TEXTO 01 - Gazolla Introdução à Tragédia Editado

March 23, 2018 | Author: Ana Claúdia Cristo | Category: Tragedy, Friedrich Nietzsche, Dionysus, Greek Mythology, Ancient Greece


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f ç A i ß-0p '^ . GO L'J CACVVXQ* Uro v o c Capítulo I INTRODUÇÃO Ã TRRGÉDIR E QUESTÃO DE MÉTODO “É depressa transitório- tudo o que é celeste, mas não vão. Sempre conhecedor da medida, com mão moderada, toca um deus as moradas dos homens, um momento apenas.” H ölderlin Há mais de vinte e cinco anos, quando pela primeira vez tentei escrever sobre uma tragédia grega, ainda estudante universitária, foi-me dito sobre a pouca expansão de minhas colocações, uma vez que esse gênero literário era de tal modo abrangente que se tornava difícil falar devidamente sobre ele em todos os seus as­ pectos. Com o tempo, percebi a extensão da dificuldade. E bem verdade que nossos dias não conseguem apanhar o que foi a tragédia grega em toda a sua amplitude, não só porque a estru­ tura cultural que temos é outra, como porque ela está bastante distanciada no tempo, ao menos uma parte dela, uma vez que l. Esta segunda parte foi, originalmente, publicada como volume au­ tônomo, com o mesmo título, por Edições Loyola em 2001. I 187 outra parte persiste na memória moderna. Ainda experimentamos encená-la, fazê-la paradigma para novos dramas, pensá-la. Somos modernos, com fortes raízes medievais mais que greco-romanas. Pelo solo iluminista que temos, pelos fundamentos do cristianismo e de sua leitura específica do mundo de que somos herdeiros, a tragédia grega só nos fala de perto naquelas coloca­ ções que consideramos universais, ou seja, quanto à fragilidade humana exposta no que nos ultrapassa, e quanto ao desconhe­ cimento de nós próprios e das determinações incompreensíveis a que estamos sujeitos. Ao adentrarmos nos textos clássicos, temos a tentação de tratá-los como produção de um passado distante, e acreditamos dogmaticamente que nossa medida do tempo é indiscutível. Cronologicamente, temos razão, pois inventamos nosso próprio calendário, mas só cronologicamente. Em virtude disso, o drama trágico pode impor-se como um texto de época para uns, ou como criação que aprofunda a psicologia huma­ na, para outros, ou, ainda, como rica fonte filológico-literária. Alguns pesquisadores leem a poesia trágica como uma excelente ocasião para seus estudos antropológicos e filosófi­ cos. Provavelmente, todas essas posturas têm boas razões para se estabelecer. Creio, porém, que o drama trágico, nascido de contingências históricas gregas específicas, dificilmente será inteligível para nós com alguma profundidade, ou trará algu­ ma novidade que possa ser importante para nossos dias, sc não houver a seu respeito um exercício de distanciamento e aproximação constante por parte do leitor estudioso. Quando sobre ele escrevemos, são ensaios o que fazemos, como este que pretendo agora expor, tentativas de tocar algo de essencial do trágico como se estivéssemos próximos a um grego e a seu modo de compreensão. Se assim não fizermos, nenhum conhecimento inesperado nos trará um texto antigo, bem ao contrário, vamos conhecê-lo como se estivéssemos diante de um espelho, refle­ tindo sobre nosso modo atual de ler o mundo. Em que pesem dificuldades ao tentar não refletir totalmente a própria época do leitor atual do texto trágico antigo, deve-se 188 I Para náo ler ingenuamente uma tragédia grega mas é importante assinalar essa abertura para muitos caminhos aos estudiosos-intérpretes. o simples é sempre difícil. Ora. as hermenêuticas. sabemos. Há outras. marca da nossa época. para o espanto daquele investigador que se posta na fixidez das estruturas de seu próprio tempo. é um exer­ cício intelectual difícil que. Sim. Dizer isso é afirmar que um texto antigo encerra algo de atemporal. assim nos afastamos ou não delas. Tendo a discordar dessa representação que intérpretes acei­ tam. Trata-se. A imagem de imponência e abrangência da tragédia grega dificulta a aproximação dela em tal grau. que acreditamos ser impossível tocar o simples nela presente. de interpretações. todavia. não propriamente por tentar indicar algo distante e difícil de apreender —de fato. por aceitar essa abertura é que passado tanto tempo ouso escrever sobre a tragédia. aqui. assim é —. este caminho aqui proposto. Assim representamos as tragédias gregas. Não é o caso de contrapor. Mas não parece impossível apanhar algo do “ser'’ Introdução a tragédia e questão de métQdo I 189 . pois ele pode falar por si mesmo e trazer a época em que foi escrito. que se torna quase inefável. mas é possível encontrar alguns pontos que atinjam o texto antigo naquilo que ele é. Pode-se argumentar que não há razão para deixar de ler os gregos com nossos próprios olhos.buscar esse jogo de distanciamento necessário e proximidade esforçada: a história grega da época e a língua grega são os parâmetros fundamentais para isso. certamente. ao tomar-se como paradigma o texto datado. Por que não? Sim. Por crer que seja viável esse método agora sugerido. e não no que cada época diz que ele é. dada sua transcendente grandiosidade. transportando os textos clássicos para nosso próprio ideário. A sensação de estar limitando o que é o trágico grego ao estudá-lo persiste. mas porque o trágico está idealizado entre nós como produção humana tão vigorosa. uma vez mais. afinal. pois adentraríamos na extensa problemática das filosofias da história. Esta investigação. não conseguirá muito mais dos textos estudados que projeções de nosso próprio ideário. é uma postura metodológica possível. a cronologia progressiva dos historiadores (e filósofos da história) enquadrem demasiadamente as expressões culturais antigas. Basta que não nos fixemos no tempo “crono-lógico” e lembremos que os grandes temas mítico-trágicos ainda nos dizem respeito de modo muito próximo: afinal. Quem sabe. a alma humana tem um lógos tão profundo que nada impede pensar que o tem­ po das vivências lógico-psíquicas seja marginal aos calendários 190 I Para nãD 1er ingenuamente uma tragédia grega .trágico mesmo assumindo nossas próprias representações. como se sabe. do dizer e do pensar. o que temos a buscar nessa cultura é ciaramente mais complexo do que pode alcançar nossa atual racionalida­ de. é datada. passí­ vel de sinalizar-se em leituras atentas de uma época. A idealização da cultura grega. O trágico pode estar muito perto de nós se consideramos que. ainda. apesar de existir. o que nomeamos “essencial”. Ou não aceitem. e não me persuadem as teses da impossibilidade da busca atemporal de algo que se possa doar nele mesmo. de antemão. ou criar uma instransponível barreira (idealizada) sobre ela. em paradigmas que facilitam a herme­ nêutica mas deixam escapar muito do essencial dessas culturas que facilmente se oculta. fixar o desenho rígido do campo de onde se fala e como se deve falar por adequação. tal possibilidade não está bem acomodada em nossos dias. tais historiadores. Realmente. pertence aos intérpretes que a leram e a aceitaram como a “infância dourada do Ocidente'' (penso nos românticos alemães e nas interpretações deles herdei­ ras). enquanto humanos. Por vezes. Podemos divergir sobre os valores “infância” e “dourada” e nem por isso desconsiderar o enorme valor que a cultura grega antiga teve ou tem para nós. mesmo que de modo limitado. como se fôssemos assistentes do teatro grego do século V a. vivenciamos —e não necessariamente teorizamos —as emoções e parte dos valores que perpassam esse drama.C. no caso. principalmente se pensarmos nos textos filosóficos. ocidentais. já é. não só a grega. por não acreditarem na possibilidade de união do ser. Negar a persistência de uma cultura que chegou até nós por meio da linguagem de muitos recolhedores. bem como sobre as notícias mais próximas à época das encenações trágicas. a filosofia. é preciso repetir. abordagens específicas à própria área. mesmo ao levar em conta os possíveis acréscimos e decréscimos a ele impostos. por excessivas representações que outros fizeram dos textos clássi­ cos que nos chegaram. Apesar desses limites. A Grécia Antiga. há uma espécie de “porto seguro” que se deve ter em mente. rigorosas e pertinentes ao que nomeamos estudos literários. □ que é □ drama trágico? Os dias de hoje não são lidos como sagrados. e que reconhecemos na alma. e. não é a Modernidade. Nossos olhos têm de buscá-la originariamente.inventados. Nossos estudos são muito mais informativos que reflexivos. e as interpretações que fazemos passam. introdutoriamente. Tais perspectivas nãò foram. ademais. não é a Idade Média. O trágico interessa-me bem além dos campos universitários. no exercício de distanciamento e aproximação de nós mesmos. Mas não ingenuamente. Não me seria possível. de nossos Introdução à tragédia e questão de método I 191 . deve ser sobre esse legado o exercício de com­ preensão. bem ao contrário. no que concerne à Grécia das tragédias: ela nos deixou um legado escrito. inevitavelmente. já que são muitos os acadêmicos de literatura grega —uma área bem delineada nas universidades —que têm estudos detalhados sobre a poesia trágica. como não poderia deixar de ser. em muitos de seus aspectos. necessariamente aqui consideradas. Então. na medida do possível. É preciso. apontar que ao escrever este ensaio não pretendo seguir os estudos acadêmicos quanto ao modo atual de interpretar o que foi uma tragédia grega. falemos sobre o trágico. 1. apesar de neste ensaio ele ter sido focalizado também a partir de meu principal campo investigativo. de modo que o trágico da Grécia clássica não é um tempo passado. mas presente contínuo em nós. o “cientificismo” e o “empirismo” de um Aristóteles. Ou. a “ingenuidade física” dos primeiros sábios gregos. Por isso. 4. O primeiro drama trágico2 foi encenado provavelmente por volta de 530 a. afinal. evidentemente. ao revés. Por quê? Estudemos a tragédia grega para tentar responder. Não rarasvezes. de um Platão ou do que os poetas falaram dos deuses e que nos seja mais compreensível. dando como assentado que são.significados e valores. não se explicam bem aqueles que as usam. Obvio o que está sendo dito? Não tanto. o “cristianismo” e o “reencarnacionismo” de um Platão.cronicamente? Não se sabe. lemos e ouvimos estudiosos afirmarem. estudar os textos trágicos é sempre fazer um “ensaio”. Estaremos. O fato é que esse legado — os textos gregos — está ainda entre nós. por todos. por exemplo. São. tomando a parte pelo todo. durante as Grandes Sobre a palavra “drama”. buscar grandes sínteses e criar palavras com sufixo em “isrrio” que as acompanhem. diz Aristóteles. o “aristotelismo” de um Tomás de Aquino. o “dionisismo” de um Nietzsche. Não há como substituir esse barco que somos nós. se adotarmos uma chave significativa retirada de nosso próprio ideário ao elegermos uma ou duas características de um Aristóteles. sim. erigin­do um sentido de época e expandindo-o a toda nossa história. na Poética (cap. “Os dois (Sófocles e Aristófanes) apresentaram sua imitação por personagens 192 I Para não 1er ingenuamente um a tragédia grega . na tirania de Pisístrato. o “trágico” de um Shakespeare.C. plena­mente inteligíveis. nesse porto que são os textos em outra língua que nomeamos “morta”. 1448a): 2. ain­da o consideramos importante na medida em que dele falamos e em que nos trazem urn sentido que nos importa. O que querem dizer exatamente tais expressões aplicadas ana. a “irracionalidade” do mito. Somos intérpretes. III. Parece ser de nossos dias. Suas raízes.C. como expressão cultural da Grécia isonòmica. costumes. A palavra étbos significa primariamente casa. de Sición. mas não foi ele o primeiro trágico3. segundo listas recuperadas dos vencedores. Introdução à tragédia e questão de método I 193 . É possível. talvez tenha sido o primeiro. que signi­ fica palavra. A tradição helenista considera que a tragédia tem seu apogeu. são geradas nos arcaicos rituais ao deus Dioniso. daí. argumento. já como parte dos cultos da pólis. Daí vem que alguns chamam as obras de dramas (idrdmata ) porque fazem aparecer e agir os 'próprios personagens”’. os pobres recebiam algum pagamento para assistir às encenações trágicas. Verkant a respeito (cf. Alguns documentos indicam Téspis como o primeiro trágico. sob o governo de um tirano. pensamento exposto articuladamente e que pode ser recolhido pelos que ouvem (ou leem) porque tem sentido. Não será traduzida neste trabalho. Sua tragédia teria sido encenada na 61* Olimpíada (536/535/ 533/523). festas realizadas durante os meses de março e abril em homenagem a Dioniso Eleutério. e houve outros que a ele se seguiram. de Ésquilo. como não o será a palavra lógos. 3. e ajudou a firmar o novo étbos exposto nas novas formas institucionais da cidade. Um sinal disto é o fato de o nome "tragédia” guardar a raiz de tragos (= bode.). que antecedeu a pólis isonòmica. porém. 254 ss. A primeira entre as tragédias que chegaram até nós foi Os persas . Lesky. principalmente. Epígenes. em referência a um antigo ritual de sacrifício de um bode ao deus nas antigas comunidades5.Dionisíacas (ou nas Dionísias). segundo alguns. bibliografia ao final).-P. No em açào diante de nós. A referência a essa raiz acha-se nas obras da maioria dos intérpretes. mas seu sucessor te­ ria sido Téspis. no sé­ culo V a. os escravos e as crianças. mas tam­ bém as mulheres. Tal início. morada. como Quérilo e Frínico4. trago + aoidé = canto do bode). Dos outros trágicos que se seguiram a Téspis. 4. acredita-se. Vide. p. Segundo alguns helenistas. 5. durante as grandes reformas de Pisístrato. as obras de J. tem levado a crer que teria havido uma intenção de Pisístrato na popularização de seu governo. Ésquilo foi. pois há notícias de que não só os homens iam ao teatro. não é indiscutível tal origem. daí inferindo-se que a assistência era numerosa. o décimo poeta trágico (in A. História da la literatura griega. A poesia trágica não mantém na Modernidade seu signifi­ cado mais profundo. mas a celebração a Dioniso não pôde persistir. dada sua especificidade mítico-religiosa. Op. assinalado pela escolha do período em que é encenada: nas festas dionisíacas. para aproximar-se do deus.encanto. 19M I Para não 1er ingenuamente uma tragédia grega . e quando isso ocorre na pólis como mimetização é uma espécie de laicização dos baqueumas6. Lesky7. Tratando-se de uma festa ao deus. não se está indicando o significado assentado entre nós dessa noção. Baqueumas são os atos rirualísdcos exigidos dos iniciados para a celebração dos mistérios de Dioniso ou Baco. portanto. 253. sim. quando a dança. suas festas e procissões têm a ver com tais aspectos emocionais do homem? A. Uma festa dionisíaca é. Os cidadãos mimetizam nas ruas a celebração específica dos ini­ ciados nos templos. os jogos e o delírio ruidoso que o coro de sátiros se empenha em mimetizar nas ruas são indicadores das antigas orgias do culto dionisíaco. p. É claro que. de celebração dos mistérios. ao falar em orgia. indicativos dos grandes sofrimentos e da fragilidade dos homens. há um que quase nunca o c. a festa.. aos seus limites dolorosos sempre apontados no gênero trágico? O que a figura de Dioniso e seus rituais libatórios. cit. mas o sentido grego antigo da palavra. foram preservados na literatura. “Isto nada tem a ver com Dioniso” já era um provérbio comum entre os antigos. c as fre6. 7. ou seja. seu tema. não se deve pressupor que tal ritual tivesse persistido na Grécia das póleis. de festa religiosa. por que a referência contínua ao sofrimento dos homens. uma forma de celebrar os mistérios. intérprete cuidadoso das tragédias. o riso. Seus temas. nota sobre essa questão: Por mais elementos dionisíacos que contenha a tragédia. e a ligação da poesia trágica com os rituais de sacrifícios está no campo da simbolização. Lesky. O estudioso da cultura clássica lê. a quem tanto a tragédia grega falou de perto. Comenta. não são também compreensíveis os temas trágicos que seguidamente misturam crimes de sangue e mortes terríveis dos heróis-personagens. Assim. Tragédia é um substantivo. Nessa encenação. Introdução à tragédia e questão de método I 195 . os gregos já sabem sobre as histórias míticas que serão repetidas pelos poetas —esses seres criadores de novas palavras e ritmo. num espaço de grande visão — o teatro — para os homens que vivem nas póleis. Lesky8 que a tragédia grega converteu-se em trauerspid. O sentido que hoje temos de tragédia e que se vincula ao adjetivo “trágico” — uma qualifi­ cação direcionada ao triste. ainda. aos grandes sofrimentos — faz que esqueçamos sua conotação cívica e mítica enquanto substantivo. p. São eles parte formadora da própria representação que essa raça tem de si mesma. conotação que se estruturou historica­ mente e que aponta para a criação do adjetivo “trágico”. que não é necessariamente assim. de um. que conseguem surpreender e comover todos os presentes. em uma peça triste. em geral. capazes de trazer o já conhecido na forma do novo. como será abordado adiante. A. 37. A tragédia grega (Die gricschiscbc tragòdie). é preciso atentar para o fato de a tragédia grega não ter a conotação que. Mesmo que compreendamos que a festa a Dioniso não im­ plica divertimento e que é um ritual sagrado. expressão ao gosto do roman­ tismo alemão. lhe damos. O conteúdo do drama trágico são os temas míticos passados de geração em geração e mantenedores da memória da raça grega. é um ritual religioso-político apresentado na forma da encenação.quentes intenções para explicá-lo mostram quanto estava vivo neles nosso problema. nos textos trágicos. e faz parte de uma série de outros eventos em homenagem ao deus Dioniso. 8. drama que pretende mergulhar no sofrimento. boa compreen­ são de suas reflexões. 196 ! Para nao 1er ingenuamente uma tragédia grega . como diz. Friedrich Nietzsche. quer pelas máscaras e pela desmedida. por exemplo. a esse fundo metafísico que para essa 9. Apoio e Dioniso. O nascimento da tragédia no espirito da música. Psique. segundo pensa o filósofo. no caso de Dioniso. em 1871. o Dioniso trágico. Erwin Rohde. Nietzsche e sua leitura do dionisism o Do século XIX. no caso de Apoio. fundamental para a. Não é o caso de analisarmos as colocações de F. necessa­ riamente. o que nos acostuma a uma visão específica do trágico como sendo dionisíaco. quem transporta os helenos “ao fundo das coisas”. Através das leituras nietzschianas da Grécia. herdamos sobre a tragédia e suas relações com o dionisismo as colocações firmadas por Rohde e Nietzsche9. advindo daí que suas interpre­ tações. Nietzsche faz o mesmo. Este. ao menos ao modo como o filósofo o estruturou. sendo a própria expressão do teatro trágico. pois sua reflexão se insere em seu próprio sistema reflexivo. bem-aceitas em nosso século pelo vigor que ainda persiste do pensamento romântico alemão quanto ao “redescobrimento” do brilho da cultura grega10 ou de certa interpretação des­ sa cultura. mergulhadas em sua filosofia. W. Hegel -. foram assentados certos significados peculiares do par Dioniso-Apolo.2.uin estudioso das tragédias gregas e do brilho dessa cultura —. Ele lê a tragédia. 10. e. estão. e é ele. esse par divino e quase antinômico nas tragédias. E o dionisismo suigeneris de Nietzsche que nos leva a assim pensar. como expressão dessas duas divindades: quer pela bela forma e pela medida. por vezes de extremo interesse. entretanto. pois não há. e é o exemplo que escolhemos para apontar essa questão. é também o cerne do trágico propriamente dito. Nietzsche quis ver nas tragédias a polaridade entre essas divin­ dades. em função de sua própria interpretação de “dionisíaco” e de “apolíneo”. e em sua interpretação a tragédia é expressão privilegiada para que os espíritos históricos que somos nós — iluministas que edificamos em pedra a nossa ra­ cionalidade — afirmemos a potência originária quase perdida. Nietzsche visa ao processo civilizatório e aos valores que desumanizaram o humano. instante. da qual a 11. não se perdeu. categoria!. permanecem eternamente os mesmos11. Ele fala aos leitores modernos. como já indico aqui. sim. a despeito de toda mudança de fenômenos. porém está excessivamente estruturada pelas másca­ ras civilizatórias. que está levando os gregos ao “fundo das coisas”. nem Nietzsche imagina isso. ao escrever um poema trágico e encená-lo. esquecida da própria origem. saída da medida de tempo que o cotidiano carrega. Evidentemente.] o consolo metafísico — em que nos deixa. cie. Introdução à tragédia e questão de método I 197 . O consolo aparece com nitidez corporal corno coro de sátiros. a despeito da mudança das gerações e da história dos povos. é a historicidade que sufoca o fluxo. Op..filosofia é o dionisíaco enquanto pura aremporalidade. Essa é a perspectiva nietzschiana de abordagem da tragédia grega como expressão de Dioniso.. toda verdadeira tragédia — de que a vida no fundo das coisas. compreendido. A Modernidade transformou profundamente essa força dionisíaca primária em representações excessivas de medida e de valores. é indestrutivelmente poderosa e alegre. O cotidiano é o tempo medido. de modo que ela não mais é reconhecida. “vir-a-ser”. Essa potência apresenta-se na historicidade humana. que fizeram o homem enregelar e esquecer essa força que ele nomeou também Dioniso.. valorado. Diz o filósofo: [. parágrafo 7. nenhum poeta grego está pensando. como coro de seres naturais que vivem inextinguivelmente como que por trás de toda civilização e. Como se sabe. Nessa leitura. segundo ele. ao encenar sua poesia no teatro. como ele 12. Nietzsche aponta o poeta trágico como aquele que soube vislumbrar. os valores e ações mítico-trágicos. Dioniso como a Wille zurMacbte nietzschiana. é uma expressão estética poderosa porque mais próxima à própria constituição primeira do ser. sensível ao drama trágico como expressão estética captadora dessa força. seu gênio filosófico nos presenteia com inesquecíveis intuições sobre essa poesia (como será visto adian­ te).tragédia é uma expressão clara. Nietzsche pensa. O mascaramento civilizatório.C. diante de todos e sob os auspícios do deus. esse ser que apresenta sua vontade de poder de modo grandio­ so. que. pensa o filósofo. apesar de sua concepção de tragédia ter se originado bem mais para adaptar-se à própria articulação de sua filosofia. a vontade de poder. Wagner. soube assumir o próprio Dioniso como única máscara aceitável e menos distanciada do humano ao transformar em versos. 198 I Para não 1er ingenuamente uma tragédia grega . O filósofo nomeou essa força originária do ser vivo “vontade de poder” e. que há na Alemanha um possível ressurgimento do dionisismo trágico na música de R. bem exposta na inspiração dos versos trágicos e vivenciada pelos gregos do século V a. pela capacidade que têm os versos e imagens trágicos de nos transformar — de nossa valorada historicidade e da interpretação demasiadamente logicizada do mundo a que estamos acostumados. pois. retiranos —pela visão do instante (ou pela saída da cronologia coti­ diana) que propicia. pode emergir mais “puro” na poesia trágica grega. Crê Nietzsche que a tragédia é um transporte ao atemporal. nessa época em que escreve essa obra. A historicidade mascaradora e seus valores não teriam ainda enfraquecido o poeta trágico grego — como irão enfra­ quecer outras expressões criativas do homem12 —. ele foi capaz de pensar e falar sobre o herói trágico. a potência do humano sem as máscaras excessivas da historicidade. Ele pensa os modernos como ruminadores de uma racionalidade despotencializada. pois se trata da fixidez das máscaras sobrepostas. e o grego trágico como aquele que. perdemos a nós mesmos enquanto identidade primeira. o "consolo metafísico” necessário que redime o homem de seu fatal direcionamento para a fixidez. uma falsa questão. conseguiu manter o que hoje perdemos. leva o homem moderno — porém não levou o grego —a afastar-se do “coro de sátiros. Introdução à tragédia e questão de método I 199 . 13. as obras Considerações extemporâneas e Genealogia da moral. Para compreender melhor tais aspectos de historicidade versus ahistoricidade no pensamento nietzschiano. “a despeito da mudança das gerações e da história dos povos”. podem destruir-nos. pois ao tentarmos afastar a força primordial que sempre permanece. As máscaras construídas ao longo da civilização. são de grande ajuda. como coro de seres naturais”. consegue resgatá-la em sua especificidade? Como responder? Essa é. diz ele. A visão metzschiana é de grande interesse para o estudioso da tragédia grega. mas é fundamental tentar compreender a manifestação grega a partir de seu próprio solo. máscaras interpretadas como o próprio rosto. maldigerida. principalmente. e Nietzsche não cogitou respondê-la. e talvez sua marca esteja presente neste ensaio de modo silencioso. É bem verdade que a força discursiva de Nietzsche influencia o investigador da tragédia grega. afinal13. Mas é a tragédia grega o que o pensador alemão do século XIX diz que ela é? Podemos compreendê-la a partir dessa matriz da vontade de poder contraposta à história? Quando o pensa­ dor articula-a ao desenvolvimento de seu próprio pensamento. de afiado olhar.considera a historicidade e sua hermenêutica. isto é. apesar de ter apontado ângulos de extrema impor­ tância para um investigador dos clássicos. na verdade. pois não pretendeu compreender a tragédia grega nela mesma. sempre uma falsa fixidez. O que na tragédia nao nos diz mais nada. Nesse ponto. 3. nos interrogam tão de perto as tragé­ dias? Porque há nelas o drama humano. Por que nos falam. No entanto. demasiado humano. um ser dividido. em seus limites e deslimites. mas sua reflexão muito peculiar não chega a explicitar o trágico grego. Hoje. limitado. por isso mesmo frágil. porém. certo sentido que. lista pode auxiliar-nos.Algo da filosofia nietzschiana facilita a compreensão da tragédia — o que o filósofo capta de universal ao pensar o ho­ mem —. há um distanciamento que não se pode ultrapassar. há o drama universal do homem envolto em suas afecções. na medida do possível. forçosamente? O que concerne à encenação teatral como ritual mítico. Isto é o atemporal. da existência. só e somente só porque estaremos buscando o novo. é a concepção trágico-romântica. poder-se-ia dizer. e não uma projeção do que re­ presentamos que somos. Se a tragédia fosse simplesmente um fato passado não dialogaria conosco. Nietzsche adivinhou essa força e reconheceu-a como Dioniso atravessando a tragédia e desnudando o que há de eterno e ilogicizável no homem. tensional. e certamente o faz. Esses ri tuais a Dioniso têm a necessária presença 200 I Para não 1er ingenuamente uma tragédia grega . na natureza. nao persistiria como fato e sentido interrogativos. como foi dito. 0 sacrifício e a catarse com unitários resgatados pela poesia trágica A tragédia é portadora de mitos e lamentos e aparenta estar distante do lado alegre e festivo exigidos nos rituais dionisíacos. político e religioso. mas não só a ela se deve recorrer. aquilo que é sempre reconhecido. no sagrado e no profano. ao assumir a poesia trágica em seu solo originário. talvez seja viável encontrar algo de sua especificidade. Doa-lhe. todos somos intérpretes. pelo excesso. sendo uma situação humana contraditória a difícil vivência do que compreendemos por consciência e não-consciência.Natureza e psique. Psi­ cologia e alquimia e outras obras). geradas pela hybris. 15. como será argumentado. Tais situações remetem o homem que as comete ao que a modernidade nomeou culpa. porém desejada. para o Ocidente. explicam serem necessários ao homem os rituais sagrados cíclicos. apenas apontar. dos grupos de dança. ou seja. E havia lágrimas. todos os ritos sagrados14. permanência essa quase inexplicável para nossa época racionalista e laica. pois as celebrações desse tipo expurgam mimeticamente os males de uma comunidade. Jung (. experiência humana recolhida à época das Dionísias. pela ação desmedida. É interessante lembrar que os rituais dionisíacos da Grécia não lhe são todos específicos. A questão da importância da mimética para o ser humano é impor­ tante e difícil. do canto e da perda dos limites — urna difícil. 14. Há uma sabedoria humana que se mantém na preservação dos rituais. Platão analisou a mimesis de modo que criou. e algumas linhas da psicologia e da antropologia principalmen­ te. todos os erros vividos pela comunidade durante um ciclo eram expurgados por transposição ao animal sacrificado. Introdução à tragédia e questão de método I 201 . e havia risos. que comportam tensões de contrários. Nos grupos primitivos hebreus (mas não só neles) havia o sacrifício ao bode quando.do vinho. Também as tragédias estão plenas de situações sacrificais. ritualisticamente. o que diz respeito ao inconsciente nunca deixa de ser contraditório. uma tradição investigativa a respeito. seria preferível não usar para a tragédia. que não con­ seguiu extirpar. uma vez que todo rito comporta contrdnosl5j única forma de vivênciapurificatória. ou razão e não-razão. Algumas de nossas atuais ciências. Psicologia do insconsciente. Conforme K. como será abordado. que não é o caso de aprofundar nessa ocasião. no entanto. noção a ser aprofundada e que. As noções de falha ou erro (bamartía) são mais adequadas à cultura grega. sacrificais ou não. A tragédia. não havendo nenhuma indi­ vidualidade manifesta. apresentando-se como certo sentimento pertinente a cada homem do grupo que se vê em débito com a totalidade comunitária. mas não só por ele. nem mesmo a do rei-herói. mas é previsível por todos. podendo prever o peso do sacrifício que virá ao herói. E sendo sempre comunitários. como expiação. todos os valores das antigas comunidades são estruturados no conjunto e assim vivenciados. aceito e expurgado conjuntamente. e os assistentes do teatro sabem quando uma ação se apresenta como bybris heroica. como excesso. para a devida purgação do comunitário. e dele retirando a própria identidade. portanto. quando são renovadas as emoções concernentes aos possíveis males vividos durante um intervalo de tempo pela comunidade. O erro tem um valor e uma vivência comunitária expressos na figura do herói trágico. Essa visão de si mesmo enquanto pertencente ao grupo. apesar de ser praticado por alguns.Na tragédia. não resta dúvida de que o erro — e é pre­ ciso pensar por que e quando o Ocidente substituiu a noção de erro pela de culpa — é expiado no sacrifício primariamente comunitário. resgata o que há de fundamental a pensar nas relações humanas em comum. nenhum poder singular. Os erros são expiados e exorcizados nesses ritos de sacrifício. o trágico presentifica essa estrutura comunitária mí­ tica. A identidade de cada um é a do todo. Primitivamente. também. cria o débito comunitário e é proporcionada. em geral um ciclo anual. toda situação que implica a ação desmedida de um personagem expressa a hamartía. Ora. Todas as ações são conjuntas. provenientes do modelo de identidade que cada homem tem e que emana da própria comunidade. por isso é importante atentar para o fato de que não há o 202 I Para não ler ingenuamente uma tragédia grega . pelo ritual sacrifical. estão eles na dependência —para tratar-se de um “erro” —do modo de valorar do conjunto. a falha ou erro daquele que agiu de modo excessivo e gerou uma difícil situação. de modo que o erro cometido não é responsabilidade de um homem. temos nas tragédias alguns traços claros da inexistência da culpa indivi­ dual. Introdução à tragédia e questão de método I 203 . pertinente apenas àquele que se sente em dívida com o todo e/ou consigo próprio. nem a expiação comuni­ tária é vingança contra ele. Esse sentimento está no si­ lêncio de cada um. tão conhecido pela época moderna. E mesmo se externalizada a possível “culpa” de um criminoso. ele. adiante). O “culpado” nem sempre sente culpa. aqui. Nas antigas comunidades. razão por que tem de ser purgada. individualmente. não sente a dilaceração interior por ter efetivado uma ação contra a comunidade. independentemente de qualquer sentimento de interioridade. mas purgação para si mesma. na medida em que o que nomea­ mos e representamos como culpa é sempre compreendido em seu sentido individual.que nomeamos culpa trágica (questão que voltará a apresentarse para discussão. ou seja. Sua identidade não lhe é específica. à margem do modo de sentir daquele que o cometeu (o que não está em jogo neste caso). é válido) sobre a mancha que carrega e que pode trazer infelicidade a todos. Se uma sociedade manchada vem a sentir-se purificada. e os estudos antropológicos mais atuais têm demonstra­ do a importância desses aspectos que diferenciam nossa vida comunitária da das sociedades primitivas. muitas vezes. o erro cometido por um de seus membros desaparece. assim como desaparece o poder daquilo pelo que a mancha foi possível. questão de difícil compreensão para nossa época. ninguém pode perma­ necer manchado por um erro sem atingir a si mesmo e a toda a comunidade de uma só vez. como um sentimento interior dilacerador. apontada pelas sentenças de nossas instituições jurídicas. porém. por exemplo. Dirimir um erro é salvar a comunidade e nunca a si mesmo. É a comunidade quem dá referência àquele que errou (e o vice-versa. Sobre tais considerações. ela não está sendo necessaria­ mente vivenciada pelo sentenciado como sentimento de dívida comunitária a ser paga. ela mesma. é uma interpretação cabível e assentada entre os intérpretes. por notícias de Aristóteles na Poética. o ritual de sacrifício não deixa de ser metafórico. repassados durante a encenação. e a hamartía. como foi apontado. que. Desse modo. o teatro trágico é. relacionadas à própria vida política da cidade. geralmente. pois as homenagens arcaicas a Dioniso necessitavam. Mas a purificação não se efetiva en lógos: a encenação trágica é.No que se refere à ação trágica. Queremos focalizar o fato de que tanto o sacrifício como a catarse têm um valor específico na tragédia. A encenação como ho­ menagem a Dioniso guarda referência dos mais antigos sacri­ fícios ao bode. Isto significa dizer que o grego assistente do drama trágico reconstrói. trágico ou épico. purificatória. A memória de uma raça é reconstruída no teatro para ser orgulhosa de si ou para interrogar-se. na medida em que faz que os assistentes do drama vivenciem as proble­ máticas dos personagens que estão. há algo nela que preserva os antigos rituais sacrificiais expiatórios para o desaparecimento da mancha. sabiam bem disso ao escolher o período das festas dio­ nisíacas para encenar as tragédias. A kdtharsis não deixa de ser um modo de retirar a mancha comunitária. que a purgação é uma kdtharsis ou purificação e faz parte do teatro trágico. é cantada e encenada. Sabe-se. Os gregos do século V a. Voltando. o erro. Os sacrifícios passam a manifestar-se na encenação e nas pa­ lavras. e a expiação do erro do herói. ao dia a dia de cada um. no conteúdo e na forma. então. sua própria identidade cívica e como pessoa. do acompanhamento dos ritos sacrificiais purificatórios. no teatro. também. são récitos e interpretações rituais através dos versos. uma forma de ritual purificatório. porque en lógos. também. aos valores de ontem e aos daquele momento.C. é a pedra de toque para pensá-los. à noção de erro afastada da noção de culpa —que lhe é historicamente 204 | Para não ler ingenuamente uma tragédia grega . Nesse ângulo. uma forma quase laica de fazê-lo porque simbólica em comparação com os efetivos rituais sacrificiais primitivos. posterior —. por exemplo. ultrapassar o que está à mar­ gem da senda dos homens. 17. e seu mais próprio é ter lógos. ou afundar-se aquém da animalidade17. Exemplifiquemos o que está sendo apresentado nessa tragédia. Sem poder compreender os conselhos do adivinho. pelo excesso ou desmedida (sempre presente no herói). tudo passa a ser feito em direção ao seu cumprimento. sua destinação humana. o lote que lhe designaram os deuses. ele tem a força de. É possível falar em erro ou falha de Édipo por ter matado o pai. é sempre uma organização que implica a própria vida para um grego antigo. sem saber-se disso. como é o caso de Édipo. afasta-o de si desde o nascimento em consequência da sentença oracular: o filho mataria o pai. pai de Édipo. tenta-se fugir ao que é destinado. estar aquém da animalidade significa estar desorganizado em tudo o que lhe é próprio. Próximo ao divino. Ao erro. mergulhar na ausência de regramentos mínimos. ou seja. sem ouvir as boas palavras de Tirésias. De início. pela bybris. um ser vivo. Laio. os heróis. Enquanto os homens comuns estão entre os deuses e as feras e não ultrapassam essa zona intermediária. e quanto mais sublime um homem — no caso de um herói como Édipo — maior será seu poder de errar ou acertar16. Um zoo. irão além e aquém do humano: ao decifrar o enigma da Esfinge. Édipo 16. como “culpado” por erros imperdoáveis. e estar aquém da animalidade significa afundarse na desorganização. todos os homens estão sujeitos. como normalrnente se ouve dizer. Introdução à tragédia e questão de método I 205 . No caso do homem. Para que não se cumpra o lote de Moira. Tirésias o adverte. cumpriu o lote do qual se afastara. mas suas palavras não fazem sentido a Édipo. Édipo matará o pai e gerará com a mãe ao voltar a Tebas. ele trouxe a mancha para a cidade e para si mesmo. tido geração com a mãe e. devemos guardar-nos de ler claramente um Édipo. Esse tema será aprofundado neste ensaio quando for analisada a figura de Medeia. transcender os homens comuns pelo lado do divino. há um interessante artigo de J. Ele está sempre onde o herói está e é sempre vivenciado pelos assistentes como forma de aprender sobre si mesmos e a própria comunidade. somente o fará pela expiação. in Mythe et tragédie en Grèce ancienne. Para expandir esse assunto. por seu lado. 206 I Para não 1er ingenuamente uma tragédia grega . do contrário leremos Édipo como um Hamlet romântico ou. ao matar o pai e dormir com a mãe. na pior das hipóteses. com os pés inchados e descalços. à hamartia. 1972. Esse exemplo demonstra que é preciso atentar para os aspectos da cultura grega que se expõem nas figuras heroi­ cas.C. Tal sentido manifesta-se na noção de bómoios — semelhante —. é o herói que decifra o que nenhum homem consegue. Maspero.tocou o divino. um homem com graves problemas psicológicos (o que nem Sigmund Freud pretendeu)18. Édipo não é culpado. para retirar a mancha que trouxe a Tebas. daí seu nome Édipo. que rompe as regras básicas da ordem da physis. Vernant. e o mito ressurgido no teatro não deixa o cidadão esquecer o sentido do comunitário.-P. mas tocou também aquém da animalidade. A kdtharsis como purificação relaciona-se. pode ter assento na hybris. Esse feixe de significados não se pode perder de vista quando se lê uma tragédia. fundamento da cidadania. em grau de que nenhum dos homens é capaz. Oedipe sans complexe. expiação que terá de ser comunitária. ele não é o indivíduo moderno: é um herói mítico redimensionado na poesia trágica da pólis. na ação excessiva. ao mesmo tempo em que é a fera. a ce­ gueira e o exílio sem sandálias. que cometeu o pior dos erros e está sujeito à expiação necessária por sua terrível hamartia. indissoluvelmente. Por isso ele é Édipo. Não se pode esquecer que o poeta trágico tem o sentido forte do que é comum na pólis do século V a. Sabe Édipo que. 18. Paris. pela purgação —no seu caso. ele não é uma interioridade moderna respon­ sável por seus atos. que. privilegiando a manifestação dos sentimentos e de seus significados. Mínima porque a totalidade onde se insere a pessoa é mais ampla que a possibilidade de fazer valer uma vontade livre. A morte. da noção de indivíduo. tese parcicularmente aceita por B. na lírica já é possível detectar algumas das características do que nomeamos “indivíduo”. Do pon­ to de vista do conteúdo poético. Se a noção de pessoa aproxima-se. como hoje entendemos. Safo e outros se inspiram nos valores comportamentais dos homens das póleis. Já em Demócrito. hoje. embrionaria­ mente. que pode auxiliar a compreensão do que seja o trágico. quer enquanto totalidade humana. O cívico nem sempre está em consonância com os desejos mais íntimos de uma pessoa. e quando comparada a outras expressões poéticas. aqui. do que diz respeito à pessoa como lugar de uma vontade mínima expressa por uma parte de si mesma. Introdução à tragédia e questão de método I E?G7 . e não suas aventuras. porém não apartada totalmente do político. enquanto os poetas líricos como Arquíloco. Há uma interioridade nascente. A pessoa. da pessoa como “consciência de si” responsável por seus atos. Não se trata. isto é. Outros acreditam que há a individualidade emergente nesse período. apesar de saber-se diferente entre diferentes. mas não ainda em indivíduo. o amor. na concepção de átomo. pelo menos. deixando à mostra uma comparação entre os atos valorados pelo cívico e as emoções impulsionadoras de comportamentos mais próprios a cada um. com a exterioridade. Muitos intérpretes consideram possível falar em “pessoa” na lírica. Para Snell. fundamento da própria vontade livre. a poesia de Homero e a de Hesíodo demonstram a época da sociedade das fratrias. portanto. aquele que se sabe diferente entre diferentes19. quer singularmente. tem dependência fundamental com o conjunto em que vive. mesmo que não 19. esta emerge na Modernidade fundada na significação de “pessoa”. uma importante diferença com a poesia lírica e épica. biblio­ grafia). R épica e a lírica v ista s pela tragédia Enquanto gênero poético específico. e a palavra “pessoa" exprime. Snell (cf. a tragédia guarda. ou de sua alma. Mimnermo.M. com seus mitos dos deuses e dos heróis. o prazer do vinho e dos amigos são temas básicos na lírica. todavia. Belles Lettres) pelos quais ela procura demonstrar uma espécie de “redobro sobre si mesmo”. nada há nos versos líricos essa força está expressa no modo de um ser indivisível. Acredito que. fratrias). que já vê em Homero quando das palavras de Ulisses ao apontar para a vivência de seu próprio coração como outro ser que o habita (por exemplo. nos cantos XIX e XX). Tal unidade da psycbé. sem rigor. Tal reflexão atomista servirá de amparo para a concepção moderna de indivíduo.C. ainda. É. vasculhar parte dos móbiles de nossas ações. das antigas comunidades estruturadas como génos (tribo. Trata-se de uma questão nada simples. kphysis e depende dos outros átomos — e das articulações naturais —para a atração ou repulsão entre eles mesmos (não há. grandes famílias. Apesar do cuidado ao buscar os tipos de emoções. que assinalaria uma espécie de “consciência interior” mas não de uma independência da intimidade. isto é. tal questão reaparecerá. Paris. Nos fins do século VII a. como se pode depreender da leitura dos poemas líricos. e não é o caso de analisá-la aqui. 208 ! Para não ler ingenuamente uma tragédia grega . Na análise posterior que será feita da tragédia Medeia. se ela emerge — o que não me parece —. plena consciência da própria individualidade e de sua extensão como interioridade. manifesta algo da força do que já podemos nomear. descrevê-las e sobre elas tecer muitos comentários. nesse início. um assunto longe de estar acordado entre os estudiosos clássicos. no entanto. mesmo sem ter clareza quanto a uma unidade psíquica —ainda inexistente nos escritos da época —. o pensamento sobre o átomo social moderno). como de fato não há.Il haja. Esse ser está relacionado. interioridade humana. também ausente em Homero e Hesíodo. isto seria mais claro nas cragédias que na lírica. Há um recolhimento de textos efetuado por Jacqueline de R omilly (in Pacience. Na obra já cirada. a diferenciação da pessoa como um ser que olha “para dentro” de si. em suas possíveis partes diferenciadas. A lírica. surgirá mais tarde nos textos filosóficos. B. Snell vê a emergência do indivíduo na lírica e na tragédia. com o gradual desaparecimento das fratrias. mon coeur. quando será estudada a possibilidade dessa semente do indivíduo moderno já na tragédia. Essa expressão poética pode focalizar em seus versos as próprias emoções. único (o átomo). principalmente em Eurípides. a Grécia vivência o início da formação das póleis. todavia. pois. se aceitarmos que a lírica já apre­ senta a emergência de uma individualidade. Essa questão é relevante. Há. podem ser “culpados” porque distanciados.que possa indicar a consciência de uma interioridade individua­ lizada. será denominado interioridade. ao menos parcialmente. os aristoí’ e sobre os deuses. seus poderes e suas relações com os homens. solo da autonomia. de certo modo. muito depois. na Teogonia. e não há textos que assinalem com clareza essa pos­ tura. seu teor. Esse leves traços são. políticas e epistemológicas terá a possibilidade de pensar e argumentar sobre uma interioridade unitária. a morte. dessa unidade psíquica que será o solo da interioridade como um saber sobre si que se separa da exterioridade. seus nascimentos e gerações. “indivíduo”. No entanto. enquanto Homero narra os combates dos grandes Introdução à tragédia e questão da método I 209 . lemos sobre o extremo sofrimento a que o homem está sujeito porque é mortal. são responsáveis por eles e. pois seu pressuposto está na aceitação da individualidade já no século da lírica e no das tragédias. as raízes da individualidade. enquanto os líricos cantam as emoções e os valores vitais como o amor. a amizade. no máximo. da possível decadência cíclica dos valores. mas preocupase o poeta em descrever as agruras dos homens em sua insistente labuta pela vida Ele canta os deuses. a vida. discorrem sobre os grandes feitos e valores dos melhores homens gregos. da autarquia. leves traços do que. Sabemos que. das estações. os épicos cantam os deuses e as figuras heroicas em suas aventuras. dando margem ao nascimento do que será nomeado. por exemplo. posteriormente. da própria comunidade. sem privilegiar as emoções. Creio ser difícil fundamentar tal interpretação. os heróis trágicos poderão ser lidos como indivíduos que sabem de seus atos. Somente a filosofia no desenvolvimento de suas reflexões éticas. porque depende do trabalho. Em Hesíodo. como explicita na obra Os trabalhos c os dias. seu canto nada manifesta sobre as emoções de cada um. suas consequências. Claro está que esse tema tem provocado muitas discussões entre os intérpretes e nada está efetivamente assen­ tado. certamente. portanto. o herói usa de seu noüs. sobrezumbem os ouvidos [. é um “estado”: Sim. orgânica. suas relações com os deuses. mesmo se aquele que sente amor se apresente enquanto um “eu-amoroso” diferente daquele “eu” que nada sente. leve sob a pele um fogo me corre. marcando a identidade da raça grega. Nesse ajuizamento. o que merece estudo à parte. 22. isso me atordoa o coração no peito: tão logo te olho. dc extre­ ma beleza. que a Ilíada move-se ao redor da cólera de Aquiles. in Lyrica Graeca Sclecta. que todos os homens têm. O que se lê é bem mais a exposição de uma emoção sabidamente intangível — o amor — e a possibilidade de essa emoção expressar-se no corpo e nas palavras. Por outro lado. das entranhas em todo o corpo). o exemplo da poesia lírica de Safo. detalhando ricamente as guerras e os valores que as permeiam sem apontar para possíveis pensamentos e sentimentos recônditos dos heróis. o pbrén (as percepções das membranas. quando ele ajuíza sobre suas ações21. como não há uma unidade psíquica cm Homero. O noüs não tem lugar exato no texto homérico. Jaa Torrano). 21. Oxford. o íntimo e consciente de cada um. a não ser em algumas poucas passagens. expressão de uma força vital ajuizadora. Ode.heróis20. PIO I Para não 1er Ingenuamente uma tragédia grega . nenhuma voz me vem mas calada a língua se quebra. fragmento 199 (tradução do Prof. com os olhos nada vejo. como têm o thymós (o ímpeto “cardíaco’). e a Odisseia ao redor da astúcia de Odisseu. 20.] mas tudo é ousável e sofrível22.. Note-se.. contudo. de psíquico —porque não se tem a unidade do ser psíquico na lírica —. mas que é físico-emocional-perceptivo. Ela canta e descreve esse “aconte­ cimento” que não pode ser chamado. ensina sobre o sentir amoroso —o que não se encontra em nenhum épico — sem no entanto indicar o campo da indi­ vidualidade como sendo o recôndito. rigorosamente. enquanto cidadão. através dos personagens. já evidencia a singularidade que persiste em cada cidadão que. Permanece como uma forma de canto que pretende expressar os valores de um conjunto cívico e seus feitos. Quanto à tragédia. ao mesmo tempo. Apesar de expor-se a um conjunto de assistentes. a tragédia fala no teatro circular e ao ar livre. toca as emoções e as lembranças. que quer preservar na memória grega os ritos miméticos comunitários. ao mesmo tempo em que se aproxima parcialmente deles. como faz a épica. e. quer como expressivos. Foi essa exuberância que transcendeu a própria datação do trágico. na medida em que pretende manifestar. e aproveitandose da sonoridade privilegiada. e resgata a oralidade e a escrita do aedo arcaico e lírico. a tragédia afasta-se e aproxima-se da épica e da lírica. ela tem seu pdtbos específico recolhido pelo poeta: as ações dos personagens fazem brotar as vivências humanas em toda a sua potência e em toda a sua fragilidade. quer manter o mito no teatro. deixa à sombra partes de sua pessoa. É uma forma. Em que medida? Afastando-se do épico e lírico no conteúdo e na forma. delineia a própria cidadania e seus fundamentos. em todos os seus contrários. É à pessoa que a tragédia endereça as emoções. quer pensados como impressivos. porque educativo por excelência. Tais particularidades sustentam o páthos trágico como um feixe de afecções e acontecimentos que fez que Aristóteles conside­ rasse esse gênero o melhor. Com a visão larga das encostas da Acrópole. em cada urn. interrogações quanto às próprias ações e seus valores. Introdução à tragédia e questão de método ! 211 .A diferença entre a epopeia e a lírica é marcante quanto ao conteúdo. o fato de alcançar valo­ res em tensão nas falas dos personagens faz que alimente. de modo que sua expressão se dá de modo completo. por­ tanto. e é ao cidadão que expõe os valores comuns em conflito nos personagens. No entanto. é também pessoal (no sentido anteriormente apontado) como a lírica. as emoções que possivelmente estão presentificadas em cada um dos assistentes. sem o mesmo vigor de antes. A tragédia lança as sementes no campo de um saber nascente. com Aristóteles. Os trágicos não narram os feitos heroicos ao modo épico. as indecisões. as angústias dos heróis memoráveis reverenciados pelo étbos da tradição. Utilizando-se desses feitos. apresentaos nessa humanização pelo viés passional e consegue a tensão entre o imaginário do passado e o do presente. foi denominado “ética”. 5. os erros. 1449 a. de outro. 212 ! Para não 1er ingenuamente uma tragédia grega . agora. também. Kátharsis Quando o poeta trágico humaniza os heróis. com isso aproximaos dos cidadãos presentes no teatro. b. dadas as novas necessidades de uma inédita estrutura política de sobrevivência. 20. que ademais todos os gregos sabem de memória e devem. posteriormente. porém. que se mostram. entre o que o cidadão conhece como valor melhor no herói paradigmático e o que ele. um saber sobre o agir que. Estas transformaram alguns dos valores arraigados na mentalidade grega desde a época das fratrias. In Poética. Essa problemática específica —o conflito dos valores novos e dos mais antigos —é recorrente nas peças trágicas. 23. as paixões e a fragilidade desses homens incomuns. já em conflito com o étbos que se estrutura no momento histórico das póleis. 32. e nenhum cidadão é herói. enquanto pessoa. Todavia. como foi dito. servir-lhes de paradigma para o agir.comparativamente à comédia23. Estes sentem. de um lado o poeta faz questão de sustentar os personagens distantes dos espectadores porque são heróis lendários. ao verem expos­ tos os móbiles de suas ações titubeantes ou excessivas como se fossem as próprias. acrescem-lhes. experimenta em sua vida cotidiana como problema. Na medicina é uma técnica médica. ao menos potencialmente. enfim. Enquanto assiste à encenação trágica. fixado pela tradição. A catarse auxilia nesse conhecimento. de uma purificação das emoções pelo “re-vivenciar através”. a inveja. Presenteia o assistente com a possibilidade de expandir seus julgamentos. Sabe o espectador-participante que. É esse o sentido de purificação. volta atrás. a piedade. Ao mesmo tempo. ou seja. estão presentes nas falas dos personagens. do movimento purificatório no sentido de limpeza das próprias culpas (ou pecados). que precisa ser limpo. Introdução à tragédia e questão de método I 213 . No campo comercial. Nenhum condimento. a vingança. O assistente está exposto ao intenso reconhecimento de sua identidade veiculada pelo éthos vigente. propicia-lhe a visão do sagrado interdito e do profano objeti­ vados no teatro. O mesmo sacrifício catártico do bode nas comunidades primitivas está 24. é pessoal. também ele pode tocar. aproximando-se do sentido médico. Purgatio significa retirar algo doente. o divino. o medo. cada cidadão movimenta seu pdthos na direção de uma kdtbarsis.As dores humanas. pondera. é educativo. por um movimento perceptivo-emocional que passa e repassa valores e critérios durante todo o espetáculo. no entanto — é preciso frisar —. bem como a arro­ gância. purifi­ cado. coteja-os. Ele purifica no sentido de que. como também o rito é um procedimento que retira a mancha. que parece usar para a catarse trágica um sentido ético propiciado pelo termo lati­ no da medicina purgatio24. a vergonha. como Édipo. as expressões emocionais do ser vivo. purgatio tomou o sentido de quitação de dívida. O purificatório trágico é sagrado. sua capacidade de pensar sobre sua pessoa e suas relações com as outras pessoas. ou estar aquém dos animais. por exemplo de retirada do que é devido. ao aproximar o homem da vivência de seus limites e deslimites. um tipo de procedimento. escolhe. diz respeito ao modo de sentir de cada um dos assistentes em consonância com o comunitário. ritualístico e cívico. de modo perturbador. os erros e incertezas. Trata-se de uma experiência emocionalperceptiva e ajuizadora próxima aos rituais religiosos. nessa época. 25. por exemplo. o que lhe dá plena cons­ ciência da própria fragilidade. institui-se o pagamento de dízimos. 21M I Para não ler ingenuamente uma tragédia grega . Todavia. não se conserva o aprendizado que a tragédia quer veicular. mantém muitas das formas de culto ditas pagãs. nem a lírica têm tal característica. portanto. Por isso. se no antigo rito a redenção é proveniente da retirada da mancha. também lhe dá a abertura que o fortifica quanto à clareza de seu próprio motus. a tragédia é um gênero o mais elevado. se essa trilha catártica enfraquece aquele que já se vê tão frágil. 1449 b. Nem a épica. na tragédia é o coroamento de um combate emotivo-reflexivo expresso em versos. A catarse na significação que lhe deu o cristianismo. onde não há exatamente a repetição das vivências emocionais. de expurgo ou limpeza individualizados. In Poética. que provo­ cam essa purificação pela vivência delas (tem toioútnn pathemdtôn kátharsin)25. no saber sobre a fraqueza e a força humanas: por ela revivem-se as tensões mais difíceis a que se sujeita o homem. Levando em conta que algo de purificatório todos os ritos sempre conservam. Ensina Aristóteles que a tragédia é a imitação de uma ação que nos traz experiências emocionais de tal vigor. Akdtharsis trágica está entranhada.simbolizado na tragédia como revivescência potencializadora de certas emoções de redenção. 27. a visão da própria interioridade como fonte parcial de responsabilidade (pelo livre-arbítrio). e quando se entende kdtharsis como purificação no sentido assentado entre nós. como é o caso da crença na purificação pelo ritual da confissão. mas a descarga da culpa. novos rituais serão criados na história para redimir as falhas humanas: utilizam-se rituais para a purgação das dívidas. porém. inauguram-se alguns momentos rituais dentro das institui­ ções cívicas que sejam propícios ao homem para se purificar. uma vez que já se tem. ela ensina. limpo. Lembremos que a palavra kátbarsis significa. assim. É purificação necessária em virtude do contágio impuro. Como foi dito. que o rito purificatório. É o caso das mulheres no período Introdução à tragédia e questão de método ! 215 . ou ameniza-se o sentimento do indivíduo quanto à sua “culpa interiorizada” — como é o caso do cristianismo em relação aos pecados. traz alguma espécie de purificação. Tais momentos sempre são contemplados. com seus procedimentos fixos e hierárquicos. modernos. A catarse não redime. de algo que se misturou ao que não devia ser misturado — o sagrado com o profano. propiciam o momento catártico. venha a expressar qualquer tipo de redenção. sabiamente. em qualquer de suas figurações. não há como haver tangência do rito mítico arcaico com outros modos rituais mais recentes. quer não. e o que nela há de ritual catártico é cívico-educativo e cívico-religioso de uma só vez. ainda os mantém dentro de si. no sentido do que não está misturado a. E algumas instituições cívicas apresentamnos o poder de repetir normativamente o ritual sagrado. apesar de desprezado na vida cívica moderna que. em seu movimento catártico. como é o caso do modo ritualístico de o aparelho judiciário exercer-se. enquanto modo de ascese que repassa argumentos em direção a algo novo. puro. não podemos alcançá-la em sua completude significativa. por exemplo. na filosofia. ou mesmo aquele de conotação cristã. quaisquer que sejam suas formas e seus objetivos. Fundamentalmente formadora do espírito grego. Até mesmo a busca do saber. limpeza —de katbarós.Os rituais. Temos. A kdtkarsis trágica não pretende purgar a culpa de alguém. não se espera que a tragédia. pois separamos o cívico do religioso e este do educativo. pelas religiões. como o joio já separado do trigo. rigorosamente. Nós. de catarse. Mas nem sempre elas podem mostrar sua face educativa. é sempre contemplado nas religiões. quer saiba. Pelo rito garante-se uma espécie de “limpeza” dos erros. isto não lhe cabe. Enquanto purificação dos erros para aliviar as agruras de uma comunidade. Bem ao contrário. Por estarem em situação de tensão de valores quanto ao agir. dessa mistura de tendências que devem estar manifestas claramente para que a ação se efetive de modo excelente. ou. contraído pela comunidade através de um de seus membros. Assim. Sempre é mantido. que para muitos povos antigos não podem exercer o plantio pois misturariam o que não pode ser misturado. titubeantes quanto ao que desejam. de uma falha. 6. nesses casos. Segundo ele.menstrual. ao que determinam os deuses e ao que eles mesmos se impõem como heróis e que a comuni­ dade deles espera. sem mistura. é necessário o ajuizamento diante dessa falta de clareza. Os textos trágicos oferecem a necessidade da ponderação antes do agir. 11. No caso da encenação trágica. 1449 a. não relacionado à culpa no sentido pessoal. o sentido da purgação de um erro. 216 I Para não íer ingenuamente uma tragédia grega . também. In Poética. uma catarse ético-política que a cidade faz. expandindo a vivência de si mesma e de suas potencialidades. a tragédia 26. podemos dizer que a encenação trágica é. Necessitam da kátharsis posterior a esse período para exercer seus trabalhos comunitários. adivinha-se que há mistura de valores que se apresentam conflitivos nas ações dos heróis. é uma das fontes mais importantes e mais próximas da tradição trágica. sendo exatamente esse o ensinamento principal que o final da situação catártica anuncia: o passar e repassar a questão que apanha o herói (e os cidadãos) na rede dos acontecimentos e que não se apresenta pura. como foi dito. não se dá de modo claro. Dioniso na p ó lis dos concursos Aristóteles26. há a kátharsis de uma habitação que se tornou impura por algum motivo c deve passar por um ritual de purificação. ainda. vem dos que conduziam o ditirambo. Para E. nada podem sinalizar sem a manifestação corporal e a força da voz do ator. uma vez que as máscaras. L G hunet (Legéniegrec àans lareligion. ele associa em seu imaginário ao hierós17. o que demonstra outra de suas características diferenciadoras em relação aos outros gêneros poéticos (o épico e o lírico). Brasiliense. Introdução à tragédia e questão de método I 217 . as procissões e os sacrifícios rituais são mimetizados no palco. a tragédia utiliza para a criação dos seus versos a harmo­ nia da métrica jâmbica. v. que. In Mito e tragédia II. hierós é primeiramente adjetivo. a tragédia sustenta os gestos cênicos e o ritmo cadenciado do ditirambo. Hierós tem uma significação mais primitiva que o sagrado. indica rapidez. Minuit. ela “é a cidade que faz teatro”. I) afirma que hierós. II). vivacidade (maiores detalhes em Le vocahulaire des instituitions indo-européennes. ligeireza. Para J. o drama no centro do teatro. antes um substantivo que um adjetivo. um refinado estudioso da tragédia. às vezes para Dioniso. sem bom ritmo. aliados às palavras dialogadas. como já foi apontado. 28. é o lugar que indica o sagrado.Vernant2728. São Paulo. Para a dança dos seguidores-sátiros. quando o sacrifício de um bode era um momento ritual entre outros ri tuais realmente efetivados. Paris. Quanto ao som que acompanha a movimentação dos personagens. O ditirambo. sendo sempre vazias quanto às expressões. Essa métrica é a mais adequada à forma dialogada. mas nem sempre. cap. ao lugar sagrado do trono do sacerdote dos antigos ritos.-P. Arcaicamente —ou seria melhor dizer arquetipicamente? —havia a articulação das mais primiti­ vas festas dionisíacas. isto é. a tragédia prefere a monotonia do ditirambo. 24. força. e somente com o tempo torna-se um adjetivo. O cidadão grego tem a procissão de máscaras sob seus olhos. e no uso de uma coreografia mínima dos atores mascarados as possíveis emoções são indica­ das pela entonação das falas. não 27. Segundo esse autor. B enveniste. necessariamente. p. Se a procissão satírica nas ruas mostra a dança e o som monotônico e ruidoso dos instrumentos. o santuário. basicamente. 2. uma medida interna: 29.C. Já na Grécia dos séculos VI e V a. A tragédia tem. nenhum sacrifício ao bode à época trágica como havia em épocas arcaicas. Poeticamente. Não há somente regras exteriores ao texto e à encenação. inscrição dos poetas nos concursos públicos. Segundo vários intérpretes. As normas que a cidade exigia dos poetas durante as Grandes Dionísias eram. pela sorte. o próprio poeta era ator)29. escolha dos atores entre os coreutas designados por listagem. 3. insere-se na política das póleis e preserva em si as normas impostas pelas instituições cívicas. 4.há. formação de um juizado através do recrutamento de cidadãos com fortuna. as seguintes: 1. solenemente. além de uma retórica poética eficaz. para que escolhessem entre as peças vencedoras qual gostariam de encenar (algumas vezes. como já se disse. uma procissão iniciava as Dionísias ocupando o templo onde permanecia a velha estátua de Dioniso Eleutério. dada a ausência da mimética facial em virtude das máscaras fixas. em geral coreutas. numa espécie de mimetização das antigas solenidades religiosas com sua hierar­ quia sagrada. nota ele. obrigatoriamente. formação do coro trágico pelo juizado (12 antes de Sófocles e 15 após). 218 I Para nãn 1er ingenuamente uma tragédia grega . corn decisão na assembleia. bibliografia. pelo juizado. cria-se um novo ritmo que possa suportar o diálogo c a mínima coreografia dos atores. providências. A tragédia. com todos os seguidores. a transportavam ao teatro. cf. 5. das roupas e dos equipamentos para a encenação. quando. mas permanece um ritual de purificação como se fosse um rito de dádiva através do sacrifício. ou seja. e. virtude é excelência. assentada na celebração dos valores das ações dos heróis. emerge da tragédia o campo para a filosofia interrogar-se. êxodo —a saída e a parte final. Introdução à tragédia e questão de método I 219 . Bem diferente da épica. o poeta busca estruturar sua comunicação para que o belo. onde não há mais qualquer fala do coro. A qualidade es­ sencial da tragédia — o dizer imitativo do belo — talvez seja o resgate da beleza e da medida efetivado também ao avesso. b. das ações e paixões humanas — por­ que vivemos sempre mergulhados nas indigências fundamentais que nos concernem — são quase sempre indefiníveis em sua adequação ao éthos vigente. c. Se a poesia homérica é afirmadora das aretai\ a tragédia é questionadora — como o é a filosofia — da areté30. o majestoso seja apreendido. stásimon —falas do coro ao longo da peça. As ações diras excelentes sào aretai. d. Exatamente por esse aspecto.C. Tal significação é usada por Platão e Aristóteles com referência à potência de algo desenvolver-se em conformidade com seu télos. no século IV a. são vircuosas no sentido de que são potências expostas que cumpriram perfeitamente a finalidade de sua gênese. daí dizer-se que há uma areté dos olhos. quando há um canto fúnebre. primeira entrada do coro. dando origem a uma reflexão específica sobre o agir na história do Ocidente nomeada ética.a. episódio —as partes entre as falas do coro. dos cabelos e também de nossas ações. A palavra areté é normalmente traduzida por virtude. sobre os fundamentos de um saber sobre o éthos. um saber 30. canto do coro —compreendendo o párodos. é chamado kómmos. pois os móbiles dos pensamentos. Com tais regras. na explicitação do que não é belo nem medido. Para um grego. a tragédia desliza entre os extremos do comportar-se humano. prólogo — momento inicial antes da primeira entrada do coro. no uso das máscaras que escondem aquele ator que os assistentes conhecem no dia a dia. como foi dito. 7. a cidade grega apresenta a unificação de muitos aspectos que. Dioniso Eleutério. Assim o grego considerou. deve-se perguntar: como se manifesta o próprio Dioniso. portanto. que se manifesta nos esconderijos escolhidos ao seu bel-prazer 220 I Para não lar ingenuamente uma tragédia grega . com o imaginário do espectador. que encontram no mercado. Esse tipo de interrogação já está presente nas falas dos personagens trá­ gicos. O teatro trágico confirma e nega. no futuro. as m áscaras e a ilusão Se formas ritualísticas estão presentes na encenação trágica — aliás.sistematizado sobre o fundamento da açào humana. em todas as expressões teatrais que a humanidade conhece —. por meio da personificação dos heróis trágicos. Parece claro. os paradigmas da memória grega edifi­ cados. Pelas máscaras. uma encenação teatral como a entende­ mos. não é um espetáculo visando à fruição. cujo epíteto significa livre. pelo poder de personificar-se em todos os rostos e coisas e ser terrível na possessão. nas ruas. é religiosa. como será. é política. generoso. Afinal. assim ele viveu Dioniso na tragédia. na dgom. com a ausência e a presença tão pertinentes a esse Dioniso mascarado e mascarador. vi vendamos separadamente. figurado como um homem mais velho. agora. diante de tais fatos. que a tragédia é social. Dioniso. a quem os poetas homenageiam nas festas da pri­ mavera? A estátua do deus que está presente nas encostas da acrópole durante todo o período das encenações trágicas é. o deus amedronta e deve ser homenageado. na ilusão da encenação. Mas não é só isso que se mostra: o modo de reverenciá-lo pela encenação dos versos de um poema sinaliza que o teatro é a forma laica e política da presença de Dioniso. hoje. Joga. ruas. que anuncia esse jogo de presença-ausência próprio do teatro e sustenta o drama anunciando valores em tensão expostos nos personagens. diz ele. essa ficção que é fazer passar algo que não é como sendo pode e deve educar?. Na tragédia As Bacantes. praças. Em luta com Penreu — e que luta pouco trágica! —. Mesmo quando Dioniso não é efetivamente citado como deus nas peças trágicas —e raramente o é31 —. parece querer homena­ gear especialmente o teatro ao colocar Dioniso como personagem principal de seu poema. florestas. formar o espírito? Tratando-se de imitação. Será preciso compreender por que esse gênero único que a pólis produzi u. a verdade tem sido o solo percorrido e procurado pela nossa cul­ tura. As épocas que vieram apresentaram outros 31. ficção —. Por que a educação grega prestigiou. a posteridade jamais pôde repetir na essência por mais que tentasse. uma expressão cultural que se funda na encenação.(grutas. no fazer crer que o que se passa deve ser esquecido como encenação e vivido como presença? Afinal. ilusão. Isto é a ação-paixão trágica. Eurípides. Como a mentira pode educar. Diante do mascaramento teatral dionisíaco —que é imita­ ção. a temática das peças e a encenação são o sinal definitivo de sua presença. como poesia que é. já idoso. há uma pergunta fundamental que emerge proveniente do pensamento platônico sobre a arte poética — no diálogo República — e merece alguma reflexão. e também toda a história do Ocidente. pergunta Platão ao criticar o modo como criam os poetas. aposentos de casais). casas. bate às portas do ilusório e nele quer entrar. E nós? A tragédia. destruídas as raízes que se fizeram necessárias para seu nascimento. Introdução à tragédia e questão de método ! 221 . questão que será abordada mais adiante. e expondo sua genealogia parcialmente olímpica. é preciso questionar o modelo. Placão responderá ao seu modo. a mentira das máscaras. o deus pode revelar-se em toda a sua força ilusória e subterrânea. pois nos diz respeito hoje: o fingimento. algo inédito ao gênero trágico. para nós. Sistemática quanto ao uso do que nomeia sua racionalida­ de. bem mais o gosto do desírute que o da catarse pedagógica. A chamada Modernidade não tem mais a reverência a Dioniso. pouco sabemos sobre a formação de nosso próprio ser. uma ilusão de fundo religioso e cívico. a Modernidade não é essencial mente pagã. Não poderia ser de outro modo. A tragédia grega diz dos fundamentos do humano. Custoso. pois o teatro não é mais uma encenação político-religiosa. titubeamos na prática à falta de um a paideia. recusar o sagrado não basta para retirá-lo de nós. de uma formação de nós mesmos. outras sementes. O ensinamento pela ilusão. religiosas. não tem deuses e nem sempre é religiosa. Porém. não lhe concerne. Embaraçoso responder a certas perguntas sem deixar de utilizar nossas próprias máscaras.solos. econômicas. da ver­ dade grega. Desatentos a nossos fins últimos. exprimindo algo da essência grega. perde-se a força originária. mesmo que na forma da imitação malfeita. e não recebe em seu horizonte as tensões do passado e do presente ao modo de um combate de dimensões sociais. em nossa atual cidade. 222 I Para não 1er ingenuamente uma tragédia grega . Entretanto. difícil tocar de modo profundo essa expressão universal e particular datada. compreender o trágico a não ser parcialmen­ te. seria a má imitação da imitação da imitação. A ilusão no teatro tem. a tragédia continuou preservando um pouco de sua origem para a história. bem sa­ bemos. e tentar exprimir uma tragédia grega em nosso teatro. políticas. então. por isso consegue eternizar-se ultrapassando a especificidade de um período. um resto de Dioniso que carregamos. a prioridade do vigor na narrativa sobre a música —. que dão o tom encadeador dos belos versos. de uma nova afecção. A tragédia disso se utilizará quando o poeta quiser informar (a. Em Hesíodo. Ora. em geral presente nas falas do coro) o que deseja que os assistentes percebam quanto aos valores das ações dos personagens.Capítulo II □ TRRGICO E O POLÍTICO Se a poesia épica é a vitória da palavra sobre a música monotônica — poder-se-ia dizer.o modo de uma mensagem aconselhativa ou inquestionável. a lírica coral da corte de Lesbos. é poesia que representa a recuperação do elemento musical nas palavras. por exemplo. o elemento dialógico e a música di tiràmbica devem ser apanhados em conjunto como propiciadores de um novo pathos poético. corno se nota na Teogonia ou em Os trabalhos e os dias. Nela apresentam-se a cítara e a flauta. cuja inspiração épica é diferente da homérica. no gênero trágico. principalmente. o ritmo poético está adequado ao próprio conteúdo imagético do discurso. I 223 .
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