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May 29, 2018 | Author: Erickson Araujo | Category: Design, Graphic Design, Brazil, Drawing, Entertainment (General)


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Design Tropicalista de Rogério Duarte Tradutor de sânscrito, escritor poeta, músico, designer são algumas das atividades queRogério Duarte exerceu ao longo da vida. Personalidade mística dos anos 60, inicia sua carreira como designer no escritório de Aloisio Magalhães. Artista múltiplo, sempre à margem das instituições, Rogério é único. Dentre os trabalhos que criou, os projetos gráficos desenvolvidos para os cartazes do Cinema Novo e para as capas de discos durante o movimento tropicalista são memoráveis, inovadores e poderíamos, inclusive, chamá-los de pós-modernos. Se as capas dos discos da Bossa Nova, sobretudo as do designer Cesar Villela, eram orientadas por um modelo de contenção e simplicidade, na Tropicália elas “recorrem aos efeitos grandiosos”. A tropicália não é econômica nem simples, ela é complexa e alegórica. É a mistura de rock com baião, de poesia concreta com Vicente Celestino, de Jimi Hendrix com Roberto Carlos, de Iracema com Ipanema. As ideias de Caetano e Gil, profundamente enriquecidas pelas formulações teóricas políticas e estéticas do próprio Rogério Duarte, um dos próceres do movimento, foram projetadas visualmente nas capas de seus discos. Não é difícil ver na Tropicália um eixo de mudança para as capas de discos. Do mesmo modo como digeriram em suas composições o arcaico e o moderno, o nacional e o internacional, o pop e o Kitch, os tropicalistas transportaram para as capas dos discos essa mesma polifonia. O movimento inaugurou conceitos novos em produto, consumo, marketing e política visual. Essa inovação se deu principalmente pelas mãos de Rogério Duarte, e depois foi assimilada e desenvolvida por Luciano Figueiredo, Oscar Ramos, Aldo Luiz e Kélio Rodrigues, entre outros, designers que também fizeram a tradução visual das propostas sonoras daquele importante momento da cultura brasileira. Segundo Harvey o pós-moderno privilegia a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso cultural. Sendo assim a Tropicália parece ser o primeiro exemplo dessa nova postura no Brasil, detectadas a partir do movimento do grupo tropicalista (Caetano, Gil, Capinan, Torquato Neto, Tom Zé, Gal e outros) e do design de Rogério Duarte. ROGÉRIO CAOS Rogério Caos, apelido dado por Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, revela o complexo universo do músico, poeta, designer e professor Rogério Duarte. Nascido em Itabira, Bahia, em 1939, muda-se para o Rio de Janeiro por volta de 1960. Com uma bolsa de estudos, Rogério estuda na Escola de Belas-Artes, na Escolinha de Artes do Brasil e no Museu de Arte Moderna. Nos cursos do MAM, foi aluno de Otl Aicher, Tomas Maldonado, Alexandre Wollner, Max Bense, entre outros. Todo o racionalismo da Bauhaus e de Ulm foi passado a Rogério, que fez questão de manter o rigor técnico e funcional, mas, ao mesmo tempo, não deixou de observar elementos da cultura brasileira, como as festas populares, as pinturas dos trios elétricos e a tipografia popular. Em 1962,Rogério ingressa na UNE, faz cartazes para ações políticas, para os shows da Bossa Nova e para a revista Movimento. Amigo de Glauber Rocha, é autor do emblemático cartaz do filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), talvez uma de suas obras mais famosas. Assim como o filme, o cartaz projetado nos leva para a aridez e a violência do sertão. Corisco 1 elaborado para as comemorações de vinte anos da Tropicália em 1987. A partir de 1965. conforme suas palavras. era uma necessidade de transgredir. o sol do Nordeste refletido no chapéu do cangaceiro nos aquece e desafia. ao usar a foto. mesmo que os músicos não compreendessem sua linguagem. Rogério mantém o rigor e conhecimento técnico. Rogério deixa claro que sua participação no movimento não foi decorrente do fato de ser contratado de gravadoras ou pelos músicos. Pois. entre outros. Ele era o homem do campo do design que traduzia suas ideias. Contudo. permitia-lhe a possibilidade de uma comunicação com um grande público. assim como a música popular. a riqueza de Ulm foi ter trazido uma linguagem nova ao design: “Um repertório próprio. o herói intergaláctico (1969) de André Luiz Oliveira. Nesse mesmo ano escreve para a Revista Civilização Brasileira o artigo “Notas sobre o desenho industrial”. Rogério definiu: “Foi um modo de ser da produção brasileira. de Arnaldo Jabor e Meteorango Kid. Para ele não havia oposição entre o racionalismo e a fantasia: Rogério detinha um profundo conhecimento das artes gráficas. SUPERBACANA O primeiro disco solo de Caetano Veloso – Caetano Veloso – é um dos vértices que. ao formalismo ulmiano fosse acrescentado o caráter transgressor do movimento. Ele afirma que existia um voto de confiança. é um sotaque nosso. em vez da reprodução da pintura e do desenho”. A opinião pública (1967). era necessário que a técnica. Rogério faz. Para o Cinema Novo. Com isso ele comungava totalmente. questões sobre a diferença entre arte e design. junto com o de Gil – Gilberto Gil _ e o disco-manifesto – Tropicália ou Panis ET Circensis. conhece e torna-se amigo de Caetano Veloso e passa a contribuir de forma intensa na criação da Tropicália. forma 2 . que se estende até os dias de hoje”. Assim como o texto. a retícula. Para Rogério. Pois. de Cacá Diegues. Para Rogério. para que toda a tradição da gráfica suíça não virasse um dogma no Brasil. não há diferença entre Deus e o Diabo – eles se equivalem. como na nossa antropofagia”. (Duarte. e essa ruptura não era por desprezo. “design não é um trabalho aleatório. No texto “Momentos do movimento”. embora acredite que “seremos capazes de assimilar e transformar as influências. A grande cidade (1965). todo grafado em letras sem serifa e caixa-baixa. mas faz uma síntese entre o racionalismo e a exuberância tropical. o cartaz do filme A opinião pública é um bom exemplo do domínio que Rogério tinha desse repertório. elementos gráficos.nos encara através de sua espada. é um trabalho de comunicação”. critica a influência ulmiana no design brasileiro e mostra-se apreensivo com a nova escola – a Escola Superior de Desenho Industrial” (ESDI). “quando vira dogma perde a vida”. brasileiro de fazer as coisas. no qual discute as origens do design gráfico. 1965:246) Perguntando sobre o que foi a Tropicália. segundo ele. Duarte enfatiza sua necessidade de mudança. de Paulo César Seraceni. ainda. A linguagem gráfica anárquica e anticonvencional era consequência de uma possibilidade de libertar-se da arte das galerias. o design. O desafio (1965). Todos traduzem a força imaginativa do seu criador. repete o nome do cantor no alto do disco e uma moldura com as mesmas características kitsch envolve o texto manuscrito. Sobre o ovo. ou podendo ser finamente executadas e elegantemente adornadas. ao contrário da paródia/ironia. As culturas populares e eruditas são ingredientes em confronto e diálogo. O nome do cantor tangencia a borda superior. onduladas. autor da capa e parceiro em uma das canções do disco (“Anunciação”). já que as duas convivem no universo tropicalista.a tríade musical nuclear que detona a Tropicália em 1968. Nem de nenhuma outra: se há hegemonia. criando um pastiche visual. Na Tropicália. Oswaldianos. passamos a não ter uma hegemonia da cultura culta. que passam a ser a continuação dos conceitos estéticos do movimento. ocupando toda a largura da capa. A tipografia do nome é desenhada à mão. potencializado pelo uso das drogas. entre eles. A desconstrução da imagem é evidenciada pela representação do onírico. (Medeiros. exuberantes. elementos pictóricos)são fortes. A moça pode ser Iracema ou Brigitte Bardot. Rogério Duarte. antropofágicos. o pastiche é a apropriação de algo sem que se faça referência ao seu contexto original. um ovo. A iluminação domina a capa. A serpente pode representar o sexo. 1999:29) Essa nova estética psicodélica – apropriada por Rogério aqui e no cartaz de Meteorango Kid. O design desta capa. social. os elementos estético-formais (tipografia. e. O verso da capa. conta que se apropriou de uma ilustração anônima composta por uma moça seminua com longos cabelos segurando um dragão. talhada em formas abstratas. é a da diversidade. a produção de ideias. do pensamento. muito em moda na época Eram desenhos que ocupavam a folha inteira do papel. do mesmo ano – seria uma das manifestações do pós-moderno. em preto-e-branco. as bananas. agressivos. O contraste entre o arcaico e o moderno que o Tropicalismo expunha também está presente na capa: a composição é convencional mas. folhagens e bananas. desmistificadores – parodiando Augusto de Campos – os discos materializam as imagens tropicalistas em suas capas. além de uma serpente. a postura antropofágica se manifesta na ilustração que ocupa quase todo o espaço da capa. o nosso desenvolvimento. A tipografia é compacta. No disco solo de Veloso. A ilustração de que Duarte se apropriou para a capa de Caetano guarda em si algo de kitsch. por outro lado. totalmente livre do grid funcionalista. nos remete à caracterização da estética tropicalista. funde com a arte pop e joga por cima o psicodélico. Duarte estampou uma foto de Caetano. conforme o estilo psicodélico. Como nos diz Balchtin. ricos em linhas ou padrões ornamentais. in Owen. os fundos cromáticos. que chama a atenção para esse contexto. esticadas ou entortadas. que só pode totalmente apreendido com a audição do disco. dos textos tem sempre um caráter coletivo. Rogério Duarte apropria-se do vernacular. Como sabemos. 3 . de um surrealismo barato. Nesta capa “dialogam várias vozes. ou seja. os signos fundamentais para uma estética como na música que Villa-Lobos fez. “menos é mais”. Rogério sabia que a capa de disco era um meio de expressão no qual poderia colocar estas discussões. imposto via Bauhaus e. graus de contingência. havia trabalhos que eram muito mais determinados pela função do que outros. 2000:19). os objetos enquanto linguagem. A solução encontrada era puro deboche – ao estado. (Favaretto. “não haverá nada nos indicando o rumo a seguir. E assim foi feito. daí ele colocar a funcionalidade dos objetos dentro de uma gradação: Eu estabeleci no meu trabalho uma outra visão teórica. à cultura e à nação.Como disse Rogério Duarte. Havia uma gradação de funcionalidade que eu chamava de graus de determinação. Novamente utilizando recursos nitidamente tirados da arte pop. Discussões com Aloisio Magalhães. foi projetada por Rogério Duarte em parceria com o artista plástico Antonio Dias e o fotógrafo David Drew Zingg. a Tropicália começou a pesquisar toda a incomensurável riqueza do imaginário popular com seus milhões de soluções: não só popular no sentido da rua brasileira. Sentado no chão de sua sala. o estudo do Kitsch me levaram à compreensão de que inevitavelmente todo objeto tem uma carga simbólica muito importante”. um avião – a relação entre aerodinâmica. também de 1968. relativizadas/devoradas por uma produção que usa de paródia. polêmica secreta. CORAGEM PRA SUPORTAR A capa do segundo disco da tríade. Por exemplo. o cartaz cultural é uma coisa que tem um grau de liberdade muito maior do que. 1966:69) Como a de Caetano. bricolagem. simplicidade. Tudo aquilo que não tinha status estético de 4 . num automóvel. de comunicação direta. O design estabelece com a estética da Bossa Nova o mesmo nível de ruptura que as canções de Gil – subverte os paradigmas de clareza. Mais uma vez. na qual não havia categoria estanque. mas replicado em três poses. que se chama simplesmente Gilberto Gil. imagens surrealistas. irreverente e antropofágica. eu dizia. corroendo a fruição-divertimento”. função e forma é muito mais determinante do que em outros objetos. mas não interessavam para a materialização das ideias tropicalistas. aproveitando a própria terminologia matemática. que eram valores já assimilados. sobretudo a Escola de Ulm. pop. a capa estabelece um link direto com o conteúdo das canções. por exemplo. a capa traz a imagem do cantor não em uma. montagem. Vamos seguir só a bússola do nosso coração (apud Borges. por exemplo. a ideia das mercadorias enquanto linguagem. ideologias e linguagens. mas também dentro do pop internacional. Buscando nas raízes da produção cultural brasileira popular os elementos. Então. ele diz: “eu me abeberando exatamente do populário [sic] que é um dos aspectos da estética tropicalista. Como. um rótulo de remédio onde a legibilidade se caracteriza por pressupostos. romper com o chamado modernismo racionalista. a capa é alegórica. Para Rogério esta distinção entre forma e função nunca foi tão rígida. que se pudesse separar design de obra de arte. Max Bense. A capa do terceiro disco da tríade do movimento não foi projetada por Rogério. o design de Rogério não é uma forma fechada. traz uma série de questões para o design gráfico. Quase dois meses depois. apesar das condições extremamente adversas e angustiantes. Rogério diz que o desenho industrial é a forma por excelência da arte pós-Revolução Industrial e a modificação dos critérios trazida pela mecanização e suas consequências sociais abrange a totalidade da cultura. nada podia ser veiculado sem aprovação prévia da Censura. Assim como a Tropicália. numa quarta-feira de cinzas. nos logotipos e nas capas de discos que ele orquestrou. onde ficariam em prisão domiciliar até julho de 1969. com as capas de Caetano e Gil e depois com os trabalhos para os discos de Jorge Mautner. As restrições também se aplicavam à música popular brasileira. Embrionariamente. entre outros. nos cartazes. mas acordou e sobrevive até os dias de hoje de diferentes maneiras A importância do trabalho de Rogério Duarte para a Tropicália e para a história do design está estampada nas inúmeras capas de livros.“bom desenho”. o controle sobre a imprensa passou a ser completo. No dia 27 de dezembro de 1968. Durante esse tempo eles gravaram seus novos discos. igualmente ou até mesmo mais contundentes que os anteriores. para usar o termo maniqueísta que Ulm usava. dão sequencia ao movimento e prenunciam as atitudes distintas que os dois artistas terão no exílio. interessava à Tropicália”. Gal Costa. O governo podia suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos. Rogério apontava as questões da pós-modernidade na cena cultura brasileira. A Tropicália hibernou durante os “anos de chumbo”. os quais. Caetano e Gil foram presos sem muitas explicações. Smetak. Rogério diz não acreditar em um encerramento absoluto do movimento. Não se pretende aqui categorizar os projetos de Rogério como de 5 . É PROIBIDO PROIBIR A partir do AI-5. Assimilando e transformando todas as influências possíveis. fotografada por Oliver Peroy e arte-finalizada por Rubens Gershman. O choque que Rogério provocou inicialmente. Ela acabou sendo uma criação coletiva dirigida por Guilherme Araújo e Rita Lee. Caetano e Gil foram transferidos do Rio de Janeiro para Salvador. por isso mesmo é difícil de ser digerida. Rogério desenvolve uma ponte entre design e arte de tal modo que fica difícil estabelecer onde termina e começa a outra. polêmica e brilhante. 6 . Diretor de arte da Prefeitura Municipal de Salvador. Sem pretensões quero afirmar que. afirma: “Fui meio solitário na arte gráfica dentro do Tropicalismo. Rogério imprimiu sua personalidade criativa. Sem modéstia. Professor da Universidade Federal da Bahia. eu fui único”. em todas essas instâncias. mas sim chamar a atenção para um trabalho que rompeu com cânones.design pós-moderno. transgrediu regras e influenciou toda uma geração de capistas. no design. diretor do Museu de Arte Moderna de Brasília. 7 .
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