Theodor Lipps Influencia Esquecida de Freud

March 26, 2018 | Author: clara27a | Category: Sigmund Freud, Psychoanalysis, Metaphysics, Unconscious Mind, Psychology & Cognitive Science


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Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudianoZeljko Loparic Professor do Departamento de Filosofia da Unicamp e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP E-mail: [email protected] 1. Lipps na obra de Freud Para o público interessado na obra de Freud, Theodor Lipps (1851-1914) é um desconhecido. Entretanto, Freud refere-se a Lipps em momentos decisivos da criação da sua metapsicologia, ou seja, da sua teoria do inconsciente. Como é sabido, já em 1895, Freud abandonou a teoria fisiológica do psiquismo, exposta em O Projeto,1 e iniciou a busca de explicações psicológicas de fenômenos clínicos e da vida cotidiana que chamavam a sua atenção. A partir de 1898, Freud já estava trabalhando intensamente na teoria dos sonhos, ao mesmo tempo que procurava uma versão também psicológica da metapsicologia. É nesse momento que ele se dedica ao estudo das idéias de Lipps e as incorpora em sua doutrina. No fim da vida, ao refletir sobre a estrutura e a essência da teoria psicanalítica, já plenamente constituída, Freud retorna a Lipps para lembrar esse parentesco e reconhecer uma dívida intelectual. 1 Na carta a Fliess de 29 de novembro de 1895, Freud escreve: “Não entendo mais o estado mental em que maquinei a psicologia [exposta no Projeto]; não consigo conceber como posso tê-la infligido a você [...]; para mim, parece ter sido uma espécie de aberração [Wahnwitz]” (Masson 1986, p. 153). Natureza Humana 3(2): 315-331, jul.-dez. 2001 reconhecia a existência de várias metapsicologias filosóficas. escrita na véspera da sua viajem à Croácia (Dubrovnik). 2001 316 . mestre admirado por Freud nos tempos da universidade. as coisas vão melhor. livro básico de Lipps. elaboradas anteriormente à dele. da análise dos sonhos. publicado em 1883. professor de psicologia em Munique. Natureza Humana 3(2): 315-331. Freud estava lendo Grundthatsachen des Seelenlebens (Os fatos fundamentais da vida mental). mergulhei no estudo de Lipps. ao querer construir uma “ponte” entre a psicanálise e a filosofia. Até o presente momento.Zeljko Loparic 2. no momento em que iniciava o trabalho sobre sua teoria psicológica do inconsciente. por isso. p. é mencionado. 325) Esse trecho deixa claras duas coisas. pela primeira vez. que Freud. em particular. a Croácia fazia parte do Império Austro-Húngaro. Lipps nas cartas a Fliess (1898) Lipps. Numa carta de 31 de agosto. que adivinho ter a mente mais lúcida entre os escritores filosóficos da atualidade. jul.-dez. nessa época. numa carta a Wilhelm Fliess de 28 de agosto de 1898: Coloquei-me como tarefa construir uma ponte entre minha metapsicologia germinante e a que está contida nos livros e.2 Freud resume o seu acordo com Lipps nos seguintes termos: Com a psicologia. à luz de dados empíricos provenientes da clínica. tudo vai bastante bem quanto à compreensão e à transposição para as minhas suposições. Encontrei em Lipps os elementos fundamentais da minha concepção muito claramente formulados. com base em dados da vida cotidiana normal. ainda em formação e baseada em observações clínicas. Primeiro. Sabemos que. 2 Naquela época. (Masson 1986. ligado ao movimento fenomenológico influenciado por Franz Brentano. Segundo. que o objetivo específico de Freud. era compreender a teoria do inconsciente de Lipps e fazer a transposição desta para a sua própria teoria. que Freud dirigiu ao seu amigo Fliess. de modo algum. (Masson 1986. jul. pois. (Masson 1986. pelo menos curioso em saber mais sobre esse tal de Lipps que reforçava o psychological turn metodológico nas pesquisas de Freud.-dez. nem teórica. todo o conteúdo psíquico apenas representação. nem terapeuticamente. a qualidade etc. p. se não incomodado. muito mais do que deseja!” A consciência é apenas um órgão sensorial. Eu estava estudando os Grundthatsachen des Seelenlebens3 antes de começar a viagem. 2001 . diz exatamente aquilo a que cheguei. freqüentemente. Também nos detalhes o acordo é grande.Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudiano talvez até mais do que eu gostaria. inconscientes. “Quem procura acha. os processos psíquicos. em minhas especulações [itálicos meus] sobre a consciência. Os fatos fundamentais da vida mental. a partir da qual possam começar as minhas novidades. p. desbravei menos de um terço do livro dele. Até o momento. um ardente advogado da interpretação fisiológica do inconsciente: Mas não estou. talvez a bifurcação venha mais tarde. este responde: Quem é Lipps? Um professor de Munique que. agora preciso reencontrar meu caminho [de leitura]. p. Mark Kanzer parece ter razão quando diz que a influência do Lipps psicólogo se nota claramente no seguinte trecho da carta de 22 de setembro. no seu dialeto. na carta de 27 de setembro. 326) Freud não podia ser mais enfático: o seu acordo com Lipps chegava a ponto de ele precisar achar algumas divergências que pudessem dar espaço para as suas próprias idéias sobre o inconsciente. de modo que tenho que me comportar como se dispusesse tão-somente de dados psicológicos. 330) 3 Trata-se da obra de Lipps mencionada acima. (Masson 1986. Apenas não sei como seguir adiante com essa convicção. na sua totalidade. 327) Fliess parece ter se mostrado. sem uma base orgânica. 317 Natureza Humana 3(2): 315-331. nem tenho a menor inclinação a manter a psicologia suspensa no ar. em desacordo com você. na elaboração das explicações psicológicas causais. pelo contrário. onde Freud faz a discussão final dos conceitos de consciente e inconsciente. sem dúvida. 2001 318 . pelo menos não o era fora do círculo restrito de filósofos. jul. Natureza Humana 3(2): 315-331. é “adequado e justificado” trabalhar com a “metáfora” (Gleichnis) de dois sistemas “semelhantes às lentes do telescópio”.Zeljko Loparic Como se vê. na volta da Croácia. mas tão-somente de diversos modos de enervação de formações psíquicas. Mais importante ainda é notar que Freud sabe da diferença entre o modo de falar de Lipps e o seu próprio. nem mesmo em sua época Lipps era alguém muito conhecido. em seguida. publicado inicialmente em 1898 e. 3. controlados por instâncias psíquicas distintas. como capítulo 1 de A psicopatologia da vida cotidiana (1903). Conforme veremos a seguir. Freud. O recurso a Lipps em A interpretação dos sonhos (1900) Os resultados principais dessa leitura foram sintetizados na seção F do capítulo 7 de A interpretação de sonhos. Mesmo assim. Embora sejam meras construções auxiliares. sem esquecer que eles “não são psíquicos e que não são jamais acessíveis à nossa percepção psíquica”.4 Freud retoma a leitura do seu alter ego teórico. a fim de assegurar uma “representação intuitiva” desses modos de enervação. esses sistemas possibilitam 4 Foi durante essa viagem.-dez. Freud reconhecerá nesse fato uma das duas principais diferenças entre a sua metapsicologia e a de Lipps. especula. Uma leitura atenta de Lipps mostra que este – invocando Hume e lembrando. passando pela Bósnia-Herzegovina. que Freud colheu o material para o caso Signorelli. também de Kant – proíbe o uso de quaisquer pressupostos metafísicos e mesmo de hipóteses não ligadas aos dados acessíveis na consciência. seu primeiro estudo de caso relativo aos distúrbios da memória na vida cotidiana. A carta nos informa ainda que. Freud começa reapresentando a sua suposição de dois modos de escoamento de excitações psíquicas e enfatiza que não se trata de admitir a existência de processos diferentes em localidades ou sistemas diferentes do aparelho psíquico. que “a censura corresponde à refração dos raios na passagem para um novo meio”. p. 611)5 5 O leitor reconhecerá facilmente. esse modo de teorização especulativa tem a vantagem de permitir que sejam feitas hipóteses metapsicológicas precisas sobre o modo de produção desses processos. das observações que um médico podia fazer sobre estados mentais anormais. tratamento concebido como correção dos desvios da enervação psíquica. A fonte exata desse trecho decisivo não é identificada no aparelho crítico de nenhuma das edições da Traumdeutung. jul. pela psicologia. isto é. por sua vez – essa era a expectativa de Freud – permitiria tratamento eficiente de processos patológicos. é lícito supor. 319 Natureza Humana 3(2): 315-331.-dez. como objetos virtuais. uma citação do artigo de Lipps de 1897 (traduzido neste número de Natureza humana. o que. Além de assegurar a visualização dos processos psíquicos. Enquanto a psicologia eliminava esse problema pela explicação verbal de que o “psíquico” é justamente o “consciente” e de que os “processos psíquicos inconscientes” são um contra-senso palpável. Freud faz uma parada na sua exposição para dedicar algumas reflexões à relação entre os seus próprios pontos de vista sobre o inconsciente e as posições teóricas que predominavam na psicologia da sua época. 2001 . De acordo com esse tipo de metapsicologia ficcional e fisicalista. por exemplo. É nesse momento que ele retoma as idéias de Lipps expostas no artigo de 1897 sobre o inconsciente na psicologia: Segundo as palavras vigorosas de Lipps (1897). conscientes e inconscientes. Tendo explicado isso.Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudiano interpretar os objetos efetivamente dados na percepção interna como “semelhantes às imagens no telescópio geradas pela propagação dos raios de luz através de suas lentes”. o problema do inconsciente é menos um problema psicológico do que o problema da psicologia. se ambos reconhecerem que os processos inconscientes são “a adequada e bem justificada expressão de um fato efetivamente constatado”. 335-356). no último trecho entre aspas. (SE 5. permaneceu fora de questão a utilização. O médico e o filósofo só podem pôr-se de acordo. pp. o que é psíquico – ocorre como função de dois sistemas separados [itálicos meus].Zeljko Loparic Igualmente lippseano é o próximo parágrafo da seção F. já na vida normal. ele é tão desconhecido por nós quanto o real do mundo externo. encontra-se – tal como em certas fontes anteriores. Há. p. jul. sendo que algumas partes deste são também conscientes”. tirado da experiência clínica: O novo que nos foi ensinado pela análise das estruturas psicopatológicas. fundadas. os que pertenciam ao movimento fenomenológico nascente) e de assimilar as idéias de Lipps no enunciado das suas teses centrais. a fim de enfatizar “que o abandono da valorização excessiva do consciente é a pré-condição indispensável para qualquer visão correta do processo psíquico”. o sonho. Ambos são inconscientes no sentido da psi- 320 Natureza Humana 3(2): 315-331. itálicos no original) Contudo. a de que o psíquico existe como inconsciente. (SE 2. 2001 . Kant – o fundamento da observação que Freud faz em seguida: O inconsciente é o psíquico propriamente real. consiste no fato de que. No mesmo artigo. dirá Freud em seguida. 612. Freud também aponta diferenças entre o conceito de inconsciente do filósofo de Munique. recorre de novo ao presente artigo: “Segundo as palavras de Lipps. dois tipos de inconsciente. o inconsciente tem que ser suposto como a base geral da vida psíquica”. Na sua natureza interna. “Em Lipps”. o inconsciente – portanto. mediante dados da consciência. e já do primeiro elemento dessa classe. As palavras que coloquei em itálico são uma citação literal. pois. “encontramos uma tese que vai mais longe [que as dos outros filósofos]. e nos é apresentado. onde Freud.-dez. distinção que ainda não foi feita pelos psicólogos. além de fazer aliança com Lipps contra os filósofos que identificavam o psíquico com o consciente (entre eles. por exemplo. e o seu próprio. como disse. de maneira tão incompleta quanto o mundo externo através de indícios dos nossos órgãos dos sentidos. na observação dos fenômenos da vida cotidiana normal. um deles. Freud concorda. primeiro. 614) De acordo com esse texto. que designamos por Inc. pelo contrário. Dessa posição. recebeu de nós esse nome porque suas excitações [. é também inadmissível na consciência. Como se depreende do artigo referido. segundo. terem que percorrer uma seqüência imutável. censurado ou reprimido. “uma metáfora emprestada à espacialidade” (SE 5. Portanto.-dez. o que diferencia o inconsciente freudiano do de Lipps é. o inconsciente propriamente psicanalítico é algo inadmissível na consciência. Do ponto de vista da metapsicologia freudiana propriamente dita. físicos – de dados da consciência e nega qualquer interesse em identificar as excitações psíquicas conscientes com determinados tipos de processos cerebrais. da clínica de Freud. Lipps distingue entre “encadeamentos” psíquicos e fisiológicos – isto é. Do ponto de vista da teoria empírica. p. entendendo que. Até aí. para chegarem até a consciência. especulativamente. 2001 321 . de ele ser representado como algo espacial. como Freud diz explicitamente. o que caracteriza o inconsciente psicanalítico é “o fato de as excitações. isto é. mas no nosso. Prc. o fato de ele ser algo reprimido e. 614). a “psicologia pura” precisa assumir a liderança “nas questões da fisiologia”. Mas Lipps vai mais longe e nega qualquer interesse metodológico em usar os resultados ou hipóteses fisiológicas no estudo psicológico do inconsciente. no estudo “dos fenômenos do sonho e da formação dos sintomas histéricos”. apresento apenas algumas observações relativas à segunda diferença – que diz respeito ao uso da metaforização fisicalista na teoria especulativa do inconsciente. (SE 5. metapsicológica. Essa diferença é baseada. Natureza Humana 3(2): 315-331. enquanto o outro. isto é.Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudiano cologia. jul. são duas as diferenças entre a concepção freudiana do inconsciente e a de Lipps: uma empírica e a outra..] podem alcançar a consciência.. p. um itinerário de instâncias que podemos vislumbrar através das alterações que lhes impõe a censura” – fato que serviu a Freud para propor. A fim de indicar a importância capital de uma discussão aprofundada dessas diferenças para a compreensão tanto da teoria clínica como da metapsicologia freudianas. de novo. Ao inconsciente de Lipps – que não é fisiológico. colorido fisicamente. mas por se valer da metafísica mecanicista transformada em metáfora e em guia da sua pesquisa. mas psíquico e real – ele opõe. conscientemente. indicarei apenas uma linha de argumentação – é a seguinte: porque. um inconsciente metafórico. Freud não se separa de Lipps por razões provenientes da ontologia ou da epistemologia. puramente psicológico. segue-se a proibição de usar metáforas fisicalistas. para realizar os seus propósitos. Portanto. ao mesmo tempo que lhes concede um status meramente especulativo: ele não considera nem as suas máquinas metapsicológicas nem os objetos por elas gerados como entidades fatuais. empírico e fatual? Creio que a resposta – e aqui. na sua teoria do inconsciente (metapsicologia). Freud se separa de Lipps não por cair numa metafísica realista – ele fica com Lipps ao não conceder aos objetos das suas especulações mecânicas o status de realidade –. além de impregnado de múltiplos pressupostos provenientes da metafísica da subjetividade naturalizada. um instrumento. segundo Freud. Freud atribui uma importância metodológica decisiva precisamente às analogias espaciais e mesmo maquínicas. mesmo que necessite. jul. procurado por este desde 1898 e prontamente reconhecido em 1900. entre elas as espaciais ou tópicas. artificial. tal como apresentada em A interpretação dos sonhos.Zeljko Loparic tomada em conjunto com a exigência de que os conceitos da psicologia sejam uma “expressão dos fatos” e com a proibição de recorrer aos pressupostos metafísicos e até mesmo a hipóteses especulativas. nem literal nem metaforicamente. especulativo e artefatual seria cientificamente mais relevante que o literal. Enquanto Lipps opta pelo realismo. De fato. para o instrumentalismo. fazer da própria metafísica uma metáfora. isto é.-dez. decididamente. Por que Freud toma esse rumo? Terá sido por julgar que o inconsciente maquinista metafórico. essa concepção nos permite construir instrumentos mais eficazes para encontrar as soluções para os problemas que surgem na clínica psicanalítica. Freud se inclina. na teorização sobre o inconsciente psíquico. 2001 . mas por motivos de eficácia e de heurística. 322 Natureza Humana 3(2): 315-331. Aqui temos o ponto de “bifurcação” entre Lipps e Freud. e sim como virtuais. diferença já apontada em 1900. de fato. são esses caminhos psicológicos”. logo na frase seguinte. de traços de processos psíquicos. ele não está fazendo a tentativa de proclamar “que as células e fibras nervosas ou os sistemas de neurônios. Freud acrescenta que. apresentar os processos psíquicos inconscientes em si como o que é “propriamente eficaz psiquicamente”. no mesmo sentido que Lipps. converteram-se. (Ibid. tentei. bem como a abordagem da energia psíquica como quantidade. o ponto de vista tópico – valorizado por Freud como constitutivo da sua metapsicologia – é explicitamente proibido por Lipps: Somente quando falo de “investimento dos caminhos psíquicos” pareço distanciar-me das analogias usuais de Lipps. jul. dando uma ênfase especial ao caráter dinâmico do inconsciente: Os conceitos de “energia psíquica” e de “descarga”. Proximidade e diferença assinaladas em O chiste (1905) A grande afinidade com Lipps é reafirmada em O chiste (1905). p. ao propor esse modo de visualizar os processos inconscientes. pois. itálicos meus) Entretanto. que tomam hoje o seu lugar. têm-me sugerido. já em minha A interpretação dos sonhos (1900). mas também o apresenta como seu aliado nas questões essenciais da teoria do inconsciente.) Logo em seguida. Freud enfatiza que a única diferença entre ele e Lipps diz respeito a trajetórias espaciais dos “investimentos” psíquicos. em hábitos de pensar desde que comecei a dar-me conta dos fatos da psicopatologia em termos filosóficos e.-dez. (SE 8. conforme vimos. Mais uma vez. 148. As experiências acerca da possibilidade de deslocamento da energia psíquica ao longo de certas vias associativas e acerca da conservação. essa figuração [Verbildlichng] do desconhecido. “para evitar o mal-entendido”. 2001 323 .Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudiano 4. Em vários trechos dessa obra. quase indestrutível. para mim. Freud não trata a sua diverNatureza Humana 3(2): 315-331. Freud não somente atribui a Lipps avanços essenciais na teoria dos chistes e do humor. pois “somente a partir do momento em que foi feita a mudança na definição do psíquico tornou-se possível construir uma teoria abrangente e coerente da vida mental”. um ponto de vista meramente especulativo. deixando claro que a sua suposição de caminhos psíquicos fixos é apenas uma metáfora espacial – ou. de que. como Freud dirá em outros lugares.-dez. Reconhecemos aqui a mesma posição que Freud. Freud faz a sua última homenagem ao filósofo alemão: 324 Natureza Humana 3(2): 315-331. o que é mostrado pela história da psicanálise. jul. ao reexaminar e reapresentar as suas teorias. com pretensões realistas. expressou na carta a Fliess de 22 de setembro de 1898. característico do modo de teorização sobre o inconsciente psíquico próprio da metapsicologia – que não deve ser tomada por uma teoria biológica organicista. para o desenvolvimento da psicanálise. a substituição do ponto de vista fisiológico (favorecido por Fliess) pelo psicológico (defendido por Lipps). o mais filosófico dos capítulos desse livro. é “injustificável e infrutífera”. comentada anteriormente. 5. ou seja. influenciado pela leitura de Lipps. No capítulo 4 de Esboço de psicanálise (publicado em 1940). para os fins da pesquisa psicológica. Lipps nos textos tardios (1938) Como disse anteriormente. Em Algumas lições elementares de psicanálise (publicadas em 1940). A identificação do inconsciente com processos orgânicos. 40 anos depois daquela carta. não se deve “abandonar a identidade entre o inconsciente e o psíquico”. o inconsciente deve ser definido como psíquico. uma construção auxiliar. Ele afirma que.Zeljko Loparic gência com Lipps como um assunto de ontologia. Freud aponta Lipps como um daqueles pensadores que enunciaram a “suposição” do “inconsciente psíquico” nas “mesmas palavras” que a psicanálise. prossegue ele. mas como uma questão meramente metodológica. Freud recorda-se de Lipps. no fim da vida. Freud é ainda mais claro sobre os méritos de Lipps e a sua dívida para com ele. Depois de destacar a importância decisiva que teve. 2001 . na psicologia. como é sabido. Em segundo lugar. o uso do conceito de inconsciente na psicanálise e na psicologia em geral. para o estudo da relação entre a psicanálise e a filosofia da época do seu surgimento. exigiria. permanece pouco estudada a influência que a obra de Lipps exerceu sobre Freud no momento decisivo em que Natureza Humana 3(2): 315-331. portanto. mas a ciência não encontrava. o próprio Lipps caracteriza esse artigo como um resumo e como uma versão mais precisa das suas idéias sobre o inconsciente. p. entretanto. expostas anteriormente em outros livros. levou-o a sério e deu-lhe um conteúdo novo. 286) Uma análise detalhada desse resumo. (SE 23. para ele. esboçado por Freud. pela primeira vez e de maneira paradigmática. ocupa um lugar estratégico em toda a obra de Freud. texto que. portanto. que o psíquico é em si inconsciente e que o inconsciente é o que é verdadeiramente psíquico. é a ele que Freud recorre na seção F do capítulo 7 de A interpretação dos sonhos. o conceito de inconsciente batia nas portas da psicologia. Ele apresenta. O artigo de 1897 pode parecer. jul. que inclui Lipps como um dos autores principais. da maneira mais explícita possível. pouco significativo para um tal empreendimento.Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudiano Mas não é preciso supor que esse ponto de vista alternativo sobre o psíquico seja uma inovação devida à psicanálise. Por muito tempo. um interesse especial. 2001 325 .-dez. A literatura secundária sobre Lipps e Freud Na literatura secundária. pois nele é justificado. pedindo permissão para entrar. O filósofo alemão Theodor Lipps afirmou. 6. creio ser possível afirmar que temos diante de nós um documento de importância capital para o exame da relação entre Freud e Lipps e. entre outras coisas. A psicanálise apropriou-se do conceito. da história da teorização sobre o inconsciente. Por isso. Em primeiro lugar. por duas razões. conforme se depreende dos breves comentários aqui aduzidos. qualquer uso. um estudo de todas as obras de Lipps estudadas pelo criador da psicanálise. A filosofia e a literatura freqüentemente brincaram com ele. Zeljko Loparic este articulava. Os fatos fundamentais da vida mental. nem na Studienausgabe. 326 Natureza Humana 3(2): 315-331. a possibilidade do acordo entre a medicina. Depois de Strachey. “provavelmente. Strachey dedica-lhe algumas observações importantes em sua introdução de O chiste. publicado já em 1883. p. nem na Standard Edition. em torno de 1900. conforme foi visto. Entretanto. locus classicus para o nosso tema. que pode ser considerado. o tradutor mais influente de Freud e o seu comentador consagrado. em que Freud “subscreve a afirmação de Theodor Lipps de que o inconsciente é ‘o problema da psicologia’” (Assoun 1976. a sua psicologia do inconsciente. acrescentando que esse artigo “é a base de uma longa discussão no último capítulo de A interpretação dos sonhos”. 2001 . pela primeira vez. “Freud ficou de novo impressionado pelas suas observações sobre o inconsciente”. a metapsicologia. não menciona Lipps na sua apresentação de A interpretação dos sonhos. Um sinal claro desse esquecimento é o fato de o nome de Lipps não aparecer no índice de termos e nomes de A interpretação dos sonhos. pouca coisa mudou. que este apresentou num congresso de psicologia em 1897”. Depois de assinalar que. entre os psicanalistas. 75). o apresentador inglês observa que. Já Assoun. Lipps “exercia uma certa influência sobre o pensamento de Freud”.-dez. o psicanalista francês – prisioneiro. contra todas as evidências. um dos melhores estudiosos da relação de Freud com a tradição filosófica alemã. Entretanto. dedicadas apenas ao resumo de algumas teses do artigo mencionado. Ellenberger. Freud admite. James Strachey. destaca a frase da seção F de A interpretação dos sonhos. ao ler em seguida um livro de Lipps. o interesse de Freud por Lipps foi inicialmente despertado por um artigo sobre o inconsciente. da tendência generalizada de ir reafirmando. jul. ao que parece. não reserva a Lipps mais do que 10 linhas. isto é. Strachey nota ainda que as cartas a Fliess revelam que. num livro de 900 páginas. Nesse texto. sem qualquer tentativa de comparação com as posições de Freud. por exemplo. a originalidade absoluta da teoria freudiana do inconsciente – não se detém no significado do gesto de Freud de assinar embaixo de uma tese de Lipps na conclusão de sua obra máxima. nem na Penguin. explica Assoun. ambos escritos em 1938. Essa leitura duvidosa permite a Assoun atribuir a Freud uma posição paradoxal: reconhecer que foi Lipps. ao mesmo tempo. Não distinguindo entre as diferenças que separam Freud de filósofos da consciência e as que o opõem a Lipps. pois Freud. p. Natureza Humana 3(2): 315-331. isto é. Assoun cai na ilusão de ter se livrado da tarefa de repensar a relação entre a teoria metapsicológica embrionária de Freud e a elaborada anteriormente pelo filósofo de Munique. e de poder destinar ao esquecimento o parentesco conceitual e até mesmo a dívida intelectual de Freud para com esse pensador e o tipo de filosofia por ele representado. ao formular a sua crítica do consciencialismo usa. e a filosofia. 2001 327 . autor com quem se ocupou já em 1898? Assoun responde: porque. “para cada tese básica. Mas. estaria voltando a Lipps. minimizando as suas diferenças com Lipps. a fim de poder atingi-lo com a mesma crítica que Freud dirige ao consciencialismo. Freud sentia a necessidade de encontrar num grande texto filosófico um precedente (ou vários)”. em parte. jul. Por que razão Freud. Claro passo em falso. octogenário. nem por isso.). Para Assoun. Assoun não podia deixar de notar (ibid. “no momento de introduzir cada uma das principais teses da psicanálise”. afirmar que o inconsciente da psicanálise “não coincide com o inconsciente dos filósofos. “Em outras palavras”. nem com o inconsciente de Lipps”. Assoun está empurrando Lipps para o campo dos filósofos que definem o psíquico como consciente.Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudiano a psicanálise enquanto disciplina clínica. quem fez do inconsciente “a base geral da vida psíquica” e. Freud buscava “uma legitimação por antecipação filosófica”. Assoun vê-se obrigado a reexaminar a sua interpretação da seção F. os argumentos do próprio Lipps contra essa posição filosófica. e fundamenta essa possibilidade na tese de Lipps “de que os processos psíquicos inconscientes são ‘um fato efetivamente constatado’”. como vimos. 78) a passagem de O chiste em que Freud fala de inconsciente psíquico “no sentido de Lipps ou meu”. Leitor sistemático.-dez. um filósofo. Freud estaria apresentando “a psicanálise como aliada da medicina face à aliança atada entre os psicólogos e os filósofos sobre o fundamento consciencialista comum” (ibid. Ele também sabe da referência a Lipps em Esboço de psicanálise e em Algumas lições elementares de psicanálise.. também como reconhecimento de uma dívida intelectual. nem ao menos sabia quem era Lipps. tal como qualquer metafísica – nesse ponto. nem em 1898. que – Freud sabia – ia ser a última? Suponho que foi pela mesma razão pela qual Freud falou de Lipps nas cartas a Fliess: como lembrete. Freud é um kantiano – ser justificada filosoficamente. nem. Quanto à metapsicologia. de um parentesco conceitual entre a sua teoria do inconsciente e a do filósofo alemão e. o hóspede de honra da elite intelectual inglesa evocou o nome de um ilustre desconhecido em sua apresentação das teses centrais da psicanálise. não precisava nem poderia ser legitimada filosoficamente. por fim. esta é sempre apresentada como uma especulação de tipo metafísico. para os seus leitores. em determinados momentos. mostrando a sua fertilidade como guia da pesquisa empírica desenvolvida na clínica. em 1938.-dez. isso não se deve a qualquer “necessidade” de buscar uma “legitimação” filosófica da psicanálise. Conforme vimos. com a filosofia alemã. o de M. Nos anos 30 do século passado. isto é. o artigo de C. Kanzer (1981). a psicanálise era concebida. mas apenas por critérios heurísticos. ela ainda não explicaria a referência a Lipps como instância legitimadora. Brenner (1980). sem dúvida. Fliess. sobretudo. a psicanálise teria trazido para o pensamento ocidental em geral. Mesmo considerando correta a tese de Assoun relativa à “necessidade” de Freud de recorrer à legitimação filosófica. como uma ciência empírica e. ele reconhece a sua dívida para com a tradição e. muito menos. em 1938. 328 Natureza Humana 3(2): 315-331. Enquanto teoria clínica. Freud descreveu com clareza o caminho próprio que seguiu na construção da psicanálise e não fazia nenhum segredo quanto aos avanços – comparáveis aos produzidos por Copérnico e Darwin – que. por isso mesmo. Em mais de uma ocasião. Se. na sua avaliação. em particular. enquanto Freud gozava de fama mundial. em que o papel importante de Lipps na formação da metapsicologia freudiana é claramente reconhecido. Por que. então. 2001 . que não era exatamente um provinciano. Lipps já estava completamente esquecido mesmo entre os filósofos. e. Gostaria de mencionar. por Freud. jul. não podendo.Zeljko Loparic É difícil concordar aqui com Assoun. Uma tarefa ainda aberta Espero ter mostrado. feita na sessão de quarta-feira: “O inconsciente é metafísico.. eu me referi a uma afirmação sua [de Freud]. Freud não diz nada sobre a natureza do inconsciente. Ele pensa que. assim como o consciente. mas apenas o inferimos a partir do consciente. caberia submeter a uma análise mais fina a epistemologia e a ontologia pressupostas por Lipps em sua metapsicologia – por exemplo. que é 6 Como é sabido. por exemplo. a partir de uma análise da influência que Lipps exerceu sobre Freud. quebrável. mas publicadas somente em 1956: Na conversa mencionada. os conceitos disposicionais (solúvel. 7. 329 Natureza Humana 3(2): 315-331. do mesmo modo como Kant postulou a coisa em si atrás do fenômeno. Como autêntico cientista natural. Carnap 1936). a tirar lições gerais sobre a concepção freudiana da metapsicologia e a relação entre a psicanálise e a filosofia. extraído das anotações de Binswanger feitas em seguida à sua visita a Freud. jul. com esse breve comentário. em 1910. 2001 .) não designam “entidades” dinâmicas (cf.Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudiano o primeiro. etc. ele postulou o inconsciente por trás do consciente. Essa proposição mostra claramente que Freud está resignado com respeito a essa questão. não pode ser dispensada uma reconstrução cuidadosa do contexto intelectual em que Freud trabalhava. tese que parece conter uma crítica antecipada ao ponto de vista dinâmico da metapsicologia freudiana – que trata forças como entidades. justamente porque não sabemos nada dele com certeza. que a discussão sobre o parentesco e as diferenças entre a teoria do inconsciente de Freud e a de Lipps precisa ser continuada. Por um lado. nós simplesmente o pomos como real”.-dez. de meu conhecimento. irritável. a sua concepção da construção intelectual do mundo pela ciência ou a sua tese de que as forças e a matéria são disposições. Algo disso está preservado no seguinte trecho. Ele diz: nós procedemos como se o inconsciente fosse algo real.6 Por outro lado. esperam por um esclarecimento adequado. (Freud e Binswanger 1992. Retornar a Freud implica. defendida em 1913 e versando sobre o tema da doutrina do juízo no psicologismo. necessariamente. em 1910. GA 1. era do conhecimento geral o que hoje está quase completamente esquecido. ele chamou o inconsciente de organização psíquica inferior à do consciente. tal como Lipps. mas também porque menciona um grande número de temas importantes que. a partir do consciente. jul. 261. Brentano. 2001 330 . itálicos meus) Escolhi essa citação não somente porque mostra que. dedicar a Lipps uma seção inteira. Eu gostaria de dizer que nós podemos apreender muito mais.-dez. Uma outra vez. ele vê. p. mesmo. o psíquico kat’exohen [por excelência] no inconsciente. 125-59. para nós. a partir do aparecimento.7 7 Uma prova da importância de Lipps para o debate filosófico na sua época é fornecida pelo fato de Heidegger. De resto. Como é sabido. conforme mostra o texto de Binswanger. também ao hoje desconhecido. e com certeza muito maior. pp. a compreensão do sentido e do alcance da teorização freudiana sobre o inconsciente torna-se cada vez mais precária e deficiente. ao lado das seções sobre W. retornar a Kant e a Schopenhauer e. não serve para nada. a proximidade essencial entre Freud e Lipps. a saber. pura e simplesmente ignorado. do que sobre a coisa em si. Theodor Lipps. a psicanálise freudiana deixou de ser estudada no seu habitat natural – a cultura e a filosofia alemãs. Devido a motivos decorrentes da dinâmica cultural da Europa no século XX. Wundt e F. Heidegger 1978. Como esse quadro é cada vez menos presente em nossa época ou. mas na sua época influente. Natureza Humana 3(2): 315-331. que naturalmente. do qual o consciente se desenvolve. até o presente momento. sobre o inconsciente. A comparação com Kant não me parece correta em certos detalhes. Cf.Zeljko Loparic acessível em nossa experiência. eu me referi também a Schopenhauer que construiu a vontade por trás do consciente. na sua tese de doutorado. 2001 331 . PUF. Feigl. 1986: A correspondência completa de Sigmund Freud e Wilhelm Fliess. Klostermann. 1980: “Metapsychology and Psychoanalytic Theory”. Appleton-Century-Crofts. Recebido em 08/agosto/2001 Aprovado em 10/setembro/2001 Natureza Humana 3(2): 315-331. 189-214. New York. Mark 1981: “Freud. pp. Masson. Paris. Rudolf 1936: “Testability and Meaning”.) 1953: Readings in the Philosophy of Science. Ludwig 1992: Briefwechsel 1908-1938. In: Feigl e Brodbeck (orgs. Paul-Laurent 1976: Freud. pp. v. 335-356. Imago. pp.Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudiano Referências bibliográficas Assoun. Kanzer. Freud. jul. Lipps. Basic Books. Tradução de James Strachey. The Hogarth Press. Psychoanalytic Quarterly. Brenner.) 1953. 2. 49. May (orgs. Carnap. Theodor 2001 [1897]: “O conceito de inconsciente na psicologia”. Henri F. London. 3. Psychoanalytic Quarterly.-dez. Herbert e Brodbeck. la philosophie et les philosophes. Frankfurt/M. Fischer. Sigmund 1953-74: The Standard Edition. and ‘Scientific Psychology’”. Lipps. Frankfurt/M. Rio de Janeiro. 24 v. 1970: The Descovery of the Unconscious. Heidegger. pp. n. v. C. 47-92. Freud. 50. Natureza humana. Jeffrey M. GA 1. New York. Sigmund e Binswanger. Ellenberger. v. Martin 1978: Frühe Schriften. 393-410.
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