Tex to Cintia

March 22, 2018 | Author: yosoylu | Category: Schools, Brazil, Learning, Agriculture, Time


Comments



Description

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM ADIZER? A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? ALVES1, Cíntia Fabiana de; BACKES2, Dalila Inês Maldaner RESUMO Para a cultura ocidental, a educação, a escola e o sujeito, ocupam um lugar de destaque o que traz à tona o seguinte questionamento: será que todas as culturas compartilham dessa perspectiva? No caso da cultura indígena, especificamente, a escolarização começou por volta do ano de 1500 com os primeiros navegadores europeus, sendo essa por muito tempo forçada. Sabe-se, com base em estudos já desenvolvidos, que a cultura indígena é uma cultura baseada na oralidade, em que os ensinamentos passam de geração a geração de forma oral. A partir disso, surgem vários questionamentos: De que forma a figura da escola foi se constituindo para os povos indígenas? Como significar a escrita para eles? Qual a importância da escola para essas crianças? O que é a escola para eles? Esses questionamentos instigaram a realização do presente estudo, que teve como objetivo identificar e analisar a representação e a importância da escola para as crianças Kaingangs da comunidade Por Fi de São Leopoldo. Desde 2004 a Universidade Feevale vem atuando na comunidade Por Fi com o projeto de Extensão Múltiplas Leituras: povos indígenas e interculturalidade visando contribuir na efetivação dos direitos e na preservação da identidade e cultura desse povo. Fazem parte do projeto os cursos de Pedagogia, Letras, Artes Visuais, História e Direito. O curso de Pedagogia auxilia na alfabetização dos alunos do 2° ano da escola indígena, através de um trabalho diferenciado, partindo da realidade dos alunos com a preocupação de oferecer um ambiente lúdico, incentivando a leitura. Entende-se que para o pedagogo realizar seu trabalho ele precisa conhecer seu aluno, sua realidade, sua cultura. Para tanto, utilizou-se como métodos de investigação a observação participante e o grupo focal com as crianças que participaram das oficinas que acontecem uma vez por semana na comunidade. Como resultados parciais, pode-se afirmar que a escola ocupa um lugar de prestígio na comunidade, sendo que durante as atividades desenvolvidas é possível perceber a entrega total dos alunos. Diante disso, percebe-se que a cultura indígena vive uma dicotomia entre aceitar a escola que pertence a cultura ocidental em que a escrita e a leitura são valorizadas, e a necessidade de conhecer o que 1 Aluna do curso de Pedagogia e voluntária no projeto de extensão: Múltiplas Leituras: povos indígenas e interculturalidade da Universidade Feevale. 2 Professora Mestre do curso de Pedagogia da Universidade Feevale e professora assistente do projeto de extensão: Múltiplas Leituras: povos indígenas e interculturalidade, orientadora do presente artigo. CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 40 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? ensina essa escola para que sua cultura e história não se percam com o tempo, permanecendo, então, registradas. PALAVRAS- CHAVE: Cidadania. Múltiplas leituras. Crianças. Indígenas. Escola. ABSTRACT For the occidental culture, education, school and individuals take a highlighted place which brings up the following question: do all cultures share this perspective? Regarding the Brazilian indigenous culture, schooling began around 1500 with the European navigators, apparently against indigenous will. According to several studies, the indigenous culture is based on orality in which the teachings are transmitted from generations to generations orally. From this statement many questions arise: How the school role was constituted for indigenous peoples? How to signify the writing for them? What is the importance of school for indigenous children? What do school means for them? These questions motivated the realization of the present study that aimed to identify and to analyze the representation and the importance of school for Kaingangs children from the Por Fi community, located in São Leopoldo. Since 2004, the Feevale University has been working in the Por Fi community with the extension project “Multiple Readings: indigenous peoples and interculturality” that aim to contribute in the rights enforcing and the preservation of the identity and the culture of the Kaingangs people. The project is composed by students and professors of different courses: Education, Languages, Visual Arts, History and Law. The Education course assists in the literacy of students attending the second year of the indigenous school. It is a differentiated work that considers the students' reality and provides a playful environment in order to encourage the reading. It is understood that the educator must know his students, their reality and their culture to conduct his work. Therefore, the investigation was carried out using the methodology of participant observation and the focus group with the Kaingangs children that participated in the workshops that occur weekly in the Por Fi community. Preliminary results showed that the school occupies a prestigious place in the community once that during the activities it is possible to perceive the great commitment of the students. Thus, it is noticed that the indigenous people experience a dichotomy between accept the school that belongs to the occidental culture, in which the writing and the reading are valued, and the need of knowing what this school teaches in order to maintain registered the culture and the history of the indigenous people. KEYWORDS: Citizenship. Multiple Readings. Indigenous Children. School. CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 41 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? INTRODUÇÃO Na atualidade a Fundação Nacional Indígena - FUNAI responsável pelas políticas indigenistas desde que foi fundada em 1967 vem perdendo algumas demandas para outros setores governamentais ou instituições civis, isso acontece, pois não está conseguindo cumprir obrigações legitimadas pela Constituição Federal de 1988, dessa forma tem sido alvo de muitas críticas. Dentre algumas das atribuições que designa a outros setores, podemos citar ações para a educação e saúde, questões essas que exigem muita atenção e ações que atendam as necessidades reais dos povos indígenas. Como já estudamos, a educação sistematizada pela cultura ocidental adentra a cultura indígena por volta de 1500, com a chegada dos europeus ao Brasil. Nesse período de colonização, os jesuítas, padres de diversas ordens religiosas católicas preparam aulas na língua dos índios, frisando a alfabetização. Nesse momento, os índios entram em contato com a estrutura de escola, montada pelos colonizadores. Outra questão importante, é que nesse período muitas crianças e jovens indígenas foram obrigados a irem para os seminários religiosos. Tudo isso veio "facilitar" a relação entre indígenas e colonizadores. Esse período da educação escolar indígena, foi o mais longo da história; e deixou muitas marcas, percebemos nessa relação que a cultura indígena foi omitida, interditada pela cultura europeia. Diante da repudia a diversidade cultural indígena, entendia-se que os colonizadores eram superiores e que por isso, aos índios, sujeitos inferiores, sem cultura, cabia a submissão, o povo indígena tornava-se então a primeira mão de obra do Brasil. Anos mais tarde, os missionários evangélicos percorreram todo o Brasil, com projetos de alfabetização escolar e grafia das línguas indígenas. A escola passa a ser o meio encontrado para transferir conhecimentos, utilizando materiais próprios, profissionais especializados, organizados em um tempo e espaço, mas que não dizem respeito à cultura indígena, e sim a cultura CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 42 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? ocidental. E por isso, é preciso ter um entendimento de educação indígena, para que a mesma não seja utilizada como meio de dominação. Quando se trata de educação escolar indígena, é importante lembrar que, ao longo de todo esse tempo, teve-se uma política de integração. A escola foi forjada, e em boa dose ainda é, para transmitir conhecimentos, e os faz a partir de preceitos e condições que estão longe de ser universais. A ideia de que deve haver um modelo de ensino especializado para crianças, materiais específicos e profissionais especializados e um espaço e tempo para esse aprendizado são construções históricas que dizem respeito a uma história particular, a ocidental. (FERREIRA, 2012, p.12) Com relação aos índios Kaingangs, não existem fontes da existência de escola especificamente para índios no século XIX, o que se tem registro é da participação deles em escolas nas colônias aos arredores das suas comunidades. Como podemos ver um relatório de 1927 que faz o apontamento para duas escolas que atenderam alunos indígenas, uma nas terras de São Jerônimo (PR) e a outra no Núcleo Colonial Dr. Rodolpho de Miranda, atendendo em média 15 alunos. Já havia registro que antes disso um aluno kaingang tinha frequentado a escola da Colônia Militar de Jataí. Em nenhuma dessas escolas a língua indígena era falada, apenas eram alfabetizados em língua portuguesa, e ainda tinham educação moral e cristã. A partir do século XX com o surgimento do Serviço de Proteção ao Índio - SPI em 1910, começam adentrar de forma muito lenta nas terras indígenas, e assim foi se constituindo as escolas nas aldeias, esse processo ganha força em meados da década de 1940. Segundo dados históricos, até a década de 1970 nenhuma escola pensou na cultura indígena, nas particularidades desses alunos índios, a escola estava voltada para deferir a classe dominante. O objetivo era tornar os índios "sociáveis", "disciplinados" para assim conviverem na sociedade nacional. Cabe ressaltar que quase todas essas escolas eram mantidas pelo SPI, que foi substituído pela FUNAI, sobre acusação de corrupção. CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 43 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? Podemos perceber que até o referido momento histórico a educação escolar entre os povos indígenas era voltada somente para integrá-los na sociedade, já que eles estavam "fora" dos padrões exigidos pela sociedade dominante. Dessa forma, as escolas do SPI, apenas alfabetizaram alguns índios, dificilmente os indígenas que se alfabetizaram na sua aldeia, continuaram seus estudos fora da comunidade. Nesse momento também as comunidades Kaingangs passam por um instante de desunião, por consequência surgem conflitos internos, estes não estavam relacionados somente a educação, mas também com o relacionamento entre os funcionários do SPI. Após a extinção do SPI, a FUNAI passa a ser responsável pela efetivação da educação escolar. Porém no início não ocorrem muitas mudanças na estrutura e nas ideologias dessa educação. A começar pelos professores, eram os filhos ou esposas dos chefes do órgão que ensinavam os índios. Sem nenhuma preocupação apresentavam um modelo escolar que era destinado a alunos não indígenas, e com isso não atendiam as necessidades históricas e sociolinguísticas da comunidade. Hoje temos uma realidade um pouco diferente da que tínhamos alguns anos atrás, todas as comunidades Kaingangs possuem escolas, que são referenciadas pelas Secretarias Estaduais de Educação ou em alguns casos pelas municipais. Em geral, nas comunidades Kaingangs os alunos tem acesso ao ensino fundamental, poucas são as que oferecem o ensino médio, quase sempre os alunos precisam frequentar escolas aos arredores da comunidade. Essas mudanças significativas estão relacionadas também a uma nova organização das comunidades Kaingangs, que buscam através das políticas públicas obterem os seus direitos como cidadãos que são. Povo Kaingang, quem são? Comunidade Por Fi Os Kaingangs possuem atualmente uma população em torno de 35mil pessoas, que abrangem e vivem em cerca de 32 Terras Indígenas, reconhecidas CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 44 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? desde São Paulo ao Rio Grande do Sul. O povo Kaingang representa quase 50% da população dos povos de língua Jê, estão entre os cinco povos indígenas mais populosos do Brasil. (FERREIRA, 2012) Muito do que se tem na cultura Kaingang e tudo que existe, lua, sol, estrelas, animais, plantas, foram gerado segundo suas lendas pelos irmãos Kamé e Kairu. O povo Kaingang se divide em dois grupos, os Kamé e os Kairu, e isso permite uma organização dualista, já que ambos ao mesmo tempo em que se opõe também se integram. Ou seja, a forma como os kaingang se organizam, exogâmicamente, diz que os homens de uma tribo só podem se casar com as mulheres da outra tribo. Segundo a lenda Kaingang, os irmãos Kamé e Kairu, formavam dois grupos distintos; os descendentes do Kamé tinham o corpo grosso, pés grandes, e eram vagarosos nos seus movimentos e resoluções; já os Kairu tinham o corpo fino, peludo, pés pequenos, ligeiros nos seus movimentos e nas soluções de problemas. Por isso, a organização exogâmica, para que os descendentes tivessem um pouco das características de cada um. Na tradição Kaingang, os filhos, independente do sexo, pertencem a família do pai, pois segundo eles, o homem é responsável pela criação do filho. Já as mulheres ficam encarregadas dos ensinamentos culturais, de transmitir os valores da tribo. Com relação ao sustento das tribos Kaingang, podemos dizer que vivem principalmente, da coleta e da caça, mas como estavam cercados pelos povos Guaranis, aprenderam com eles a prática da agricultura. Viam na natureza todos os meios para se organizarem, por meio, do crescimento das plantas ou das estações do ano. É claro, que agricultura ocidental acabou tomando conta de quase todo território verde, tornado as florestas em campos para suas plantações. Os Kaingangs tiveram que se adaptar a essa nova realidade, assim foram constituindose, construindo suas aldeias nas terras demarcadas pela FUNAI. CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 45 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? Da mesma forma o povo Kaingang, da Comunidade Por Fi de São Leopoldo foi se instituindo e marcando seu território. O povo Kaingang que hoje está localizado no bairro Feitoria, antes morava em baixo da ponte na BR 116, mas em função da violência, da falta de uma vida digna, no ano de 1995 se organizaram, reivindicando um lugar melhor para morar. A prefeitura da época concedeu uma área para que pudessem se instalar. Localizados na Estrada do Quilombo número 1015, no bairro Feitoria na cidade de São Leopoldo; a comunidade Kaingang Por Fi ocupa uma área de aproximadamente 2,5 hectares de terra, onde moram 30 famílias totalizando cerca de 150 pessoas. Quase todos viviam sob o viaduto, alguns preferiram voltar para suas localidades de origem e outras famílias vieram assim que souberam da conquista da área. No começo o grupo Kaingang passou por muitas dificuldades, pois necessitavam de estruturas básicas, como a construção de casas, banheiros adequados, viabilizar a escola, nem a FUNAI e nem a prefeitura se mobilizavam para fazer alguma coisa. Logo no início, sofreram muito com preconceito, foram estigmatizados pelos moradores da redondeza e pelo poder público. Passado algum tempo, a estrutura da aldeia foi tomando um novo formato, casas já foram construídas paras a famílias, um centro cultural para festas e reuniões e a escola que está vinculada a Secretaria Estadual de Educação. Em relação à economia da comunidade Por Fi, percebemos que a agricultura não é o foco principal, até por causa da falta de espaço, eles cultivam alguma coisa no quintal das suas casas, porém o forte econômico da comunidade é o artesanato. O processo de produção e venda é feito individualmente, cada família é responsável pela coleta e fabricação dos materiais. São produzidos cestos, bijuterias, materiais de decoração, filtros de sonho. Na comunidade também há indígenas que buscam outros meios de trabalho, por causa da instabilidade na venda dos artesanatos. Algumas famílias recebem o auxílio do programa governamental Bolsa Família. CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 46 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? A partir das observações e conversas informais com os indígenas da Comunidade Por Fi percebemos que a cultura indígena possui peculiaridades muito distintas da cultura ocidental, uma delas é sua forma de educar, de transmitir seus conhecimentos de geração para geração. Dessa forma, a educação indígena acontece dentro de contextos diferentes, nas mais diversas relações, nos rituais, na coleta de material para elaboração do artesanato, no preparo e no tingimento da taquara, na elaboração de comidas típicas, nas danças etc. e "estes conhecimentos são produzidos com a experiência, a vivencia, e geralmente, são aprendidos pela oralidade” (FERREIRA, 2012, p.37). Por muito tempo os indígenas foram tratados como "selvagens", sem conhecimento, essa visão vem mudando à medida que passamos a conhecer um pouco mais sobre esses povos. Os Kaingangs possuem um grande conhecimento acumulado, seja da matemática, do local onde vivem (geografia), dos ciclos da natureza, da fauna e flora (biologia), de técnicas e medicamentos naturais (fitoterapia) com o poder de combater muitas doenças e assim por diante. Têm ainda conhecimentos históricos, entendem e explicam a origem do mundo, da sociedade através de mitos que são passados de geração para geração, possuem conhecimentos da agricultura, sabendo as épocas de plantio e de colheita, o manejo das sementes e os cuidados que de deve ter com a terra. (FERREIRA, 2012, p.38) Sabemos, porém que isso vem se perdendo devido as mudanças ocorridas no meio ambiente, devida as influências das igrejas, das escolas, da sociedade e até mesmo do modelo oficial de indigenismo. Percebemos também o quanto as crianças desde muito pequenas participam do processo de produção do artesanato, aprendendo todos os detalhes da fabricação do mesmo. Elas vão aprendendo através das situações corriqueiras, direcionadas pelos adultos, aprendem tudo o que necessitam para sua vida adulta. Notamos também algumas mudanças relacionadas à estrutura, há pouco tempo foi realizada uma pequena reforma na escola, adequando o espaço para a CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 47 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? utilização das classes novas enviadas pela Secretaria do Estado, bem como a organização de um espaço para um pequeno refeitório com mesa adequada e a cozinha foi separada da sala de aula. A Educação Escolar Indígena na Comunidade Por Fi O artigo 210 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) legitima as comunidades indígenas o uso de suas línguas maternas e métodos próprios de aprendizagem, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) também legaliza uma educação singular, que atenda as especificidades da comunidade indígena. Mesmo com leis que reconhecem que os indígenas têm direito a uma educação de qualidade e diferenciada, a prática é ainda incipiente e, portanto, temos muito a avançar para a efetivação do que preconiza a legislação. Frente a isso, percebemos que a escola tem um lugar importante na vida dos Kaingangs, e isso não quer dizer que os índios vão deixar de serem índios, de possuir uma cultura, uma tradição, por estarem em busca de novos conhecimentos. Eles buscam sim, o reconhecimento e a valorização da sua cultura, da sua história e a educação articulada é o meio encontrado como refere Ferreira, (2012, p.39) A educação escolar, pensada em conjunto com os sujeitos do processo, professores, alunos e comunidade indígena, possibilitará a relação entre educação escolar e a vida. Essa dimensão histórica da educação indígena, na medida em que trabalhar com os conhecimentos provenientes das comunidades indígenas e os conhecimentos oriundos da sociedade ocidental na qual a comunidade está inserida, bem articulada, poderá garantir avanços na educação escolar. Porém, para que tudo isso aconteça de fato, é preciso que o Estado cumpra com suas obrigações, discutindo com as comunidades as reais necessidades, garantindo assim uma educação indígena de qualidade. A questão não é implementar escolas, mas pensar que essa escola é uma escola indígena, que suas necessidades não são as mesmas que as dos alunos não indígenas. Sabemos que CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 48 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? a educação indígena possui peculiaridades distintas, que foram se constituindo ao longo de muitos anos, pois [...] a educação escolar indígena foi resultado da soma dos processos educativos de cada etnia, que se caracterizou de diversas maneiras desde o contato entre os povos indígenas com os não-índios do nosso país. A necessidade pela instituição escola só aconteceu após este contato, e na atualidade se caracteriza por ser reivindicada pelos índios com as características de ser diferenciada, bilíngue e intercultural. (BELZ, 2008, apud SEVERO, 2011, p.9) Por isso, o currículo da escola indígena deve estar atrelado aos conhecimentos tradicionais da comunidade, buscando conhecer outras culturas. Assim, deve-se pensar num currículo intercultural que atenda as necessidades específicas dos indígenas; como conhecer e aprender a língua materna, os rituais, as músicas, que valorize a sua história e a sua cultura, portanto “o que deve ser destacado é que as escolas indígenas devem servir para o desenvolvimento da comunidade referida, sem sobrepor os costumes do grupo com os modos de vida hegemônicos da sociedade envolvente”( SEVERO, 2011, p.17) Na comunidade Por Fi, atualmente a escola atende alunos do 2°ano com idades entre 7 e 8 anos e um aluno com 12 anos; e alunos do 3° e 4° ano, com idades entre 10 e 14 anos. No turno da manhã são atendidos os alunos do 3° ano e do 4° e a tarde os alunos do 2° ano do Ensino Fundamental, pelo professor da própria comunidade formado em Magistério. Ele registra os conteúdos, a frequência dos alunos em instrumento próprio, que são trimestralmente encaminhados à escola estadual na qual estão vinculados. O que as crianças da Comunidade Por Fi tem a dizer sobre a Escola? Desde 2004, a Feevale desenvolve ações de extensão junto à comunidade, através do projeto “Múltiplas Leituras: povos indígenas e interculturalidade”. Contando com a participação de acadêmicos, especialmente estudantes das Licenciaturas, o “Múltiplas Leituras” tem como objetivo contribuir para a efetivação CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 49 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? dos direitos e o reforço da identidade étnica da comunidade, a partir da atuação dos cursos de Pedagogia, Artes Visuais, História, Direito e Letras. Em uma pequena peça de madeira, classes, livros e um quadro verde denotam que se trata de uma sala de aula. Crianças de diversas idades dividem o espaço, o material e às vezes, até mesmo a cadeira. Escutam atentas, desenham e escrevem envolvidas em uma atividade ministrada por uma professora do curso de Letras da Universidade Feevale. Uma sala de aula como outras tantas em nosso País. No entanto, nessa cena, muitas diferenças: a língua falada não é o Português, muitos dos materiais utilizados também não estão presentes na maioria das escolas e os cabelos escuros dos alunos e alunas revelam uma origem diversa e única. Localizada na comunidade Kaingang Por Fi, em São Leopoldo, trata-se de uma Escola Indígena, na qual crianças e professores são indígenas e o idioma principal é o Kaingang, embora o Português também seja ensinado e estudado. (REICHERT, 2011, [s/p]) Esse cenário, tão belamente descrito pela professora Inês Reichert, é o espaço de atuação das oficinas que são realizadas na comunidade uma vez por semana pelos acadêmicos de Pedagogia, Artes Visuais, História. Todas as melhorias realizadas na estrutura da escola foram significativas e denotam a preocupação das lideranças com a educação. Essas mudanças já fazem com que os alunos olhem diferente para esse espaço, é muito marcante a questão estrutural da escola para eles. É muito presente o modelo de escola tradicional, são bastante apegados aos itens que referenciam a escola: classe, cadeira, caderno, mochila. E por isso, é difícil trazer uma proposta diferenciada, como por exemplo, ouvir uma história sentados no chão. Assim muitas interrogações surgem: Mas que tipo de trabalho iremos fazer? Como iremos trabalhar? É muito difícil pensar em atividades para uma escola indígena, já que estudamos para dar aula para alunos não indígenas. O que eles precisam aprender? Qual o entendimento deles de escola, de educação? Qual a importância da escola para as crianças da comunidade Por Fi? Para elucidar essas questões foi utilizado o grupo focal com os alunos, que segundo Morgan e Krueger (1993, apud GATTI, 2005, p. 9) como: CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 50 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? [...] a pesquisa com grupos focais tem por objetivo captar a partir das trocas realizadas no grupo, conceitos, sentimentos, atitudes, crenças, experiências e reações, de um modo que não seria possível com outros métodos, como por exemplo, a observação, a entrevista ou questionários. Essa técnica foi utilizada com dois grupos de alunos da escola, o grupo 1 formado por alunos do segundo ano e o grupo 2 formado por alunos do terceiro e quarto ano que segundo Gatti (2005, p. 18) “que se baseie em algumas características homogêneas dos participantes, mas com suficiente variação entre eles para que apareçam opiniões diferentes ou divergentes”. Para dinamizar esse momento as questões para discussão foram colocadas em uma caixa e à medida que girava a roleta, indicava quem iria retirar a questão e falar sobre ela. Essas respostas foram registradas e subsidiaram o presente artigo. A partir de algumas observações percebemos o quanto o corpo, a oralidade eram características marcantes na aprendizagem deles; através da técnica do grupo focal, destacamos que eles pouco são ouvidos, isso ficou muito marcante com o grupo dos alunos do 3° e 4° ano. E até soa um tanto contraditório, já que a oralidade se faz tão presente na cultura indígena. Mas, ao mesmo tempo é possível de se entender já que por muitos anos a voz indígena foi calada pela voz ocidental. O contexto histórico no mostra o quanto os indígenas foram negados pela sociedade ocidental, explicitado por Ferreira, (2012, p. 25) [...] com a proclamação da República, a relação do Império brasileiro com os povos indígenas não muda de cara; muda apenas a fachada, a forma de submeter estes povos, mas não o conteúdo. Desde então, o Brasil sempre foi e continua sendo o país das elites anti-indígenas, preconceituosas e prepotentes em relação aos direitos mais elementares desses povos. A grande mudança ocorrida no discurso oficial acerca dos índios do período colonial para o Império acentua-se com a República. As leis republicanas reforçam os caracteres atribuídos aos indígenas, como primitivos, imaturidade, atraso cultural e incapacidade social daqueles povos. O Império espalhou as sementes da mentira, da falácia e da discriminação. A República, por sua vez, as regou e cultivou. No século XX, acelerou-se o extermínio dos indígenas, sendo reduzidos ao menor índice populacional desde o século XVI: entre 80 e 150mil pessoas no final de 1950, conforme CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 51 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? levantamento realizado pelo então Serviço de Proteção aos Índios e conduzido pelo antropólogo Darcy Ribeiro. Com o primeiro grupo, os alunos do 2° ano, constatamos que a escola é um espaço para brincar, estudar, aprender a ler e a escrever. Outra questão marcante e como já citamos, é com relação à estrutura e a organização do espaço escolar. Sinalizaram que se pudessem fariam modificações na escola, exemplificando dessa forma: "Os livros, estão misturados, aí não dá para achar.", "fazer brilhar, arrumando todo dia.", "desmonta tudo, fazer de novo, aí uma escola de pedra.", "dar mais papel para desenhar, arrumar um lugar para pendurar os trabalhos.". Percebemos relações na resposta do grupo 2, alunos do 3° e 4°ano, alguns responderam "Os livros que estão no chão.", "Limpar em volta da escola", "Arrumar uma estante, prateleira para os livros”. Percebe-se através dos relatos que a escola precisa de algumas melhorias, que sua estrutura e visual os incomodam, porém sabe-se que de maneira geral as escolas indígenas sofrem com problemas estruturais, e isso influência muito na aprendizagem, segundo Ferreira (2012, p.41) "a infraestrutura das escolas é outro fator que dificulta a aprendizagem. Muitas escolas funcionam de forma improvisada, com salas de aula pequenas e com grande número de alunos prensados como sardinha em lata." Perguntamos também para o grupo 2 "O que você gostariam de aprender na escola?" e algumas respostas foram: "Inglês.", "Língua Estrangeira", "Aula de Informática"; com referência a pergunta "Por que você vem para escola?" a respostas foram muito parecidas "Para ser alguma coisa.", "Para saber ler e escrever, para sair em diferentes lugares, pegar ônibus."; na pergunta "O que você quer ser quando crescer?", várias foram as respostas, por exemplo, "jogador de futebol", "trabalhar na polícia", "médico". Através dessa entrevista fica muito marcante a questão de identidade, "querer ser alguma coisa", e mais uma vez observamos os resultados deixados após anos de exclusão, da negação de uma cultura. Percebemos nas suas falas a CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 52 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? importância da escola para comunidade, e entendo aqui que a escola é uma “porta de entrada” para serem vistos pela sociedade, ou seja, para serem reconhecidos como cidadãos que são. Conhecendo a cultura ocidental, sua organização, entendendo suas políticas, apropriando-se da escrita e da leitura, mas sem perder sua essência, sua cultura. A escola indígena tem um papel fundamental na vida dessas crianças e jovens Kaingang pertencente à comunidade Por Fi, resgatar a identidade indígena, de contar e preservar uma cultura, uma história, que poucos têm acesso. A escola ocidental ainda em pleno século XXI mostra o indígena como se ele ainda vivesse em 1500, ainda veem o indígena como “selvagem”, “ignorante”, “sem educação.”, conforme Melià (1979, p.9) “pensar que o índio não tem educação, como pensar que ele se perpetua por natureza, ambas as colocações são resultado, ou de desconhecimento ou de preconceito”. O que essa experiência tem nos ensinado Através do projeto “Múltiplas Leituras”, ampliamos nosso olhar sobre uma cultura pouco conhecida, outra realidade que mesmo tão perto se faz tão distante das nossas vivências. Para nós futuras professoras esse espaço de aprendizagem contribui muito para nossa formação, conhecer um pouco mais sobre a cultura indígena e de uma forma real é de suma importância para não produzirmos estereótipos, lembrando dos indígenas apenas no dia 19 de abril. O conhecimento que grande parte da população tem sobre os indígenas foi o visto na escola não indígena, e muitas vezes uma história deturpada. O que resulta ainda mais no afastamento e no preconceito para com essa cultura. Poder conhecer essa história, um pouco sobre a cultura Kaingang através da comunidade Por Fi, do “Múltiplas Leituras” auxiliou para desmitificar uma figura, a do índio, como sujeitos “sem cultura”, que não eram mais índios, pois se desenvolveram e viviam num mundo globalizado, e que este mundo somente pertencia aos não CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 53 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? índios. Devemos considerar que as inúmeras transformações que ocorreram na nossa sociedade influenciaram fortemente a cultura indígena, pois estes estão inseridos em nossa sociedade e precisaram se adequar aos novos tempos. É através da alegria dos alunos em nos verem, na recepção calorosa, cheia de abraços e beijos; na vontade deles em aprender, em participar das atividades, de ouvir histórias, de participar dos jogos e brincadeiras, que mostram o quanto a escola é importante para eles. Este momento não é só de aprendizagem para os alunos Kaingangs, é sim para todos nós, há uma troca de conhecimentos, de saberes, que teoria nenhuma explica, é só por meio da vivência, da experiência que sente e aprende. Percebemos na fala dos próprios alunos, “fazer brilhar, arrumando todo dia”, que a escola ocupa um lugar de destaque na vida deles, e acredito que o “fazer brilhar” corresponde tanto aos aspectos estéticos que para eles é tão importante, quanto a eles mesmos, que eles possam brilhar na escola, na vida através do reconhecimento e valorização da sua cultura. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional: n° 9394/96. Brasília: 1996. FERREIRA, Bruno. Políticas públicas para uma educação escolar indígena diferenciada. São Leopoldo: Oikos, 2012 (Cadernos do COMIN, n. 10). GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília-DF: Liber Livro Editora, 2005. MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Loyola, 1979. CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 54 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O QUE AS CRIANÇAS DA COMUNIDADE POR FI TEM A DIZER? REICHERT. Inês Caroline. Da aldeia para o mundo: escrita indígena, autoria e múltiplas leituras. 2011. Disponível em: <http://multileituraskaingang.blogspot.com.br/2011/08/publicacoesmidia-da-aldeiapara-o-mundo.html> Acesso em: 13 ago. 2013 SEVERO, Diego Fernandes Dias. Educação indígena em São Leopoldo: processos educativos formais e não-formais entre os índios Kaingang. 2011. Monografia (Conclusão de Curso em Licenciatura em Ciências Sociais) - Unisinos, São Leopoldo, RS, 2011. Disponível em: <http://sociaisunisinos.files.wordpress.com/2011/09/tcc-diego-fernandes-diassevero.pdf> Acesso em: 23 jul. 2013. CATAVENTOS ISSN: 2176-4867 – ANO 6, N. 01, 2014. 55
Copyright © 2024 DOKUMEN.SITE Inc.