Temas da Cultura de Massa.Música, Futebol, Consumopdf

March 22, 2018 | Author: Victor Simões | Category: Antonio Gramsci, Ideologies, Sociology, Karl Marx, Theodor W. Adorno


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1 Waldenyr Caldas MUSICA, FUTEBOL, CONSUMO TEMAS DA CULTURA DE MASSA 2.000 3 ©2000, by Editora Arte & Ciência Direção Geral Henrique Villibor Flory Editor e Projeto Gráfico Karel Langermans Editoração Eletrônica Vinicius Bronzatto Graberth Capa Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca de F.C.L. - Assis - UNESP) Rua Treze de Maio, 71 – Bela Vista São Paulo – SP - CEP 01327-000 Tel/fax: (011) 257-5871 Na internet: http://www.arteciencia.com.br 4 Sumário A. Prefácio 1. Comunicação e Indústria Cultural 2. O Consumo Estratificado da Produção Cultural 3. Sociedade e Cultura de Massa 4. O Lixo do Luxo: O Consumo de Elite e da Periferia Trash Chic 5. Produção Cultural e Classes Subalternas 6. O Sucesso dos Esquecidos 7. Subliteratura: O Fetiche do Prazer 8. O Som dos Modernistas 9. Aspectos Sociopolíticos do Futebol Brasileiro 10.O Futebol e a Cultura Brasileira 11. Futebol: A Arte e a Força 12. Paixão e Crise no Futebol Brasileiro 13. Ideologia da Esperteza 07 09 19 35 57 63 75 81 91 99 113 131 153 165 5 Prefácio A cultura de massa é, provavelmente, um dos temas masi estudados das Ciências Humanas no Brasil. Nas Faculdades de Comunicação espalhadas por todo país, a produção e o consumo de objetos, faz parte de longas discussões em seminários, palestras, congressos, mesas-redondas, etc. Esses debates, na verdade, já vêm acontecendo desde o final dos anos sessenta, quando a Universidade brasileira passa a discutir a Teoria Crítica da Cultura. Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamim, Herbert Marcuse e Jurgen Habermas, são alguns dos teóricos da Escola de Frankfurt, responsáveis pelos estudos que hoje são conhecidos em seu conjunto, por Indústria Cultural. Essas análises passam por discussões que envolvem, especialmente, mas não só, política, estética e ideologia. No Brasil, dois trabalhos merecem destaque, justamente pelos subsídios teóricos que oferecem. São eles: Sociologia da Comunicação: teoria e ideologia, de Gabriel Cohn, e Os Arcanos da Inteiramente Outro, de Olgária Matos. Trata-se de dois livros imprescindíveis para melhor compreendermos as sutilezas e o significado político e ideológico daquilo que os frankfurtianos chamam de Indústria Cultural. Neste livro estão reunidos treze ensaios escritos em diferentes momentos. Todos eles, no entanto, tratam de questões ligadas à Indústria Cultural em nosso país. As diferentes formas de produção e de consumo, sua estratificação e o contexto de cada classe social, estão contempladas nas análises aqui apresentadas. A Paraliteratura, dos escritores como Dr. G. Pop, Adelaide Carraro e Cassandra Rios, entre outros, aparece em dois momentos. Quase desconhecida nos meios acadêmicos, a paraliteratura continua sendo sucesso de público. Diferente da chamada literatura culta, ela não se enquadra nas formalidades teóricas do romance apresentadas, por exemplo, nas obras de Wolfgang Kaiser, Lukàcs, ou mesmo Lucien Goldmann. No tocante à música, analisamos aqui o clima revolucionário da Semana de Arte Moderna de 22. Vislumbrava-se, na época, a autopromoção, o desejo de brilhar de alguns personagens e, evidentemente, o conflito entre a nova e a velha estética da música erudita brasileira. 7 O futebol, certamente um dos mais importantes produtos da cultura lúdica brasileira, é tratado aqui de forma sistemática e minuciosa. Seu significado para a cultura brasileira é analisado, tendo em vista ser, ao lado da música popular e da telenovela, os três mais representativos produtos culturais do nosso país. Discutimos ainda, os aspectos sóciopolíticos que envolvem nosso futebol. Sua importância no contexto dos acontecimentos fora dos campos de futebol, não pode ser deixada de lado, muito menos minimizada. Respeitado e admirado em todo mundo, nosso futebol ganhou “status” de arte para alguns especialistas estrangeiros. No ensaio “futebol: a arte e a força”, faço comparações com o futebol europeu. Assim, nem sempre o que se fala sobre o futebol brasileiro na Europa, podemos considerar como verdadeiro no Brasil. 8 1. Comunicação e Indústria Cultural A conjunção entre comunicação – tornar algo comum – e indústria cultural – pressupõe interrogar o modo pelo qual aquilo que se convencionou denominar “indústria cultural” torna o mundo dos bens culturais algo comum, em princípio, a todos. Este termo, cunhado por Adorno – bem como seu correlato – o de “Halbbildung” (semi formação), permitiu dissociá-lo do termo “cultura de massa”. Esta expressão, segundo Adorno, induz a erro, na medida em que pode significar tratar-se de uma cultura produzida pelas massas e a elas devolvida pela mídia, por exemplo. No ensaio “indústria cultural” bem como em “Elementos de anti- semitismo”, ambos no livro Dialética do Esclarecimento, Adorno procura mostrar dois aspectos que o caracterizam: 1) todos os bens culturais e as produções espirituais de formação de indivíduos passam a ser exclusivamente determinados pelas leis do mercado. Seu destino primeiro e último é o mercado consumidor; 2) a transmissão dessa cultura deve ser imediatamente inteligível a todos. Sua lei é a da facilidade e é, nessa medida, criadora de estereótipos. Theodor Adorno assinala que “hoje, quando a cultura está em vias de se extinguir por razões econômicas, criaram-se numa escala insuspeitada novas condições para a paranóia das massas (...) A semicultura (ou semi formação), recorre esteriotipadamente à fórmula que lhe convém melhor em cada caso, ora para justificar a desgraça conhecida, ora para profetizar a catástrofe disfarçada” 1. Estas observações partem da idéia segundo a qual a orientação economicamente determinada da sociedade em seu todo, ou seja, a determinação de todas as esferas da vida pelas leis do mercado – prescinde e dissolve o sujeito autônomo. Mais adiante Adorno acrescenta: “desde Hamlet, a vacilação tem sido para os modernos um sinal do pensamento da humanidade (...). Hoje, os indivíduos recebem do poder seus tickets já prontos”2 (isto e’, estereótipos do pensamento e da reflexão – que supõem apreensão de diferenças e diferenciações nas coisas e situações – o que é contrário das noções de homogeneidade e uniformidade criadas, (ou presentes) na sociedade de massa. Sua constituição já fora detectada por Tocqueville na obra Democracia na América, publicada pela primeira vez em 1835.O autor chama a atenção para a igualdade promovida pela Revolução Francesa. O desejo de igualdade engendra uma sociedade cada vez mais 1 2 Theodor Adorno. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro. Zahar, pp. 183-184. Theodor.Adorno, op. cit. P.191 9 homogênea, na qual as mentalidades não se modelam mais pelos costumes e tradições; surge uma pulsão desmedida a pagar todas as distinções entre o homem, seja a do talento, riqueza ou capacidades individuais. E isto pressupunha, segundo Tocquevile, a fé na razão e na “igualdade de condições”. O autor menciona ainda e repulsa quase invencível dos americanos no século XVIII pelo sobrenatural e a disposição a crer que tudo é explicável. A esse respeito, Lefort assinala: “Aparece, assim, (na Revolução Americana) a figura do indivíduo, pequeno soberano, puro sujeito de conhecimento. Poder-se-ia dizer que, para o sábio, a razão é o objeto de uma fé, uma vez que sua atividade deriva de postulados de verdades primeiras que ele não pode demostrar3. Aqui, encontramos também as palavras de Baudrillard quando reconhece na concepção contemporânea da noção de massa, não a idéia de passividade, apatia. Ela se constitui, ao contrário, como resultado de um esforço: “durante muito tempo”, anota Baudrillard “a estratégia de poder pôde aparecer se basear na apatia das massas (...) (Hoje), em toda parte se procura fazer as massas falarem, se as pressiona a existir de forma social, eleitoralmente, sindicalmente, sexualmente (...) É preciso conjurar o espectro, é preciso que ele diga seu nome (...) O único problema verdadeiro é o silêncio da maioria silenciosa. Todas as energias são consumidas para manter essa massa em emulsão dirigida e para impedi-la de cair em sua inércia pânica e em seu silêncio (...) É preciso liberar a ‘energia’ da massa para dela se fazer o ‘social’4. Com isto, Baudrillard procura dizer que a sociedade homogênea, uniforme e da igualdade abstrata é fruto e um esforço e mesmo de uma “cegueira voluntária”, que Lefort, por sua vez, enuncia dizendo: “não pensar não significa não querer pensar mas querer não pensar”5 .(Ou ainda nas palavras de Adorno: “os homens que se qualificam em coletividade, transformam-se a si mesmos em algo material, desaparecem como sujeito autônomos”6 . Nesse sentido Adorno dizia, acerca do espírito e da prática da mídia como veículo da cultura de massa, que sua lei é a da novidade, mas de modo a não perturbar hábitos e expectativas, a ser imediatamente legível e compreensível pelo maior número de espectadores ou leitores. Evita a complexidade, oferecendo produtos à interpretação literal, ou melhor, mínima. Isto significa, por sua vez, o advento da sociedade do espetáculo, no sentido em que Guy Debord o enuncia em seu livro Sociedade do Espetáculo. Com a dissolução do sujeito autônomo(o da reflexão independente), aquele capaz de produzir uma interpretação de si mesmo e da sociedade, dissolve-se também o espaço público onde se engendra, se institui e se consolidam direitos 3 Claude Lefort, O Fenômeno da Crença em Política , Coleção Utopias, UFMG, 1994,pp.36-49 4 Jean Braudrillard, À Sombra das Maiorias Silenciosas , São Paulo, Brasiliense, pp.24-25 5 Claude Lefort, op. cit., p.41 6 Theodor.Adorno, “Educação depois de Auschwitz”, in: Educação e Emancipação. Rio de Janeiro, Paz e Terra, p.91. 10 e o pertencimento simbólico à Lei com o advento da imagem pública. Ou ainda nas palavras de Marilena Chauí, quando toma o exemplo da missa oficiada na Catedral da Sé em comemoração ao aniversário da cidade de São Paulo: “quando o oficiante, no momento da consagração, ergue a hóstia e o cálice, pronuncia palavras mágicas do mistério sagrado, a catedral silencia sob o tilintar das campainhas, inundada pelo perfume do incenso, tem lugar um gigantesco espetáculo oferecido aos fiéis, a encarnação da divindade em objetos até então insignificantes. A transubustanciação do pão e do vinho no corpo e Deus é espetáculo, mistério especulativo e exposição do absoluto ao olhar, ao coração e à mente dos fiéis.” Porém no dia 25 de janeiro, os fiéis não puderam presenciar a missa, pois entre a nave e o altar postaramse holofotes, microfones, câmaras de TVs, fotógrafos, repórteres, técnicos, operadores de máquina e outros profissionais dos meios de comunicação. Ao observar este quadro Marilena comenta que, “além de interceptarem a visão dos presentes, os noticiadores tornaram-se oficiantes(...), só que de outra cerimônia, falando ao mesmo tempo que os sacerdotes (...), narrando aos que ficaram em casa o que se passava na Igreja. No instante máximo para um cristão - a elevação do cálice e da hóstia, em lugar do silêncio, da reverência e do mistério, ouviram-se cliques fotográficos, piscar dos holofotes. Para o fiel foi o instante da profanação absoluta, enquanto que, para os que ficaram em casa, a missa não perdeu sua dignidade. Todavia o que viram ou ouviram foi o fantasma da missa, seu simulacro. A missa foi transformada em entretenimento dominical”7 . A mídia contorce reflexão em entretenimento ou distração - isto é, ela é ausência de pensamento. Como diz o sociólogo americano Dwight Macdonald, “a masscultura não oferece a seus clientes nem uma catarse emocional, em uma experiência estética, porque estas coisas requerem um esforço. A cadeia de produção tritura um produto uniforme cujo modesto objetivo não é sequer o divertimento, porque este também pressupõe vida e, portanto, esforço, mas simplesmente a distração. Pode ser estimulante ou narcótico, mas deve ser de fácil assimilação. Não pede nada ao seu público(...) E não dá nada”8 . É nesses termos que a cultura de massa apaga a distinção entre o público e o privado podendo, na verdade, desaparecer ambos ao mesmo tempo. Não haveria mais diferenciações. Como assinala Claude Lefort, “só há possibilidade de oposição e crítica, quando há referências simbólicas, diferenciações de lugares sociais não dissimulados e, sobretudo identidades, a do mestre, pai ou instituição”9 . Esta visão, nos parece, é radicalizada no pensamento de Adorno. Ele fala nas imagens que nos inflacionam e nos impedem de imaginar, de pensar dada a velocidade e a quantidaO texto acima faz parte da Aula Inaugural da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, ministrada pela Profa. Marilena Chauí, em 1994. O texto está apenas mimeografado. 8 Dwight Mac Donald, “Masscultura e Medicultura”, in: A indústria da Cultura. Lisboa, Meridano, 1977, p.71. 9 Claude Lefort, “Pensando a Política”, in: Ensaios sobre Democracia, Revolução e Liberdade . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994, p.74. 7 11 de com que nos são apresentadas. As idéias de Baudrillard também vão nessa direção. Ao analisar a Guerra do Golfo, ele nos apresenta, na verdade, duas guerras: uma real, verdadeira e outra uma espécie de “simulacro da guerra”, ou seja, uma guerra apresentada pelas imagens da televisão cujo objetivo, entre outros, era mostrar a supremacia norte-americana e a pertinência de sua intervenção no conflito em nome da paz mundial. Nesse caso, substitui-se a guerra pelos signos da guerra. Em outras palavras, estamos diante da ilusão da guerra e da guerra da ilusão. No primeiro caso, é como se a guerra fosse realmente a grande saída para a resolução dos problemas. Não é necessário explicar que nada justifica uma guerra, claro. No segundo caso, estamos diante da farsa e do embuste. Daquilo que a palavra alemã Schwindel resume muito bem: a perda de consciência e a mistificação do telespectador. É a guerra da ilusão. Uma guerra que nunca existiu. Uma guerra articulada através de imagens cuidadosamente selecionadas nas dependências da CNN, com censura prévia para, posteriormente, chegar à opinião pública mundial. Nesse aspecto, as análises de Baudrillard dão conta de que “a televisão inculca-nos a indiferença, a distância, o ceticismo, a apatia incondicional. Pelo devir-imagem do mundo, anestesia a imaginação, provoca uma ab-reação de repulsa e, simultaneamente, um aumento de adrenalina que leva à desilusão total”. Em Freud o conceito de ab-reação concerne a gênese de um sintoma histérico, conforme sua obra Sobre os Mecanismos Psíquicos dos Fenômenos Histéricos (1893). Mas tem também o sentido da liberação da lembrança de um acontecimento traumático. Por isso mesmo, ela permite a catarse capaz de liberar a pessoa de seqüências patológicas, com a construção de um mundo em imagens pré-concebidas para dominar consciências. Disso resulta, ao contrário, a subsistência de um estado inconsciente que inviabiliza a defesa contra a angústia. Nesse sentido, continua Baudrillard, “a televisão e os ‘media’ poderiam tomar o real dissuasivo se não o fosse já. E isso constitui um progresso absoluto na consciência, ou o inconsciente cínico da nossa época. Os americanos conduziram a mesma guerra tanto perante a opinião pública mundial - através dos ‘media’, da censura, da CNN etc., - como no teatro de descompressão, que suga todo oxigênio da opinião pública. Não se trata de ser a favor ou contra a guerra. Trata-se de ser a favor ou contra a realidade da guerra”10 . Não sem motivo, o teórico italiano Gianfranco Bettetini, se preocupa com as mesmas questões analisadas por Baudrillard, mas em outra perspectiva. Em seu ensaio intitulado “La Televisione del Rumore”, o autor assinala que “o advento da eletrônica não substitui o discurso da realidade mas, ao contrário, acrescenta-lhe discursos incoerentes, muitas vezes inverídicos, cujo fascínio caótico tende a assemelhar-se àquele da própria realidade mesmo, favorecendo a ilusão de uma informação direta e global” 11. Assim, se pensarmos nas palavras de 10 11 Jean Braudrillard, A Ilusão do Fim. Lisboa, Terramar Editores, 1993, p.93-94 Gianfranco Bettentini, “La Televisione del Rumore”, in: II Mutamento Culturale II Itália. Napoli, Liguore Editore, 1994, pp 91-92 12 Baudrillard e de Bettetini, pode-se avaliar o seguinte: com certa freqüência, o telespectador recebe informações nem sempre compatíveis com a realidade dos fatos. Trata-se, então, de ideologizar-se o discurso cujo objetivo, tudo indica, é diluir a densidade do fato e da informação. Adorna-se a notícia, o fato, com ingredientes periféricos ao seu núcleo, à sua lógica interna e subtrair-se inteira ou parcialmente sua essência.Com isso, a informação cede lugar à desinformação ou, quando menos, beneficia a dúvida e a incerteza. Aqui, talvez possamos pensar, na falta de melhor termo, no que chamaríamos de “Teoria do Empastelamento”* . Isto significaria, em outras palavras, o seguinte: é tão grande o número de notícias e de informações sobre o mesmo acontecimento que, a partir de um certo momento, as pessoas não sabem mais nada de preciso sobre aquele acontecimento. Pela televisão, por exemplo, são tantas as imagens que se sobrepõem umas sobre às outras ao mesmo tempo, que torna-se quase impossível memorizar qualquer uma delas. Não só pela quantidade, mas pela velocidade com que são apresentadas. E mais do que isso, essas mesmas imagens misturam-se a outras, de outros casos, temas e acontecimentos, reduzindo quase a zero a densidade da notícia. Assim, é no binômio velocidade/reprodução excessiva da imagens que se dá o empastelamento das notícias e das informações, deixando o telespectador aturdido e, senão desinformado, certamente pouco à vontade para sentir-se de fato informado. Ele recebe o discurso e a imagem fragmentados. Nesse caso, a superficialidade da mensagem coaduna-se com a velocidade da imagem apresentada no vídeo. Discurso e imagem se lhes apresentam fragmentados, o que significa dizer, a fragmentação nuclear ao próprio acontecimento. É precisamente, em virtude dessa forma de apresentar a notícia, que nossa contemporaneidade, segundo estudiosos, tende à desinformação e ao desentendimento. De qualquer modo, não se pode esquecer a importância da mídia, em particular do jornalismo, no desenvolvimento das democracias modernas, a informação rápida chegando aos pontos mais distantes, apesar do espaço previsto para cada notícia. Em certo período houve presença do jornalismo na constituição do espaço público. Hoje, porém, a desunião entre democracia, jornalismo e espaço público parece mais evidente, pois o empastelamento a que aludimos é o contrário do pensamento. Este é procedimento reflexivo, anti-mídia. Que se pense aqui, nas reflexões do lingüista Pier Paolo Pasolini que, para falar do processo de “neutralização” das línguas pelo cursus pseudo-falado e escrito da mídia - dado seu vocabulário restrito e simplificador, tornou-se poeta, pintor, escritor, dramaturgo, romancista, cineasta e crítico literário. Essas diversas “línguas” ou “linguagens” são vistas à luz do dialeto Friulano (em que escreve seus poemas) como parte de “pureza desconhecida pela língua italiana”. É nele que * No Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Editora Nova Fronteira, empastelar significa “misturar ( caracteres ou outro material tipo gráfico) com os de diferentes caixas ou caixotim”. Empastelamento significa a “ação ou efeito de empastelar.” 13 o autor reconhece a medida das mutações da língua como forma de comunicação possível. É esta a razão da crítica de Pasolini à “gramática média” da mídia, à “linguagem paleomodemizadora” da linguagem tecnocrática. Sobre isto Pasolini escreve ao criticar o escritor Alberto Moravia: “Moravia opera com a língua como se fosse um instrumento neutro, quase ignorando que é produzida e elaborada historicamente pela burguesia. Inconscientemente Moravia teria transformado o italiano numa espécie de língua européia neutra, trazendo para ela características não italianas como, por exemplo, a simplificação da sintaxe”12. Isto resulta na substituição da “linguagem patronal” (paleo-industrial arcaizante porque recai na língua ainda anômica e sem regras estabelecidas - o que desorganiza ao invés de facilitar a comunicação) pela linguagem tecnocrática (ou neo-liberal). Para Pasolini, uma língua é viva justamente por sua interlocução com a “língua vernacular”, matricial com as quais as diversidades se medem e estabelecem a medida das semelhanças e de suas diferenciações. Não é apagando as diferenças numa “média” que a língua se mantém viva. Estas perspectivas, como as de Pasolini e Adorno, tendem a ver na sociedade moderna um “universo fechado”, uniforme e homogeneizador de leitores e espectadores. Esta visão encontra sua contrapartida no pensador e colaborador de Adorno, Walter Benjamin, para o qual a mídia - com cartazes publicitários, luminosos etc. oferecem ocasião para a reflexão. Não por acaso, sabemos que, para o autor de Rua de Mão Única, a rua é o único campo de experiência válida na modernidade. Há que decifrar os signos plurais das coisas, seus “sinais fantasmáticos”. A metrópole moderna se constitui como uma linguagem. “Paris, Capital do século XIX” é um “corpo tatuado”, cujos hieróglifos são mercadorias a pedir deciframento. E é a mídia que possibilita ler nos muros, ruas e vitrines, a griffe do Capital e seus novos mitos. Nas palavras de Marx: “até hoje acreditou-se que a formação dos mitos cristãos no Império Romano só foi possível por não se conhecer a imprensa. A verdade, porém, é outra. O jornal diário e o telegrama que divulgam instantaneamente invenções por todo o globo, fabricam, em um único dia, mais mitos do que outrora se produzia em um século”13. No tocante a Walter Benjamin, são os encontros ao acaso do flâneur que caminha pelas ruas - quando olhar recai na placa “Ministério do Interior” ou na inquietante publicidade “alemães bebem cerveja alemã” (1928) que prenuncia o nazismo - que a rua se constitui em microcosmo do conhecimento. Rua de Mão Única é um livro que deixa de lado a forma consagrada de escrita sistêmica, pois “convencer (por pensamento sistemático) é infecundo”. O livro deve tornar-se objeto, ser lido como um volume tridimensional. Percorrido como um bairro. Deve ser lido por difração, desenvolver-se nos panfletos e artigos de jornal, formas modernas que correspondem melhor a sua influência que o “pretensioso gesto universal do livro”. Tão somente esta “lingua12 Pier Paolo Pasolini, “Studi Linguistiche”, in: La Nuova questione della língua, org. por Oronzo Parlangeli. Brescia, Paideia Editrice, 1979. 13 Karl Marx, O Dezoito Brumário. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p.298. 14 gem de prontidão” mostra-se à altura do momento, revela-se atuante. Numa perspectiva benjaminiana, o antropólogo Massimo Canevacci pensa os acontecimentos de maio de 1968. Tomando de empréstimo a noção de “reprodutibilidade técnica” de que fala Walter Benjamin, o antropólogo italiano mostra que 1968 criou uma “cultura de irreprodutibilidade técnica”, o oposto à padronização da cultura, contrapondo às técnicas de comunicação petrificadas em normas, dados e técnicas de informação, estilos inovadores. A resposta às formas de intimidação do poder se fazia de modo improvisada, afirmando-se a dimensão lúdica do movimento que se multiplicava em panfletos e faixas: “estas”, escreve Massimo, “são as mais significativas do movimento. Palavras mudas onduladas ao vento, parecem velas de uma nave que parte para descobrir mundos maravilhosos e desconhecidos”14. Esta forma irreprodutível, efêmera da cultura é o reverso da rarefação da mídia, é obra de reflexão e mobiliza, ao mesmo tempo, o político e o poético. Razão pela qual está destinada a perdurar, a ser reinterrogada a cada “comemoração”. É neste sentido, também, que Adorno, em conversa com Beckman, ao tratar das formas de participação da televisão, em particular, como forma de instrução e informação (não Formação mas apoio à educação), diz que, apesar de o espectador se “inflacionado por um volume de estímulos dos quais não consegue mais dar conta” 15 , é possível “ensinar a ver televisão” e “aprender a ver televisão”, para discriminar “o que é fetiche na mídia e as formas de discerni-lo com o fetiche” 16 , isto é, como “alienação das massas”. Além disso, deve-se lembrar que a “cultura de imagem” tem, a igual título daquela escrita, uma história. Para encurtar o caminho, pensemos na separação da “produção letrada” e da “oral” ainda no interior da cultura grega arcaica. Eric Havelock nos mostra que de Homero a Platão vigora, ainda, uma cosmovisão que, apesar da utilização das letras por escrito, ainda pertence à oralidade. A tese discutida neste trabalho, anota o autor, é “o pressuposto de que o ouvido foi continuamente aliciado para colaborar com o olho, durante o período clássico, resultando num singular tipo de composição criativa, que o mero domínio da escrita não poderia nunca reproduzir”17 . Assim, podemos concluir, pelo menos provisoriamente, que as críticas fundamentadas e rigorosas de Adorno, pertencem e atestam uma perspectiva que privilegia a escrita e a leitura que, sabemos, são o instrumento, por excelência da forma humanista de reflexão, da análise de si, e do aperfeiçoamento moral - caros ao Iluminismo. Não obstante, é preciso estar atento ao fato de que “na verdade, há muitos Massimo Canevacci, “Giorni Cantati”, nº 2, 1982. Theodor Adorno, “Conversa com Beckman”, in: Educação e Emancipação, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. 16 Theodor Adorno, op. cit, p. 72 17 Eric Havelock, A Revolução da Escrita na Grécia e suas Conseqüências Culturais, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p.21. 15 14 15 que lêem só para não pensar”18 . Esse debate tem hoje, sabemos, o título de pós-modernidade, entendida esta, como uma tendência ao pensamento “globalizador”, fragmentado, ao gosto pelo “ecletismo sem conceito” e ao descartável. Habermas vê na idéia mesma de pós-moderno, uma seqüência do Moderno, no sentido da perda de uma visão global de um percurso racional. Há, também, na designação de pós-modernidade, referências ao universo das comunicações de massa e dos comportamentos por estes induzidos. A cultura de massa, por exemplo, de acordo com teóricos contemporâneos como Baudrillard e Fredric Jameson, representa a lógica do consumo da chamada sociedade pós-moderna. A concepção de cultura pós-moderna, segundo Jameson (mas com marcante influência da obra de Baudrillard), é a “cultura sem profundidade”, aquela que melhor representa a sociedade de consumo, etapa do capitalismo tardio posterior à Segunda Guerra Mundial. Nessa sociedade, a cultura adquire novos contornos e importância, em face justamente da repetição exaustiva dos signos e mensagens nos permitindo inferir, segundo o autor, a idéia na qual “é possível dizer que tudo na vida social tornou-se cultural” 19 . A “liquefação de signos e imagens” tornaria muito tênue a distinção entre o que se estabeleceu chamar alta cultura e cultura de massa. Objetivamente e em termos empíricos, a “liquefação de signos e imagens” significa o seguinte: uma mensagem publicitária através da televisão, de “out-doors” nas ruas da cidade, de painéis nas estradas, entre outras formas de comunicação, seria o equivalente a se conhecer o significado e a importância de Guernica de Picasso, ou ainda viver na alma o dilema e as agruras de Joseph K, em O Processo de Franz Kafka. Haveria, portanto, não um desmerecimento da chamada alta cultura, mas uma equivalência desta à cultura de massa, cujo denominador comum seria a “cultura de consumo”. Ao mesmo tempo, ela expressa a produção capitalista de mercadorias, originando significativo acúmulo da cultura material de bens e consumo. Nesses termos podemos supor que a lógica interna da sociedade de consumo, pelo menos como vê Jameson, vai ao encontro do que hoje chama-se pós-modernidade. O filósofo Ornar Calabrese fala também, mas antiadornianamente, na aceleração do tempo nas mídias. Diz ele: “o espectador de televisão está hoje francamente habituado a saltar de um programa para outro, relacionando-se instantaneamente, inferindo o seu conteúdo em poucas cenas, recriando palimpsestos pessoais. E sobretudo eliminando as ‘diferenças históricas’ entre diversas imagens percebidas”20. Além disso, as novas tecnologias audiovisuais desfazem a adesão à verificação pessoal dos fatos. Mais adiante acrescenta o autor: “não é a visão direta do jogo de futebol que dá a ilusão da verdade, mas a sua re-visão na televisão no replay e na câmera G.C. Lichetenserg, Aforismas . México, Ediciones Siglo Veintiuno, 1989, p.48. Fredric Jameson, Pós-Modernismo – a lógica do capitalismo tardio. São Paulo, Ática, 1995, p.84. 20 Omar Calabrese. A Idade Neobarroca. Porto, Martins Fontes, 1987, p.68. 19 18 16 lenta. A técnica da representação produz objetos que são mais reais que o real, mais verdadeiros que a verdade. Mudam deste modo as conotações de certeza: ela já não depende da segurança dos próprios aparelhos subjetivos de controle, é delegada em qualquer coisa de aparentemente mais objetivo. No entanto, paradoxalmente, a objetividade assim atingida não é uma experiência direta do mundo(...) A incredulidade de São Tomé está definitivamente ultrapassada. Acreditamos nos milagres não por lhes tocarmos, mas sim se alguém nôlos vem contar: por isso o replay e a câmera lenta” 21 . Deste ponto de vista, a modernidade (ou pós-modernidade) não significa o “fim da narrativa” no dizer de Walter Benjamin em seu ensaio O Narrador, ou o “fim da história”, nas palavras de Fukuyama _ mas uma transformação com respeito às nações de passado e de tempo: “[nossa tradição] parece ser uma era que, com a ‘visualização total’ da imaginação torna tudo perfeitamente contemporâneo. Nas imagens televisivas, umas ao lado das outras, passam imagens de diversas datas e isto torna-se perfeitamente atuais entre si. O seu sujeito pode ser um tempo qualquer, uma época qualquer, um estilo de sempre. Tudo é perfeitamente sincrônico (...).Com isso pervertemse os vetores conectivos da história, eliminam-se as flechas temporais das conexões (causa-efeito, reconstrução, nostalgia) (...) Se se pensar que atualidade, entendida em sentido jornalístico, começou a determinar a total visão do mundo, pode-se apreender que toda a história é concebida a partir de hoje. Poderia por isso dizer-se que a história ou acabou, como querem alguns, ou anda à deriva em busca de seu novo significado”22 . 21 22 ______________, op. cit., p.69. ______________, op. cit., p.195. 17 2 - O Consumo Estratificado da Produção Cultural A absorção administrativa da cultura pela civilização é o resultado da orientação estabelecida pelo progresso científico e técnico, da crescente conquista do homem e da natureza pelos poderes que organizam esta conquista e que utilizam o crescente nível de vida para perpetuar sua organização da luta pela existência. Herbert Marcuse O meio urbano-industrial brasileiro apresenta hoje uma produção da cultura de massa onde encontramos produtos especialmente destinados àquele tipo de público não-letrado ou simplesmente semiletrado. São produtos cujo consumo parece-nos estar principalmente – e talvez unicamente – na esfera das classes subalternas: estamos pensando naquela faixa de produção da cultura de massa posta à venda nos lugares de maior trânsito e concentração pública. Trata-se, nesse caso, de produtos que assumem significativa importância sócio-política, portadores de determinados signos culturais das classes dominantes, mas qualitativa e esteticamente adulterados, cujo alcance ideológico permeia valores estéticos e estabelece diferenças nos planos cultural e social. São bens culturalmente deformados que parecem obedecer a uma lógica estética interna, socialmente distintiva, onde o valor cultural do produto incorpora signos particulares dirigidos a uma classe social específica. Se hoje toda a sociedade capitalista está envolta pela aura do consumo da cultura de massa, com certeza também esse consumo obedece às imposições estabelecidas pelo caráter normativo da estratificação social, ou seja: cada classe social e até mesmo cada segmento dessas classes sociais terá, de acordo com sua especificidade sócio-econômica, de consumir produtos que apresentam nítidas diferenças qualitativas entre si. Nesse caso a cultura de massa ganha outra feição: ela, que já é um instrumento ideológico da classe dominante, apresenta uma contradição dialética o ser estratificada. Ao mesmo tempo que se produz bens culturais mais sofisticados, esperando-se do cidadão de baixa renda que os compre 19 à procura de status, ocorre também que há uma produção específica de subprodutos da cultura para manter esse mesmo cidadão nos padrões culturais de sua classe social. Mesmo quando o indivíduo de baixa renda superestima os produtos esteticamente mais sofisticados da cultura de massa e empenha-se em adquiri-los, fica evidente que seu êxito social constantemente procurado é apenas aparente. Mais correto seria talvez dizer inexistente. Grosso modo, o prazer da compra desses produtos pode também desempenhar uma função psicossocial de auto-satisfação. A mobilidade social na qual passa a acreditar com a compra de objetos qualitativamente mais sofisticados, não passa, na verdade, de uma pseudomobilidade social: isto porque, a despeito de uma nova realidade material que surge em seu universo com esses produtos, permanece consigo os mesmos valores culturais e as mesmas categorias sociais que formam a infra-estrutura da sua classe social. Nessas condições, o objeto enquanto bem cultural – mercadoria preparada para o consumo – tem seu valor de uso substituído pelo valor de troca, como nos mostra Theodor Adorno ao analisar o caráter fetichista que se atribui à música em situação idêntica a esta discutida por nós: “Se a mercadoria se compõe sempre do valor de troca e do valor de uso, o mero valor de uso – aparência ilusória, que os bens da cultura devem conservar, na sociedade capitalista – é substituído pelo mero valor de troca, o qual, precisamente enquanto valor de troca, assume ficticiamente a função de valor de uso”1. Nesse sentido, a inversão do valor de uso do produto pelo valor de troca, harmoniza apenas na aparência a contradição de classe do consumidor. O poder de compra mascara a desinformação do indivíduo. O hiato cultural, o despreparo, pelo menos nesse momento, é nublado pela nova atribuição de status. Fundamentalmente, os valores culturais e as categorias sociais aos quais nos reportamos anteriormente, não se transformam apenas com a estratificação mais e menos sofisticada da produção das cultura de massa. É preciso notar, isto sim, que o raio de ação dos produtos da cultura de massa trabalha com a aparência externa, com a ostentação de um status que, no caso das classes subalternas, permeia apenas sua superestrutura, ou seja: como toda relação de compra e venda, ela se dá na superestrutura de determinados tipos de relação de produção e de troca. O desmesurado esforço econômico do indivíduo da classe subalterna ao comprar produtos mais sofisticados da cultura de massa não pode ser mantido senão na aparência. Ele se esvai, numa primeira instância, na fetichização do próprio produto ao perder seu valor de uso e revestir-se do valor de troca. Instaura-se nesse momento, a ostentação fictícia: ela não tem lastro econômico para ser mantida e ampliada. A ideologia do consumo conspícuo esbarra num obstáculo que não pode remover: a paupérie. Numa segunda instância, esta ação significa também a própria negação dos valores culturais da sua condição sócio-econômica: ao 1 ADORNO, Theodor W., O fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores. São Paulo, Abril, 1975. V. XLVIII, p. 181 20 adquirir a produção mais sofisticada da cultura de massa, essa negação flutua na aparência do econômico e na própria ideologia dessa cultura que, aparentemente democrática, dirige-se a todos nós, mas mantém cada um em seu lugar ao trabalhar o hiato cultural existente na sociedade entre a classe dominante, monopolizadora da cultura e as classes subalternas, a quem a sociedade de massa dirige os subprodutos da sua produção cultural. Mas, se isso ocorre, é precisamente porque no plano histórico a burguesia, enquanto classe hegemônica, nunca deixou de exaltar e impor seus valores, sua concepção do mundo, sua ideologia de classe dominante. Ao contrário, se essa classe social determina na sociedade a base econômica e a estrutura, pode determinar também, a superestrutura política, ideológica e cultural que estão inextricavelmente ligadas a essa base econômica, isto é, às relações de produção e de troca como afirma Marx. Desse modo, produtora do que ocorre na superestrutura social, enquanto classe dominante mesmo, é que podemos entender porque a sociedade burguesa sempre trabalhou ideologicamente sua própria cultura no âmbito da sociedade de classes. Talvez o exemplo histórico mais significativo seja o Renascimento, considerado como um movimento cultural dirigido à elite e, enquanto tal, aumentou ainda mais a distância entre os intelectuais e o povo. Ocorre-nos, através de Marx, ao demonstrar como as classes subalternas num determinado momento histórico, aceitam a visão burguesa do mundo. Diz ele que, a burguesia enquanto classe dominante, monopolizadora da cultura, influencia, cria padrões de comportamento e educa a classe operária segundo sua própria visão do mundo, seus conceitos e suas conveniências. Se não vejamos: “Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem entre outras coisas uma consciência disso que pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como produtores de idéias, que regulamentem a produção e a distribuição dos pensamentos da sua época; as suas idéias são, portanto, as idéias dominantes da sua época”2. Analisando o problema pelo mesmo ângulo – classes sociais, cultura e ideologia – Gramsci mostra que a relação desse trinômio se dá exatamente no nível das superestruturas ideológicas. É através delas e do momento cultural de cada época que se clarifica em toda a sua complexidade a relação de dominação cultural da burguesia sobre as classes subalternas. O conceito de hegemonia – segundo Gramsci – permite-nos entender melhor a ideologia e complexidade da dominação não apenas no nível da superestrutura – produção e consumo de bens culturais – mas também em toda a complexidade que envolve o desenvolvimento da formação econômico-social na sociedade de classes. Para a intelecção mais aprofundada desse pro2 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich, A Ideologia Alemã. Lisboa, Presença,1975. V.I, p.56 21 blema não podemos cair no reducionismo do materialismo vulgar, no determinismo econômico de tipo mecânico, cuja visão se plasma na concepção mecânica das relações entre classe e ideologia. É também na afirmação e difusão da sua ideologia como vimos anteriormente em Marx, que Gramsci mostra o funcionamento efetivo da hegemonia burguesa na sociedade nos planos político, cultural, econômico e social: “Uma determinada classe, dominante no plano econômico e, por isso, também no político, difunde uma determinada concepção do mundo; hegemoniza assim toda a sociedade, amalgama um bloco histórico de forças sociais e de superestruturas políticas por meio de ideologia”3. Configura-se nas explicações de Marx e Gramsci que a burguesia enquanto detentora dos meios de produção material – e por isso ostentando a condição de classe dominante – passa a administrar também a produção cultural da sociedade, submetendo ao seu domínio4, às suas idéias, toda a produção de bens culturais dirigida ao cidadão comum. É sob o signo da hegemonia burguesa nos planos econômicos e cultural que se desenvolve na sociedade pós-industrial a chamada “sociedade de massas” percebida talvez pela primeira vez por Alexis de Tocqueville, como demonstra Gabriel Cohn ao estudar as correntes de análises das formações sociais (Tocqueville, Durkheim, Mannheim e Hannah Arendt) que seriam mais tarde chamadas de “massas”: “Numa passagem famosa, Tocqueville enuncia as bases daquilo que permitiria que o seu nome ficasse associado, mais tarde, à teoria da conexão entre a ‘sociedade de massas’ e o ‘totalitarismo’”. Mais adiante Gabriel se vale das palavras de Tocqueville para caracterizar os primeiros estudos, as primeiras reflexões acerca do que hoje denominamos de sociedade de massas: “A primeira coisa que chama atenção é uma multidão inúmera de homens, todos semelhantes e iguais, ocupados incessantemente na busca de pequenos vulgares prazeres com os quais saciam suas vidas. Cada qual, vivendo à parte, é estranho ao destino de todo o resto; seus filhos e amigos privados constituem para ele toda a humanidade (...). Por sobre essa raça de homens ergue-se um poder imenso e tutelar, que se incumbe de assegurar suas gratificações e de velar seus destinos”4 De fato, como registra Gabriel, “nessas formulações estão contidas as idéias essenciais daquilo que teóricos posteriores, mais à vontade para dar nomes aos fenômenos do que Tocqueville, chamari3 GRUPPI, Luciano, O Conceito de Hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro, Graal, 1978. P.90. 4 As reflexões de Marx a esse respeito mostram que “A classe que dispõe dos meios de Produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante”. A Ideologia Alemã. Lisboa, Presença, v. I, p.56. 4 COHN, Gabriel, Sociologia da Comunicação: Teoria e Ideologia. São Paulo, Pioneira, 1973. P.66. 22 am de ‘sociedade de massa’ e ‘totalitarismo’. Essas idéias são a nivelação, o isolamento e a perda de individualidade das pessoas privadas; a atomização do conjunto social nas partículas elementares; a contraposição direta entre a massa atomizada e o Estado todo-poderoso”5. Do conceito acima, resulta a necessidade de analisarmos a postura que o “Estado todo-poderoso” passa a exercer no âmbito da sociedade de massa. O isolamento, a perda da individualidade e a atomização do indivíduo não são decorrências normais do processo de desenvolvimento da sociedade. Parece-nos, muito mais, decorrentes do desequilíbrio que o Estado estabelece privilegiando determinados grupos sociais que, paralelamente e esse Estado passam a dirigir, a administrar a economia, a política e a cultura. Nosso plano de trabalho está voltado justamente para a ação do Estado sobre as superestruturas ideológicas e mais precisamente para a forma pelo qual o Estado burguês organiza a cultura no plano da produção e do consumo de bens culturais. É necessário, antes de mais nada, não perdermos de vista os conceitos anteriormente assinalados por Marx e Gramsci, segundo os quais as classes subalternas incorporam no seu cotidiano a visão de mundo que lhes é determinada pela classe dominante. Isto é básico. É através do uso de “vários canais” (a escola, a religião, o serviço militar, e embrionariamente dos veículos de comunicação como o cinema falado, o romance seriado, o jornal e o rádio que na sua época começavam a engatinhar) que Gramsci nos fornece as condições reais para percebemos como a ideologia da classe dominante chega às classes subalternas construindo seu universo de influência sobre toda a coletividade, implantando sua própria hegemonia. A escola, um dos canais a quem Gramsci dedica especial atenção ao analisar o problema da educação na Itália – mas até hoje atualíssimo se pensarmos em termos de sociedade brasileira – já se apresentava dividida de acordo com o nível sócio-econômico de cada classe social, criando as respectivas diferenças sociais no tocante ao acesso ao conhecimento. Enquanto as classes dirigentes da sociedade têm pleno acesso à iniciação científica (ginásio, colégio, etc.), às classes subalternas reserva-se-lhe aquela área do conhecimento profissionalizante, ou seja: a escola profissional, onde sua participação no sistema de produção está canalizada para posições subalternas. Nesse aspecto, as idéias de Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron ao analisarem o problema da difusão cultural e classes sociais em França coincidem com as de Gramsci6. Há que se pensar ainda, na possibilidade de que a escolha do cidadão pela formação técnico-profissional (menos dispendiosa e mais rápida) seja decorrente da premência de possuir uma especialização para participar do sistema de produção, e que talvez essa escolha 5 6 COHN, Gabriel,op. cit., p.66. COHN, Gabriel,op. cit., p.66. 23 não seja unicamente sua, mas uma deliberação tomada pela própria família (os pais) objetivando, entre outras coisas, a diminuição do déficit familiar. Basta observar que é exatamente dentro desse espírito que os veículos de comunicação trabalham junto aos baixos estratos da população, as mensagens publicitárias dos cursos profissionalizantes de tantas instituições com o Instituto Monitor, Instituto Universal Brasileiro, Escola Taylor etc. É o caso, por exemplo, do que se verifica no programa radiofônico Linha Sertaneja Classe A, o de maior audiência em sua categoria no rádio brasileiro, onde essas escolas oferecem cursos por correspondência sobre Rádio, Televisão, Transistores, Eletricidade, Corte e Costura, Mecânica Geral, Mecânica de Automóveis, Bordado, Torneiro Mecânico, Desenho Mecânico, Refrigeração e Ar Condicionado, enfim, toda uma gama de cursos profissionalizantes. É certamente pensando nos reflexos, nas conseqüências dessa educação estratificada, privilégio das classes dirigentes, que Gramsci propõe a criação de uma “escola média unificada, de caráter formativo geral”7 . A nós interessa, primordialmente, saber até onde a estratificação da cultura (diferença entre conhecimento técnicoprofissional e a formação científica, por exemplo) pode ou não interferir qualitativamente na produção e no consumo de bens culturais. O problema aqui é, portanto, discutir se a diferença de conhecimentos adquiridos pelas classes dirigentes e dirigida, se traduz realmente numa avaliação estética mais e menos apurada, respectivamente, no tocante à aquisição dos produtos da cultura. Se, históricamente, a classe dominante sempre criou sua própria cultura distintiva; se o proletariado enquanto classe social que se formava, criado pela indústria capitalista moderna, não tinha o conhecimento e a organização suficientes para criar uma nova cultura que negasse a cultura burguesa, como mostra Alan Swingewood 8 , hoje isso já não pode mais ser aceito como verdadeiro. E a rigor, é um conceito que perde a História de vista. Um conceito que não leva em conta o fato de ser impossível a existência da cultura proletária na sociedade burguesa. É não perceber como diz Trotsky, que “... a cultura burguesa já existia antes de a burguesia ter galgado formalmente o poder. A burguesia tomou o poder a fim de perpetuar seu domínio. O proletariado, na sociedade burguesa, é uma classe sem propriedades e privada de muitas coisas, de modo que não pode criar uma cultura própria”. 9 7 GRAMSCI, Antonio, Os Intelectuais e a Organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. P. 68 8 Diz Alan Swingewood que “o proletariado, como uma classe social relativamente ‘nova’, criada pela indústria capitalista moderna, não tinha nem o conhecimento nem a organização para criar uma cultura que rivalizasse e negasse a da classe dominante”. In: O Mito da Cultura de Massa. Rio de Janeiro, Interciência, 1978. P.39. 9 TROTSKY, Leon, On Literatura and Art.p.34. 24 É precisamente à luz dos conceitos acima - conhecimentos adquiridos, gosto estético e consumo de bens culturais - que pretendemos desenvolver nosso trabalho, tendo como base para isso, a relação dialética entre cultura e classe e a teoria da relação entre cultura e estrutura econômica da sociedade (modo de produção e relações sociais de produção), a relação entre cultura e formação de classe, estrutura de poder e ideologia. Precisaríamos aqui, ainda que de passagem, recorrer ao conceito de cultura. Para isso não podemos deixar de lado que este reside em suas determinações históricas específicas. É a estrutura de classes, a organização política do Estado, o sistema econômico e os seus meios de produção que determinam a produção cultural. Para o estudioso, não obstante sua ideologia, analisar o conceito de cultura sob esse prisma é um problema que depende unicamente de não prescindir do estudo científico. Como qualquer outra teoria que se vale da ciência (e, portanto, refuta os dogmas), o materialismo histórico afirma que toda a produção da cultura resulta, enfim, das formas de produção econômica, da influência dos fatores econômicos e sociais. Não podemos pensar em cultura como um conceito neutro, isolado. Ao contrário, é um conceito histórico, específico e ideológico. Ela não pode ser entendida separada das determinações especificas da formação social. Em qualquer sociedade, não importa quão simples ela possa ser, sua cultura se desenvolverá através dos diversos níveis de sua estrutura: o econômico, o político, o educacional etc. São eles que formam a totalidade das relações e das práticas sociais. Um conceito de cultura que não se fundamenta no sistema econômico da sociedade, no processo histórico, na organização política do Estado é, segundo a concepção do marxismo, um conceito idealista, histórico e abstrato. Como tal, perde seu rigor científico, uma vez que elimina a possibilidade de uma análise genética do problema. Nesses termos, a amplificação e a explicação do termo cultura, estariam reduzidas a fatos exploratórios da realidade social, baseado na experiência da observação e omitindo os princípios racionais do conhecimento científico. Nesse caso, tatear-se-ia de forma apenas superficial os fatores que determinam a formação da cultura. Dessa perspectiva é que Marx, se reportando à obra do artista italiano Rafael, destaca que o desenvolvimento do talento artístico em si, depende da “demanda, que por sua vez, depende da divisão do trabalho e das condições da cultura humana dela resultantes” 10 . Nesse sentido, tal como argumenta Gramsci, a cultura aparece como um produto realizável na superestrutura, que por sua vez 10 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Lisboa, Presença, 1976. v. II, p.431-2. 25 repousa sobre a infra-estrutura econômica. Vemos aqui, nas reflexões dos dois pensadores que o termo cultura não deve ser reduzido a expressões, tais como “cultura é toda uma maneira de vida”, ou ainda determinadas avaliações como as de F. R. Leavis que não levou em conta a forma sobre a qual a sociedade está organizada. A produção material, as relações de produção e o desenvolvimento tecnológico, pressupostos básicos para se entender a cultura ficam, em toda sua obra, no plano subsidiário. É somente através da religião - sugere Leavis - que podemos chegar aos fundamentos da cultura. Ora, pelo que vimos acima, dificilmente - para não imaginarmos impossível - poder-seia pensar numa idéia mais estranha à reflexão dialética da cultura. Se a religião, enquanto um dos aparelhos ideológicos do Estado, age na superestrutura social, ela não pode, segundo as concepções do materialismo histórico, determinar os fundamentos da cultura. Na verdade, a dependência do conceito de cultura à base econômica é, sem dúvida, uma realidade. Apesar disso ela não deve ser vista de forma unilateral. Tanto Marx como Engels ressaltavam, freqüentemente, a influência inversa dos fatores ideológicos e espirituais sobre a economia mostrando que ela é extremamente complexa, indireta e encoberta, mas, apesar disso, nada invalida da realidade da própria obra de arte estudada. E é, certamente, de posse dessas afirmações que podemos pensar na origem dialética do conceito de cultura. Se por um lado, a base econômica é determinante para se entender a produção cultural de um povo, não é menos verdade que essa base econômica, tão vital como se apresenta, sofre influência de fatores ideológicos e espirituais, ou seja, da própria visão do mundo que o cidadão pode ter. E quando dela falamos estamos pensando num conjunto de idéias, de aspirações e de sentimentos que reúne os membros de um grupo, de uma classe social e os opõe aos outros grupos e classes. Entretanto - e aqui é que reside a concepção dialética da cultura - ao mesmo tempo em que o ideológico e o espiritual formam o pensamento comum dos sentimentos, das aspirações e das idéias dos membros de uma classe social, não podemos deixar de lado que essa unidade (sentimentos, aspirações, idéias etc.) da visão de mundo se desenvolve exatamente a partir de uma situação econômica e social, que por sua vez dá origem à atividade da qual o indivíduo é a comunidade real ou potencial, formada pela classe social. Essas poucas considerações já nos mostram as razões pelas quais o conceito de cultura é dialético e não tão simples e subjetivo como pretende F. R. Leavis. Sua definição é muito estreita, pois ela deixa fora de sua esfera os problemas econômicos, políticos e ideológicos. Parece-nos necessário em primeiro lugar, 26 exatamente inverter as proposições de Leavis. Para isso, talvez mas também para situar melhor o direcionamento do nosso trabalho - a citação de Trotsky ao tentar definir cultura seja, no momento, o melhor caminho. Sua definição, ao contrário da de Leavis, incorpora e enfatiza os elementos fundamentais para a compreensão histórica e científica do que é a cultura: “Cultura é a soma total do conhecimento e das habilidades acumuladas pela humanidade em toda sua História anterior(...) A conjunção das habilidades e do conhecimento da humanidade histórica (...) das nações e classes” 11 . Nesse conceito desaparece a visão empírica, unilateral (levando em conta apenas a religião) e idealista que vimos em F. R. Leavis, ao postergar a importância dos fatores econômicos e ideológicos determinantes para chegarmos ao conceito científico de cultura. Contudo, até aqui temos apenas uma macrovisão da cultura. Há que se pensar, entretanto, na estrutura social e na participação cultural do indivíduo, uma vez que é na práxis que o homem realiza sua cultura. É também através dela que ele consegue intervir na realidade e transformá-la, fazendo da questão teórica uma realidade objetiva capaz de justificar o caráter revolucionário da práxis. Nesse aspecto, vale registrar que a relação entre indivíduo e a participação na cultura de sua sociedade não é feita de forma aleatória, mas principalmente pela sua posição no quadro social e pela instrução anteriormente recebida para ocupá-la. Nesse sentido, o homem não deve ser estudado apenas em relação à cultura total da sociedade, mas também tendo em vista as exigências culturais particulares determinadas pela sociedade e pela posição social que ele ocupa. É assim, e através de verificação mais precisa quanto possível da estrutura da sociedade, que podemos determinar não apenas como se configura o universo sócio-cultural de seus membros, mas também a própria participação cultural e diferenças culturais entre as classes sociais que compõem essa estrutura social. A nós interessa, precisamente, estudar a cultura das classes subalternas. Para tanto, precisamos levar em conta que a estrutura da indústria cultural, da forma como se apresenta ao estratificar sua produção, parece ratificar as diferenças sócio-culturais já existentes na sociedade de classes. Além disso, de forma significativa amplia ainda mais o distanciamento socio-cultural, principalmente no tocante ao consumo de bens culturais, o que obviamente ampliar-se-ia a todo o complexo de fatos que regem as relações sociais e a possível participação do Estado enquanto administrador da cultura. Nossa opinião é de que, a partir daí, 11 TROTSKY, Leon, Leninism and Library Work (1924). In: Problems of Everyday Life. Nova York, 1973.p. 143. 27 teríamos certos tipos de comportamentos geradores de distanciamento social trabalhados tanto pela classe dominante quanto pela classe subalterna. A primeira, por consolidar sua posição de monopolizadora da cultura, por fazer valer os seus interesses comuns; a segunda, por estar envolta em certas constelações sociais e culturais que virtualmente imporiam o seu autodistanciamento. A constatação dessas impressões talvez seja possível tanto através das características que norteiam o discurso cotidiano de uma e de outra classe, quanto no consumo da produção cultural mais e menos sofisticada respectivamente. Precisamos dizer, porém, algumas palavras sobre o significado da cultura das classes subalternas. Talvez aqui se situe o ponto decisivo deste ensaio. Certamente, não convém pensar em termos de uma cultura já definida no sentido de classe, e que apresente uma certa homogeneidade e autonomia tal como a cultura hegemônica e sua relação com a sociedade. Para Gramsci, por exemplo, essa situação se dá exatamente de modo inverso. Seu conceito de cultura subalterna resulta precisamente da ausência de consciência de classe, de uma cultura de classe ainda não inteira mente consciente de sua função histórica na sociedade. Nesses termos, a cultura subalterna, além de ser uma cultura heterogênea, de não apresentar seus pressupostos básicos, de sofrer ininterruptamente as influências da cultura hegemônica, de herdar resíduos culturais de civilizações anteriores, traz ainda consigo o ETHOS de identidade com a classe oprimida. Eis os motivos pelos quais talvez possamos pensar que a cultura subalterna seja antes de mais nada uma cultura híbrida. E disso resulta, entre outras coisas, a dificuldade de determinar seu estatuto sociológico. Todavia, Luciano Gruppi, profundo conhecedor da obra de Gramsci, acredita que o procedimento cultural das classes subalternas seja o que, Lévi-Strauss chama de brico-lage, ou seja, o modo de proceder dos diletantes que, combinando entre fragmentos diversos de determinadas máquinas, conseguem construir novos mecanismos. Para Gruppi, a cultura das classes subalternas “consiste em assumir elementos da cultura dominante para reelaborá-los, ligá-los de modo diferente, até fazê-los assumir significado diferente ou mesmo oposto, mas se conservando, no conjunto, no terreno indicado pela cultura hegemônica. Não é produção autônoma, fundação de novos temas e de novas formas de cultura, mas a reelaboração não homogênea, não crítica e consciente dos temas e dos materiais oferecidos pela classe dominante”12 12 GRUPPI, Luciano, O Conceito de Hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro, Graal, 1978. p. 92. 28 Em poucas palavras, e tendo como princípio o caráter não autônomo e heterogêneo da cultura subalterna, o pensamento de Luciano Gruppi coaduna-se com o de Gramsci. Ambos partem do princípio de que as classes excluídas do sistema hegemônico, ou seja, as classes subalternas não possuem uma cultura autônoma, homogênea e criticamente unificada. Aliás, a esse respeito, Gramsci vai ainda mais longe. Para ele, a classe operária só poderá elaborar sua própria cultura, torná-la homogênea, criticamente unificada e autônoma, quando essa própria classe se tornar autônoma. Mas para isso - acrescenta Gramsci - o proletariado terá que realizar antes a ruptura do regime normal das relações entre a classe dirigente - e seu sistema hegemônico em geral - e as classes subalternas, eliminar a dominação de classe, ou seja, a utilização predominante ou exclusiva da sociedade política. Só assim, essa classe tornar-se-ia autônoma, consciente do seu papel social e capaz de assimilar criticamente as manifestações da cultura burguesa. Teríamos, a partir desse momento, a reelaboração crítica da cultura subalterna e a formação de uma cultura verdadeiramente revolucionária a partir das próprias conquistas da cultura burguesa. Como destaca Lenin, a cultura revolucionária nasce precisamente da produção cultural burguesa, ou seja, da dialética hegeliana da economia clássica, das teorias socialistas francesas etc., e da capacidade de assimilação crítica dos estágios mais desenvolvidos da cultura burguesa. Da sua superação enquanto negação e adoção. O negar, que é assumir e também superar, põe-nos diante da negação e da superação dialética da própria adoção crítica dos legados da cultura burguesa no seu estágio mais desenvolvido quanto seja. Foi dentro desse espirito que Lenin e Trotsky questionaram a validade do movimento proletkult desenvolvido pelo partido bolchevista e apoiado por Lunacharsky e Bukharin logo após a revolução de 1917. O movimento proletkult acreditava que o proletariado poderia elaborar sua própria cultura de classe formada precisamente na luta de classes e assim rechaçar a cultura tradicional. Na verdade, como vimos anteriormente, a solução teórica não está em contrapor ambas as culturas como se fossem duas coisas isoladas e sem identidade. Trata-se, de se estabelecer uma contraposição dialética através da adoção e da superação crítica. Há que se pensar na cultura burguesa, reelaborá-la criticamente, retrabalhar suas condições, compreender sua importância e função histórica, e a partir disso se pensar numa sociedade onde a cultura não seja um monopólio de classe, mas que se possa criar condições de elevação geral dos níveis culturais. Na realidade, não se pode compreender a cultura subalterna, 29 sem antes se refletir sobre a cultura burguesa. A significação histórica da classe burguesa, abastada e educada, contrastando com a classe operária privada do acesso à cultura já são dados suficientes para a compreensão do problema e para não vermos o fenômeno apenas na aparência. É preciso trabalhar os dados empíricos e entender o problema cientificamente. A ciência, como diz Marx, perderia sua função se o fenômeno estivesse inteiramente contido na aparência. Mas não: a análise científica ultrapassa a aparência do fenômeno justamente porque ele descobre as conexões subjacentes a ele, exigindo do analista a reflexão e elaboração crítica do seu objeto de estudo. Compreende-se agora quais os desvios teóricos cometidos pelo movimento proletkult quando definia a cultura proletária apenas como uma “arma na luta de classes” e como “expressão pura da ideologia proletária”. Eis porque Lenin nos advertiu acerca do movimento proletkult, ao qual classificou como ciência diletante e auto-administradora. Sem dúvida, o erro fundamental em que incorreu esse movimento foi exatamente não perceber que o marxismo absorveu os fundamentos científicos do pensamento e da cultura, burgueses em todo o processo de desenvolvimento da sua teoria política e social. Vale dizer, o marxismo não recusou toda a tradição da cultura burguesa. Ao contrário, foi justamente com base na reflexão crítica sobre o pensamento burguês anterior que o marxismo pôde elaborar sua filosofia e construir os fundamentos de uma cultura sem classes, libertária e “verdadeiramente humana” como diz Trotsky” 13 . Vê-se de imediato que, tanto no plano prático como teórico, este universo cultural, malgrado suas diferentes interpretações, nada tem a ver com aquele produzido e vivido hoje no capitalismo moderno, nas sociedades que produzem a chamada cultura de massa. Parece-nos pouco provável que a cultura burguesa, lídima representante da sociedade de classes, jamais teria condições ou interesse, de produzir uma cultura “verdadeiramente humana” ou até mesmo “elaborar um ‘humanismo’ moderno, capaz de se difundir até as camadas mais toscas e incultas” 14 da população como pretendia Gramsci. Chega-se assim à conclusão de que, a alternativa para que isso ocorra é justamente aquela já discutida neste estudo, proposta por Gramsci, Lenin e Trotsky. Acreditamos agora poder nos aproximar, senão abordar, o problema da produção cultural (escolhemos a literatura apenas como exemplo) e da própria estratificação imanente a essa produção. Nesse sentido, temos de um lado a literatura culta e do outro a literatura chamada popular, que nos interessa mais 13 14 TROTSKY, Leon, Escritos sobre Sindicato. São Paulo, Kairós, 1978. p. 82. GRAMSCI, Antonio, Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. p. 108. 30 diretamente. Tanto uma como outra, ou qualquer atividade artística, não pode, em momento algum ser pensada fora do contexto social em que foi produzida. Noutras palavras, a abordagem científica não pode prescindir sob qualquer hipótese da importância dos fatores econômicos e das relações entre classes sociais no momento em que a obra foi produzida. Como se vê, trata-se de um fenômeno de extrema complexidade onde, somente através da pesquisa profunda e da reflexão mais apurada quanto possível, poder-se-ia pensar em resolvê-lo ainda que parcialmente. É necessário então levar em conta as relações entre a produção cultural, momento histórico em que foi produzida a obra, a estrutura da sociedade na época, tanto quanto entender sua significação nos planos estético e ideológico. Com efeito, o problema que aqui nos preocupa é precisamente sabermos quais as eventuais peculiaridades inerentes à literatura do romance policial ou da ficção científica, por exemplo, para que possamos ou não lhe atribuir características próprias. Analisar sua formação ideológica, mostrar suas contradições ao nível das classes sociais e a própria tentativa de resolvê-los já seria uma boa medida; porém, talvez não seja o suficiente nem o único caminho a seguir. Se como diz Lucien Goldmann, que “toda obra importante, toda corrente filosófica ou artística possui uma eficácia e exerce uma influência sobre o comportamento dos membros do grupo e, inversamente, a maneira de viver e de agir das diferentes classes sociais em dada época determina, em grande medida, a sua vida intelectual e artística” 15 , então, a análise dessa produção literária exige, ao mesmo tempo, uma análise estética (enquanto corrente artística) imanente à significação objetiva da obra; e uma análise ideológica como forma de relacioná-la com os fatores econômicos, sociais e culturais da nossa época. Se essa produção literária ou talvez paraliterária possui hoje uma vasta clientela de consumidores - vide seu grande sucesso comercial - talvez isso seja verdadeiro também para os demais produtos culturais dirigidos às classes subalternas. Significativo, entretanto, é que a partir disso podemos então pensar na estratificação da produção da cultura de massa no interior da sociedade estabelecendo as diferenças culturais. Jean Baudrillard nos dá excelentes exemplos de como isso pode ocorrer no plano da produção e do consumo de objetos. Refletindo sobre o fluxo e o refluxo de determinados signos culturais e sobre a lógica cultural de cada classe social, Baudrillard mostra, através da moda, que a distinção cultural obedece uma certa lógica anteriormente 15 GOLDMANN, Lucien, Dialética e Cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967. p. 79. 31 sancionada através da posição do indivíduo na sociedade: “Tomase a imposição da efemeridade da moda como eliminadora da herança de signos distintivos, supõe-se que ela, em cada instante do ciclo, dá a todos igualdade de oportunidade. Todos os objetos são revogáveis perante a instância da moda: isso bastaria para criar a igualdade de todos diante dos objetos. Ora, isso é evidentemente falso: a moda, como a cultura de massa, fala a todos para melhor devolver cada um a seu lugar. É ela uma das melhores instituições nesta função, uma das que melhor funda sem pretensões de aboli-la, a desigualdade cultural e a discriminação social” 16. Talvez o melhor caminho para compreendermos esse fenômeno esteja justamente no fato de que a indústria cultural, ao contrário do que se pode pensar, não mais homogeneiza sua produção; mas ao contrário, procura diferenciá-la. Ela far-se-á não só no plano do conteúdo, ou seja, do produto acabado, mas também no nível das mensagens diferenciadas tornando claro para o observador as diferenças sociais, econômicas e culturais. Aqui parece chegar ao fim o mito de que a sociedade de massa possui uma cultura democratizada como pretendem Edward Shils17 e outros estudiosos que estão na mesma linha de reflexão sobre o tema. Situação análoga a esta (portanto, pertinente a este trabalho), foi registrada e discutida por Mannheim ainda nos anos 30, ao analisar a questão da democratização da cultura e a mentalidade aristocrática, em seu notável trabalho sobre Sociologia da Cultura. Diz ele: “Para a mentalidade aristocrática, o que é culturalmente valioso deve existir num plano superior, inacessível aos homens comuns. Neste caso como em outros, percebe-se que as atitudes em relação aos objetos culturais seguem o paradigma das relações sociais subjacentes. Onde quer que a ordem política e social se assente sobre a distinção entre tipos humanos ‘superiores’ e ‘inferiores’ surge uma distinção análoga entre objetos ‘superiores e ‘inferiores’ de conhecimento ou apreciação estética...” 18 . O objetivo de Mannheim é precisamente nos alertar para duas questões básicas analisadas em seu livro: a da “distância social”, que por sua vez gera a “distância vertical”, ou seja, a distância criada pelo poder entre membros hierarquicamente desiguais e que, por isso, apresentam diferentes padrões de comportamento social. Atribuindo essas diferenças a características próprias das sociedades hierarquicamente estratificadas, Mannheim cita exemplos da “diferença de vestuário de uma casta para outra, diferentes modos 16 BAUDRILLARD, Jean et alii, A Moral dos Objetos. Função – Signo e Lógica de Classe. In: Semiologia dos Objetos. Petrópolis, Vozes, 1972. p. 71. SHILS, Edward et alii. A Sociedade de Massa e sua Cultura. In: A Indústria da Cultura. Lisboa, Meridiano, 1974. p.151. 18 MANNHEIM, Karl, Sociologia da Cultura. São Paulo, Perspectiva, 1974. p. 152. 17 32 de tratamento cerimônicas de deferência, gestos de submissão” 19 etc. E o que é mais importante: o distanciamento vertical, como se pode verificar, não se limita apenas às relações mútuas entre grupos; abrange, inclusive, as relações entre o grupo social ou uma pessoa e a própria produção cultural. Em outras palavras, significa dizer que o distanciamento vertical, decorrente da distância social, atinge as relações interpessoais tanto quanto a aceitação ou não, de determinados objetos culturais. Nesse sentido é que Mannheim ratifica o distanciamento social e estabelece diferenças no tocante à produção cultural. Para ele existem produtos culturais “superiores” e “inferiores”, precisamente enquanto produtos de uma sociedade hierarquicamente organizada. São muitos os exemplos dados por este estudioso acerca dessa questão; mas se pensarmos em termos de produção literária, como vimos anteriormente, da distância que separa a chamada literatura culta as literatura popular, ou ainda da diferença de uso que se faz do vernáculo em nível de cada classe social, então este exemplo é altamente significativo: “O discurso ‘culto’ dessas camadas privilegiadas as separa da plebe; essa é uma das mais importantes barreiras sociais entre as classes de uma sociedade estratificada. A plena intercomunicação não é possível em face da coexistência de discursos ‘superiores’ e “inferiores’. Para o homem comum, o discurso elegante parece artificial e hipócrita; para as camadas dominantes, o discurso popular é grosseiro, brutal e degradante”20 . Embora questionável em certos pontos, Mannheim parece ter detectado com precisão a distância entre as classes sociais e suas respectivas culturas particulares. Com efeito, não nos parece inteiramente correta a suposição de que o homem comum poderia entender o “discurso elegante” da classe culta como algo “artificial e hipócrita”. Da mesma forma, o discurso popular não se apresentaria para o homem culto como “grosseiro, brutal e degradante”. Há que se refletir muito sobre esse problema, e Mannheim não o faz. Ele apenas o menciona de passagem. A rigor, trata-se de uma hipótese, e, como tal, pode estar longe de ser uma verdade geral. De qualquer modo sua hipótese trabalha com preconceitos de classe e apreciação estética de produtos culturais – no caso específico, o repertório de cada classe social – e de modo algum pode-se negar sua importância. Agora – pensando em termos da sociedade de massas – constatar sua pertinência na prática é uma tarefa que só a pesquisa de campo tem condições de fazê-lo. 19 20 MANNHEIM, Karls, op. cit., p.174. MANNHEIM, Karls, op. cit., p.177. 33 3. Sociedade e Cultura de Massa Das Origens: Tocqueville, Nietzsche e Ortega y Gasset O Brasil, como de resto significativa parte do bloco que compõe o chamado “terceiro mundo”, assistiram à distancia algumas transformações estruturais em países europeus, Estados Unidos, enfim, no outro bloco denominado hoje de “primeiro mundo”. Essas mudanças que se fizeram sentir nos planos econômico, social, político e cultural, principalmente, introduziram novas normas sociais e novos padrões de comportamento que vão, desde questões estruturais como o modo de produção da riqueza, a relação capital e trabalho, 1 até categorias de superestrutura como, por exemplo, a moda e a superfluidade do consumo. A esse conjunto e ao resultado dessas alterações que se consolidam a partir dos anos 30 deste século, os estudiosos deram o nome de Sociedade de massa. Os primeiros sinais do horizonte desta Sociedade, no entanto, são muito anteriores a esse período. Eles surgem ainda em meados do século XIX com as obras de Alexis de Tocqueville, Democracia na América, publicada em 1840 e Gustave Le Bon, Psicologia das Multidões, de 1870. Nesse momento, na Europa, com a consolidação da Revolução Industrial, criam-se as condições econômicas, politícas e sociais para o surgimento posterior da moderna sociedade de classes. A expressão “povo” cede lugar ao termo “massa”, usado inicialmente por Tocqueville e depois por Le Bon, com o objetivo de conceituar aglomerados humanos desorganizados, casuais e sem objetivos definidos. Ao mesmo tempo, como assinala o sociólogo inglês Alan Swingewood delineava-se a nova face da sociedade emergente: “o desenvolvimento da divisão capitalista do trabalho, a organização e a produção de mercadorias em fábricas de larga escala, populações urbanas densamente concentradas, o crescimento das cidades, as decisões centralizadas, um sistema mais complexo e universal de comunicações e o crescimento dos novimentos políticos de massa baseados na extensão dos direitos de voto à classe operária, são as características ideais da sociedade de massa” 2 Não menos importante que as características da nova sociedade era o caráter impessoal cada vez maior nas relações sociais. A mudança de comportamento do indivíduo voltado para a produção, já 1 A literatura sobre a emergência da Sociedade de Massa e a mudança nas relações de produção é particularmente vasta. Porém, a obra de Giovanni Becheloni, Il Mutamento Culturale in Italia, Liguori Editore, S rl, Napoli, 1989, deve ser consultada principalmente por sua riqueza teórica e precisão de informações. 2 SWINGWOOD, Alan. O Mito da Cultura de Massa, Editora Inter-Ciência, Rio de Janeiro, 1978, p. 6 35 antecedia o processo de “automatização” da sociedade. De outra parte, o Estado aumentava sua influência e autoridade (talvez a expressão melhor seja autoritarismo) sobre a sociedade, reorganizando-se administrativamente. O expediente de que lançou mão permanece válido e forte até nossos dias: a burocracia. Esta foi a opção encontrada para redimensionar suas relações com a sociedade. Uma forma evidente de criar novos macanismos de controle, já destacados na obra de Clifford Geertz, mas analisado com grande precisão teórica por Max Weber 3 Tendo em mira justamente a obra de Tocqueville e a preocupação de interpretar as características da sociedade de massa emergente, o socióIogo Gabriel Cohn acrescenta que “a nívelação, o isolamento e a perda da individualidade das pessoas privadas; a atomização do conjunto social nas suas particulas elementares, a contraposição direta entre massa atomizada e o Estado todo-poderoso” 4 constituem o despertar do sociedade de massa. Sob esse ângulo, me parece lícito se pensar nas implicações ideológicas de uma sociedade cujas características, como já dissemos, mudaria. em todos os planos. Assim, não é sem motivo, por exemplo, que ocorreria a “contraposição direta entre a massa atomizada e o Estado todo-poderoso”, ao lado do “crescimento dos movimentos políticos de massa baseados na extensão dos direitos de voto à classe operária”, como registram Cohn e Swingewood respectivamente. Nessa perspectiva, nota-se a reorganização da sociedade baseada nos interesses de classe. Por um, lado, o proletariado reivindicando do Estado, a elaboração de leis que lhe permitisse a conquista de alguns direitos e a consolidação daqueles já alcançados. Por outro, a burguesia, dona do poder, reforçava a posição do Estado todo-poderoso que, na verdade, representava e defendia seus interesses de classe. Interessante: ressoa aqui a conhecida fórmula de alianças entre burguesia e Estado cuja cumplicidade está historicamente registrada 5. Investido da imagem de mediador das tensões sociais, o próprio Estado estabelece o desequilíbrio a favor da burguesia. É esta classe social, na verdade, que vai administrar a econômia, a política, a cultura, enfim, o Estado e a sociedade como um todo. Nessas conidições, é possível se pensar que o advento da sociedade de massas, entre outras coisas, acirra as contradições sociais, trazendo à tona a questão ideológica da luta de classes. A massa atomizada, cuja liberdade e individualidade ficaram comprometidas em função das transformações ocorridas nas relações de produção, vê agora sua força política (a despeito do direito ao voto) minimizada pela aliança entre burguesia e Estado. Claro: uma coerência na trajetória da história cujo resultado empírico hoje se conhece muito bem. A burguesia legítima seu poder alicerçada justamente nos princípios 3 Sobre este assunto deve-se ler a obra Max Weber, Gabriel Cohn (org.) Editora Ática, São Paulo. 1986. 4 COHN, Gabriel. Sociologia da Comunicação: teoria e ideologia, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1973, p. 66 5 Sobre essa questão convém consultar a obbra de Luciano Gruppi, Il Concetto di Egenomia in Gramsci, Editrice Laterza, 1981 36 democráticos da liberdade, igualdade e justiça material. O livro de Alexis de Tocqueville, citado anteríormente, é a primeira obra de reflexão científica sobre todo o processo de formação da sociedade de massa. Tendo a. sociedade Americana como modelo (pais onde morou durante 12 anos), Tocqueville estava atento às transformações advindas da Revolução Industrial não só da Europa, mas também da América. São suas reflexões sobre essas transformações que marcará, a meu ver, o ponto de partida para o estudo científico das bases de uma nova realidade que mais tarde seria conhecida como sociedade de massa. Tocqueville faz uma admirável análise da velha sociedade nos mostrando que sua estrutura social não podia mais suportar o velho e caduco autoritarismo aristocratico. O autor, no entanto, tem a sensibilidade e a lucidez intelectual para perceber que o advento da nova ordem social através da burguesia não significa exatamente democracia. Entre tantos aspectos, a instabilidade social preocupava-o de perto. Não sem motivos, é claro. Ao mesmo tempo que, como já vimos, emergia uma burguesia sólida economicamente e forte no plano político, surgia também, em sua contrapartida, uma respeitável massa urbana desempregada. Atento a tudo isso, o autor vai um pouco mais adiante e lança os olhos sobre a produção cultural. Como qualquer outra atividade profissional, a cultura também ganha outra dimensão no contexto da sociedade industrial adquirindo uma feição monótona e rotineira. Era o prenúncio daquilo que Theodor Adorno e Max Horkheimer mais tarde, em 1947, chamariam de Indústria Cultural. Em outras palavras, a Cultura de Massa. Espantado com a industrialização da literatura e sua consequente banalização, Tocqueville acrescenta que “a literatura democrática, está sempre infestada de uma tribo de autores que olham os assuntos como um simples comércio.” 6 Mais adiante, interpretando a reação popular diante das transformações sociais e do sistemático processo de atomização do indivíduo em sociedade ele acrescenta: “cada cidadão, assimilando-se a todos os demais, está PERDIDO NA MULTIDÃO 7 e coisa alguma se destaca, salvo a grande e imponente imagem do povo em, geral. Não conheço país em que haja tão pouca independência de espírito e de verdadeira liberdade de discussão como na América.” 8 Diferentes são as posições do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Em suas obras, The Anti-Christ e The Twilight of the Gods. Ao analisar o papel do Estado e do proletariado europeu, nota-se uma certa concepção aristocrática das relações sociais e forte resistência às mudanças estruturais que estavam ocorrendo. Reportando-se ao inconformismo do proletariado que reivindicava partícipação política na administração do Estado, melhores condições salariais e de trabalho Nietzsche acrescenta: “eu simplesmente não consigo perceber o 6 Tocqueville, Alexis de. Democracia na América, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1981, p. 245. 7 O grifo é do autor. 8 Tocqueville, Alexis de. Op. cit. P. 16. 37 que se propõe a fazer com o operário europeu agora que ele já se transformou numa questão. Ele já está muitíssimo bem de vida para não reivindicar mais ... se se quer escravos, será tolice educá-los para ser patrões.” 9 Os arguentos de Nietzsche não param ai. Defensor intransigente da sociedade hierarquica fundada na “maior e menor habilidade” do homem ele escreve: “em toda sociedade saudável existem três tipos que se condicionam entre si e que gravitam de modo diferente em termos psicológicos; cada um tem sua higiêne, seu próprio campo de trabalho, seu próprio senso de perfeição e domínio ... os primordialmente espirituais, os primordialmente fortes em físico e temperamento e - o terceiro tipo - os que não distinguem em coisa alguma, os medíocres - estes constituindo a grande maioria, e aqueles como a elite.” 10 Trabalhando com o conceito de “homem medíocre” levado à sua forma extrema, Nietzsche consolida em seu pensamento a idéia de uma cultura hierárquica e orgânica ao mesmo tempo. Assim, por exemplo, o “homem medíocre”, permanentemente insatisfeito com seu “status” social, torna seu comportamento e aspírações um instrumento de manipulação e um alvo fácil ao que ele classifica de, “agitadores socialistas ... que minam o instinto, o prazer, o senso de satisfação do operário com sua existência pequena - que o torna invejoso, que lhe ensinam a vingança.” 11 As preocupações de Nietzsche no plano cultural incIuiam o que ele considerava uma ameaça à chamada “alta cultura”, ou seja, a literatura, a ciência, a arte e a filosofia. A ascenção da classe operária, portadora de uma ideologia alheia e insensível aos valores dessa cultura poderia, segundo o autor, colocar em risco exatamente estes, valores. Nessa questão, no entanto, Netzsche não está sozinho. Autores posteriores à sua obra, como Ortega y Gasset e T.S. Eliot acreditavam que a ameaça a sociedade surgiria de uma nova ordem social vinda “de baixo”, tendo como principais personagens a ignorância e a rudeza do “homem de massa”. À maneira desses pensadores, a forma de eliminar a ameaça seria mesmo ensinar a esses homens rudes a aceitarem seu lugar de subalternidade e não molestarem a cultura tradicional. Se por um Iado, nas obras de Tocqueville e Nietzsche já se detecta a ideologização do termo “massa”, no livro de Ortega y Gasset, The Revolt of the Masses, publicado em 1930 este fato se consolida. Interpretando as concepções de Nietzsche sobre a emergência da classe operária desprovida de instrução escolar e concentrando suas análises mais ainda na critica do filósofo alemão ao socialismo, Gasset torna-se implacável. Para ele a sociedade é formada por uma “elite superior” e por uma imensa “massa desqualificada”. Todavia, não se trata apenas de um registro eventual do autor. Em sua obra há toda 9 Nietzsche, Friedrich. “The Twilight of the Gods”, in: W. Kaufman (org) The Portable Nietzsche, New York, 1965, p. 545 10 Nietzsche, Friedrich. Op. cit. p 645. 11 Nietzsche, Friedrich. Op. cit. p. 646-7 38 uma análise que procura fundamentar suas afirmações usando de um discurso teórico que aponta para o reducionismo sociológico. Assim, por exemplo, a “elite superíor” deve sempre se manter no poder, deve sempre representar o Estado, justamente porque é a classe social mais culta e mais lúcida para resolver os problemas da sociedade. Seria, segundo Grasset, a única classe social com visão de conjunto dos problemas políticos, econômicos e sociais. Assim, pela habilidade e por ser uma espécie de “antena da raça” (para lembrar a expressão do poeta inglês Ezra Pound sobre o artista), a elite deve perpetuar-se no poder. À “massa desqualificada” resta-lhe a resignação de classe “inferior” e a consequente submissão. As palavras de Gasset esclarecem melhor a questão quando ele analisa as conquistas trabalhistas e sociais do proletariado. Diz ele: “a massa resolveu avançar para o primeiro plano da vida social, ocupar os lugares, usar os instrumentos e gozar os prazeres até agora reservados a poucos.” 12 Na verdade Gasset estava era preocupado com o avanço político das massas (embora não fale no elemento político) em função do liberalismo democrático que emergia na Europa. Para ele esse avanço não passava de uma invasão de “novos bárbaros”, de um flagelo imposto aos europeus (à elite, é claro) e à sua cultura, agora seriamente “ameaçada” pela “mediocridade”. Como diz o próprio autor, reportando-se à classe média e ao operário, eles são “incapazes de qualquer esforço além do que lhes é estritamente imposto como uma reação a compulsão externa.” 13 A perplexidade e o inconformismo de Gasset, como se pode ver, não se concentra apenas nos avanços e nas conquistas, políticas e sociais das massas. Esse acontecimento com efeito, nada mais era do que o reflexo do liberalismo democrático, como já disse, que propiciaria ainda o avanço da ciência e da técnica. É dentro desse contexto que se automatiza a mecanização das fábricas, constroemse ferrovias, expandem-se a índustria da construção cívil, a rede de saneamento básico e investe-se na pesquisa contra as doenças epidêmicas principalmente na França e Inglaterra. 14 O final do seculo XIX já aponta como seria a sociedade de massa., marcada pelo avanço tecnológico e pelo advento de uma nova, ordem social. Surge o avião, a energia elétrica, o petróleo, o automóvel, o bonde, o cinema e o telefone. Gasset, no entanto, não interpretou essas mudanças dessa forma. Para ele, a presença da democracia gerou uma imensa massa despreparada e desprovida dos mais elementares princípios cívilizatórios. Esta é também a opinião do sociólogo alemão Max Scheler quando, nos anos vinte escreve que a democracia degrada a “vida,reduzindo-a à psicologia de massa, à gradual transformação de 12 Gasset, Ortega y. The Revolt of Masses, The Seabury Press, New York, 1930, p. 11 13 Gasset, Ortega y. Op. cit.., p.13 14 Sobre este tema deve-se consultar a obra de Adeline Daumard, “L”évolution des Structures Sociales em France à l’époque de l”industrialisation”, Revue Historique nº 502, avril-juin 1972 39 uma democracia de idéias liberais numa democracia sombria de massas, interesses e sentimentalismo.” 15 Em outros termos, apenas as “elites verdeiramente cultas” resistiriam às mazelas da sociedade de massa, como forma de preservar a verdadeira cultura. Convém lembrar que estes temas foram os mais enfatizados e discutidos no pensamento do século XIX e até mesmo início do século XX. Em consequência disso é que, já na segunda metade do século XIX temos, ainda que de forma embrionária, um conceito de sociedade de massa reportando-se enfaticamente à presença e ímportâncía do proletariado industrial. Ao mesno tempo ocorre a ascendência econômica da burguesia e os debates sobre a teoria socialista com Charles Marie Fourier e Robert Owen, tidos como socialistas utópicos. Nesses termos é possível se entender por quê as primeiras teorias sobre a sociedade de massa (que se pense nas obras de Tocqueville, Nietzsche, Ortega y Gasset, T.S. Eliot, entre outros) são, em outras palavras, a defesa dos valores da aristocracia ou da burguesia. Ou ainda como diz o sociológo inglês Alan Swingewood, “as primeiras teorias de sociedade de massa são, então, defesas da classe política dominante contra o espírito democratico dos estratos subordinados, e a reafirmação de hierarquias sociais rigidamente definidas, nas quais as decisões continuam como prerrogativa das elites. Estas teorias rejeitam os princípios democráticos de governo conservados como uma relíquia pela filosofia e pela revolução burguesa, que elas identificam com a mediocridade cultural e social.” 16 Estas rápidas observações nos permitem captar as primeiras discussões teóricas acerca da gênese da sociedade de massa. De Tocqueville, ainda em meados do século XIX, até Ortega y Gasset em 1930, o pensamento conservador analisou, a seu estilo, a emergência do liberalismo democratico, as reivindicações sociais e políticas do proletariado e, sobretudo, as transformações na infraestrutura econômica, social, política e cultural 17que permitiram o surgimento de uma nova ordem social: a sociedade de massa. De qualquer modo, apesar da vastíssima literatura sobre a sociedade e a cultura de massa, os analistas e estudiosos estão longe de chegarem a um consenso, principalmente no tocante às questões ideológicas. Basta pensar, por exemplo, nas disparidades entre as correntes de pensamento como a Escola de Frankfurt e a Escola Progressista-Evolucionista liderada por Edward Shils e seus colegas. Elas são tão diferentes em seus conceitos e análises que é possível se pensar em duas realidades opostas para o mesmo objeto de estudo. A diferença estrutural, porém, reside justamente na questão ideólogica. E agora que já temos um panorama da gênese da sociedade de massa, convêm analisar os 15 Scheler, Max. “Notes Towards a Definition of Culture”. In: Philosophical Perspectives, Boston, 1958, p. 13. 16 Swingewood, Alan. Op. cit., p. 6; 17 Em minha tese de doutoramento, A Literatura da Cultura de Massa, Editora Lua Nova, São Paulo. 1987, procuro fazer um levantamento e análise do surgimento da literatura de massa, desde as novelas inglesas de terror, de fins do século XVIII até o romance de folhetim do século XIX na França. 40 postulados teóricos da insdústria cultural. Eles serão de grande valia para este trabalho, principalmente quando iniciamos as análises da circulação de produtos culturais brasileiros na sociedade italiana. A Escola de Frankfurt (os postulados teóricos da industria cultural) As tendências estruturais do moderno capitalismio industrial coloca um problema axiomático a ser discutido pelos analistas da sociedade: a incontestável presença do binômio consumo/lucro como entidade que estabelece novas formas de comportamento, novos padrões e valores sociais. A questão ideológica, nesse momento, assume fundamental importância porque coloca em pauta a produção e o consumo de massa que são, em outros termos, os pilares da sociedade de massa. Pensadores como Theodor Adorno, Max Horkheimer Herbert Marcuse, dedicaram boa parte da sua obra à analise desta sociedade, cujo resultado é conhecido por “teoria crítica da sociedade”. A fecunda contribuição desses estudos tem estimuilado a reflexão contemporânea a entender melhor as relações entre Estado e indivíduo, tendo como pano de fundo a ordem social do capitalismo organizado. Em 1947, em Amsterdã, Adorno e Horkheimer publicam “Dialektik der Aufklarung” 1, onde aparecem suas reflexões sobre a sociedade e a cultura de massa. A expressão “cultura de massa” para Adorno, já encerra em si mesma uma ambiguidade conceitual e ideológica que deve ser dissipada de imediato, para que não se confunda cultura popular com cultura de massa. Deixando de lado esta ultima expressão, o autor cria o termo “indústria cultural” e justifica da seguinte forma: “abandonamos essa ultima expressão para substitui-Ia por ‘indústria cultural’, a fim de excluir de antemão a interpretação que agrada os advogados da coisa; estes pretendem, com efeito, que se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas, em suma, da forma contemporânea de arte popular. Ora, dessa arte a industria cultural se distingue radicalmente.” 2 As preocupações de Adorno com este tema, porém datam ainda de 1938, quando escreveu o ensaio intitulado “O Caráter de Fetiche na Música”, cujo objetivo era estudar as transformações por que passava a música com sua inserção na produçao comercial de massa. Nessa obra já se percebe todo o arcabouço teórico de análise sobre o processo de reificação de produtos culturais como a música erudita, por exemplo, que se imaginava estar à margem da estamdardizãção. Nessas análises, na verdade, estão as “raízes” da industria cultural. Mas o esforço teórico de Adorno não se limita à estética musi1 No livro de Gabriel Cohn já citado (p. 287) e de José Guilherme Merquior, Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, Edições Tempo Brasileiro, Rio, 1969, p. 48, consta o ano de 1947. No livro de Alan Swingewood, também já citado, p. 14, aparece 1944. Optei pelas informações anteriores imaginando um equívoco de Swingewood. 2 Adorno, Theodor. “ A Indústria Cultural”. In: G. Cohn (org.) Comunicação e Indústria Cultural, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1987, p. 287. 41 cal. Este produto serve apenas de ponto de partida para se chegar a um universo maior que é a problematização e a anáIise crítica da cultura. Certamente sua formação de maestro profissional ensejou a música como início de toda a teoria crítica da cultura. Mas o desejo de Adorno ir mais longe está claro no seu conceito de indústria cultural, nove anos, após “O Carater de Fetiche na Música”. Vejamos: “a indústria cultural é a iritegraçao deliberada, a partir do alto, de seus consumdores. Ela força a união dos domínios, separados há milênios, da arte superior e da arte inferior. Com prejuízo de ambos. A arte superior se vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde, através de sua domesticação civilizadora, o elemento resistente e rude, que lhe era inerente enquanto o controle social não era total.” 3 Três questões são importantes nesse conceito para entendermos a teoria da sociedade de massa da Escola de Frankfurt: a primeira é a perda de autonomia do consumidor, acrescida da reificação da cultura através da descaracterização de produtos eruditos e populares. A massa perde sua condição de sujeito para ser transformada em objeto. Em outras palavras: não é a razão da produção cultural, mas a ideologia da indústria cultural, elemento secundário submetido à tirania do lucro. O autoritarisno e o poder de repressão atingem um nível que simplesmente destrói a relação democrática que poderia existir entre produtor e consumidor. Monopolizando a produção cultural, veiculando a informação escrita, falada e televisada, a indústria cultural transforma-se numa espécie de engodo das massas. Mas como todo comportamento autoritário tem um caráter ambiguo, a indústria cultural procura a mediação entre lucro e ideologia. Mantém-se o “establishment” para que a estrutura social permaneça intocável. Assim, sufoca-se a crítica à sociedade de massa, ao mesmo tempo que ajusta-se o comportamento coletivo às necessidades da nova ordem social e política. Essas são algumas questões centrais na teoria da indústria cultural que devem ser pensadas. Todas elas, como se vê, apresentam um quadro sombrio da sociedade de nassa onde, uma estrutura social atomizada não pode, jamais, conduzir à democracia. O caminho, então, seria na direção inversa. Uma sociedade cuja autonomia coletiva está comprometida, aproxima-se inevitavelmente do totalitarismo. Vários críticos e ensaistas já mencionaram o caráter ideológico da indústría cultural. E sobre esse aspecto, independente das diferenças ideológicas que possam haver, nota-se uma certa tendência em admitir o caráter reificante da sociedade de massa. É com extremo rigor que José Gutilherme Merquior analisa o conceito de indústria cultural de Adorno, após destacar as “cores sombrias” do último quadro adorniano sobre a sociedade contemporânea. Acrescenta ele que, “na cultura de massa, o pensamento negativo vive o seu pensamento mais perigoso. O poder de repressão chega ao máximo. A tirania do irracional, a justificação do inumano ‘statuquo’ já não necessita se3 Adorno, Theodor. Op. cit.,p.287-8. 42 quer de coberturas ideológicas. Quando a revolta social desaparece do horizonte das massas e o conformismo se torna regra da vida, a realidade existente ocupa a função das antigas construções ideológicas. O mundo da televisão é um universo de coisas reais - e não obstante, carregadas de sentido ideológico.” 4 Os argumentos de Merquior nos levam pensar num certo pessimismo de Adorno quando escreveu a “indústria cultural”. Essa visão, aliás, é compartilhada por outros estudiosos da Escola de Frankfurt, 5 especialmente sobre a obra de Adorno. São os casos, por exemplo, de Phil Slater, em seu livro intitulado Origem e Significado da Escola de Frankfurt, e de Alan Swingewood, na obra já citada. Este último autor, ao analisar a crítica que Adorno e Horkheimer fazem à arte capitalista moderna assume uma postura incomum. A aspereza de suas palavras ganham realce tão forte que o melhor a fazer é cita-lo: “existe, nessas formulações, não só uma concepção elitista de cultura, a forma ‘alta’ agindo como um meio de transformação da sociedade pelo desenvolvimento de uma consciência crítica, como também uma rejeição pessimista da classe operária como a vítima extremamente subserviente de uma reificação esmagadora. Existe, assim, uma grande similitude de idéias entre os teoricos marxistas de Frankfurt e o reacionário Nietzsche: as massas são ‘medíocres’ e a burguesia incapaz de resistir à marcha do capitalismo tecnológico.” 6 Afora o pequeno exagero de Swingewood é bom notar que, posteriormente, em 1967 mais precisamente, Adorno escreveu um ensaio intitulado “Culture Industry Reconsidered”, onde reinterpreta alguns dos temas da sociedade de massa. A crítica à arte capitalista é exatamente um dos aspectos retomados por Adorno, ao lado da autonomia do consumidor e dos efeitos manipuladores da indústria cultural. Adorno ameniza suas concepções anteriores, admitin do que o consumidor possui um relativo grau de autonomia diante da ação da indústria cultural. A base das suas reflexões, no entanto, permanece a mesma, uma vez que a “relativa autonomia” não significa nenhuma concessão à ação da indústria cultural. Ao contrario, ele parte da mesma constatação anterior, ou seja, do caráter autoritário da sociedade de massa e da presença de uma cultura tecnológica. Nesse aspecto, seu pensamento mantém a mesma estrutura teórica do início. O conjunto de sua obra, porém, não se restringe ao domínio da teoria da indústria cultural e aos escritos de Dialética do Iluminismo, em colaboração com Horkheimer. Seus trabalhos sobre teoria estética e mais especialmente sobre estética musical (reunidos no volume Dissonâncias), são análises profundas não só do fenômeno musical em si, mas de uma perspectiva cujo modelo teórico permite a problematização da cultura num sentido mais abrangente. Merguior, José Guilherme. Op. cit., p. 50. Alguns membros da Escola de Frankfurt não concordavam com a teoria da indústria cultural elaborada por Adorno. São os casos de Siegfried Kracauer, Walter Benjamin e Bertolt Brechet, que tinham uma concepção mais otimista, por acreditarem no devir de uma nova arte proletária baseada na idéia coletivista do modo de produção capitalista. É ocaso do teatro épico de Brecht. 6 Swingewood, Alan. Op. cit. p.17. 5 4 43 A Escola Progressista-Evolucionista (outra concepção teórica da. cultura de massa) As críticas mais radicais à teoria da indústria cultural partem do chamado “Grupo Progressista-Evolu-cionista”, que reune pensadores como Edward Shils, Daniel Bell, David Riesman, entre outros. Ligados ao pensamento sociológico americano, esses estudiosos refutam o conceito “exacerbado” de indústria cultural, para proporem uma teoria da sociedade de massa baseada na concepção de uma democracia pluralista. Este é o ponto de partida dos “progressistas evolucionistas”. Edward Shils, por exemplo, ao analisar o pensamento frankfurtiano de sociedade e cultura de nassa, apresenta um comentário que oscila entre a discordância e a ironia. Acrescenta ele que, a visão ao mesmo tempo, idealista e pessimista da Escola Franikfurt, só tem sentido se partirmos da “fixação frustrada num ideal impossível de perfeição humana e de uma aversão à sua própria sociedade e aos seres humanos tal como eram” 1 Esta frase, não analisada atentamente, pode parecer apenas mais uma discordância, mais um protesto contra o pensamento teórico dos frankfurtianos. Mas não é so. Ela encerra um componente tão deselegante quanto equivocado. Na expressão “... aversão à sua própria sociedade e aos seres humanos ...” Shils nos leva a pensar na situação do povo alemão (que se pense ainda em franceses e italianos) diante do horror e da barbarie empreendida pelo nazi-facismo que precedera a Segunda Guerra Mundial. A “aversão à sua própria sociedade” não é a expressão mais adequada para interpretar a fuga de alguns intelectuais de Frankfurt como parece insinuar Shils que, entre outras coisas, omite a perseguição nazista aos judeus. De resto, a expressão “fixação frustrada de um ideal e impossível de perfeição humana”, reporta-se ao desencanto e ao péssimismo dos frankfurtianos com a sociedade vigente. Como assinala Merquior, “não distinguindo, nas condições atuais, nenhuma força capaz de assegurar a reestruturação completa da sociedade, os representantes dessa crítica da cultura derivam , logicamente, para o pessimismo” 2 Mais adiante, Shils demonstra com clareza que não entendeu o caráter universalizante da teoria da indústria cultural. Desta vez suas críticas recaem sobre o seguinte aspecto: exilado que era, Adorno elaborou suas análises e críticas à sociedade de massa baseado não em experiências com sociedades européias, mas sim nos Estados Unidos. Claro: a observação empírica foi a sociedade americana, mas o modelo teórico aplica-se a qualquer sociedade de massa. Argumentando o comportamento anti-capitalista e, consequentemente, anti-americano de Adorno, Shils entende que o pensador alemão só veio conhecer a sociedade em território americano. Ora, nada mais equivocado que o raciocínio de Shils. Ainda nos anos trinta, na Alemanha, 1 Shils, Edward. “The Intellectuals and the Powers”, in: Monthly Review Press, New York, 1963. 2 Merquior, José Guilherme. Op. cit., p. 149 44 Adorno já se preocupava, ao lado de seu primo Walter Benjamin e Max Horkheimer, com o caráter reificante da sociedade de massa. Basta ver, por exemplo, seus escrítos sobre estéiica musical (já citados anteriormente) que datam dessa época, onde a música já aparece como um produto cultural estandardizado, adulterado em seus componentes formais, em sua tessitura, enfim, na sua estrutura estética, como forma de adaptá-la ao consumo de massa. A teoria “progressista-evolucionista”, contudo, dirige suas análises em outra direção. Pode-se dizer, quase opostas aos argumentos da indústria cultural. Partindo de um conceito de sociedade de massa como democracia pluralista, de uma estrutura de poder descentralizada, uma “sociedade participante”, os representantes dessa teoria acreditam que a liberdade e o desen-volvimento,advindos do processo ininterrupto da indútriaiização e da tecnologia, fortalecem as bases da democracia política ampliando ainda mais o pluralismo político. Ao contrário do que preconiza o pensamento frankfurtiano, os elementos acima só fortaleceriam a sociedade civil. Pelo menos é assim que pensa William Kornhauser, um dos representantes da teoria “progressista-evolucionista”: “uma pluralidade de grupos independentes e com funções limitadas sustentam a democracia liberal, proporcionando bases sociais de concorrência livre e aberta pela liderança, participação generaIizada na seleção dos líderes, restrição da aplicação de pressão sobre os líderes e auto-governo em vastas áreas da vida social. Por conseguinte, onde o pluralisnio social é forte, a liberdade e a democracia tendem a ser fortes; e, inversamente, as forças que enfraquecem o pluralismo social também enfraquecem a liberdade e a democracia.” 3 Nesse sentido, o pluralismo, vísto sob a óptica dos progressistas-evolucionistas, apresenta uma sociedade onde os grupos sociais possuem forças equivalentes. Ao mesmo tempo, esse equilíbrio permitiria um certo controle democrático, uma vez qua as elites não teriann como monopolizar o poder. Haveria, uma espécie de “estrura intermediária” 4 que serviria de canal de acesso às elites o que, em outros termos, significaria a independência dos outros grupos sociais em relação às elítes. Assim, as relações sociais ganhariam novo estímulo, evitando o seu empobrecimento. Grande parte da população estaria, pela primeira vez, culturalmente integrada e participando democraticamente dos acontecintentos políticos que pudessem transformar a sociedade. Além dos aspectos já destacados, Daniel Bell, outro teórico do grupo progressista-evolucionista, levanta algumas questões que, segundo ele, passaram desapercebidas pelos frankfurtianos. O constante processo de alfabetização, o aumento dos padrões educacionais, do nível sócio-econômico e do lazer das populações, vieram modificar a estrutura política e social do capitalismo primitivo, substituindo-a por uma nova ordem social mais democrática, onde o indiví3 Kornhauser, William. Aspectos Políticos da Sociedade de Massa Amarrortu Editores, Buenos Aires, 1974, p. 221 4 a expressão é de William Kornhauser, na obra já citada. 45 duo torna-se participativo social e politicamente. O capitalismo industrial contemporâneo, desse modo, habilita multidões a ingressar no consumo de massa. Produtos culturais (livros, discos de música erudita) até então acessíveis tão somente às elites passam, com a democratização do consumo na sociedade de massa, a serem adquiridos por uma grande parcela da população. Para Daniel Bell, ao contrário do que diz Adorno, a moderna sociedade capitalista não só não brutaliza a cultura, homogeniza gostos e padrões de comportamento, como estabelece diferentes referênciais no tocante aos mais variados produtos culturais. A cultura, em função da eficiência da produção industrial, apresenta-se estratificada permitindo, dessa forma, o consumo diferenciado. Dessas fomulações retira-se a idéia, segundo a qual, a sociedade de massa e sua cultura são produtos da democracia pluralista e de uma estrutura social onde o acesso das massas ao consumo elimina as desigualdades sociais. Ou ainda, como diz Alan Swingewood, analisando as reflexões dos progressistas-evolucionistas, “o conceito progressista-evolucionista de capitalismo industrial moderno é um conceito em que a integração social flui naturalmente de forças de dentro da estrutura social, não sendo forçada a uma população subserviente por meio de instituições de uma ‘indústria da cultura’”. 5 A sociedade de massa, ainda sob a óptica progressista-evolucionista, teria como traço peculiar, a propriedade de eliminar os clássicos, conflitos e divergências entre capital e trabalho, ponto estrutural na análise marxista da sociedade capitalista. O avanço da ciência e da técnica ultrapassam a importância do capital privado no universo da produção. Em suma, é uma sociedade cuja estrutura social desmantela a hierarquia econômica para tornar-se democrática. Difunde-se uma cultura mediana, socializada pelos meios de comunicaçãso de massa cuja identidade é com a populaçãoo como um todo o não mais só com a classe dirigente. Tocando de leve nas questões sociais, os teóricos progressistas-evolucionistas reconhecem que, apesar da existência de uma democracia pluralista, a sociedade de massa ainda apresenta alguns problemas de base como a pobreza urbana, a delinquência, a miséria, o desemprego, o subemprego e até a prostituição. A explicação para presença desses problemas não poderia, a meu ver, ser mais simples: são as disfunções decorrentes do próprio processo de industrialização e as consequências do desenvolvimento que, involuntariamente, criam essas situações, ou seja, a questão é colocada como se fôsse uma “desagradável contingência” com a qual, infelizmente, teríamos que conviver por um tempo ainda não previsto. Não é à toa, portanto, que os progressistas-evolu-cionistas deixam de lado em suas análises, o processo de produção para privilegiarem o consumo. Esta opção, com efeito, omite uma questão central no capitalismo da sociedade de massa que é a luta de classes. É como se ela não existisse. O “pluralismo democrático”, por outro lado, 5 Swingewood, Alan. Op. cit., p.20 46 é visto como uma entidade real e perfeita onde o cidadão, independente da sua classe social e das suas condições como membro da sociedade, poderia participar ativa e diretamente das decisões políticas e econômicas, em função do seu fácil acesso ao universo do consumo. É ainda como se a existência do pluralismo democrático (muito frágil e mal definido pelos progressistas-evolucionistas), fôsse o suficielite para a presença de uma consciência política e social. É bastante problemático (senão ingênuo) se imaginar, por exemplo, que o acesso das massas ao consumo eliminaria as desigualdades sociais. Em qualquer estrutura social e de qualquer país, isso não seria possível. O que eventualmente poderia ocorrer, seria a minimização das desigualdades sociais. E isto, de certo modo, vem ocorrendo em paises como a França, Italia (muito mais ao norte), Inglaterra, Alemanha, entre outros. Mesmo assim, com profundas contradições (especialmente na Itália) que analisaremos mais adiante. Esta minimização, no entanto, está muito longe de significar uma justiça social satisfatória. Principalmente se pensarmos no grande contingente que produz a riqueza e no pequeno grupo que dela se apropria e a administra. Por isso é que, mais uma vez, não podemos concordar com os argumentos dos progressistas-evolucionistas quando afirmam que a sociedade de massa resolveu o problema dos conflitos entre capital e trabalho. A prova de que esta questão permanece, e a presença cada vez maior e mais forte de sindicatos, partidos politicos, instituições sociais e trabalhistas, defendendo e reivindicando os direitos dos diversos segmentos das classes trabalhadoras. Os progressistas-evolucionistas deixam ainda à margem da sua teoria, uma questão ideológica importante na produçõa da riqueza na sociedade capitalista: uma análise mais profunda do impacto da tecnologia nas relações de produção, no consumo e nas transformaçoes do mercado de trabalho. E, claro que a modernização da produção através da racionalidade tecnológica, tende mesmo a aumentar essa produção. E quase sempre esse aumento pressupõe também um crescimento do consumo, um aumento da demanda, o que nem sempre é verdadeiro. As variáveis aqui são muitas, mas convém destacar um fenômeno bem típico de países do terceiro mundo: o aumento do consumo quase sempre se dá em função do crescimento populacional e dificilmente em decorrência do aumento qualitativo de vida da sociedade como um todo. Nos países desenvolvidos, claro, a situação é diferente. O aumento do consumo se dá também (mas não só) em função do crescimento da qualidade de vida. Veremos essa questão de modo mais detalhado quando analisarmos a ascenção econômica italiana dos anos setenta para cá. Em outras palavras, os progressistas-evolucionis-tas colocam a industrialização e a tecnologia como elementos emancipadores da sociedade e do pluralismo democrático. Nesse momento lanço mão das palavras de Herbert Marcuse, não para mostrar que a tecnologia é a lógica cruel da civilização ou para adjetivá-la como a criação nociva do homem para si mesmo. Isso não, porque a tecnologia é uma reali- 47 dade necessária e irreversível. Quero citá-lo para refletirmos sobre o seguinte aspecto: a tecnologia representa, entre outras coisas, a contradição entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Ou ainda, como diz o filosofo alemão, “as técnicas provêem as próprias bases do progresso; a racionalidade tecnológica estabelece o padrão mental e comportamental para o desempenho produtivo, e o ‘poder sobre a natureza’ tornou-se praticamente idêntico à civilização.” 6 Nesse sentido é que devemos pensar na racionalidade tecnológica e no trabalho. Se eles criaram e ampliaram a base natural da civilização, nem por isso pode-se dizer que isto foi feito sempre de forma prazerossa. Ao contrário, quando a produção se alicerça no trabalho alienado, no que Marcuse chama de “princípio repressivo de realidade” então a satisfação no trabalho cotidiano constitui apenas um raro privilégio. Como se pode notar, não e possível uma análise linear do impacto tecnológico na sociedade. É necessário levar em conta as sutilezas ideológicas inerentes a essa questão. Isso os progressistasevolucionistas não o fizeram. Por outro lado, parece fora de dúvida, que realmente Adorno, através da sua teoria da indústria cultural, analisou a sociedade de massa com certo pessimismo. 7 No entanto, trata-se de um estudo profundo cuja estrutura teórica permanece ainda hoje, com as devidas alterações necessárias no decorrer do tempo. A ideologia, as relações de produção, a autonornia e a liberdade do consumidor, enfim, essas e outras questões foram meticulosamente pensadas pelo filósofo frankfurtiano. Mas é fora de dúvida também, que o otimismo vigente na teoria progressista-evolucionista torna-se incompatível com a realidade dos fatos, com o cotidiano do consumidor. Nem mesmo na sociedade americana que inspirou esta teoria sociológica da sociedade de massa existe aquele estilo de vida preconizado pelos progressistas-evolucionistas. Talvez por isso mesmo, Daniel Bell, repensando sobre seus escritos apologéticos da sociedade de massa, tenha assumido em suas últimas obras uma posição, senão “pessimista”, certamente um pouco mais prudente: “a sociedade orientada para o consumo, de livre iniciativa, não mais satisfaz moralmente os cidadãos, como satisfazia antes. E terá que ser criada uma nova fiiosofia pública para que possa sobreviver algo que reconhecemos como uma sociedade liberal.” 8 Seja como for, o fato é que as análises apresentadas até aqui nos fazem refletir prudentenente sobre uma questão cada vez mais importante: a transformação da cultura em mercadoria, em ideologia do capital. O reflexo disso é o consumo arbitrário. Esse é um aspecto inegável na teoria da cultura de massa, ainda que alguns teóricos 6 Marcuse, Herbert. Eros and Civilization – a philosophical inquiry into Freud, Beacon Press, Boston, 1966, p. 89 7 José Guilherme Merquior, em seu livro já citado analisa o que ele chama de “raízes ideológicas do pessimismo frankfurtiano”. Mas é no livro de Olgária C. F. Matos, Os Arcanos do Inteiramente Outro, Editora Brasiliense, São Paulo, 1989, capitulo III, “A Razão Critica”, que encontramos uma análise tão sensata quanto brilhante do pessimismo frankfurtiano acerca da cultura contemporânea. Por não ter interesse direto para este trabalho, apenas o registramos. 8 Bell, Daniel. The Cultural Contradictions of Capitalism, Beacon Press, Boston, 1981. 48 progressistas-evolucionistas não concordem. Das experiências refletidas no passado, quando o fenômeno cultura de massa apenas gatinhava, até o presente, onde a cultura burguesa convive com uma estrutura de necessidade das massas, uma coisa permanece intacta e imutável: a incessante busca ao lucro. Convém, no entanto, refletir com muita cautela sobre esse problema, justamente para não incorrer em erros anteriores. A experiência do passado trouxe uma constatação para o presente: durante algum tempo superestimou-se a presença e a ação dos meios de comunicação de massa junto ao consumidor. Isso é importante termos em mente, para repensarmos e redimensionarmos a questão das necessidades e o papel dos veicúlos de comunicação de massa. Aqui cabe a observação lúcida de Ciro Marcondes quando diz que “já se foi o tempo em que criticavam os meios de comunicação produtores da cultura massificada, por ‘imprimirem’ novas necessidades. Não há necessidades falsas que forcem os receptores a fazer coisas que não querem: não há ditadura dos meios, que os críticos dos MCM no passado ressaltaram. A comunicação para as massas impõe-se, mas só o faz de forma sutil, sedutora, provocante. Ela incide sobre as necessidades reais não satisfeitas plenamente (ou saciadas só parcialmente) pela sociedade e pela cultura e dá respostas a isso (respostas, é claro, falsas, enganosas, aparentes). Mas, enfim, respostas.” 9 Mas é na obra de Herbert Marcuse, a meu ver, que aparece uma das mais fecundas críticas e contribuições para se entender a sociedade de massa em nossos dias sem que, com isso, precisemos apenas reproduzir as teorias vistas e analisadas até aqui. A citação é tão longa quanto necessária para apreender o pensamento do autor: “a maior parte dos clichês com que a. Sociologia descreve o processo de desumanização, na cultura das massas da atualidade, é correta; mas parece inclinar-se na direção errada. O que é regressivo não é a mecanização e padronização, mas a sua contenção; não a coordenação universal, mas o seu encobrimento sob liberdades, opções e individualidades espúrias. O elevado padrão de vida, no domínio das grandes companhias, é restritivo num sentido sociológico concreto: os bens e serviços que os indivíduos compram, controlam suas necessidades e petrificam suas faculdades. Em troca dos artigos que enriquecem a vida deles, os indivíduos vendem não só seu trabalho, mas também seu tempo livre. A vida melhor é contrabalançada pelo controle total sobre a vida. As pessoas residem em concentrações habitacionais - e possuem automóveis particulares, com os quais já não podem escapar para um mundo diferente. Têm gigantescas geladeiras repletas de alimentos congelados. Têm dúzias de jornais e revistas que esposam os mesmos ideais. Dispõem de inúmeras opções e inúmeros inventos que são todos da mesma espécie, que os mantêm ocupados e distraem sua atenção do verdadeiro problema que é a conscência de que poderiam trabalhar menos e determinar 9 Marcondes Filho, Ciro. (org.) A linguagem da Sedução, Editora Perspectiva, SãoPaulo, 1988, p.12. 10 Marcuse, Herbert. Op. cit., p. 99 49 suas próprias necessidades e satisfações.” 10 Claro, a perspectiva política no texto de Marcuse assume conotação diferente daquela que já vimos na obra dos progressistas-evolucionistas. Se para o filósofo alemão a ideologia da cultura de massa em nossos dias reside no fato de que produção e consumo reproduzem e justificam a dominação, para os teóricos americanos esta afirmação não procede. E incompatível com a realidade. Independente das concepções ideológicas da Escola de Frankfurt e do grupo progressista-evolucionista o fato é que, do conjunto dessas correntes de pensamento, retiramos o apoio teórico necessário para melhor interpretarmos a presença da sociedade urbanaindurtrial. A obra de Herbert Marcuse, embora mencionada à parte, será citada em nossas análises como parte integrante da Escola de Frankfurt. Quanto às discussões acerca de “sociedade e cultura” e “sociedade e cultura de massa”, respectivamente, primeira e segunda parte deste capítulo, justificam-se por uma questão metodológica importante: fornecer os subsídios teóricos para posterior utilização dos conceitos inerentes à sociedade e a cultura de massa. Além disso, a interpretação sociológica da trajetória da sociedade de massa tem dupla contribuição: entender bem o passado, para melhor interpretar o presente. Da Ddependência Cultural à Cultura de Massa Esta é a trajetoria de grande parte dos chamados países do terceiro mundo ou subdesenvolvidos onde, entre outros, inclui-se o Brasil.Mas não é só. Outras nações em situação intermediária como Itália e Espanha, por exemplo, também podem, ser pensadas nesses termos. Antes de mais nada, porém, deve-se repensar a expressão “dependência cultural”. Ela não nos parece a mais apropriada. Seus conceitos esbarram num obstáculo de ordem teórica difícil de ser superado. Para introduzir a discussão vale a pena transcrever a visão de conjunto que Renato Ortiz tem dessa questão: “são analises que tem como eixo central a problemática do ‘colonialismo cultural’,da ‘alienação’ dos meios de comunicação nacional diante da dominação estrangeira, e que recuperam a antiga oposição entre colonizador/colonizado, que só agora levando em consideração uma nova tendência teórica que surge na América Latina no início dos anos 70: a teoria da dependência.” 1 Eis aí a noção de dependência cultural. Um conceito complementar à teoria do subdesenvolvimento surgida ainda nos anos trinta, quando Menotti del Picchia, Franklin Távora e outros intelectuais da época, procuravam interpretar o “atraso” brasileiro e apontar as soluções para o desenvolvimento. Como se vê, uma noção alicerçada num equívoco, onde a idéia de situação colonial aparece como sinônimo 1 Ortiz, Renato. A Moderna Tradição Brasileira, Editora Brasiliense, São Paulo, 1988, p. 187. 2 A gênese dessa premissa esta contida no ensaio escrito por André Gunder Frank intitulado “Sottosvillupo Capitalistico o Rivoluzione Socialista”. In: América Latina: sottosviluppo e o Rivoluzione, Einaudi, Torino, 1971 50 de dependência. 2 Não se trata, de nossa parte, deixar de reconhecer certos conceitos e categorias que, como se sabe, apontam para o desenvolvimento desigual em toda sociedade capitalista, apresentando como característica fundamental, as disparidades regionais e setoriais. Esse desequilíbrio, por outro lado, ganha contornos dramáticos no capitalismo periférico, em face do processo de acumulaçao do capital, resultando naquilo que Florestan Fernandes chamou de “arcaização do moderno” e “modernização do arcaico” 3. O mesmo fenômeno se aplica às relações sociais na sociedade moderna. As classes sociais (segundo a teoria da dependência) desempenham papel preponderante nos planos político e econômico no sentido de viabilizar a “modernização” da sociedade. E aqui está o primeiro obstáculo a teoria da dependência criado por ela mesma. Atribuir esse papel histórico às classes sociais na sociedade de capitalismo periférico e correto a meu ver. O problema, no entanto, é saber como se darão as relaçôes sociais no âmbito dessa sociedade, de tal modo que possa efetivamente viabilizar sua modernizaçao. Esta é a questão central e de difícil solução. Diferente dos centros hegemônicos, onde a estrutura política é mais sólida, nas sociedades de capitalismo periférico, a luta de classes é uma realidade sempre presente que diz respeito diretamente às transformações das estruturas política e social. Este é um ponto chave para se entender com clareza as bases da teoria da dependência. O antagonismo entre capital e trabalho assalariado e a submissão dos países perifércos aos centros hegemônicos, integram o discurso desses teóricos cujo tom mais forte, tudo indica, dirige-se ao pensamento nacionalista. Essas e outras questões são também analisadas por Ruy Mauro Marini, que critica o caráter difuso e dogmático da teoria da dependência acrescentando que “a consequência e um ecletismo, uma falta de rigor conceitual e metodológico, em nome de um pretenso enriquecimento do marxismo, que termina por ser sua negação.” 4 Severo em seu julgamento, as palavras do autor devem ser repensadas, justamente sob a óptica ideológica que imprime a teoria da dependência, ou seja; a ausência de unidade e de coerência política e ideológica. Esta situação, com efeito, resulta de amálgama de concepções políticas que transitam desde as deformações ideológicas do pensamento nacionalista (tipo ISEB no Brasil), 5 até as interpretações pretensamentente marxistas como bem registram Marini e Weffort. 6 O fato é que as constatações onde se alicerça a teoria da de3 Fernandes, Florestan. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina Zahar Editores, Rio, 1973, p. 45. 4 Marini, Ruy Mauro. Il Subimperialismo Brasileiro, Einaudi Editore, Torino, 1974, p. .5 5 Sobre o nacionalismo isebiano convém consultar o artigo de Caio N. de Toledo, “Teoria e Ideologia na Perspectiva do ISEB”.in: Inteligência Brasileira, Reginaldo Moraes, Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante, (orgs), Editora Brasiliense, 1986, São Paulo, p. 224-256. 6 A obra de Marini já foi citada. A de Francisco Weffort á “Nota Sobre a Teoria da Depêndencia: Teoria de classe ou ideologia nacional ?” Estudos CEBRAP nº 1, 1971. 51 pendência tornaram-se assim uma espécie de lugar-comum na literatura sociológica que se propõe a tais interpretações. Hoje, por exemplo, a idéia de que a economia de um país periférico não se autosustenta, e como decorrência sua cultura torna-se dependente, já não se constitui mais em explicação teórica aceitável. Certamente um feliz exemplo empírico a contradizer essa teoria é a presença cada vez maior da cultura latino-americana na Itália (especialmente a brasileira) e, um pouco menos, em outros paises europeus. Hoje também, o tênue espaço entre estrutura e superestrutura social estabelece a diferença entre o “modelo clássico “ de sociedade dependente e o modelo dessa mesma sociedade em nossos dias. No plano da produção econômica e cultural, estrutura e superestrutura social possuem hoje “relativa autonomia do processo de produção” 7 ao contrário do que pensavam (e alguns ainda pensam) os dependentistas. Além disso, a própria cultura em face da sua autonomia, torna-se parte integrante do processo produtivo. À luz de hoje, a cultura não é mais só um fato superestrutural, mas é também um produto inse rido nas relações de troca de acordo com a lógica interna do capitalismo. Portanto, a concepção de dependência cultural precisa ser repensada em suas especificidades. Aliás, a própria teoria da dependência, a meu ver, deve ser repensada. Seu discurso teóríco fincado nos conceitos de classe e nação redundam mesmo naquilo que Weffort chama de interpretação norteada pelos princípios do nacionalismo radical. Nesse ponto, pelo menos, o pensamento dependentista se identifica com o integralismo de Plinio Salgado e seus colegas, para quem, a cultura estrangeira deveria ser eliminada do país, por que colocava em risco os usos e costumes nacionais. Um equívoco, evidentemente. Mas a crítica mais severa teoria da dependência, me parece, foi feita por Ingrid Sarti. Discordando à forma como os estudiosos dependentistas analisam o processo de comunicação nos países do terceiro mundo, como se veiculam produtos culturais estrangeiros através da indústria cultural ela acrescenta: “a interpretação da teoria da dependência que serve de fundamento à noção de dependência cultural, mostra-se tão simplista que difícil será não perceber na filial um retorno em relação à matriz.” 8 Seus argumentos vão ao encontro do que pensa Renato Ortiz, para quem a noção de dependência cultural não se justifica. Logo após analisar as falhas teóricas desse conceito (já as citamos anteriormente), Ortiz usa as palavras de Ingrid Sarti para completar seu pensamento e em seguida arremata: “de fato, é incompreensível que os autores na área da comunicação sequer tenham levado em consideração as críticas levantadas pelos teóricos e adversários da teoria da dependência. Tudo se passa como se as antigas preocupações sobre a relação entre nacional/estrangeiro, que já tenham sido abordadas de forma diferenciada por vários autores, 7 E expressão é do professor Massimo Canevacci, quando o entrevistei para realizareste trabalho. 8 Sasti, Ingrid. “Comunicação e Dependência: um equívoco”. In: Jorge Wertheim (org.) Meios de Comunicação: realidade e mito. Cia. Editora Nacional, 1979, São Paulo, p. 241. 52 pudessem ser equacionadas segundo uma ‘teoria’ mais convincente, devido à sua ‘modernidade’. Na verdade, a idéia de dependência cultural, se confunde com os velhos argumentos da discussão sobre o colonialismo, da identidade perdida no Ser do outro.” 9 Isto é correto. Ortiz traz à tona, não só as contradições inerentes à teoria da dependência, mas também analisa com precisão o raciocínio simplista e apressado dos estudiosos da comunicação, via dependência cultural. Como a maioria dos seus interpretes, esses pesquisadores fazem do nacionalismo, do “patrimônio da cultura nacional”, seu grande álibi para repudiarem a presença de qualquer manifestação cultural estrangeira que, segundo eles, não vá ao encontro dos interesses e da cultura nacionais. É necessário, de início, entender o problema de dentro para fora e não ao contrario como têm feito os dependentistas. A ideologia vigente na sociedade emana da classe dominante. Esse axioma continua válido. O que convém explicar, no entanto, é a situação contraditoria da burguesia, uma vez que ela é dominante e dominada ao mesmo tempo. Dominante por ter a posse da riqueza, do capital, dos meios de produçao, enfim, de todos os elementos que a teoria marxista do capital e do trabalho já analisou com muita precisão. Dominada porque, no plano econômico, em face da existência de uma econômia heteronômica, ela vai administrá-la ao lado do capital internacional. Este é um teorema que, nas palavras do sociológo Florestan Fernandes, ganha a seguinte interpretação: “a ideologia de uma sociedade subdesenvolvida é a ideologia de uma sociedade hegemônica. Nós importamos da Europa não apenas as instituíções mas também a ideologia; não só as estruturas sociais, como também as maneiras de explicá-las.” 10 Posto isto, esse argumento nos conduz naturalmente à questão que levantamos anteriormente; devemos entender o problerna de dentro para fora e não ao contrário. Nesse caso, que se pense, sobretudo nas condições internas da produção ideológica, ou seja, nas articulações das classes sociais no âmbito nacional. Acredito que a produção ideológica que se faz na classe dominante hegemônica, embora interfira no comportamento ideológico da periferia, não deve ser superestimado como tem feito os dependentistas. Assim, não me parece mais que o influxo externo, embora inegável, seja ideologicamente determinante no comportamento das sociedades periféricas. A rigor, a presença de um “imperialísmo cultural”, se é que podemos falar assim, não é decorrente de imposições de cima para baixo como acreditava-se (ainda há uma corrente de pensamento que acredita nessa versão) até meados dos anos setenta mais ou menos. Este é um modelo teórico que deve ser revisto. Mas é ele também que, no plano da comunicação, fornece os subsídios para a teoria da dependência. Eis aqui os motivos da defesagem do pensamento dependentista entre teoria e realidade. A indução a falsas necessida9 10 Ortiz, Renato. Op. cit., p. 187-188 Fernandes, Florestan. “Las Classes Sociais em América Latina.” R. B. Zentero (org.) 53 des, como querem alguns é, na verdade, um falso problema. “ Já se foi o tempo em que se criticavam os meios de comunicação produtores da cultura massifícada, por ‘imporem’ novas necessidades” registra Ciro Marcondes, com razão, em seu livro já citado. É claro que a formação ideológica de uma sociedade, seja ela desenvolvida ou subdesenvolvida, não pode ser interpretada somente a partir da dinâmica interna do seu desenvolvímento. Mas é verdade que as estruturas e superestruturas dessa sociedade não poderão, de modo algum, ser assimiladas e explicadas somente a partir da presença de uma ideologia hegemônica. Esse me parece o equívoco maior da teoria da dependência. Isto é tentar a explicação linear para um problema sinuoso, cuja importância e magnitude o mantém na pauta das interpretações sociológicas do terceiro mundo. Para finalizar esta primeira parte, quero agora registrar as análises de Fernando Henrique Cardoso acerca da mesma questão. Para ele, os dependentistas não conseguem interpretar corretamente o desenvolvimento do capitalismo nas sociedades subdesenvolvidas. Divergentes em suas opiniões, eles passam a ver a mesma questão por dois prismas diferentes. Este é um dos poucos momentos, no entanto, que a unidade de pensamento dos teóricos da dependência se divide. Vejamos, então, como Fernando Henrique vê o problema: “existem os que creêm que o capitalismo dependente baseia-se na superexploração do trabalho, é incapaz de ampliar o mercado interno, gera incessante desemprego e marginalidade e apresenta tendência à estagnação; existem os que pensam que, pelo menos em alguns países da periferia a penetração do capital industrial-financeiro acelera a produção da mais-valia relativa, intensifica as forças produtivas e, se gera desemprego nas fases de contração econômica, absorve mãode-obra nos ciclos expansivos, produzindo neste aspecto, um efeito similar ao do capitalismo nas economias avançadas.” 11 Ambas interpretações reconhecem a nocividade do capitalismo estrangeiro. Quanto à primeira, porém, me parece estar mais próxima das idéias da dependência cultural. A questão é colocada de tal modo, que é como se o capitalismo internacional tivesse complôs organizados contra a econômia das sociedades periféricas, justamente com o objetivo de bloquear qualquer possibilidade de desenvolvimento desses países. Pesquisando especialmente a literatura sobre as comunicações no Brasil, Renato Ortiz encontra um trabalho que incorpora o que aqui poderíamos chamar de “ideologia de complô” 12. Convêm citar o trecho da proposta de trabalho do autor, porque vai bem ao encontro do que os dependenitistas entendem por dependência cultural: “a hipótese central de nosso trabalho é que a rádio como um antecedente, e depois a televisão como uma continuidade, implantam-se. e expandemse no Brasil, por meio de mecanismos de manipalação e dominação 11 Cardoso, Fernando Henrique. “Notas Sobre Estado e Depenência”. Cadernos CEBRAP, nº11, São Paulo, 1975 12 Trata-se do livro, A televisão: a participação estrangeira na televisão do Brasil, Editora Cortez, S. Paulo, 1982, da autoria de Carlos Rodolfo Amedola Ávila, 54 colonialista, através de um complexo sistema econômico e ideológico organizado por países dominantes em especial os Estados Unidos.” 13 O texto é um tanto desajeitado, mas reflete o estilo e a reação dos dependentistas à presença do rádio e da televisão no Brasil que, nos últimos tempos, tornou-se uma espécie assim de “bode expiatório” do capitalismo internacional no Brasil. O ponto de partida, ou seja, “hipótese central” de Ávila parte de um equívoco que realmente só poderia redundar naquilo que chama-mos de “ideologia do complô”. A pesquisa em si, e a posterior interpretação científica do fenômeno trazem, sem dúvida, uma contribuíção significativa ao debate das comunicações no Brasil. O equívoco, no entanto, reside no fato do autor detectar certas articulações ideológicas que, senão inexístentes, com certeza bastante discutíveis. Em conjunto, formulações dessa ordem tendem a criar uma imagem distorcida dos meios de comunicação no Brasil. A bem da verdade, eles nunca foram propriamente “mecanismos de manipulação e dominaçao colonialista” como registra Ávila. Eles foram, isto sim (e continuam sendo), veículos de capital importância na fomação da opinião pública e eficientes instrumentos da indústria cultural em nosso país. E é justamente por discordar do pensamento anterior, que Renato Ortiz faz uma crítica contundente ao trabalho do Ávila e, por extensão, à literatura sobre os meios de comunicação principalmente na América Latina. Diz ele: “por isso é muito comum encontrarmos na literatura sobre os meios de comunicação a idéia de que a sociedade de mercado constituiria, na verdade, uma lideoIogia do consumo’, e não um desenvolvimento real das forças produtivas, se apresentando como algo externo que é introduzido junto às massas pelas multinacionais e pelas técnicas de marketing. Teriamos, nesse sentido, a formação de uma cultura popular de massa induzida, na qual a indústria da cultura seria na verdade, um atavismo em relação ao curso natural da história latino-americana.” 14 As críticas de Ortiz são pertinentes, a meu ver, se analisarmos a questão vista na sua totalidade. Permito-me, no entanto, repensar um aspecto mencionado no texto acima, o que não significa concordar com as idéias de Ávila. É dificil discordar da tese, de que a sociedade de mercado se pauta, entre outras coisas, na “ideologia do consumo”. Esta premissa, por outro lado, não é incompatível com o processo de “desenvolvimento real das forças produtivas”. Aliás, é bom notar que um fenômeno, nesse caso, é complemento do outro. O primeiro (ideologia do consumo) estimula o segundo (desenvolvimento das forças produtivas). Não haveria, no capitalismo, real desenvolvimento das forças produtivas se não houvesse, ao mesmo tempo, o estimulo do lucro que incentivasse o consumo. E nesse caso é bom notar o seguinte: o objeto em discussão são os meios de comunicação e não produtos de infraestrutura, embora um ou outro possa servir 13 O trecho é de autoria de Carlos R. A. Avila, mas encontra-se na obra de Renato Ortiz já citado, p. 18 14 Ortiz, Renato. Op. cit., p. 190. 55 de parâmetro para se avaliar o desenvolvimento, não so das forças produtivas, mas do próprio Estado. Seja como for, o fato é que Renato Ortiz analisa critériosamente a teoria da dependência discordando, entre outras coisas, do nacionalismo radical que é o ponto de partida de todas as análises sobre a dependência cultural. E é justamente atento a essa questão que devemos pensar nas discussões teóricas até aqui realizadas acerca da sociedade de massa e da dependência cultural. Antes, porém, quero encerrar a discussão sobre a dependência cultural fazendo da frase de Florestan Fernandes, as minhas palavras: “a alternativa para o imperialismo cultural não pode ser o provinvícianismo cultural tímido e estreito. O desafio não consiste em cortar as ligações culturais com o exterior.” 15 15 Fernandes, Florestan. A Sociologia numa Era de Revoluçao Social.Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1976, p. 12. 56 4. O Lixo Do Luxo: O Consumo Da Elite e Da Periferia Trash Chic A velocidade com que hoje se substituem produtos e subprodutos de consumo, tem sido tema de discussão especialmente nas obras de Jean Baudrillard e Pierre Bourdieu. A sucessão, cada vez maior e mais efêmera de produtos, cria a rotatividade dos objetos sem que, necessariamente, os velhos produtos sejam transformados em sucata. Ao contrário, eles passam (alguns, é claro) por curioso e constante processo de estratificação social que, em última instância, poderíamos chamar de “estratificação social do consumo”. Trata-se, na verdade, da reciclagem do consumo, mas implica também a mudança socioeconômica do consumidor. Desse modo, cria-se todo o mercado que intermedia a trajetória de produtos do centro consumidor (quando novo) para a periferia que o absorve, dando sobrevida àquele produto já considerado velho e obsoleto pelo centro consumidor. Constata-se aqui um fenômeno muito significativo, decorrente da velocidade com que avança o desenvolvimento tecnológico nos “compelindo” a consumir sempre as maiores novidades e descartando o que até pouco tempo era considerado moderno. É nesse momento que entra em cena o consumo estratificado. A elite econômica consome o novo, a novidade tecnológica, e a periferia consome o “velho” que é novo, mas tecnologicamente obsoleto. Isto é apenas um exemplo. Mas, já de início cabe uma pergunta: será que a velocidade dessa modernização tecnológica poderá um dia tornar democrático o consumo? É o que tentaremos discutir neste ensaio, apresentando algumas questões para a reflexão do leitor. A distância entre o consumo de bens tecnológicos modernos já foi, a meu ver, bem maior (ou pelo menos maior) entre a burguesia e o proletariado. Talvez um bom exemplo esteja na aquisição de microcomputadores, que passam por renovação tecnológica impressionante. Em curto espaço de tempo o produto novo torna-se tecnologicamente obsoleto e, como tal, passa a ser preterido pela “última novidade” que, por sua vez, está com seus dias contados e 57 “condenado” à obsolescência. A indústria, aliada à modernização tecnológica, empreende o ritmo alucinante à produção de novas gerações de microcomputadores que, nesse momento, é imprevisível saber o que se sucederá em breve futuro. Uma coisa, no entanto, é certa. Ainda que obsoletos, esses aparelhos, ao contrário o que se possa pensar, não se tornarão sucata ou objeto imprestável. Eles serão reutilizados, reaproveitados por camadas sociais que não têm acesso à modernização tecnológica, mas que não podem (e não há como) se alijar do processo de informatização, de “microcomputarização” irreversível, pelo qual passa todo o mundo e especialmente as chamadas sociedades complexas. Mas à frente mostraremos no plano teórico como ocorre esse mecanismo de reaproveitamento do produto obsoleto, por meio do qual denominamos de “forças centrífuga e centrípeta do consumo”. Um outro exemplo interessante a se observar é o do telefone celular. Nesse caso a modernização tecnológica não conta muito. Rigorosamente, quase nada. Quando se instalaram no Brasil as chamadas bandas “ A” e “B”, para explorar comercialmente a telefonia celular, apenas algumas poucas pessoas, durante certo tempo, poderiam comprar um telefone móvel. Eram os altos executivos das grandes empresas, cidadãos dos estratos mais altos na hierarquia social, enfim, tratava-se de um produto extremamente elítizado, cuja função transcendia a mera comunicação útil e objetiva, para transformar-se também num objeto de ostentação e de atribuição de status, como analisa o pensador francês Jean Baudrillard em sua obra A Sociedade de Consumo. Hoje, porém, após mais ou menos três anos de telefonia celular em nosso país, o quadro geral é outro. Outros estratos sociais bem mais modestos passaram a ter acesso a esse serviço. É bem verdade que em condições a serem cuidadosa e prudentemente analisadas, para não incorrermos em erros pueris, tais como acreditar que nossa sociedade atingiu o patamar superior de distribuição da riqueza e, portanto, vivemos o equilíbrio da democratização do consumo. Evidentemente isso não ocorre. Existe, isto sim, o clássico apelo da indústria cultural ao desejo de ascensão social aos estratos subalternos da sociedade. Portanto, nesse caso, como em tudo o que se refere à sociedade de consumo, o fundamental, o determinante é consumir ainda que não haja condições reais de fazê-Io. Aqui é pertinente a conhecida frase do filósofo alemão Theodor Adorno quando diz: “as massas não são a medida, mas a ideologia da indústria cultural, muito embora esta última dependa fundamentalmente da primeira para existir”. Pois bem, afora o desejo de ascensão social do proletariado (mas também da classe média e de estratos intermediários) via consumo (algo artificial) existe, é claro, o natural desejo da expansão e de rentabilidade do capital industrial. Isto faz parte da própria lógica interna do Capitalismo que, aparentemente, apresenta uma contradição. 58 Isto porque, se por um lado, a produção de bens tecnologicamente modernos se dirige inicialmente à burguesia, é inevitável, por outro lado, no decorrer do tempo, que esses produtos tenham seu custo de produção sensivelmente declinado, justamente em face do próprio avanço tecnológico e também do interesse de aumentar o mercado consumidor. Assim, nesse momento, não há outra alternativa senão ampliar este consumo até às classes social e economicamente mais modestas. Para isso, a saída, claro, é obedecer a mais pueril das leis capitalistas que tratam da macroeconomia: se há potencialmente um mercado consumidor à vista, a alternativa clássica é aumentar a produção e, como conseqüência natural, diminuir o custo da produção, propiciando acesso a outras classes sociais que até então estavam impossibilitadas de participar desse universo de produtos, ou seja, de se inserir num novo mercado de consumo até então inacessível. Que se pense aqui, no clássico estudo de John Kenneth Galbraith, intitulado, O Novo Estado Industrial. Este é, provavelmente, um dos trabalhos teóricos mais fecundos sobre o trinômio capital/produção/consumo. O argumento acima é válido para a grande maioria dos bens duráveis e não duráveis. Rigorosamente, nesse momento não me ocorre um bem que não se enquadre nessa lógica de produção/consumo. Por isso é que, a meu ver, a contradição do Capitalismo nesse caso é apenas aparente. No fundo há uma lógica harmônica e perfeitamente sincronizada com a ideologia hierárquica das classes sociais e das próprias leis que regem a ética capitalista. Mas isso não significa, em hipótese alguma, que o consumo se dê simultaneamente em todas as classes sociais. Longe disso. Como já registrei, a vanguarda tecnológica, claro, é cara e como tal torna-se exclusividade da burguesia endinheirada. Num segundo momento, aí sim, é que outros estratos mais modestos da sociedade passam a consumir o produto tecnologicamente obsoleto, o envelhecido, que a burguesia já não quer mais. Em outros termos, esses segmentos consomem o que eu chamaria de “lixo do luxo”. Isto porque, a partir de agora, com as inovações tecnológicas, esses produtos só vão servir a quem não pode consumir as novidades, ou seja, produtos quase sempre melhores, mais modernos e bem mais eficientes. Ainda no tocante ao consumo há, nesse momento, importante participação do capital financeiro. É natural que, na lógica interna do consumo no Capitalismo, se crie mecanismos que estimulem o consumo. É aqui que entram o crédito pessoal para compras a longo prazo (crediário), o sistema de pagamento com cartão de crédito, enfim, toda uma série de alternativas e “facilidades” que buscam o lucro através de juros e, como conseqüência, a maximização do consumo, porque o pagamento parcelado facilita e encoraja psicologicamente o consumidor a partir para seus sonhos e aventuras consumistas. Todo esse quadro cria a falsa idéia da democratização do consumo. Tanto a burguesia quanto os outros segmentos sociais podem, assim, consumir de formas diferentes (à vista ou a prazo) os mesmos produtos e, em alguns casos, com a mesma qualidade. Como isso 59 ocorre de fato, pelo menos nesses casos, idéias de kitsch em Abraham Moles de “simulacro” em Jean Baudrillard desaparecem. Isto porque um produto tecnologicamente superado (embora desprezado pela burguesia) não é imitação de nada. O aumento da produção industrial, aliado à participação do capital financeiro, “aproxima” as classes sociais e “democratiza”(?) o consumo. Mas será que realmente democratiza? É preciso notar que esse consumo, com efeito, não ocorre simultaneamente entre burguês e proletário. Em que pese a velocidade tecnológica, que “envelhece” o produto (e talvez por isso mesmo), quase sempre sobra às classes subalternas a alternativa de consumir o “lixo do luxo”, aquilo que a burguesia já não quer, mesmo assim com a interferência do capital financeiro parcelando a dívida do comprador, mas auferindo lucros através dos juros que muitas vezes se diluem ao longo das prestações, dando a aparente sensação da sua inexistência, ou seja, de que o comprador não está pagando juros. Todos nós sabemos que esse é um mecanismo muito recorrente em compras a crédito em nosso país. De outra parte pode-se dizer que, embora burguesia e proletariado façam parte do mesmo universo do consumo (a sociedade de massa), há diferença significativa que deve ser observada. A primeira vive no mundo real, em que todas as coisas (entenda-se aqui principalmente inovações tecnológicas) chegam para ser utilizadas imediatamente. A segunda, porém, vive o mundo virtual das coisas. Algo que provavelmente virá a acontecer, mas por algum tempo indeterminado não acontecerá. Nesse caso o virtual tornar-se-á real a partir da obsolescência tecnológica do produto. Para finalizar, quero mostrar que esse processo se dá através de um mecanismo que, na falta de melhor nomenclatura, resolvi chamar de “forças centrífuga e centrípeta do consumo”. Imaginemos, por exemplo, a sociedade como um grande círculo de uma tábua de tiro ao alvo. Localizada bem no centro, ou seja no alvo, está a burguesia. À medida que nos distanciamos desse alvo em direção aos círculos maiores, podemos imaginar que cada círculo representa um estrato social. Assim, quando chegamos ao último círculo da tábua, estaríamos entrando nas regiões das grandes periferias que quase sempre cercam as metrópoles. Temos aqui, portanto, a presença da força centrífuga da ocupação do espaço. Se a burguesia de fato não está localizada no centro geográfico da grande metrópole (quase sempre um espaço essencialmente comercial), ela é o grande centro do consumo. Já a periferia não. O grande proletariado se concentra nessa região justamente por falta de opção. Pois bem, a mesma trajetória vai ter uma parte da produção de bens de consumo. Tomemos, como exemplo, um automóvel novo. Seu primeiro proprietário será uma pessoa cujo nível socioeconômico será compatível com as pessoas integrantes do alvo da tábua que já apresentei. Depois de um certo tempo, com as renovações estéticas e as inovações tecnológicas, este veículo passa a ter a imagem de superado e tecnologicamente obsoleto. Ele será vendido e, a partir daí, iniciará seu trajeto descendente, através de compra e venda por 60 pessoas cada vez com menos poder aquisitivo até chegar à periferia. O automóvel começa, em outros termos, a percorrer os anéis (estratos sociais) da tábua de tiro ao alvo, até chegar ao último anel, o mais distante do alvo. Esse é o destino de boa parte dos automóveis fora de linha de produção, como, por exemplo, Opala, Brasília, Corcel, entre outros. São facilmente encontráveis nos bairros periféricos e raramente vistos nos chamados bairros mais nobres ou da classe média. É assim que se dá a “força centrífuga” do consumo, em que os produtos “obsoletos” são “exemplos” do centro para a periferia. A força centrípeta, ao contrário, não pode exportar tecnologia. Ela é formada por uma parte de determinados produtos que partem da periferia para o centro. Determinados ritmos da cultura musical brasileira, como o lundu, o samba entre outros, nasceram nas classes populares. O samba, por exemplo, surgiria de um ritmo chamado “maxixe” nos arrabaldes da cidade do Rio de janeiro, no começo deste século, entre os negros ex-escravos libertados pela “Lei Áurea”. Aos poucos, este ritmo superaria os preconceitos de classe, passaria por algumas transformações estéticas, até chegar o final dos anos 50, quando ocorre a grande revolução estético/musical em nosso país, conhecida internacionalmente como “Bossa-Nova”. Convém registrar, no entanto, que esta grande revolução a que me refiro, foi feita pelos então jovens da classe média carioca como, Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Morais, João Gilberto, Newton Mendonça, Carlos Lyra, entre outros. Acrescente-se ainda, que a força centrípeta do consumo, por sua própria trajetória (da periferia para o centro), não poderia mesmo exportar tecnologia. Sua importância se concentra bem mais nas questões comportamentais e até mesmo culturais. São as causas, por exemplo das conhecidas “tribos urbanas” formadas por jovens da periferia, que influenciam comportamento, parte da juventude bem nutrida dos estratos mais abastados. O uso de peirce pelo corpo, a moda da calça larga (“calça mano” como é mais conhecida) até a metade da tíbia, o chamado “tênis radical”, entre outras, são alguns dos objetos e atitudes da periferia que chegaram até a juventude mais abastada. Mas há, em nossos dias, alguns exemplos importantes: o “rap” americano que saiu da periferia pobre formada pelos negros e hoje se tornou um ritmo quase universal, com grande; penetração em todas as classes sociais. Bibliografia I. ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. ln: COHN, Gabriel (org.). Co111unicação e indústria cultural. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1978. p. 287-295. 2. BAUDRILLARD, Jean. La société de consommaation. Paris: Editons Planète, 1976. 3. ______________.Pour une critique de I’économie potitique du signe. Paris: Editions Gallimard, 1972 4. SWINGEWOOD, Alan. O mito da cultura de massa. Rio d” Janeiro: Editora Interciência, 1992. 61 5. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1996 62 5. Produção Cultural e Classes Subalternas Existem hoje, no meio urbano, produtos da cultura de massa que são dirigidos a um público não letrado ou no máximo semiletrado, de significativa importância sócio-política, cuja detecção sociológica do fenômeno só se obtém via análise dos produtos da subcultura. Trata-se, na verdade, de produtos que portam signos culturais das classes pequeno-burguesas, estigmatizados na sua essência e onde subjaz toda uma ideologia que vai do plano estético à discriminação cultural e social e que é também o ponto central de discussão deste trabalho. Nesse sentido, somos levados a pensar que os meios de comunicação de massa trabalham de forma diferente os valores da cultura. Mas isso não acontece de fato. Ocorre, isto sim, a produção de objetos que obedecem a uma lógica estética interna, socialmente distintiva, onde o valor contextual do produto não passa de signos particulares dirigidos à classe média, proletariado ou alta burguesia. Se por um lado, a produção de massa estabeleceu uma distinção qualitativa no plano estético, mas lançando mão de um engodo a ideologia da moda - produzindo objetos que acenam com a pseudomobilidade social, com o mascaramento da atribuição de melhor status (vide o caso da Cachaça de São Francisco) 1, isso já não se repete no nível ideológico. O estatuto sócio-político de qualquer produto de massa no capitalismo obedece a mesma lógica alienante do processo de produção que juntamente com o consumo formam um todo inextricável na sociedade capitalista, como demonstra Marx em Contribuição à Critica da Economia Política. Seu efeito social através do consumo não tem outra função senão a de sancionar a ordem estabelecida, tanto quanto de conferir maior poder ao domínio do capitalismo monopolista que, diferente do analisado por Marx no século XIX onde a exploração do proletariado se concentrava sobretudo na produção, concentra-se hoje de igual maneira nas esferas da produção e do consumo. Portanto, verifica-se não só o aumento da exploração como a identificação cada vez maior do próprio controle da vida indivídual 2. Nesse sentido, a consciência 1 O sociólogo Jean Baudrilard mostra como a Indústria cultural trabalha os valores dos objetos nesse sentido, em seu trabalho: A Moral dos Objetos. Função-Signo e Lógica de Classe, in: Semiologia dos Objetos, Editora Vozes, Petr6polls 1972. 2 Ao ser entrevistado por Leo Kofler, George Lukàcs mostra como o controle social se faz hoje também na esfera do consumo: “a exploração das classes operárias passa cada vez mais da exploração através da mais-valia absoluta para a que se opera através da mais-valia relativa. Isto significa que é possível um aumento da exploração ao lado de um aumento do nível de vida do trabalhador”. Conversando com Lukàcs, 63 dos homens encontra-se manipulada pelos detentores do poder; a repressão aparece de forma inequívoca dentro de si mesma. Assim, a Sociedade Industrial nas condições que se apresenta reifica a totalidade da vida do indivíduo, contribuindo ainda mais para evidenciar a presença do social impregnado no individual. A forma pela qual o indivíduo está submetido aos imperativos lucrativos da indústria cultural e a intromissão plena do Estado na sua existência privada, despersonificando-o, transformaram os problemas psicológicos em problemas políticos. Isso significa dizer que “os processos psíquicos anteriormente autônomos e identificáveis estão sendo absorvidos pela função do indivíduo no Estado - pela sua existência pública”. 3 Mas, não podemos deixar de lado a significação social da produção e do consumo de bens culturais. Aqui, uma vez mais, a indústria cultural ao estratificá-los transforma os problemas psíquicos em problemas políticos, fazendo da produção e do consumo um fator de eficaz discriminação social, deixando bem nítida a marca caracterológica da sociedade de massas. A partir desse processo haverá uma perfeita combinação entre objetos e classes sociais. Se, por um lado, a forma de como se dá o desenvolvimento da produção segundo a ótica marxista estabelece-se a sociedade de classes, não resta dúvida que a estratificação da produção de bens culturais corrobora ainda mais essa divisão de classes. Dito de outra forma temos: tal categoria de objetos é fabricada com material de qualidade superior, possui certos requintes de “bom gosto” 4.e, em alguns casos de produção limitada, e como tal, só pode ser adquirida por aquelas classes sociais de melhor poder aquisitivo, muito embora todas as classes estejam imbuídas da ideologia da moda e do consumo. Na compra desses objetos, essas classes encontram-se com signos socialmente distintivos e com o prestígio social esperado. Este aspecto, embora não seja o único - consideramos essa abordagem extensiva a todos os bens culturais -, torna-se particularmente mais claro quando permeamos os caminhos da moda. E aqui nos valemos das palavras de Jean Baudrillard para explicitar o problema: “A moda, com efeito, não reflete uma necessidade natural de mudança: o prazer de mudar de roupas, de objetos, de automóveis, vem sancionar psicologicamente imposições doutra ordem, imposições de diferenciação social e de prestígio. O efeito da moda só aparece nas sociedades de mobilidade social (e acima de um certo nível de disponibilidades econômicas). O estatuto social ascendente ou descendente deve-se inscrever em um fluxo e refluxo contínuos dos signos distintivos”. 5. A questão da moda pode também se relacionar com o próprio desenvolvimento industrial, como propõe o sociólogo René Konig. 6 . Marcuse, Herbert, Ensaios sobre Política e Cultura, p. 39. Sobre o problema do “bom gosto”, termo tão em voga entre nossos críticos, Amold Hauser ao analisar a função social do Romantismo nos diz o seguinte: “Bom Gosto é não só um conceito histórica e sociologicamente relativo; mas também tem apenas uma importâncla limitada como categoria de valorização estética”. Históri1a Social de Ia Literatura y el Arte, vol. II, p. 242, Ediciones Guadarrama, Madri 1968. 5 Baudrillard, Jean, obra citada, p. 69. 6 Konig, René, Sociologia de Ia Moda, Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires 1968. 4 3 64 Entretanto, a simples produção em série de uma variedade muito grande de objetos e que teoricamente permitiria o barateamento do produto, não significa, necessariamente, que agora os “produtos da moda “ estejam acessíveis à grande massa como propõe o autor. Isto é uma falsa visão do problema. A industrialização da moda não significa que se criou uma igualdade de todos no tocante ao consumo dos objetos. Nesse caso, a moda transforma-se apenas num produto da cultura de massa. A simples industrialização não aboliu a diferença qualitativa do produto; ela somente socializou o modelo, o estilo, a forma etc., que antes eram um privilégio de classe (mas que fundamentalmente continua sendo) instituindo o kitsch para melhor poder manter estratificada a qualidade do objeto e, conseqüentemente, o consumo da moda entre as diferentes classes sociais; ou ainda, como diz Baudrillard reportando-se à moda enquanto instrumento ideológico de controle social: “Ela é uma das melhores instituições nesta função, uma das que melhor funda, sem pretensões de aboli-la, a desigualdade cultural e a discriminação social. A moda quer, além da lógica social, uma espécie de segunda natureza: de fato, é completamente regida pela estratégia social de classe. A efemeridade ‘moderna’ dos objetos (e de outros signos) é, com efeito, um luxo de herdeiros “ 7. Portanto, o “padrão de qualidade”, frase muito comum nas modernas mensagens publicitárias ao anunciar um novo produto, pode até não ser verdade no tocante à qualidade - normalmente o é -, mas com certeza a verdade reside no alto preço do produto e certamente com ele um privilégio de classe. Desta forma, tem-se na moda instaurada no capitalismo a instituição com duplo compromisso social: de estabelecer o novo e de reafirmar o velho. De inovar o gosto, os conceitos estéticos, mas de reafirmar e nada mudar na velha ordem estabelecida. Contudo, o binômio moda e classes sociais é apenas uma pequena parte de um fenômeno de maior amplitude no capitalismo: a produção da subcultura. Hoje, a dominação não só se manifesta ao nível do processo de trabalho, mas também no controle do tempo “livre” do indivíduo através da indústria cultural, exercida pelo Estado, nas técnicas de manipulação da massa. E é justamente via produtos da subcultura que a sociedade não permite ao indivíduo o fruir solitário além do trabalho. É preciso manipulá-lo através de uma uniformidade comportamental, engendrada pelos meios de comunicação de massa, determinando o fenômeno da “invasão da intimidade” 8. É aqui que a produção maciça da subcultura, além de estabelecer uma distinção classista em nível do consumo, transforma-se em mais um “ narcótico social” como propõe Robert Merton 9. Portanto, a partir de agora, torna-se necessário conceituar o estatuto sociológico dos produtos da 7 8 Baudri1lard, Jean, obra citada, p. 71 e 72. Conceito usado por Richard H. Rovere, para mostrar que o indivíduo na sociedade atual perdeu o direito de ficar sozinho quando quiser, in: O Dilema da Sociedade Tecnológica, Hendrik Ruitenbeek (org.) Editora Vozes, Petrópolis 1971 9 Merton, Robert K. e Lazarsfeld, Paul, Comunicação da Massa, Gosto Popular e Ação Social Organizada, in: Gabriel Cohn (org.) Comunicação e Indústria Cultural, Cia. Editora Nacional, São Paulo 1971. 65 subcultura, estendidos aqui como aquela parte da produção da cultura de massa que se destina principalmente aos baixos estratos da população e, portanto, diferente da outra produção mais sofisticada dirigida às classes média e à alta burguesia. Essa diferença que estabelecemos resulta bem clara se analisarmos o problema sob a óptica do lazer . Comecemos pela música. A situação atual em que se encontra a música sertaneja, inteiramente desvinculada da cultura caipira paulista, não deve ser vista somente como uma mudança isolada no contexto do seu universo sócio-cultural. Não representa também apenas um notório empobrecimento estético da canção rural; mas muito mais que isso, simboliza toda uma transformação em seu “corpus” social gerada pelo processo de industrialização onde, a partir de agora, as relações de produção no meio urbano colocam frente a frente o homem do campo e o da cidade que, a partir de então, passam a disputar o mercado de trabalho nos setores secundário e terciário. 10 É exatamente nesse novo contexto urbano que vai nascer também uma nova modalidade musical: a música sertaneja. Ao contrário da música caipira, que se coaduna com o “ethos” popular por uma afinidade espontânea com o sentir, pensar e agir das camadas modestas da população, a música sertaneja, enquanto mercadoria da indústria cultural, transforma-se apenas num produto a mais da subcultura urbana. Dirigida a um público extremamente vasto e semiletrado, o discurso emergente na música sertaneja, como em todos os produtos dessa subcultura, usa de uma linguagem onde se cristaliza de forma inequivoca o “nivelamento por baixo” pondo à tona um dos principais recursos empregados pela indústria da subcultura que, conscientemente, ou não, o sistema social endossa mantendo esse vasto público num estado de letargia e de obscurantismo critico da sua realidade social. Mas há que se pensar na formação intelectual não apenas desse grande público letárgico, mas da sociedade como um todo. E já não estamos nem falando de uma formação acadêmica (mas que se pense nisso), mas da necessária liberdade para um aprendizado que dignifique a condição humana e que certamente extirpe do nosso meio social o velho e falacioso jargão de que há aqueles “menos favorecidos pela sorte”. E é nesse sentido que os produtos da subcultura (entre eles a música sertaneja) exercem ação sobre o homem inculto e semiletrado, fazendo com que ele próprio justifique sua paupérie econômica e cultural, essa última entendida no sentido restrito do termo. Por outro lado, impossibilitado pela ação terrorista do Estado de ter maior visão critica e de exercer na sociedade seu papel de homem político, este homem termina por acreditar em sua “falta de sorte” e por justificar sua própria paupérie, submetendo-se mais facil10 Sobre esse aspecto há diversos trabalhos realizados mas, sem dúvida, Os Parceiros do Rio Bonito (livraria Duas Cidades Ltda., São Paulo 1971) do Professor Antônio Cândido é um dos mais fecundos. 66 mente aos imperativos da administração total do controle social e político por parte do Estado totalitário. E é assim, usando as viseiras do autoritarismo sobre os desinformados (que, aliás, são maioria nos países subdesenvolvidos), que o Estado reaproveita os produtos da subcultura - agora como inegável instrumento de manipulação ideológica - mantendo a sociedade econômica e culturalmente estratificada e com isso organizando-a de tal modo que uns poucos grupos economicamente mais fortes mantêm-se incólumes, assegurando, ao mesmo tempo, a sobrevivência do Estado e da estrutura social vigente. Nesse sentido, portanto, não questionando a função social da subcultura é que se nos apresenta a permissividade do Estado tornando o homem, não “a finalidade de todos os meios de manipulação” 11, mas convertendo-o em “meio para as finalidades da manipulação” 12 - como diz Igor Caruso -, ou ainda em outras palavras: o Estado, via produtos da subcultura e enquanto administrador dos bens culturais da sociedade, permite a circulação de produtos culturais que não têm outra função senão a de justificar a cultura afirmativa, de elemento mediador das culturas dominante e dominada, de paliativo das tensões sociais, contribuindo com essa mediação para a manutenção do “status quo”, tanto quanto evitando mudanças na estrutura social. Ao consumidor da subcultura, conquanto seja mantido em seu estado letárgico (e o é, independentemente de sua vontade), sobralhe então apenas uma alternativa: viver num universo cultural já reificado, permeado de baboseiras, míope na sua essência e onde os meios de comunicação de massa lhes propiciam formas de entretenimento tolos e que, fundamentalmente, lhes conduzem não ao universo do prazer lúdico, mas ao desencantamento do mundo. Disso resulta que, através dessa subcultura, configurada em lazer (e esta é apenas uma das formas usadas), impõe-se aos baixos estratos sociais padrões já estandardizados, distanciando-os com isso .de uma práxis social que poderia conduzi-los a uma visão mais critica da sociedade e até mesmo a um estado de consciência que permitisse a emancipação definitiva das classes produtoras. Mas isso não é possível. Tendo em vista justamente esse perigo, é que a dominação, utilizando-se dos meios de comunicação de massa, manipula conformisticamente o tempo do indivíduo fora do âmbito de trabalho. Nesse sentido, o lazer, que poderia estar virtualmente a serviço do florescimento das potencialidades da personalidade humana, transforma-se num engodo. Contudo, há que se pensar ainda mais no termo subcultura. É inquestionável que o Capitalismo Organizado estabeleceu a interação das diversas culturas, permitindo a crescente administração da vida cultural na presente sociedade de massa. Para Theodor Adorno, por exemplo, o papel social da administração no âmbito da cultura se expressa, de forma inequívoca, no hibridismo cultural existente na 11 Caruso, Igor, Psicanálise: fatores sócio-políticos, Edições Rés Ltda., Porto, p. 161 12 Caruso, Igor, idem, p. 162 67 atual sociedade. A indústria cultural mistura e nivela as mais diferentes correntes da cultura; adultera a popular, posto que a submete ao controle social, e envelhece a alta cultura - sobretudo a arte - por atender as exigências dos imperativos da indústria cultural que nada tem a ver com o ser da cultura. Destarte, o fenômeno mais evidente nos é fornecido pela arte: ao ser submetida aos padrões e normas vindos do exterior a arte perde toda sua seriedade; toda a sua autenticidade estética. Com efeito, a administração da cultura reflete o caráter heteronômico da própria cultura, ou seja: a cultura submete-se a uma nova cultura – a cultura de massa. Por sua vez, a cultura de massa, enquanto produto do Capitalismo Organizado, da sociedade de classes, não poderá ser refratária à estratificação da sua própria produção cultural, como vimos anteriormente. De um modo geral, todas as características apontadas por nós referentes à sociedade de massa convergem a um ponto básico: a crescente despersonalização dos indivíduos e a forte tendência à uniformidade comportamental. O indivíduo na sociedade de massa já não decide autonomamente acerca do que deve fazer. Aliás, esse foi o motivo que levou David Riesman a dizer que o cidadão moderno pauta seu comportamento de acordo com a conduta dos outros; somente estando imerso no seio da massa é que pode estar seguro de obter reconhecimento de seus semelhantes. Nessas condições o indivíduo, dirigido por outros, abandona qualquer tipo de iniciativa pessoal, sendo os momentos e ação de sua vida plenamente controlados pelo Estado. Despersonalizado, ele dispõese a seguir qualquer decisão tomada pela sociedade. O fenômeno da despolitização das massas ilustra muito bem essa situação social. Todavia, um argumento que se pode levantar contra a massificação na sociedade industrial avançada seria o de que as mensagens transmitidas pelos meios de comunicação - antes de atingir própriamente a massa - estariam filtrados através da existência dos pequenos grupos. Entre o público e as mensagens haveria, como elemento mediador, a influência do líder de opinião sobre os pequenos grupos 13. Nesse caso, avultar-se-ia o papel social dos grupos primários como um dos óbices ao fluxo linear da comunicação. Este processo não se daria de forma direta; entre o emissor e o receptor da mensagem estariam presentes os grupos primários. Mas, a nosso ver, não obstante a presença desses grupos, a massificação continuaria a intensificar-se. Como observou David Riesman, “os pais têm suas fontes de orientação nos meios de comunicação de massa. Pois, em sua inquietação quanto ao modo de criar os filhos, voltam-se cada vez mais para os livros, revistas, panfletos do governo e programas radiofônicos” 14. Nessas condições, podemos agora dirigir nossa discussão para os efeitos sociais da estratificação da cultura de massa. A produção Sobre o papel do líder junto ao público, veja: Sociologia da Comunicação, Gabriel Cohn, Livraria pioneira Editora, 1973, p. 24 e 24; La Sociedad, Theodor e Max Horkheimer, Editora Proteo, Buenos Aires 1971, p. 87. 14 Riesman, David, A Multidão Solitária, Editora Perspectiva, São Paulo 1971, p. 87. 13 68 que se verifica na sociedade de massa seria indistintamente acessível a todas as classes sociais? Em caso negativo, como então se estabelece a estratificação do consumo? Nem todo produto de massa pode ser consumido por todas as classes sociais. Em contrapartida, todos os produtos de massa podem ser consumidos pelas classes dominantes. Mas, efetivamente, isso não ocorre. A alta burguesia, por uma questão de tradição da própria classe - melhor seria talvez dizer do seu poder aquisitivo -, por seu fácil acesso à cultura superior, consome o que de mais refinado oferece o mercado. Estes, são os freqüentadores dos bem sucedidos Shoping Centers e casas comerciais localizadas nos Jardins (caso de São Paulo). A classe média, que também acorre a esses locais, conquanto se lhe apresente as “novidades” da moda contenta-se em consumir o rústico, o exótico, o “antigo-novo”, o kitsch etc., desde que esse consumo traduza-se em êxito social ou numa posição privilegiada no seio da sociedade. Às classes subalternas reserva-se-lhes o consumo do que a priori foi determinado para elas e obviamente rejeitado pelas classes dominantes. Nos grandes centros urbanos (caso de São Paulo) esse comércio concentra-se nos bairros próximos às estações rodoviária e ferroviárias. Ai, as casas de comércio com seus alto-falantes anunciando as “pechinchas” (o que não se vê no comércio chic), os vendedores nas calçadas induzindo os transeuntes a verificar os preços, os produtos pendurados nas portas de entrada, a variedade imensa de objetos espalhados pelos balcões, o enorme cartaz de fundo anunciando O “crédi-fácil” na hora e sem demora, sem entrada e sem mais nada, estampa o fiel retrato de um comércio de produtos de baixa qualidade, dirigido ao consumidor de baixa renda. Podemos até mesmo dizer, que é nos lugares acima citados que se concentra a grande maioria do “basfond” de toda a produção industrial. Além disso, é altamente significativo se notar que essa região é passagem obrigatória (duas vezes ao dia) de uma população pobre que mora nos bairros proletários da Grande São Paulo. A esse fato, acrescente-se ainda o grande número de migrantes que transita diuturnamente por esses locais ao chegarem à Metrópole. Podemos então, a partir da constatação empírica desses fatos, pensar numa subcultura de massa; no seu poliformismo social? É claro que se formos atentar para a função ideológica da cultura de massa não haveria nenhuma razão para pensarmos em diferenciar cultura de massa e subcultura de massa 15; mas se atentarmos para o aspecto qualitativo, para o conteúdo estético (ainda que não queiramos divorciar a estética da política) então torna-se pertinente essa divisão, não obstante tenhamos a considerar que “chaque classe sociale posède son propre univers de valeurs, sa mentalité, sa psychologie et son style de vie, en même temps qu’elle crée des A literatura sobre a função ideológica da cultura de massa é particularmente vasta; mas vale a pena destacar: Comunicação e Indústria, Gabriel Cohn (org.) Cia. Editora Nacional, São Paulo 1971; e Teoria da Cultura de Massa, Luiz Costa Lima, Editora Saga, Rio de Janeiro 1969. 15 69 sphères d’entérêts économiques et politiques, y participe et en découle à la fois” 16, como diz Ivo Supinic ao abordar o problema do estilo musical e classes sociais. Convém destacar que os atributos de classe social, mencionados pelo autor, em nada impedem que na sociedade de massa ocorram a crescente despersonalização do indivíduo e a tendência à uniformidade comportamental como registramos anteriormente, muito embora a classe dominante passe a consumir o que de melhor produz a cultura de massa. Comecemos a analisar as diferenças entre cultura de massa e subcultura de massa através da comunicação escrita, estabelecendo parâmetros entre os jornais: O Jornal. No âmbito da produção jornalística temos o primeiro exemplo da estratificação da produção e do consumo da cultura de massa. Um dos aspectos mais significativos da “era das massas” ajusta-se à redução gradativa da memória do leitor que recebe informações dos mass media. Esse fenômeno (que em Herbert Marcuse aparece como produto de uma repressão social) é constantemente associado à objetividade da atual técnica jornalística, cujo resultado representa apenas a função da indústria cultural na sociedade. E é bom notar que, na pseudo-objetividade da técnica jornalística, se esconde outro objetivo: a forma como é elaborada a mensagem - apesar do leitor acreditar que está bem informado - invariavelmente o conduz a um Estado de letargia diante do fato denunciado diversas vezes por estudiosos de teoria da comunicação. Senão vejamos: Ao analisar o trabalho de Walter Benjamin sobre o ideal do estilo jornalístico, José Guilherme Merquior coloca da seguinte forma as idéias do autor: “a brevidade e a ‘objetividade’ com que as noticias são dadas, sem correlação umas com as outras, na página do jornal - tende a isolar a informação da experiência pessoal, tanto da do narrador (cujo estilo se torna perfeitamente anônimo) quanto da do leitor. Cada indivíduo passa a ler sozinho, a noticia que não o envolve, assim como não envolveu a quem relata” 17. Ao mesmo tempo, Robert K. Merton e Paul Lazarsfeld, ao analisarem o mesmo problema, nos alertam acerca da avalanche de informações às quais estamos expostos a todo momento. Estaríamos cotidianamente envolvidos por uma constelação de informações onde, insensíveis ao mundo exterior, já não teríamos a acuidade, a lucidez necessária para a reflexão sobre os fatos. Para os autores, o indivíduo “toma seu contato secundário com o mundo da realidade política, através da leitura de sua condição e de seu pensar, como sendo uma ação indireta. Confunde assim o fato de conhecer os problemas cotidianos com o fato de atuar sobre eles. Sua consciência social permanece imaculada. (...) Por esta razão peculiar, as comunicações de massa podem-se incluir entre os mais respeitáveis e eficazes narcóticos sociais” 18. 16 Supicic, Ivo, Musique et Societé, Institut de Musicologie, Académie de Musique, Zagred 1971, p. 72. 17 Merquior, José Guilherme, Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro 1969, p. 125. 18 Merton, Robert K. e Lazersfeld, Paul, obra citada, p. 241 70 Cumpre ainda assinalar que, sob a óptica da psicanálise, a redução gradativa da memória (sua função terapêutica) que se traduz na objetividade da técnica jornalística, tem justificativa enquanto valor de verdade, enquanto função cognitiva, visto que na memória estão registradas as promessas e potencialidades satisfeitas em seu passado remoto e jamais esquecidas pelo homem civilizado. Nesse aspecto, o principio de realidade, via meios de comunicação, reduz a cognição da memória, pelo simples fato de se saber da existência de um passado onde não havia restrições ao prazer; tanto quanto há em nós hoje o desejo inato e consciente de reavermos o prazer negado pelas realizações da civilização que usa os recursos engenhosos da cibernética, cerceando hoje, o que era irrestrito no passado 19. Podemos agora entender porque a redução da memória através da objetividade da técnica jornalística casa-se .muito bem com a ideologia do Capitalismo Organizado; enfim, essa redução não significa apenas o embrutecimento crítico do homem diante do mundo mas significa também sua docilidade, sua resignação, seu aceite, ainda que inconscientemente, à dominação imposta. Na imprensa jornalística brasileira (e nosso caso não é uma exceção) 20, principalmente nas metrópoles, há matutinos que dirigem seu trabalho a classes sociais especificas. No caso de São Paulo, por exemplo, pode-se perceber uma diferença qualitativa muito grande entre uma noticia registrada por jornais como O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, dirigidos a um público de elite e a mesma noticia registrada por Notícias Populares ou Última Hora. Uma informação sobre política nacional ou internacional quando aparece num dos jornais de elite é enunciada e às vezes analisada por especialistas do assunto, sem evidentemente transformá-la num conhecimento teórico e sistemático, o que tornaria a leitura desinteressante ao leitor não especializado em literatura de Ciência Política. Isso, independentemente (mas principalmente) do ranço ideológico subjacente à mensagem, permite ao leitor econômica e socialmente privilegiado, com um repertório muito mais abrangente (se quiser), “parar para pensar”, não apenas na mensagem que leu, mas principalmente nas possíveis e freqüentes distorções nela contidas por imposição do aparelho censor do Estado e muitas vezes pela própria empresa jornalística. Evidentemente, quando a noticia pode ser publicada: quando o jornalista usa de malabarismos, da linguagem cifrada para escrever seu trabalho. Noutras palavras, podemos dizer o seguinte: uma informação, num matutino dirigido ao proletariado, traz apenas o referencial da noticia; apenas lampejos informativos para anunciar a ocorrência de tal fato. A que atribuir essa disparidade tão grande numa mesma mensagem, se a mesma informação num jornal das classes privilegiadas 19 Sobre esse aspecto é indispensável a leitura de Herbert Marcuse, Eros e Civilização, Zahar Editores, 6ª edição, Rio de Janeiro 1975, p. 33 a 40, onde o autor trata das vicissitudes do instinto humano e as influências da realidade externa. 20 Vide o ensaio de Robert E. Park, A notícia como Forma de Conhecimento, in: Meios de Comunicação de Massa, Charles Steinberg (org.) Editora Cultrix, São Paulo 1972, p. 168 a 185. 71 aparece de forma mais contundente e em alguns casos até mesmo analisada ? Poder-se-ia até pensar que a diferença de conteúdo da mensagem reside na possibilidade de maior ou menor sofisticação da linguagem, na maior e menor riqueza de repertório em nível da classe social a quem se dirige o discurso; na elaboração de textos densos e mais ou menos longos como se vê nos matutinos de elite. Mas isso não é verdade, é apenas uma falsa visão do problema. Nenhuma mensagem, de acordo com a Teoria da Informação, para ser perfeitamente decodificada precisa, necessariamente, ser longa, extensa 21. Precisa, isto sim, trazer consigo, a seriedade (nem sempre permitida pela censura) que a própria informação exige. Por outro lado, acreditar que a linguagem sofisticada - muitas vezes uma retórica inútil, logomáquica que mais lembra o culto ao doutor no Brasil - possa dar maior visão crítica ao indivíduo, é acreditar também que essa maior ou menor visão crítica reside na razão direta do binômio linguagem-classe social. Mas, é óbvio, isso não ocorre. Em qualquer sistema de circulação da informação a notícia pode ser bem detalhada e analisada, sem prejuízo total ou parcial, usando-se para isso a linguagem coloquial (o que torna até mais fácil a sua decodificação) , o repertório da classe social a quem se quer dirigir a mensagem, sem no entanto ter que se descambar para o jornalismo vulgar ou usar das técnicas bizantinas da imprensa marrom. Nessas circunstâncias, portanto, o aviltamento da informação, fato comum com o qual fomos obrigados a nos acostumar, recairia tão-somente na postura impositiva do Estado, no seu aparelho censor, que não permite a liberdade de expressão, muito embora não devamos esquecer (e isto é muito importante) que até nos países mais desenvolvidos onde se abre o pano para a liberal democracia, social-democracia etc., a ideologia entranhada nos meios de comunicação de massa tornam-lhes, voluntária ou involuntariamente, cúmplices da cultura afirmativa. Para nós, o exemplo acima no tocante à imprensa jornalística apresenta-se como uma diferença entre um produto da cultura de massa e um produto da subcultura de massa. Assim, não podemos de forma alguma considerar a produção cultural de um jornal de elite (ou qualquer outro veiculo de informação massiva) igual à de um outro dirigido às classes subalternas. Ambos são, numa primeira instância, produtos da cultura de massa mas, é indiscutível que, num segundo momento, se diferenciam pela qualidade da informação que veiculam. Muito embora, voltamos a repetir, ambos sejam arautos da mesma ideologia. Um jornal bem elaborado, com informação mais completa (não entendamos sem censura), é diferente de outro jornal que se plasma na imprensa marrom - a despeito da ideologia ser a mesma - na exploração do sensacionalismo, do sobrenatural, das anomalias físico-psí21 Segundo Muniz Sodré, “ quanto menor é a taxa matemática de informação de uma mensagem ( e maior, portanto, a redundância) maior a sua capacidade de comunicação”. A Comunicação do Grotesco, Editora Vozes, Petrópolis 1971. 72 quico-sociais, atribuindo quase sempre um caráter anedótico e nunca uma visão nua do problema. A esse estado de coisas na cultura de massa brasileira Muniz Sodré classifica como “a estrutura do mau gosto e do kitsch”. E é ele também, a nosso ver, quem analisou de forma mais fecunda a gênese sociológica do grotesco e sua função sócio-politica: “Aqui, o grotesco é posto a serviço de um sistema que pretende ser exatamente a compensação para a angústia do indivíduo dos grandes agrupamentos urbanos” 22. Pois bem, temos nos dois casos acima citados, uma situação idêntica e outra diversa. A primeira (idêntica) reside no fato de que ambos os tipos de jornais são portadores de uma cultura, emergente da ideologia impositiva do Estado que, através do seu aparelho censor, corroborado pela “objetividade” da técnica jornalística, ordena com precisão o aviltamento da informação. O segundo aspecto (diferença) diz respeito a uma situação de classe social. O jornal bem elaborado apenas fortalece um privilégio cultural das classes dominantes ampliando ainda mais a discriminação cultural já perpetuada na sociedade de classes não apenas ao nível do saber, mas também dos próprios objetos, como nos mostra Jean Baudrillard: “A inovação formal em matéria de objetos não tem por finalidade um mundo de objetos ideal, mas um ideal social, o das classes privilegiadas, o de reatualizar perpetuamente seu privilégio cultural” 23. Por outro lado, o jornal que se utiliza da imprensa marrom, que se nos apresenta como legítimo representante da subcultura de massa, tem mera função especulatória da ignorância popular. Seu objetivo não é nem mesmo informar. Subjacente a essa proposição reside o interesse de aumentar as vendas (como qualquer veículo de massa) , baseado justamente na ingenuidade e na curiosidade do leitor semiletrado, seu principal comprador . Para isso, a técnica é promover o grotesco, o crime, a erotomania etc., não enquanto forma de denúncia de um mal-estar na sociedade, claro, mas tão-somente enquanto forma de entretenimento que invariavelmente redundará em prejuízo da condição humana do leitor. Essa é, portanto, uma das opções que têm os baixos estratos sociais. É a eles que são dirigidos os produtos da subcultura de massa. Cabe finalmente - ainda que de passagem - apenas registrar o papel do Estado diante da produção cultural no Brasil. De antemão, sabe-se perfeitamente que, nos últimos catorze anos, a censura controlou e bloqueou vigorosamente grande parte da produção intelectual, artística, científica, jornalística etc., diluindo dessa forma o espírito critico da produção cultural em nosso país; calando a todos aqueles que, inconformados com a nova política cultural, resolveram procurar novos rumos para os nossos problemas sociais, políticos, econômicos e culturais. O resultado de tudo isso já é sobejamente conhecido: aos inconformados o banimento em massa; aos mais impetuosos, o epílogo da tragédia grega. 22 23 Sodré, Muniz, A Comunicação do Grotesco, Vozes, RJ, 1971, p. 39 Baudrillard, Jean, obra citada, p. 39.. 73 Mas, o Estado autoritário, dependente do Capitalismo monopolista cria suas alternativas de repressão. Uma delas - aliás nada original: vide os casos da Alemanha hitlerista, os tempos do Estado Novo de Vargas etc. - é a de se manter no poder defendendo apenas os interesses das classes dominantes e policiar estreitamente, através da censura, a produção cultural de resistência à sua tirania. Com isso, o rádio, o jornal, a televisão, a música, enfim, todos os veículos de comunicação, após a fase ufanista, xenófoba da época do “este é um país que vai pra frente”, passaram a trabalhar apenas com os valores de uma outra cultura. Da cultura inconsistente, inconseqüente, inútil, banal. Enfim, com os valores da cultura espúria. Por isso é que o sociólogo Octávio Ianni, em seu fecundo ensaio sobre “O Estado e a Organização da Cultura “ ao analisar a criação e a ação de diversas instituições culturais (FUNARTE, EMBRAFILME, SNT etc.), da vigência do AI-5 e do 477 nos mostra como o Estado subreptícia e veladamente exerce o controle e a repressão culturais. De forma lapidar , o Professor Octávio Ianni descarta todo o caráter lesivo com que o Estado agiu ao ter criado essas instituições: “ A. rigor, o Estado se transformou no centro de uma poderosa e singular indústria cultural, indústria essa totalmente organizada segundo os interesses das classes dominantes no país” 24. Mais adiante, ainda abordando o problema da monopolização da cultura pelo Estado, o Professor Ianni mostra que nos países em desenvolvimento, em virtude da forte influência dos meios de comunicação de massa e a tendência à imitação de comportamento dos países hegemônicos, sistematicamente a qualidade da produção cultural declina pelo desejo de se criar novidades, o que, invariavelmente, acarreta numa produção excessiva e redundante. Para ele (e nisso estamos de acordo), “trata-se de inovar apenas e somente no que diz respeito à acumulação do capital monopolista, que governa o sistema de poder. Qualquer outra inovação cultural, com significação política para as classes subalternas, pode afetar a estabilidade e continuidade dos interesses econômicos predominantes” 25. Isto posto, justifica-se o vertiginoso crescimento da baixa qualidade estética da produção da cultura de massa. E mais: se por um lado, uma possível inovação cultural dirigida às classes subalternas está proibida, por outro, a produção da subcultura de massa, ou seja: da indústria cultural, tornou-se hoje uma instituição já formalizada altamente rentável e consagrada. 24 Diversos autores, Encontros com a Civilização Brasileira, n. 1, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1978, p. 232. 25 Ianni, Octavio, obra citada, p. 23 74 6. O Sucesso dos Esquecidos A música sertaneja e a literatura de massas que explora como tema central a sexualidade, a pornografia, o erotismo ou qualquer outra nomenclatura que se queira dar, são dois temas que me fascinam. Importante vertente da nossa literatura, essa modalidade literária (passaremos, a partir de agora, a chamá-la de paraliteratura) onde se incluem as obras de Adelaide Carraro, Casandra Rios, Márcia Fagundes Varela, Brigitte Bijou, entre outras, permanece ausente da história oficial da literatura brasileira e da pesquisa científica. A Universidade na pessoa de seus pesquisadores não tem se interessado por ela. E as alegações para justificar tal procedimento são as mais diversas. Começam por classificá-la de literatura de mau gosto, de péssima qualidade e culmina com o pretexto de sua inexpressividade na produção literária do país. A sexualidade, tema preferido dos autores da paraliteratura, termina abarcando os dois planos anteriormente citados. É assim, portanto, que ela se torna um eficiente instrumento ideológico. Os livros de Adelaide Carraro, por exemplo, influenciam de tal maneira seus leitores, a ponto deles verem na figura da autora a grande conselheira, a mulher perfeita, inteligente, exemplar e extremamente preocupada com a humanidade. Enfim, ela estaria hoje para os brasileiros, assim como Kate Smith, artista de rádio, estava para os norte-americanos na década de quarenta. 1 Adelaide não concorda que em sua obra a sexualidade seja a temática dominante. Ela prefere dizer que seu trabalho está voltado para os problemas sociais e a denúncia política. A sexualidade (segundo a autora) seria apenas um complemento usado como pretexto para a denúncia dos problemas maiores, ou seja, a desonestidade dos políticos (caso típico de Eu e o Governador), a maledicência dos ricos (tema de Mansão Feita de Lama), a corrupção na sociedade (caso de Submundo da Sociedade), a infidelidade conjugal (tema de Os Amantes), enfim, uma gama razoável de problemas que grassam hoje em nosso meio. Mas, fundamentalmente, Adelaide se considera uma escritora de denúncias políticas. Analisando a propaganda com objetivos sociais, Paul F. Lazarsfeld e Robert K. Merton acrescentam que: “As imagens públicas de uma artista de rádio, Kate Smith por exemplo, descrevem-na como uma mulher dotada de compreensão inigualável para com as demais mulheres norte-americanas, profundamente identificada com homens e mulheres comuns, como um guia espiritual, um líder, um patriota, cujas idéias a respeito de assuntos políticos devem ser levados a sério.” In Cohn, Gabriel, Comunicação e indústria cultural, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1979. 1 75 Com efeito, há uma diferença muito grande entre aquilo feito pela autora e o que efetivamente pretendia fazer. A sexualidade, que, segundo ela, deveria assumir importância secundária no romance, passa a ser o tema central ao longo de toda a narrativa. A questão política, por sua vez, passa a um plano secundário, tornando-se mero pretexto para o discurso sobre a sexualidade. Isso está claríssimo em suas obras como, Eu e o Governador, Eu Mataria o Presidente, Falência das Elites, A Vingança do Metalúrgico, Os Padres Também Amam, Podridão, Carniça, entre tantas outras. Mas, até aí, o equívoco de Adelaide pode não representar muita coisa. A inversão de privilégios nos ternas não significa, de maneira alguma, um demérito à sua obra. Quando menos, teríamos diversos romances tratando da sexualidade (embora não fosse a intenção da autora) a serviço do leitor interessado no assunto. Mas isso efetivamente não ocorre. A questão é um pouco mais complicada do que parece. Nessa perspectiva é que se impõe a necessidade de análise da função da sexualidade na obra de Adelaide. E por extensão, é claro, da própria paraliteratura. A sexualidade, muitas vezes chamada em seus livros de pornografia, obscenidade, etc., tem conotações extremamente moralistas e conservadoras. A meu ver, a autora, bem como Cassandra Rios, Shirley de Queiroz e outros autores da paraliteratura incorrem em erros conceituais básicos quando resolvem trabalhar a sexualidade em seus romances. Como sempre, nesses casos, o resultado é absolutamente nocivo e pernicioso. Essas obras, entre outras coisas, tornam-se eficientes instrumentos de deseducação sexual. Principalmente porque o alcance da paraliteratura é altamente expressivo em termos de público. Assim, a sexualidade, que poderia ser transformada num instrumento de prazer e de libertação 2 , torna-se coisa, mercadoria. Reificase o corpo, o prazer e com eles a sexualidade. O caráter libertário da relação corporal sucumbe diante do fetichismo mercantil a que foi submetida a sexualidade. Igor Caruso, psicanalista dos mais argutos, dedicou boa parte do seu tempo a questões como essa 3. A conseqüência desse fato, claro, não poderia ser outra: a paraliteratura erótica termina por descaracterizar e envilecer a sexua2 Convém destacar a observação de Norbert Lechner sobre o caráter libertário que deve assumir a sexualidade na personalidade de cada pessoa: “Enquanto não limitamos a sexualidade à genitalidade, a expansão do prazer sexual é uma necessidade básica que transcende o nome de produção capitalista. A sexualidade é uma energia emancipadora, porquanto aponta a uma satisfação total somente possível numa sociedade sem classes”, Revista CEREN, Chile, p. 43. 3 Num trabalho dos mais famosos, o autor analisa as perturbações psíquicas ligadas à sexualidade humana, em sua maioria decorrentes da reificação sexual. Vendo a questão sob a ótica da Psicanálise, Igor Caruso registra as conseqüências da seguinte forma: “Na prática psicanalítica, esse critério permite fazer apanhar ao vivo a significação – o simbolismo! -dos sintomas mais diversos, como frigidez e impotência, perversões sexuais, hipersexualidade; indireta e mediatamente é ela a base das conversões neuróticas que substituem o sintoma sexual por um símbolo secundário; em resumo, para a análise da história íntima e impulsional do sujeito, esse critério tem um valor heurístico complementar àquele da reificação do trabalho que Karl Marx colocou na 76 lidade. É neste momento que ela assume sua função política. O controle social se faz presente, justamente em decorrência do estereótipo da imagem estigmatizada que sempre se faz da sexualidade. Aliás, esta é uma prática secular que já nasceu acompanhada de toda a visão da cultura afirmativa sobre o mundo e com ela a concepção burguesa do amor. É neste momento também que a paraliteratura brasileira chega ao ápice do seu reacionarismo. O falso moralismo é tão exaustivamente exaltado que nos faz até lembrar a repulsa que os integralistas (versão tupiniquim do fascismo) tinham pela sexualidade. Como bem assinala Gilberto Vasconcellos, “no campo da sexualidade, ninguém compete com os camisas-verdes em termos de reacionarismo: repulsa dos instintos, monogamia indissolúvel, sexo como procriação, dessexualização da mãe e da criança, etc...” 4 Incrível! Mas é precisamente por essa ótica também que a paraliteratura, aqui representada por Adelaide Carraro, vê a sexualidade. Desvaloriza-se o gozo, o prazer, reificando a sexualidade e transformando-a num instrumento de coerção política. Ela deve agora assegurar o funcionamento da ordem social estabelecida e manter a mesma concepção que sempre foi difundida na cultura afirmativa. Estamos nesse estágio, vivendo a auto-sublimação da sexualidade. Perpetua-se a dessexualização do corpo, tornando o organismo o sujeito-objeto das atividades socialmente úteis. O destino da sexualidade não é outro senão viver, a partir desse instante, sob a égide do princípio de realidade repressivo. É nesse momento que a sublimação real opera sobre a estrutura instintiva da sexualidade anulando o principio de prazer e dessexualizando o corpo. Assim, os impulsos sublimados (Freud usa a expressão “impulsos sexuais de finalidade inibida”), para manter a coerência com a ideologia da cultura afirmativa, para sancionar a prática sistemática da moral sexual repressiva, toma o lugar das livres relações libidinais com evidente prejuízo da saúde corporal e mental do indivíduo. E é este elevado grau de sublimação determinado, entre outras coisas, pelos valores sociais da cultura afirmativa que dá o “tom” do comportamento sexual da nossa civilização ocidental, hoje, ao que tudo indica, um pouco pior que amanhã. Nesses termos e sob tais condições, me parece, é que devemos pensar como se organiza a “cultura do corpo”, da sexualidade e do prazer em nossa sociedade. O psicanalista húngaro Géza Róheim, analisando comportamentos sociais e psicológicos da cultura repressiva, nos dá um excelente exemplo de como a reativação da libido narcisista (atributo comum nas personagens da paraliteratura de Adelaide), transforma-se num eficiente instrumento anticultura e ao mesmo tempo gerador de neurose: “A diferença entre uma neurose e uma sublimação é evidentemente, o aspecto social do fenômeno. Uma neurose isola; uma sublimação une. Numa sublimação algo novo é criado - uma casa ou uma comunidade, ou uma ferramenta - e é criado num grupo ou para uso 4 Vasconcellos, Gilberto, Ideologia curupira, Editora Brasiliense, São Paulo, 1979, p. 66. 77 de um grupo.” 5 A interpretação do autor nos leva a perceber a forma como se organiza o controle social repressivo dos instintos. Nessas condições, os instintos vitais (Eros) curvam-se diante dos instintos de morte (Thânatos) .A brutalidade do controle repressivo, aniquilando as potencialidades do indivíduo só pode conduzi-lo a um único destino: como diria Marcuse, ao interpretar Freud, “à descida para a morte”. Cerceiam-se os instintos sexuais e Thânatos triunfa sobre Eros. Este, em última instância, criará sua própria destruição atuando a serviço da Thânatos, transformando a trajetória da vida num tortuoso caminho rumo à morte. Os impulsos eróticos, força alimentadora do instinto de vida, esvaem-se irremediavelmente diante da cultura repressiva. Nesse instante, não há outra alternativa: a morte está muito mais próxima da vida. O controle repressivo do corpo decreta a supremacia de Thânatos sobre Eros; e com isso o instinto de morte vence a vida e o prazer. Todas as sociedades autoritárias (caso das sociedades nazifascistas européias, as latino-americanas de ditaduras militares) viveram, e de certo modo ainda vivem, o tormento da velha moral sexual repressiva. Na América Latina, a meu ver, os melhores exemplos desse quadro desolador estão no Chile de Pinochet e no Brasil da ditadura militar. Historicamente, o autoritarismo sempre reprimiu o corpo, o prazer, a libertação sexual e as próprias potencialidades humanas. Com certeza, para esconder sua pecha e o barbarismo que sempre semeou. A arte, a cultura, o desenvolvimento econômico, social, enfim, todo o florescimento da sociedade, do indivíduo dizimam-se, ou melhor, são dizimados pela força bruta da cultura afirmativa. Brasil e Chile (apenas para citar dois países latino-americanos, entre tantos) já passaram (o Chile ainda passa) por essa experiência; e os resultados são aqueles já conhecidos cuja história do país e da civilização não deixarão passar impunemente. No Brasil, os iconoclastas da cultura e do prazer conseguiram o inusitado: mergulhar nosso país na mais profunda depressão cultural, social e política de toda a sua história. Salvam-se muito poucas coisas. O movimento musical tropicalista é uma delas. Mesmo assim, porque eles não entenderam a ótica política (a questão do subdesenvolvimento) subjacente à grande estética desse movimento; senão, até ele teria sucumbido à força bruta e à arbitrariedade com que o autoritarismo tratou a produção cultural em nosso país. Os exemplos desses desmandos são tantos que nem caberiam num ensaio como este. É bom lembrar, no entanto, que os chefes do autoritarismo passarão para a história como os vilões da cultura e da arte brasileira. Eles só serão lembrados como tirânicos; caso contrário, o ostracismo lhes será inevitável. A arte, por sua vez, varou o tempo e se impôs por aquilo que oferece às potencialidades humanas. É do seu lado que Eros tornar-se-á imbatível. Thânatos, o instinto de morte, nessas 5 Róheim, Géza, The Origin and Function of Culture, Nova York, 1943, p.74. 78 circunstâncias acabrunha-se. A esperança é de que o autoritarismo viva em nosso país os últimos estertores agônicos da sua longa trajetória de vinte anos. Que floresça a liberdade de expressão e de comportamentos; enfim, que sejamos livres. Que possamos contestar, protestar, termos o direito incondicional à liberdade de expressão sem temermos o fantasma da máquina repressiva do Estado. Da mesma máquina a que Kafka se refere em A Colônia Penal. É desse direito (o direito à liberdade) que brasileiros, chilenos, enfim, os povos oprimidos exigem, para não se tornarem personagens angustiados, mutilados e acabados para a vida como Joseph K. e Gregor Samsa, respectivamente em O Processo e A Metamorfose, de Franz Kafka. Pois bem, o moralismo repressivo, medula de toda a paraliteratura brasileira, termina corroborando o autoritarismo do Estado a que nos referimos até agora. Se esta é uma atitude intencional, ou não, já é um outro problema. O mais primário dos manuais de Teoria e Critica Literária, no entanto, já nos diz: mais importante do que a intenção do autor ao tratar de certo assunto num romance, é a interpretação do leitor sobre seus escritos e, claro, as conseqüências advindas da absorção da leitura. E, nesse caso, a leitura veiculada por autores da paraliteratura está absolutamente comprometida com o autoritarismo do Estado. Aliás, convém mencionar, por exemplo, algumas identidades entre os autores da paraliteratura. Não por acaso, vale a pena registrar a concepção de amor que permeia os romances de Dr. G. Pop, Adelaide Carraro, Marcelo Francis, Márcia Fagundes Varela, entre outros. Há uma ética invulnerável. Certos valores que podemos resumir da seguinte forma: aos homens está assegurado o direito de ter experiências sexuais (desde que sejam heterossexuais) a qualquer momento, sem que isto interfira negativamente em sua reputação. Aliás, ao contrário, em certas ocasiões elas tornam-se até motivo de orgulho e de prestígio em seu meio social. A própria observação empírica desse comportamento corrobora nossas palavras. As mulheres, claro, pela própria estrutura patriarcal em que estão montados os valores da cultura afirmativa, isso não lhes é permitido. É comportamento habitual dos pais (e não poderia ser diferente; eles são produtos dessa cultura) darem mais liberdade ao filho e até incentivar o seu machismo. As mulheres não. As regras do jogo se invertem. A experiência sexual não formalizada pelo casamento redunda, invariavelmente, em sua má reputação. Esses conceitos estão presentes em diferentes autores da paraliteratura. Adelaide Carraro, só para citar um exemplo, se enquadra entre eles. Os valores acima citados estão contidos claramente em Eu e o Governador, sua obra mais conhecida. No capítulo intitulado “Reflexão” a autora deixa-os claros ao colocar a seguinte epígrafe de Mantegazza: “Nunca se faz uma segunda edição da virgindade, do pudor e da honestidade”. Adelaide Carraro, como se vê, nesta pequena amostra, reproduz e reforça alguns valores já tradicionalmente conhecidos na socie- 79 dade burguesa que vão contra nossa liberdade, ou seja: o direito de ser o que quisermos, e não aquilo que gostariam (os pais, a sociedade, os amigos, etc.) que fôssemos. Se tivéssemos pouco espaço para dar uma idéia da extensão do seu convervadorismo quanto à dinâmica do relacionamento entre casais, diríamos o seguinte: se realmente amamos uma mulher, devemos ainda preservar sua virgindade, inclusive como prova de amor até a concretização do casamento. Em suma, seu pensamento moralista permeia quase todo o universo do comportamento humano. A questão da sexualidade, sem dúvida, é a mais evidente porque é também, rigorosamente, o tema mais explorado em seus livros. Ainda é o filão paraliterário mais rentável. 80 7. Subliteratuda: O Fetiche do Prazer Alguns escritores brasileiros como João F. de Lima, Cassandra Rios, Márcia Fagundes Varela, Adelaide Carraro, entre outros, dedicaram-se a um tipo de literatura muito pouco conhecida nos meios acadêmicos do país. É bem verdade que, pelo menos de passagem, intelectuais ou não, já leram um livro de Adelaide Carraro ou, na pior das hipóteses, já ouviram falar da estória de uma obra sua. Aliás, como se não bastasse seu quase desconhecimento, com certeza ela nunca foi estudada de forma sistemática que nos permitisse saber da sua importância no contexto da sociedade brasileira. Esse tipo de literatura não aparece somente em países de cultura dependente. Ele, é antes de mais nada - nos moldes como discorre sobre a sexualidade -, um produto gerado pela sociedade capitalista. Mesmo porque, muito antes de surgir no Brasil com aqueles escritores já mencionados, essa literatura existia nos Estados Unidos com Francis Miller, por exemplo, com grande ressonância junto ao público. É somente a partir do inicio da década de 60 que aparece no Brasil, com duas escritoras já bastante conhecidas do público, um tipo de literatura que chamaremos, a partir de agora, de subliteratura. A rigor, trata-se de obras que mostram insistentemente o erotismo, indo desde a prática do coito pura e simples entre casais, passando pela homossexualidade indo até as tramas sadomasoquistas. Mas, fundamentalmente, essa não é uma literatura erótica - entendido aqui o erótico como algo que também pode nos levar a uma visão lirica do amor. A subliteratura nos mostra muito mais a erotomania e, além disso, toda uma ideologia contida em seu discurso que precisa ser analisada. No Brasil, Adelaide Carraro e Cassandra Rios são as escritoras mais importantes na subliteratura. Suas obras são as mais procuradas pelo público. Basta dizer que Eu e o Governador, segundo a autora e a própria editora, vendeu em apenas três dias 20.000 exemplares, estando agora na 14. edição. Este é um indício de que o público ligado à subliteratura prolifera rapidamente. Convém destacar que, embora Cassandra e Adelaide sejam as líderes em vendagem, não são as únicas que vendem bem. A rigor, toda a subliteratura é bem aceita, independentemente do autor ser brasileiro ou estrangeiro, apesar da estrangeirice de que estão impregnadas as editoras. É bastante comum autores brasileiros, a conselho da editora, usarem pseudônimos estrangeiros. É o que faz, por exemplo, Al Trebla (nome verdadeiro), autor de A Trama Perfeita, que escreveu também Vamos Querida e 81 Motel Nove, usando o pseudônimo de Brigite Bijou. A escolha desses pseudônimos quase sempre recai sobre nomes franceses. E é bastante provável que a gênese disso (além do evidente chamarisco comercial) esteja na visão estereotipada que os meios de comunicação de massa criaram sobre os franceses em relação à sexualidade. Ao contrário de qualquer outro tipo de literatura, a subliteratura está concentrada principalmente em livrarias do grande centro da cidade. Em São Paulo, por exemplo, nas livrarias da avenida São João, onde se misturam discos, livros, fitas cassetes etc., nas imediações das estações ferroviárias e rodoviárias, além das bancas de jornais. Por outro lado, nas livrarias especializadas em livros científicos e literatura dos grandes escritores, dificilmente encontram-se obras de autores que produzem a subliteratura. Bem, mas a que se deve o fato das livrariasdiscotecas do centro estamparem em suas vitrinas e balcões de corredores uma variedade tão grande de obras especializadas em subliteratura, enquanto um Dalton Trevisan ou qualquer outro escritor, brasileiro ou não, permanece quase escondido nas prateleiras? Porque a exploração maciça do erótico no grande centro? Esse fenômeno - se é que assim podemos chamar - não é peculiar da cidade de São Paulo; mas das grandes metrópoles de países dependentes e até mesmo de países desenvolvidos (EUA), como é o caso de Nova York, onde se paga para ver uma mulher nua na vitrina. São casas de diversões que lançam mão da sexualidade para auferir lucros. E rigorosamente podemos dizer: a exploração maciça do erótico no grande centro metropolitano não é outra coisa senão o resultado de como “a sexualidade é radicalmente levada à forma de bem capitalista, cuja expressão adequada é o seu valor publicitário e o infinito aumento de consumo” 1; aspectos esses já fecundamente abordados por Wilhelm Reich 2 e, mais recentemente, por Michael Schneider 3. Em São Paulo, observa-se que ao centro da cidade estão reservados todos os subprodutos de qualquer manifestação cultural e artística. Basta ver que, nos cinemas do centro, os filmes exibidos são quase sempre providos de temáticas que ou exploram a violência pela violência, a sexualidade por si mesma ou ainda a simples vulgarização da temática amorosa. Além disso, não há, no centro de São Paulo, uma só galeria de arte. Até mesmo a Praça da República, que no inicio parecia se transformar numa feira de artes, hoje, com raras exceções, nada mais é do que um posto de vendas de obras kitsch, de obras que levam o rótulo de cultura popular, mas que não passam de simples produtos da cultura de massa, de uma cultura que, no dizer de Dwight MacDonald, “está decadente de um modo novo; não tem sequer a possibilidade teórica de ser boa. Não é simplesmente arte falida, é não arte. É absolutamente anti-arte” 4. 1 Scheineidr, Michael. Neurse e Classes Sociais. Zahar Editores, 1977, Rio, p. 293 Reich, Wilhelm . La Lucha Sexual de los Jovenes, Granica Editores, 1972 Buesnos Aires. 3 Trata-se do livro acima mencionado. 4 -MacDonald, Dwight. “Massicuktura e Medicultura”, in: A indústria da Cultura, Editira Meridiana, Lisboa, 1971, p. 70 2 82 Além do mais, o fato do centro da cidade não possuir atrativos artísticos e culturais de boa qualidade, faz com que ele termine sendo deixado de lado por quase todo o público universitário e aquela parcela intelectualizada da população que prefere fazer seus “pontos de encontro” nos bairros classe média periféricos ao centro, surgindo dai a estratificação do lazer. É o caso dos bairros da Consolação (Bar Riviera, Ponto 4, Cantina Piolin, Cine Belas Artes), Perdizes (Choperia Cristal, Bar Whisqueria), Pinheiros (Café Paris, Bar BoraBora, etc.). Pois bem, por essa divisão sócio-geográfica de público, mas que também revela uma divisão de interesses lúdico-culturais, é que a subliteratura está à venda apenas nos locais já citados. Mas não é só. O grande centro de São Paulo é mais ou menos uma espécie de “terra de ninguém”, Apesar de ser a área de lazer dos baixos estratos da população, é também ponto de passagem de profissionais das mais diversas qualificações, tornando esse público indiferenciado. Anônimo. É por isso, principalmente, que as livrarias-discotecas do centro dão grande destaque em suas vitrinas às obras de Adelaide Carraro, Cassandra Rios e outros escritores ligados à subliteratura. Isto porque, apesar da heterogeneidade do público, predomina o leitor não comprometido com a literatura dos grandes escritores. Não é tarefa fácil detectar o leitor de subliteratura. Nem mesmo as entrevistas realizadas nas livrarias-discotecas das avenidas São João, Ipiranga, estações ferroviárias e rodoviária, nos permite afirmar e definir claramente esse público. Mesmo assim, podemos dizer que a maioria dos leitores é formada por pessoas da classe média que apresentam um índice de escolaridade e diversificação profissional extremamente heterogêneos. Com certeza, a procura desses livros, por parte do proletariado, é insignificante visto que o preço de cada volume está em tomo de Cr$ 25,00, inacessível ao seu poder de compra. O resultado de nossa pesquisa confirma-se em dois momentos: primeiramente, porque o livro Adelaide Carraro, Escritora Maldita? é composto exclusivamente de cartas de leitores (padres, donas de casa, estudantes, empresários, escriturários, fazendeiros, profissionais liberais) ; enfim, elementos das classes média e alta burguesia falando sobre a obra da escritora. As profissões citadas no livro nos permite confirmar a heterogeneidade do público. O segundo aspecto, certamente muito relevante, reside no próprio depoimento de Adelaide quando por nós entrevistada. Sob seu ponto de vista, a classe social que lê seus livros é aquela “que tem problemas, tristeza na vida, menos o operário que não compra livros. Ele não tem dinheiro para isso. É uma classe diferente das outras (a que lê seus livros), é a classe que vê longe. Não há uma classe definida, até o Erasmo Dias lê. João Saad, do canal 13, é assíduo, lê tudo o que escrevo. Padres, tudo, não dá pra definir todos”. Posto isso, cabe-nos agora analisar quais as eventuais contribuições que Adelaide Carraro e Cassandra Rios trouxeram ao seu público e à sociedade. São duas escritoras que usam o erotismo como tema central de sua obra, embora o façam de formas absolutamente diferentes. 83 Cassandra Rios, em seus 36 livros publicados - tendo três inéditos a serem editados no exterior - não aborda o homossexualismo em apenas dois. São eles: As Mulheres dos Cabelos de Metal e O Bruxo Espanhol, suas primeiras incursões pelos caminhos da ficção científica, sem no entanto abandonar inteiramente o erotismo. Mas, importante é sabermos o que pensa a autora sobre a homossexualidade. Recentemente, ao ser entrevistada pelo pasquim, de 20 a 26/8/ 76, Cassandra declarou o seguinte: “Pra mim, o homossexualismo é uma forma especial de amar, como, qualquer outra forma especial de amor. É um modo diferente, um jeito” de amar. Tudo é amor. Desde que haja amor, não há depravação. Nem é pornografia. Um dia meus livros poderão servir como estudo do modo de vida dessas criaturas, do relacionamento entre eles, de como pensam e o que sentem. O homossexual é um ser humano igual a qualquer outro”. Nossa visão sobre sua obra, tanto quanto sobre a homossexualidade, é muito diferente daquela defendida por Cassandra. Seu conceito romântico e aparentemente desprovido de qualquer conseqüência social e política está, na verdade, impregnado de valores que fundamentalmente não só demonstram um pseudoliberalismo que não nos conduz a soluções viáveis mais, ao contrário, reforçam ainda mais as distorções da educação sexual burguesa ensinada já na primeira infância. Como se sabe, o primeiro período infantil é de vital importância porque é nessa fase que os instintos parciais se manifestam, constituindo a estrutura da personalidade. E é também nessa fase que a criança tem seu comportamento sexual inteiramente moldado pelos pais, que obedecem à risca todos os preceitos da “boa educação sexual burguesa”. Educação essa que se reveste de pruridos sexuais determinados pelo autoritarismo dos pais que fazem uso não só da violência psíquica (mas em casos extremos da violência física), para assegurar os “bons princípios” da educação sexual burguesa. Assim é que a decepção do filho em relação à mãe, tanto quanto da filha para com o pai, motivada pela repressão físico-psíquica pode, segundo a óptica reichiana, converter facilmente as pessoas em homossexuais. E mais: essa situação pode ainda ser reforçada por experiências sexuais desastrosas com pessoas do sexo oposto. Assim fica bem claro o seguinte: uma ou outra experiência (autoritarismo dos pais e frustração em relação ao sexo oposto ) pode conduzir ao homossexualismo. Isso não quer dizer, evidentemente, que sejam os dois únicos casos determinados pelas relações sociais a levar o indivíduo à homossexualidade. E aqui, queremos registrar uma estória de Cassandra que se enquadra exatamente nessas categorias sociais: em seu livro A Borboleta Branca, São Paulo, 1968, a autora mostra que Fernanda, a personagem principal da estória, é vítima do desajustamento familiar e do autoritarismo do seu pai, Felipe, o que, provavelmente, poderia ter levado Fernanda ao homossexualismo. Nesse aspecto, a situação familiar vivida por Fernanda, desde a infância até se fazer moça, terminou lhe criando transtornos psíquicos. Como resultado disso, Fernanda torna-se homossexual. A constante repressão sexual que Fernanda sofria em decorrência do 84 autoritarismo de seu pai, torna-se um nítido exemplo de como a educação sexual burguesa pode conduzir ao homossexualismo. Mas é fora de dúvida que as causas do homossexualismo não se resumem apenas nos dois aspectos abordados. Seria errado acreditar-se nisso. Seria simplificar demais os problemas que envolvem a sexualidade. Estudiosos como Wilhelm Reich, La Lucha Sexual de los Jovenes, Granica Editores, Bue nos Aires, 1972, e Sigmund Freud, Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, Editora Imago, Rio, 1973, realizaram exaustivos estudos sobre o tema apresentando suas causas e conseqüências no âmbito da sociedade. A nós cabe, entretanto, não concordar com a postura conformista e aparentemente liberal que Cassandra Rios assume diante da homossexualidade. Por outro lado, assumir uma posição de animosidade em relação aos homossexuais, combatê-los e depreciá-los gratuitamente seria irrelevante e sem propósitos. É ter apenas uma visão míope da nossa realidade concreta. Na verdade, há que se entender o seguinte: na própria literatura de Cassandra, tanto quanto todos os casos de homossexualidade abordados por ela - a autora não menciona nenhum caso de anomalia física -, são simples produtos da sociedade capitalista, da moral cristã que, ao distorcerem a educação sexual do homem, ao dificultarem a relação normal entre homens e mulheres - veja o caso das prisões masculinas e femininas, colégio de freiras etc. -, os conduzem lentamente à prática da homossexualidade. Portanto, endossar simplesmente o homossexualismo é antes de mais nada endossar a própria tirania do Estado autoritário e castrador das reais potencialidades sexuais do ser humano; é justificar a instituição da barbárie como forma adequada para educar a sociedade. É também não perceber que há razões científicas e políticas para não se endossar o homossexualismo. É não entender que a homossexualidade “constitui um fenômeno puramente social, uma questão de educação e de desenvolvimento sexual” 5 e que a sociedade capitalista já nos transmite de forma doentia, defeituosa. Assim, ela sempre produzirá homossexuais. Portanto, não há que se opor aos homossexuais. Há, isto sim, que entender cientificamente a questão. E para isso nos valemos das palavras de Wilhelm Reich para melhor situar o problema: “ Antes de tudo é necessário preservar aos jovens de entregar-se definitivamente à homossexualidade, não por causas morais mas por motivos de pura economia sexual. Se pode comprovar que a satisfação sexual média no indivíduo heterossexual não é mais intensa que a do homossexual também são. E isto tem uma grande importância a respeito da regulação da economia psíquica. Aos muitos homossexuais que afirmam representar uma espécie sexual particular e não um caso de desenvolvimento sexual defeituoso, devemos opor-lhes o decisivo argumento seguinte: todo homossexual pode deixar de sê-lo seguindo um tratamento psíquico determinado; mas nunca sucede que um indivíduo normalmente desenvolvido se converta em homossexual depois de 5 Reich, Wilhelm, op. cit. p.97. 85 submeter-se a esse mesmo tratamento” 6. É nesse sentido, portanto, que não podemos concordar com as palavras de Cassandra Rios. Com sua obra menos ainda. Fazendo da homossexualidade seu tema predileto, a autora limita-se apenas à descrição de cenas amorosas entre homossexuais, sem nenhuma reflexão; sem nenhuma contribuição que possa facilitar a intelecção do problema, sem qualquer outra coisa que eventualmente problematizasse a gênese social da homossexualidade. A educação sexual burguesa e o sistema que a produz passam absolutamente impunes em toda sua obra, desde A Volúpia do Pecado até Nicoleta Ninfeta, sua primeira e última obra, respectivamente. E é bom lembrar mais uma vez que o leitor dos seus livros - talvez com raras exceções - é exatamente aquele leitor já imbuído dos valores culturais da sociedade burguesa. É aquele leitor que vê os homossexuais como depravados da sociedade, como pessoas que lhes causam até mesmo ojeriza, não admitindo inclusive sua inserção numa sociedade de “pessoas decentes”, de homens e mulheres normais segundo a concepção burguesa do “normal”. Mas, ironicamente, é também esse leitor de compra “escondidinho” seu livro de “sacanagem”, como costumam chamar, para ler muito escondidinho também e se degustar com a homossexualidade. Com a mesma homossexualidade que, perante a sociedade, ele repudia por considerar obscena, sem perceber, no entanto, que a maior obscenidade não reside propriamente no homossexual, mas única e exclusivamente no seu prazer em saber das relações homossexuais sem a mínima postura crítica ou apenas para repudiá-lo ainda mais como nos mostra o senso comum. Bem, mas os efeitos desses livros não param nisso. Apesar de escritores como Cassandra e Adelaide acreditarem no descomprometimento político de suas obras, o fato é que isso não ocorre. E seria ingênuo demais aceitar esse descomprometimento. Segundo Elíseo Verón (e nisso concordamos plenamente), nenhum texto está isento de uma leitura ideológica 7. E nesse caso é de suma importância que se análise as conotações ideológicas que envolvem a subliteratura. Aqui percebe-se uma estreita correlação entre sexualidade e dominação. Com a literatura de ambas as autoras (entre tantos outros), as relações sexuais, de como estão colocadas são submetidas ao fetichismo mercantil através do seu valor de uso reificado (a compra de um livro à procura do prazer sexual), tanto quanto são reduzidas tão somente à genitalidade. E mais: assim é que “en este caso las relaciones sexuales dejan de ser un asunto privado para tarnsformarse em problema político” 8. Nesse sentido, a sexualidade enquanto instrumento político de sistemas totalitários assume seu Reich, Wilhelm, op. cit. p. 96 Sobre esse aspecto, Eliseo Verón diz que “... la significación ideológica de un discurso reposa, no en su contenudodenotativo, sino en la ralación entre lo comunicado y las decisiones selectivas y combinatórias movilizadas para construir esse discurso”. “Hacia una Teoria del Processo Ideológico” in: El Processo Ideológico. Editorial Tiempo Comtemporaneo, Buenos Aires. 1971, p. 261. 8 Informe Del Seminario Interno Del Ceren Sexualidad, autoritarismo y lucha de classes. Distribuidora Baires S. R. L. Buenos Aires, 1974. 7 6 86 valor de mercadoria. Ela é proposta apenas enquanto objeto de consumo. Ou ainda como diz Jean Baudrillard ao analisar o erotismo funcional: “A sexualidade, juntamente com a beleza... é que orienta hoje por toda parte a ‘redescoberta’ e o consumo do corpo” 9. Nesse aspecto, a subliteratura está ideologicamente comprometida na medida em que se transforma no arauto da sexualidade fetichizada, reduzindo-a a mero engodo, dando-lhe conotações reacionárias. Mas há, pelo menos aqui, que se redefinir o papel político da sexualidade. E para isso lançamos mão das palavras de Norbert Lechner: “La sexualidad es una energia emancipadora, por cuanto apunta a una satisfación total solamente posible en una sociedad sin clases” 10. 0 Agora perguntamos: qual o resultado dessa subliteratura senão criar estereótipos sobre a sexualidade e reforçar ainda mais a repressão sexual via aparatos ideológicos do Estado? Veja, por exemplo, que tanto Cassandra Rios como Adelaide Carraro tiveram todos os seus livros proibidos à venda. Mas o recolhimento dessas obras pela censura federal não representa uma preocupação estética ou coisa semelhante para com a cultura brasileira. Significa, isto sim, apenas um comportamento político do Estado. Essas apreensões devem-se, fundamentalmente, ao fato de que essa literatura fere os valores da cultura afirmativa ao apresentar o corpo enquanto instrumento de prazer. Porém, é bom que se diga, não se trata propriamente do prazer; mas de um pseudoprazer, do prazer fetichizado. E “a proibição de oferecer o corpo no mercado, como instrumento de prazer, em vez de instrumento de trabalho, é uma das raízes sociais e psíquicas fundamentais da ideologia burgueso-patriarcal” 11. Assim, a subliteratura, enquanto pseudo-prazer, assume mais uma vez a função de engodo, do grande público, na medida em que passa a servir de “válvula de escape” aos instintos sexuais reprimidos em virtude da instrumentalização do corpo, imprescindível ao modo de produção capitalista. E na impossibilidade do prazer corporal com outra pessoa - já que para isso é necessária a não instrumentalização do corpo -, adquire-se o pseudoprazer através da subliteratura - entre outras formas -, reforçando-se ainda mais a individualidade burguesa. “Mas a idéia do amor exige a superação, a nível individual, do isolamento monádico. Pretende a entrega profunda da individualidade à solidariedade incondicional entre pessoa e pessoa. Numa sociedade em que a oposição dos interesses é o principium individuations, esta entrega perfeita só se dá, só acontece na sua forma pura, na morte” 12. É nesse quiproquó que reside a aparente ambigüidade ideológica da subliteratura. Se, por um lado, ela subverte os valores da moral burguesa, tratando quase sempre da sexualidade ainda que grotescamente, por outro, ela se torna conivente com a ideologia dessa sociedade, ao se transformar num tipo especial de adulação astuciosa. Baudrillard, Jean. A Sociedade de Cunsumo. Edição 70, Lisboa, 1975, p. 221. Informe..., op. cit., p. 43. Marcuse, Herbert e outros. “Sobre o Caráter Afirmativo da Cultura”, in: Cultura e Sociedade, Editora Presença, Lisboa, 1970, p. 90 12 Idem, p. 83. 10 11 9 87 Entretanto, a subversão desses valores diz respeito apenas à forma como a sexualidade é abordada; não ao conteúdo das estórias. E isso domina toda a subliteratura. Vejamos, por exemplo, um trecho do livro A Falência das Elites de Adelaide Carraro: “Ela sentiu sua intenção. Virou-se e o abraçou desesperadamente, para pedir que não a desrespeitasse. Tossiu na angústia do mal que por dentro minava seu corpo. A negativa morreu-lhe nos lábios. O sangue esguichou mais uma vez, encharcando todo o peito do rapaz. Ele, como alucinado, deitou-se em cima de Inês. Suas narinas inflavam, dilatadas, e seus olhos esbraseados tinham uma fixidez estranha. Uma dor aguda, dilacerante, fez com que ela gritasse. Nova golfada de sangue inundou sua boca e, afogada na hemoptise, Inês foi vigorosamente possuída pelo noivo. Ela choramingava, indefesa. Uma semana depois, ela estava Internada no sanatório à espera, diariamente, da visita do noivo. Esta visita aconteceu numa tarde de sol flamejante. O sorriso desapareceu dos lábios de Inês quando Luís chegou ao seu apartamento no sanatório São Pedro. - Por que me chamou? Não leu minha carta? - Mas Luís, você enlouqueceu? - Ora, Inês, para que fazer cenas? Já deixei bem esclarecido, na carta que lhe enviei, porque não posso me casar com você. - Luís, agora que há um filho no meu ventre! Você será o pai. Você sabe disso! O jovem empalideceu e replicou mais violento: - Pai? Sei lá se o filho é meu? - Sinto muito, Inês, mas não posso me casar com você. O melhor que você tem a fazer é tirar essa criança. - Oh! Luís, pense nos meus pais, na minha família, em mim, na minha idade! Tenho apenas dezessete anos!” 13. Pois bem, a forma de como a autora descreve o estupro de Inês detalhadamente - é que subverte os valores da moral burguesa. Todavia, a autora toma como parâmetro para condenar o estupro, a importância da virgindade, a situação de Inês - agora grávida diante dos pais -, enfim, determinados valores inerentes a essa moral, sem dar importância ao estupro enquanto uma violentação da liberdade individual, enquanto manifestação da sexualidade patológica, do sadomasoquismo. Além disso, ela não vê que a relação amorosa entre ambos não surge espontaneamente; mas principalmente da coisificação de um pelo outro. E é nessa visão que reside o caráter reacionário da obra. Alguns de seus livros, entretanto, não apresentam somente a temática do erotismo. Eu e o Governador, O Comitê, Eu Mataria o Presidente, entre outros, são obras cujos temas giram em torno do binômio politico-erótico. Valendo-se de experiências pessoais em diferentes fases da sua vida, a autora denuncia a corrupção dos políti13 Carraro, Adelaide. Falência das Elites, Editora L. Oren Ltda., São Paulo, 5ª edição, 1974, p. 30s. 88 cos em época de eleições, suas promessas nunca cumpridas, o abuso da autoridade, enfim, um sem número de casos já sobejamente conhecidos do grande público. Entremeada a isso, aparece sempre a sexualidade. É o caso, por exemplo, de Eu e o Governador, onde o político corrupto promete bom emprego à jovem elegante e bela, desde que, em troca dessas “vantagens”, ela lhe ofereça seu corpo. A rigor, a obra de Adelaide Carraro - não obstante a visão reacionária da sexualidade - comparada à de Cassandra Rios, que se perde obsessivamente na estereotipia do homossexualismo, assume uma posição bem mais crítica em relação à sociedade. E nesse hibridismo político-herótico, a autora - à sua maneira - pelo menos se mostra bem intencionada. E isso ficou bem claro nas suas palavras durante a entrevista: - O que você visa com suas denúncias políticas? R: “Um Brasil melhor; com liberdade que não tem mais, mais reformas. É tudo! O governo acha que a violência resolve, mas fica a razão, por isso não adianta matar”. Está aí, portanto, a forma como a autora encara suas incursões na política brasileira. Ora, se a subliteratura em geral plasma-se na ambigüidade ideológica, como mostramos anteriormente, com Adelaide então - pelo menos parte significativa de sua obra -, essa ambigüidade ganha ainda mais consistência. Verifica-se uma verdadeira barafunda ideológica que é sem dúvida alguma decorrente muito mais da sua experiência empírica, da sensibilidade humanitária e bem menos da visão crítica sobre a realidade brasileira. É bem verdade que, se comparada com os demais autores que nada ou quase nada apresentam nesse sentido, ela é, sem dúvida, a mais lúcida. Nesse sentido, essa barafunda ideológica tornar-se-ia perigosa se permanecesse como algo inextricável, como algo sem solução. Ela tem suas explicações, que para nós residem muito mais nas experiências individuais da autora, na sensibilidade humanitária (o que evidentemente não invalida seu trabalho), do que propriamente na intenção política de conscientização do seu público leitor, sobre os problemas que o cercam. E mais: isso é verdade, se observarmos que a autora trata superficialmente do problema. Suas denúncias ficam apenas ao nível pessoal. Elas são dirigidas contra a falta de humanidade de determinados governadores e presidentes e não ao regime político que representam. Assim, a possível conscientização do seu leitor se desvanece nesse momento; como provavelmente se desvaneceu no decorrer do tempo com a sucessão de políticos desumanos e desinteressados por aqueles “mais humanos” e “atenciosos”. Resta lembrar ainda que, irrefletidamente, a simples substituição de políticos pode levar a autora, e por extensão o seu público, a ter uma falsa visão da realidade concreta. E isso, obviamente, redundaria na reafirmação ideológica do sistema político. Portanto, a nosso ver, é na ingenuidade política de Adelaide e na forma estereotipada pela qual aborda a sexualidade, que reside todo o teor alienante da sua obra. 89 8. O Som dos Modernistas “Toda a arte nasce de uma concepção ideo lógica do mundo; uma obra de arte inteira mente desprovida de conteúdo ideológico é coisa que não existe”. G. Plekhanov A Semana de Arte Moderna de 1922, realizada no Teatro Municipal de São Paulo apresenta, seguramente, um dos momentos mais significativos de toda a produção cultural brasileira. Sua ressonância foi suficientemente grande, a ponto dos intelectuais discutirem-na até hoje. Aliás, ela só varou o tempo em função justamente do seu caráter inovador e revolucionário, que contrastava com a arte passadista do Romantismo do século XIX. À primeira vista, o comportamento irreverente de Oswald de Andrade e de seus amigos parecia ter o endereço certo : a burguesia conservadora que relutava, brigava para não aceitar as inovações estéticas introduzidas pela Semana. No entanto, a repercussão do trabalho dos modernistas superou até mesmo os próprios participantes do movimento. Não é à toa que a Semana serve de grande “divisor de águas” da arte brasileira. Com o evento de 1922, as artes no Brasil alteram o seu rumo em cento e oitenta graus. E quem ganhou com isso, com essa verdadeira revolução das concepções estéticas até aquele momento, foi a produção artística do nosso país. A música. nosso interesse específico neste ensaio, foi uma das manifestações (paralelamente às artes plásticas e à literatura) mais significativas da Semana. Foi ela, com certeza, a modalidade que gerou os protestos mais contundentes e agressivos presenciados em toda a história do Teatro Municipal. Basta ver, por exemplo, o que aconteceu ao artista Nascimento Filho, o “Pequenino”, como era conhecido entre os amigos. Após revidar as provocações da platéia durante sua apresentação, foi agredido ao sair do teatro por um grupo que não aceitava os propósitos da Semana. Nascimento ganhou fortes hematomas nos olhos, além de escoriações generalizadas em seu corpo. Em suma, apanhou muito. Mas, a presença da música no movimento modernista de 22 tem antecedentes de grande importância. Vale à pena, até mesmo por uma questão didática, voltarmos um pouco atrás no tempo para entendermos melhor o binômio música/modernismo de 22. Rigorosamente, essa trajetória inicia-se com um projeto do escritor carioca Coelho Neto, um pouco antes da inauguração da Sema- 91 na de Arte Moderna. Intitulado de “Poema Sinfônico Brasil”, esse projeto pretendia se valer da música para dar uma visão geral das diversas fases por que passou o Brasil. O objetivo era abarcar desde o século XVI (antes mesmo do descobrimento) até o centenário da Independência. Para sua plena realização, o autor do projeto resolveu dividi-lo em três grandes ciclos com funções específicas: 1. O primeiro ciclo nos daria uma visão do que foi o descobrimento do Brasil, da participação do indígena e dos primeiros contatos com o português; 2. O segundo ciclo se poria à análise das relações do homem nativo com a terra e seu catequizador. Paralelamente a isso, estaria inclusa a situação do negro na condição de escravo. O músico teria que trabalhar esses acontecimentos através da linguagem musical de tal forma a ser suficientemente entendido; 3. Este terceiro ciclo deveria mostrar a luta do homem nativo pela posse da terra. Através da música, o ouvinte deveria associar todo o sentimento nativista e o desejo de liberdade que culminaria com a nossa independência. Mas, o projeto de Coelho Neto (deveria ser realizado através de concurso) não deu os resultados esperados. Entre outras coisas, porque era inviável, naquela época, se fazer uma espécie de “reconstituição histórica” do país. O fato é que ele era extremamente grande e audacioso. Embora como idéia fosse respeitável. Seja como for, ele teve sua importância. É precisamente da concepção nacionalista do projeto de Coelho Neto que vamos notar a presença do “verdeamarelismo”, uma espécie de facção do movimento modernista na Semana de 22. Nesse momento, portanto, vê-se a música envolvida com a ideologia do nacionalismo. Há aqui, uma perfeita consonância entre música e ideologia formando uma idéia que pretende dar uma visão históricocultural do Brasil. Havia ainda um aspecto muito significativo no Projeto Brasil. Era de nítido interesse dos seus organizadores, que os compositores participantes se valessem dos ritmos característicos da nossa música popular. Assim, os jongos, modinhas, cururus, cateretês, catiras, fandangos, quero-mana, dão-dão, canaverde, enfim, todos os ritmos populares deveriam ser trabalhados na música erudita e na especificidade de uma nova estética. Isso foi, sem dúvida, de grande valia para a música brasileira. Vale dizer ainda, que Heitor Villa-Lobos, Luciano Gallet e a grande maioria dos compositores modernistas já faziam uso do folclore em suas composições. No entanto, um dos maiores problemas do poema-sinfônico “Brasil” foi o fato de ter se restringido basicamente a São Paulo e Rio de Janeiro. Certamente por isso, e por sua amplitude, esse projeto ficou restrito apenas ao seu próprio desejo de realização. Ainda assim, vemos nele alguns modernistas desenvolvendo seu trabalho que posteriormente apareceria na Semana de Arte Moderna. É nesse momento, precisamente, que a arte brasileira (entre elas, a música) desponta ao lado de uma nova concepção estética. Abandonando toda a arte passadista do século XIX e a concepção de 92 uma arte bucólica, voltada para a reprodução da natureza (até então em voga), os modernistas procuraram novos caminhos. É dessa inquietação que alguns compositores como Henrique Oswald, Luciano Gallet, Ernani Braga, Heitor Villa-Lobos, Fructuoso Vianna, entre outros, levam ao Teatro Municipal de São Paulo uma nova ordem estética no plano musical. A arte musical brasileira, procura agora, uma identidade maior com as vanguardas européias. Stravinsky, Eric Satie, Poulenc, além do próprio Villa-Lobos, serão os grandes inspiradores da “revolução musical” brasileira. Informados do que ocorria na Europa através da La Revue Musicale, nossos compositores davam livre curso à sua criatividade sem no entanto, importar simplesmente a arte européia. É claro, a ressonância dessa arte continuava (como até hoje) com muita força. No entanto, já se sentia, se via no trabalho dos compositores modernistas, uma arte musical brasileira de alto nivel. Tão boa, tão impressionantemente boa, que o famoso pianista Arthur Rubstein não resistiu. Numa excursão profissional que fez ao Brasil, após ouvir composições de Villa-Lobos, resolve incluí-las em seu já rico repertório, formado por uma elite de grandes compositores europeus. Assim, VillaLobos tornou-se o primeiro latino-americano a ingressar no fechadíssimo “clube” de Arthur Rubstein, do qual já participavam Prokofiév, Stravinsky, Albéniz, entre outros. Villa-Lobos foi, sem dúvida, a grande expressão musical da Semana de Arte Moderna. Seu talento, certa vez, foi motivo de discussão entre Coelho Neto e o poeta Manuel Bandeira. Apesar de admiradores do trabalho de Villa, eles tinham opiniões diferentes. Para o poeta, Villa era um músico de muito talento, e isso já era o suficiente. Dessa discussão, vale à pena registrar o comentário de Manuel Bandeira em “andorinha, andorinha”, sobre a obra de Villa: “ A música de Villa-Lobos é uma festa de timbres, uma golfada de ritmos onde os motivos selvagens constituem o substrato de humanidade profunda que sustenta o edifício sonoro”. Certamente nas palavras de Manuel Bandeira estava o consenso sobre o trabalho de Villa-Lobos. Até mesmo os críticos mais conservadores (ou desinformados da emergência de uma nova estética musical?) e inimigos da Semana, como Oscar Guanabarino, por exemplo, respeitavam o trabalho de Villa-Lobos. Mas, num certo momento, inconformado com a revolução estética que se verificava na Semana, o crítico carioca sai com a seguinte frase: “0 sr. Villa-Lobos pelo seu talento musical, bem merecia não se ter metido com a meia dúzia de cretinos que tansformaram o nosso Municipal em dois espetáculos memoráveis pela sandice, numa desoladora grita de feira”. Esta observação de Guanabarino está contida no jornal, Folha da Noite, de 18-2-1922. Mas, a unanimidade, com certeza, era uma coisa muito distante da Semana de Arte Moderna. Como todo movimento cultural revolucionário, este também criou cisões internas, sofreu pressões das alas conservadoras às inovações estéticas. Por outro lado, evidentemente, foi exaltado por aqueles que entenderam seus reais propósitos. Este fato, nada mais é do que o confronto de idéias passadistas, de um 93 lado, e futuristas de outro. A Semana, entre outras coisas, se transformou numa espécie de “iconoclasta dos grandes mitos”. Oswald de Andrade, por exemplo, pôs sua vivacidade, inteligência e perspicácia a serviço da Semana. Sempre irreverente, ele não perdoava o trabalho das grandes figuras do passado, mas que continuavam a ser “endeusadas” pela ala conservadora dos críticos. Certa vez, analisando a importância do movimento modernista e respondendo às provocações da ala conservadora, Oswald foi implacável com a obra de Carlos Gomes. Ele era, na verdade, o grande mito da música erudita antes do modernismo: “Carlos Gomes é horrível. Todos nós o sentimos desde pequeninos. Mas como se trata de uma glória da família, engolimos a cantarolice toda do ‘Guarani’ e do ‘Schiavo’, inexpressiva, postiça, nefanda.” É isto o que diz Oswald de Andrade, no Jornal do Comércio, de 12/2/1922, sob o título, “Semana de Arte Moderna”. Por causa desse artigo, Oscar Guanabarino “abre fogo”, indiscriminadamente, contra todos os participantes da Semana. Ele considerava as palavras de Oswald um autêntico ultraje à figura de Carlos Gomes. Coube a Menotti deI Picchia, no entanto, travar com Guanabarino, uma verdadeira guerra de palavras e insultos extremamente pesados. A briga foi feita pelos jornais, em três artigos para cada um. Deixando a questão intelectual de lado, tanto Menotti, quanto Guanabarino, passam as agressões para o plano pessoal, tirando todo o caráter polêmico da discussão estética. Era hora de parar. Sobrou depois disso, a velha e desgastada rixa regionalista entre São Paulo (de Menotti) e Rio (de Guanabarino). Coisa de criança; nada mais. Mas, cumpre assinalar, que as divergências decorrentes da Semana foram mais longe. As cisões internas ao movimento, por exemplo, são significativas. Apesar de todos os participantes terem os mesmos objetivos, a forma de atingí-los, no entanto, divergia de um grupo para outro. Foi o que se verificou com a corrente literária verdeamarela liderada por Plínio Salgado. Como se sabe, foi ele durante toda sua vida, o fiel representante da doutrina integralista em nosso país. Apenas para lembrar, o integralismo era uma espécie de fascismo à moda tupiniquim. Oswald de Andrade, no entanto, jamais aceitou os integralistas. Em seus escritos dos anos trinta (artigos de jornais e crônicas), sempre que se referia ao discurso pomposo da ordem integralista, aproveitava para intitulá-los de “jacarés falantes do integralismo”. Vide seu trabalho, “Só para homens”, Telefonema, Obras Completas, Civilização Brasileira, 1974. Esse é apenas um exemplo de tudo aquilo que aconteceu em conseqüência da Semana. E rigorosamente, as divergências são muito mais profundas. Elas envolvem, claro, até mesmo questões ideológicas. Coexistiram claramente, pelo menos duas grandes correntes ideológicas no movimento modernista: sua ala direita e a outra ala, a quem não se pode atribuir propriamente tendências esquerdizantes. Pode-se falar, isto sim, de uma ala de oposição. Com certeza, era uma ala de resistência às idéias daqueles membros que compunham a ala direita. 94 Com muita clareza e argúcia, Gilberto Vasconcellos (Batatais) analisou essa questão. Num certo momento do seu trabalho, Ideologia Curupira, Editora Brasiliense, 1979, o autor trata do caráter autoritário da corrente literária verde-amarela, mas não se satisfaz em parar aí. Mais adiante, ele nos dá uma visão muito inteligente das divergências políticas e ideológicas da Semana de Arte Moderna: “Um dos aspectos mais delicados do movimento de 22 é, sem dúvida, a presença marcante de um setor reacionário. Se o modernismo trouxe nova visão da realidade brasileira e, ao mesmo tempo, revolucionou a linguagem literária, como então explicar a atitude intelectual de um Plínio Salgado, futuro líder fascista; Menotti del Picchia, verboso e nacional-populista; Tasso da Silveira, representante do autoritário grupo “Festa”; Cassiano Ricardo, adepto do ufanismo verde-amarelo? Não se pode, é claro, considerá-lo uma experiência homogênea do ponto de vista estético e político. Há, em verdade, modernismo e modernismo. Isto é, uma ala radical, crítica, comprometida com a pesquisa literária; outra, passadista, academizante, reacionária do ponto de vista político e diluidora do ponto de vista artístico.” Está, assim, caracterizada, nos parece, a grande confusão, o grande choque de idéias que foi a Semana. No plano especificamente musical, houve alguns desentendimentos que merecem destaque. Como nas outras modalidades artísticas, também na música havia uma ala que não aceitava inteiramente os propósitos modernistas. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os pianistas Ernani Braga e Guiomar Novaes. Aliás, aqui cabe uma observação: ambos artistas participaram fundamentalmente como instrumentistas. Eles não se envolveram nas questões estéticas da Semana. Guiomar Novaes, por exemplo, participou como se estivesse participando de qualquer outro evento musical. Ela não tinha, na verdade, consciência dos propósitos da Semana. Considerados artistas de grande talento (segundo Villa-Lobos, os dois melhores pianistas da Semana), ambos tiveram pequenos desentendimentos com seus companheiros justamente porque não concordavam com o comportamento deles. Ernani Braga, como se sabe, chegou a discutir com Villa-Lobos (moderadamente, é verdade) por causa da forma de executar “Fiandeira”, peça de Villa. Embora um pouco longo, vale a pena tomarmos conhecimento do incidente através das próprias palavras de Ernani Braga: “Lembro-me que tinha de tocar a ‘Fiandeira’ de Villa-Lobos, entre muitas outras cousas. Dias antes executara essa peça, que era a mais recente do meu querido amigo, em casa do professor Luiz Chiaffarelli, para um grupo de discípulas suas e convidados. Villa-Lobos estava presente. Quando eu acabei, ele se levantou, de olhos arregalados, e declarou energicamente no meio da sala que aquilo que eu tocava não era dele. Foi um sucesso. Expliquei, então, aos ouvintes, que o autor exigia na peça, e principalmente no final, um pedal contínuo que me parecia insuportavelmente cacofônico. Chiaffarelli pediu ‘bis’ para a ‘Fiandeira’, com o pedal do autor. Fiz a vontade do velho mestre. E todos pareceram muito contentes com a 95 cacofonia, inclusive Villa-Lobos que me abraçou entusiasmado. Só quem não gostou foi Chiaffarelli. Tomou-me a um canto, e me aconselhou: -use o pedal como da primeira vez, o Villa não é pianista; você é quem está com a razão. - Pois bem, quando no meio da perturbação em que eu estava pelos incidentes daquela noite fatídica, chegou o momento da ‘Fiandeira’, fiquei sem saber o que devia fazer. Com pedal ou sem pedal ? Villa-Lobos ou Chiaffarelli ? Seguindo o conselho do mestre acatado podia provocar um protesto do autor, e dessa vez diante de um público já meio zangado. Ataquei a peça litigiosa em plena turbação de sentidos. E reduzi-a à quarta parte, porque me perdi no meio, e me achei sem saber como, na última página. O auditório gostou daquela peça tão viva, tão extravagante e ...tão curtinha. Por isso aplaudiu muito, não dando tempo a Villa-Lobos de protestar. Chiaffarelli depois me felicitou por eu ter encontrado a fórmula exata de resolver o problema. Além de mestre admirável de arte pianística, era Chiaffarelli sutilíssimo na arte da ironia.” Este depoimento de Ernani Braga, “O que foi a Semana de Arte Moderna em São Paulo...”, encontra-se em Presença de Villa-Lobos, 2.0 volume, p. 68-69. Não menos aborrecida e desapontada ficou a pianista Guiomar Novaes. Isto porque, a Semana terminou apresentando uma divisão muito clara, como vimos anteriormente. De um lado, os virtuoses, muito talentosos no piano e de muito prestígio junto ao público. Mesmo assim, e respeitando toda a condição profissional, Mário de Andrade fez críticas interessantes a esses instrumentistas, usando uma expressão muito significativa: a “pianolatria”. De outro lado, estava o grupo de cameristas (profissionais da música de câmera) cujo ponto alto estava nas apresentações do conjunto de Paulina d’ Ambrosio. Essa questão, aliás, passa a ser assunto de destaque na recémfundada revista Klaxon. E é precisamente, no primeiro número, que Mário de Andrade escreve seu ensaio intitulado “Pianolatria”. 0 melhor estudo que conheço sobre este tema é de José Miguel Wisnik. Analisando o problema com uma clareza incomum, o autor mergulha a fundo nos propósitos de Mário de Andrade e nos dá uma excelente visão de certos momentos do clima musical vivido na Semana de 22. Senão vejamos: “Nesse texto que se chama ‘Pianolatria’, Mário observa que São Paulo havia constituído uma brilhante tradição pianística (“a melhor da América do Sul”), que, no entanto, viciava o gosto do público, restringindo o repertório e promovendo a prática da interpretação sentimentalista. Chama a atenção exatamente para a grande disparidade existente entre o estudo do piano e dos demais instrumentos, o que motiva a pobreza da cultura camerística e sinfônica.” Mais adiante, o autor cita um artigo da revista Klaxon, onde fica bem claro o valor específico do piano na Semana: “Estamos ainda em pleno romantismo sonoro; e Chopin é o soluçante ideal de todas as nossas pianeiras.” Essas duas citações constam do livro de J. M. Wisnik, O Coro dos Contrários, Livraria Duas Cidades, 1977. E se a Semana se pautou sobretudo pelo desejo de uma renovação estética, de dessacralizar aquela arte passadista, não poderia, claro, deixar de acontecer pelo menos um incidente com a persona- 96 gem mais famosa entre os pianistas: Guiomar Novaes. Segundo Menotti deI Picchia ( em seu discurso meio picaresco, meio logomáquico) , “o ídolo canoro da gente paulista”. Após assistir a uma exibição de peças satirizando a música de Chopin, Guiomar Novaes fez sérias críticas à forma “irreverente e desrespeitosa” com que foi tratada a obra desse compositor: “Em virtude do caráter bastante exclusivista e intolerante que assumiu a primeira festa de arte moderna, realizada na noite de 13 do corrente, no Teatro Municipal, em relação às demais escolas de música, das quais sou intérprete e admiradora, não posso deixar de declarar aqui o meu desacordo com esse modo de pensar. Senti-me sinceramente contristada com a pública exibição de peças satíricas à música de Chopin. Admiro e respeito todas as grandes manifestações de arte, independente das escolas a que elas se filiem, e foi de acordo com esse meu modo de pensar que, acedendo ao convite que me foi feito, tomei parte num dos festivais de Arte Moderna.” Este depoimento consta do artigo, “Semana de Arte Moderna” (Artes e Artistas) , O Estado de São Paulo, 15 de fevereiro de 1922. As palavras de Guiomar Novaes refletem, entre outras coisas, seu inteiro alheamento aos propósitos da Semana. Elas comprovam, em definitivo, que sua participação foi meramente circunstancial (um convite de Villa-Lobos) , e não tinha a menor intenção de ajudar na proposta de uma nova estética musical, como pensavam outros modernistas. Estão aqui registrados, portanto, alguns momentos de tensão que de certo modo caracterizaram uma parte do ambiente musical da Semana de 22. Se, por um lado, parte do público presente ao Teatro Municipal de São Paulo, delirava de satisfação e de prazer com a apresentação de determinada peça musical (principalmente quando se apresentavam Guiomar Novaes ou Ernani Braga, considerados integrantes da ala conservadora), por outro lado ele também protestava quando via que seus interesses de classe (e não apenas de gosto musical) não eram inteiramente atendidos. Aquela platéia seleta, que no fundo gostava de ser vista como a elite cultural do país, não suportaria ver seus valores culturais, ainda que passadistas, serem substituídos por novos valores, por uma nova estética que revolucionaria a própria cultura brasileira. Por esses motivos, ela reagiu até com violência nos momentos em que se achava lesada em seus valores culturais. Foi assim, por exemplo, que ela se comportou quando Luciano Gallet tentou interpretar algumas peças de Ernesto Nazareth. Houve até intervenção policial. Nazareth não era reconhecido como compositor erudito. Aquilo era visto como uma afronta. Sua obra tem origens numa espécie de hibridismo musical onde estariam incorporados o maxixe, o lundu, o fado, enfim, um certo número de ritmos que abarca diferentes níveis culturais. Aliás, o próprio Ernesto Nazareth preferia que suas peças fossem chamadas de “Tango” e não de “maxixes”. Ele mesmo as chamava de Tango. Um rítmo de maior prestígio entre os compositores da música erudita. Universo do qual ele sempre quis participar. 97 Aí está, portanto, um panorama do que foi a Semana de Arte Moderna no plano da música. Como tudo aquilo que envolvia a arte da semana, a música também provocou protestos, aplausos, cisões internas, divisões em grupos e todo um conjunto de acontecimentos que só poderia mesmo ocorrer num movimento com novas propostas estéticas reais e exeqüíveis para a cultura brasileira. Volto a me valer das palavras de José Miguel Wisnik, desta vez para dar a idéia, a meu ver muito precisa, do que foi o movimento musical do modernismo: “Assim, o modernismo vai se opor, na música, aos vícios tardios do romantismo: o sentimentalismo que impregna a concepção interpretativa da obra nos pianistas, o culto do piano e do ‘virtuose’, a preferência pela escuta programática, tendente a converter as estruturas sonoras em quadros, paisagens, ‘sentimentos’, estórias.”. Este texto consta de sua obra já citada. Como todo movimento revolucionário (vide o Tropicalismo, o Formalismo russo do início deste século), a Semana de Arte Moderna também foi um acontecimento irreversível. É precisamente, a partir de 1922, de todo o trabalho cultural realizado pelos modernistas que se vê florescer no Brasil uma nova arte e uma nova consciência, cujos reflexos mais claros emergem nos campos da estética e da política. A Semana não morreu. Apenas o tempo é que passou. Suas idéias, sua ideologia, suas concepções vararam (só a grande arte consegue isso) o tempo e ressurgem nos anos sessenta/setenta com o movimento Tropicalista. Agora, no entanto, atualizando o discurso, a linguagem gestual, assumindo novos comportamentos, mas mantendo a intenção de renovação estética da cultura musical brasileira. Agora, os iconoclastas da cultura passadista não são mais Villa-Lobos, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Luciano Gallet. Coube a Gilberto Gil, Tom Zé, Caetano Veloso, Capinan, Torquato Neto, entre outros, realizarem a iconoclastia e retirar a música brasileira do marasmo em que se encontrava após a fase mais expressiva do movimento “Bossa-Nova”. A esses artistas (modernistas de 22, da “Bossa-Nova” – viva João Gilberto -, e do Tropicalis-mo) , devemos a beleza e o aperfeiçoamento da estética musical brasileira. Parece até que todos eles combinaram em levar à risca o pensamento do esteta e filósofo austríaco Ernst Fischer, quando diz que “a função da arte não é a de passar por portas abertas, mas a de abrir portas fechadas”. Foi precisamente isso o que fizeram os artistas da Semana de 22, do movimento “Bossa-Nova” e do Tropicalismo. Uma coisa eles têm em comum: desconheciam a redundância. Sua criatividade jamais permitiria “passar por portas abertas”. É provável que todos eles tivessem consciência de que o talento é o ponto antípoda da mesmice. Por 98 9. Aspectos Sociopolíticos do Futebol Brasileiro um breve histórico O desenvolvimento dos esportes em nosso país, pelo menos até nossos dias, tem sido prescindível, em face de outros problemas considerados mais importantes. Embora polêmico (e talvez por isso mesmo), este é um assunto recorrente nos congressos, simpósios ou mesas-redondas que pretendem discutir o esporte brasileiro. As opiniões são sempre divergentes. Há quem defenda a participação ativa e direta do Estado no sentido de estimular, de algum modo, o aprimoramento dos atletas praticantes de esportes amadores. E há, em contrapartida, aqueles que acreditam mais no incentivo do capital privado. As empresas, através de incentivos fiscais, investiriam no esporte, “substituindo” a efetiva participação do Estado.Nos últimos vinte anos (desde 1979) tem sido essa a opção brasileira. Pelo menos em boa parte dos esportes amadores. Analisar a questão a fundo exigiria uma discussão muito longa. Ultrapassaria os objetivos deste ensaio. Provavelmente, e logo de início, teríamos de pensar nas questões ideológicas que envolvem as relações entre Estado, sociedade e capital privado. De qualquer modo, o tema é importante e pouco estudado. Um dos primeiros trabalhos nessa direção é do sociólogo alemão Gerhard Vinnai, intitulado Fussballsport als Ideologie,de1970. No Brasil, ainda em 1882, Ruy Barbosa, presidente da comissão estadual de ensino, enfatizou a importância da educação física no currículo das escolas primárias. Não houve qualquer receptividade à sua proposta. Essa atividade ficaria por conta do interesse pessoal de alguns poucos brasileiros que já haviam estudado na Europa, onde adquiriram o hábito do exercício físico. Ao lado deles, deve-se registrar ainda a voluntariedade de imigrantes italianos, portugueses, espanhóis, entre outros. Esse estímulo, no entanto, não bastaria. Não conseguiria sensibilizar o brasileiro a praticar exercícios físicos de forma mais sistemática. Tanto é assim que, só em 1888, surgiu no Rio Grande do Sul o primeiro clube de regatas do Brasil. Sete anos depois, em 1895, se realizavam, no Rio de Janeiro, as primeiras competições de natação e corridas de bicicletas. Aqui, só tomaríamos contato com o football em 1894. Charles W. Miller, brasileiro filho de ingleses, estudava em Londres. Ao voltar para o Brasil (São Paulo), em sua bagagem trouxe uma bola de futebol. Praticante e entusiasta desse esporte, Charles Miller tratou de 99 difundi-lo entre os ingleses residentes em São Paulo que se interessavam mais pelo jogo de cricket. Aos poucos, porém, os ingleses, altos funcionários da Companhia de Gás, do Banco de Londres e da São Paulo Railway iriam aderir ao futebol. Assim é que o São Paulo Athletic Club, fundado especialmente para a prática do cricket, introduziria, em seu espaço lúdico, em 1887, a nova modalidade esportiva importada por Charles Miller. 0 primeiro “grande” jogo foi realizado em São Paulo, em 1899, na presença de 60 torcedores. Um acontecimento singular. Os adversários eram um time de funcionários da Empresa Nobiling, contra os ingleses da Companhia de Gás,da SãoPaulo Railway e do Banco de Londres. O resultado final era previsível: 1x 0 para os ingleses. Ao contrário do que possa hoje parecer, o futebol brasileiro nasceu e se desenvolveu entre a elite. Os colégios grã-finos, tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo, passariam, a partir da primeira década deste século, a adotar o futebol como forma de recreação para seus alunos. É o caso do AngloBrasileiro, dos colégios militares, entre outros. Por se tratar de um esporte elitizado, que dava status, os próprios pais de alunos faziam um tipo de pressão para que os colégios incluíssem o futebol nas práticas esportivas. Surgiriam, a partir daí, bons jogadores que logo se integrariam aos clubes das tradicionais famílias. O Clube Athlético Payssandu (Rio de Janeiro), o Germânia (atual Pinheiros), o São Paulo Athletic, entre outros. Rapidamente, o futebol se propagaria por São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1903, os aristocratas do café, da Associação Athlética Ponte Preta, formam o que seria o primeiro time de futebol organizado do Brasil, segundo registros oficiais da CBF Confederação Brasileira de Futebol. Surgem também, na década de 10, o The Bangu AthIetic Club, o Carioca, o Andaraí, o Mangueira, o Fluminense, o Vila Isabel e o Sport Club Corinthians Paulista. Bangu e Fluminense merecem destaque,justamente por suas oposições no quadro social. Se este último corroborava a tradição elitizante do futebol em nosso país, localizado no elegante bairro do Retiro da Guanabara, o mesmo já não acontecia com o The Bangu Athletic Club, apesar.da “nobreza” do nome escrito em inglês. Ainda que fundado por altos funcionários ingleses da Cia. Progresso Industrial do Brasil, o Bangu, pela própria condição geográfica, sempre teve tendências proletárias. Localizada na periferia distante, num bairro proletário, a Cia. Progresso iria estimular o futebol entre seus executivos, como forma de lazer. Mas, como formar dois times para competirem, se o número de funcionários mais graduados e interessados nesse esporte não chegava a tanto? A alternativa seria aceitar operários para completar as duas esquadras. 0 critério de escolha, para isso, obedecia a algumas exigências administrativas na empresa, tais como: o desempenho profissional, o tempo de serviço e o comportamento pessoal. Surgiria, assim, o primeiro time de futebol no Brasil não inteiramente elitizado. Mas, como se vê, por questões meramente circunstanciais. Desse contexto surgiria, mais tarde, o time proletário do Bangu. 100 O privilégio de ser escolhido criaria uma nova categoria profissional de operário que, a partir de agora, chamaremos de “operáriojogador”. Eles formariam a “elite operária do futebol” e teriam algumas regalias por isso: passariam a fazer um trabalho mais leve, para que sua energia se concentrasse também no futebol. Nos dias de treinos poderiam deixar o serviço mais cedo. Quase sempre os operários jogadores eram mais rapidamente promovidos. Em suma, eles eram discretamente protegidos pela diretoria da empresa. 0 contato mais informal no campo de futebol com os altos funcionários ingleses poderia também se converter numa vantagem a mais. Mas, em pouco tempo, com a contínua popularização do futebol, o time do Bangu se tornaria mais conhecido que a própria Cia. Progresso. Apartir daí, o The Bangu passaria a ser também eficiente veículo de publicidade da companhia inglesa. Os operários jogadores já não eram apenas alguns trabalhadores a mais. Pelas circunstâncias e em face da crescente popularidade do futebol, eles seriam transformados também em eficiente veículo de divulgação da empresa. Nas excursões que faziam para jogar em outras cidades, a presença de operários criava uma imagem simpática do time e, por extensão, da própria empresa junto ao público. Desse modo pode-se pensar hoje que existiu no Bangu, no início da sua história, uma espécie de “elite operária do futebol”. Os notórios privilégios por integrar a equipe da Cia Progresso criavam uma verdadeira luta silenciosa entre os trabalhadores. Tornar-se jogador significava também a garantia do emprego. Nessa época, como em nossos dias, a economia já era débil. A industrialização durante toda a Velha República praticamente inexistia. Mesmo com a abolição da escravatura, um dos principais entraves ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, pouca coisa mudaria no tocante à produção industrial. Vivíamos a passagem do artesanato à manufatura. Este sim, e apesar de tudo, um momento relativamente significativo. A produção e o consumo causariam certo impacto sobre outros segmentos da economia e, por decorrência, na estrutura social. Não obstante, a forçade trabalho nativa, composta em sua maioria de homens despreparados, não tinha como competir com a mão-de-obra imigrante que aqui chegava. Como diz o brasilianista Warren Dean, “os imigrantes, freqüentemente mais alfabetizados do que a classe brasileira inferior, trouxeram habilidades manuais e técnicas que raro se encontravam no Brasil” 1. A estrutura econômica do país, pode-se ver, não tinha como absorver a força de trabalho disponível. Vivíamos, fundamentalmente, da monocultura cafeeira e de uma economia agrária pouco expressiva. 0 processo de industrialização só surgiria mesmo, de forma mais sistemática, a partir dos anos 30. Nesse aspecto, a Cia. Progresso tem um caráter duplamente pioneiro. Foi uma das primeiras indústrias de manufatura têxtil do país, quando ainda não se pensava objetivamente numa política industrial. 1 Warren Dean, “A Indústrialização Durante a República Velha”, in Boris Fausto (org.) História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, volume 8, o Brasil Republicano, São Paulo, Difel, 1985, p.252. 101 Além disso, transformou a imagem da empresa numa instituição vitoriosa, graças as conquistas do Bangu nos campos de futebol. A população associava os tecidos Bangu (era esse o nome da produção têxtil da Cia. Progresso) ao vitorioso time de futebol. Dos fatos acima emergem algumas questões quanto à democratização do futebol no Brasil originar-se no Bangu. A grande contribuição, volto a repetir, foi o aspecto geográfico. Não fosse este clube localizado no longínquo subúrbio carioca e sim mais próximo da cidade, ou dos outros clubes de elite, dificilmente teríamos operarios, juntamente com executivos ingleses, vestindo a camisa do mesmo time. Segundo Anatol Rosenfeld, há ainda outro aspecto para a democratização do futebol no Bangu: a própria produção industrial da empresa. Para ele, o lazer através do futebol seria o estimulante para o aumento da produção da empresa. Os ingleses “ viram-se obrigados a recorrer aos operarios da fábrica, estimulados pela direção esclarecida, que provavelmente soubera que os fabricantes de tecidos ingleses na Rússia fomentavam o futebol entre os turnos para animar sua disposição ao trabalho e seu “esprit de corps” 2. De fato, a partir de 1908, os operários passariam a treinar regularmente no campo da empresa. Em pouco tempo, a esquadra banguense já estava formada exclusivamente de operários. O time passaria a representar prestígio para a fábrica, o que obrigaria o bom senso de seus diretores a dar ainda mais atenção ao futebol. Ao mesmo tempo e aos poucos, os executivos ingleses começavam a ceder seu lugar no time para o operário mais habilidoso com a bola. E ao contrário de outros times da elite carioca, o Bangu era o único que aceitava negros. Mesmo assim, com algumas restrições, como mostra Mário Filho ao se reportar a esquadras como Botafogo e Fluminense: “O jogador preto não podia aprender com o professor. Só jogando no The Bangu, só sendo operário da Cia. Progresso Industrial do Brasil. E assim mesmo um ou outro. O The Bangu deixando preto entrar no time, não fazendo questão de cor, de raça, mas não exagerando” 3. a luta política pelo profissionalismo Mas, a partir da segunda metade dos anos 20, com a crescente popularização do futeboi, surgiriam os primeiros grandes impasses. A frágil democracia banguense estava seriamente comprometida. Algumas contradições precisariam ser resolvidas, mas envolviam questões sociais e políticas difíceis de serem contornadas. Dessas destacam-se: I. Apesar da popularização espontânea do futebol, alguns clubes do Rio e de São Paulo relutavam em aceitá-la, boicotando qualquer medida administrativa nessa direção; 2 Anatol Rosenfeld, “O Futebol no Brasil”, in Revista Argumento nº 4, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1973, p. 67. 3 Mario Filho, O Negro no Futebol Brasileiro, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1964, p. 60. 102 lI. Tanto jogadores e público pertenciam às classes mais abastadas. Assim, não haveria motivos para se profissionalizar esse esporte. Afinal, o futebol poderia se manter só com a venda dos ingressos ao público elitizado; III. Os clubes de subúrbio, portanto não elitizados, começavam a “roubar” o espetáculo, apresentando bons jogadores. 0 Vasco da Gama, por exemplo, já levava pequenas multidões aos seus jogos; IV. Mas o maior impasse era profissionalizar ou não o futebol. Por mais que se relutasse, que alguns presidentes de clubes como Fluminense, Botafogo, Flamengo (Rio), C. A. Paulistano, S. C. Corinthians, S. C. Germânia (SP) tentassem impedir a trajetória natural do nosso futebol para o profissionalismo, o máximo que conseguiriam seria mesmo adiá-la por algum tempo. A antiga CBD, fundada a 6 de novembro de 1916, fazia o jogo de interesses das agremiações elitistas. Os presidentes de clubes, em sua maioria políticos profissionais, ficariam em situação difícil. Se apoiassem a profissionalização, certamente perderiam o apoio político de parte da elite que não a desejava. Apoiando-a, tornariam sua imagem mais simpática aos eleitores. Os outros estados ainda eram inexpressivos e sem força política para se manifestarem. Pela primeira vez, surge a figura do cartola que, já naquela época, trabalhava muito mais pelo jogo de interesses pessoais e muito menos pelo futebol. A maior parte da imprensa era favorável ao profissionalismo. Contra o que os jornalistas chamavam de “profissionalismo marrom”. Mas se oficialmente o futebol ainda era amador, oficiosamente já havia pagamentos a jogadores. Isso caracterizava um tipo de futebol semiprofissional que só interessava aos clubes. Enquanto as arrecadações nos estádios aumentavam e enriqueciam ainda mais as agremiações, os jogadores permaneciam na mesma situação de explorados e sem nenhum direito. Sub-empregado, mas na esperança de profissionalizar-se, ele ficaria à mercê da sua sorte, de não sofrer acidentes de trabalho mais sérios e da eventual honestidade dos presidentes de clubes que, como registra a própria história do nosso futebol, com algumas exceções, exploravam a ignorância e a subserviência do seu jogador, em troca de salários irrisórios ou de emprego sem nenhuma garantia. Não por acaso, os jogadores mais explorados eram, ao mesmo tempo, os que mais temiam reivindicar qualquer direito como jogador. Embora fosse em alguns casos, sua única profissão, a verdade é que, formalmente, ele não tinha direito algum. 0 futebol era oficialmente reconhecido como uma atividade esportiva para amadores. Do ponto de vista jurídico isso era uma farsa. Era esconder uma realidade e a falta de ética profissional por trás da formalidade da lei e de suas imperfeições. Era este o quadro do futebol brasileiro até início dos anos 30. Um semiprofissionalismo de mão única. Só os clubes ganhavam dinheiro com as arrecadações. A situação, porém, iria se modificar a partir desse momento. Começa o êxodo de jogadores brasileiros para a Europa e alguns países sul-americanos. Os motivos para deixarem o Brasil eram sempre os mesmos: o falso amadorismo e a conseqüente exploração do 103 seu trabalho. Em depoimento esclarecedor, o jogador Amilcar Barbuy torna-se uma espécie de porta-voz do que a maioria dos seus colegas gostaria de poder falar. “Vou para a Itália. Cansei de ser amador no futebol onde essa condição há muito deixou de existir, maculada pelo regime hipócrita da gorjeta que os clubes dão aos seus jogadores, reservando-se para si o grosso das rendas. Os clubes enriqueceram e eu não tenho nada. Vou para o país onde sabem remunerar a capacidade do jogador” 4. A contrapartida, nesses casos, era a indignação dos. cartolas 0 sr. Rivadávia Meyer, presidente do Flamengo e da AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Attiléticos), forte defensor do amadorismo, não admitia o direito e o desejo dos atletas de se profissionalizarem. Certa ocasião, o sr. Meyer reagiria violentamente ao ser entrevistado pelojornal Diário Carioca, em 26 de janeiro de 1932: “Eu considero o jogador que quer se profissionalizar como um gigolô que explora a prostituta. 0 clube lhe dá todo o material necessário para jogar e se divertir com a pelota e ainda quer dinheiro? Isso eu não permitirei no Flamengo. O profissionalismo avilta o homem”. Enquanto isso, no plano político, o país emergia de uma grave crise. A 24 de outubro de 1930, as tropas militares cercam o Palácio do Catete e obrigam o presidente Washington Luis a renunciar. A 4 de novembro, toma posse Getúlio Vargas, encerrando o período da chamada Velha República (1889-1930) e iniciando a Segunda República. Ao assumir o governo, o novo presidente apresenta seu projeto para melhorar o país, intitulado “Programa de Reconstrução Nacional”, do qual constavam dezessete itens destacando as medidas mais urgentes e de aplicação imediata. Isso foi muito bom para o atleta e o futebol brasileiro. 0 próprio Estado, através da sua política trabalhista, iria liquidar com as pretensões dos cartolas conservadores em manter o amadorismo no nosso futebol. O item 15 do programa é importante nesse sentido. Seu texto fala em “instituir o Ministério do Trabalho, destinado a superintender a questão social, o amparo e a defesa do operariado urbano e rural”. Estava dado o pontapé inicial para a posterior regulamentação do futebolista em 1933. Embora não fosse reconhecida, mas apenas regulamentada, a profissão se caracterizava por uma situação de fato. A Legislação Social e Trabalhista de Vargas iria, de 1930 a 1936, regulamentar algumas profissões até então nunca cogitadas nesse sentido. 0 futebol, como já se esperava, entraria nessa lista. Isso não significava regulamentação automática, mas o caminho estava oficialmente aberto para as negociações. Assim é que, dois anos depois, em 23 de janeiro de 1933, estaria definitiva mente implantado o futebol profissional no Brasil, em que pese o comportamento amador de muitos dirigentes até hoje. Destaque-se, aqui, um aspecto significativo: reitera-se com a profissionalização nos anos 30 o caráter de união e de identidade nacional através do futebol que, 4 O jogador de futebol dessa época. Floriano Peixoto Corrêa, em seu livro Grandezas e Misérias do Nosso Futebol (Rio de Janeiro, Hermano Editores 1933), faz um longo relato dos constrangimentos por que passava o jogador da periferia ao integrar-se aos clubes de grã-finos. 104 a essa altura, já estava definitivamente incorporado à cultura lúdica brasileira. o futebol e a política hoje E justamente por ter se tornado, ao longo do tempo, um produto cultural de massa em nosso país, esse esporte, como todo fenômeno social de grande alcance, tem sido sistematicamente tema de debates em todos os veículos de comunicação. E nessas condições, não faltam as opiniões e as análises de cunho político, social, econômico e até ideológico. Visto como atividade lúdica, alguns analistas atribuem ao futebol a perigosa função de desviar a sociedade de seus problemas prioritários como, por exemplo, o desemprego, a má distribuição de renda, a injustiça social, as precárias condições de vida de determinados segmentos da sociedade e até dos debates acerca da revisão constitucional e da corrupção que é a tônica recorrente em nosso país. O brasilianista Robert M. Levine é partidário dessa concepção. Para ele o futebol não é só o “ópio do povo brasileiro”, como ainda serve de instrumento da classe dominante para manipular as massas como forma de sublimar a miséria e as desventuras da pobreza, através do sucesso meteórico da conquista de um campeonato doméstico ou internacional. Ele considera ainda que “o significado principal do futebol tem sido o seu uso pela elite para apoiar a ideologia oficial e dirigir a energia social por caminhos compatíveis com os valores sociais prevalecentes” 5. Permito-me discordar dessas opiniões, que contam, aliás, com muitos adeptos, por entender que a questão não se coloca exatamente nesses termos. A rigor, todo fenômeno social de grande ressonância popular (no Brasil, o carnaval e o futebol) possui, sem dúvida, importância política e social incontestável. Esses elementos, porém, não nos autorizam atribuir automaticamente um caráter reificador embutido nessas manifestações. Transformá-las em “ópio do povo”, em algo alienante, corresponde a ter uma visão unilateral e maniqueísta dos processos sociais. A questão não é bem assim. Podemos afirmar que nenhum clube de futebol nasceu com o deliberado intuito de ludibriar os interesses sociais e políticos da sociedade. Aliás, ao contrário. No Brasil, esse esporte emana das classes dominantes, de uma elite extremamente sofisticadae ávida por aprender a jogar o football introduzido pelos ingleses como vimos. Até porque a bola era objeto importado e, como tal, inacessível aos trabalhadores. Só mais tarde é que a direção da fábrica criaria o time operário do Bangu, com o objetivo de aumentar a produção industrial. Esse fenômeno talvez se circunscreva na idéia de que o futebol teria desempenhado função narcotizante para incentivar a produção. Isso é possível, claro, mas é um expediente que, indistintamente, todo sistema político usa e, além disso, é uma questão evidentemente óbvia; se houver saúde física, corporal, certamente a produção tenderá a aumentar. 5 Robert M. Levine, “Esporte e Sociedade”, in J. S. Wittere e J. C. S. B. Meihy (orgs.), Futebol e Cultura, São Paulo, Publicação IMESP/DAESP, 1982, p. 23. 105 Aparece aqui a conhecida formulação do marxismo vulgar de que o futebol, como qualquer outro esporte, estaria, nessas condições, submetendo a força de trabalho à tirania do capital. Desse fato decorreria, então, o rígido controle social empreendido pela classe dominante e a conseqüente manutenção do “establishment”. Pessoalmente, vejo o problema de forma diferente. Entendo que o futebol, como qualquer outro esporte, não deve ser interpretado de forma linear. Qualquer análise ideológica que se quiser fazer do futebol de modo geral, e do futebol brasileiro em particular, não deve deixar de lado o seguinte argumento: não é o futebol em si nem enquanto manifestação lúdica nacionalmente consagrada que aliena, que desvia a sociedade dos seus problemas mais urgentes. Esse fato decorre, isto sim, do uso ideológico que o Estado possa fazer desse esporte, como faria de qualquer outra manifestação que tivesse força popular idêntica. Assim, fica claro o seguinte: não é o futebol enquanto tal que aliena. Quem aliena são os governantes que, deliberadamente, usam os esportes de massa com objetivos políticos, quase sempre sem nenhum escrúpulo, sem nenhuma ética. A grande meta é se manterem no poder. Os meios para consegui-lo não são importantes. Podem ser todos ou apenas um, não interessa. Interessa o poder. Nesse sentido é que se torna improcedente, em nosso país, o caráter alienante atribuído ao futebol, especialmente a partir do início dos anos 70, quando coincide a conquista do tricampeonato mundial no México com o auge do autoritarismo militar personificado na figura do presidente Emílio Médici. Se nessa época determinados segmentos da sociedade brasileira se distanciaram dos seus problemas mais prementes, a culpa não foi do futebol nem do tricampeonato. A causa está no Estado de terror imposto aos brasileiros, cerceados em quase todos os seus direitos, entre eles o direito à informação e à participação política. Em outro aspecto, acredito, isto sim, na clássica teoria althusseriana dos aparelhos ideológicos de Estado. Os desportos, entre outras coisas, integram o grupo desses aparelhos. Assim como o Estado autoritário pode usar o futebol para corroborar ainda mais o seu poder, no Estado democrático esse mesmo futebol pode dar verdadeiras demonstrações de amor à liberdade e à democracia. Foi isso, precisamente, o que ocorreu com a “democracia corinthiana”. Um movimento bem pensado por seus criadores, meticulosos em suas ações, liderado por Adilson Monteiro Alves, ex-vice-presidente de futebol do Corinthians e seus companheiros, Sócrates, Walter Casagrande, Wladimir, Juninho e outros. Conscientes do que estavam fazendo e daquilo que queriam, eles levaram o Corinthians, em toda sua história, a atingir o mais alto grau de liberdade e de autonomia dos jogadores como profissionais da bola. Com uma adesão quase maciça à sua causa (Biro-Biro e Leão eram contra) e o apoio externo de colegas de outros clubes, a “democracia corinthiana” eliminou, pelo menos no departamento de futebol, uma estrutura montada em bases autoritárias, arcaicas e paternalistas, cujo resultado redundava sempre no desrespeito ao jogador profissional. Vale ainda registrar que na América este não é um fato isolado. 106 O futebol argentino, por inúmeras vezes, se rebelou contra a ditadura militar e a tirania dos dirigentes de clubes. 0 sindicato dos jogadores nesse país apoiou publicamente a concentração das mães na Plaza de Mayo, quando reivindicavam, aos ditadores militares, a presença e o paradeiro dos seus filhos que, na verdade, sucumbiram ao terror e à tortura a que foram submetidos. A “democracia corinthiana”, por sua vez, transcenderia os muros do Parque São Jorge para tornar-se um tipo de exemplo a outros clubes que, de alguma forma e por iniciativa dos próprios jogadores, desejavam seguir o modelo político da democracia no futebol que havia dado certo em São Paulo. Foi o caso do Clube de Regatas Flamengo que, no estádio do Maracanã, durante a campanha para as eleições diretas em 1984, apoiou a candidatura de Tancredo Neves. Enquanto os jogadores exibiam no gramado faixas alusivas à vitória do seu candidato, a torcida rubro-negra apoiava o time e o futuro presidente com faixas como “O Fla não Malufa”. Decepcionada, porém, ficaria a torcida do Fluminense, quando soube que os dirigentes do clube haviam “malufado”. Em São Paulo, o Corinthians não só conquistava títulos de campeão paulista, entre outros, como tinha o maciço apoio das torcidas organizadas para continuar seu projeto democrático. A “democracia corinthiana”, aliás, na pessoa de Adilson Monteiro Alves e Sócrates foi mais longe. Juntamente com Juca Kfouri, jornalista da revista Placar, elaboraram, em 1983, um documento intitulado “Profissionalismo no Futebol e a Estrutura Atual”. Nesse ensaio eles analisam as precárias condições do futebol brasileiro, suas mazelas, justamente a partir da estrutura autoritária e arrogante que continua dominando nosso futebol desde 1933, quando implantou-se o profissionalismo, como vimos. Conscientes de que a “grande paixão brasileira” deve ser discutida, rearticulada e organizada de baixo para cima, os autores entendem que o caminho da revolução e da redenção do nosso futebol só será possível via poder Legislativo, quando houver inteira e total reformulação das leis caducas e desconexas com nossa realidade, embora continuem arbitrando nosso futebol. Por isso, justamente, é que este documento foi apresentado à Comissão Parlamentar Permanente de Esportes e Turismo, que vinha promovendo ciclos de debates sobre a realidade do desporto nacional. 0 objetivo dos autores do documento era dar sua contribuição para aprimorar, democratizar e tornar o futebol brasileiro mais humano, não só ao seu profissional, mas também ao torcedor, principal responsável por sua existência. Na ocasião, o deputado Márcio Braga coordenava a Comissão de Estudos de Esportes da Câmara Federal em Brasília. A seu convite Sócrates, entre outros esportistas ligados ao futebol, prestou depoimentos sobre a situação desse esporte em nosso país. Como este documento ficou circunscrito a um reduzido número de profissionais e interessados no tema e não chegou a ser editado, vale a pena citar um pequeno trecho onde se esclarece bem a contribuição dos autores: 107 “A maneira de entregar o futebol para a sociedade não é tão difícil, embora trabalhosa. Propomos, para enriquecimentos posteriores, uma fórmula consagrada em qualquer regime de liberdade. Uma fórmula que passe por um poder Legislativo representado pelos Conselhos Deliberativos dos clubes e pelo CND, por um poder Executivo representado pela Diretoria dos clubes, das Federações e pela CBF, e um poder Judiciário cujas instâncias seriam a Justiça Esportiva como ramo da Justiça Comum e um Tribunal de Contas Desportivo. Tudo isso como resultado de uma estrutura democrática em que, no poder Legislativo, os Conselhos Deliberativos fossem eleitos pelos sócios dos clubes e o CND pelos presidentes dos Conselhos com votos ponderados, ou seja, de acordo com o número de eleitores de cada clube. Da mesma maneira se procederia em relação ao poder Executivo, onde as diretorias seriam eleitas por voto direto dos sócios dos clubes, as diretorias das Federações pelos presidentes dos clubes com votos ponderados e a CBF pelos presidentes das Federações com votos também ponderados, garantindo-se desse modo, em todos osníveis, a real representatividade de cada clube e Federação”. O Congresso Nacional, por sua vez, jamais se manifestou sobre o documento, nem sobre o trabalho realizado pela Comissão de Estudos de Esportes da Câmara Federal, apesar dos insistentes apelos do deputado Márcio Braga. Há nos meios esportivos (especialmente no futebol profissional) a expectativa de que o assunto volte à tona com o “Projeto Zico” e a revisão da Constituição, se ela sobreviver. De qualquer modo, o fato é que a experiência da “democracia corinthiana” trouxe efeitos significativos, deixando de ser um acontecimento isolado para se tornar um movimento mais abrangente. É importante notar que os Sindicatos dos Atletas do Futebol Profissional de São Paulo e do Rio de Janeiro têm aumentado consideravelmente o número de associados. Quando menos, reflete interesse e uma convergência maior desses profissionais, que realmente parecem agora estar empenhados em sanar pelo menos parte dos problemas inerentes à sua categoria profissional. Esta política sindical, no entanto, é apenas parte integrante de um contexto político maior em que atua o próprio sindicato e alguns de seus associados. Em São Paulo, durante a última campanha política para a Prefeitura, ficou implícito o apoio deste sindicato ao candidato do Partido dos Trabalhadores. Hoje, apesar de ainda não terem uma visão crítica mais apurada dos problemas que envolvem o atleta profissional e o futebol brasileiro, os jogadores têm procurado os sindicatos. Principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro. Certa ocasião conversando com Sócrates, em 1986, ele me citou alguns dados impressionantes: dos 4.200 jogadores de futebol profissional no estado de São Paulo, apenas 920 eram sindicalizados. Pior do que isso, porém, foram os dados citados em seu depoimento ao jornalista Oswaldo Mendes, da Folha de S. Paulo. Falando sobre o declínio qualitativo do futebol como espetáculo, ele deixa de lado, intencionalmente, as razões estruturais ligadas 108 à política dos dirigentes de clubes e das federações para fixar seu comentário sobre a condição humana do jogador: “É preciso não esquecer que, no Brasil, mais de 60% dos jogadores de futebol ganham menos que o salário mínimo. A esses jogadores não interessa dar espetáculo, mas ganhar de qualquer jeito”. Na verdade, Sócrates reportava-se à questão mais delicada do futebol profissional no Brasil: como aqui esse esporte exige vitórias a curtíssimo prazo para o atleta manter seu emprego, então ela tem que ser conseguida ainda que para isso se use da violência e de outros expedientes, em detrimento da qualidade do espetáculo. Além disso, alguns jovens jogadores, esperançosos de se transferirem para grandes clubes, para a “vitrine” do futebol, como são conhecidos os centros de São Paulo e Rio, preferem vender sua força de trabalho por um preço insignificante e se manterem explorados pelos clubes à espera de uma grande oportunidade. Essa questão desmistificaria a falsa imagem de que o jogador de futebol no Brasil é muito bem pago. Isso não é verdade. Ao contrário, ele hoje (e sempre foi assim) é tão mal pago quanto qualquer outra categoria profissional. 0 que ocorre, isto sim, é que a elite do nosso futebol realmente realiza bons contratos de trabalho. Mesmo assim, nem sempre todo o elenco de um grande time é bem pago. Só alguns o são. Não esqueçamos, por exemplo, que jogadores talentosos, famosos e com passagem pela seleção brasileira como Garrincha, Tupanzinho (Palmeiras), Ipojucan e Veludo, entre outros, morreram miseráveis. Assim, quando falamos da realidade econômica do jogador profissional em nosso país é necessário muita cautela. Ela é bem diferente do que prevalece no senso comum. E mais diferente ainda da realidade do jogador famoso que já consolidou seu status de craque, e por isso mesmo “virou o jogo” mudando a relação de dependência. Nesse estágio ele já não precisa mais do prestígio do clube grande. Ao contrário,o clube é que precisa dele, do seu prestígio profissional, da sua popularidade, do seu talento e dos seus gols para aumentar as glórias e o lucro. Eles não têm dificuldade na renovação de seus contratos. Os clubes, ainda que contra a vontade de alguns diretores, terminam aceitando sua proposta milionária e renovando o contrato. 0 grande jogador, até por cláusula contratual, não pode ficar fora do time, a não ser em casos de contusões muito graves. Mesmo assim, é de domínio público que, por diversas vezes, Garrincha jogou dopado e com infiltração de fortíssimos analgésicos no joelho direito, porque sua presença era obrigatória por cláusula contratual. Isso abreviou a carreira futebolística do jogador que, embora fosse um artísta genial com a bola nos pés, nunca soube fazer bons contratos, porque sempre acreditou na boa fé dos dirigentes. Nesses termos, o nivelamento por cima que se faz da remuneração do jogador de futebol (falsa imagem criada pela mídia) no Brasil, escamoteia a realidade. Hoje, com a conquista do tetra campeonato nos Estados Unidos o futebol brasileiro mantém seu prestígio internacional, embora seja visível sua implosão no âmbito doméstico, com exceção do estado de São Paulo. Isso compromete ainda mais a 109 condição econômica do jogador. A desorganização, a falta de profissionalismo dos dirigentes e os interesses político-partidários são alguns dos elementos que arrebentaram com a já frágil estrutura do nosso futebol. Os reflexos disso são: estádios vazios, evasão dos melhores jogadores para o exterior, crise financeira dos times e a perda de público para outros esportes de massa como o vôlei e o basquete. Se perdessemos o tertra campeonato é possível que esta crise crescesse ainda mais. O torcedor só aceita o título de campeão. 0 více-campeonato não interessa. No futebol em nosso país, a vontade popular é esta: “se não for campeão, vice não quero ser”. Com a democratização do país a partir de 1985 e a participação de todos os segmentos da sociedade nesse processo, o profissional de futebol parece, decididamente, disposto a participar politicamente, não só dos destinos do país, mas também das questões que envolvem seu trabalho de atleta. Assim, certamente, ele estará ajudando a mudar o perfil socioeconômico do jogador de futebol em nosso país. Até então esse trabalho sobreviveu de atos isolados de alguns profissionais mais conscientes que, por algum motivo e a seu modo, resolveram enfrentar a tirania e o autoritarismo dos dirigentes. São os casos de Afonsinho, Reinaldo, Tostão e, um pouco mais tarde, o grupo da “democracia corinthiana”. Este último, como vimos, preocupado com uma nova consciência política e profissional entre os jogadores. A bem da verdade, para fazer justiça, a gênese da “democracia corinthiana” tem muito a ver com o jogador Afonsinho. Famoso por seu talento profissional, pela coragem com que enfrentava os dirigentes e sobretudo pelas posições políticas que assumia, ele sempre agiu com determinação. Foi, durante os anos 70, o primeiro jogador brasileiro a questionar publicamente o sistema político (em pleno governo Médici) e a denunciar a estrutura arcaica e autoritária em que repousa até hoje nosso futebol. Estudante de Medicina e jogador do Botafogo do Rio, ele abriu processo na Justiça do Trabalho em 1974 contra seu clube, pelo direito de negociar seu próprio passe. Essa atitude foi um marco na conquista dos direitos do futebolista brasileiro. Vitorioso na justiça, alugaria seu passe aos grandes clubes, conclamando publicamente os demais colegas a fazerem o mesmo. Ainda em 1974, foi convocado para integrar a seleção brasileira que disputaria o campeonato mundial na Alemanha, mas foi cortado mais tarde por razões políticas. Por uma grande ironia, Afonsinho jogou ao lado de Pelé no Santos. Digo ironia porque Pelé sempre foi o avesso político de seu colega de clube. Em 1972, em Montevidéu, ao conceder entrevista à jornalista Amália Barran do jornal La Opinión, sobre a ditadura militar no Brasil, Pelé responde: “Não há ditadura no Brasil. O Brasil é um país liberal, uma terra de felicidade. Somos um povo livre. Nossos dirigentes sabem o que é melhor para nós e nos governam com tolerância e patriotismo”. É provável que, passados 22 anos dessa entrevista, Pelé pense um pouco diferente daquela época. Seu apoio ao governador Leonel Brizola, através de propagandas pela televisão, é um bom indício. Recentemente, ao receber um prêmio da TV Bandeirantes, ele 110 fez um pronunciamento político, no qual denunciava a precária situação dos profissionais de futebol no Brasil, conclamando-os a se filiarem ao seu sindicato para formarem uma categoria profissional politicamente forte. Foi esse, pelo menos, o teor geral do discurso. 111 10. O Futebol e a Cultura Brasileira: da heterogeneidade cultural O Brasil possui uma formação étnica e cultural bastante diversificada. O colonizador europeu que aqui encontraria o indígena em seu “habitat” natural, abriria caminho para o grande ciclo das migrações. Antes, porém, os portugueses trariam do continente africano, a mão de obra escrava de que precisavam para explorar os recursos naturais da sua nova colônia. Assim, indígenas, europeus e africanos, ainda que em circunstâncias e condições diferentes (colonizador versus colonizados), seriam protagonistas do que mais tarde os estudiosos chamariam de Cultura Brasileira. 1 Heterogêneo em sua formação cultural, o Brasil apresenta ainda desigualdades regionais no tocante à sua economia e a distribuição populacional. Enquanto o sudeste e o sul concentram a grande força econômica do país e a maior parte da população, as demais regiões (NE, N e CO) apresentam grandes vazios populacionais e uma produção agro-industrial apenas sofrível. Analisando-se mais detalhadamente a questão, chega-se mesmo a pensar na velha mas sempre atual tese do sociólogo francês Jacques Lambert 2 sobre “Os Dois Brasis”. A bem da verdade, os 8.511.965 km2 que totalizam a área do país, permitem que se reconheça bem mais de dois brasis. Do ponto de vista antropológico, podemos nomear pelo menos três brasis: um formado pelas regiões norte e centro oeste, outro pelo nordeste e o terceiro pelo sudeste e sul. São regiões que apresentam poucas identidades e muitas diferenças. Culturalmente 3, por exemplo, elas possuem usos, costumes, tradições e comportamentos muito diferentes. O suficiente para as percebermos separadamente, em que pese o processo de modernização da sociedade brasileira, o desenvolvimento das telecomunicações e a urbanização dos últimos trinta anos. Se não tão acentuadas como antes, ainda assim as diferenças 1 A bibliografia especifica sobre o tema Cultura Brasileira é muito vasta e não cabe neste ensaio uma discussão mais detalhada do tema. No entanto, os interessados devem consultar algumas obras como: Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala, Editora José Olympio, 1978, S. Paulo; Sérgio Buarque de Hollanda, Raizes do Brasil, Editora Brasiliense, 1980, S. Paulo; Alfredo Bosi, Cultura Brasileira, Editora Atica, 1977, S.Paulo, entre outras 2 Lambert, Jacques. Os Dois Brasis, Cia. Editora Nacional, 1958, S.Paulo. 3 Estamos aqui pensando nas concepções de Clifford Geertz quando discute sobre as formas de cultura em seu livro A Interpretação das Culturas 113 são notórias. Era até previsível que a televisão pudesse ter alguma interferência nos valores culturais locais num país continental como o Brasil. Isso realmente aconteceu e, de certo modo, ainda ocorre. Mas a meu ver, não o suficiente para falarmos em descaracterização da cultura regional. Não se pode falar, pelo menos até agora, no chamado fenômeno da estandardização da cultura com o advento da televisão via Embratel. Não se pode negar, evidentemente, a forte presença de uma cultura de massa. Com a integração televisiva do país, os estudiosos da cultura e da comunicação, passaram a se preocupar com os rumos que poderiam tomar a cultura regional. Com algumas exceções, o pensamento vigente apontava para um desfecho pessimista: a pasteurização irreversível daquela cultura. Pois bem, ha vinte e oito anos o país está integrado pela imagem eletrônica e não se pode ainda falar de transformações irreversíveis ou radicais na cultura regional brasileira. O que se pode observar, isto sim, é aquilo que os antropólogos chamam de “interpenetração cultural” 4, o u seja; a presença de duas culturas interagindo no mesmo espaço. Isso no entanto, não significa, necessariamente, o desgaste estrutural da cultura autóctone ou vice-versa 5. O que se percebe, efetivamente, é a absorção de determinados valores culturais, tanto de uma parte quanto de outra, sem que isso signifique, de fato, danos à cultura regional. As mudanças culturais ocorreriam de qualquer forma nessas regiões, justamente em face da própria dinâmica da sociedade. Não se poderia esperar que só a sociedade mudasse e sua cultura permanecesse a mesma. E fácil observar empiricamente como se dá esse processo na dinâmica sociocultural. Seria, aliás, um erro teórico, não se admitir este fato. Uma coisa é se desejar a preservação cultural de um lugar, de uma região, outra coisa é não se admitir que esse mesmo espaço necessariamente mude no decorrer do tempo, com ou sem interferência externa. De uma forma ou de outra é inegável a mudança. Este “purismo cultural” gera, na verdade, uma espécie de conservadorismo romântico e retrógrado que às vezes pode obliterar novos e importantes caminhos para a pesquisa antropológica. E preciso notar que o norte e o centro-oeste do Brasil têm ainda (não se sabe por quanto tempo) uma forte presença da cultura indígena. Não só nos seus hábitos culinários (vide o mujangué, a chicha, os refrescos de assai, patoá, biribá, tacacá, etc.), mas nas suas crenças e festas populares. Além disso, permanece ainda, toda uma mitologia acerca da sua cultura que continua viva nos hábitos, costumes e tradições do homem amazônico 6. 4 A expressão é do antropologo M. J. Herskovits, em seu trabalho, Les Bases de l’Anthropologie Culturelle, Paris, Payot, 1967. 5 Quando ocorre o choque entre duas culturas costuma-se chamar esse fenômeno de” fricção cultural” . 6 Especialmente sobre essa questão convém ler a obra de Orlando Villasboas, intitulada Xingu, Editora Brasiliense, 1984, S.Paulo. 114 Este é também o caso do nordestino que, a partir do início do século XVII, com a importação maciça de escravos, passaria a ter significativa influência da cultura negra. Hoje o Estado da Bahia tornou-se assim uma espécie de “representante” da cultura negra no Brasil. E de Iá, ou para Iá converge, grande parte dos chamados “movimentos negros” desse país. E, mais do que isso, a Bahia vem se tornando ao longo dos últimos vinte anos, a mais legítima representante da cultura negra em toda a América Latina, provavelmente ao lado de Cuba. Um fenômeno sociológico que a pesquisa sistemática poderá explicar melhor mais à frente: não por acaso, a cidade de Salvador tornou-se a preferida dos cantores e compositores negros de diversas partes do mundo. Segundo eles mesmos, seu objetivo é um contato mais estreito com o som “afro-brasileiro”. Além de ser considerado de alta qualidade pelos próprios musicistas, possui a emergência e a aura de uma cultura da negritude e grande prestígio na indústria cultural internacional. Enquanto o superstar Sting estudava os sons dos indígenas brasileiros para seu novo disco, os jamaicanos Jimmy Clif e Bob Marley e os americanos Milles Davis e Paul Simon, entre outros, faziam viagens de estudo e pesquisa de som da negritude baiana. As festas populares do nordeste, entre elas o carnaval, mantêm a tradição de toda a cultura popular da região, a despeito da presença ostensiva da cultura televisiva. A sátira política, os bonecos tradicionais, os mascarados, as fantasias de cangaceiros e de outros personagens da região são destaques nessa importante festa popular do nordeste e do Brasil. É claro que em alguns casos, como a sátira política, as fantasias, os mascarados, etc., há sempre uma reciclagem objetivando justamente atualizar o momento social vivido. Na Bahia, por exemplo, o carnaval tem uma longa tradição da cultura negra. Ha blocos muito bem organizados formados essencialmente de negros. São os casos dos “Filhos de Gandi” e dos “ Afoxés”. De algum modo, portanto, a cultura popular nordestina tem se mantido presente, ao contrário de algumas previsões mais pessimistas de estudiosos do tema. O caso das regiões sudeste e sul é diferente. Por condições históricas decorrentes do processo de colonização, essas regiões tornaram-se as mais ricas do país. O ciclo do café, economicamente o mais importante para o país ocorreu nessas regiões. A partir da metade do século XIX, os imigrantes europeus (especialmente atlantomediterrâneos) passaram a se concentrar nessa parte do país tornando-a, já naquela época, o destaque da incipiente economia brasileira. Por sua diversidade étnica e cultural e pela concentração da riqueza, o sudeste e o sul apresentam características bem diferentes das outras regiões brasileiras. O capital as desenvolveu mais, criando um padrão de vida superior àquele encontrado no norte, centro-oeste e nordeste. Ao mesmo tempo, essa heterogeneidade étnica e cultural resultou numa falta de maior identidade não só com as outras regiões, mas também entre a própria população dessa área. 115 Se, por um lado, existem algumas identidades como, por exemplo, oficialmente terem a mesma religião (o catolicismo) e falarem o mesmo idioma ( o português), por outro lado, cada grupo étnico de imigrantes preservou sua cultura, criando e vivendo nos chamados “núcleos étnico- culturais”. São os casos dos alemães em Santa Catarina, dos poloneses no Paraná e dos italianos e japoneses em São Paulo. A capital do Estado (São Paulo), alias, uma metrópole de dezesseis milhões de habitantes, com um estilo inteiramente cosmopolita. Aqui está, portanto, uma rápida síntese das regiões brasileiras e uma pequena amostra das suas diversidade culturais. A falta de uma unidade cultural, no entanto, não ameaça a unidade territorial do país. Até .porque, não há problemas de ordem religiosa ou racial, que são fatores historicamente desagregadores. Os problemas concernentes ao Brasil são aqueles já consagrados na grande maioria dos países em desenvolvimento. A economia que não vai bem, o aumento dos problemas sociais, a má distribuição de renda, a corrupção política, entre outros que, por não terem relação direta com o tema deste ensaio, apenas os registramos 7. a tradição lúdica do futebol Ao mesmo tempo, essa diversidade cultural faz do Brasil, um país com algumas peculiaridades onde a população realmente se identifica. Nem boas nem ruins; apenas peculiaridades. Há uma certa tradição da cultura lúdica nesse país. O senso comum detecta, empiricamente, algumas sutilezas e fatos sociológicos no “jeito de ser” do homem brasileiro que, na verdade são procedentes. E, mais do que isso, eles têm importância fundamental na organização social e política do país. O que se apresenta aos olhos do estrangeiro ou de quem o desconhece “por dentro”, como simples objeto lúdico e de mero divertimento é, na verdade, um produto da maior importância. Não só no tocante à cultura popular brasileira (essa é a primeira leitura que se faz), mas também no que diz respeito à sua economia e política. O que se apresenta ao leigo apenas como objeto de prazer, de folia, de diversão, tem significados muito mais densos e profundos do que a simples aparência. Estou pensando no carnaval, na musica e, evidentemente, no futebol. Mas é preciso ir por partes, até por uma questão metodológica. A música popular, por exemplo, desde o final dos anos cinqüenta (1957) se tornou um produto de exportação. O movimento “Bossa Nova”, liderado por jovens compositores e cantores brasileiros, ganharia prestígio nos Estados Unidos ainda nessa mesma década. Depois de revolucionar inteiramente a música popular brasileira, especialmente no plano estético, a bossa nova emigrou para a América e, 7 A literatura cientifica sobre os problemas econômicos, políticos e sociais do Brasil é muito vasta. Mas, para se ter uma síntese dessas questões, deve-se ler o brasilianista Thomas Skidmore, Brasil: de Getulio a Castello, e Brasil: de Castello a Tancredo, ambos da EditQra Paz e Terra, São Paulo. 116 obviamente, com um bom respaldo mercadológico manteve seu sucesso e prestígio. Logo em seguida, o mercado europeu a absorveria. A consolidação desse sucesso, no entanto, está estreitamente ligada às transmissões televisivas do carnaval carioca para diversos países do mundo. A somatória do sucesso da bossa nova, com a batucada dos sambistas, o remelexo da mulata e a alegria dos foliões carnavalescos, projetaram a música popular brasileira como imagem e personalidade do seu país. O que é verdade, em grande parte, e exagero sensacionalista em alguns aspectos. Tomemos o carnaval como exemplo. Não há dúvida de que o povo brasileiro tem mesmo um certo pendor pela gestualidade corporal 8. Há até uma explicação histórica a antropológica para isso. A miscigenação de três etnias, quando menos, já é algo peculiar. Mais do que isso, no entanto, é notar que índios e negros (cafuso) têm importância fundamental na formação étnica e cultural brasileira. São duas civilizações que sempre viveram numa cultura libertária. Entre eles a expressão corporal tem outra conotação, que não aquela da civilização branca, onde o corpo passou a ser instrumento de repressão e de dominação. O catolicismo e o branco é que, por conta do seu autoritarismo colonizador, fizeram negros e índios se vestirem. Alias, foram mais longe. Obliteraram parte de suas culturas, proibindo as chamadas “danças profanas” como, por exemplo, o Lundu, por as considerarem imorais e, portanto, ofensivas e incompatíveis com a nova moral social vigente do colonizador ocidental. E inegável que essas civilizações possuem uma estética corporal particular. Original. Para elas a nudez nunca teve um caráter libidinoso, muito menos de permissividade sexual. Só passaria a ter para aqueles “aculturados” que iriam trabalhar como mão-de-obra escrava. Pois bem, essa cultura libertária e a estética corporal desreprimida, têm muito a ver com o homem brasileiro, seu herdeiro direto. Assim é possível entender sua linguagem corporal. A manemolência de que fala o sociólogo Gilberto Freyre, o gingado que é, alias, uma das suas características coletivas, o remelexo da mulata, enfim, toda uma gestualidade transposta para o seu cotidiano, para sua cultura lúdica como a música, o carnaval e o futebol. Basta ver, por exemplo, as apresentações das Escolas de Samba ou de partidas de futebol. Há nesse esporte, evidentemente, aqueles que transcendem qualquer previsão das características aqui apresentadas. São os casos de Garrincha, Canhoteiro, Pelé, Rivelino, Tostão e Romário, entre outros. Voltaremos a falar deles mais adiante. Quando me reportei ao exagero sensacionalista, estava pensando nos desfiles carnavalescos. Por seu prestígio internacional, esta festa popular brasileira é transmitida ao vivo, do Rio de Janeiro, para alguns países da Europa e da América, mas também para todo o Sobre esse tema convém consultar os livros de Câmara Cascudo, Historia dos Nossos Gestos, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1988 e o prefacio que o sociólogo Gilberto Freyre fez para o livro de Mario Filho, O Negro no Futebol Brasileiro, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964. 8 117 Brasil em cadeia de televisão. Fala-se muito da pouca roupa usada pelos foliões brasileiros, especialmente as mulheres. Ora, é preciso analisar com muita cautela essa questão para evitar os estereótipos. Nessa época é verão no Brasil, e a temperatura no Rio de Janeiro chega com facilidade aos quarenta graus. Esse não é, evidentemente, o motivo do uso de pouca roupa. De qualquer modo, mas também por ser habitual, este é um período de altas temperaturas no país, e os brasileiros costumam usar roupas leves, curtas e, em alguns casos, até transparentes. É época de férias e o país vive um clima de festa pré-carnavalesco, carnavalesco e após o carnaval, por pouco tempo, em que pese os problemas econômicos, políticos e sociais que, a rigor , infelizmente, já fazem parte do cotidiano brasileiro. Para Iá afluem milhares de turistas de todo o mundo, para participarem do carnaval diretamente ou, quando menos, como espectadores. Por se tratar da mais importante festa popular do país, o governo decreta sempre dois dias de feriado para que os foliões possam brincar à vontade. De norte a sul, de leste a oeste, todo o país está em festa durante os quatro dias de carnaval. São quatro dias porque essa festa começa no sábado e, oficialmente, só termina na terça feira seguinte. Tanto no carnaval de rua, quanto no de salão, cantam-se as modinhas carnavalescas, pula-se, grita-se e bebe-se à vontade. É a própria catarse coletiva. Nesse tipo de carnaval mais “doméstico” não se vê muitos foliões com pouca roupa. O exagero sensacionalista a que me refiro ocorre nas Escolas de Samba, uma espécie de “cartão de visita” do carnaval brasileiro. Diferente do carnaval de salão e de rua, onde há um alto grau de sociabilidade e de solidariedade 9, o carnaval das Escolas de Samba é um tipo de empreendimento bastante profissionalizado. É uma espécie de “carnaval empresa” cujo objetivo é, entre outros, estimular a indústria do turismo no país. A nudez que se vê nas Escolas de Samba não é a regra geral. Ela é a exceção localizada que caracteriza o seu tipo de carnaval, cujo objetivo é manter a antiga e desgastada imagem da “sensualidade” da mulata brasileira. É uma estratégia de marketing da qual o governo e as próprias Escolas não prescindem. Mesmo nas Escolas de Samba a nudez aparece em poucas alas 10. A televisão, como de resto a maior parte da grande imprensa, à procura de audiência e de vender mais jornais e revistas, concentram boa parte das atenções nas mulheres que desfilam semi-nuas. Este é o exagero sensacionalista a que me refiro: concentrar as atenções na nudez que é uma exceção e passar a falsa idéia de regra geral. Não há, no entanto, por que contestar a nudez das mulatas. Afinal, como já disse anteriormente, há toda uma tradição cultural por detrás 9 O livro da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, O Carnaval Brasileiro, Editora Brasiliense, 1992, analisa com detalhes e precisão a importância social do carnaval brasileiro. 10 Ala é a denominação que se da a cada parle da Escola de Samba que pode apresentar quantas quiser. Algumas dessas Escolas chegam a desfilar com até cinco mil foliões. 118 dessa nudez que precisa ser entendida na sua lógica interna, no plano da sua tradição mesmo. Já é algo internalizado à cultura lúdica do país. Foi isso o que procurei mostrar um pouco antes, de modo mais resumido. Por outro lado, discordo, isto sim, da exploração mercadológica dessa imagem que a transforma em mero objeto de consumo visual, banalizando sua sexualidade e, por extensão, a própria imagem da mulher brasileira. É como se a sexualidade no Brasil fôsse hoje um produto a mais de consumo. Nesse sentido, aliás, o governo federal, através da Embratur Empresa Brasileira de Turismo, tem contribuído para a divulgação dessa falsa imagem. Em 1989, foram distribuídos cartazes por toda a Europa e a América, estimulando o turista a passar suas férias no Brasil. O cartaz encaminhado pela Embratur trazia uma mulher deitada de bunda para cima, na praia de Copacabana com um olhar insinuante, lânguido, vestida num maiô “fio dental”. O texto, escrito em vários idiomas, convidava elegantemente o turista a visitar o Brasil. É claro que a intenção do governo era estimular o turismo internacional no país, e não banalizar a imagem da mulher brasileira. Mas o cartaz também permite outra leitura que vai ao encontro dessa última observação. Alias, se bem analisado, ele permite diversas leituras. Uma das possíveis é esta que mencionei. o futebol Pois volto a dizer: se a música popular, o carnaval e o futebol podem parecer ao leigo apenas objetos de prazer e de folia, no Brasil e para os brasileiros, eles estão muito além das aparências. Estão, na verdade, na essência do seu povo. Por outro lado, é certo e sabido que este país não possui tradição nas competições esportivas, a não ser no futebol. A explicação para isso vem de longe e data ainda do século XIX quando, em 1882, Rui Barbosa, chefe da Comissão Nacional de Ensino tenta, sem sucesso, introduzir a educação física no currículo das escolas primárias. A partir daí, esta atividade ficaria à mercê de alguns imigrantes europeus que Iá chegavam e da voluntariedade de um reduzido numero de brasileiros que havia estudado na Europa e adquirido o hábito de praticar esportes. Foi assim, por exemplo, que apareceu o futebol no Brasil em 1894. Charles W. Miller, brasileiro de origem familiar inglesa, ao voltar de suas férias na Inglaterra, trouxe uma bola de futebol em sua bagagem. Em São Paulo, ao lado do alemão Hans Nobiling que chegara ao Brasil em 1897, passariam os dois a organizar competições entre seus amigos no campo de rugby do São Paulo Athletic e no Velódromo. Concretizava-se, dessa forma, a importação do assim chamado “ esporte bretão “ 11. No início, mas por pouco tempo, o futebol ficaria restrito aos 11 O professor e historiador Alfred Wahl, da Universidade de Metz, em seu livro, La Baile au Pied, Edition Gallimard, 1990, Paris, faz uma trajetoria muito interessante sobre a historia do futebol no mundo. 119 jovens da elite de São Paulo e do Rio de Janeiro. Os colégios grã-finos que podiam importar material esportivo como o Anglo-Brasileiro, os Colégios Militares e o Alfredo Gomes, logo incorporaram o futebol nas atividades físicas dos seus alunos. Era daí que saiam os jogadores para se integrarem aos clubes da época como, o Paissandú (Rio de Janeiro), Germânia (atual Pinheiros), São Paulo Athletic, entre outros. Em 1899, em São Paulo, ocorre o primeiro “grande” jogo. Haviam sessenta torcedores. Um público considerável, se levarmos em conta o quase total desconhecimento do futebol no Brasil. Jogaram os altos funcionários da Empresa Nobiling, contra os ingleses que trabalhavam na Companhia de Gás, Estrada de Ferro e no Banco de Londres. Venceram os ingleses. Mas, se no início o futebol no Brasil teve um caráter essencialmente elitista, os motivos o justificam. E preciso ver que os ingleses, introdutores desse esporte neste país, integravam a elite da sociedade paulistana e carioca. Só eles, e os brasileiros ricos, tinham acesso à pratica do futebol. Quase todo o material necessário era importado e muito caro. Não bastassem os empecilhos econômicos, os preconceitos social e racial reiteravam de forma categórica o elitismo. Esta foi uma das características do futebol brasileiro até início dos anos quarenta. Apesar da evidente popularização desse esporte, boa parte da elite burguesa não aceitava subalternos nem negros no seu time. E mais do que isso, a própria classe dirigente do futebol estimulava a discriminação social e racial. Tanto em São Paulo, quanto no Rio de Janeiro, todos os clubes recreativos que aderiram ao futebol não admitiam negros no time e nem jovens que não estivessem estudando. Assim, a grande maioria dos jogadores era formada por universitários que, nos momentos de lazer, procurava seu clube para jogar futebol. Em São Paulo surgiram times como o Mackenzie College, o Club Athlético Paulistano, o São Paulo Athletic Club, o Sport Club Corinthians Paulista, a Associação Athlética Ponte Preta, todos no início deste século. No Rio de Janeiro, o The Bangu Athletic Club, o Andaraí, o Carioca, o Vila Isabel, o Mangueira e o Fluminense. Todos eles agremiações sociais e esportivas que passariam a se interessar pelo futebol. Ou melhor: foram agremiações criadas tendo o futebol como seu principal lazer . Interessante notar que, embora altamente elitizado, o futebol no Rio de Janeiro já dirigia-se para a zona norte da cidade. Geograficamente essa região sempre concentrou a grande maioria da população proletária e dos baixos estratos da classe média. Agremiações como o Carioca, Bangu e Mangueira tinham suas sedes em bairros proletários. a pelada Origina-se aqui, na verdade, todo o processo de democratização do futebol brasileiro e sua conseqüente popularização. Uma trajetória de muitas brigas e lutas políticas entre dirigentes de clubes e 120 jogadores, cujo espaço deste ensaio não nos permite esmiuça-la 12. O fato é que, tanto no Rio de Janeiro, quanto em São Paulo, o futebol já não era mais aquele esporte que só as elites podiam praticar. Nas ruas, nos espaços vazios da periferia, na várzea e na areia das praias (caso do Rio de Janeiro), os jovens que não pertenciam à elite econômica começavam a improvisar suas partidas de futebol, que mais tarde seriam chamadas popularmente de “peladas”. Estava criado, a partir desse momento, um hábito que teria (e continua tendo) lugar de destaque na cultura lúdica brasileira. Nem sempre a bola era de couro. Muitas vezes era de meia e corda ou de borracha, mas sempre atraindo jovens que se habituavam a jogar e um público disposto a se divertir assistindo a “pelada”. Esta expressão, além de ser sinônimo de futebol no Brasil, está estreitamente ligada à popularização desse esporte no país. Está aliás, incorporada à própria cultura futebolística do torcedor brasileiro. Trata- se de uma partida cuja principal característica é a desorganização tática e técnica dos jogadores em “campo”. Não é necessário que haja vinte e dois jogadores. O jogo se realiza com qualquer numero, desde que igualmente para cada “time”. Não há necessariamente árbitro nem bandeirinha, mas as regras do futebol devem ser rigorosamente respeitadas pelos jogadores. A única condição imprescindível, aliás, para que ele participe da “pelada”. Há toda uma ética de comportamento nesse sentido e ela não deve, sob qualquer hipótese ou pretexto, ser desrespeitada. Agora, é evidente que, com a ausência do árbitro, quando ocorre uma falta grave (o penalte, por exemplo) não há consenso quanto a real procedência da penalidade. Trata-se de uma situação decisiva e, como tal, nesse caso, prevalece a cumplicidade que cada um tem com o seu time. Nesse momento, é claro, a confusão esta formada. Pode haver briga, empurra-empurra e o jogo pode não chegar ao fim, que alias não é cronometrado. Ele só termina por um acordo entre os times ou quando os jogadores chegarem à exaustão. Os desentendimentos, no entanto, com raras exceções, não ultrapassam o domínio esportivo. É habitual esses mesmos jovens se reunirem no dia seguinte para continuarem a mesma partida, ou iniciarem uma outra. Na várzea, na praia, na periferia ou, como ja disse, em qualquer espaço vazio, sem qualquer demarcação de um campo de futebol. Estas também são improvisadas. A expressão “pelada”, por outro lado, tem muito a ver com uma cultura da pobreza dos jovens da periferia no Brasil. Sejam eles dos grandes centros urbanos (Rio, São Paulo, Salvador, etc.) ou mesmo do interior. Sem trabalho, seu tempo se limita, eventualmente, à Escola e ao futebol. Por não terem dinheiro para comprar material esportivo, eles costumam jogar descalços e sem camisa. Apenas de calção. Explica-se por que: eles não devem estragar seus sapatos ou tênis jogando futebol, muito menos suar a camisa. 12 Em meu livro, O Pontapé Inicial, Editora Ibrasa, São Paulo, 1990, eu analiso a relação entre o elitismo econômico, o preconceito racial e social e a luta política entre dirigentes e jogadores no sentido de profissionalizar o futebol brasileiro. 121 A “pelada” tem ainda três aspectos significativos que merecem destaque. O primeiro é que, sendo uma atividade espontânea definitivamente incorporada à cultura lúdica do país ela tem, por isso mesmo, um caráter de sociabilidade muito grande. As relações de vizinhança tornam-se mais dinâmicas justamente em face do número de pessoas que dela participa. Seja jogando futebol ou ainda como torcedor. De uma forma ou de outra, o habitante do bairro ou da região estaria participando de um intenso processo de sociabilidade e de integração social. Isto porque, a “pelada” tanto pode acontecer ocasionalmente, sem que nada tenha sido planejado, como pode ter hora e data marcadas 13 Isso é o máximo da organização que se consegue numa partida descomprometida com a vitória ou a derrota como a “pelada”. O mais importante mesmo é o prazer da diversão. Poder gritar a favor e contra seu próprio time, fazer brincadeiras com os jogadores, as mais variadas possíveis, sem que isso tenha a conotação de agressão que se vê nos estádios. Enfim, pode-se dizer, sem correr o risco de romantizar, que a “pelada” é, no fundo, muito mais uma festa popular esportiva do que propriamente uma competição. O que menos interessa é o resultado da partida. Ou, pelo menos, interessa muito pouco. De tudo isso, o que fica mesmo é o caráter de sociabilidade que o futebol de “pelada “ proporciona a seus participantes como um todo. Em outras palavras, é a força do futebol informal, despretensioso que aproxima o jogador e o torcedor brasileiro. O segundo aspecto diz respeito à identidade da pobreza. O futebol de pelada é uma atividade essencialmente proletária. Haja vista, por exemplo, que seu maior índice de incidência nas grandes metrópoles se da justamente ná periferia onde se localizam os bairros proletários. Faz parte da cultura proletária brasileira, jogar peladas nos finais de semana. Especialmente aos sábados à tarde e aos domingos pela manhã. Após a partida, seja qual for o resultado, ganhadores e perdedores se congratulam bebendo e comendo no próprio local do jogo ou no bar mais próximo do campo. Nesse momento, a partida é minuciosamente analisada por seus integrantes. Seja ele jogador ou torcedor. De forma desordenada (todos falam ao mesmo tempo), cada lance da partida é exaustiva e passionalmente analisado em suas possibilidades. Como aconteceu, como deveria ter sido, o que aconteceria se ele tivesse sido executado corretamente e assim por diante. Enfim, faz-se uma discussão minuciosa sobre a técnica, a tática e as oportunidades de cada time durante a partida. Nesse momento, jogadores e torcedores tornam-se verdadeiros “analistas” do futebol. Nada, ou quase nada lhes escapa. Talvez por isso é que exista no Brasil a conhecida frase: “somos cento e setenta milhões de técnicos de futebol”. É claro que se trata de uma O professor Sebastião Witter escreveu um trabalho bastante interessante sobre o futebol de varzea em São Paulo, intitulado II A Varzea não Morreu”. in: Futebol e Cultura, Imprensa Oficial do Estado -Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo, 1982. 13 122 metáfora para mostrar a afinidade desse povo com o futebol. Não é sem motivo, portanto, que esse esporte atingiu um alto grau de desenvolvimento no Brasil. Este é apenas um deles. Não é sem motivo também que, em todo o mundo, a imagem desse país está estreitamente ligada ao futebol. E que esse esporte está também indissociavelmente ligado à sua cultura popular. Hoje, talvez, mais do que o carnaval e a música. O terceiro aspecto está diretamente relacionado com o futebol profissional, mas é o reflexo imediato das chamadas “peladas”. É um momento muito significativo e importante para o futebol brasileiro e para os “peladeiros” que postulam seu espaço como futuros profissionais da bola. É também a grande oportunidade de ascenção social, de sair do anonimato e adquirir o reconhecimento e a consagração publica. Este processo ocorre muitas vezes da seguinte forma: no Brasil há uma tradição de que nos jogos de várzea e de praia surgem sempre bons jogadores. E ela se mantém ao longo dos anos, revelando jogadores que marcaram definitivamente a ascenção e o prestígio internacional do futebol brasileiro. Num passado bastante remoto (anos dez e vinte), quando o futebol nesse país ainda era altamente elitizado, o Club Athletico Paulistano (São Paulo) teve de render-se ao brilho e ao talento de Arthur Friedenreich. Segundo especialistas como João Saldanha, tão habilidoso ou mais que Pelé. Filho de alemão com uma negra brasileira, Friedenreich herdaria mais a cor da mãe, mas também algumas características do seu pai. Era alto, de olhos azuis e cabelos bem crespos. Como tantos outros jogadores, ele foi descoberto na várzea e, numa deferência muito especial, em face do seu futebol brilhante e da influência do seu pai, foi levado para jogar no Club Athlético Paulistano, o mais elegante e sofisticado clube da cidade de São Paulo desde 1900. Não se tem notícia de outro jogador negro que tenha vestido a camisa deste clube. Em 1929, depois de conquistar o bicampeonato de São Paulo, o Paulistano encerra suas atividades no futebol por discordar do movimento de profissionalização desse esporte que seria vitorioso em 1933. Poderíamos aqui fazer uma longa relação de jogadores mundialmente conhecidos e descobertos nos jogos de peladas na várzea ou na praia. Mas não é o caso. Apenas para ilustrar a importância deste futebol recreativo, quero acrescentar alguns nomes que por ele passaram: Garrincha, Zizinho, Pelé, Sócrates, Didi e mais recentemente Romário. Hoje, com toda a modernização e a preparação cientifica do futebol brasileiro, as peladas mantêm a mesma importância. É na várzea, na praia, nos campos da periferia que os “olheiros” 14 vão, anonimamente, à procura de novos talentos. 14 O “olheiro” é uma espécie de treinador itinerante que sai pela varzea, praia e outros lugares onde ocorrem as peladas, à procura de novos talentos para o futebol do seu clube. 123 Ao mesmo tempo, deve-se destacar, a grande maioria dos times brasileiros possui as chamadas divisões inferiores, de onde sai boa parte dos jogadores que se profissionalizam. Quero citar um exemplo: o Vasco da Gama, do Rio de Janeiro é tri-campeão (92, 93, 94) com uma esquadra formada nas divisões inferiores. É bem verdade, porém, que diversos jogadores foram recrutados nas peladas e preparados para se profissionalizarem. Como são sempre jovens, eles necessariamente passam pelo estágio pré-profissional das divisões amadoras. Esta é, em síntese, a importância da pelada para o futebol brasileiro. Dada a importância e o grande desenvolvimento desse esporte naquele país, há hoje toda uma infraestrutura destinada à preparação de jogadores. Os grandes clubes possuem verdadeiros laboratórios por onde deve passar o atleta de talento, mas sem as devidas condições físicas para a prática do futebol. Há muitos casos desse tipo, mas acredito que o de Zico, ex-jogador do Flamengo do Rio de Janeiro seja o mais conhecido. Extremamente talentoso como jogador, ele era muito fraco fisicamente. Como atacante que era, não teria a mínima chance de enfrentar, em igualdade de condições, a truculência dos defensores adversários. A saída encontrada pelos dirigentes do Flamengo foi, evidentemente, entregá-lo aos fisicultores e médicos do clube. Depois de um certo, tempo Zico havia ganhado massa muscular e crescido dois centímetros, sem que isso interferisse negativamente no seu rendimento, na sua agilidade corporal e gestual. Não comprometeu seus dribles. O jornal britânico Daily Mirror deu destaque a esse fato acrescentando que Zico seria o primeiro jogador “biônico” do futebol. O primeiro jogador “forjado” em laboratório. N a verdade, o grupo de profissionais do Flamengo nada fez de excepcional. A equipe médica apenas procurou suprir suas deficiências advindas da desnutrição, um fato corriqueiro nos jovens que optam e conseguem se profissionalizar no futebol brasileiro. O Clube de Regatas Vasco da Gama foi um pouco mais longe nesse aspecto. Criou uma Escola de Futebol que integra crianças desde os nove anos de idade e pode levá-las ao profissionalismo. Há toda uma infraestrutura destinada especialmente a esse objetivo. A saúde, a educação escolar. a alimentação, a preparação física e até habitação estão inclusas no projeto vascaíno. O jovem vindo de outro Estado tem moradia assegurada nos alojamentos do Estádio de São Januário propriedade dessa equipe. Não é sem motivo, portanto que este clube tem conquistado nos últimos anos. a maioria dos títulos da cidade do Rio de Janeiro com equipes formadas basicamente na sua própria escola. Outras grandes agremiações do futebol brasileiro também têm esta infraestrutura com algumas pequenas diferenças. Em São Paulo. são os casos do Guarani Futebol Clube, da cidade de Campinas e do São Paulo Futebol Clube da Capital. Em Belo Horizonte, o Esporte Clube Cruzeiro, em Porto Alegre, o Sport Club Internacional, apenas para citar alguns exemplos. 124 a política Nesse momento, porém, o futebol brasileiro vive uma situação extremamente importante no tocante à sua própria estrutura. Se por um lado, ele atingiu um elevado estagio de desenvolvimento que lhe permitiu conquistar quatro campeonatos mundiais, por outro, não se pode dizer que é exatamente organizado. Não só sob a óptica da sua política administrativa, mas também sob a própria concepção do que significa o futebol profissional em nossos dias. Nessas questões, me parece, o futebol brasileiro tem muito ainda a aprender com o futebol europeu, especialmente o italiano, o francês e o alemão. O calendário anual para distribuição dos jogos tem a tradição de ser sempre muito mal elaborado. Além de fazer coincidir datas de jogos dos campeonatos estaduais e brasileiro nunca considera o compromisso extra-campeonato que um time possa ter. Não deixa dias disponíveis para imprevistos. Os jogos de campeonato são realizados até três vezes durante a semana, num ritmo que não leva em conta a recuperação física do jogador. Esse é um dos aspectos pelos quais se diz que o jogador de trinta anos no Brasil já está “velho”. Na sua política interna, já faz tempo, a CBF -Confederação Brasileira de Futebol, em certos momentos, administra esse esporte ao sabor de interesses políticos particulares. A presidência dessa entidade é um cargo arduamente disputado entre os dirigentes do futebol brasileiro. Além do prestigio pessoal, da força política em nível nacional e internacional ele permite, a médio prazo, que este presidente postule também, mais tarde, a presidência da FIF A. Foi essa a trajetória de João Havelange que, em 1998, no campeonato mundial a ser realizado na França, completará 25 anos no poder dessa entidade. No tocante à política interna dos clubes prevalece ainda um certo amadorismo administrativo. Quero dizer o seguinte: alguns dirigentes de clubes ainda não se deram conta (ou pelo menos relutam em aceitar) de que o presente e provavelmente o futuro do futebol estão coligados ao capital. Ou ainda, como se diz no Brasil, ao futebol-empresa. Só de 1992 para ca, é que o São Paulo Futebol Clube e a Sociedade Esportiva Palmeiras iniciaram, de forma ainda muito tímida, a modernização do conceito amadorista presente no futebol desse país. Ao contrário do que possa parecer, e da indiscutível paixão brasileira por esse esporte, ele é deficitário aos clubes, com poucas exceções. São os casos do São Paulo Futebol Clube e do Clube de Regatas Vasco da Gama, que apresentaram superavit em 1993. Isso não significa, porém, um desempenho habitual. O ano de 1992 foi deficitário para todo o futebol brasileiro de modo geral. Em 1994, em função da conquista do tetra campeonato mundial é possível que os clubes venham a ter superavits. Por outro lado, enquanto permanecer a desorganização administrativa e a política equivocada dos dirigentes (auto-promoção, clientelismo, nepotismo, etc.), continuará havendo também a evasão dos melhores jogadores para o exterior. Não há como concorrer com 125 os clubes europeus e mante-los jogando no Brasil. É justo que esses profissionais queiram também jogar no exterior. É lá que eles ganham muito dinheiro, projeção e prestígio internacionais. É no Brasil que eles têm a primeira consagração profissional, mas é nos times europeus que ocorre a segunda e definitiva consagração, com uma diferença significativa: ela vem acompanhada da também definitiva independência econômica. São os casos de Julinho (Fiorentina), Amarildo (Milan), Mazzola (Internazionale), Falcão e Aldair (Roma), Marcio Santos (Bordeàux), Bebeto (La Corufía), Romario (PSV Heidoven e Barcelona) e tantos outros. Basta ver que a seleção brasileira titular do mundial de 1994, apenas o jogador Zinho ainda não havia sido contratado por um clube do exterior. Todos os outros dez jogadores estavam em times europeus ou já haviam passado por Iá. Deve-se considerar aqui um aspecto importante e que envolve a economia brasileira. Já faz tempo, desde o início dos anos oitenta, o país vem enfrentando sérios problemas econômicos, num processo acumulativo de perdas. Têm aumentado, o desemprego, a inflação monetária e os problemas sociais. Ao mesmo tempo, em decorrência disso, é claro, tem ocorrido o sistemático empobrecimento da população. A instabilidade econômica que atinge a todos os setores da produção cria um clima de pessimismo e desânimo. Os salários, corroidos pelo processo inflacionário, diminuem o poder aquisitivo das classes média e proletária, as mais atingidas pelo lento processo de empobrecimento do país. Numa situação economicamente delicada como esta, a primeira providência das pessoas (a população como um todo) é cortar as despesas com o lazer. No caso brasileiro, não para economizar e se prevenir contra eventualidades e situações mais graves, mas por imposição imediata de suprir as necessidades básicas. Esse quadro, como não poderia ser de outra forma, reflete-se negativamente em todas as atividades lúdicas, entre elas o futebol. O resultado disso, é que o público se afasta dos estádios, a renda dos jogos diminui sensivelmente e os clubes entram em crise econômica. Esta situação no futebol brasileiro sucede de forma intermitente. Há determinados momentos em que se percebe uma pequena reação favorável. O torcedor começa a retornar aos estádios mas, depois de pouco tempo se retrai novamente. Não posso precisar exatamente o motivo desse fenômeno, mas acredito que ele esteja diretamente ligado às oscilações da economia. Até porque, esta situação se repete em outros setores como, por exemplo, o aumento e o declínio do consumo de produtos alimentares, eletrodomésticos, etc.. No futebol, um aspecto tem contribuído negativamente para isso: os campeonatos estaduais e brasileiro são muito mal organizados, como ja disse. Há jogos sem a menor importância e, portanto, não podem mesmo motivar o torcedor a ir ao estádio. Isso, no entanto, é apenas um detalhe de toda uma estrutura mal organizada, mal administrada e com um agravante que foge ao alcance dos dirigentes do futebol: a economia do país não vai bem. Nesses termos, dificilmente alguma coisa pode prosperar. Ainda que seja o futebol no Brasil, onde há profunda empatia do torcedor com esse esporte, a ponto de torná- 126 lo o mais importante produto da cultura lúdica brasileira. Nessa situação, a alternativa dos clubes é vender mesmo seus melhores jogadores ao exterior, nivelando por baixo os espetáculos futebolísticos no país. É mais um motivo para o torcedor não ir aos estádios. Para ele é frustrante ver os melhores jogadores do seu time serem vendidos ao exterior e substituídos, pelo menos temporariamente, por profissionais desconhecidos e sem nenhuma expressão no cenário nacional. Ele raciocina com o coração e, como torcedor apaixonado que é, tem suas razões. Ele quer vitórias, quer ver seu time brilhar e conquistar títulos. O problema, no entanto, é muito mais grave do que a simples aparência. Ainda bem que este clube tem jogadores pretendidos pelo exterior. Vende-los é a única alternativa possível para pagar as dívidas do clube, salários atrasados dos outros jogadores, encargos trabalhistas, enfim, equilibrar as finanças novamente. Ao jogador interessa ser vendido. Ao clube, claro, também. Pela lei do passe no Brasil, toda e qualquer venda de futebolista, seja em nível nacional ou internacional, ele terá direito a 15% do valor da venda do seu passe. Não bastasse isso, seu salário no exterior é muitas vezes superior ao que ele ganha no Brasil. Enfim, ter seu passe vendido significa também sua independência financeira. Quero citar um exemplo que não é exceção. Ao contrario, é rotina no futebol brasileiro. O jogador Ronaldo, 17 anos, do Cruzeiro de Belo Horizonte, reserva de Romário no mundial dos Estados Unidos, foi vendido ao PSV Heidoven da Holanda por seis milhões de dólares. Pela lei do passe Ronaldo recebeu quatrocentos mil dólares, o suficiente para viver muito bem, pelo menos no Brasil. Em 1987 sucedeu-se exatamente a mesma coisa com Romário. O Clube de Regatas Vasco da Gama que o projetou para o futebol, vendeu seu passe pelo mesmo valor e para o mesmo time. Vendo o problema por essa óptica, tem-se então a impressão de que o futebol brasileiro vai mal. É verdade sim, mas apenas no seu aspecto organizacional e administrativo. Economicamente, é claro, so poderá ir realmente bem quando o país reequilibrar sua economia. Mesmo assim, com esses aspectos desfavoráveis ele sobrevive e recentemente conquistou seu quarto campeonato mundial, recuperando todo seu prestigio internacional. Há porém, alguns fatores que impulsionam e ajudam a manter a qualidade do futebol brasileiro. Um dos mais importantes, talvez o maior, é a sua capacidade de renovação. A política dos grandes clubes, de modo geral, tem valorizado esse tipo de trabalho. Os mais bem sucedidos, como vimos são, Vasco da Gama (Rio de Janeiro) e São Paulo Futebol Clube (São Paulo) que já criaram uma infraestrutura para a renovação ininterrupta do seu elenco. Os que ainda não o fizeram também usam um sistema muito interessante e eficaz. Ele é popularmente chamado de “peneira” e consiste no seguinte: pelo menos a cada quinze dias, os milhares de jovens que desejam seu espaço no futebol profissional terão oportunidade de treinar nas dependências de um time grande ou médio, sob o olhar atento de um de seus 127 treinadores. Para cá acorrem muitos jogadores de “peladas”. Dessa grande quantidade e num trabalho meticuloso, este treinador seleciona os melhores que deverão, posteriormente, confirmar sua aptidão futebolística em outros treinos. Se confirmadas, o futuro atleta deverá ainda passar por rigorosos exames médicos para se saber da sua saúde e receber eventual tratamento médico. Foi o que aconteceu com Zico, como vimos, que mostrou excepcional talento, mas apresentava-se desnutrido e raquítico. Após esse processo, o atleta selecionado será integrado às categorias juniors do clube (depende muito da sua idade) e tem grande chance de se profissionalizar. Ele passa a treinar com os profissionais para adquirir, aos poucos, a experiência necessária. Nesse caso ele ainda não é propriamente profissional, mas já recebe uma ajuda de custos do clube para treinar e algum custeio das suas despesas pessoais. Ele não tem contrato assinado, mas apenas o que se chama de “acordo de cavalheiros”, ou seja: ele não deve deixar o clube e, em contrapartida, a qualquer momento (isso fica a critério do técnico) pode ser aproveitado para jogar no time profissional. Assim, ele teria completado toda a trajetória “hierarquica”, da “peneira” à profissionalização. A partir daí seus objetivos serão outros. Realizar bons contratos, trocar de clube posteriormente (ele ganha 15% do valor do seu passe) e, se possível, jogar no exterior onde será muito mais bem pago. Esta é a formas mais usual de se descobrir novos talentos para o futebol brasileiro e de promover a renovação a todo momento. É o princípio da quantidade que se reverte em beneficio da qualidade. Como isso acontece em todo o país e não apenas nos grandes centros, é fácil compreender por quê o Brasil tem sempre uma geração jovem de jogadores muito bons. Como é fácil, da mesma forma, compreender o gingado do jogador de futebol, a manemolência do malandro e o remelexo da mulata no carnaval. Há razões históricas e antropológicas para isso, como vimos antes. A gestualidade brasileira é uma questão cultural. Como cultural é sua incrível paixão pelo futebol. Os dribles de Garrincha, que mais parecem uma borboleta voando têm sua gênese na gestualidade libertaria e desreprimida do brasileiro. É assim que ele joga futebol. É ainda nesse esporte, no carnaval e na música, perfeitamente integrados à sua cultura lúdica, que ele encontra todo o espaço possível para improvisar com liberdade, os movimentos sensuais e imprevisíveis que brotam da sua espontaneidade corporal, essa doce magia que flutua ao sabor da sua criatividade. bibliografia básica Bosi, Alfredo. Cultura Brasileira, Editra Atica, S.Paulo, 1991 Caldas, Waldenyr. O Pontapé Inicial, Editora Ibrasa, S.Paulo,1990. Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, Editora José Olympio, 1968, 128 S. Paulo. Geertz, Clifford, As Interpretações da Cultura, Zahar Editores, 1978, Rio de Janeiro. Hollanda, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil, Editora Brasiliense, 1980, S, Paulo. Lambert, Jacaues. Os Dois Brasis,Cia. Editora Nacional, 1958, S. Paulo. Mario Filho. O Negro no Futebol Brasileiro, Editora Civilização Brasileira, 1964, Rio de Janeiro. Queiroz, Maria Isaura Pereira de. O Carnaval Brasileiro, Editora Brasiliense, 1992, S. Paulo. Skidmore, Thomas. Brasil: de Getulio a Castelo,Editora Paz e Terra, S. Paulo, 1983. Villas-Boas, Orlando. Xingu: seus indios, seus mitos, Editora Brasiliense, 1984, S.Paulo. 129 11. Futebol: A Arte e a Força Introdução A maioria dos esportes traz consigo um alto índice de competividade. Embora sejam vistos como necessárias à alma e ao lazer, as competições esportivas, paradoxalmente, quase sempre estimulam a agressividade e a violência. Estas, às vezes manifestadas fisicamente e, em alguns casos, até a nível psicológico. Deve-se registrar, no entanto, que intrinsecamente, em sua base filosófica, o esporte nada tem de violento e muito menos de agressivo. Esses atributos, com efeito, surgem justamente a partir da sua profissionalização. Transformado em mercado de trabalho é compreensível, mas não aceitável, a presença desses dois elementos. A propósito, o filosófico alemão Herbert Marcuse nos alerta sobre o significado do trabalho na sociedade industrial. Seu caráter alienante, a perda da autonomia e a agressividade, são algumas das categorias inerentes à produção capitalista, que ele prefere chamar de “sociedade da cultura afirmativa” 1. Os esportes, nesse caso, ao serem profissionalizados não seriam exceções e nem haveria motivo para tal. Seriam produtos da cultura afirmativa. Assim, por exemplo, o rugby, basquetebol, pugilismo e o futebol, exigem, hoje, dos seus profissionais não apenas a técnica. É necessário, sobretudo, exibir um porte físico que seja antes de mais nada respeitado pelo adversário. O ideal mesmo é que o intimide; que lhe dê vantagem psicológica na disputa. Competição: vitórias e condicionamento físico A competição, portanto, não se inicia mais no local da disputa. Ela hoje parte de uma outra concepção: do culto ao corpo, da exuberância física (que se pense em Narciso) e da preparação para a força bruta. Não seria exagero, nos parece, dizer que em nossos dias o desportista precisa, antes de mais nada, ser um pequeno gladiador. Do seu desempenho enquanto esportista profissional, depende um razoável número de outros profissionais. A vitória na disputa é a única forma e a segurança de se manter no emprego. É mais do que isso: de vitórias e de grandes conquistas depende o sucesso profissional 1 No livro sobre o caráter afirmativo da cultura (1970), Marcuse analisa o trabalho, lazer e individualidade na sociedade capitalista. 131 do esportista. Nesse preciso momento, a técnica pura e simples não é mais vista como suficiente. É necessário um excelente preparo físico, um corpo muito bem treinado e condicionado. Enfim, é necessária a opulência física. Não se pode, sensatamente, contestar esse comportamento. Afinal, sabemos que o atleta dotado de bom condicionamento físico terá mais chances de vitória. Nesse sentido é compreensível, e até justo, que seu corpo seja posto a serviço do seu sucesso profissional. Sabe-se ainda que o desenvolvimento e as conquistas da medicina esportiva têm levado ao esporte uma certa concepção cientificista de preparação física. Isto é muito bom, conquanto não provoque o desgaste prématuro do atleta. Dito assim, tudo parece estar devidamente equacionado e resolvido. Isso porém, não é verdade. É exatamente aqui que começam a surgir os problemas. Nesse momento, o excelente preparo físico do atleta adquire uma feição polissêmica. Ele serve para ajudar a superar lealmente o adversário, para intimidá-lo psicologicamente, para melhor resistir o tempo de disputa, mas serve, também, para ser deslealmente usado em busca da vitória. Esta é, aliás, uma prática que tem se tornado cada vez mais freqüente no esporte, especialmente no futebol. Corpo: a arma da vitória O corpo, elemento central das competições esportivas, passa a descaracterizar a própria competição, à medida que usa a força física de forma desleal para vencer o adversário. Nesse instante, a beleza, a graça e a sutileza do espetáculo enquanto tal, se esvaem. A violência reina soberana. A truculência sobrepõe-se à técnica e à racionalidade. O corpo é, ao mesmo tempo, agressor e vítima, herói e vilão. Prepondera o imponderável. Mutilar o adversário numa disputa decisiva pode não ser um ato de irracionalidade, muito menos de covardia. Ao contrário, os espectadores, o comportamento coletivo da massa 2, pode interpretar como um ato de bravura, abnegação, coragem e amor à camisa e às cores do clube. A deslealdade através da força física torna-se, naquele instante, socialmente “aceitável”. O objetivo último não é mais o espetáculo, a exibição do talento ou da técnica, e sim, a vitória “a qualquer preço”. O próprio espectador “legitima” a prática da violência nos campos de futebol, quando percebe a inferioridade técnica ou superioridade física do seu time 3. Assim, o corpo perde a condição de sujeito da competição para tornar-se simples objeto exposto ao sabor de impoderabilidade, da agressividade e da violência. Aqui, antes de prosseguir a discussão quero lembrar o trabalho do pensador alemão Max Weber sobre a 2 O conceito de massa aqui usado está baseada no trabalho de Sigmund Freud, Psicologia de las masas, Guadarrama, 1982 3 A literatura sobre a violência no esporte especialmente nos estádios de futebol, é particularmente vasta. Convém, no entento, consultar os livros de N. Elias e E. Dunning. Sport e Agressività (1989), e G. Vinnai, El fútebol como ideología. 132 Teoria da ação humana 4, onde apresenta oito diferentes tipos de violência praticados pelo homem. Mais do que uma teoria da violência e da agressão, Weber nos legou uma tipologia da violência humana, cujo teor mantém-se admiravelmente atual, principalmente se pensarmos, por exemplo, nos estádios de futebol. Futebol: profissão arte vs. violência física Sem se preocupar especialmente, com a violência praticada pelo ser humano no esporte, o pensador alemão nos mostra como são complexas e diversificadas as situações em que se pratica a violência. Neste ensaio, por se tratar de futebol - arte e força - nos interessam de imediato três itens da sua tipologia. São eles: 1. Se la violenza è effetiva o simbolica. cioè: se prende di forma di un attaco físico diretto o semplicemente implica gesti verbali e nonvenbali: 2. se la violenza è intenzionale o se e conseguenza accidentale de una sequenza di azioni che all’origine non era intenziolmente violenta: 3. se si trata di violenza cominciata senza provocazione o come reazione vendicativa a un atto violento intenzionale o non intenzionale. Basta uma rápida vista d’olhos para se perceber que a violência e a agressividade física praticadas no futebol se enquadram muito bem na tipologia weberiana. A começar pelo item n° 1 nota-se, sistematicamente, no futebol a prática efetiva da violência através da agressão física direta. Casos dessa natureza, embora corriqueiros no futebol, requerem uma pausa para melhor se pensar. Convém destacar que, nem sempre, a decisão pura e simples de agredir o adversário parte propriamente do jogador. Muitas vezes parte dos técnicos e dirigentes os quais ordenam esse tipo de comportamento ao seu jogador. Mais adiante, trataremos melhor dessa questão. No entanto, a agressão, pode ocorrer principalmente no calor da hora, no momento da disputa, porque há sempre instantes de insensatez entre os próprios jogadores (colegas de profissão) que, estimulados pela tensão da partida, podem lesar fisicamente seu colega para sempre. Esse tipo de profissional - é bom que se diga - parece estar em rápido processo de extinção. Por dois motivos importantes: ou porque começa a receber forte resistência (marginalizam-no) dos seus colegas profissionalmente mais conscientes, ou porque eles mesmos começam a tomar consciência de que, antes de mais nada, o futebol é uma profissão e deve ser vista como tal. Nesse aspecto me permito discordar de outros colegas, os quais acreditam que a violência física direta está aumentando entre os jogadores. Isso, a meu ver, não procede, principalmente no futebol brasileiro onde os registros de violência física têm demonstrado o contrário. O problema, porém, não termina aqui. Ao contrário, a partir de agora ele adquire forma multifacetada. De início, convém se pensar na seguinte questão: o que levaria um jogador de futebol usar da violência 4 O sociólogo Eric Dunning retoma a Teoria da ação humana, de Weber, em seu ensaio, “Coesione sociale e volenza nello sport”, no livro: Sport e agressività. 133 física contra seu colega? Aqui emergem algumas sutilezas, onde provavelmente a análise sociológica nos fará compreender melhor o problema. Para responder a pergunta gostaria, logo de início, de enumerar algumas situações em que o jogador, agressor e vítima, ao mesmo tempo, tem enfrentado enquanto profissional. Esta situação diz respeito especialmente ao futebol brasileiro, que vive um contexto diferente do futebol europeu. Apesar disto, convém prosseguirmos nesta análise, porque, ainda que vivam realidades diferentes, sabe-se que há algumas identidades entre o futebol brasileiro e o europeu. Futebol brasileiro: profissão e realidade Vejamos, então, o contexto onde se insere o jogador profissional no Brasil: I) procedente, na sua maioria, dos baixos estratos econômicos da população; 2) o futebol, pela sua força e popularidade, significa a grande oportunidade de ascenção econômica e social; 3) para exercer a profissão não se requer nenhum conhecimento anterior adquirido pela escolaridade formal; 4) tem as garantias legais como qualquer outro trabalhador; 5) a presença de um treinador que a todo momento pode “aprimorar” o seu futebol; 6) a presença da diretoria do clube cujo presidente assume as funções de seu patrão; 7) a grande concorrência e a espera da oportunidade de ser chamado para treinar e mostrar as suas qualidades para jogar futebol. Eis aqui, alguns elementos que podem nos ajudar a compreender a dinâmica e o binômio futebol/violência física no Brasil, lembrando o primeiro item da tipologia da violência humana de Max Weber, segundo a qual a violência se dá diretamente pela agressão corporal. O Rio de Janeiro e São Paulo são as expressões máximas do futebol brasileiro. Uma espécie de “vitrine” do nosso futebol. E, também, nessas cidades - nos subúrbios, favelas e periferias - onde se concentra uma massa humana extremamente pobre, desqualificada profissionalmente e, o que é mais grave, a maior parte desempregada. Precisamente junto a essas populações que os grandes clubes, como o Vasco da Gama, Flamengo, Fluminense, Botafogo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo e outros, vão recrutar a maioria dos seus jogadores. Depois de consagradas no futebol brasileiro, eles quase sempre são vendidos a clubes europeus, especialmente portugueses, italianos e espanhóis. Essa trajetória, porém, é feita muitas vezes de forma sinuosa, na qual o jogador se submete a situações as quais nem sempre concorda. Por outro lado, suportar as adversidades significa, concretamente, a possibilidade de emergir da situação de pobreza para um nível sócio-econômico bem superior; significa mais do que isso: é chegar a um lugar de destaque, admiração e popularidade. Esta é, enfim, a grande oportunidade de ascenção econômica e social que 134 um jogador, em início de carreira, pode ter. Não se “exige” nenhuma escolaridade. Ao ingressar na categoria “júnior”, o futebolista tem grandes chances de chegar a assinar um contrato como profissional. É nessa categoria onde se inicia os treinamentos tático, técnico e físico. Este último, quando necessário, objetiva aumentar a massa muscular do atleta para que ele possa competir em igualdade de condições com os adversários. Esse foi, por exemplo, o caso de Zico, que chegou ao Flamengo magro, baixo e desnutrido. Após o tratamento, o jogador ganhou peso, estatura e força muscular. Por razão dessa transformação, o jornal inglês Daily Mirror chamou o jogador de “a primeira descoberta biônica do futebol”. Convém registrar que o tratamento a que Zico foi submetido para melhorar a performance corporal não é mais uma exceção. A fisicultura dos esportes já faz isso de forma sistemática. Em síntese, os grandes clubes brasileiros põem à disposição de seus futebolistas uma infra-estrutura capaz de atender às suas necessidades, pelo menos no tocante à saúde física. Tudo isso não passa de um investimento muito bem feito, uma vez que, mais tarde, o clube receberá de volta todo o capital investido e seus respectivos dividendos, através de grande rendas pelos campos nacionais e internacionais, ou pela venda pura e simples do passe do jogador a clubes europeus. Esses foram os casos de jogadores como o Alemão, Careca, Casagrande, Falcão, Amarildo, Cerezzo, Zico e tantos outros, apenas para citar nossos contemporâneos. Acontece que essa é uma prática iniciada no final dos anos 20, quando o futebol brasileiro já não era mais amador - embora oficialmente o fosse. Um aspecto, no entanto, é inegável. A relação dos clubes com os jogadores em nada, na verdade, se diferencia de qualquer outro tipo de atividade econômica. As relações de produção se desenvolvem bem nos moldes da análise marxista do capital e do trabalho. Amilcar Brabuy, jogador brasileiro dos anos 20 e 30, foi um dos pioneiros na reivindicação do seu justo salário. Nessa época o futebol, no Brasil, ainda era um esporte da elite. Esclarecido e consciente do seu valor profissional, Amilcar abre o mercado para os jogadores brasileiros no exterior. Diz ele: “Vou para a Itália. Cansei de ser amador no futebol onde essa condição há muito tempo deixou de existir, maculada pelo regime hipócrita da gorjeta que os clubes dão ao seus jogadores, reservandose para si o grosso das rendas. Durante vinte anos prestei desinteressadamente ao futebol nacional meus modesto serviços. Que aconteceu ? Os clubes enriqueceram e eu não tenho nada. Vou para o país onde sabem remunerar a capacidade do jogador 5.” Esta situação, porém, mudou muito pouco no Brasil durante todos esses anos. São poucos os jogadores profissionais que aqui desejam permanecer, sabendo que podem ser muito melhor remunerados no exterior. Posto isso, cabe uma pergunta: como se sente e o 5 Floriano Peixoto Corrêa, Grandezas e misérias do nosso futebol. Rio de Janeiro, 1933 135 que fará um jovem favelado que vislumbra a possibilidade real de vestir a camisa de um grande clube brasileiro e depois se transferir para o exterior ? A conjuntura brasileira encontra-se, hoje, numa situação extremamente delicada. A economia é hoje, o melhor reflexo desse “malestar” na sociedade. A inflação de 1989 atingiu, oficialmente, a percentagem de 1.965 pontos. Assim, da mesma forma está o futebol. Economicamente mal, às vésperas da Copa do Mundo na Itália, mas surpreendentemente bem no campo de jogo. É dentro desse contexto que deve ser analisada a violência corporal e a agressividade do jogador brasileiro. Rigorosamente, com esse comportamento ele apenas reproduz um contexto sócio-econômico extremamente hostil, violento e vilipendioso, cujo conteúdo mais profundo não está na violência corporal do futebol. Outros profissionais também reproduzem essa violência e agressividade. A rigor, a sociedade e as relações sociais são violentas no Brasil. O país está muito próximo de uma convulsão social espontânea (em 1982 já se esboçara algo parecido) em face do momento extremamente crítico por onde passam os médios e baixos estratos da população. A quem conhece bem a realidade brasileira não causaria nenhuma surpresa a emergência imediata da luta de classes. E não poder-se-ia, em sã consciência, usar o velho e desgastado argumento de que a luta de classes é produto da “intrusão” estrangeira. Os setores da produção e o mercado de trabalho vivem hoje uma letargia e um reflexo tão profundos, só comparáveis à famosa frase do Hino Nacional Brasileiro que diz o seguinte: (...) deitado eternamente em berço esplêndido ao som do mar e à luz do céu profundo ... Este sim é, precisamente, o retrato fiel da sociedade e da economia brasileira. Assim, frágil em sua formação escolar - como a imensa maioria do país - o jovem futebolista procura se fortalecer em sua estrutura física. Muitas vezes o faz até inconscientemente. É do seu corpo, da sua massa muscular que vai depender, em grande parte, seu sucesso profissional num pais sem perspectivas. Tudo isso não significa, necessariamente, que seu corpo deva ser usado como instrumento de destruição de outros companheiros como tem-se visto sistematicamente. Há que se pensar que muitas vezes o próprio jogador é compelido a usar seu corpo como instrumento de violência ou de intimação psicológica o que, em outros termos, também é uma forma terrível de violência e agressão. Nesse caso, a violência é extrínseca. Ela emana de acontecimentos anteriores, de situações vividas e mal resolvidas no cotidiano, mas no momento do jogo, pode ser sublimada através da agressão física ao colega de profissão; e, ainda, pode ter o caráter do que se pode chamar “violência ordenada”. Esta é, infelizmente, para o jogador. para o futebol, enquanto espetáculo. e para o próprio espectador, a mais espúria, a mais maledicente das formas de se praticar a violência. Ela é produto da estrutura autoritária e antidemocrática que muito bem ca- 136 racteriza o futebol brasileiro, desde 1933, quando profissionalizou-se. Futebol brasileiro: estrutura e formação Assim, para melhor se entender a “violência ordenada”, necessário se faz conhecer, ainda que de passagem, a estrutura autoritária do futebol brasileiro. Portanto, vamos a ela. Sem exceção, os clubes de futebol no Brasil possuem, na formação da sua diretoria, o diretorpresidente, cuja função administrativa consiste em gerir todos os interesses do clube; e o diretor de futebol, o qual se ocupa exclusivamente dos interesses desse esporte. Esses dois cargos possuem uma força política muito grande e, a eles, quase sempre são creditados os méritos ou deméritos que o clube venha a adquirir nos campeonatos brasileiros, regionais e torneios. Enfim, em toda atuação da esquadra. O treinador, embora não faça parte da diretoria, tem muita força e autoridade junto ao time - desde que faça dele uma esquadra vitoriosa. Caso contrário, pode ser despedido ainda nos vestiários, após uma ou duas derrotas seguidas. Dessa forma, não é à toa que os treinadores, no Brasil, têm consciência de que seu emprego só estará garantido se o time for vitorioso. Osvaldo Brandão, um dos mais famosos treinadores brasileiros, com diversas passagens pela seleção nacional, tem uma frase que retrata muito bem a situação desses profissionais: “no Brasil, o treinador só tem feijão na mesa se tiver vitória no campo”. É fácil, então, imaginar o clima de horror em que trabalham os treinadores brasileiros. Assim, a vitória torna-se um objetivo a ser alcançado a qualquer custo, caso contrário, a demissão é eminente. Obtê-la, transcende o imaginário inerente ao universo da competição esportiva para integrar-se ao mundo dos expedientes escusos e da violência. A conquista de bons resultados significa a manutenção da unidade do time e do técnico. No caso da seleção brasileira o problema é, evidentemente, mais grave. Envolve, entre outras coisas, questões de honra nacional. Só a vitória interessa. A conquista de um vicecampeonato tem o mesmo sabor amargo de uma desclassificação prematura. É visto como vexame, desonra e humilhação. Quando em 1982 o Brasil, franco favorito para conquistar o seu quarto campeonato mundial, perdeu em Sarriá (Espanha) para a Itália, por 3 a 2, foi o caos. O torcedor brasileiro ficou atônito, sentindo-se humilhado e a mídia tratou logo de “encontrar as causas da humilhação”: a “covardia” de Toninho Cerezzo, que não foi “macho” e chorava em campo; e a “incompetência” do técnico Telê Santana que, mesmo com o resultado do empate beneficiando o Brasil (seria a classificação para as semifinais), ordenou o time que continuasse atacando a esquadra italiana. As conseqüências do “desastre de Sarriá” (o nome que a imprensa arranjou e, masoquisticamente, o torcedor brasileiro o consagrou) foram muito sérias na vida de Cerezzo e Telê Santana - os mais responsabilizados pela derrota. O primeiro não conseguiu se libertar da imagem de “covarde” junto ao torcedor brasileiro, e o segun- 137 do, tem hoje nos meios futebolísticos do seu país, a imagem de técnico-perdedor. Com efeito, esse não é um caso isolado. A gênese dessa obsessão mórbida pela vitória a qualquer preço, surge ainda por ocasião do quarto campeonato mundial, em 1950, sediado justamente no Brasil. É precisamente nesse momento - na última partida do campeonato (Brasil e Uruguai) - que a imprensa e os torcedores passariam a viver a “síndrome da derrota” e a justificar a violência como forma de se chegar à vitória. A seleção brasileira, uma vez mais, era a melhor e a favorita para vencer o campeonato. Tinha tudo a seu favor. Coincidentemente vivia até um hiato democrático no governo do presidente Eurico Gaspar Dutra. Cartolas e jogadores já eram vistos pela população como os novos “gênios da raça”. Era apenas uma questão de horas e o Brasil emergiria do seu anonimato de país colonizado e do subdesenvolvimento pleno, para “glorificar” seu povo através do futebol. No dia 16 de junho de 1950, o Estádio do Maracanã estava literalmente lotado. Havia 220 mil pessoas dentro do Estádio e outras 60 mil do lado de fora querendo entrar. Uma das últimas frases do técnico Flávio Costa a seus jogadores antes de entrarem em campo foi a seguinte: “em cada ponta da chuteira de vocês, há milhares e milhares de corações brasileiros. Vamos lutar, vamos brigar. Vamos tirar sangue se for preciso. É uma partida de vida ou de morte 7”. Foi esta a “preparação psicológica” recebida pelos jogadores. Naquele momento, porém, os atletas não iriam disputar apenas um titulo mundial de futebol. Estava em jogo a “honra nacional”, a “dignidade da raça brasileira”. Enfim, todos os valores nacionais que tão bem caracterizavam o exacerbado nacionalismo verde-amarelo, resquícios do integralismo de Plínio Salgado, versão cabocla do fascismo europeu. Justamente por ser o adversário um latino-americano havia, portanto, mais um ingrediente nessa “luta”. O vencedor teria a homologação simbólica e real, ao mesmo tempo, da hegemonia do futebol nas Américas. A Argentina, o mais temível adversário, havia sido eliminado. Caberia ao Brasil e Uruguai, a disputa pela hegemonia. Ao Brasil, bastaria o empate e a glória seria alcançada. Mas ninguém pensava nisto. A vitória era tida como certa. Ao Uruguai, por sua vez, só interessava a vitória. O empate, formalmente, teria o mesmo efeito da derrota. Inicia-se o jogo e, no primeiro tempo, o Brasil marca 1 a O. A esquadra brasileira não jogava bem, mas “honrava a pátria”. A única chance brasileira de conquistar a vitória teria que ser mesmo através da habilidade técnica, porque fisicamente os uruguaios eram bem mais fortes. Subitamente, no segundo tempo da partida, a situação começa a se inverter. Os uruguaios empatam o jogo e fazem prevalecer sua superioridade física usando o corpo para interceptar a maior criatividade técnica dos jogadores brasileiros. A tão conhecida “garra” uruguaia 7 Revista Sport Ilustrado, 19/7/1950. 138 começava a se transformar em violência física no Estádio do Maracanã, que assistia estupefato os jogadores brasileiros “aceitarem” a superioridade física dos uruguaios, e a se “acomodarem” em sua visível inferioridade física. Impõem-se aqui, uma vez mais, o caráter ideológico do discurso integralista: a vergonha do corpo. Desta vez, não mais como desvalorização rancorosa da sexualidade como o fizeram Plínio Salgado, Custódio Viveiros, Gustavo Barroso e outros, mas como pecha da nação. O “raquítico corpo brasílico”, produto nato do subdesenvolvimento, não podia usar a mesma arma dos menos subdesenvolvidos uruguaios: a violência. De nada resultara a preparação psicológica do técnico Flávio Costa antes do início da partida: “vamos lutar, vamos brigar. Vamos tirar sangue se for preciso”. Jogando futebol, aí sim, o Brasil teria todas as chances. Era melhor. Agora, descaracterizar a competição entremeando-a com luta corporal, era transformá-la num espetáculo hediondo. A maior surpresa, porém, a grande “humilhação à patría” ainda estaria por vir. Aos 36 minutos do segundo tempo, a seleção uruguaia faz seu segundo gol e termina por vencer a partida e o quarto campeonato mundial. Impossível acreditar. O país passava pela maior “humilhação” esportiva de sua história. Não estava em jogo, naquele momento, apenas o futebol. A vitória teria reflexos políticos satisfatórios ao Estado, embora o torcedor não tivesse consciência disso 8. O país estava consternado e a multidão no Maracanã, atônita e em estado de choque, não conseguia sair do Estádio. Um quadro verdadeiramente patético. Um trauma coletivo. Tristeza, lágrimas, depressão e quatro mortes. O Maracanã transformou-se no palco da tragédia nacional. Passada a comoção, a imprensa inicia a “análise” da derrota. Conclusão: a seleção acovardou-se diante da violência uruguaia, mas dois jogadores foram ainda mais “covardes” que os outros: Barbosa, o goleiro e Bigode, lateral esquerdo. Eles foram considerados os maiores responsáveis pela derrota, porque não agrediram, foram agredidos e não reagiram. Bigode, por exemplo, passou pela incômoda situação de ter recebido de Obdulio Varela, capitão da seleção uruguaia, uma cusparada no rosto e, em seguida, ter sido chamado de “macaquito” 9. Bigode é negro, ainda vive e mora no Rio de Janeiro. Embora derrotado, o Brasil foi vice-campeão do mundo o que, na verdade, para o torcedor brasileiro não representa absolutamente nada. Aliás, ao contrário, ele se sentia humilhado vendo o orgulho nacional (o futebol) ferido e desmoralizado. Profissionais que eram, Barbosa e Bigode tiveram muita dificuldade em continuar jogando futebol. A imprensa e a torcida os estigmatizaram de “covardes” abreviando sua profissão de futebolistas, encerrada pouco depois da grande derrota brasileira. Este acontecimento de triste memória para os brasileiros não 8 Por tradição, o futebol no Brasil em função da sua popularidade, sempre foi usado como instrumento político por parte do Estado. Na linguagem althuseriana, este esporte é, no Brasil, um dos mais eficientes aparelhos ideológicos do Estado. 139 foi um episódio a mais em seu futebol. Ele permanece vivo. Sempre que jogam Brasil e Uruguai, em qualquer lugar, a imprensa brasileira conclama torcedores e jogadores. a irem à forra. O trauma ficou e a ferida permanece aberta, mas com um agravante no decorrer do tempo: o inegável complexo de país de Terceiro Mundo, sublimado nos anos 70 com o nacionalismo autoritário, com a xenofobia crescente e com a farsa do “milagre econômico” do governo Médici. Hoje, apesar da conquista de quatro campeonatos mundiais, o torcedor e o povo brasileiro de modo geral começam a entender uma realidade que transcende o prosaico universo do futebol. A necessidade do país se organizar politicamente. De derrubar as velhas e encardidas estruturas autoritárias, que sempre manipularam o poder no Brasil, justamente contra o desavisado torcedor que traumatizou no Maracanã, parte da sua existência lúdica, da sua relação telúrica com o país, certamente por acreditar que a pátria é mais importante que a vida. Esse é o primeiro axiológico do fascismo caboclo. Digo, do integralismo brasileiro, personificado na figura retoricista e bacharelesca de Gustavo Barroso. Ao estilo beletrista e abusado de paráfrases e metáforas canhestras ele escreve: “amai o Brasil para poderes morrer pelo Brasil nas grandes lutas que se aproximam, quando às sombras esvoaçantes das bandeiras cor de sangue se cantarem. sob a batuta judaica profanando a nossa pátria, as estrofes da interncional 10”. Foi contra a presença deste fascismo à moda brasileira, que parte expressiva do povo, do torcedor brasileiro votou nas eleições presidenciais de novembro de 1989, outorgando a Luís Inácio da Silva (Lula) um respeitável sufrágio. Não fossem os casuismos eleitoreiros, os lances oportunistas e desonestos de última hora e a força de parte da mídia eletrônica, parceira do conservadorismo político brasileiro, o resultado das eleições, seguramente, teria sido outro e o país estaria emergindo do grande marasmo e inércia política que tem caracterizado sua história. Assim, é necessário que se entenda um aspecto muito importante: os insucessos colhidos pelo Brasil nos esportes e, especialmente no futebol, não é uma questão de “covardia” ou de “heroísmo”, de “amor à pátria” ou “mercenarismo”. É antes de mais nada, isto sim, o reflexo da estrutura política e econômica do pais, a qual sempre foi capenga; estimulando a proliferação de uma população pobre, miserável e subnutrida, cuja paixão pelo futebol supera, em alguns momentos, a falta de vitaminas, proteínas, carboidratos, enfim, os componentes alimentares que qualquer atleta deveria ter . A derrota do Brasil para o Uruguai, em 1950, não foi a derrota do futebol brasileiro. Foi a derrota da fome, do raquitismo e da subnutrição. Foi na verdade, em sua essência, a derrota da estrutura política, econômica e social do país imposta pelo velho establishment, 9 A expressão “macaquito” foi usada pela primeira vez por torcedores argentinos em Buenos Aires, quando os jogadores brasileiros (em sua maioria negros), em 1919, foram disputar o campeonato Sul-Americano. 10 Gustavo Barroso, 1935 140 que hoje, ironicamente, se traveste de atleta “lutando” karatê no Japão e criando a imagem pública de homem saudável, maratonista e vencedor. Estou me reportando ao presidente eleito, Fernando Collor de Melo. Como poderiam, então, Barbosa e Bigode agredir os opulentos uruguaios e fazer do seu corpo um escudo de defesa da “honra nacional”? Da mesma forma que o futebol e o esporte como um todo precisam de atletas competentes para fazer o espetáculo, não necessita de Dom Quixote e muito menos de Rambos. O corpo não feito para apanhar, ser maltratado, vilipendiado. Ele foi feito para o homem usufruí-lo de forma harmônica, pacifica, plena e saudável. Foi feito para viver o “princípio de prazer” em sua dimensão freudiana. O corpo é EROS, definido sabiamente por Herbert Marcuse, “como a grande força unificadora que preserva a vida toda” 11. A violência corporal, ao contrário, identifica-se com a agressão, com o “instinto de morte”. A violência é THANATOS, é destrutividade e morte. Nesse sentido é que o futebol, enquanto espetáculo, jogado por profissionais sérios e conscientes de que sua profissão não é gladiar, identifica-se com EROS. Perseguir a vitória às custas da violência corporal, do seu próprio sangue e do sangue adversário como incitou o técnico brasileiro em 1950, é o que há de mais espúrio profissionalmente. É a antivirtude. É o produto de um comportamento predominante hostil e perverso que visa submeter EROS ao instinto de morte. Esse comportamento no futebol brasileiro, no entanto, não é tão raro quanto possa parecer, muito embora, como já dissemos, tem diminuído sensivelmente. Reconhecido como um futebol de alto nível técnico, isso não impede que treinador e jogador, acossados pelo fantasma da perda do emprego assumam, deliberadamente, a violência corporal, como forma “válida” para manterem-se empregados. No Brasil, a derrota é sinônimo de desemprego. Desnecessário dizer, que este é um comportamento de absoluta falta de solidariedade profissional e até de consciência de classe. Gostaria de citar um exemplo do que estou registrando para melhor caracterizar este fenômeno. Trata-se de um episódio (mais correto seria dizer atentado) que se passou com Zico, um dos mais brilhantes e habilidosos jogadores brasileiros. Em 29 de agosto de 1985, jogavam Bangu e Flamengo no Maracanã, Rio de Janeiro. Ao Bangu, apenas a vitória poderia lhe dar chances de prosseguir na disputa pelo campeonato carioca. O jogador Zico estava escalado para jogar e, grande craque que era, costumava desequilibrar a partida a favor do Flamengo. A alternativa, encontrada pela comissão técnica do Bangu, foi alijar Zico da partida. Assim, no decorrer do jogo, um jogador banguense acerta, intencionalmente, o joelho de Zico. Este atleta, até o momento, já se submeteu a cinco cirurgias, que muito pouco melhoraram sua condição física. Seu joelho ficou definitivamente lesado obrigando-o a antecipar o fim da carreira profissional como jogador. 11 Herbert Marcuse, 1966 141 Convém destacar que este é apenas um caso entre tantos outros que ocorrem no futebol brasileiro. Lamentável, no entanto, é registrar que a refinada técnica de grandes atletas - como Zico, Sócrates, Falcão, entre outros - tem que conviver e enfrentar a truculência de impostores do futebol. São os jogadores que só sabem ser violentos usam o corpo como se fossem gladiadores - e não profissionais da bola. Esses jogadores enfeiam e destroem o futebol enquanto espetáculo. Diferente dos profissionais competentes, os impostores do futebol colocam-se em posição oposta, usando a repressão e a coação física como instrumento de trabalho. Impõem-se aqui, a teoria freudiana do antagonismo, da luta primordial pela existência, que separa o “princípio de prazer” do “princípio de realidade”. A truculência e a violência física materializam-se como instrumento de repressão, de subjugação, da mesma forma que “o princípio de realidade” materializa-se num sistema de instituições” de controle social com suas leis repressivas. O que diferencia os impostores do “princípio de realidade” é algo quase imperceptível. Mas, enfim, há uma diferença. Os impostores, com a sua truculência causam lesão física imediata, e o “princípio de realidade”, usando de suas leis repressivas e de controle social, causa a lesão psíquica a longo prazo. A identidade entre ambos reside justamente no fato que ambos são repressivos. Um destrói o corpo, o outro reprime a alma. Nesses termos é que os impostores do futebol se distanciam do “princípio de prazer” e se identificam com o “princípio de realidade”. Na concepção freudiana o princípio de realidade materializa-se num sistema de instituições. E o indivíduo, evoluindo dentro de tal sistema, aprende que os requisitos do princípio de realidade são os da lei e da ordem, e transmite-os à geração seguinte.te 12. Esta situação, ainda a propósito da teoria freudiana, é radicalmente oposta ao “principio de prazer”, de onde está próxima a arte futebolística de atletas como Garrincha, Falcão, Pelé, Zico, Ademir da Guia, Di Stefano, Maradona, Gullit e tantos outros citando apenas os contemporâneos. A diferença entre esses dois tipos de profissionais (o truculento e o técnico) é a mesma existente entre a arte e a força bruta. Entre a arte e a farsa. Ou ainda, para usar a expressão consagrada por Abraham Moles, entre a arte e o Kisch. A truculência no futebol é um arremedo. É o comportamento espúrio do profissional incompetente. O torcedor não gosta disso. Ele prefere o espetáculo futebolístico, os movimentos elegantes e técnicos do jogador habilidoso e competente com a bola nos pés. O corpo e os lances limpos, elegantes, fazem o espetáculo para os olhos e a alma. Se seu time perder, certamente ganhará em beleza e movimentos harmônicos, que só o futebol de verdadeiros profissionais pode proporcionar. Só o futebol dessa qualidade, com este refinamento técnico, pode levar ao “princípio de prazer” irrestrito. E mais: é uma forma 12 Herbert Marcuse, 1966. P. 36 142 eficiente de denunciar a truculência, a barbárie, que enfeia e entristece as tardes de domingo do torcedor interessado no espetáculo futebolístico. Nesse caso, viva a arte de Falcão, Ademir da Guia, Maradona e Gullit. Viva a arte de Garrincha. Esses são profissionais que fizeram e fazem do futebol -, um espetáculo de arte e movimento. Garrincha era o próprio movimento corporal. Rápido, intrépido e talentoso, ele era implacável com seus adversários. Fossem eles, leais ou desleais. Sua velocidade de raciocínio e de movimentos jamais permitia que o adversário o acompanhasse. Era terrível. Tudo em Garrincha era imprevisível. Menos seus dribles que eram, ao mesmo tempo, certos, perfeitos, desconhecidos e desconcertantes. Uma contradição aparente e uma poderosíssima arma contra seus adversários truculentos que visavam, não tomar-lhe a bola, e sim, acertar-lhe as pernas tortas - uma ironia da natureza. Não havia pernas mais certas para preparar e executar o drible. Aquelas pernas tortas (ambas inclinadas para o lado esquerdo) eram imbatíveis. Foi o único jogador na história do futebol que driblava o adversário com a bola parada. Garrincha usava apenas o movimento corporal. Corria dois, três metros sem a bola e o adversário o acompanhava sem perceber que havia deixado a bola no mesmo lugar. Ele voltava para pegá-la e o adversário ficava sem ação. Até o torcedor do outro time delirava. Enfim, não foi sem motivo, que este excepcional jogador recebeu, unanimemente, da imprensa esportiva brasileira, o carinhoso e merecido apelido de “Garrincha, a alegria do povo”. Mais tarde, em 1962, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade faria um filme sobre sua vida, dando exatamente o nome de seu apelido. Hoje, na literatura esportiva do Brasil, há quatro livros que tratam da vida futebolística de Garrincha. Mais recentemente, em setembro de 1989, a revista de ciências sociais Actes, n° 79, editada em Paris e dirigida pelo sociólogo Pierre Bourdieu, dedicou nada menos que 15 páginas para falar da trajetória futebolística e da morte ocorrida, em 1983 de Manoel dos Santos Garrincha. Garrincha, no entanto, era um tipo de “anti-herói” do futebol. Suas pernas tortas eram sua marca registrada, ao mesmo tempo, caracterizavam seu notório defeito físico. Quando andava mancava visivelmente, quando corria com a bola tudo desaparecia. Era irresistível. Só a violência corporal o detia, mesmo assim, quando conseguiam acertá-lo. No Brasil, com certeza, Garrincha foi o único jogador portador de defeito físico a assinar contrato como futebolista profissional. Isso ocorreu em 1953, quando passou a jogar pelo Botafogo Futebol e Regatas do Rio de Janeiro. Antes disso, porém, tentou jogar pelo clube de Regatas Vasco da Gama e Fluminense Futebol Clube, mas foi dispensado sem nem ter oportunidade de treinar, por causa das suas pernas tortas. Semialfabetizado e extremamente ingênuo, ele foi vítima da sua própria boa fé e das falcatruas dos dirigentes, os quais sempre lhe ofereceram péssimos contratos. 143 Ao contrário de outros jogadores famosos de sua época, não fazia qualquer tipo de autopromoção, embora sua popularidade só fosse comparável à de Pelé. Garrincha gostava mesmo era de criar passarinhos em sua casa. Permito-me, por outro lado, discordar da opinião divulgada pelos veículos de comunicação de massa que elegem Pelé, o maior jogador de todos os tempos. Sem nenhum demérito a este genial jogador, Garrincha está exatamente no mesmo nível. A única diferença reside na sua extrema simplicidade e no desinteresse em promover-se profissionalmente. De uma coisa, porém, nós podemos estar certos: Garrincha não inventou o drible mas, sem dúvida, o aprimorou a um estágio de perfeição. Se o drible, como diz Antonio Roversi, é “uno stile consistente non più nell’aggredire, manell’aggiare l’avversario con la palla al piede” 13, então Garrincha foi o seu grande mestre. Ele passou para a história do futebol brasileiro como o seu maior driblador. O fato é que Garrincha já fazia o drible no corpo antes mesmo de conhecer o futebol. Suas pernas tortas, seus movimentos sincronizados e atípicos, ao mesmo tempo, são o próprio drible. Quem o visse andando e mancando, jamais imaginaria que ali estava um grande driblador. Por isso, a meu ver, seu corpo é o próprio drible. Quando menos, enganava tanto quanto o drible. Ao contrário dos jogadores truculentos, ele acreditava muito mais na sua rapidez de raciocínio e na competência de dominar a bola nos pés, do que no seu potencial físico, na luta corporal direta com o adversário. Talvez por isso, deslizasse entre seus adversários sem que estes pudessem atingi-los. Quem não teve a oportunidade de assistir o espetáculo dos desconcertantes dribles de Garrincha, aterrorizando seus adversários, pode vislumbrá-los hoje. Para tanto, basta imaginar o vôo de uma borboleta. Nunca se sabe para que lado ela vai. Garrincha era assim. Uma borboleta “voando” sobre a grama, e os adversários nunca sabiam onde achá-lo, embora sempre estivesse indo, com a bola, em direção a eles para fazer o que mais sabia e gostava: driblar. Este era o futebol de Garrincha. A técnica, a rapidez, os movimentos perfeitos no momento certo. A “finta corporal” como se fosse a borboleta voando. Enfim, este é o chamado futebol-arte praticado por estilistas e profissionais de alta técnica. O Corpo e o futebol Com efeito, os jogadores de refinada técnica têm, mas últimas décadas (de 1970 até hoje), perdido parte do seu espaço, em benefício de atletas de maior vigor físico. Esta é, na verdade, uma prática que ganha prestígio entre fisicultores e treinadores de futebol a partir de 1974, quando o futebol alemão conquistou pela segunda vez, o Campeonato Mundial. A esquadra alemã, que no jogo final superou a refinada técnica 13 As palavras de Antonio Roversi estão contidas na Introdução do livro Norbert Elias e Eric Dunning, Sport Agressività... já citado, p. 12. 144 da seleção holandesa, era formada por jogadores fisicamente bem dotados. É nesse momento que surge uma questão importante no universo do futebol. Coloca-se a seguinte pergunta: qual a forma mais eficiente de se chegar a vitória: é através do futebol técnico ou de um futebol estruturado no vigor físico? A experiência de 1974 demonstrara que a força {Alemanha) havia superado a técnica (Holanda). De tudo isso, no entanto, sobrou a revolução tática e técnica, engendrada pelo treinador holandês Rinus Michels, que ficaria conhecida pelo nome de “carrossel”. Ocorre que a tática do “carrossel” também exigia um preparo físico exuberante do jogador, embora não precisasse ser fisicamente avantajado como era toda a seleção alemã daquele campeonato. Dessa discussão entre a força e a técnica, os treinadores de futebol chegariam à conclusão mais sensata: o ideal é dirigir um time fisicamente forte e tecnicamente aprimorado. Uma utopia, é claro. Uma das duas alternativas, porém, deveria prevalecer. Como a tendência de qualquer evolução tática no esporte em geral - e o futebol não é exceção - é envelhecer, torna-se superada, é evidente que a opção seria pela opulência física. Nesse momento, é que o chamado futebol-força passa a ser contemplado. Torna-se um acontecimento de âmbito internacional e não apenas europeu. A experiência alemã obteve êxito, atravessava o Atlântico e chegava à América. Por uma ironia histórica, o futebol brasileiro, respeitado por sua refinada técnica, entrava em crise. A geração campeões mundiais, em 1970, começava a se despedir do futebol e não apareciam substitutos à altura. Dentro do próprio país, o futebol começava a perder prestígio. O público nos estádios diminuía e os clubes entravam em crise econômica. A solução, evidentemente, não estava em assimilar o chamado fulebol-força dos alemães em especial e tampouco da Europa como um todo. Mas foi esta a alternativa em face da crise técnica porque passava o futebol nacional. Ao torcedor brasileiro isto significava muito. Entre outras coisas, representava ferir seu orgulho e reconhecer que no seu país já não se praticava o melhor futebol. Mais grave era notar a visível transformação pela qual passava o futebol brasileiro que, por falta de opção e de jogadores técnicos, introduzia a concepção do futebol-força alemão, vitorioso em 1974. A técnica cedia espaço à força. Para a frustração do torcedor brasileiro e do orgulho nacional, a conseqüência pior estaria por vir. A imagem que se criou e se tornou uma espécie de instituição e de símbolo nacional começava a desaparecer dos estádios. Um tipo assim de “marca registrada”, não só do jogador brasileiro, mas também, do cidadão brasileiro. Trata-se da manemolência, do gingado, do jogo de corpo, enfim, de uma certa astúcia corporal que o brasileiro acredita ser uma peculiaridade sua. Certo ou não, o fato é que alguns antropólogos e sociólogos, entre eles, Gilberto Freyre, tentam explicar estas características através do hibridismo afro-brasileiro. Vejamos o que diz Gilberto Freyre: 145 “...o desenvolvimento do futebol, não num esporte igual aos outros, mas numa verdadeira instituição brasileira, tornou possível a sublimação de vários daqueles elementos irracionais da nossa formação social e de cultura. A capoeiragem e o samba, por exemplo, estão presentes de tal forma no estilo brasileiro de jogar futebol que um jogador um tanto álgido como Domingos da Guia, admirável em seu modo de jogar, mas quase sem floreios - os floreios barrocos tão do gosto brasileiro - um critico da argúcia de Mário Filho pode dizer que ele está para o nosso futebol como Machado de Assis para a nossa literatura, isto é, na situação de uma espécie de inglês desgarrado entre tropicais. Em moderna linguagem sociológica, na situação de um apolíneo entre dionisíacos. (...) com esses resíduos é que o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é. A dança dançada baianamente por um Leônidas e por um Domingos, com uma impossibilidade que talvez acuse sugestões e influências ameríndias sobre sua personalidade ou sua formação 14”. A citação é longa, mas esclarecedora. Necessária. Como se pode observar, a instituição do gingado, da manemolência e do jogo de corpo já tem tradição no futebol brasileiro. A partir da conjunção dos dois fatores: a crise técnica e a consequente introdução do futebol-força - o gingado, o jogo de corpo (que se pense em Garrincha) e a manemolência passariam, lentamente, a desaparecer dos estádios brasileiros. Em 1975 já se percebia com clareza a influência do futebol-força no Brasil. O Sport Club International de Porto Alegre contrata o técnico Rubens Minelli conhecido por sua competência profissional. Intransigente defensor do futebol-técnico Minelli, ironicamente, inaugura o futebol-força no Brasil, conquistando o campeonato brasileiro daquele ano. Em 1976, com o mesmo time, ele sagra-se bicampeão. A contradição de Minelli, na verdade, é apenas aparente. Quando estruturou o time do Internacional procurou contratar jogadores de grande porte físico, ainda que tecnicamente limitados. Ocorre que estavam nesse elenco, jogadores como Falcão, Batista, Elias Figueiroa e Dario. Todos eles dotados de bom porte físico e tecnicamente respeitáveis. Assim as conquistas de Minelli e do seu Internacional se devem, fundamentalmente, à oportunidade de se mesclar técnica e força. A concepção do futebol-força, no Brasil, atinge o ponto máximo no Campeonato Mundial da Argentina em 1978. Cláudio Coutinho, capitão do Exército e treinador da seleção, resolveu optar pela força e deixar a técnica do jogador brasileiro em segundo plano, baseado no seguinte argumento: “o campeonato mundial da Argentina será a competição da força e da virilidade. Nossos jogadores precisam estar preparados para esta batalha.” 15 Foi pensando dessa forma que o técnico brasileiro não convocou Falcão e Sócrates, dois jogadores técni14 Gilberto Freyre, no prefácio do livro de Mário Rodrigues Filho, O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 2-3. 15 Entrevista concedida ao Jornal dos Sports, Rio de Janeiro. 6/2/1978 146 cos e em boa forma na época. Preferiu levar jogadores fisicamente mais fortes e tecnicamente limitados, como o voluntarioso Chicão. As interpretações sobre a transformação estrutural do futebol brasileiro (abandono da técnica e adesão da força) passaram pela esfera do político, econômico, social e cultural. Algumas análises apressadas davam conta de que o país, vivendo sob a égide da ditadura militar, estava agora militarizando seu futebol, trocando a técnica pela força. Certo ou errado, o fato é que começam a surgir no linguajar futebolístico brasileiro alguns termos até então mais familiares ao universo militar. Por exemplo: expressões como “canhão”, “tanque”, “tiro”, “explosivo”, “batalha” etc., passam a se popularizar na linguagem cotidiana do torcedor. O “canhão”, por exemplo, tem duplo significado: a) jogador de físico avantajado, mas tecnicamente precário; b)chute muito forte. “Tanque” - jogador de físico avantajado que usa o corpo como instrumento de ameaça ao adversário. “Tiro” - chute em direção à trave. “Explosivo” - jogador que surpreende pela velocidade, força física e movimentos corporais muito rápidos ao conduzir a bola em direção à área adversária. “Batalha” - partida de futebol decisiva. Convém registrar que toda essa terminologia militarizada tem muito a ver com a presença do capitão Cláudio Coutinho na direção técnica da seleção brasileira. Apesar disso, não se pode, em sã consciência, dizer que o Estado estava militarizando o futebol brasileiro. Esta questão mereceria uma análise à parte. Com Cláudio Coutinho, porém, os exercícios físicos dos jogadores passam a ter uma concepção cientificista, uma vez que seu trabalho seria baseado na metodologia do fisicultor norte-americano, Kenneth Cooper. Importante destacar que o “método Cooper” já era usado no Exército pelo Capitão Coutinho, quando dava aulas de educação física aos soldados. Foi ele, aliás, o introdutor da fisicultura cooperniana no Brasil. De 1978 até hoje, a própria concepção de competição no futebol do Brasil começaria a mudar. A manemolência, a capoeiragem (como chama Gilberto Freyre), a criatividade, uma espécie assim de “orgulho da raça”, cediam espaço ao que podemos chamar de “tecnoburocracia do corpo”. Essa, no entanto, não me parece a questão mais importante na transformação estrutural do futebol brasileiro. Até porque, os adjetivos acima citados, são inatos ao jogador brasileiro que, por sua profunda identidade com o futebol, jamais vai “burocratizar” sua relação com a bola. A cessão do espaço a que me referi antes só prevaleceu durante o período do Capitão Coutinho no comando da seleção. No meu modo de entender, o grande equívoco do treinador está em introduzir no futebol brasileiro a idéia de que a rudeza, a virilidade, a intimação corporal e a agressividade são ingredientes indispensáveis para se chegar à vitória. Essas tendências podem ser agrupadas num só termo: o monopólio da violência. O que o treinador sugeria aos jogadores como estratégia e tática, uma espécie de “filosofia da vitória”, nos faz lembrar muito pouco o campo de futebol e muito mais o campo de batalha. Algo mais próximo ao militarismo dos exércitos do 147 que ao futebol enquanto espetáculo. Isto é um equívoco. Aliás, a concepção de virilidade no esporte já foi exemplarmente analisada por Theodor Veblen, quando diz que: “na vida dos bárbaros, a valentia se manifesta de duas maneiras diferentes: como a violência e como engano. Em diferentes graus, estas duas formas de expressão existem na guerra moderna e no esporte. A estratégia e a astúcia pertencem tanto ao jogo desportivo como à guerra 16”. As análises de Theodor Adorno, para quem o esporte se caracteriza basicamente por seu elemento masoquista, vão bem ao encontro do que pensa Veblen. Para o pensador frankfurtiano, “ao desporto não só pertence o impulso a exercer a violência mas, também, o de obedecer e sofrer.” 17 Adorno, na verdade, estava se reportando à tendência ideológica que os esportes adquiriram na Alemanha com a crescente ascensão do nazi-fascismo que, como se sabe, acreditava na superioridade ariana. As palavras de Adolf Hitler são, sem dúvida, a maior evidencia dessa crença: “dê à nação alemã seis milhões de corpos perfeitamente treinados no aspecto desportivo, todos eles ardendo de um amor fanático pela pátria e educados no mais; elevado espírito agressivo e, de ser necessário, um estado nacional os converterá, em menos de dois anos, em um exército 18”. Esta é a síntese do pensamento fascista sobre o esporte. Desnecessário qualquer comentário, senão apenas acrescentar que a trajetória do fascismo alemão, de forma insofismável, a utilização do esporte como instrumento político dos governos autoritários e das ditaduras. O Brasil dos anos 70 aproximou-se muito da concepção fascista do esporte. No futebol, onde o país sempre teve muito prestigio, o corpo teria, necessariamente, que ser um instrumento de intimidação e de agressão, sempre bem preparado para “lutar” pela pátria no “campo de batalha”. Quando a seleção brasileira disputava uma partida, estavam em jogo não só a vitória pura e simples de uma competição esportiva, mas também, a honra, a glória e o prestígio nacionais. O governo do presidente Médici, por exemplo, fez uma campanha políticoideológica com o slogam de que éramos “os maiores do mundo”. Frases como: ‘.a economia cresce em ritmo de Brasil-Grande”, “eu te amo meu Brasil”, “ninguém segura a juventude do Brasil”, “Brasil, ameo ou deixe-o”, seriam incorporadas ao cotidiano do cidadão brasileiro, que vivia um falso momento de prosperidade econômica 19 e tinha razões aparentes para acreditar na ideologia do “milagre brasileiro”. 16 Theodor Veblen, apud G. Vinnai, El futebol como ideologia. Madrid: Siglo Veintiuno, 1974. 17 Theodor Adorno, Prismas, 1981. p.75. 18 Hitler, apaud Vinnai, El fútbol... op. cit., p. 132 19 A década de 70, no Brasil, foi marcada pelo maior aumento da dívida externa. A partir dos anos 80, o país passaria a pagar esse empréstimo, causando a maior inflação da sua história e o conseqënte empobrecimento da população. 148 Adesivos em veículos, rádio, televisão, enfim, a mídia como um todo, divulgavam as mensagens publicitárias do Estado. A juventude brasileira, segundo esse mesmo Estado, “forte, viril e sadia” estava “disposta a todo e qualquer sacrifício em defesa das cores e da honra nacionais.” 20 Esse era o perfil da sociedade brasileira nos anos 70. Ironicamente, porém, o maior titulo do desporto nacional (a conquista do tricampeonato mundial de futebol no México) não usaria da força, virilidade ou violência. Para vencer o campeonato a seleção, considerada a melhor da história do futebol brasileiro, usou a refinada técnica, a solidariedade entre os atletas e a competência individual de jogadores sui generis como Tostão, Jairzinho, Pelé, Rivelino, Clodoaldo e Gerson. A força, a virilidade e a agressividade eram exatamente os elementos que não tinham espaço no conjunto brasileiro. A técnica se sobrepôs à força. A última partida do campeonato, a que indicaria o campeão mundial, foi realizada entre Brasil e Itália. Este jogo, a despeito de ser decisivo, apresentou o menor índice de faltas de todo o campeonato e o maior nível técnico de todas as partidas realizadas. Para sorte da nação e consolidação da imagem vitoriosa que o governo do autoritarismo militar estava criando no Brasil, a seleção de Pelé vence a Itália por 4 a 1. Imediatamente, a conquista do tricampeonato se tornaria em eficiente instrumento político de glorificação do Estado autoritário. Imediatamente também, o presidente Médici passaria a falar da “grande conquista nacional” e anunciaria, entre outras coisas, que receberia no Palácio do Planalto, em Brasília, todos os “heróis da nação”. Não há dúvida que a conquista do tricampeonato, de alguma forma, ajudou a prolongar a experiência fascista do Estado autoritário no Brasil. Esta é a opinião de alguns analistas da sociedade brasileira, sempre que pensam no futebol dessa época: ao mesmo tempo, convém registrar a forma oportunista com que o Estado se aproveitou desta conquista. Devemos explicar melhor essa questão. De início deve-se assinalar, que a seleção tricampeã não era, na verdade, considerada a “ideal” pelo próprio presidente da República. Ele desejava uma esquadra “mais forte e agressiva “ como chegou a dizer, para justificar a convocação de jogadores da sua simpatia. Num certo momento dos treinamentos da seleção, o presidente Médici tentou, inclusive, escalar o jogador Dario. Justificando sua estatura física privilegiada. Ocorre que o treinador da seleção era João Saldanha, militante confesso do então Partido Brasileiro Comunista (PCB). A resposta foi imediata: “diga ao presidente que ele não me pediu opinião para escolher seus ministros e, portanto, não pode opinar na escolha dos meus jogadores.” 21 No dia seguinte João Saldanha estava demitido do cargo de treinador da seleção brasileira e ameaçado de prisão por desacato ao presidente. Mais importante que isso, no en20 Estas palavras foram pronunciadas pelo ministro do Exército em 1972, por ocasião da entrega das espadas aos futuros oficiais que estavam comcluindo seus cursos na Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro. 21 Depoimento de João Saldanha em várias conferências realizadas no Brasil sobre o futebol brasileiro dos anos 70. 149 tanto, é que este treinador, demitido às vésperas da estréia do Brasil no Campeonato Mundial, deixou a seleção inteiramente estruturada para o seu substituto, o técnico Zagalo. Não havia tempo hábil para mudar nada. O time brasileiro, sob a ótica do Palácio do Planalto, era a anti-seleção. Não possuía nenhum dos elementos desejados pelo Estado: agressividade, corpulência, nacionalismo exacerbado etc. Mesmo assim, após a conquista, os jogadores foram homenageados pelo Estado como os “verdadeiros heróis nacionais”. O futebol brasileiro, com efeito, nunca apresentou um time de estatura física avantajada. Com algumas exceções, o cidadão brasileiro apresenta estatura média, muito diferente dos “tanques” que o Estado, personificado na figura do presidente, gostaria de ver vestindo a camisa da seleção no México. Há até uma explicação biossociológica para a estatura física do homem brasileiro que, por não ser tema deste ensaio, devo deixar para analisá-lo noutra oportunidade. Como se sabe, a boa alimentação, na infância e na adolescência, com o consumo equilibrado de produtos vegetais e animais, vitaminas, proteínas e calorias, interferem substancialmente na compleção física e intelectual do homem. Esse, infelizmente, não é o caso do Brasil nem de outras populações do Terceiro Mundo. O Brasil sempre, desde suas origens, enfrenta gravíssimos problemas de alimentação, o que tem gerado no decorrer do tempo, um considerável índice de subnutrição. Como poderia, então, o Estado autoritário dos anos 70, desejar homens corpulentos, viris e agressivos vestindo a camisa da seleção brasileira, se grande parte dos futebolistas do país emergem desta população de subnutridos? A explicação sociológica mais sensata e correta, a meu ver, passa mesmo pelo crivo da análise de desempenho do Estado. Ou seja, o Estado autoritário só tem duas alternativas para monopolizar o poder: a força e a farsa. A combinação desses dois fatores prolonga mais a ditadura. E isso os militares souberam fazê-lo com muita habilidade. Talvez por isso, a história do Brasil tenha sido até agora, periodicamente interrompida por regimes autoritários. A corpulência não é a principal característica do jogador brasileiro, é a habilidade técnica. Nesse ponto a estratégia do estado autoritário cometeu o erro de exaltação a apoio num país de subnutridos. A habilidade e a técnica do jogador brasileiro, para desgraça e glória do país, ao mesmo tempo, amenizaram o erro grosseiro da ditadura e venceram o campeonato mundial de 1970. Por outro lado, deve-se pensar que a única alternativa para o futebol brasileiro, como para o futebol do Terceiro Mundo subnutrido, é mesmo o aprimoramento da habilidade técnica. Competir fisicamente com atletas bem-nutridos do Primeiro Mundo não é a forma mais inteligente. Nesse caso, não estaria paradoxalmente na subnutrição um dos fatores que fazem o futebol brasileiro mais técnico e menos viril? O aprimoramento da forma técnica uma característica extremamente exigida pelos treinadores brasileiros aos seus jogadores, não seria uma maneira de suprir a diferença física em relação aos atletas dos países desenvolvidos onde, na sua maioria são corpulentos? Esta é 150 uma questão a se pensar. Deixo agora o campo das hipóteses para trabalhar com dados reais. Seja como for, não sem motivos, a meu ver, a técnica, a habilidade, a ginga e a manemolência do jogador brasileiro consagraram mundialmente o futebol do país, criando a imagem do futebol-espetáculo, o futebol-arte. Uma espécie de dança do corpo e da bola. Há, porém, uma explicação sociológica para isto. Além daquelas já apontadas por Gilberto Freyre e citadas neste texto, desejo acrescentar outras. No Brasil o futebol deixou, há muito tempo, de ser apenas um esporte. Hoje é uma instituição de inegável força cultural para seu povo. A despeito do intenso processo de urbanização da população, são milhares os campos de várzea espalhados pelo país, onde a principal diversão dos baixos estratos populacionais, é assistir e jogar as tradicionais “peladas”. Esta prática no Brasil tornou-se quase um costume cultural. A população como um todo é muito bem informada sobre a prática do futebol. Nos aglomerados urbanos, favelas, cortiços, grandes periferias ou nas várzeas verdes do interior do país, é comum se verem crianças dando seus primeiros chutes na bola, fazendo seus primeiros movimentos, tomando contato com os rudimentos da técnica que mais tarde, quando profissional, serão chamados de gingado e manemolência ou, como diz Gilberto Freyre, de “dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas”. É assim que o futebol passa a fazer parte do olhos da cultura popular brasileira. E, também, transcende a condição de mero espetáculo coletivo para se tornar, ao lado do samba, da música sertaneja e do carnaval, um dos mais fortes e significativos produtos da cultura popular deste país. É no trinómio carnaval, samba e futebol que o brasileiro solta seu corpo no ar sem necessariamente se alienar como algumas análises apressadas e pueris quiseram dar a entender. Sua relação com o futebol transcende as quatro linhas do campo e o momento do jogo. É uma paixão corporal. Algo muito próximo do que Freud chama de “pulsão da libido” quando elabora sua teoria da sexualidade. Não é novidade, aliás, o caráter libidinal do futebol no Brasil. “0 corpo solto no ar” não é apenas uma metáfora ou figura de retórica como possa parecer. É, também, a imaginação voluptuosa de Cecília que ao ver seu namorado Marcos Carneiro de Mendonça, goleiro da seleção brasileira, em 1919 voar, esticar-se e fazer os movimentos elegantes de goleiro à procura da bola, resolveu homenageá-lo com um poema de convite ao amor. Vejamos: O corpo solto no ar Quando te vejo voar sobre o tapete verde Para ir ao encontro da pelota Imediatamente minha memória Se reporta a ApoIo. Teus longos braços viajam plenos pelo espaço Como se fosse um elegante pássaro a passear. Teu lindo corpo suspenso e solto no ar Para a pelota abraçar 151 Me faz sentir o prazer do amor O prazer de te amar. Essas mesmas mãos que agora afagam a pelota Mais tarde, na intimidade do amor Meu corpo irão afagar. Te vejo pássaro, homem e belo Te vejo corpo, te vejo todo Voa meu amor, vem voando E pousa em minha casa Traz essa elegância contigo. Teu cheiro, teu corpo. Voa, vem Vou te esperar. Bibliografia CAILLAT, M. L ‘Ideologie du sport en France. Paris: Editions de la Passion, 1989. ELIAS, N. e DUNNING, E. Sport e aggressività. Bologna: Sociclà Editrice il Mulino, 1989. LEMAIRE, J. Panem et sportenses? Bruxelles: Editions de L’université de Bruxelles, 1989. LION, A e MECA, Pedro. Culture et pauvretès. Paris: La Documentation Française, 1988. LOPES, J. S. L. e MARESCA, S. La Disparition de “la joie du peuple” Actes, Paris, n. 79, septembre 1989, p. 2-36. MARCUSE, H. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. RODRIGUES, M. F. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. SCHNEIDER, M. Neurose classes sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. Vários Autores. Violenza e sport. Torino: Corsi Editore, 1987. Vários Autores. Sport e Violenza negli stadi. Torino: Corsi Editore, 1986. VINNAI, G. El fútbol como ideología. Madrid: Siglo Veinliuno, 1974. 152 12 - PAIXÃO E CRISE NO FUTEBOL BRASILEIRO Alguns países do chamado “terceiro mundo” têm apresentado nas competições esportivas resultados surpreendentes. No atletismo, por exemplo, e mais especialmente nas corridas de média e longa distâncias, atletas marroquinos, nigerianos e quenianos, entre outros, têm certa tradição de vencedores. Os resultados olímpicos e as competições atestam esse fato. Essa situação, porém, se repete em diversas outras modalidades esportivas, tanto individuais quanto coletivas, nos dando a impressão de que a riqueza econômica do país nada tem a ver com o seu sucesso nas competições esportivas. Na realidade, a prática nos mostra que não é bem assim. Em que pese a crise por que passa toda a teoria marxista neste final de século e especialmente sua filosofia política, é inegável que a estrutura econômica de um país ainda determina o sucesso ou o fracasso de alguns setores do Estado e da sociedade. Seja no que diz respeito a questões de infra-estrutura, ou ainda superestrutura como é o caso do esporte. Nesse aspecto, os exemplos acima mencionados são apenas exceções que confirmam a regra, ou seja: é na produção da riqueza e na sua distribuição mais equânime quanto possível, que reside a consolidação das estruturas econômica e democrática de uma nação. É também nessas condições que se fortalece sua superestrutura produzindo os resultados que se deseja. Não é mera coincidência, muito menos uma obra do acaso, o fato de os países ricos e desenvolvidos serem os grandes vencedores das competições esportivas em todo o mundo. A própria história das Olimpíadas ratifica nossa afirmação. Enquanto esses países conquistam a grande maioria das medalhas de ouro, prata e bronze, aos países de terceiro mundo reservam-se algumas poucas medalhas de bronze, e em alguns casos, por esforço e obstinação pessoal do atleta, pouquíssimas medalhas de ouro e prata. A explicação para o sucesso dos países desenvolvidos, embora seja simples e óbvia, deve ser repensada. Por trás dessa superioridade “primeiromundista”, por trás dos músculos e da performance dos atletas desses países, existe uma formidável infra-estrutura cujo raio de ação possui a flexibilidade necessária para abarcar as conquistas esportivas. Sabe-se no entanto que, ao contrário das nações do terceiro mundo, os países desenvolvidos cientificizaram as competições esportivas chegando a requintes admiráveis. Hoje, toda a alimentação, 153 treinamentos, equipamentos e até o lazer do atleta, passaram a ser administrados por uma diretriz científica produzida em laboratórios por estudiosos e pesquisadores especializados no esporte. Há um exemplo muito elucidativo no esporte profissional. Trata-se do pugilista norte-americano, Evander Holyfield, campeão mundial da categoria dos pesos pesados, em todas as versões, e que, segundo os especialistas desse esporte, seria o único pugilista em condições reais de enfrentar Mike Tyson e sair do ringue com uma vitória. Foi assim que alguns investidores do boxe americano criaram o chamado “Projeto Ômega”, que consistiu num investimento de US$ 20 milhões, no qual trabalha uma equipe de 21 profissionais de alto nível como, psicólogos, nutricionistas, fisicultores, endocrinologistas, sociólogos, entre outros. Significativo é saber ainda que parte do dinheiro investido no “Projeto Ômega” foi devidamente deduzido de impostos que seus investidores deveriam pagar ao governo americano. Por outro lado, a vida do atleta Holyfield tem sido inteiramente administrada por esses profissionais. Gostaríamos de analisar as implicações ideológicas da perda de autonomia e de liberdade do atleta numa situação como essa, mas esse é um tema que por si só exigia um ensaio à parte. De qualquer modo, convém lembrar o exemplar estudo do sociólogo Kosta Axelos, intitulado “A invasão da intimidade”, e de Gerhard Vinnai, “El futbol como ideologia”, no qual a presença do Estado sobrepõe-se à individualidade do cidadão, justamente à procura do sucesso no esporte, como forma de consolidar o establishment. Embora nos países do terceiro mundo essa seja uma prática quase rotineira (o Brasil é um bom exemplo), a procura desse sucesso é feita de outra forma que não a cientificização esportiva do atleta. Em face das profundas dificuldades econômicas em que sempre estão mergulhados esse países, seria acintoso demais o Estado investir mais na preparação científica do atleta e menos na educação de base. Essa opulência de uma minoria, contrastando com a miséria econômica coletiva, seria, sem dúvida, explorada politicamente pela oposição do Estado. A alternativa é lançar mão daquilo que o lingüista e teórico francês Georges Mounin chama de “função apelativa” da linguagem, ou seja, usar sempre o discurso com o objetivo de causar impactos emocionais ao receptor da mensagem. Nesse caso, é claro, toda a estrutura da narrativa está centrada numa concepção populista de governo e, em segundo plano, numa política esportiva de resultados imediatos, Esse tem sido, com algumas poucas exceções, o comportamento de governos de países do terceiro mundo onde, até pouco tempo, prevaleciam regimes autoritários liderados quase sempre por ditadores militares. É o caso da América Latina e especialmente do Brasil, o qual de agora em diante tomaremos como exemplo. Nos últimos 40 anos, da Copa do Mundo de 1950 para cá, o futebol adquiriu no Brasil uma popularidade muitas vezes maior que os demais esportes, em que pese seu sistemático uso político por parte do Estado, ou talvez por isso mesmo. O suficiente, pelo menos, para eleger vereadores, deputados e senadores. Não é exagero afir- 154 mar que futebol e partidos políticos constituem-se duas grandes forças políticas do país. Contrastando com os demais setores, especialmente da cultura e da educação, o futebol brasileiro, em âmbito federal, até que apresenta uma boa estrutura organizacional. Em alguns casos, comparável mesmo a países do primeiro mundo. Nada disso, no entanto, passa do papel. Não ultrapassa as fronteiras burocráticas do CND (Conselho Nacional de Desportos), afeto à Secretaria dos Esportes. A complexa máquina administrativa do Estado, em que pese o esforço isolado de alguns políticos, mantém-se emperrada e incompetente para resolver até problemas vitais do país, como o aumento progressivo do desemprego, da inflação econômica, da mortalidade infantil e da fome. As pesquisas e os estudos sociológicos revelam que a qualidade de vida no país vem declinando na mesma proporção do aumento da dívida externa e do déficit público1. A sociedade, como de resto o futebol e as demais manifestações culturais do país, se ressentem da inoperância política e administrativa do Estado. Hoje, o futebol brasileiro está mergulhado na maior crise econômica da sua história (desde 1894 quando Charles Miller introduziu esse esporte no país) e sem perspectivas a curto e médio prazos de sequer amenizar a situação. Tudo isso, porém, é apenas reflexo da grande crise econômica por que passa o país nesses últimos 25 anos, onde cada vez, mais acumula-se o descrédito popular sobre os políticos, o descrédito econômico internacional e até uma certa desesperança e ceticismo das novas gerações na reconstrução democrática do país, após o flagelo de 21 anos de regime militar. Nesse sentido é que já não se pode mais justificar a miséria social do Brasil, através do raciocínio linear da “Teoria da Dependência”, segundo a qual nosso subdesenvolvimento é uma situação imposta de fora para dentro pela força econômica dos países imperialistas. Isso não é e nunca foi exatamente assim. A teoria da dependência, a bem da verdade, servia de trincheira onde os maus governantes escondiam sua incompetência política e administrativa e os bem intencionados estudiosos da sociedade criticavam com veemência a presença do imperialismo no Brasil. Portanto, se hoje o futebol brasileiro está capenga, padecendo de anemia econômica profunda, enfim, com sua saúde financeira bastante comprometida, isso se deve fundamentalmente aos desmandos políticos e econômicos que exauriram a vida do país durante o período dos governos militares. Ironicamente, no entanto, foram precisamente os presidentes militares quem mais se beneficiaram com as conquistas internacionais do futebol brasileiro. No período de glória desse esporte no Brasil (anos 70) o autoritarismo militar reinava soberano sob a liderança do presidente general Emílio Garrastazu Médice, o mais tirano e obscuro dos presi1 Sobre esse assunto especialmente deve-se consultar o Sinopse do IBGE de 1990, o Anuário Estatístico do Brasil de 1990, a Revista “Veja” nº 45, de 14-11-90 e as publicações do DIEESE. 155 dentes do nosso país. O futebol brasileiro lhe rendeu o maior dividendo político de toda a sua gestão, conquistando em 1970, o tricampeonato mundial do México e se apossando definitivamente da taça “Jules Rimet”. Nesse momento, o populismo do presidente Médice explorou politicamente a conquista do campeonato. Todos os atletas tricampeões do mundo foram recebidos e homenageados no Palácio do Planalto, em Brasília, pelo presidente, numa cerimônia pomposa e transmitida ao vivo pelas televisões para todo o Brasil. Naquela época o país vivia um momento de falsa euforia econômica. Foi o período que passou para a história econômica do país, conhecido por “milagre brasileiro”. A economia “inchava” (não crescia), criando a falsa idéia de que o PIB (Produto Interno Bruto) aumentava e de que nossa exportações eram muito superiores às importações. Não era verdade. O falso momento de euforia era produto de uma inteligente manobra econômica, do então ministro do Planejamento. O país contraia dívidas no exterior, aumentando progressivamente o montante da sua dívida externa. Esse dinheiro era aplicado em obras faraônicas de grande impacto popular, gerando novos empregos, aumentando os índices das Bolsas de Valores do Rio de Janeiro e de São Paulo, facilitando o crédito às empresas e o sistema de crédito ao povo, dando a falsa impressão de prosperidade econômica. No decorrer do tempo, no entanto, constatou-se que a estrutura econômica brasileira era tão frágil quanto um castelo de areia construído à beira-mar. A qualquer momento poderia ruir. O foi precisamente o que ocorreu. O governo seguinte, do presidente-general Ernesto Geisel, começaria a sentir os efeitos do aumento da dívida externa. Nem por isso deixou de aumentá-la ainda mais. Para pagar parte do principal da dívida e seus respectivos juros, era necessário tomar dinheiro emprestado, aumentando a velocidade e o raio de ação da espiral inflacionária que mais tarde, em 1989, tornar-se-ia incontrolável. Ao longo de toda essa trajetória, o que se tem observado é o sistemático e gradativo empobrecimento da sociedade brasileira. A literatura científica a esse respeito é vasta e não deixa dúvidas. O futebol brasileiro, é claro, sentiria e acusaria de imediato os reflexos da recessão econômica. Sendo o esporte mais popular do país e uma espécie de termômetro da economia popular, o futebol entra em lenta e progressiva crise. O torcedor que lotava os estádios aos domingos começava a repensar sua economia e já não ia mais tão freqüentemente aos espetáculos futebolísticos. Essa prática, parte integrante da sua rotina de vida e ponto central do seu universo lúdico, precisaria ser parcialmente sacrificada como forma e tentativa de amenizar seus problemas econômicos, Ledo engano. O pior viria mais tarde e o torcedor, só em casos excepcionais, como decisões de campeonatos e jogos muito importantes da seleção brasileira, compraria seu ingresso ao estádio. A cada temporada de campeonato, os estádios ficariam mais vazios. De acordo com dados oficiais divulgados pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol), a presença do 156 torcedor de 1982 a 1986 nos estádios brasileiros diminuiu em 31%, representando a maior evasão de público de toda a história do futebol brasileiro até então2. Já em 1991, no entanto, esses dados são inexpressivos se pensarmos, por exemplo, nas estimativas da imprensa esportiva especializada em futebol, que ampliou esse percentagem para 40 a 45%. Esses dados estatísticos, no entanto, não teriam importância se a saúde financeira dos clubes brasileiros se mantivesse inalterada. Mas não é isso o que sucede. Não é por acaso que a imprensa esportiva brasileira se reporta à difícil situação econômica em que se encontra o futebol brasileiro e seus principais clubes. Algumas vezes, tratando diretamente do assunto, através de entrevistas com presidentes de clubes, outras vezes de forma indireta, para citar títulos protestados, atrasos de aluguel, de salários do atleta, envolvimentos em causas trabalhistas, entre outras coisas. Para melhor ilustrar a crise financeira do futebol brasileiro, convém reproduzir um texto do jornal “O Estado de São Paulo”, de 8-191. Em rápidas notícias, o jornal dá conta da situação do futebol no estado do Piauí, caracterizando muito bem o momento das duas principais equipes desse Estado. Diz o texto: “sufocados por grave crise financeira, Tiradentes e Flamengo não poderão aceitar o convite formulado pela CBF para representarem o Piauí na Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro. Os dois clubes não dispõem sequer de jogadores para formar os times que enfrentariam Moto Clube e Ceará na primeira rodada. O Flamengo não tem dinheiro nem para pagar salários atrasados de jogadores e funcionários. A situação do Tiradentes, campeão estadual de 1980, não é muito diferente: o clube tem apenas um atleta contratado e ainda não pôde renovar com o meia Zé Augusto, ídolo da torcida. A última esperança dos dirigentes é uma possível ajuda por parte da CBF”. Em outra matéria de igual teor, o “Jornal do Brasil” acrescenta ainda, que o Flamengo do Piauí não realiza mais treinos coletivos por falta de dinheiro para comprar material esportivo. Apresso-me a registar que não estamos diante de uma exceção. Os grandes clubes dos maiores centros futebolísticos do país como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul vivem, proporcionalmente à sua grandeza e importância no futebol brasileiro, situação semelhante. Dificilmente os presidentes desses grandes times investem dinheiro na compra de novos jogadores. Ao contrário, quase sempre querem vender seus melhores atletas ao exterior, para equilibrar ou diminuir o déficit financeiro do clube. Retomarei adiante esse assunto. Para tentar minorar o crise e superar a letargia que se abateu sobre o futebol brasileiro, os dirigentes de clubes têm usado de um expediente que, embora criativo, tem se mostrado ineficiente. Para motivar o torcedor a voltar aos estádios e impossibilitados de realizar contratações de novos jogadores, os dirigentes resolveram fazer a troca de alguns atletas de um time para outro, O resultado, é claro, não apresentou e nem poderia apresentar os efei2 Revista CBF, ano VII, número 9, 1986, Rio de Janeiro. 157 tos desejados. A evasão do publico dos estádios não é apenas uma questão de falta de motivação do torcedor brasileiro. Mais importante que isso, está o problema da sua sobrevivência econômica, uma vez que seu salário vem declinando mês a mês, em contraste com sua despesas que, em função da inflação, aumentam também mensalmente. A precária estrutura econômica do país, o desemprego, o círculo vicioso inflacionário e a conseqüente recessão econômica têm, nos últimos anos, levado o trabalhador brasileiro a um contínuo processo de proletarização. Nessas condições, as atividades lúdicas são as primeiras a serem postas de lado em função da tentativa de manter o padrão de vida e seu nível sócio-econômico. Assim, ainda que reconheçamos a criatividade dos dirigentes dos clubes brasileiros e da CBF, essa situação dificilmente será alterada. Enquanto persistir no país uma política econômica equivocada, o futebol brasileiro permanecerá como está: capenga, empobrecendo dia-a-dia e cada vez mais distante da magnitude que o consagrou. Nesse sentido, convém ainda se pensar no futebol não apenas como uma atividade lúdica pura e simples, como se fosse desvinculado do contexto político e econômico do país. Evidentemente que não é assim. Os esportes em geral e o futebol nesse caso apenas refletem com seus resultados ruins a atual conjuntura da sociedade brasileira. Dificilmente um país economicamente próspero e bem administrado apresenta índices adversos nos esportes de forma sistemática. Esse não é o caso brasileiro, obviamente. É fácil entender que o futebol brasileiro não vai bem nas suas competições internas e externas porque o país não está bem. É fácil também se notar que nosso futebol empobreceu, porque nosso país vem empobrecendo a largos passos, a despeito das inúmeras tentativas através de planos econômicos para reverter esse quadro. Por enquanto, todos eles redundaram no desencanto e na frustração coletiva, bem ao estilo do que vem sucedendo com a seleção brasileira de futebol a cada quatro anos, quando é eliminada dos campeonatos mundiais que disputa. Visto e fora, no entanto, o futebol brasileiro ainda mantém o prestígio semelhante àquele de alguns anos atrás quando conquistou o tricampeonato mundial. Os especialistas estrangeiros (treinadores, fisicultores e atletas) e a grande imprensa internacional ainda mantém o mesmo respeito pela seleção brasileira. Em todas as disputas de que participa, ela é sempre apontada como uma das grandes favoritas como ocorreu recentemente no último campeonato mundial da Itália. Esse fato tive a oportunidade de constatar pessoalmente, assistindo aos programas de televisão sobre o campeonato mundial, ouvindo as diversas opiniões de cronistas esportivos, de torcedores europeus (especialmente italianos), os comentários radiofônicos e as matérias de jornais europeus, principalmente italianos, franceses e ingleses. Esse prestígio internacional ainda intacto do futebol brasileiro tem uma explicação bastante procedente, uma vez que ele é baseado numa realidade incontestável. Refiro-me ao fato de que a seleção brasileira de futebol propriamente dita, ou seja, a melhor formação da 158 nossa esquadra, a mais forte, não está no Brasil, nem seus jogadores pertencem a clubes brasileiros. Basta observar, por exemplo, que o time titular no campeonato mundial da Itália era formado por nove atletas atuando em times europeus e apenas dois jogando por esquadras brasileiras. São eles: Taffarel e Mauro Galvão, que após o mundial da Itália foram também comprados por times europeus. Além disso, convém assinalar que, com algumas poucas exceções (são os casos de Renato e Sócrates), os jogadores brasileiros comprados por time europeus quase sempre justificam, com suas atuações de alto nível, o investimento feito na compra de seu passe. Em outros termos, o prestígio adquirido por esses jogadores em gramados europeus reverte-se em benefício da seleção brasileira, por quem atuarão mais tarde em competições internacionais. Assim, se por um lado o futebol brasileiro vive internamente uma crise profunda em função da crise do próprio país, por outro lado, externamente, consegue manter, com justiça, seu grande prestígio internacional. Esse fenômeno, com efeito, revela uma situação peculiar: nesse caso é notório que a crise do futebol brasileiro restringe-se ao aspecto econômico-financeiro e à incompetência administrativa. Esse último, no entanto, de forma mais localizada. Apenas algumas instituições no nosso futebol são bem administradas. O primeiro aspecto, claro, transcende a esfera do futebol e dos esportes em geral para abater-se sobre toda a sociedade brasileira, como vimos anteriormente. Nesses termos pode-se dizer, sem sobra de dúvida, que o futebol brasileiro mantém uma admirável capacidade de renovação. De acordo com a Federação Internacional de História e Estatística do Futebol, o Brasil é o país que mais exporta jovens atletas para jogar futebol em outros países, Essa renovação, sem dúvida, contribui de forma decisiva para a manutenção do futebol brasileiro entre os melhores do mundo. Aqui, no entanto, cabem algumas considerações, perguntas e alguns esclarecimentos. Como se explica, por exemplo, que um país mergulhado numa crise econômica tão longa, quase crônica, com um futebol mal administrado em sua grande maioria (há as exceções), apesar do alto nível, possa renovar-se com tanta facilidade e rapidez? A explicação é relativamente simples (embora não tenha uma só resposta), mas requer um conhecimento razoável sobre a cultura lúdica brasileira. O futebol foi introduzido no Brasil no fim do século XIX, para se tornar mais tarde, ao lado do carnaval e da música (especialmente o samba), um dos três mais importantes produtos lúdicos da cultura popular brasileira3. É uma atividade esportiva de tal modo arraigada aos costumes e tradições do provo brasileiro que se torna difícil imaginar esse povo sem o prazer do grito de gol. Gilberto Freyre, eminente sociólogo da cultura brasileira, certa vez escreveu sobre a paixão do brasileiro pelo futebol. Diz ele: “o desenvolvimento do futebol, não num 3 Em meu livro, Memória do futebol brasileiro, Editora Ibrasa, São Paulo, 1990, eu trato detalhadamente desse tema. 159 esporte igual aos outros, mas numa verdadeira instituição brasileira, tornou possível a sublimação de vários daqueles elementos irracionais de nossa formação social e de cultura. A capoeiragem e o samba, por exemplo, estão presentes no estilo brasileiro de jogar futebol”4. Assim, para entender a ininterrupta renovação do futebol brasileiro é preciso, antes de mais nada, olhar esse esporte não apenas como um divertimento a mais, mas sim como um produto cultural inteiramente absorvido e integrado à cultura popular brasileira. É isso o que vamos ver agora. Tanto na periferia dos grandes centros urbanos, quanto no interior do país, a bola de futebol está sempre presente nas atividades lúdicas das crianças e dos adolescentes. Com uma vasta área territorial, o Brasil não padece de falta de espaço como ocorre em alguns países da Europa. Os campos de várzea e as praias são os locais preferidos dos brasileiros para improvisarem, a qualquer momento, a tradicional “pelada”. Trata-se de um jogo de futebol improvisado, no qual os jogadores não precisam usar camisa, não existe árbitro, nem traves (elas são demarcadas com pedras ou pedaços de madeira) e nem tem hora certa para a partida terminar. É comum os jovens jogarem uma manhã ou tarde inteiras, sempre fazendo revezamentos. Entram no time alguns que esperam à beira do “campo” e saem outros para descansar e voltar depois. Essa é uma prática lúdica que já faz parte do cotidiano do jovem brasileiro, principalmente daqueles pertencentes aos estratos mais modestos da sociedade. Ao lado da tradicional “pelada” existem ainda alguns clubes que mantêm sua escola de futebol, com o objetivo de preparar o pequeno atleta para profissionalizar-se mais tarde. Em que pese os problemas econômicos desses clubes, as escolinhas, como são conhecidas, dispõem de toda uma infra-estrutura para que esse pequeno atleta possa vir a se tornar um profissional mais tarde e justificar o investimento, uma vez que o clube passa a mantê-lo. Dessas escolinhas saíram para o profissionalismo jogadores como Zico, Romário, Taffarel, Geovani, Facão, Bebeto, entre outros. O grande celeiro desses atletas, no entanto, são os campos e várzea da periferia e as praias. É nesses lugares que os treinadores (nesse caso, chamados também de “olheiros”) recrutam boa parte dos garotos que freqüentarão a escola dos clubes. Esses profissionais vão assistir às “peladas” e convidam os jovens que se destacam durante a partida. Foi assim que o “olheiro” Waldemar de Brito descobriu Pelé para o Santos Futebol Clube e para o futebol brasileiro. Essa é uma prática que tem dado certo para a renovação constante desse esporte em nosso país, revelando grandes jogadores e gerando bons lucros com sua posterior venda ao exterior. Para se ter uma idéia da exportação de atletas brasileiros formados nas escolinhas ou descobertos nas praias ou na várzea, basta observar que, dos nomes anteriormente citados, apenas Bebeto ainda permanece jogando no Brasil, embora já esteja há algum tempo sendo pretendido por diversos 4 Gilberto Freyre, in : Mário Filho, O negro no futebol brasileiro, Civ. Bras., Rio de Janeiro, 1964, p. 2. 160 clubes europeus. Importante acrescentar ainda que o nível intelectual do jogador brasileiro é muito baixo por um motivo também muito simples, mas que envolve a incompetência administrativa do Estado: o Brasil, como se sabe, apresenta uma carência muito grande de vagas na sua educação de base. Existem mais crianças na idade de freqüentar a escola do que vagas para absorvê-las. Esse é um problema crônico na estrutura educacional brasileira, cujo ônus maior recai sobre a população mais pobre do país. As classes sociais mais abastadas superam essa carência pagando escolas particulares para seus filhos. As classes mais modestas não têm alternativa. Esperam por uma vaga para seu filho, que nem sempre aparece. Enquanto isso, os campos de futebol na várzea vão recebendo crianças que, quase como forma de sublimar sua frustração por não poder freqüentar a escola no momento certo, dedicam-se às populares “peladas” na esperança inconsciente de que sua ascensão social se dê não mais através das letras, da escolarização oficial, mas sim pela arte de jogar futebol. De jogar o futebol gingado brasileiro. Se tudo correr mais ou menos dentro das expectativas, alguns anos mais tarde a criança ou o jovem adolescente estará iniciando sua carreira de futebolista profissional. Se for um atleta dotado de certo talento terá, num futuro bem próximo, a grande oportunidade de ser contratado por uma equipe européia , americana, japonesa ou do Oriente Médio realizando, dessa forma, sua independência financeira. Nesse momento, porém, completa-se o ciclo renovação/exportação, fenômeno que vem crescendo e acompanhando o futebol brasileiro nos últimos 25 anos. Mesmo antes ele já existia, mas de forma mais discreta e quase imperceptível. Como se sabe, os primeiros jogadores a atuarem em esquadras do exterior foram contratados por clubes uruguaios e italianos, ainda na década de 20. O último aspecto sobre a crise por que passa o futebol brasileiro diz respeito à evasão dos seus melhores atletas vendidos ao exterior. Os dirigentes de clubes asseguram que, se esses jogadores permanecessem no Brasil jogando por suas respectivas esquadras, a presença do público nos estádios e a renda dos jogos seriam bem maiores. É possível que sim, mas isso é uma dupla utopia. Primeiramente porque é vendendo sues grandes jogadores, que os clubes brasileiros continuam sobrevivendo, ainda que acumulando déficits. Em segundo lugar, é plenamente justificável que um atleta profissional queira trabalhar no exterior, num centro onde, seguramente, poderá realizar-se financeiramente. No Brasil, hoje, não há clube de futebol capaz de pagar nem mesmo a metade do que um atleta profissional pode ganhar em times europeus, especialmente italianos, espanhóis e franceses. Os clubes brasileiros não têm a mínima chance de evitar a evasão desses jogadores. Ao contrário, em função do alto preço que pagam aos clubes europeus (tendo como referência a sistemática desvalorização da moeda brasileira), os dirigentes estão sempre interessados em vender seus jogadores, embora não ratifiquem publicamente esse intenção, justamente para não desvalorizar o preço do 161 passe do atleta. Coisa elementar da lei mais banal que rege as relações comerciais no capitalismo: a lei da oferta e da procura. Ao mesmo tempo, emerge aqui um problema que deve ser pensado com cautela: ora, se os grandes jogadores brasileiros permanecessem em suas respectivas esquadras, todos eles estariam nos grandes clubes do Brasil. Os jogos entre eles, provavelmente, levariam mais público aos estádios, Mas isso nem de longe sequer ameniza a crise por que passa o futebol brasileiro. Essa situação apenas privilegia ainda mais a grande esquadra cujo poder econômico, pelos menos em nosso país, tem sido usado sistematicamente como instrumento de persuasão política quando surgem impasses nos campeonatos estaduais e brasileiros. Como se sabe, não foram poucas as vezes em que grandes times brasileiros, incapazes de conseguir sua classificação pelo desempenho técnico, o fizeram (e continuam fazendo) através da justiça desportiva. Nessa instância, em que pese o pomposo nome de STJD (Superior Tribunal da Justiça Desportiva), as grandes esquadras são sempre (ou quase sempre) imbatíveis quando se defrontam com esquadras de menor porte econômico e político. Os exemplos são tantos e tão constantes, que se torna desnecessários qualquer um deles. Nesse sentido é que a permanência do grande jogador nos times brasileiros não resolveria a crise do nosso futebol. Essa seria uma solução pouco eficiente par tentar resolver o problema pela superestrutura. Não é assim. É um erro acreditar nisso. E as pequenas esquadras, aquelas que não podem manter um grande jogador em seu elenco, o que fariam para melhorar suas rendas nos estádios? Nada. Elas não podem fazer nada, porque o problema central está, como vimos, na precária estrutura econômica do Estado brasileiro que insiste numa política econômica improdutiva e tautológica, levando a sociedade a um constante processo de empobrecimento e, em muitos casos, ao constrangimento de não poder satisfazer suas necessidades básicas. Sendo assim, é claro, o torcedor começa mesmo a se afastar dos estádios, Sua paixão pelo futebol deve ser contida, ou melhor, reprimida, em face do seu empobrecimento cada vez maior. Seus compromissos financeiros não permitem mais que ele mantenha a mesma assiduidade aos estádios. Mesmo assim, sua paixão pelo futebol já é há tanto tempo de tal grandeza, que ele não pode mais prescindir do grito de gol. Já faz parte de seu cotidiano, dos seus costumes, enfim, da sua própria cultura. Ele agora, apesar de tudo, tem dois motivos para torcer: continuar gritando o nome do seu time ( o “grito de guerra” da torcida), mas torcer também para que os políticos recuperem de fato a economia do país. Só assim seria possível sua volta aos estádios e seu reencontro com o futebol, sua paixão, o esporte que melhor reflete a crise e a decadência econômica por que passa o Estado e a sociedade brasileira. 162 Bibliografia ABREU, Marcelo de Paiva – A ordem do progresso. Editora Campus, Rio de Janeiro, 1989. ANDREDD, Wladmir – Économie du sport. Presses Universitaires de France, 1986, Paris. CALDAS, Waldenyr – O pontapé inicial . Editora Ibrasa, São Paulo, 1990. INVERNIZZI, Gabrieli – Il Brasile é vicino. Arnoldo Mondadori Editore, Milano, 1987. MARZOLA, Pier Luigi – L’industria del calcio. NIS – La Nuova Italia Scientifica, Roma, 1990. MICELI, Sérgio (org.) – Estado e cultura no Brasil. Difel, São Paulo, 1984. WITTER, J. S. “A várzea não morreu”, in: J.S. Witter e José Carlos Sebe Meihy. Futebol e cultura. Convênio IMESP/DAESP, São Paulo, 1982, pp. 101-104. CANEVACCI, Massimo e outros. Lo sport tra natura e cultura. Guida Editori, Napoli, 1984. 163 13. A Ideologia da Esperteza O Brasil mudou. Aliás, cada vez mais aumenta a velocidade como ocorrem essas mudanças. Isto é, sem dúvida, entre outras coisas, reflexo da modernização do país, principalmente no tocante às formas de comunicação. Veículos como jornal, rádio, e principalmente a televisão, têm muito a ver com toda essa transformação. Paralelamente a este processo de modernização, emerge ainda um fenômeno bem brasileiro, que podemos aqui chamá-lo de Ideologia da Esperteza. Embora seja um comportamento bem mais perceptível no meio urbano-industrial, nas metrópoles brasileiras, é possível também presenciá-lo em menor escala, certamente, em qualquer outra região do país. Agora, aqui cabe uma pergunta: mas afinal, em que consiste esta Ideologia da esperteza? Consiste naquela visão destemperada e egoísta de se levar vantagem em tudo o que se faz. Entre nós é comum por exemplo ouvirmos frases como: “ quanto eu ganho com isso?” “e o meu?”. E assim por diante. Esta prática da esperteza, com efeito, também tem se transformado, se aprimorado. O suficiente, para inverter alguns valores culturais e morais em nosso país. A desonestidade, a maledicência e o comportamento espúrio, por exemplo, permite-nos até acumular riqueza, ainda que de forma ilícita, é claro. O cidadão sério, honesto, de límpido caráter, também pode fazer o mesmo, mas certamente encontraria muito mais obstáculos. Nosso cotidiano tem revelado isso. É nesse momento que se percebe a total inversão de valores: premia-se a desonestidade e pune-se a honestidade. Isto nos faz lembrar o conhecido provérbio popular que diz o seguinte: “aos amigos, tudo. Aos inimigos, ‘justiça’ ”. Parafraseando-o, a ética do comportamento brasileiro ficaria assim: “aos desonestos, tudo. Aos honestos, ‘justiça’ ”. Por outro lado, colocar esta delicada questão sem apresentar provas bem claras de que isso efetivamente ocorre em nosso país seria, no mínimo, um ato de irresponsabilidade. Não é o que pretendo com este ensaio. Tenho muita resistência aos irresponsáveis. É por isso que quero apresentar as provas e os exemplos que presenciamos no nosso dia a dia. Existe hoje uma ética (melhor seria dizer antiética) comportamental em nosso país que privilegia e promove a 165 desonestidade. Senão vejamos: o cidadão que estoca dólares em seu cofre ou em sua casa, as pessoas que usam de falcatruas para burlar a Receita Federal ao declararem o imposto de renda, que compram ou vendem contrabando, que bajulam outras pessoas com tapinha nas costas esperando retorno financeiro, político ou qualquer outra vantagem, que furam o semáforo no trânsito, que não respeitam a faixa de pedestres, que se negam a fornecer recibo ou nota fiscal e que de alguma forma lesam outra pessoa ou o Estado, são vistas por grande parte da sociedade como muito vivas, inteligentes, super espertas e outros adjetivos semelhantes. Elas passam a ter respeito social e uma imagem de vitoriosas por saberem ganhar dinheiro. Nesse caso, só aparece o resultado final do comportamento do cidadão. Não interessa como ele procedeu para ganhar dinheiro. Importante mesmo é que ele acumulou “prestígio” aumentando o valor da sua conta bancária. O contrário acontece com a pessoa honesta que tem consciência da sua cidadania. Por não usar de meios lesivos, por querer manter sua dignidade e, sobretudo, por não abdicar da sua consciência social, muitas vezes este cidadão torna-se motivo de chacota das pessoas que prestigiam os atos de desonestidade citados anteriormente. Isto é extremamente perigoso! Esses valores estão se invertendo em nosso país. Enquanto algumas pessoas se envergonham de serem honestas, de exigir a nota fiscal no momento de compra para não dar escândalo (tem acanhamento de exigir seu direito), de se negar a comprar contrabando, há outras que aperfeiçoam as técnicas de ludibriar seu semelhante e o próprio Estado. Estamos, desse modo, diante de um novo e infeliz momento: o culto à desonestidade. Pois bem, o perigo a que me refiro, está justamente na inversão de valores. Não tenho dúvida em afirmar que a desonestidade é uma instituição vitoriosa em nosso país. Que se pense em Jbsen Pinheiro, nos Anões do orçamento, Luiz Estevão, Nicolau dos Santos Neto (o Lalau), entre tantos outros casos. Aproveito, porém, para dizer que isto não ocorre só no Brasil, é claro. Ocorre ainda em outros países, mas com maior ou menor incidência. A corrupção é apátrida. Nos Estados Unidos, um político corrupto escolheu a televisão para, ao vivo, com um tiro fatal na boca, livrar-se da justiça e da cadeia. Mas, nem ele nem sua família livraram-se da humilhação a da pecha de desonestos. E mais do que isso: humilhada, sua família teve que devolver todo o roubo aos cofres do governo americano. Na China, um burocrata foi punido com a pena de morte por desvio de dinheiro do Estado. Na Coréia do Sul, o expresidente foi preso por corrupção e política de favorecimentos a grupo industriais. O ex-primeiro ministro da Alemanha, Helmut Kohl, líder da reunificação alemã em 1990, maculou sua imagem com transações financeiras espúrias para beneficiar seu partido político. Humilhado e sem nenhum prestígio, ficou envergonhado de, recentemente, participar das comemorações dos dez anos da reunificação alemã. Há outros exemplos, mas acredito que estes sejam suficientes. É 166 difícil afirmar, mas até onde sabemos através da imprensa internacional, não existe uma corrupção sistêmica, regular e organizada em países com a França, Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Canadá, apenas para citar alguns com tradição jurídica. Existe, isto sim, uma jurisprudência conexa e coerente, realmente levada a sério pelo Estado e pela sociedade. Isto, certamente, harmoniza um pouco mais as relações sociais ou, quando menos, inibe as arbitrariedades e a impunidade. E no Brasil? Bem, são tantos os casos de corrupção, injustiça, impunidade, bandalheira, e desmandos que, se relacionados um a um, não caberiam todos neste trabalho. Meu maior temor, porém, é que, no decorrer do tempo, este estado de coisas venha a se tornar um valor cultural entre nós, se é que isso já não ocorre. O Estado é, sem dúvida, altamente responsável por esta situação. Seria uma puerilidade, senão burrice deixar de reconhecer isso. A prova está nos atos de corrupção praticados impunemente por nossas autoridades. São muitos os casos e todos eles publicamente conhecidos. Mas não se iluda caro leitor: com certeza, aparecerão muitos outros que ainda não sabemos. As autoridades dão o mau exemplo, é verdade, mas em sã consciência não podemos responsabilizá-las (como não podemos também absolvê-las da desonestidade) pela corrosão do caráter nacional de forma tão generalizada como ocorre de algum tempo para cá. Sempre houve políticos corruptos, na História do Brasil. Isso, no entanto, nunca foi suficiente, como não é hoje, para deformar e perverter o caráter nacional. Não podemos também (pela maledicência e corrupção dos políticos), justificar, premiar a desonestidade e punir a honestidade. Em nosso país, ser honesto hoje, é sinônimo de boboca, de imbecil e de desavisado. Cabe a todos nós, nesse momento, reverter esse quadro. Estamos próximos das eleições e é hora de fazer justiça ao político desonesto negando nosso voto. Vamos votar com razão e consciência. Não vamos permitir que um ato de honestidade seja motivo de acanhamento de ninguém. Os desonestos inveterados - adeptos da Ideologia da Esperteza -, não podem fazer da sua prática ilícita um valor cultural em nosso país, nem um instrumento de inibição da honestidade. E hoje nós corremos esse perigo. Vamos resgatar o respeito, a decência e a dignidade que estão em baixa na nossa sociedade. Só os insensatos podem acreditar na máxima – o mundo é dos mais espertos. Não é. O mundo é de todos nós, sem exceção. É da mulher, do homem, da criança, do jovem, do velho e da solidariedade humana. 167 Documents Similar To Temas da Cultura de Massa.Música, Futebol, ConsumopdfSkip carouselcarousel previouscarousel nextCombatendo a desigualdade social - O MST e a reforma agrária no BrasilComissão Pastoral Da Terralos bolcheviques y la revolución de octubreMÍDIA E IDEOLOGIA - UMA LEITURA CRÍTICAKONDER, Leandro - A Revanche da DialéticaRoberto Schwarz - Fim De SéculoKONDER, Leandro - Em Torno de MarxAs Ideias Fora Do Lugar. 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