restituição internacional dos bens culturais roubados ou ilicitamente exportados” in “Direito do Património Cultural”; 41 Estado relativo à exportação de bens culturais, por eles serem culturais, excluindo-se, assim, do âmbito do preceito os casos de violação de regras de direito fiscal de direito aduaneiro ou outras, que incidam tanto sobre exportações de bens culturais como sobre as de quaisquer outros bens. Em seguida, o art. 2º da Convenção dá uma definição de bens culturais, tendo sido uma das disposições mais discutidas do projecto71, acabando por se definir bens culturais como “os bens que, por motivos religiosos ou profanos, possuem importante valor arqueológico, pré-histórico, literário, artístico ou científico e que integram uma das categorias enumeradas em anexo à presente Convenção. ”. A Convenção de UNIDROIT contém dois procedimentos: um que diz respeito à restituição de bens culturais roubados72, presente no seu capítulo II e outro que diz respeito aos bens culturais ilicitamente exportados73, presente no seu capítulo III. Este é o primeiro instrumento jurídico internacional que contempla ambas as situações. Relativamente ao primeiro regime, presente no Capítulo II, a Convenção obriga à restituição do bem furtado ou roubado ao seu legitimo proprietário, independentemente de qualquer elemento transnacional. A Convenção faz assim prevalecer o interesse do verdadeiro proprietário ao do adquirente, de acordo com o princípio nemo dat quod non habe74. No seu art. 3º, nº1, a Convenção não faz qualquer distinção entre possuidor de boa-fé e adquirente de má-fé, tendo de restituir o bem de qualquer forma, não valendo assim, no âmbito da Convenção, a máxima en fait de meubles possession vaut titre75. No art. 3º nº2 da Convenção estabeleceu-se uma equiparação entre um bem “que provém ilicitamente de escavações” e um bem roubado ou furtado. No art. 3º nº3 da Convenção está em causa uma questão de prescrição e de caducidade havendo dois prazos, cuja fixação definitiva foi deixada pelos peritos para a Conferência Diplomática. Segundo o preceito, o prazo começa a contar a partir do momento em que o requerente conhecia o lugar onde se 71 Em relação às várias propostas de definição do conceito de bem cultural Vide ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, “Projecto de Convenção do UNIDROIT sobre a restituição internacional dos bens culturais roubados ou ilicitamente exportados” in “Direito do Património Cultural”, págs. 68 e 69; 72 Art. 3º e art. 4º da Convenção; 73 Art. 5º a art. 7º da Convenção; 74 O que à letra significa “Ninguém dá o que não tem”; 75 Cf. Art. 2279º, I, do Código Civil Francês; 42 encontrava o bem e a identidade do possuidor e também se tem em conta um critério objectivo de razoabilidade desse conhecimento, ou seja, tem se em conta o momento em que, embora não conhecendo esses factos, o interessado deveria razoavelmente tê-los conhecido. Quando ao nº4 do art. 3º, ele contém uma solução especial para as colecções públicas, ficando em aberto, para a Conferência Diplomática, a definição eventual de “colecção pública” e a questão de saber se os bens culturais que pertencem a estas colecções podem ser objecto de um pedido de restituição sem limitação de prazo ou se o prazo deve ser muito mais longo do que o prazo normal76. Apesar de o possuidor ser obrigado a restituir, o art. 4º determina que este tem direito a receber uma indemnização equitativa no momento da restituição, desde que o possuidor desconhecesse ou não devesse razoavelmente saber que o bem era roubado e que possa provar que exerceu a diligência devida no momento da aquisição, ou seja, o possuidor só receberá a indemnização equitativa se estiver boa-fé. O montante da indemnização baseia-se numa fórmula utilizada no Direito Internacional Público, segundo a qual, o montante da indemnização será fixado pelo juiz, ou qualquer outro órgão de aplicação do direito, em função das características do caso concreto. Assim, se o país que vem reclamar a restituição do bem roubado for um país que não disponha de recursos para pagar uma indemnização muito elevada isso será tido em conta no sentido de minorar o montante da indemnização77. O nº4 do art. 4º estabelece os parâmetros para determinar se o possuidor agiu com a diligência devida: devem ter-se em conta as circunstâncias que rodearam a aquisição do objecto, nomeadamente a qualidade das partes, o preço pago78, a consulta pelo possuidor de qualquer registo de bens culturais roubados que seja razoavelmente acessível e de qualquer outra informação e documentação relevantes que o possuidor 76 Relativamente a esta questão a Directiva 93/7/CEE contém uma definição de “colecção pública” (art. 1º, nº1, terceiro travessão) e fixa o período dentro do qual os objectos que dela façam parte podem ser reclamados, em principio, em 75 anos (art. 7º nº1 e 2). 77 A delegação italiana chegou mesmo a propor, durante os trabalhos do Comité de peritos, que fosse criado um mecanismo de financiamento das indemnizações a pagar pelos países pobres, mas, dada a complexidade do esquema financeiro em causa, tal proposta acabou por ser retirada, para não sobrecarregar o texto da Convenção. 78 Pois se, por exemplo, uma obra de um grande artista for adquirida pelo possuidor a um preço irrisório, esse facto constituirá um factor muito determinante a favor da sua má-fé. 43 pudesse ter obtido. Adopta-se portanto uma noção objectivada de diligência exigível a um indivíduo medianamente cauteloso e prudente colocado na posição real do possuidor que adquiriu um bem cultural furtado. No tocante ao retorno dos bens ilicitamente exportados, a Convenção consagrou um regime inovador: pressupõe o reconhecimento das normas de direito público estrangeiro, nomeadamente, das que interditam a saída de território nacional de objectos com significado artístico, histórico, espiritual ou ritual. Estas regras materiais estrangeiras designam-se de normas de aplicação imediata devido ao facto de conterem uma pretensão de aplicabilidade nas situações internacionais, qualquer que seja a lei competente designada pelas regras de conflitos do sistema geral de Direito Internacional Privado para regular a situação jurídica em causa. Em Portugal, existe desde 1937, uma regra de reconhecimento de normas estrangeiras de direito público de protecção dos bens culturais, que se encontrava presente no art. 31º nº2 da Lei 13/85. De acordo com o art. 5º da Convenção, se os bens deixaram o Estado de origem, os tribunais competentes do Estado onde os bens agora se encontram, devem determinar o seu retorno, desde que o pedido respeite os requisitos de prova e que a ausência destes bens do Estado de origem represente um prejuízo significativo para os interesses previstos na Convenção. O nº2 do art. 5º da Convenção estabelece os requisitos para se considerar um bem, como um bem objecto de exportação ilícita. De acordo com ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS79, o nº3 do art. 5º vem restringir o campo de aplicação do preceito, uma vez que não são todos os bens ilicitamente exportados que devem ser devolvidos mas só aqueles relativamente aos quais o Estado requerente consiga demonstrar, em alternativa, que se verificavam as circunstâncias de qualquer uma das alíneas ou que demonstre que aquele bem constitui uma importância cultural significativa para o Estado em causa. Contudo, o art. 7º da Convenção consagra algumas ressalvas a este retorno. Assim, não haverá lugar a retorno se a exportação do bem cultural já 79 Cf. ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, “Projecto de Convenção do UNIDROIT sobre a restituição internacional dos bens culturais roubados ou ilicitamente exportados” in “Direito do Património Cultural” 44 deixou de ser ilícita no momento em que o retorno é pedido e se o bem reclamado tiver sido exportado em vida do seu próprio autor ou nos 50 anos subsequentes à sua morte. O art. 6º da Convenção contém uma solução paralela à consagrada no capítulo dos bens culturais furtados, correspondendo ao direito que o possuidor de boa-fé tem a uma indemnização equitativa paga pelo Estado requerente, tendo-se em conta para a aferição de boa-fé a existência de um sistema de certificados de exportação. O nº3 do art. 6º da Convenção permite ao possuidor, mesmo após o retorno do bem, manter a propriedade do bem ou transferir a sua propriedade para um residente no Estado requerente, a título oneroso ou gratuito, desde que esse terceiro dê garantias de conservação do bem cultural no Estado para cujo território o bem foi devolvido. Passando agora para o Capítulo IV corresponde às Disposições Gerais, o art. 8º consagra as normas de Direito Processual Civil Internacional. No nº1, o artigo consagra a competência internacional dos tribunais ou outras autoridades competentes do Estado onde se encontra o bem cultural. Trata-se de uma nova lei que não consta em nenhum instrumento internacional anterior. O nº2 do art. 8º admite os pactos atributivos de jurisdição a favor de um tribunal ou de outra entidade competente, bem como o recurso à arbitragem80. O nº3 diz respeito às medidas provisórias e cautelares, que podem ser tomadas pelos órgãos competentes do país da situação do bem cultural, de acordo com a sua lei, ainda que a acção substantiva de devolução do bem seja intentada perante os órgãos de aplicação do direito de outro Estado contratante. Por fim, o art. 9º da Convenção estabelece o princípio de que as normas da Convenção são regras de protecção mínima, que não impedem que um Estado mantenha as suas normas actuais que sejam mais favoráveis aos objectivos prosseguidos pela Convenção. O nº2 do art. 9º deixa ao critério dos demais Estados contratantes o reconhecimento ou não das medidas mais favoráveis que tenham sido aplicadas por outros Estados contratantes. Tal como a Convenção da UNESCO, de 1970, a Convenção UNIDROIT 80 Contudo, ficou por esclarecer se se tratava só de arbitragem privada internacional ou se também incluía a arbitragem de Direito Internacional Público. 45 não tem aplicação retroactiva81. Concluíndo, a Convenção de UNIDROIT representa um compromisso entre os países importadores e os países exportadores de bens culturais que, obviamente, não têm os mesmos interesses. 2.3.5 - As Convenções do Conselho da Europa Relativamente ao Conselho da Europa, vamos referir-nos principalmente a três convenções que foram patrocinadas por esta instituição. São elas a Convenção de Londres de 1969 (revista em La Valetta em 1992) para a protecção do património arqueológico da Europa; a Convenção de Granada de 1985 para a salvaguarda do património arquitectónico da Europa; e a Convenção de Delfos de 1985, relativa às infracções sobre bens culturais. Antes de fazermos uma breve análise de cada uma delas, é importante desde já suscitar a existência de uma primeira, que data de 19 de Dezembro de 1954. Trata-se da Convenção Cultural Europeia, que veio prescrever que os Estados contratantes tomarão as medidas adequadas para salvaguardar e fomentar o desenvolvimento da sua contribuição para o património cultural comum da Europa, procurando cada um deles promover entre os seus nacionais o estudo de línguas, da história e da civilização dos seus Estados contratantes, promovendo consultas recíprocas, a circulação e o intercâmbio de pessoas ligadas às actividades culturais e objectos de valor cultural. Esta Convenção foi aprovada, para adesão, pelo Decreto nº 717/75, de 20 de Dezembro. Convenção de Londres Esta Convenção, de 6 de Maio de 1969 e que foi revista em 1992, visa a adopção de medidas comuns de salvaguarda do património arqueológico. Nela, 81 Art. 10º da Convenção 46 os Estados signatários comprometeram-se a desenvolver um regime legal de protecção do património cultural, no qual se prevejam três pontos fundamentais82: a elaboração de um inventário do respectivo património e classificação de monumentos e de zonas de protecção; a criação de áreas de protecção especial, reservas arqueológicas, à superfície ou subaquáticas, destinadas à conservação dos bens; e a obrigação do descobridor de participar às autoridades competentes a descoberta fortuita do património arqueológico e de os disponibilizar para estudo. Devem os Estados também tomar todas as medidas necessárias que interditem a pilhagem ou deslocação ilícita de parte ou totalidade do referido património e instituir métodos de investigação não destrutivos que assegurem sempre o melhor estado de conservação.83 Relativamente à questão permanência / remoção do património, a Convenção expressa-nos nos uma preferência no sentido dos bens arqueológicos permanecerem in situ, no melhor estado de conservação e no quadro de áreas especiais de protecção constituídas na sequência da adopção de políticas de planificação estratégica. Quanto aos bens removíveis, estes devem ser adquiridos preferentemente por instituições públicas e ser colocados em locais apropriados. Por fim a Convenção estabelece uma série de deveres de cooperação internacional em sede de pesquisa e de assistência técnica e ciêntifica mútua. Deve ser prestada toda a cooperação internacional à pesquisa do património arqueológico e promovida a sensibilização do público para a sua importência cultural e científica. Convenção de Granada Datada de 1985, esta convenção visa a salvaguarda do património arquitectónico da Europa. Segundo esta Convenção, a expressão “património arquitectónico” compreende três realidade distintas: i) os monumentos, que abrange todas as construções particularmente notáveis pelo seu interesse histórico, arqueológico, artístico, científico, social ou técnico, incluindo os elementos decorativos que fazem parte integrante das construções; ii) os 82 83 Art. 2º da Convenção. Art. 2º e 3º da Convenção. 47 conjuntos arquitectónicos, que são agrupamentos homogéneos de construções urbanas ou rurais, notáveis pelo seu interesse histórico, arqueológico, artístico, científico, social ou técnico, e suficientemente coerentes para serem objecto de uma delimitação topográfica; e iii) os sítios, obras combinadas do homem e da natureza, parcialmente construídas e constituindo espaços suficientemente característicos e homogéneos para serem objecto de uma delimitação topográfica, notáveis pelo seu interesse histórico, arqueológico, artístico, científico, cultural ou técnico. Os Estados signatários, para uma identificação mais precisa do património arquitectónico que deve ser protegido, comprometeram-se a fazer uma inventariação, e a consagrar um regime legal de protecção dos mencionados bens arquitectónicos, assegurando a sua tutela, obstando à sua desfiguração degradação e demolição. Para assegurar o cumprimento desta Convenção foi instituído pelo Conselho da Europa, um Comité de Peritos, que periodicamente deve apresentar um relatório sobre a situação das políticas de conservação do património arquitectónico nos diversos Estados signatários e propor, caso seja necessário, novas medidas. Convenção de Delfos Também datada de 1985, esta Convenção é relativa às infracções sobre bens culturais, isto é, diz respeito à prevenção e repressão dos comportamentos que constituam infracção ao património cultural. Os Estados signatários comprometeram-se a tomar medidas apropriadas de modo a cooperar na prevenção de infracções ao património cultural, na descoberta de bens culturais removidos do local em que se encontravam em consequência de infracção e na restituição dos bens ilicitamente saídos do território de outro Estado signatário. É de suscitar que esta Convenção ainda não entrou em vigor na Ordem internacional, nem foi objecto de ratificação por Portugal. 2.4 - O quadro do direito comunitário 48 Também o Direito da União Europeia contêm disposições relevantes em matéria de protecção do património cultural que importa analisar. 2.4.1 - Direito Originário No quadro do Direito Originário, ou seja, do direito contido nos tratados que integram a constituição e a disciplina fundamental da UE, diversas disposições contendem com a tutela do património cultural. Esta tutela está presente tanto ao nível do Tratado da União Europeia (TUE), como ao nível do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), na versão resultante do Tratado de Lisboa que alterou a TUE e aprovou o TFUE. E assim não poderia deixar de ser, porquanto nos dias de hoje o processo de integração europeia, cuja evolução tem agora como meta alcançada o Tratado de Lisboa, respeita a identidades dos povos dos Estados-Membros da União Europeia. Isto significa que os assuntos de carácter cultural continuam fundamentalmente a ser tratados pelos Estados. Como salienta CASALTA NABAIS, “cabe a cada Estado cuidar da cultura e da identidade cultural correspondente”. É do TUE que esta ideia é facilmente retirada do último parágrafo do nº3 do artigo 3º: “A União respeita a riqueza da sua diversidade cultural e linguística e vela pela salvaguarda e pelo desenvolvimento do património cultural europeu”. É contudo do TFUE que mais preceitos podemos retirar relativos à tutela do património cultural. Ainda que estes preceitos não digam directamente respeito aos bens culturais, mas sim às liberdades fundamentais em que o mercado comum se alicerça, a verdade é que podemos relacionar ou ter como objecto bens com valor cultural nessas liberdades. Podemos verificar isso na alínea c) do artigo 6º, referente ás “categorias e domínios de competência da União”. Estabelece este artigo que “A União dispõe de competência para desenvolver acções destinadas a apoiar, coordenar ou completar a acção dos Estados-Membros” no domínio da “c) cultura”. Relativamente à cultura estabelece ainda o nº1 do artigo 167º que “A União contribuirá para o desenvolvimento das culturas dos Estados-Membros, respeitando a sua diversidade nacional e regional e pondo simultaneamente em evidência o património cultural comum”. 49 Também o artigo 107º é um preceito relativo aos bens culturais. No seu nº3, vigora uma excepção à regra da qual resulta a interdição de auxílios de Estado quando provoquem distorções significativas à concorrência. Essa excepção refere-se aos casos de auxílio que visam a promoção da cultura e a conservação do património cultural. Importante é também fazermos uma referência às excepções às liberdades que estão na base do mercado interno 84. O nº2 do artigo 26º TFUE expressa que o mercado “compreende um espaço sem fronteiras internas, no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada...”. No entanto, esse quadro de liberdades não é de todo aplicável aos bens culturais. Tal realidade encontra-se expressa no artigo 36º TFUE, que dispõe que as proibições e exigências de eliminação das retrições quantitativas às importações e exportações entre os Estados-Membros, estabelecidas nos artigo 34º e 35º, não são aplicáveis às proibições e restrições às importações e exportações estabelecidas por razões de protecção do património nacional de valor artístico, histórico e arqueológico. Compete então aos Estados-Membros, manter ou criar unilateralmente medidas de direito interno em derrogação ao princípio fundamental da liberdade de circulação85. Outro artigo importante é o artigo 110º, que expressa o princípio da neutralidade fiscal. Segundo este artigo, “nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidem, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções”. Esta realidade verifica-se, mesmo que os Estados tenham em vista a salvaguarda de um interesse importante como o património cultural. Dos artigos 206º e seguintes, referentes à existência de uma política comercial comum da exclusiva competência da UE, resulta uma ideia de supremacia do TFUE sobre as leis internas no campo dos bens culturais. De 84 A realização das mesmas foi planeada pelo Acto Único Europeu, que foi editado em 1986 tendo entrado em vigor no ano seguinte, e foi dada por concluída em finais de 1992. 85 Deve essa derrogação ter por base a salvaguarda da identidade nacional, não podendo revelar-se arbitrária nem servir de suporte da intenção de erguer barreirass veladas às trocas intracomunitárias. Neste sentido, vide, Casalta Nabais, Introdução ao Direito do Património Cultural, pág. 147. 50 facto, violarão o TFUE quaisquer leis internas que disponham sobre barreiras à importação ou exportação de ou para terceiros Estados de bens culturais. Por fim, no que atende às liberdades de circulação de pessoas e prestação de serviços, é de suscitar a proibição de toda a discriminação em razão da nacionalidade, expressa no artigo 18º . Como salienta Casalta Nabais, “será incompatível com o direito comunitário o direito interno que, designadamente: proíba a venda de objectos de valor cultural a estrangeiros; reserve a cidadãos nacionais o exercício, por conta própria ou alheia, de profissão ligada ao restauro, conservação ou comércio de obras de arte ou ainda à actividade arqueológica terrestre ou subaquática; permita que os organismos públicos com monumentos à sua guarda reservem a adjudicação de obras de limpeza ou restaura a empresas estabelecida em território nacional; etc.”86 2.4.2 – O direito derivado É em sede do direito derivado, isto é, o direito emanado dos órgãos comunitários competentes, que existe um regime comum relativo ao património cultural. Antes da abolição das fronteiras físicas, era regra na generalidade das legislações nacionais relativas ao património cultural a limitação da saída dos bens culturais nacionais.87 Com a abolição das mesmas e a realização do mercado interno, desapareceram os controlos alfandegários, e como tal surgiu o problema de saber como garantir a eficácia das normas em vigor nos Estados relativas à proibição da exportação de bens culturais ou que impunham a essa exportação determinadas formalidades. Com o risco de depauperação do património cultural dos Estados através da sua exportação ilícita, tornou-se necessário que a União Europeia adoptasse legislação de modo a prevenir ou remediar a situação. A solução surgiu com dois diplomas: a Directiva 93/7/CEE e o Regulamento nº 3.911/92. A Directiva 93/7/CEE institui o regime de restituição dos bens culturais, ou seja, aqueles classificados como “património nacional de valor artístico, 86 87 Cf, Casalta Nabais, Introdução ao Direito do Património Cultural, pág. 148; A saída dos bens culturais dos territórios nacionais estava dependente de autorização da competente autoridade nacional, e em muitos casos estava interdita. 51 arqueológico e histórico”, ilicitamente exportados do seu país de origem88. Há dois aspectos a salientar quanto a este regime. Primeiro, este é meramente aplicável quando estejamos perante relações intracomunitárias. Segundo, baseia-se no reconhecimento mitigado das distintas legislações nacionais de defesa do património cultural. A restituição tem por objecto bens culturais classificados como “património nacional de valor artístico, histórico ou arqueológico”, e concretizase mediante uma acção intentada pelo Estado-Membro requerente no tribunal competente do Estado-Membro requerido. Para finalizar importa suscitar que esta directiva, no seu artigo 4º, institui um dever de cooperação entre os Estados e de concertação entre as competentes autoridades destes com o objectivo de combater eficazmente o tráfico ilícito de bens culturais. Relativamente ao Regulamento (CEE) nº 3.911/92, este diz respeito às relações dos Estados-Membros da CE com Estados terceiros. Segundo este diploma, a saída do território da União Europeia de bens culturais que constam da lista do Anexo ao Regulamento 3.911/92, está dependente da emissão de uma licença, que é válida para toda a União. 2.5 – O actual quadro legal 2.5.1 - Confronto da actual LPC e a anterior Vamos proceder a um confronto entre estas duas leis, que distanciam entre si apenas 16 anos. O primeiro aspecto a salientar é o facto da actual LPC ser bastante mais ambiciosa do que a anterior. Não só pelo título que ostenta, mas também 88 Esta ilicitude resulta tanto da violação da legislação de protecção do património cultural como da violação do Regulamento (CEE) nº 3.911/92. 52 porque é muito mais do que uma simples lei de bases do regime jurídico do património cultural. De facto, trata-se de uma verdadeira lei de bases da política do património cultural, porquanto procura conter não somente as bases do regime da protecção mas também da valorização dos bens culturais. Outra realidade a destacar compreende ao facto da nova LPC proceder a uma clara distinção entre património cultural (bens culturais em sentido lato) e bens culturais (bens culturais em sentido estrito), distinção essa que não está presente na LPC de 198589. Ao abrigo da nova lei, ao património cultural integram os bens culturais materiais, bens culturais imateriais, e outros quaisquer bens considerados como fazendo parte do património cultural por convenções internacionais que vinculem o Estado português e pelos contextos dos bens culturais. Já os bens culturais são constituídos pelos bens culturais materiais90. Por outro lado, a actual LPC consagrou, ao contrário da anterior, a remissão para o direito internacional tanto da definição das categorias dos bens culturais imóveis (dos monumentos, conjuntos e sítios) como do significado da classificação “património mundial”, tendo estabelecido que um imóvel só pode ser incluído na lista do património mundial se estiver integrado, para todos os efeitos e na respectiva categoria, na lista de bens classificados como de interesse nacional91. De salientar também que esta lei, ao contrário da de 198592, adoptou a posição correcta relativamente aos bens que, em conformidade com a Concordata entre a República Portuguesa e a Santa Sé, são propriedade da Igreja Católica ou estão em afectação permanente ao Serviço da igreja Católica93. A Lei de 2001 preocupou-se, também, em afirmar um adequado e operante princípio da graduabilidade do interesse público presente nos bens culturais, procurando estabelecer, por um lado, uma articulação adequada 89 Salienta CASALTA NABAIS que essa distinção parece ter por base já a própria Constituição “uma vez que as als. a) e b) do nº2 do art. 78º densificam o direito à cultura, reconhecido no art. 73º, nº 1, como um direito à fruição do património cultural e, designadamente, dos “bens culturais”. Cf, CASALTA NABAIS, Direito do Património Cultural, pp. 101 e ss. 90 São bens culturais materiais aqueles que “representem testemunho material com valor de civilização ou de cultura” ao abrigo do artigo 2ºem consonância com o nº1 do artigo 14º. 91 V, art. 15º nº 1, 7, 8. Segundo o nº4 do mesmo artigo, “um bem considera-se de interesse nacional quando a respectiva protecção e valorização, no todo em parte, represente um valor cultural de significado cultural”. 92 Na LPC de 1985, o legislador nacional meteu-se em matérias para as quais, por serem de natureza internacional, carecia-lhe legitimidade. 93 V., Arts. 4º, nº4; 7º, nº4 e 94º, nº5 LPC. 53 deste com o nível de atribuições do Estado, das regiões autónomas e dos municípios em matéria da protecção dos bens culturais94, e por outro, uma articulação com o grau de exigência em sede da forma dos actos de classificação e inventariação dos bens culturais95. CASALTA NABAIS salienta que a actual LPC tem um pendor bem menos proprietarista e estatizante face à anterior. Para tal suscita três factos: 1) A expropriação encontra-se configurada em termos bem mais limitados, porquanto, ao contrário da lei de 1985 que apresentava uma sanção contra os proprietários de bens culturais que se opusessem à sua classificação, visa tão somente assegurar da forma mais adequada a tutela dos bens culturais 96; 2) Na nova LPC está presente um entendimento mais amplo do direito de fruição cultural dos bens culturais, considerando o artigo 7º como fruição pública o “uso litúrgico, devocional, catequético e educativo dos bens culturais afectos a finalidades de utilização religiosa”; 3) Na actual LPC há uma limitação da classificação dos bens culturais móveis pertencentes a particulares ou de artista vivo, pois apenas podem ser classificados “como móveis de interesse nacional quando a sua degradação ou o seu extravio constituam perda irreparável para o património cultural, como móveis de interesse público os bens de elevado apreço e cuja exportação definitiva do território nacional possa constituir dano grave para o património cultural, e como móveis de interesse municipal ou móveis de artista vivo se houver o consentimento dos respectivos proprietários”97. A nível de prazos, a actual LPC estabelece um específico regime de caducidade para os procedimentos de inventariação, de classificação e de definição de zona especial de protecção dos imóveis classificados98. Contudo, nem tudo são diferenças entre ambas as leis. Há um aspecto comum que importa salientar. Nos artigos 19º, 62º e 64º da Proposta de Lei nº 94 95 V., Art 94º LPC. V., Art 28º LPC. 96 Cfr. O artigo 16º da LPC de 1985 com o artigo 50º da LPC de 2001. 97 V., Arts. 18º, nº2 a 4, e 56º. 98 V., art. 24. Quanto ao procedimento de inventariação está previsto o prazo máximo de um ano para a sua conclusão; para a conclusão do procedimento de classificação o prazo de um ano; e para a definição de zona especial de protecção 18 meses. Transcorridos estes prazos podem os interessados, no prazo de 60 dias, denunciar a mora, para efeitos de a Administração decidir de forma expressa e em idêntico prazo, caso contrário o procedimento caduca. Contudo, há que salientarque nos termos do art. 34º do DecretoLei nº 309/2009, que estabeleceu o procedimento de classificação dos bens imóveis de interesse cultural, que este prazo de 60 dias poderá ser prorrogado pelo director do IGESPAR, “através de despacho fundamentado, até ao limite máximo de 120 dias após a denúncia de mora por parte do interessado”. 54 228/VII estava presente uma proposta para estabelecer três níveis de protecção dos bens culturais (classificação, quantificação e inventariação). Todavia, essa proposta não obteve a maioria do Parlamento em 1999. Optouse assim pelos dois níveis de protecção que já estavam presentes na Lei de 1985: a inventariação (que abrange um inventário de bens públicos e um inventário de bens de particulares), e a classificação (como bens de interesse nacional, que são designados por “monumentos nacionais” no caso de imóveis, e por “tesouros nacionais”, em caso de móveis, bens de interesse público e bens de interesse municipal99. Importa fazer agora alusão ao quadro legal, referindo os diplomas legais mais importantes que actualmente disciplinam os bens culturais. 2.5.2 - A Lei do Património Cultural A Lei de Bases da Política e do Regime de Protecção e Valorização do Património Cultural surgiu como cumprimento à imposição do art. 165º, nº1, al. G) da Constituição, relativa às bases do sistema de protecção do património cultural, uma vez que se verificou que a LPC de 1985 para além de insuficiente, tinha uma série de soluções discutíveis, desajustadas, e algumas mesmo inconstitucionais. Acrescenta-se, que rapidamente deu-se conta que o seu conteúdo em alguns aspectos era totalmente inaplicável porquanto remetia para numerosos decretos-lei de desenvolvimento que não se vieram a editar. Deste modo, em 1996 foi designada uma comissão, presidida pelo Professor José Manuel Sérvulo Correia, com o intuito de ser apresentada uma proposta de lei de bases do património cultural. Proposta essa que não visava uma renovação da lei de 1985, mas a edição de uma lei totalmente nova. A nova lei encontra-se assim dividida em 12 títulos, alguns divididos em capítulos. Apesar da sua estrutura sólida, como seria de esperar, uma vez que se trata de uma lei de bases, a LPC remete para legislação especial a disciplina de diversos regimes especiais e para numerosa e variada regulamentação de desenvolvimento a sua aplicação100. 99 V., Arts. 15º, nº2 a 6, 16º, nº 1 e 2, 17º, 18º, 19º e 20º da LPC. V., arts. 25º, nº4; 26º, nº3; 31º, nº4; 44º, nº3; 45º, nº3; 46º, nº2; 53º, nº3; 55º, nº3; 60º, nº 1, 2 al. a), 3, 5 e 6; 66º, nº 4 e 6; 68º, nº3; 69º, nº7; 75º, nº8; entre outros. 100 55 2.5.3 - Outros diplomas legais A LPC contém o quadro básico da disciplina jurídica de todo o património cultural. Todavia, fruto de todas as remissões que faz para legislação especial e diplomas de desenvolvimento, não regula toda a disciplina legal dos bens culturais. Encontra-se somente desenvolvido na LPC os regimes gerais de protecção e de valorização, estando os regimes especiais com ums desenvolvimento bastante limitado. Por outro lado, existem muitos outros diplomas que apesar de não terem o património cultural por objecto, acabam por tratá-lo no que toca ao aspectos dos bens culturais. Suscitemos então alguns desses diplomas: a Lei do Património Cultural Subaquático, diplomas orgânicos dos serviços encarregados da tutela do património cultural, diplomas das regiões autónomas e legislação complementar da LPC, Estatuto dos Benefícios fiscais. Relativamente à Lei do Património Cultural Subaquático, o Decreto-Lei nº 164/97, de 27 Junho, importa referir que se encontra em consonância com a Convenção para a Protecção do Património Cultural Subaquático da UNESCO, porquanto afasta a visão mercantilista do Decreto-Lei anterior101, tendo agora uma concepção mais cultural102. Das leis orgânicas podemos suscitar o Decreto-Lei nº 215/2006, de 27 de Outubro, mais conhecida por Lei Orgânica do Ministério da Cultura, e os Decretos-Lei 95/2007, 96/2007 e 97/2007, de 29 de Março, relativas a três institutos públicos: Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA, IP); IGESPAR, IP; e, Instituto dos Museus e da Conservação (IMC, IP). No que respeita às Regiões autónomas, o primeiro diploma a referir, que se encontra salvaguardado pelo nº 4 do artigo 114º da LPC, é a Lei nº 19/2000, de 10 de Agosto, que atribui competência aos governos regionais para adoptarem as medidas necessárias e indispensáveis à realização de trabalhos 101 102 Decreto-Lei nº 289/93, de 21 de Agosto. CASALTA NABAIS salienta que uma gestão menos mercantil em Estados fracos ou com um funcionamento democrático menos robusto e transparento, pode levar a que a gestão dos bens culturais fique nas mãos de certas corporações, que em vez de se preocuparem com a prossecução do interesse público, abrem a porta “a um verdadeiro saque dos espólios subaquáticos, ancorado num verdadeiro mercado paralelo de bens culturais”. Cf do autor, Introdução ao Direito do Património Cultural, págs. 154 e 155. 56 arqueológicos, terrestres e subaquáticos, e para o levantamento, estudo, protecção, conservação e valorização do património cultural (móvel e imóvel), e suas zonas envolventes. Quanto aos diplomas regionais no que concerne à Região Autónoma dos Açores, são suscitáveis o Decreto-Regional nº 13/79/A, de 16 de Agosto, que veio definir o património cultural da Região Autónoma dos Açores e estabelecer normas relativas à sua protecção, o Decreto Regulamentar Regional nº 16/2000/A, de 30 de Maio, que veio estabelecer um sistema de apoios de natureza financeira e técnica a conceder pela administração regional autónoma à recuperação e conservação do património cultural arquitectónico e móvel da região, e o Decreto Legislativo Regional nº 27/2004/A, de 24 de Agosto, que contém o quadro normativo da gestão do património arqueológico da Região, regulamentando assim a referida Lei nº19/2000; no que concerne à Região Autónoma da Madeira, são de referir o Decreto Legislativo Regional nº 23/91/M , de 16 de Agosto, que aprovou o regime de protecção dos bens móveis do património cultural da Região Autónoma da Madeira e o Decreto Legislativo Regional nº 23/202/M, de 4 de Dezembro, que adaptou à Região o Decreto-Lei nº 55/2001, de 15 de Fevereiro, referente ao regime de carreiras do pessoal das áreas de Museologia e da conservação e restauro do património cultural. De Legislação complementar, são de apontar quatro diplomas legais, todos eles de 2009: o Decreto-Lei nº 138/2009, de 15 de Junho, que criou o Fundo da Salvaguarda do Património Cultural; o Decreto-Lei nº 139/2009, de 15 de Junho, que estabeleceu o regime jurídico do património cultural imaterial; o Decreto-Lei nº 140/2009, de 15 de Junho, que estabeleceu o regime jurídico dos estudos, projectos, relatórios, obras ou intervenções sobre bens culturais classificados, ou em vias de classificação, de interesse nacional, público ou municipal; e o Decreto-Lei nº 309/2009, de 23 de Outubro, que estabeleceu o procedimento de classificação dos bens imóveis de interesse cultural, bem como o regime jurídico das zonas de protecção e do plano de pormenor de salvaguarda. Relativamente ao património arqueológico é fundamental referir o Decreto-Lei nº 270/99, de 15 de Julho, e o Decreto-Lei nº 131/2002, de 11 de Maio. O primeiro contém a disciplina jurídica da realização dos trabalhos 57 arqueológicos, o segundo refere-se aos parques arqueológicos e aos correspondentes planos de ordenamento. Por último, é importante referir o Estatuto dos Benefícios Fiscais, porquanto este prevê benefícios relativos aos bens culturais, designadamente os respeitantes ao Mecenato103. O Mecenato está presentemente a sofrer uma alteração de sentido deveras significativa. Como salienta Casalta Nabais, a atribuição indirecta104 de benefícios fiscais às entidades culturais ou artísticas “revela uma crescente aproximação da Europa aos EUA relativamente ao financiamento da cultura e das artes, o qual faz assim cada vez mais apelo a um financiamento privado”, afastando-se “do paradigma europeu de uma cultura colocada fundamentalmente sob a alçada do Estado”. Conclusão O património cultural constitui o legado de artefactos físicos e atributos intangíveis de um grupo ou sociedade que é herdado das gerações passadas, mantido no presente para benefício das gerações futuras. A herança deste legado, que sobrevive do passado, é muitas vezes algo único e insubstituível, colocando à responsabilidade da geração actual a sua protecção e valorização. Os objectos culturais são muito importantes para o estudo da história da Humanidade, pois fornecem uma base concreta de ideias e pode validá-las. A sua preservação demonstra um reconhecimento da necessidade e importância do passado e das coisas que contam a sua história. Como vimos, existe já uma 103 Mecenato traduz-se na concessão de benefícios fiscais em sede de IRS e IRC relativamente aos donativos realizados a favor de certas entidades culturais ou artísticas. 104 Indirecta, uma vez que os benefícios não são atribuídos às entidades, mas sim aos seus patrocinadores. 58 grande colaboração dos Estados no sentido de protecção e valorização do património cultural. Contudo, importa que esta sensibilização chegue aos indivíduos, cidadãos de cada Estado, pois são os indivíduos os principais beneficiários desta protecção do património cultural. Importa também não esquecer que o património cultural não se apresenta apenas na sua forma material, mas que também existe património cultural intangível tão ou mais importante que aquele. Há uma crescente necessidade em preservar não só os objectos materiais do passado, mas também os costumes, tradições, lendas dos nossos antepassados. Os costumes, hábitos e conhecimentos têm se vindo a perder, enquanto que os bens do património cultural material já são alvo de grande protecção e acções de valorização. Concluímos destacando a importância da concertação entre o indíviduo e o direito na concretização destes objectivos. Bibliografia CASALTA NABAIS, José/ SILVA, Susana Tavares, Direito do Património Cultural – Legislação, Coimbra, Almedina, 2003; CASALTA NABAIS, José, Introdução ao direito do património cultural, Coimbra, Almedina, 2010; CORDEIRO, António, “Património Cultural” in Dicionário jurídico da administração pública, Coimbra, Atlântida, 1965; 59 INSTITUTO PARA A QUALIDADE NA FORMAÇÃO, I.P, Preservação, Conservação e Valorização do Património Cultural, IQF, 2006; MIRANDA, Jorge/ MARTINS CLARO, João, entre outros, Direito do Património Cultural, Instituto Nacional de Administração, 1996; NAFZIGER, James A. R./ SCOVAZZI, Tullio, Le patrimoine culturel de l’humanité – The Cultural Heritage of Mankind, Leiden/Boston, Martinus Nijhogg Publishers, 2008; SILVA, Vasco Pereira da, A Cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura, Almedina, Coimbra, 2007; SOUSA, Marcelo Rebelo/ ALEXANDRINO, José de Melo, Constituição da República Portuguesa – Comentada, Lisboa, Lex, 2000; 60
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