A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE E DOS TERRITÓRIOS AFRO-BRASILEIROS EM MATO GROSSO DO SUL: ESTUDOS SÓCIO-ETNOLINGÜÍSTICOS Antonio Carlos Santanade SOUZA (Doutorando FFLCH-USP/UEMS) 1. Introdução O reconhecimento, por parte do Estado, da existência de comunidades negras rurais como uma categoria social carente de demarcação e regularização das terras que ocupam longevamente e às quais se convencionou denominar comunidades remanescentes de quilombos, traz à tona a necessidade de redimensionar o próprio conceito de quilombo, a fim de abarcar a gama variada de situações de ocupação de terras por grupos negros e ultrapassar o binômio fuga-resistência, instaurado no pensamento corrente quando se trata de caracterizar os quilombos. Consoante à busca dos direitos dos quilombolas, pesquisadores estão investigando a presença ou não de elementos que possam atestar um processo de crioulização prévia na fala dos habitantes de comunidades afro-brasileiras rurais no Brasil (em muitos casos, remanescentes de antigos quilombos). 2. A atualização do conceito de quilombo e a distinção de identidade étnica e de território nas definições teóricas Em 1740, reportando-se ao rei de Portugal, o Conselho Ultramarino valeu-se da seguinte definição de quilombo: “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. Esta caracterização descritiva perpetuou-se como definição clássica do conceito em questão e influenciou uma geração de estudiosos da temática quilombola até meados dos anos 70, como Artur Ramos em 19531 e, posteriormente, Edson Carneiro em 19582. O traço marcadamente comum entre esses autores é atribuir aos quilombos um tempo histórico passado, cristalizando sua existência no período em que vigorou a escravidão no Brasil, além de caracterizarem-nos exclusivamente como expressão da negação do sistema escravista, aparecendo como espaços de resistência e de isolamento da população negra. 1 2 RAMOS, A. O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante Brasileiro, 1953. CARNEIRO, E. O Quilombo dos Palmares. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1958. In Humanidades. Para ele. especialmente. nov/dez de 1995. (Orgs. N. propositadamente. F. ignora os efeitos da escravidão na sociedade brasileira4 e. Flávio dos Santos Gomes3 tenta abarcar tal diversidade com o conceito de “campo negro”: “uma complexa rede social permeada por aspectos multifacetados que envolveu.Cardoso5. em determinadas regiões do Brasil. com os instrumentos da observação etnográfica “se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a situação de quilombo existe onde há autonomia. p. Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho Ultramarino.) Liberdade por um fio. S. 5 CARDOSO. 4 GUSMÃO. 3 GOMES. In: Cultura Vozes. W. 1987/88. de Almeida6 mostra que aquela definição constitui-se basicamente de cinco elementos: 1) a fuga. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. em locais de difícil acesso e mais próximos de uma “natureza selvagem” que da chamada civilização. História dos quilombos no Brasil. 5) auto consumo e capacidade de reprodução. 3) o isolamento geográfico. 4) moradia habitual.15. referida no termo “rancho”. São Paulo: Brasiliense. conforme comprovam os estudos de Ciro Flamarion S. A. p. M. 6 ALMEIDA. B. Os direitos dos remanescentes de quilombos. a denominação quilombo se impôs no contexto da elaboração da constituição de 1988. inúmeros movimentos sociais e práticas econômicas com interesses diversos”. na verdade. embora simbolicamente tal mediação possa ser estrategicamente mantida numa reapropriação do mito do ‘bom senhor’. 1987. B. cuja ideologia. n. São Paulo: Cia. extremamente comuns à época. a diversidade das relações entre os escravizados e a sociedade escravocrata e nem as diferentes formas pelas quais os grupos negros apropriaram-se da terra. 1996.6. n. tal como se detecta hoje em algumas situações de aforamento”. Alfredo W. ele não abarca. a “invisibilidade” produzida pela história oficial. No entanto. C. os efeitos da inexistência de uma política governamental que regularizasse as posses de terras de grupos e/ou famílias negras após a abolição. foi a produção científica ainda atada a conceitos restritivos e pouco plásticos que subsidiou a luta política em torno das reivindicações da população rural negra que. se colocava como um segmento específico no palco dos movimentos sociais. 14-15. 36. Esta visão reduzida que se tinha das comunidades rurais negras refletia. terras de santo e terras de índio – posse comunal e conflito”. Desta forma. simbolizados na imagem do pilão de arroz. sofrendo expropriações incessantes. das Letras. 2) uma quantidade mínima de fugidos. porém. “Terras de preto. F. Ano V. São Paulo: Vozes.Embora o trabalho destes autores seja importante e legítimo. . existe onde há uma produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos como mediador efetivo. S. Este sentimento de pertencer a um grupo e a uma terra é uma forma de expressão da identidade étnica e da territorialidade. Roberto Cardoso de Oliveira 11 elaborou a noção de identidade contrastiva para embasar as análises que têm como centro interpretativo a 7 Especialmente no III Encontro Nacional sobre Sítios Históricos e Monumentos Negros (Goiânia: 1992). reivindicam a titulação de suas terras. op. org. pudesse ser contemplada por esta categoria. A condição de remanescente de quilombo é definida de forma ampla e enfatiza os elementos identidade e território. o termo em questão indica: “a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos e é utilizado para designar um legado. uma herança cultural e material que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar específico”9. no dizer de Maria de Lourdes Bandeira. C. M. instaurando a relativização e adequação dos critérios para se conceituar quilombo. Encontro da ABA (Associação Brasileira de Antropologia). 17 e 18 de outubro de 1994. outubro de 1994). direitos e lutas. de modo que a maioria dos grupos que hoje. Tânia Andrade (1997:47). da Associação Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro. Identidade. Eliane C. na qual foram um dia escravos.cit. ainda. A identidade étnica é um processo de identificação de grupos em situações de oposição a outros grupos.A promulgação da Carta Magna de 1988 e a necessidade de regulamentação do artigo 68 do ADCT provocaram discussões de cunho técnico e acadêmico 7 que levaram à revisão dos conceitos clássicos que dominavam a historiografia sobre a escravidão. a antigüidade da ocupação de suas terras e. 10 GUSMÃO. Rio de Janeiro.:14 11 OLIVEIRA. Com efeito. . 1976. Frente a esta constatação. Estes aspectos encobertos aos quais a autora se refere são a submissão e a dependência dos grupos negros em relação à sociedade inclusiva. uma vez demonstrada. suas “práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”8. aspectos encobertos das relações raciais”10. P. São Paulo: Pioneira. por meio de estudos científicos. J. Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais. construídas sempre em relação aos outros grupos com os quais se confrontam e se relacionam. etnia e estrutura social. a existência de uma identidade social e étnica por eles compartilhada. na Reunião do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais. efetivamente. pois “a presença e o interesse de brancos e negros sobre um mesmo espaço físico e social revela. R. e O’DWYER. publicado em Quilombos em São Paulo: tradições. e na reunião técnica “Reconhecimento de Terras Quilombolas Incidentes em Domínios Particulares e Áreas de Proteção Ambiental” (São Paulo. 8 Conforme OLIVEIRA. 9 Garcia. Estes dois conceitos são fundamentais e estão sempre inter-relacionados no caso das comunidades negras rurais. abril de 1997). N. José Milton (PPI/SP). empresas imobiliárias ou posseiros. Finalmente. em última instância. São justamente estas relações que se estabelecem no convívio/confronto das comunidades negras com a sociedade abrangente. cuja característica essencial é tratar a terra apenas como mercadoria. alguns destes últimos com o consentimento dos próprios grupos quilombolas. mantém sua dignidade. os camponeses foram pressionados com expedientes espúrios. a qual o autor denominou “fricção interétnica”. Pelo contrário. Portanto. alguma liberdade e. A maior parte dos grupos que hoje reivindicam seu direito constitucional o faz como um último recurso na longa batalha para manterem-se em suas terras. resistindo a várias formas de violência para permanecer em seus territórios ou. ao menos. a violência física direta e o auxílio do aparato judicial. temos uma situação de submissão e dominação. . da legislação pertinente à questão quilombola – têm buscado rediscutir e recaracterizar o conceito de quilombo. Tal intento. nos quais. particularmente. sempre se relacionaram intensa e assimetricamente com a sociedade brasileira. não se deve imaginar que estes grupos camponeses negros tenham resistido em suas terras até os dias de hoje porque ficaram isolados. entretanto. os primeiros. devemos salientar que é devido às considerações teóricas e às constatações históricas aqui apresentadas que estudiosos das comunidades negras rurais – e. ainda em curso. em geral grandes proprietários. reconhecimento e auxílio às comunidades quilombolas ampliem e otimizem suas atividades.identidade étnica de um grupo social. gerando mais dados que contribuam para o desvendar científico das lacunas referentes aos grupos quilombolas que marcam a historiografia nacional. invariavelmente muito mais antigas do que o tempo mínimo requerido pela legislação para a sua transformação em propriedades. estando o restante ocupado por fazendeiros. as quais são alvo de interesse de membros da sociedade envolvente. e quando o confronto se estabelece entre um grupo minoritário e os brancos. As situações de oposição entre os grupos levam-nos a elaborar os seus critérios de pertencimento e de exclusão. em parte deles12. invariavelmente se apropriaram de grandes áreas valendo-se da ingenuidade das comunidades ou mesmo da coerção física para apoderar-se dos territórios negros. à margem da sociedade. tais como constantes ameaças de violência. grileiros e especuladores imobiliários. que agiram no sentido de negar-lhes o direito de obter o registro legal de suas posses. tende a aprimorar-se quanto mais os organismos responsáveis pela identificação. Em conseqüência da cobiça que esta lógica de mercado despertou. de hierarquia de status. através de relações solidárias entre si. 12 Muitas das comunidades rurais negras já pré-identificadas no Estado de São Paulo mantém o domínio sobre uma pequena parcela de seus territórios originais. sua humanidade. Rio de Janeiro: Sauer. Geogr. 1933. . da Universidade Federal da Bahia que desenvolveram pesquisas no Estado da Bahia. A influência africana no português do Brasil.3. Buscar-se nas comunidades afro-brasileiras. A. p129-196. 14 MENDONÇA. Boletim Soc. evidências lingüísticas de processos de formação do Português do Brasil (PB). 1933. Lisboa. 1880. no início do século passado. Rio de Janeiro: Renascença. Os dialetos românicos ou neo-latinos na África. Ásia e América. pretende-se apresentar novos elementos para o significativo debate sobre a relevância do(s) processo(s) de crioulização na constituição histórica do português do Brasil. Raimundo15 chegam a atribuir a influência das línguas africanas a motivação de todas as características que distinguem o PB do Português Europeu (PE). Este trabalho é semelhante ao desenvolvido pelos pesquisadores Alan Noam Baxter. R. A partir da análise lingüística da fala das comunidades abordadas. atualmente existentes em Mato Grosso do Sul. 4. 15 RAIMUNDO. Crioulização ou descrioulização? O estreito contato do português com línguas africanas. O elemento afro-negro na língua portuguesa. Na 13 COELHO. Já no final do século passado. Mendonça14 e J. Série 2. Em seu sentido mais amplo. pretende-se apresentar novos elementos para o significativo debate sobre a relevância da fala dos negros na constituição histórica do PB. as pesquisas visam a contribuir para um maior conhecimento da realidade cultural das minorias de origem africana e a reunir elementos que permitam definir a real contribuição desses segmentos na formação da língua falada no Brasil. F. A pesquisa lingüística A partir da análise lingüística da fala dessas comunidades. Coelho13 reúne o PB aos crioulos de base portuguesa. R. da Universidade La Trobe. F. O objetivo das investigações é o de juntar-se a uma literatura científica que irá somar-se a uma expressiva produção sociológica e antropológica sobre o negro e as suas condições de vida e fala em grandes centros urbanos brasileiros. n.A. Austrália. No bojo do movimento de afirmação de uma língua brasileira.3. e possíveis processos de pidginização e crioulização dele decorrentes sempre estiveram na pauta daqueles que se ocuparam da caracterização sócio-histórica do PB. J. durante o período colonial. com base nas semelhanças identificadas entre eles. e Dante Lucchesi. 19 CÂMARA Jr. I. University of Pennsylvania. H. envolve duas posições: uma que vê essa situação do PPB apenas como o resultado de mudanças lingüísticas internas. New York: Cambridge Language SURVEYS. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. o estruturalismo. 1985. segundo Câmara Jr. Joaquim Mattoso Câmara Jr. Comunicação apresentada a Conferência Internacional sobre Línguas Pidgins e Crioulas. 20 JEROSLOW. GUY. S. decorrente de uma visão de superioridade cultural do colonizador branco.. O advento da sociolingüística permitirá a retomada do debate em torno da questão. 1979.. Tal posição se justifica pela imagem de unidade e conservadorismo do PB. S. Bogota: Instituto Caro y Cuervo. que encerrava na lógica interna do sistema lingüístico os fatores determinantes do desenvolvimento histórico da língua.reação que se segue.19 também negará um papel relevante ao crioulo falado por escravos africanos no Brasil. vistos como uma simplificação e/ou deturpação do português. 21 GUY. Pidgins and creoles. G. Theory and structure. R. In: Estudios sobre Español de América y Linguistica Afroamericana. 1989. então. Linguistic variation in brazilian portuguese: Aspects of phonology. . Rio de Janeiro: Presença. Gladstone Chaves de Melo17 e Sílvio Elia18. Rio de Janeiro: Padrão. e uma segunda. Rio de Janeiro: FGV. Universidade do Havaí. C. 18 ELIA. O 16 17 SILVA NETO. M. Holm22. em função do modelo teórico ao qual se filiava. em outros termos. M. O ponto de partida é o quadro atual de profundas diferenças entre o português popular do Brasil (PPB) e o português padrão. História e estrutura da língua portuguesa. por que militavam seus autores. 1981. 22 HOLM. 1986. Muitos dos traços que caracterizam o PPB são típicos de línguas crioulas: (i) preferência pela marcação do plural apenas no primeiro elemento do SN. Ph. postulada por Gregory Riordan Guy21 e J. O debate atual. Língua do Brasil. Serafim da Silva Neto16. R. G. embora admitam a formação de crioulos e semicrioulos decorrentes do aprendizado imperfeito do português por falantes africanos. encontra um forte amparo nos dados sócio-históricos. Vol. negam qualquer influência destes na constituição do PB. bem como pela fragilidade de sua concepção acerca dos crioulos e semicrioulos. G. Desse modo. 1975. Ann Arbor: University Microfilms. A hipótese da relevância da crioulização prévia na formação do PPB. a influência das línguas africanas na constituição do PB estaria resumida à aceleração de tendências prefiguradas no sistema lingüístico do português. MELO. Rio de Janeiro: Padrão. que destaca a importância do(s) crioulo(s) português(es) falado(s) pelos escravos africanos na compreensão das origens do PPB. A unidade lingüística do Brasil.. J. (ii) drástica redução na flexão número-pessoal do verbo. 1989. On the nature and origins of popular brazilian portuguese. syntax and language history. J. (iii) dupla negação (como no crioulo português de São Tomé e no palanquero) – sendo que esses traços de tipo crioulo do PPB podem ser ainda mais radicais nos dialetos rurais20.D dissertation. 1981 e. Creole characteristics in rural brazilian portuguese. por exemplo: a Jamaica (crioulo inglês). No entanto. elas teriam logo desaparecido. n. cit: 310. R. . Guy23. próxima a Helvécia. como. Revista Lusitana. nos EUA. Contudo. ainda. na Colômbia. cit. próximo a Cartagena. o Haiti (crioulo francês) e Curaçao (crioulo espanhol).5. em São Basílio de Palenque. se variedades de crioulos portugueses tivessem existido no Brasil. o gullah. p. C. sendo que. Estudo piloto conduzido por Alan Baxter entre 1987 e 1988 confirmou a permanência de um dialeto com traços do tipo crioulo em uma comunidade afro-brasileira de descendentes de escravos. em outros países da América. Remanescentes de um falar crioulo brasileiro. línguas crioulas permaneceram em comunidades isoladas. ou seja. algo em torno de 3. que. Deve-se acrescentar. a hipótese da crioulização prévia do PPB é sensivelmente prejudicada pela falta de dados lingüísticos específicos a ela concernentes. uma variedade crioulizada do inglês sobreviveu. no Brasil colonial. Em determinadas regiões. op. Resultados preliminares da pesquisa sobre o sistema verbal desse dialeto foram apresentados no Colóquio Internacional sobre Crioulos de Base Lexical Portuguesa realizado pela Universidade de 23 24 GUY. a maioria da população se concentrava no campo. houve concentrações demográficas afro-brasileiras muito elevadas. e a abolição só ocorreu aqui tardiamente.Brasil. como destaca G. um crioulo espanhol. op. sem que pudessem interferir decisivamente na formação do PB. em 1888. parece razoável supor que a língua portuguesa no Brasil pode ter sofrido mudanças do tipo das que afetaram as línguas européias em outros países do Novo Mundo. por si só. 25 Ver também FERREIRA. onde a escravidão existiu e a língua hoje predominante não é o crioulo. o palanquero. G. e o campo era o destino da maioria dos escravos. e. Assim. S. O fato de o palanquero só recentemente ter sido reconhecido como um crioulo levanta a possibilidade da sobrevivência de outros crioulos ou post-crioulos em outras comunidades afro-americanas isoladas24. por algum período.: 1989. especialmente em áreas em que houve uma considerável concentração de africanos. absorveu aproximadamente 40% dos escravos levados para as Américas. na Carolina do Sul. Desse modo. continua a ser falado em uma comunidade remanescente de um antigo quilombo. cuja história também é marcada pelo processo da escravidão de populações africanas. 1984/85.6 milhões de indivíduos. no sul do Estado da Bahia25. países onde hoje crioulos e post-crioulos são largamente falados. Conforme Ganda apud Holm. 21-34. Os defensores da proposta de evolução lingüística interna argumentam que. a população afro-brasileira superou notavelmente a população européia. 1992. que estão no centro das preocupações atuais da crioulística. . que se verificou ao longo deste século. by Ernesto d’Andrade e Alain Kihm. Essa pesquisa pode contribuir também para a compreensão da situação atual da língua falada nos centros urbanos. (vi) ausência de formas sintéticas de futuro. é essencial pesquisar a existência e a extensão desses fatos em outras comunidades. As conclusões desse estudo indicam que: i) o dialeto de Helvécia apresenta traços sugestivos de processo irregular de aquisição e transmissão da linguagem do tipo que caracteriza as línguas crioulas. Esse estudo destacou os seguintes traços que não se encontram na maioria dos dialetos rurais: (i) uso de formas da 3ª pessoa do singular do presente do indicativo para indicar estados e ações pontuais e contínuas que se situam no passado. ed. no âmbito do desenvolvimento da teoria lingüística. 26 BAXTER. Lisboa: Colibri. Por outro lado. (ii) uso variável de formas da 3ª pessoa do singular do presente do indicativo em contextos em que normalmente se usam formas do infinitivo. (ii) variação de concordância de número e gênero no sintagma nominal.Lisboa26. e (ii) o sistema verbal encontrado nos dialetos rurais do português do Brasil pode ser derivado de dialetos como o de Helvécia. na medida em que podem explicar a distância que a separa do português padrão e a direção dos processos de mudança que nela se verificam através de um processo anterior de crioulização e do processo atual de descrioulização. processo de descrioulização. esse estudo pode contribuir também fornecendo dados empíricos para uma definição mais precisa de conceitos como post-crioulo. Outros traços morfossintáticos desse dialeto que podem ser mencionados são: (i) dupla negação. 7-35. configurando assim um processo de descrioulização. Esses achados podem ser extremamente importantes para a compreensão da configuração e das tendências atuais da língua falada na zona rural brasileira. (iv) presença variável do artigo definido em sintagma nominal de referência definida. (v) uso variável das formas do subjuntivo. situadas em outros pontos do território brasileiro. A. N. já que um quadro sócio-histórico mais acurado do desenvolvimento do português na zona rural é essencial para se avaliar o impacto lingüístico sobre a norma urbana da migração em massa do campo para a cidade. Tendo demonstrado que ainda se encontram evidências de crioulização do português em ao menos uma localidade do Brasil. A contribuição das comunidades afro-brasileiras isoladas para o debate sobre a crioulização prévia: um exemplo do Estado da Bahia. (iii) marcação variável da 1ª pessoa do singular. Actas do colóquio sobre Crioulos de Base Lexical Portuguesa. (iii) orações relativas não introduzidas por pronome. papiamento (crioulo espanhol). B. M. CARENO. A. um sentido prático imediato. Assis. 27 Conforme os estudos de MUSSA. F. (Dissertação de Mestrado). O papel das línguas africanas na história do português do Brasil. . No Estado de Mato Grosso do Sul está previsto o estudo dos seguintes itens que já se mostraram relevantes na caracterização do PPB e no debate de campo e que têm paralelo com outras línguas crioulas: (i) concordância de número e gênero no sintagma nominal. Universidade Federal do Rio de Janeiro. palanquero (crioulo espanhol). pois a afirmação dessa identidade tem. crioulo português de Cabo Verde. Tais resultados serão confrontados também com os provenientes de estudos já realizados em outros dialetos (rurais e urbanos). a saber. 1991 e. devido ao preconceito e/ou restrições de origem teórica. Tese (Doutoramento em Letras) Faculdade de Ciências e Letras. no Vale do Ribeira/SP. far-se-à um estudo comparativo dos resultados obtidos. (iv) verbos seriais. (ix) objeto nulo. na região de Sorocaba/SP). participação esta que. N. Os dados relativos a sua realidade lingüística podem assim entrar em linha de conta nesse processo. crioulo português de Guiné-Bissau. 1991. no alto São Francisco. Muitas dessas comunidades constituem remanescentes de antigos quilombos e a busca de sua identidade histórica e cultural tem. Por fim. A voz e a vez das comunidades negras. Linguagem rural do Vale do Ribeira. em Ubatuba.Conclusão O estudo lingüístico das comunidades quilombolas que ainda existem é de grande relevância não apenas no âmbito da lingüística. Caçandoca. Universidade Estadual Paulista. ao abrigo da constituição brasileira. em muitos casos (como o da comunidade de Rio das Rãs. a serem investigadas em etapa posterior. (x) marcação de tempo e aspecto. Os traços lingüísticos analisados serão comparados também com os das línguas crioulas de base ibérica na área atlântica. (iii) dupla negação. serão comparados com vistas a se determinar o seu grau de uniformidade. já que se dedica a um aspecto pouco considerado da cultura desse segmento que vem sendo marginalizado ao longo do nosso processo civilizatório. Os dialetos das diversas comunidades. implicações diretas sobre uma questão que lhes é de fundamental importância: a posse da terra. tem sido muito negligenciada27. contribui também para reunir novos dados sobre a real participação das línguas africanas na formação do português do Brasil. Por outro lado. (vii) estruturas verbais do subjuntivo. Litoral Norte de São Paulo e Cafundó. São Pedro e Nhunguara. pode representar também uma importante contribuição para o conhecimento da cultura das minorias brasileiras de origem africana. (ii) concordância verbo-nominal. (vi) preposições. (v) formação de orações relativas. (viii) sistema de artigos. Tese (Doutoramento em Letras) Faculdade de Ciências e Letras. todos ligados ao tráfico negreiro no Atlântico às línguas africanas que foram trazidas para o Brasil. São Paulo: Brasiliense/CNPq. syntax and language history. Assis. Os direitos dos remanescentes de quilombos. C. O Quilombo dos Palmares. Bogota: Instituto Caro y Cuervo. Editora Nacional. Universidade Estadual Paulista. Linguistic variation in brazilian portuguese: Aspects of phonology.. A contribuição das comunidades afro-brasileiras isoladas para o debate sobre a crioulização prévia: um exemplo do Estado da Bahia. In O’DWYER. 1989. N. das Letras. M. 1972. B. 1987. Bibliografia ACEVEDO MARIN. S. Ano V – 1987/88. N. BAXTER. CARNEIRO. In: Dispersos. n. S. p. São Paulo: Cia. Linguagem rural do Vale do Ribeira. M. W. Rio de Janeiro: Getúlio Vargas. GUY. M. (ii) influência do substrato africano. “Terras de preto. São Paulo: IMESP. São Paulo: Brasiliense. BANDEIRA. GOMES. C. 5 (19845) :21:34. by Ernesto d’Andrade e Alain Kihm. direitos e lutas. ALMEIDA. CÂMARA Jr. pretende-se abordar as seguintes questões: (i) relações genéticas. E. 1985. Rio de Janeiro: Padrão. in Cultura Vozes. J. In: Estudios sobre Español de América y Linguistica Afroamericana. 1997. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. F. Ph. “Remanescentes de um falar crioulo brasileiro”. Quilombos em São Paulo: tradições. São Paulo: Cia. E. CARENO. 1996. 1958.. ______.D dissertation. FERREIRA. “Terras e afirmação política de grupos rurais negros na Amazônia”. História e estrutura da língua portuguesa. F. In Humanidades. Associação Brasileira de Antropologia. S. Actas do colóquio sobre crioulos de base lexical portuguesa. (org). 7-35. T. História dos quilombos no Brasil. R. 1991. On the nature and origins of popular brazilian portuguese. Revista Lusitana. Território negro em espaço branco. R. Ann Arbor: University Microfilms. ed. Línguas européias de ultramar: o português do Brasil. 1988. 1981. E. L. terras de santo e terras de índio – posse comunal e conflito”. A. G. . A. 1995. University of Pennsylvania. Lisboa: Colibri.71-87. nov/dez de 1995. M. Terra de quilombos.crioulo português de São Tomé. Estudo antropológico de Vila Bela. 15.): Liberdade por um fio. São Paulo: Vozes. ______. Desse modo. GUSMÃO. 1992. (orgs. nº 6. C. CARDOSO. F. A voz e a vez das comunidades negras. ANDRADE. etnia e estrutura social. MENDONÇA. Theory and structure. 1987. e O’DWYER. Comunicação apresentada a Conferência Internacional sobre Línguas Pidgins e Crioulas. Eliane C. A influência africana no português do Brasil. LUCCHESI. 1953. 1933. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. Universidade Federal do Rio de Janeiro. RAIMUNDO.HOLM. . Universidade do Havaí. OLIVEIRA. 1728. O negro na civilização brasileira. Encontro da ABA (Associação Brasileira de Antropologia). R. Rio de Janeiro. Honolulu: University of Hawaii Press. J. H. (Dissertação de Mestrado). C. 1989. 1975. M. Rio de Janeiro: Presença. Rio de Janeiro: Sauer.12. OLIVEIRA. MELO. New York: Cambridge Language SURVEYS. 1994. São Paulo: Pioneira. G. SILVA NETO. 1976. Lisboa. P. 1991. I. Rio de Janeiro: Renascença. RAMOS. J. Identidade. A. MUSSA. Creole characteristics in rural brazilian portuguese. 406-429. B. A. Variação e norma: elementos para uma caracterização sociolingüística do português do Brasil. C. O elemento afro-negro na língua portuguesa. 1986. p. HOLM. Revista Internacional de Língua Portuguesa. R. p. JEROSLOW. In: Gilbert. Pidgin and creole languages. Rio de Janeiro: Casa do Estudante Brasileiro. Língua do Brasil. Glen (ed. 17 e 18 de outubro de 1994. J. 1933. O papel das línguas africanas na história do português do Brasil.). Creole influence on popular brazilian portuguese. D. nº. Rio de Janeiro: FGV. J. Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais. N. Pidgins and creoles. Vol. S. 1981.
Report "Souza - Constituição da Identidade e dos Território Quilombolas"