Comunicação em Rede e a Experiência Digital ContemporâneaCarlos Alberto Messeder Pereira1 A primeira ideia que deve ficar clara para que possamos entender a natureza da comunicação em rede e sua dinâmica é que ela é parte de algo maior, ou seja, ela é parte da sociedade em rede, uma nova forma de organização social, uma nova morfologia social das sociedades contemporâneas, da era da informação, apoiadas sobre a tecnologia digital, em que os fluxos ganham enorme importância, tendo forte impacto sobre a dinâmica social, bem como sobre o comportamento dos atores sociais, e sobre as formas de poder e de segmentação social. Nas palavras de Castells, um dos teóricos mais expressivos do fenômeno das redes, “(...) redes constituem a nova morfologia de nossas sociedades, e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura. Embora a forma de organização social em redes tenha existido em outros tempos e espaços, o novo paradigma da tecnologia da informação fornece a base material para sua expansão penetrante em toda a estrutura social. Além disso, eu afirmaria que essa lógica de redes gera uma determinação social em nível mais alto que a dos interesses sociais específicos expressos por meio das redes: o poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder. A presença na rede ou a ausência dela e a dinâmica de cada rede em relação às outras são fatores cruciais de dominação e transformação de nossa sociedade: uma sociedade que, portanto, podemos apropriadamente chamar de sociedade em rede, caracterizada pela primazia da morfologia social sobre a ação social”.2 É neste tipo de sociedade que vivemos atualmente, marcada ainda por forte globalização, fenômeno que nos expõe de modo contínuo e intenso a informações vindas de todas as regiões do planeta, em tempo real, independente de nossa localização geográfica e/ou posição social. Este processo de exposição contínua à diferença cultural 1 Antropólogo, professor aposentado da UFRJ, com Doutorado em Comunicação. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1999. Página 497. Volume I da Trilogia intitulada A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. 2 1 sobretudo. nesse ambiente de comunicação. mas. comunicação mediada por um computador ou periférico. “comunicação em rede refere-se à transferência eletrônica de informações. Isso nos remete imediatamente à ideia de que o fenômeno das redes (sociais. podemos afirmar que o conjunto de processos que recebe o nome de comunicação . E esta parece ser a prova definitiva de que as redes são um fenômeno não apenas recente. que me parece não apenas uma ideia cara às formas de comunicação que experimentamos hoje. recuperar. constituindo mesmo parte intrínseca da dinâmica sociocultural em geral. emitida de pontos diversos” (sic). O que gostaria de fazer.sempre se caracterizou por ser uma experiência que não apenas pressupõe como reforça a existência de redes. talvez ficasse 2 . o que é tão bem ilustrado pela comunicação de massa – e demonstrado de modo amplo e evidente pela TV – e. Não pretendo. muito tem facilitado a informação circular livremente. inicialmente. ao envolvimento simultâneo de mais de duas pessoas nos processos comunicativos que experimentamos nas diversas plataformas de comunicação que temos a nossa disposição. uma meia-verdade. culturais. digamos. e de um pra muitos. digase de passagem. etc. nossa parceiras insubstituíveis no dia a dia – o que é.muito anterior. fenômenos que ocorrem de modo simultâneo e contraditório e estão presentes na experiência social de todos os segmentos sociais. de modo algum. Segundo a Wikipédia. estamos muito acostumados. Com o surgimento das novas tecnologias. igualmente. um conceito que aponta para um forte diferencial das dinâmicas sociais contemporâneas. mas profundamente dependente das tecnologias digitais. assim como força nossa inserção e interação nestas mesmas redes. quando dois agentes comunicacionais entravam em relação direta. é salientar alguns aspectos da compreensão da dinâmica social e de comunicação que o momento atual nos permite. Até muito recentemente.) é muito anterior às redes digitais que tanto conhecemos hoje.é responsável tanto pela crescente relativização de perspectivas culturais quanto pelo acirramento de preconceitos e conflitos culturais. duas formas de comunicação nos eram bastante evidentes – de um pra um. Hoje. retirar a originalidade da expressão “comunicação em rede”. aos avanços tecnológicos digitais que marcam as sociedades contemporâneas . Aproximando-nos mais diretamente do campo da comunicação. em nosso cotidiano de comunicação. identificar com clareza sua natureza bem como seus efeitos sobre nosso cotidiano sociocultural. Linkedin e tantas outras. É nelas que 3 . Entretanto. a comunicação face a face entre vizinhos vai também na mesma direção. de seus participantes). uma vez que eram de mais difícil percepção (do ponto de vista. a primeira coisa que nos ocorre são as diversas “redes sociais” de que participamos – Facebook. principalmente. Enfim. são características das redes contemporâneas. Evidentemente. trata-se de um conjunto diverso de exemplos que nos ajudam a perceber o quanto o fenômeno das redes não nos é estranho do ponto de vista de nossa experiência social. as redes acima apontadas diferenciam-se muito das que experimentamos hoje. Podemos. Instagram. por exemplo. mais ainda. entender as empresas de correio. entretanto. a troca de cartas entre os participantes da rede de relacionamentos de um agente social qualquer gerava uma rede de intensidade razoável. Estas. Enfim. certamente. Ao mesmo tempo. acessamos pelo telefone formam uma rede de relacionamento importante para nossa presença na cena social. vale lembrar que estas são exemplos de redes de comunicação mas não são sinônimo de comunicação em rede e nem constituem sua totalidade. mesmo nessa era de vigência de modelos e/ou registros de comunicação que não o da comunicação em rede como experimentamos hoje. sobretudo. as redes não tinham nem a dimensão das redes atuais nem sua enorme e fácil visibilidade.mais difícil imaginar a existência ou a presença de redes e. Entretanto. São sim nossa experiência cotidiana e mais direta da comunicação em rede. não contavam com atores sociais conscientes de sua posição na rede e fortemente empoderados e proativos na sua participação. não tinham a abrangências das redes contemporâneas e. a emissão de programas de rádio ou TV gerava entre os fãs de determinado programa ou personagem a formação de uma rede. responsáveis pela troca de cartas e encomendas. a experiência de redes certamente não nos era estranha. como fomentadoras de redes de circulação de informações e produtos. desde muito. embora a percepção e os tipos de engajamento que estas redes pré-digitais nos faziam vivenciar eram de natureza muito diferente do que experimentamos hoje nas sociedades em rede. cultural e comunicacional anterior ao surgimento e difusão da tecnologia digital. quando falamos em comunicação em rede. têm grande tangibilidade para nós e são canais de intensa participação. as pessoas que. o universo comunicacional já nos inseria em redes. Naquele momento. em tempo real. gera. se ambos os pontos forem nós de uma rede do que se não pertencerem à mesma rede. principalmente através das redes sociais e. Muito frequentemente... desafios cujo encaminhamento produtivo implicará. hoje.) uma rede é um conjunto de nós interconectados.. distâncias geográficas e sociais. na opinião de autores diversos. tanto fatos positivos quanto negativos.experimentamos as transformações recentes de categorias como público e privado. as novas possibilidades de relacionamento social que atravessam. finalmente? Ainda segundo Castells. op. a Internet. desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo.. entre instituições ou mesmo entre pessoas e instituições. por exemplo.) A topologia definida por redes determina que a distância (ou intensidade e frequência da interação) entre dois pontos (ou posições sociais) é menor (ou mais frequente. ou mais intensa). estas redes contemporâneas apoiam-se sobre a tecnologia digital. Mas o que são redes. através do telefone celular. entretanto. “(. hoje. configurando o ciberespaço. Nó é o ponto no qual uma curva se entrecorta. as novas formas de colaboração e de produção de ideias coletivas. cit. O modo como lidamos. A instituição escolar enfrenta.. valores ou objetivos de desempenho)”.. 4 . em tempo real. ou seja. Página 498. o que um nó é depende do tipo de redes concretas de que falamos. certamente. vemo-nos diante de desafios do ponto de vista do comportamento e dos relacionamentos que certamente vão exigir longo aprendizado e discussão das novas tecnologias. (. há certo “vício tecnológico” no ar que parece merecer uma atenção e uma reflexão especiais. difundemse por toda parte e se atualizam no interior do espaço da rede mundial de computadores.) Redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada. integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede. É no interior deste mesmo espaço ou na dependência dele que vão se constituir boa parte dos relacionamentos contemporâneos tanto entre pessoas diretamente. que pessoas e 3 CASTELLS. Apesar das vantagens óbvias que esse universo digital nos traz. mudanças nos métodos de ensino e no próprio espaço da sala de aula que talvez ainda nem sejamos capaz de imaginar. com estas redes. Concretamente. dando sequência e materialidade a novas maneiras de agir e pensar. ao vivenciarmos a “exposição em massa” do cotidiano. (. É neste ambiente de trocas intensas. sobretudo.3 Assim. os quais atualizam novas linguagens e novas formas de pensar coletiva e individualmente4. nessa tela que não abandonamos nunca. qual seria a tela que teríamos sempre conosco. Lugar de encontro. preferencialmente. por exemplo. Pesquisas. fazendo do ciberespaço a grande “praça” contemporânea. parece que descobrimos o prazer da convergência de conteúdos que podem. Mais do que uma convergência tecnológica. mostra de modo bastante claro o 4 Ver o trabalho de JENKINS. a conectividade e gerando forte engajamento. discutiu-se intensamente qual seria a tela que teria primazia sobre as outras. Em todos os campos.instituições com interesses próximos vão constituir comunidades virtuais. neste ou naquele momento. estes sim. em que conteúdos são continuamente propagados. de colaboração e/ou compartilhamento e do surgimento de novas formas de conteúdo. Do ponto de vista da produção intelectual. ou seja. Cultura da Convergência. 5 Para uma discussão aprofundada destas questões relativas à convergência. Editora Aleph. intensificando a participação. de troca e de visibilidade pública. hoje nos valemos de diferentes telas ao longo de nosso dia e em cada uma desempenhamos. ver o trabalho de JENKINS. vai propiciar novas formas de produção/consumo. exemplos de colaboração coletiva são evidentes – manifestações online. acontecem em tempo real. são realizadas com colaboradores situados em diferentes institutos de pesquisa e espalhados por diferentes regiões do planeta. em certo sentido. Henry e outros. Editora Aleph. Temos a nossa disposição uma quantidade razoável de telas que disputam nossa atenção. São Paulo. circular por várias telas e ser consumidos naquela que. esta ou aquela função. Cultura da Conexão. O caráter coletivo e plural do pensamento intelectual/científico nunca foi tão evidente e esta fácil visibilidade estimula mais e mais cooperação. Apesar da força do telefone celular no sentido de se transformar. 2014. gerando forte incremento de conhecimento e de inovação. Durante algum tempo. 5 . É ai que as trocas comunicacionais de muitos para muitos vão acontecer. A Internet é. nos satisfaz mais5. Este ambiente de intensa conectividade. hoje. como vimos. 2009 (1ª reimpressão). Ao mesmo tempo. a prática do crowdfunding. um site como o YouTube. Trocas que. por exemplo. enfim. o ambiente ou o “lugar” dos fluxos e das trocas de conteúdos os mais diversos. Henry. a lista de exemplos é enorme. os efeitos desta lógica colaborativa são radicais e bastante visíveis. sobretudo. São Paulo. busca de assinaturas para petições. o que amplifica em muito as possibilidades de surgimento de novas e criativas ideias. assim como no Brasil. pudemos observar. E mais. Acima de tudo. com consequências que parecem definitivas do ponto de vista das formas de ação politica e econômica nas sociedades contemporâneas. diga-se de passagem. poderão aproximar personagens até então desconhecidos uns para os outros. no que se refere a manifestações políticas. Pelo menos do ponto de vista dos enormes bancos de dados com os quais convivemos hoje. um editor de conteúdo. ao eleger determinados caminhos de leitura em detrimento de outros ele se “aproxima”. o que faz de cada um de nós um produtor e. nos movimentos envolvendo os Indignados. Nos eventos da Primavera Árabe (em países como Tunísia. sob a guarda de grandes corporações cujos interesses não podem ser desconsiderados. as informações geradas pelas escolhas de determinado percurso de leitura estarão para sempre ali armazenadas. eventualmente. permitindo ao leitor diferentes escolhas no que se refere aos caminhos de sua leitura e atualização de informações. O impacto sobre nossa forma de agir e pensar é evidente. entretanto. o movimento intitulado Occupy Wall Street. ou das redes sociais. ainda que não de forma consciente. enorme pró-atividade no seu papel de sujeito de leitura/produção de informação e conhecimento. o enorme poder de mobilização da comunicação em rede. na Espanha. bem como mais recentemente nas manifestações de protesto que se seguiram à eleição de 2014. dando lugar a novas formas de sociabilidade. E. Trata-se do hipertexto – um tipo de produção que articula diferentes camadas de sentido. entre outros). dando-lhe. em todos estes importantes eventos políticos o espaço da Internet foi fundamental para a mobilização e 6 . nos EUA. Líbia.significado de uma produção coletiva (e em rede) de conteúdo para consumo de todos. assim. Ao mesmo tempo. gostaria de salientar os fortes impactos da comunicação em rede. gostaria de chamar a atenção para a natureza do texto que a Internet permite construir. sobretudo nas manifestações de junho/julho 2013. Egito. na vida econômica e política contemporânea. de outros leitores/produtores de sentido que fizeram caminho semelhante. Ao longo dos últimos anos. permitindo as mais variadas formas de leitura e aproveitamento da informação ali armazenada. Para finalizar. nas mais diferentes regiões do planeta. sobretudo. especialmente através de redes sociais. dentro e fora do Brasil. Isso potencializa a possibilidade de formação de redes que. e não são pequenas. não podemos nos esquecer de como as cadeias produtivas espalhadas por todo o planeta. 2007. ao longo do presente artigo podemos concluir que o mundo social. crescentemente ampliadas. O empoderamento do consumidor. ainda que um tanto rapidamente. Além disso. sua maior pró-atividade. novos problemas capazes de afetar os diferentes elos de uma cadeia ganham enorme relevância na vida das grandes corporações contemporâneas. os limites destas corporações vão muito além de seus muros físicos e passam a abranger todo o espaço ocupado por suas redes de relacionamento. nesse sentido. seu ganho de importância diante do produtor fazem surgir. caminhando no atendimento de um consumidor cada vez mais individualizado e personalizado. o blockbuster – contribui para a mudança do mercado tanto de produção quanto de consumo. cada vez mais. Ao mesmo tempo. mudanças estão no ar. por exemplo. A partir dos diversos aspectos abordados. em processo. são enormemente potencializadas nesse ambiente da comunicação em rede. o livro de CASTELLS. dispensando a obrigatoriedade do produto de massa. Manuel.expressão dos atores6. 2013. Rio de Janeiro. o que coloca as organizações contemporâneas diante de grandes desafios na manutenção de sua imagem positiva e de seu consequente capital de reputação. o ambiente digital reforça a identificação de nichos de mercado que podem. 7 Ver. comunicacional das redes digitais tem dimensões de novidade efetivamente muito importantes e visivelmente expressivas que se traduzem em formas 6 Ver. No campo da atividade econômica. especialmente no caso em questão. Wikinomics – como a colaboração em massa pode mudar o seu negócio. ser atendidos de acordo com suas especificidades de demanda. num certo sentido. do processo produtivo e. dos negócios. Editora Nova Fronteira. Com isso. Cada vez mais. os efeitos também não são pequenos. O quanto estas novas possibilidades de mobilização e prática políticas vão questionar os fundamentos da política representativa é algo ainda em aberto. cultural e. 7 . Redes de Indignação e Esperança – movimentos sociais na era da internet. e não tão visíveis para o cidadão comum. nesse sentido. de formas as mais diferentes. O fenômeno da “cauda longa” – em que negócios se tornam lucrativos vendendo poucos produtos de cada para muitos consumidores individuais. Rio de Janeiro. 7 Surgem as evidências de uma economia da colaboração. Entretanto. um consumidor que participa ativamente. o trabalho de TAPSCOTT e WILLIAMS. a figura do prosumer. colabora na produção daquilo que vai consumir. ZAHAR Editora. A Hora da Geração Digital. Don. 2007. Raquel e MONTARDO. consumir. RECUERO. fortemente horizontalizado) e. ________________. de se relacionar. São Paulo. Zahar Ed. de exercer o poder (agora." São Paulo: Momento Editorial (2009): 93-108. Don e WILLIAMS. Rio de Janeiro. Mutações do visível: da comunicação de massa à comunicação em rede. Rio de Janeiro. 2013. 2009. Cultura da Convergência. São Paulo. Editora Aleph. CASTELLS. Wikinomics – como a colaboração em massa pode mudar o seu negócio. TAPSCOTT. 8 . Editora Nova Fronteira. Denis e outros. Raquel. 2010. Cultura da Conexão – criando valor e significado por da mídia propagável. Campus/Elsevier. GREEN. JENKINS. Referências bibliográficas: AMARAL. 2010. 2006. Sandra. Redes sociais na internet. TAPSCOTT. Henry. Agir Negócios. A Sociedade em Rede. Joshua e FORD Sam. de pensar e agir socialmente. Chris. RECUERO. 2014.com: estudos sobre blogs e comunicação. sobretudo. 1999. Henry. "Blogs. Adriana. MORAES. Rio de Janeiro. Editora Aleph. ANDERSON. Editora Pão e Rosas. Rio de Janeiro. sob muitos aspectos. Manuel. JENKINS. Rio de Janeiro. Anthony D. Redes de Indignação e Esperança – movimentos sociais na era da internet. Editora Paz e Terra.radicalmente novas de produzir. A Cauda Longa – do mercado de massa para o mercado de nicho. Sulina. 2009 (1ª reimpressão). abrindo horizontes que até muito recentemente nos seriam de quase impossível antecipação.
Report "Texto Sobre Comunicacao Em Rede_versao Final"