TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

March 21, 2018 | Author: Jo Fagner | Category: Time, Image, Newspapers, Journalism, Thought


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1Contexto Revista e contemporaneidade: imagens, montagens e suas anacronias Daisi Vogel Revistas têm temporalidade expandida já por sua periodicidade alongada. São semanais, quinzenais, mensais; organizam, a cada edição (ou na série das coleções), um tempo mais dilatado que o do jornal e, com isso, desmontam e remontam os noticiários, as atualidades, as vivências. Selecionam as imagens do presente, enredam-nas, justapõem umas com outras, propõem perspectivas para elas conforme as rotinas e vocações de cada veículo. Configuram, desse modo, montagens em que se justapõem fotografias, ilustrações, informações, narrativas, materiais diversos; pequenas súmulas de imagens do contemporâneo. Toda revista propõe, de algum modo, uma reflexão sobre o contemporâneo; nunca uma representação do contemporâneo, mas uma apresentação materialmente estável de imagens justapostas, do presente e de quaisquer tempos. Sejam quais forem os temas a que se dedique, o noticiário recente ou a efeméride, a revista implica a reunião espacial – o número, a edição – de materiais cuja temporalidade é diversa, heterogênea. Refletir Tavares e Schwaab.indd 17 sobre a temporalidade da revista exige, portanto, que se leve em conta a espessura temporal das imagens que ela veicula. Procuro aqui apresentar algumas ideias relacionadas a esse trabalho temporal das imagens com que se defronta qualquer um que folheie uma revista, quer para distração, informação ou pesquisa. Retomo estudos anteriores, nos quais me ocupei em pensar sobre como as revistas produzem, editam e apresentam imagens.1 Vejo a revista como um objeto-arquivo que 1 A procura de um procedimento analítico para trabalhar com a temporalidade heterogênea das imagens apresentadas pelas revistas foi objeto de pesquisa de pós-doutoramento, em 2009-2010, com financiamento do CNPq. Versões preliminares das ideias contidas neste capítulo foram expostas, entre outros lugares, no 8o Encontro de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), em 2010, inclusive em seus anais, e depois no artigo “O caso de Senhor com a literatura: notas sobre a revista e o acontecimento”, incluído na coletânea Jornalismo e acontecimento: percursos metodológicos (vol.2), citado nas Referências. 6/3/2013 11:03:48 esse tempo que é “com-tempo” e implica algum tipo de partilha. para a reflexão e o entendimento desse mesmo estar-aí. Começa-se.. inatual [. na sequência. em confronto. afinal. se justapõem. um arquivo de memória. remobilizam esse pensamento. Uma síntese inicial: numa revista. se as imagens que carrega estão elas próprias carregadas de uma história que não é nem linear. 1993b. 2006. coisificadas ou mentais. apresentar o conceito de montagem e as questões relativas ao tempo que ele mobiliza. afinal. a necessidade dos lapsos temporais na relação com o presente. públicas ou individuais. 2008). Valho-me a todo instante do pensamento de Walter Benjamin (1993a.) materializa uma certa configuração de imagens e. operadas junto a imagens da experiên­cia e da memória. em que imagens de mundo são agrupadas numa dinâmica própria. seleções. verbais ou pictóricas. intermitências. Há. O que é. 2006) sobre a relação entre a história e o tempo e de autores contemporâneos que. o ina­tual –. é o espaço que abre o atual ao entendimento. Por isso. uma tentativa de perceber como o tempo histórico se dá a ler nas revistas. e depois se desdobra cada vez que se inicia um gosto de leitura. do cotidiano vivo. seja de época passada. não poderia ser abordada como se fosse chapada.. da pauta ao fechamento. Nietzsche. defende nesse texto a importância do esquecimento para a vida. nem sempre do mesmo modo. desde o início. nem heterogênea. se alternam. de qualquer modo. o fora tempo – logo.. portanto. em quaisquer tempos. aquele que não coincide inteiramente com este. portanto. seja ela atual. Esse princípio operador da montagem. o que sugere o reconhecimento do caráter heterogêneo do tempo que atravessa uma revista. tentarei tramar uma relação entre esses conceitos e o próprio conceito de revista. que é em tudo diferente da vivência perceptiva do presente. antes separadas. pois. como se sabe. se multiplicam.] pertence verdadeiramente ao seu tempo.18 Tavares & Schwaab (orgs. dada a necessidade de logo distinguir a experiência do tempo da submersão radical no presente. bem como esboçar um procedimento que ajude a pensar a revista desde a edição ao consumo das imagens. Procurarei. opera sempre o princípio-chave da montagem. sempre um acionamento de arquivos: imagens em associação. as imagens do contemporâneo. da sugestão de que o contemporâneo é o intempestivo. Os conceitos principais que surgiram para pensar a revista na sua relação com o tempo foram o de imagem. é verdadeiramente contemporâneo. A revista se mostra. conscientes ou não conscientes. como se o seu tempo não fosse atravessado de esquecimentos. em composição. de comum. nem está adequado às suas pretensões e é. Aqui. Veremos que sintomas e sobrevivências se atualizam na revista. Ou seja. numa contemporaneidade que. e deste se vai ao entendimento do trabalho anacrônico da memória com as imagens. “[. de montagem e de anacronismo. As imagens que uma revista apresenta trazem sempre sentidos em carga. para começar a responder a essas perguntas. se manifesta Tavares e Schwaab. nesse sentido. e imagens do noticiário.]” 6/3/2013 11:03:48 .indd 18 em todo o percurso editorial. numa reconfiguração constante daquela que seria. Procurei por recursos teóricos que amparassem o trabalho vivo com os sentidos que se dá quase espontaneamente quando se folheia uma revista. a experiência do tempo.. Ou seja. o contemporâneo? Que relação temporal distingue ou aproxima contemporaneidade e atualidade? Agamben (2009) recorreu ao Friedrich Nie­tzsche da Segunda consideração intempestiva. em termos benjaminianos. como caleidoscópio em que imagens. neles implicadas as questões relacionadas ao conceito de memória. associado ao trabalho da imaginação. coloca-se inicialmente o problema de tentar definir a contemporaneidade. como Giorgio Agamben (2009) e Georges Didi-Huberman (1998. O intempestivo. (Bloch. Ele aponta como a montagem das vanguardas históricas realiza procedimentos que são também os da revista. se alojam Tavares e Schwaab. não podem manter fixo o olhar sobre ela. E ainda: “[. tradução minha). Ele ganha espessura na medida em que nele se distingue o que carrega do passado e o que projeta ao futuro. muitas vezes porém é experimentado de forma involuntária. Um refúgio da história universal. é uma época caleidoscópica. como um procedimento de interrupção que assim permite a sobreposição de partes anteriormente muito separadas. Essa relação é. quando usado como em Brecht. O entendimento da revista como lugar em que se exercita o princípio artístico da montagem foi apresentado por Ernst Bloch. voluntariamente.] a escrita se assemelha ao seu autor em que é um esconderijo incomparável de imagens. uma revista é uma montagem. 1985. De fato. [. Ele situa a revista como manifestação material plena da experiência moderna. Isso compreende desde as mal havidas ligações do olhar com a imagem até Proust. grifos do autor. diz-se também das formas verbais que operam com imagens em nossa memória.]” (Benjamin. 58). enfim. Nenhum tempo presente é compreensível em si mesmo. ou. conceitualmente caleidoscópica. p. Aqui é grande a riqueza de uma época agonizante. O exercício em relação a essa passagem de Bloch é justamente remontar seu argumento ao revés. mesmo que remontadas a partir de um primeiro conjunto de atualidades. p.A revista e seu jornalismo 19 (Agamben. Por isso a ideia de que. Efetivamente. exatamente por isso.. fechado. concomitantemente. 2009. uma “revista”... dele tenham extraído a imagem. do entendimento. não são contemporâneos porque. 203): Achar palavras para aquilo que se tem diante dos olhos – quão difícil pode ser isso! Porém. palavras [. p. Joyce. Esse procedimento muitas vezes é apenas decorativo.. de distanciamento.indd 19 IMAGENS EM MONTAGEM A montagem arranca partes da coerência ruída e dos múltiplos relativismos da época. batem contra o real com pequenos martelinhos até que. que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente. é impossível pensar o contemporâneo sem o exercício crítico da imaginação e da memória.. sabedorias. não conseguem vê-la. as imagens ali agrupadas se reorganizam nesse passeio. Brecht e daí por diante. porque não é uma tela plana: folheia-se. ele parte da ideia de revista como um caleidoscópio de imagens e tempos. para juntá-las a novas figuras. Há sempre essa justaposição e contraposição de imagens. As montagens feitas pelos artistas de vanguarda dispunham em formas novas os 6/3/2013 11:03:49 . 207). Donde a contemporaneidade pode ser compreendida como uma forma singular de relação com o tempo. de 1935. seguindo o caminho de Benjamin (1993b.] aqueles que coincidem muito plenamente com uma época. 59) que imagens. Pois no autor moram. mais do que uma mensagem. A atualidade radical é quase a inércia da experiência. de adesão ao tempo e de dissociação dele. que exercitam a imaginação e a memória. Diz Agamben (2009. 1993b. A revista. Quando se diz da imagem. ou. uma surpreendente época de mescla entre noite e manhã nos anos vinte. como de uma chapa de cobre. é um arquivo do contemporâneo. quando elas chegam. no prefácio da primeira edição de Herança desta época. uma montagem de imagens cujos nexos se produzem na memória. p. 17.. p. essa súmula de imagens. Nenhum momento é capaz de saber o que o próximo traz. 2008. como material de montagem. criavam novas configurações de sentido no caleidoscópio dos materiais.indd 20 benjaminiana da politização da arte.) materiais encontrados nas ruínas de sua época. “como uma raiz quadrada”. “intervalos que funcionarão como vias abertas. Didi-Huberman mostra que a montagem não é apenas um procedimento de época. Bloch e Benjamin participaram ativamente do debate sobre as relações entre arte e política. mas por causa do caminho que passa através delas. desviando de um modelo dominante de relato para extrair das imagens e seu tempo os conflitos imanentes. O que existe ele converte em ruínas. o devir universal ou a singularidade das deformações. Em seu estudo sobre a montagem épica de Bertold Brecht. Didi-Huberman faz perguntas à obra de Brecht que podem ser reformuladas. para quem “montagem” e “caleidoscópio” são conceitos caros. Didi-Huberman (2008) menciona essa passagem de Bloch e a correlaciona com Walter Benjamin. associativa e não linear. e essa é a operação-chave da revista. caminhos para uma nova maneira de pensar a história dos homens e a disposição das coisas” (Didi-Huberman. pois é certo que. O conceito de “revista”. de adesão e distância que a montagem propõe em relação ao contemporâneo. Onde os outros esbarram em muros ou montanhas. E pode-se duplicar a perspectiva de Bloch: o desmonte e a remontagem dos materiais da revista (as imagens e as temporalidades que as atravessam) tornam-se procedimentos de uma operação (ou leitura) que opera francamente com a imaginação e a memória. 237). não por causa das ruínas. para o objeto revista. é quase consubstancial ao nascimento da imprensa (Contreras. Mas porque vê caminhos por toda a parte. como formação discursiva moderna. a revista fica mais próxima de uma poética do que de uma organização científica do saber. mas também um procedimento filosófico em si. Já que vê caminhos por toda parte. com a presença de um pensamento crítico que não sustenta teses. ele vê um caminho. A montagem se mostra em seu “caráter destrutivo”. O que uma revista expõe? A regra ou a exceção. tem de desobstruí-lo também por toda parte. Nem sempre com brutalidade.20 Tavares & Schwaab (orgs. que caracteriza a revista a partir do procedimento de montagem que interliga os diversos trabalhos daquilo que se poderia também dizer “produção” de uma revista. como decalque. na época das vanguardas históricas. às vezes com refinamento. 1999. também aí ele vê um caminho. A montagem também cria vazios. está sempre na encruzilhada. É uma perspectiva que afeta o modo de entender o que são as imagens da revista. Já a perspectiva de Bloch segue o rastro de uma localização estética desse conceito. e Brecht era como uma encarnação da ideia Tavares e Schwaab. Bloch via a montagem como um sintoma histórico. Didi-Huberman retoma esse texto de Benjamin e encontra nele um elogio à montagem. Daí a menção à passagem talvez mais eloquente de Benjamin a esse respeito: O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. p. como ma­terial montado. p. p. 1993b. 194). e o que são as imagens na revista. compreendida como montagem. Brecht. sempre instável e particular. o que sempre permite imaginar a abertura ou o vazio de um outro caminho entre elas. o fluxo soberano ou as descontinuidades? Valem elas pelo seu parâmetro crônico ou por seu paradigma anacrônico? 6/3/2013 11:03:49 . (Benjamin. que dispõe em nova ordem (ou desordem) as ruínas de nosso próprio tempo. 145). O que atravessa essa dinâmica é a relação. Mas eis precisamente por que vê caminhos por toda a parte. Já que o vê por toda parte. caracterizando uma historicidade própria. aliás. Em suas páginas. Benjamin segue: A montagem faz explodir o “romance”. de origem pequeno-burguesa. também estudioso do periodismo brasileiro. 129). acidentes. para colocar a arte em relação política mais direta com a atualidade. os dadaístas desmontaram poeticamente a noção de informação de imprensa ao recortarem as revistas em pedaços. Martins (2001. 1993a. A verdadeira montagem se baseia no documento. canções e anúncios. Em suas Passagens. um sistema baseado no princípio de que a tarefa do artista é a transposição da realidade. de Döblin. Antelo (1999.. 1993. então. são a própria realidade. considera que ler uma revista 6/3/2013 11:03:49 . Os cubistas haviam usado recortes em suas telas. Em sua luta fanática contra a obra de arte. à moral servil do periódico e sua infinita capacidade de falsificação. Essa descrição do livro de Döblin poderia muito bem ser a descrição de uma de nossas clássicas revistas de informação geral. p. imutável nas variações geográficas e temporais onde o gênero floresceu. pois. de fato fragmentos de realidade. sensações de 1928. Era a época em que se propunha romper com as pretensões de uma arte eterna. um sistema de representação baseado na ideia de reprodução da realidade. A montagem tem. Material impresso de toda ordem. Bloch (1985) se referia.A revista e seu jornalismo O perfil poético da montagem atrai para a revista algumas questões que são centrais para a estética moderna. (Benjamin. A imprensa europeia. aponta que [. em seu extenso estudo sobre as revistas de São Paulo. O material da montagem está longe de ser arbitrário. O conceito de revista como caleidoscópio de imagens e tempos. por exemplo. era conduzida por grandes empresas financeiras. 46). A obra de arte transforma-se substancialmente ao admitir no seu seio fragmentos de realidade. Já não se trata apenas da renúncia do artista à criação de quadros completos. encadeia-se a mesma sorte de histórias. Como afirma Bürger. Benjamin (2006) usa a montagem como forma de conhecimento: uma montagem literária. e abre novas possibilidades. através da montagem. (Bürger. por sua vez. os próprios quadros. Manchete ou Senhor. por isso mesmo de forte conteúdo documental. p. p.. como O Cruzeiro. p. que incorporam na pintura materiais não elaborados pelo artista. tal como aparece em Bloch. histórias escandalosas. adquirem um status diferente. A montagem como princípio artístico surge historicamente ligada ao cubismo e às suas collages. 56): O princípio estilístico do livro é a montagem. estrutural e estilisticamente. p. Rompeu-se. não é frontalmente diverso de outras definições que se possa colecionar. Alguns artistas. com isso. canções populares e anúncios enxameiam nesse texto. o dadaísmo coloca a seu serviço a vida cotidiana. 1993a. desde o início. acidentes. em que diz (Benjamin. isto é. sensações. passaram a decompor os materiais factuais publicados nas revistas para remontá-los em outra sintaxe. de caráter épico. Ele também utiliza a noção de montagem no ensaio Tavares e Schwaab. 56).indd 21 21 em que aprecia Berlin Alexandersplatz.] o caráter fragmentado e periódico das revistas é seu traço recorrente. principalmente na forma. resultando sempre em publicação datada. 309). um vínculo experimental e mesmo material com as revistas e os jornais – os periódicos. pois uma parte deles já não mantém com a realidade as relações características das obras de arte orgânicas: não sinal da realidade. com a Primeira Guerra Mundial. potencializa a policronia desses acontecimentos e reforça seu aspecto de montagem. Ambos operam num encontro entre texto. sua proximidade com um saber poético em que se manifesta a crise 6/3/2013 11:03:49 . as “revistas fazem parte do grande aparato classificatório que nos dispõe em escaninhos segundo o que necessariamente nos interessa. cadernos que circulam com periodicidade ampliada. o acontecimento) em cada publicação. que registra a forma de biopoder que se exerce e exercita nas revistas. grifos do autor). a diferenciação entre tais veículos pode restar apenas ao aspecto material. Essa percepção. com folhas soltas que podem ser separadas e reagrupadas. 86-87). Revistas podem ser semanais. Essa característica é uma das que mais fortemente altera como o evento se torna acontecimento numa revista. quinzenais ou mensais. As revistas. tem um efeito importante sobre a definição da pauta. idades. marcada pela contínua adaptação aos aspectos emergentes da sociedade. Os jornais também costumam trazer. a periodicidade é um dos atributos centrais de diferenciação.. Segundo Lage (1982. que não obstante reafirmam o motor do moderno: a experiência do descontínuo. enquanto as revistas têm cadernos colados ou grampeados. Há experiências de publicações em que as características distintivas do jornalismo de jornal e de revista se sobrepõem. que reflete valores.. a linguagem (em suma. Lage observa também que. especialmente aos fins de semana. No conjunto.22 Tavares & Schwaab (orgs. o tratamento editorial. A hipótese da revista como montagem – e. produzindo um texto.. Existem jornais que circulam com periodicidade ampliada.indd 22 há uma distância maior entre o evento empírico e a publicação. Esses materiais tendem a se aproximar e incorporar atributos que são mais característicos da revista. Como prática jornalística. nostálgico. pensamentos e aflições de tempos idos. p.] obriga a selecionar e omitir. mas não existem revistas que sejam publicadas diariamente – isso é característico dos jornais e os torna muito mais próximos (que a revista) do universo da notícia propriamente dita. por outro lado. a revista também é diferenciada. voltadas a grupos de leitores. Mesmo nas revistas mais noticiosas. Nesse ponto. e isso termina por deixá-los. desde a formulação da pauta ao tempo de apuração e ao tratamento da linguagem e do desenho de página. 89. pois os jornais costumam ser montados em cadernos que se utilizam apenas da dobra do papel. Isto é fácil de constatar folheando velhas publicações periódicas [.. Sua existência é. tendem a se definir pela formulação de projetos bastante particulares.]: mais do que superadas. conceitualmente e no tratamento dado aos temas. um “estigma nostálgico” impregna tanto o título quanto a forma e o modo de ser das revistas: A revista-magazine reflete uma proposta discursiva engendrada socialmente e é raro que sobreviva à superação dessa proposta. a partir de nossas rendas. qualquer revista antiga guarda um aspecto reminiscente. mais próximos da revista.) [. Contudo. Desde a ideia de review (resenha ou minuta crítica) ou de magazine (loja ou casa de comércio). fotografia ou ilustração e design. uma leitura que é collage espacial ou montagem temporal de fragmentos enxertados em relações provisórias ou aleatórias. encartados. logo. com um vínculo temporal estreito entre os eventos empíricos e a publicação. p. o lugar em que vivemos ou de qualquer outro critério aparentemente natural e espontâneo” (1982. pode-se dizer que ela sobredetermina o modo como determinada revista toma posição diante dos eventos do mundo. a revista apresenta características que a distinguem do jornal. porém. Tavares e Schwaab. radicada na história moderna. Mesmo o realismo. as posições respectivas das coisas. O realismo quer compreender a realidade produzindo seu reflexo. No caso da arte e do jor­nalismo. entra em crise diante da estética da montagem. a promoção da arte dos artesãos à grande arte e a pretensão nova de inserir arte no cenário de cada vida em particular. com isso. Considerava que ela se apoia nos documentos. que exerceram influência no Renascimento. de seus desvios. e isso teve um papel central na transformação do paradigma representativo. por um lado. (Rancière. Dis-põe e recompõe. ou o “caráter destruidor”.indd 23 23 totalidade histórica. que seu conhecimento depende de sua transformação. Esse paralelismo histórico entre a revista e a crise da representação remete ao processo da autonomização dos campos em si – o campo da arte. por extensão. que foi concomitante. 2008). “Esse modelo”. p. das imagens (Didi-Huberman. “embaralha as regras de correspondência a distância entre o dizível e o visível. o entrelaçamento igualitário das imagens e dos signos na superfície pictural ou tipográfica. diz ele. trata-se de todo um recorte ordenado da experiência sensível que cai por terra. dos discursos. na intenção de restituir seu movimento e sua Tavares e Schwaab. Toma posição sobre o real mudando. 2005. numa atitude que questiona o lugar da própria ação. do jornalismo. Há. p. mas também se permite tomar esse material histórico a 6/3/2013 11:03:49 . “esse entrelaçamento dos poderes da letra e da imagem”. sua organização hierárquica – e particularmente o primado da palavra/ação viva sobre a imagem pintada – era análoga à ordem político-social. a imaginação tomada como forma de conhecimento e como essencialmente política. Jacques Rancière faz referência às culturas tipográfica e iconográfica. ao mesmo tempo que questiona. ANACRONIAS DO CONTEMPORÂNEO Benjamin explorou a relação entre imaginação e história. e às vinhetas e demais inovações da tipografia romântica. próprias à lógica representativa” (Rancière. em vez de procurar abarcar a totalidade. 2005. pode-se considerar. de certa maneira. como em quaisquer campos. renuncia antecipadamente à compreensão global e ao reflexo. um embaralhamento entre as noções de arte pura e arte aplicada. de seus sintomas. é seu princípio formal. determinante para todo o jornalismo e para a modernidade estética em si. ao contrário. Define-se o mal-estar diante das sedimentações excessivas. As vanguardas opuseram a especificidade da obra de arte ao sistema de valores pelo qual a instituição estabilizava a cultura. novas situações. criando novas relações entre as coisas. separava o mundo das imitações da arte do mundo dos interesses vitais e das grandezas político-sociais. O pôr em desordem. Não mostra as coisas sob a perspectiva de seu movimento global. Com a vitória da página romanesca sobre a cena teatral. na própria cultura tipográfica e iconográfica de que a revista faz parte. 23). A montagem. de maneira crítica. Isso faz pensar. na necessidade de compreender também o jornalismo dentro e diante do sistema de valores que o tornou possível e ao qual ele. normativas. legitima e preserva. interpreta por fragmentos. Esta. mas de suas agitações. Por outro. Nos vínculos criados entre o poema e sua tipografia ou sua ilustração faz-se a ligação do artista que abole a figuração ao revolucionário. inventor da vida nova: Essa interface é política porque revoga a dupla política inerente à lógica representativa.A revista e seu jornalismo da representação – está. operou como crítica à estrutura social que legitimava a arte. 20). uma vez que separa e recompõe. significações que tomam o tempo ao revés. os arquivos – em nosso caso. a memória. Rancière (1996) afirma que existem modos de conexão. narra. Segundo ele. interrogar o arquivo e o tempo. desorganizando evidências. Aí reside um dos movimentos mais peculiares do presente. Mudou foi a forma de agrupá-los e classificá-los.indd 24 convivem entre si e funcionam sincronicamente porque a presença do passado no presente. nem tanto porque tenham mudado as imagens ou os relatos do presente. que se reproduz incessantemente e permite que as escrituras da diferença singular convivam com as escritas da permanência identitária. recorrentemente. que nos olham quando as olhamos. a temporalidade e a historicidade em si mesmas. sob o influxo da noção do anacronismo. p. na história como processo. Assim. a toda identidade do tempo consigo mesmo. a esse respeito. porque implode a cronologia. o documentário. ocorre um encontro de temporalidades mistas e heterogêneas: os tempos dos acontecimentos factuais. ao mesmo tempo. abriga um conjunto variado de registros: o testemunho. a partir de outras categorias históricas. as revistas – são potenciais objetos para o estudo e a reflexão acerca do histórico e do contemporâneo. Conforme aponta Antelo (2007. E. mas. A montagem aí figura como procedimento central. que fazem circular o sentido de uma maneira que escapa a toda contemporaneidade. Não é difícil reconhecer que. porém. p. os tempos de 6/3/2013 11:03:49 . 10). dos sentidos de tempos incluídos em um “mesmo” tempo. sempre transformada – que nos olha em cada forma visível investida desse poder de “levantar os olhos”? Quando o trabalho do simbólico consegue tecer essa trama de repente “singular” a partir de um objeto visível.. 150): Como negar. com efeito. mudou a maneira de ler. numa revista.) contrapelo. A montagem separa coisas habitualmente reunidas e vincula coisas habitualmente separadas. que podemos positivamente chamar de anacronias: acontecimentos. Donde deter-se diante de uma revista é. fluxo ininterrupto de causas e consequências fixas. sendo por excelência uma exposição de anacronias e heterogeneidades. A partir dessa noção de anacronismo. Perniola (2009. um conhecimento por imagens. da crítica dialética das imagens. Foi seu projeto compor uma obra documental que tivesse a imaginação por objeto. sua historicidade complexa sempre relembrada. p.] é preciso realmente faltar de senso histórico para acreditar cegamente numa correspondência geométrica entre a realidade histórica de uma época e o seu imaginário coletivo”. é condição do fator histórico a multiplicidade das linhas temporais. a história da revista. Por isso. 155) bem observou. que é todo o tesouro do simbólico – sua arborescência estrutural.24 Tavares & Schwaab (orgs. O tempo histórico não poderia mais ser pensado como uma determinação. noções. a ficção — que precisam ser analisados de forma completamente diversa da tradicional. um movimento dúplice. basicamente. a história crítica da cultura. Todas Tavares e Schwaab. como diz Didi-Huberman (1998. acrescenta-se à compreensão da revista a perspectiva do anacronismo.. na medida em que se torna capaz de chamar uma lonjura na forma próxima ou supostamente possível da posse. por outro o transforma literalmente: pois ele inquieta a estabilidade mesma de seu aspecto. por um lado ela o faz literalmente “aparecer” como um acontecimento visual único. questionar e problematizar o tempo e a contemporaneidade de uma revista exige considerar a complexidade teórica do próprio anacronismo. através da superposição de temporalidades. que “[. o processo de constituição dessas temporalidades paradoxais. 2006. reconhece o antigo mendigo que “sobrevive” no clochard. Assim. Isso implica reconhecer o princípio funcional dessa sobredeterminação dentro de uma certa dinâmica da memória.A revista e seu jornalismo produção da revista. ou seja. soma-se que cada imagem do presente. mas do movimento que Tavares e Schwaab. p. as próprias manipulações do tempo que ela documenta e suas eventuais posições anacrônicas. a imaginação desmonta a continuidade das coisas para fazer surgir as afinidades eletivas estruturais. contra seu próprio tempo. De fato. com sua proposição de construir um saber histórico que exponha a heterogeneidade e a anamnésia de cada acontecimento para além do seu presente singular. Quando se empreende uma leitura crítica da revista. anacrônico em seus efeitos de montagem. ela humaniza e organiza o tempo. Poderíamos deslocar. é montadora por excelência. G. A tudo isso. ou seja. Benjamin vê a larga duração de um passado latente em cada objeto histórico. leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”. No livro das Passagens. os tempos da leitura. que formam o caleidoscópio. um procedimento de leitura dos materiais jornalísticos. na perspectiva de Benjamin. 2007. Rio de Janeiro: UFRJ. as bocas do inferno que sobrevivem nas bocas do metrô. 18. multiplicando os pontos de vista. nas múltiplas seções de uma revista. É a memória que se interroga na revista. Anais . 6/3/2013 11:03:50 . 223): “O cronista que narra os acontecimentos. o inconsciente da imagem. e exige do analista do passado que considere modelos de temporalidade ampliados. Com isso. Considere-se a variedade temática. porque as imagens que ela reúne não são pontos fixos naquela que seria a linearidade impossível da história. O que é o contemporâneo? E outros ensaios.. e tampouco remetem a blocos de eternidade. entra em cena a temporalidade do analista. e não na presença eterna da ideia. entretece seus fios. 2009. De fato. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LITERATURA COMPARADA. assegura sua transmissão (Didi-Huberman. não há história sem uma teoria da memória e sem uma atenção às operações do inconsciente. A imagem é abertamente sobredeterminada a respeito do tempo. Agora. 2007. a imaginação faz montagens. Rio de Janeiro. a memória opera como um processo psíquico. portanto. do observador. pode-se ler revistas como quem rastreia pegadas da memória. A revista é também as memórias que a atravessam. de modo que o passado é atual nas sobrevivências materiais ou psíquicas dos materiais. como quem toma posição diante do contemporâneo. levar em conta os processos da memória e. Assim. Diz Benjamin. insensíveis à passagem do tempo. isto é. a revista e seu tempo. REFERÊNCIAS AGAMBEN. uma revista é um objeto que confere materialidade visual às anacronias da história real. p. exige o deslocamento da razão na história. 40). sem distinguir entre os grandes e pequenos. Anacronismo e world literature. cada evento factual. dessa prática.. mas recolocar o tempo nos materiais. Essa “sobrevivência” se refere aos efeitos anacrônicos de uma época sobre outra. Chapecó: Argos. uma das possibilidades para entender a revista é não se limitar ao ângulo da eucronia. em Sobre o conceito de história (1993a. capazes de lidar com os anacronismos da memória. se liga a uma rede de imagens já existentes. volta-se a Benjamin. De fato. R. e não exatamente o passado. Essa é uma das características radicais do seu pensamento: a história não parte dos feitos do passado. tomados a partir de um ponto de vista deslocado. Contudo.indd 25 25 os recorda e os constrói no presente do historiador. ANTELO.. que não procura depreen­der um discurso ou uma ideologia que seriam inerentes aos materiais. A memória é um tempo que não é exatamente um passado. Revista em revista: imprensa e praticas em templos de republica. São Paul: Brasiliense. A. Erbschaft dieser Zeit: erweiterte Ausgabe. 2008. 1999. W. Passagens. In: SOSNOWSKI. S. 1993. Madrid: Síntesis. W. Historia del periodismo universal. São Paulo: Brasiliense. MARTINS. 2. La cultura de um siglo: América Latina en sus revistas. ensaios sobre literatura e história da cultura. 1999. M. P. Frankfurt am Main: Suhrkamp. In: GÓMEZ MOMPART.) ANTELO. São Paulo: Ed.. RANCIÉRE. arte e política: DIDI-HUBERMAN. Le concept d’anachronisme et la verité de l’historien. Teoria da vanguarda. Tavares e Schwaab. J. CONTRERAS. 6. L. Buenos Aires: Adriana Hidalgo. BLOCH. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. BENJAMIN. PERNIOLA. Rua de mão única. P. R. E. (Ed. A partilha do sensível: estética e política. Lisboa: Vega. M. ed. Buenos Aires: Alianza. o que nos olha.). W. 2006. El periodismo de los nuevos médios: el cine. 1985. N. J. 6/3/2013 11:03:50 . RANCIÈRE. Petrópolis: Vozes. 2001. LAGE.26 Tavares & Schwaab (orgs. 1996. BENJAMIN. BENJAMIN. BÜRGER. 34. el magazine y la radio. Ed. E. 297-310. 34. p. Belo Horizonte: Ed. S.indd 26 DIDI-HUBERMAN. Ideologia e técnica da notícia. L’Inactuel. São Paulo: Exo Experimental. DIDI-HUBERMAN. da UFMG. Ante el tiempo. O que vemos. J. 1993a. Enigmas: egípcio. G. Magia e técnica. São Paulo 1890-1922. G. Chapecó: Argos. Cuando las imágenes toman posición. 5. El inconsciente óptico del modernismo. 2009. ed. ed. 2006. L. 1998. 2005. São Paulo: EDUSP. 3. G. OTTO. 1993b. barroco e neo­ barroco na sociedade e na arte. n. Madrid: Antonio Machado Libros. 1982.
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