Sociologia Antropologia e Cultura Juridicas

March 26, 2018 | Author: Bruno Pessoa Villela | Category: Sociology, Constitution, Anthropology, Reality, Brazil


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Coleção CONPEDI/UNICURITIBAVol. 35 Organizadores Prof. Dr. Orides Mezzaroba Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr Coordenadores Prof. Dr. José Alcebíades de Oliveira Junior Profª. Dr.ª Regina Lucia Teixeira Mendes Profª. Drª. Maria Luisa Scaramella SOCIOLOGIA, ANTROPOLOGIA E CULTURA JURÍDICAS 2014 2014 Curitiba Curitiba Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE S678 Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.br Redes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica Sociologia, antropologia e cultura jurídicas. Coleção Conpedi/Unicuritiba. Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr. Coordenadores : José Alcebíades de Oliveira Junior/ Regina Lucia Teixeira Mendes/ Maria Luiza Scaramella. Título independente - Curitiba - PR . : vol.35 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014. 446p. : ISBN 978-85-8433-023-2 1. Praticas e culturas jurídicas - brasileiras. I. Título. CDD 340-2 EDITORA CLÁSSICA Conselho Editorial Allessandra Neves Ferreira Alexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros Vita José Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete Pozzoli Leonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão Equipe Editorial Editora Responsável: Verônica Gottgtroy Capa: Editora Clássica Luiz Eduardo Gunther Luisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza Vice-Presidente Aires José Rover Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu Secretário-Adjunto Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente) Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular) Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente) Colaboradores Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC Diagramador Marcus Souza Rodrigues Sumário APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 13 PARA QUE COPIAR SE PODEMOS PESQUISAR? UMA BREVE ANÁLISE ACERCA DA IMPORTAÇÃO DE TEORIAS E MODELOS CONSTITUCIONAIS AO DIREITO BRASILEIRO SEM A ANÁLISE PRÉVIA DE SUA REALIDADE SOCIAL (Carlos Victor Nascimento dos Santos e Gabriel Borges da Silva) ......................... 16 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 17 ASPECTOS DO MODELO CONSTITUCIONAL NORTE-AMERICANO E SUA RELAÇÃO COM A REALIDADE SOCIAL EM QUE É APLICÁVEL ................................................................................................................... 20 OLIVEIRA VIANNA E A REALIDADE SOCIAL BRASILEIRA ......................................................................... 24 A PESQUISA EMPÍRICA COMO UMA FONTE COMPLEMENTAR DE PRODUÇÃO NORMATIVA ............... 27 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 33 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 35 A ETNOGRAFIA E O DIREITO: OS DESAFIOS DA PESQUISA EMPÍRICA NO CAMPO JURÍDICO (Luana Regina D’Alessandro Damasceno) ............................................................................................................... 37 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 38 A OPÇÃO PELA PESQUISA DE CAMPO ..................................................................................................... 39 POSSÍVEIS CONCLUSÕES .......................................................................................................................... 48 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 49 QUILOMBOLAS NA CIDADE: DILEMAS DO PLANEJAMENTO URBANO FRENTE AO TERRITÓRIO DO QUILOMBO DO MAICÁ EM SANTARÉM-PA (Judith Costa Vieira) ..................................................... 52 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 53 PRESENÇA QUILOMBOLA EM SANTARÉM .............................................................................................. 55 QUEM PODE SER QUILOMBO? ................................................................................................................. 59 QUILOMBOS DO MAICÁ: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE COLETIVA ................................................. 64 A FESTA DE SÃO TOMÉ: ELEMENTOS PARA PENSAR A TRADIÇÃO ENQUANTO INSTRUMENTO CONSTITUTIVO DA IDENTIDADE .............................................................................................................. 67 OS QUILOMBOLAS, O QUILOMBO E O PLANEJAMENTO URBANO EM SANTARÉM: METODOLOGIA DA IMPOSIÇÃO .......................................................................................................................................... 70 ONDE ESTÃO OS QUILOMBOLAS NO PLANO? ......................................................................................... 74 CADÊ O QUILOMBO QUE ESTAVA AQUI? O PLANO DIRETOR ANULOU ................................................. 77 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 79 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 80 A PROBLEMÁTICA DA DESINTRUSÃO DOS NÃO ÍNDIOS NA TERRA INDÍGENA MARAIWATSEDE (Ludmila Bortoleto Monteiro) .................................................................................................................... 82 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 83 A OCUPAÇÃO DA TERRA NO ESTADO DE MATO GROSSO ....................................................................... 83 A RETOMADA DA TERRA INDÍGENA MARAIWATSEDE ........................................................................... 86 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 93 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 96 “UM TEMPO MELHOR QUE HOJE”: RUPTURAS E PERMANECÊNCIAS NA HISTÓRIA SOCIAL DA ILHA DA MARAMBAIA(Aline Caldeira Lopes) ........................................................................................... 97 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 98 TEMPO DE “DESGOSTO”: A CHEGADA DA MARINHA ............................................................................. 102 “UM TEMPO MELHOR QUE HOJE”: A ESCOLA DE PESCA DARCY VARGAS ............................................. 107 FAZENDA ESCRAVOCRATA, PROPRIEDADE DA UNIÃO E TERRITÓRIO QUILOMBOLA: ENTRE LEIS E DISCURSOS ................................................................................................................................................ 111 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 114 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 115 DO DIREITO AO REGISTRO CIVIL EM LINGUAGEM TRIBAL COMO MEIO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À IDENTIDADE CULTURAL INDÍGENA NO BRASIL: UM ESTUDO DE CASO A PARTIR DE JULGADOS DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA E RIO DE JANEIRO (Alex Xavier Santiago da Silva) ........................................................................................................................................ 118 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 119 DA ANÁLISE DAS DECISÕES JUDICIAIS ..................................................................................................... 120 DO DIREITO AO NOME, COMO DIREITO DA PERSONALIDADE E COMO DIREITO À IDENTIDADE CULTURAL .................................................................................................................................................. 124 DOS DISPOSITIVOS ASSEGURADORES DO DIREITO À IDENTIDADE CULTURAL, DENTRE OS QUAIS ESTÁ O DIREITO AO NOME, E DO DIREITO À PRESERVAÇÃO CULTURAL DA CRIANÇA .............................. 127 DA DISCUSSÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS À LUZ DOS DISPOSITIVOS LEGAIS E DOUTRINA DE DIREITOS CULTURAIS ................................................................................................................................ 130 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 131 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 132 A MEDIAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: UMA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DO JUSPOPULI EM FEIRA DE SANTANA-BA (Tássio Túlio Braz Bezerra) ............................................................................ 134 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 135 O CONTEXTO DA DUPLA CRISE ................................................................................................................. 135 A CONSTRUÇÃO DE ALTERNATIVAS ......................................................................................................... 139 DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA E PLURALISMO JURÍDICO ................................................................... 145 A EXPERIÊNCIA DO JUSPOPULI EM FEIRA DE SANTANA ........................................................................ 153 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 157 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 159 AS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS E SOCIOAMBIENTAIS NA CRIAÇÃO DE MUNICÍPIO EM TERRA INDÍGENA: CASO-REFERÊNCIA PACARAIMA-RR (Eduardo Daniel Lazarte Morón) .............................. 163 O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO DE PACARAIMA E SUAS CONTROVÉRSIAS CONSTITUCIONAIS .................................................................................................................................................... 164 DIREITOS ORIGINÁRIOS DOS ÍNDIOS SOBRE AS TERRAS QUE TRADICIONALMENTE OCUPAM ........... 169 CASO REFERÊNCIA: AS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS E SOCIOAMBIENTAIS NA CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO DE PACARAIMA/RR DENTRO DA TERRA INDÍGENA SÃO MARCOS ........................................................ 172 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 188 “QUEBRA DE XANGÔ”: A QUESTÃO DO ‘OUTRO’ E A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA (Andréa Letícia Carvalho Guimarães).................................................................................................................................................. 192 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 192 O PENSAMENTO DE PIERRE BOURDIEU .................................................................................................. 194 A QUESTÃO DO ‘OUTRO’ ........................................................................................................................... 198 OPERAÇÃO XANGÔ’: A NARRATIVA DE ULISSES RAFAEL ........................................................................ 202 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 216 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 217 ANÁLISES SOCIOLÓGICAS DAS PROFISSÕES JURÍDICAS E DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO (André Filipe Pereira Reid dos Santos e Paula Ferraço Fittipaldi) .................... 220 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 221 CAUSAS E EFEITOS DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NO BRASIL ........................................................ 222 FUNCIONAMENTO E REPRODUÇÃO DO HABITUS DAS PROFISSÕES JURÍDICAS NO CAMPO JURÍDICO BRASILEIRO ................................................................................................................................. 228 REFLEXÕES FINAIS .................................................................................................................................... 232 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 233 OS SENTIDOS DA CATEGORIA “POLICIAMENTO COMUNITÁRIO” NO CONTEXTO DAS PRÁTICAS INSTITUCIONAIS DE POLICIAMENTO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (Jorge Antonio Paes Lopes e Luiz Eduardo Figueira) ................................................................................................................................ 236 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 258 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 260 A VERDADE JURÍDICA NOS CRIMES DE ESTUPRO: ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DE ADVOGADOS DE DEFESA DE ACUSADOS DE ESTUPRO ( Igor Lima Goettenauer de Oliveira) .................. 264 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 265 O DIREITO E A LUTA PELA VERDADE: A HISTÓRIA POLÍTICA DO CONHECIMENTO ............................... 266 O DIREITO NA CONSTRUÇÃO DA VERDADE DO ESTUPRO: ANÁLISE DOS MICROMECANISMOS QUE PERMITEM AO DIREITO DECLARAR A VERDADE ..................................................................................... 270 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 278 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 280 ACÓRDÃOS DO STF SOBRE LEI MARIA DA PENHA UM ESTUDO PILOTO DA RELAÇÃO DIREITO, GÊNERO E LINGUAGEM (Lúcia Freitas e Cecília Caballero Lois) ................................................................ 282 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 283 A ABORDAGEM TEÓRICA .......................................................................................................................... 285 O ESTUDO PILOTO ..................................................................................................................................... 287 O GÊNERO ACÓRDÃO DO STJ SOBRE LEI MARIA DA PENHA .................................................................. 288 CONSIDERAÇÕES ...................................................................................................................................... 298 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 299 LEI MARIA DA PENHA E A INCONDICIONABILIDADE DO CRIME DE LESÃO CORPORAL DE NATUREZA LEVE: UM ESTUDO SOBRE OS IMPACTOS DO JULGAMENTO DA ADI 4424/DF E ADC 19/DF PELO STF NA REALIDADE SOCIAL ............................................................................................................................. 301 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 302 LEI MARIA DA PENHA ............................................................................................................................... 303 DA AÇÃO PENAL NOS CRIMES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ................................................................... 308 ANÁLISE DO JULGAMENTO DA ADI 4424/DF E ADC 19/DF ..................................................................... 314 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 322 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 323 VULNERABILIDADE, EXCLUSÃO, SELETIVIDADE: O MENORISMO VIVO NAS DECISÕES DO STJ SOBRE O ATO INFRACIONAL ( Marília De Nardin Budó) ........................................................................... 326 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 327 MARGINALIZADOS E VULNERÁVEIS: O FOCO DO SISTEMA DE CONTROLE DA JUVENTUDE NO BRASIL ........................................................................................................................................................ 328 O MENORISMO ENRUSTIDO NOS ACÓRDÃOS DO STJ: SOBRE O CONCEITO DE VULNERABILIDADE .. 335 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 345 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 347 DIREITO E SOCIEDADE EM TRANSIÇÃO: RESPOSTAS SOCIOLÓGICAS PARA DECISÕES JUDICIAIS AUTOPOIÉTICAS (Suelen da Silva Webber e Leonel Severo Rocha) ......................................................... 350 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................................................ 351 A INSTITUCIONALIZAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DA EXCLUSÃO: ENTRE DIREITO REPRESSIVO E DIREITO AUTORITÁRIO ............................................................................................................................................ 353 ENTRE PROTAGONISMOS POLÍTICOS E PROTAGONISMOS JUDICIÁRIOS E SEUS CONSERVADORISMOS: DIREITO AUTÔNOMO ............................................................................................................................... 359 SISTEMA (AUTOPOIÉTICO) RESPONSIVO ................................................................................................ 363 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 368 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 370 ESTABELECIDOS, BILONTRAS E PARADIGMAS: DIFICULDADES DE MUDANÇA JURISDICIONAL BRASILEIRA (Maurício Seraphim Vaz) ....................................................................................................... 372 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 373 PARADIGMA JURISDICIONAL BRASILEIRO A PARTIR DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SUA FALTA DE CONCRETUDE ............................................................................................................................ 374 PROBLEMAS DERIVADOS DO PARADIGMA BRASILEIRO ULTRAPASSADO ............................................ 377 DIFICULDADES PARA A MUDANÇA DO ATUAL PARADIGMA A PARTIR DE UM PONTO DE VISTA SOCIOLÓGICO ........................................................................................................................................... 382 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 388 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 389 MUITO ALÉM DO PLANO: OBJEÇÕES À VISÃO DE DIREITO DE SCOTT SHAPIRO (Thomas da Rosa de Bustamante e Mirlir Cunha) ........................................................................................................................ 391 INTRODUÇÃO: O DIREITO COMO PLANO ................................................................................................ 392 CONTRATOS, CONVENÇÕES E PLANOS SOCIAIS ..................................................................................... 394 COORDENAÇÃO E CONTROLE DA COMUNIDADE ................................................................................... 398 A AUTODETERMINAÇÃO DOS INDIVÍDUOS E A HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES ..................................... 404 O DIREITO ALÉM DO PLANO ..................................................................................................................... 410 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 412 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 414 DE ROMEU E JULIETA AO AMOR LÍQUIDO: O DESAFIO DAS DIMENSÕES TEMPORAIS(Carolina Diamantino Esser) ...................................................................................................................................... 415 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 417 OS TRAÇOS DE CADA SÉCULO .................................................................................................................. 417 ALGUMAS CAUSAS PARA O AMOR LÍQUIDO DO SÉCULO XXI ................................................................ 422 VISÃO JURÍDICA ........................................................................................................................................ 424 DISPOSIÇÕES FINAIS ................................................................................................................................. 429 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 432 A APLICAÇÃO DO AGIR COMUNICATIVO DE HABERMAS NA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA: O DIÁLOGO COMO INSTRUMENTO TRANSFORMADOR (Ana Paula Bustamante) ................................... 433 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 434 HABERMAS E A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO ................................................................................. 435 A MEDIAÇÃO COMO TRATAMENTO DO CONFLITO SOB A ÓTICA DA TEORIA HABERMASIANA ........... 439 A COMUNIDADE E SEU AGIR COMUNICATIVO: O DIÁLOGO COMO FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL ........................................................................................................................................ 444 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 450 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 451 ARMINIANISMO E HUGO GRÓCIO: O CAMINHO PARA O JUS-HUMANISMO PELA TRILHA DO LIVRE-ARBÍTRIO E O RACIONALISMO DA GUERRA COMO PRESSUPOSTO DE UMA PAZ INATA (Terezinha de Oliveira Domingos e Jean Eduardo Aguiar Caristina) ............................................................. 453 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 454 HUGO GRÓCIO .......................................................................................................................................... 455 O ARMINIANISMO .................................................................................................................................... 457 O JUSNATURALISMO EM GRÓCIO ........................................................................................................... 460 O HOMEM E A SOCIEDADE ....................................................................................................................... 461 CONCEPÇÕES SOBRE O DIREITO .............................................................................................................. 465 O DIREITO NATURAL EM HUGO GRÓCIO ................................................................................................. 469 O ESTADO E SUA JUSTIFICAÇÃO ............................................................................................................... 474 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 478 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 479 quero agradecer a todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que.Sociologia. realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR). comprometidos e pontuais. Antropologia e Cultura Jurídicas. dada a iminência da trienal CAPES-MEC. com competência. esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do processo. Apresento o livro do Grupo de Trabalho Sociologia. Antropologia e Cultura Jurídicas Caríssimo(a) Associado(a). Definimos a mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas. num total de 784 artigos. surgem novos desafios a enfrentar. tanto nos encontros como em nossos congressos. Para tanto. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito. conforme amplamente debatido nos eventos. entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da Constituição de 1988. 35 . O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente de balanço dos programas. mas de reforçar as especificidades de nossa área. Nesse sentido é evidente o aumento da produção na área. permitiramnos entregar no prazo a avaliação aos associados. Nesse passo. Por outro lado. muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas. basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos parcelamentos das dívidas dos entes federativos. Com relação ao CONPEDI. Sem dúvida. do XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Vale salientar que apenas no âmbito desse encontro serão publicados 36 livros. consolidamos a marca de mais de 1. como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2) aumentar o número de avaliadores. comprovável inclusive por outros indicadores.500 artigos submetidos. Também gostaria de parabenizar os autores 10 . a chamada Constituição Cidadã necessita uma reavaliação. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela tradicionalmente excluída da cidadania. Passados quase 25 anos da promulgação da Carta Magna de 1988.Vol. com o crescimento do número de artigos. nossa Constituição demanda reflexões. bem como o julgamento da chamada ADIN do calote dos precatórios. Sociologia. garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo. que soube conduzir a área com grande competência. Em que pese as dificuldades. e que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais. seus benefícios para os programas serão sentidos já nesta avaliação. Antropologia e Cultura Jurídicas selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs. Não obstante. ao longo do ano. presença e honestidade. haja vista os raros momentos de que dispomos. não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do Direito. disponível em 2014. melhorada. para seu desenvolvimento. Futuramente. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05. importa registrar a grande liderança do professor Martônio. uma melhor fotografia da área do Direito. 35 . mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da segunda versão. pois a cada evento a escolha tem sido mais difícil. na medida em que nosso comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de 2016. Com tal conjunto de elementos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . uma vez que implicará maior pontuação aos programas que inserirem seus dados.Vol. Nesse sentido. o que será fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07. o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os programas. Com relação ao segundo balanço. já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas. 11 . tanto para revistas quanto para eventos. tenho certeza de que será compensador o amplo esforço no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –. assim como do Qualis 2013/2015. Destarte. além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. já está em fase de testes uma nova versão. Sendo assim. estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará importantes conquistas. diálogo. Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada em pleno funcionamento. após inúmeras viagens e visitas a dezenas de programas neste triênio. O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro. 35 . Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais. Vladmir Oliveira da Silveira Presidente do CONPEDI 12 . Sendo assim. em São Paulo lançaremos um novo livro com o resultado deste projeto. Curitiba. da III Conferência do Desenvolvimento (CODE). Antropologia e Cultura Jurídicas Com relação ao IPEA.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras parcerias e editais para a área do Direito. cumpre ainda ressaltar que participamos. em Brasília. criteriosamente selecionados. inverno de 2013. além da apresentação de artigos de pesquisadores do Direito. Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do UNICURITIBA. que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.Sociologia.Vol. na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o estado da arte do Direito e Desenvolvimento. Vol. ocupavam-se de pesquisa bibliográfica. Antropologia e Cultura Jurídicas Apresentação Mais uma vez. a criação do GT Cultura Jurídica e Práticas Judiciárias. como menos jurídicos os trabalhos que se debruçavam sobre questões empíricas e que faziam um esforço argumentativo na análise crítica dos dados levantados a partir da realidade das práticas judiciárias ou das representações sociais contidas nos discursos do campo jurídico brasileiro.Sociologia. Há pouco mais de uma década. assim. assim como na reunião de Niterói e agora em Curitiba. basicamente doutrinária. Com o objetivo de formar uma massa crítica de pesquisadores atentos e sensíveis a este tipo de questão.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . de nossas pesquisas. depois em Belo Horizonte e em Vitória. propusemos — Regina Lúcia Teixeira Mendes e Luiz Eduardo de Vasconcelos Figueira — à direção nacional do CONPEDI. preocupadas mais com sugestão de soluções de problemas interpretativos do que com a construção de problemáticas que ajudassem a explicitar características peculiares próprias do nosso sistema. Em Uberlândia. na qual foram apresentados os textos desta coletânea. fomos reunidos ao GT Sociologia e Antropologia e continuamos o trabalho que já havia sido começado nas reuniões anteriores. na qual foi privilegiado como enfoque metodológico a pesquisa empírica no campo de direito representando uma conquista importante. na reunião de São Paulo. não eram tão jurídicas como aquelas que. como o da lei e o da doutrina. Tomava-se. seguindo a tradição do campo jurídico brasileiro. tanto o dos operadores. pensava-se que por ter base de dados a observação da realidade de nossas práticas judiciárias. 35 . ainda que problematizando questões inegavelmente jurídicas. se levarmos em conta que há alguns pares de anos atrás questionava-se abertamente o caráter jurídico das pesquisas empíricas que produzíamos. cujo desconhecimento compromete qualquer tentativa de modificação do mesmo. agora com a 13 . temos a satisfação de liderar a publicação de uma coletânea de textos apresentados num Encontro Nacional do CONPEDI. sugestão que foi imediatamente aceita e apoiada e que começou a funcionar na reunião de Fortaleza em caráter experimental e cujo sucesso garantiu a repetição do GT em Florianópolis. em 2009. tomamos como critério privilegiar os trabalhos que estivessem de acordo com a ementa do GT e tivessem. representações e práticas brasileiras e as oriundas de outros contextos históricos e culturais. os trabalhos que tiveram como objetivo explicitar as diversas representações de institutos jurídicos estrangeiros em sistemas jurídicos diversos. Visou-se dar ênfase ao contraste possível entre as concepções.Vol. também. bem como em outras culturas. Para alcançarmos bom termo nos objetivos do trabalho que propusemos. como base de dados a observação empírica. produto de trabalho de campo. assim como ao processo judicial e ao acesso a justiça. Posteriormente às discussões metodológicas. Foram privilegiados. Antropologia e Cultura Jurídicas participação do Prof José Alcebíades de Oliveira Júnior (UFRGS) e da Profa Maria Luisa Scaramella (UNICURITIBA).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . buscando desenvolver um olhar menos normativo e mais compreensivo acerca do saber e das práticas jurídicas na cultura jurídica brasileira. Tal proposta se justificou tendo em vista a exigência de pesquisa empírica no campo do direito brasileiro. pretendeu-se enfatizar o contraste entre dados empíricos provenientes da observação de culturas jurídicas diversas. contextualizando a discussão nos distintos panoramas históricos e culturais. privilegiando as práticas judiciárias. especialmente frente ao paradigma do Estado Democrático de Direito e da cidadania universal. como uma das modalidades que se enquadra bem às características exigidas pelos padrões acadêmicos atualmente exigidos pelos órgãos de fomento gestores dos recursos que financiam a pesquisa acadêmica no país. ainda. tanto do ponto de vista qualitativo quanto do ponto de vista quantitativo. Durante os trabalhos pretendeu-se. Foi nosso propósito promover discussões e reflexões que tivessem foco nas questões relativas ao sistema jurídico. 14 . aproximar os participantes do GT de várias fontes bibliográficas de pesquisas empíricas feitas no campo do direito acerca dos diversos temas tratados. o grupo enfrentou problemáticas relativas às relações entre a história de nossa organização judiciária e nossas práticas processuais cotidianas. 35 . Neste empreendimento.Sociologia. Parabéns a todos que colaboraram com a edição desta coletânea! Coordenadoras do Grupo de Trabalho Professor Doutor José Alcebíades de Oliveira Junior – UFRGS Professora Doutora Regina Lucia Teixeira Mendes – UGF Professora Doutora Maria Luisa Scaramella – UNICURITIBA 15 . não podemos deixar de fazer menção ao incentivo. que só engrandece e estimula a nossa participação.Sociologia. 35 . é importante deixar registrado que são vários os frequentadores do GT que nos acompanham nas consecutivas reuniões demonstrando um amadurecimento importante no que concerne à inédita proposta deste GT. Temos a dizer que o esforço destes colegas persistentes no propósito de virem muitas vezes de diversas regiões do país para discutir conosco o amadurecimento de suas pesquisas e os resultados que têm sido aferidos nos leva a crer que o empreendimento tem tido bom êxito. ao respeito acadêmico e à liberdade de atuação que temos encontrado no ambiente do CONPEDI. Antropologia e Cultura Jurídicas Concluindo. Por fim.Vol.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A reflexão será feita a partir de alguns apontamentos acerca do modelo constitucional norte-americano. à importação de teorias e modelos jurídicos pelo Direito brasileiro sem uma análise crítica que despreze a realidade social ao qual será aplicada. mestrandos do Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense .Sociologia. **Mestrando em Direito Constitucional na Universidade Federal Fluminense. será proposta à superação da cópia de modelos jurídico-constitucionais sem o devido criticismo a partir do estímulo à realização de pesquisas em Direito Constitucional. Antropologia e Cultura Jurídicas Para que copiar se podemos pesquisar? Uma breve análise acerca da importação de teorias e modelos constitucionais ao Direito brasileiro sem a análise prévia de sua realidade social1 Why copy IF we can search? A brief analysis about importing constitutional PO eories Mnd models to BraziliMn’s laR Rithout PO e prior Mnalysis of PO eir sociMl reality Carlos Victor Nascimento dos Santos* Gabriel Borges da Silva** RESUMO: O objetivo do presente paper é promover uma reflexão da importância da pesquisa jurídica para o Direito Constitucional como um mecanismo capaz de possibilitar a compreensão de teorias e modelos constitucionais que dialoguem com a realidade social brasileira. apresentando o método etnográfico como exemplo. Atualmente é Tutor de Ensino e Pesquisador da FGV Direito Rio. Realidade Social. Oliveira Vianna é um grande expoente da ideia de que o constitucionalismo brasileiro foi forjado a partir da importação de modelos e teorias completamente descontextualizadas com a realidade social. ABSTRACT: This paper aims to raise awareness of the importance of legal research on Constitutional Law as a tool that enables the comprehension of constitutional theories and models that communicate to Brazilian social reality.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Após. 35 . Graduado em Direito pela Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (2010). 16 . Atualmente é Pesquisador Associado ao INCT-InEAC/NUFEP/UFF. Diferentemente desta percepção. PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalismo. A reconstrução deste debate foi feita no presente paper a partir da discussão de como diminuir o hiato existente entre teorias e normas e a realidade constitucional brasileira. Pesquisador do LAESP/UFF e Tutor de Acompanhamento Pedagógico da FGV Direito Rio.PPGDC/UFF. que supostamente se construiu de acordo com as necessidades de seu povo. O saber antropológico foi apresentado como ferramenta metodológica capaz de diminuir esse hiato a partir do estímulo à realização de pesquisas de cunho científico em Direito Constitucional no Brasil. *Mestrando em Direito Constitucional na Universidade Federal Fluminense. para apresentação no XXII Congresso Nacional do Conpedi. Graduado em Direito pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (2010). A reflexão proposta refere-se. To begin with. sendo estimuladas principalmente nas faculdades de Direito do país. Pesquisa jurídica.Vol. we discuss the North American constitutional model once it is said to have been built 1 O presente artigo representa uma elaboração conjunta de Gabriel Borges da Silva e Carlos Victor Nascimento dos Santos. então. to whom our constitutional system was created out of the importation of completely decontextualized theories and models. KEY-WORDS: Constitutionalism. Legal research. consequentemente. será possível perceber um aumento considerável da atuação e competência do Supremo Tribunal Federal (STF) – órgão máximo do Poder Judiciário que se fortaleceu a partir das inovações trazidas pela Constituição. Anthropology was considered an important methodological tool in this process once it encourages the use of ethnography on scientific researches on Constitutional Law. o Direito Constitucional brasileiro fica refém do entendimento de Ministros do STF em relação a alguns conceitos que tramitam na ordem jurídico-constitucional brasileira. A partir de 1988. Antropologia e Cultura Jurídicas according to American people’s needs. Social reality INTRODUÇÃO O Direito brasileiro caminha a boas passadas na construção de sua própria identidade perante os modelos constitucionais já existentes. Therefore. 35 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . apesar de ser um órgão contramajoritário. O ativismo jurisprudencial ensaiado pela mais alta Corte do país nos remete à reflexão a respeito do momento em que a realidade constitucional brasileira tem passado: será este o momento mais propício ao desenvolvimento de teses jurídicas cada vez mais ousadas pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal nas decisões que proferem? Por dotar do monopólio da última palavra e.Vol. 17 . o Supremo Tribunal Federal construísse uma legitimidade democrática de modo a se tornar um órgão cada vez mais legítimo na defesa e promoção de direitos fundamentais. We reconstruct this debate when discussing the possibilities of diminishing the gap between theories/norms and Brazilian constitutional reality. this paper discusses the importation of theories and norms by the Brazilian constitutional law and its completely disconnection to Brazilian social reality.Sociologia. por exemplo. We also suggest that Brazil overcome this process by promoting scientific research on Constitutional Law to be developed in our Law Schools. A referida postura permitiu que. Se considerarmos como marco a Constituição Federal de 1988. ser o órgão judicial que tem a permissão constitucional para “errar” por último. o Supremo Tribunal Federal passou a se tornar referência na construção e desenvolvimento do Direito Constitucional no Brasil. principalmente por tomar decisões que afetam diretamente a vida do cidadão brasileiro. We oppose this perspective to Oliveira Vianna’s view on Brazilian constitutionalism. Entretanto. lançamos a indagação presente como parte do título de nosso paper: por que tão somente copiar se podemos pesquisar? É necessário aprofundar estudos e pesquisas que tomem o Direito como objeto para aproximá-lo cada vez mais da realidade social vigente no Brasil.Sociologia. característica mais forte e marcante do órgão máximo do Poder Judiciário. a indagação que fica é: como importar sem adaptar? Para a sua mais perfeita adaptação. não existe no Direito brasileiro uma metodologia própria à utilização de conceitos e institutos jurídicos. Por exemplo: o constitucionalismo norte-americano influenciou fortemente o controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. e no Direito brasileiro é o romano-germânico – Civil Law. Este hiato entre o Direito e a realidade social pode ser diminuído a partir de diferentes óticas: neste ensaio. o sistema vigente no Direito norte-americano é a Common Law. por exemplo. Antropologia e Cultura Jurídicas Por sua vez. torna-se completamente natural e compreensível que ele esteja ainda em busca de sua própria identidade. os Ministros do STF buscam apresentar determinados rótulos de justificações às suas decisões capazes de manipular conceitos jurídicos ou adaptá-los em um contexto completamente diverso do qual ele foi ensaiado quando do seu surgimento.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . apresentamos a utilização da pesquisa em Direito como um dos meios de superação da ideia acima discutida. 35 .Vol. Por existir experiências muito recentes no Direito Constitucional brasileiro. esta busca deve refletir um pensamento crítico quando em comparação ao modelo que se está traçando como parâmetro para importar determinadas ideias. Mas. Ministros do STF sequer observam a diferença entre o significado que a expressão ou instituto pode ter ganhado em seu contexto de surgimento e os usos e sentidos que lhe está concedendo em sua utilização. Então. Esta ausência de metodologia própria à utilização de conceitos e institutos jurídicos no Direito brasileiro pode ser mais facilmente notada ao observar o comportamento de Ministros do STF nos votos por eles proferidos. 18 . Diante de um caso difícil. Para justificar sua decisão. Atualmente. um Ministro do Supremo Tribunal Federal é capaz de importar uma alternativa que pode ou não ter dado efetivamente certo em um modelo de constitucionalismo completamente diverso ao brasileiro. Vol. E. ao invés de ser promovida a criação de modelos constitucionais a partir do diálogo com as demandas da sociedade ao qual será aplicado. No caso brasileiro. político e social daquele país. 35 . Antropologia e Cultura Jurídicas Assim. o que se tem é uma desarticulação das instituições democráticas (VIANNA. ao aplicar tais modelos à nossa realidade.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . sem a preocupação de relativizá-los a partir do contexto social ao qual será aplicado. utilizando como exemplo o sistema constitucional norteamericano. 1927). A referida inferência ocorre da percepção de estarmos diante de um ordenamento jurídico que se alimentou de diversas fontes normativas (por vezes contraditórias) desenvolvidas para outros contextos sociais. acabamos desenvolvendo diacríticos institucionais que acabam por favorecer um legislativo corrupto por meio de “arranjos políticos”. A partir de tal fortalecimento. destacamos que o presente artigo discutirá a forma com que institutos jurídicos são importados sem que seja verificada a sua relação com as estruturas sociais brasileiras. Adiante. foi traçado um pequeno recorte do modelo norteamericano a partir de um debate que explicita os movimentos sociais e políticos que influenciaram seu sistema constitucional. a partir deste exercício refletir sobre a existência em nossas Constituições de um desejo em modificar a realidade social brasileira a partir da importação de instituições criadas em alguns casos para realidades completamente distintas. fosse capaz de resolver as nossas demandas sociais. Vianna afirma que tal movimento é feito com esperanças de que uma base legal que servisse a outra sociedade. na verdade o que se pretende é lançar uma reflexão sobre a importação de modelos criados para outros contextos. Entretanto. que torna possível promover o contraste com o modelo norte-americano.Sociologia. uma descentralização não sustentável e um Judiciário que se torna cada vez mais fortalecido. a opção por dialogar com o Oliveira Vianna se justifica a partir de sua análise sociológica. que se desenvolve em acordo com o movimento econômico. 19 . será observada a crítica de Oliveira Vianna sobre a importação de modelos constitucionais que não se aproximam da realidade social circundante. O presente paper não possui o objetivo de esgotar o tema. Diante disso. de modo a ser possível estabelecer um paralelo com outras realidades jurídicas e sociais. abordaremos de que forma a ferramenta da pesquisa poderia contribuir à aproximação entre Direito e o saber antropológico com vistas a alcançar a realidade constitucional vigente. 2007. primeiramente seguindo a Lógica de CORWIN2. vivo e vigente4. capaz de facilitar a compreensão da interação existente entre Direito e realidade social brasileira. De acordo com a perspectiva de CORWIN (1959) o Judiciário possui elementos inerentes que o permite decidir sobre “casos5” e “causas6”. Além de traçar paralelos à interferência do Congresso Nacional e do Poder Executivo no Judiciário. Por fim. dos métodos estabelecidos pelo costume e por princípios de Direito. 5 Dependem do caráter da causa (lei a ser executada). o autor enfrenta questões pontuais do controle de constitucionalidade de seu país. Após este exercício. a pesquisa jurídica em Direito Constitucional será apresentada como ferramenta instrumental ao saber. 35 . 1. Antropologia e Cultura Jurídicas O pensamento prioritariamente positivista será discutido como forma de desenvolvimento de um raciocínio jurídico-constitucional que se desconecta da realidade a qual pretende regular.Vol. que se articulam no âmbito da lei. Tais atributos são incidentais ao Judiciário o que lhe garante o poder de interpretação do Direito em vigor. uma vez que permite aos juízes interpretá-la tendo como parâmetros os momentos históricos. 2003. 3 20 . 1959. será discutida a influência do movimento federalista3 e do Direito Constitucional norte-americano como um intertexto aberto. 4 GARCIA. O FEDERALISTA. que propõe uma análise da atual Constituição norte-americana a partir do olhar ao Poder Judiciário (sua formação.Sociologia. políticos e econômicos do país. elementos e características). 6 Dependem do caráter das partes.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A estrutura do Poder Judiciário nos Estados Unidos serve como forma de aproximação da sua Constituição Federal à realidade social. Aspectos do modelo constitucional norte-americano e sua relação com a realidade social em que é aplicável O modelo constitucional norte-americano será verificado neste paper. A partir de tal discussão. de modo que dote da prerrogativa de decisões 2 CORWIN. uma vez que este pode diminuir a jurisdição da Corte Suprema em grau de recurso. Resumindo. 1803 Term. 137 FEBRUARY.HTML) 21 . O controle do Poder Judiciário começa na organização da “Corte Suprema”. CORWIN (1959) aponta que são definidas máximas de autorestrição que demonstram que o controle judicial de determinado período é uma função de seu próprio produto.Vol. cabe ao Congresso Nacional outras prerrogativas de promoção do controle judicial. Apesar disso. conforme pontua MADSON (2005).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . SECRETARY OF STATE OF THE UNITED STATES. porém é prerrogativa das Cortes a decisão sobre o que são questões de governo. Madison”. Assim.umkc.Sociologia. trabalhada junto ao patriotismo e federação para a união do povo e exaltação do indivíduo. 35 . A discussão desse case era a briga pelo poder de revisão do Congresso Nacional. SUPREME COURT OF THE UNITED STATES 5 U. que repousa na Constituição Federal quando garante a prerrogativa do Senado Federal e do Presidente à nomeação daqueles que comporão a Corte.S. o interesse dos membros que estão na condição de juízes e o equilíbrio das relações de poder.law. Antropologia e Cultura Jurídicas finais. A estrutura do Poder Judiciário norte-americano. como se pode verificar em HAMILTON (2003). foi reforçado 7 Ver WILLIAM MARBURY v. assim. a existência de um autocontrole pelo Senado Federal e pelo Presidente. O caso “Marbury vs. que ficam restritas ao âmbito administrativo.edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/marbury. com vistas a verificar os atributos necessários à ocupação de seu cargo. desde que sejam devidamente sabatinados. representando a primeira vez em que a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade desta casa. JAMES MADISON. O movimento de liberdade dos Estados Unidos frente à Inglaterra. capaz de garantir o caráter político das Cortes. Acessado em 18/12/2012 em: http://www. o ideal de liberdade do povo norte-americano. As exceções a estas prerrogativas se dão nos casos relacionados a questões consideradas como assunto de governo. como o controle do número de juízes e dos tribunais federais inferiores. tem como primeiro ponto motivador a liberdade de religião. é feita de modo a garantir a vontade do povo ainda que seja necessário divergir da vontade do legislador. Constata-se. foi o grande exemplo da discussão do controle judicial pelas leis do Congresso Nacional7. O texto “O Federalista” (2003) é emblemático neste sentido por surgir como um esforço do exercício de uma tarefa prática de fazer acontecer uma teoria. a Constituição Federal dos Estados Unidos não aboliu a representação dos Estados. vale destacar a perspicácia do movimento federalista. a garante no Congresso Nacional com a formação do Senado. devido à diferença de seus ideais e da nação que estava sendo construída. da leitura federalista tornava-se inevitável à associação dos Estados-membros de baixo de um único governo. serviria como forma de limitação de um governo único. a partir da configuração de uma engenharia institucional do Republicanismo. Esta engenharia. exerce sua influência em modelos constitucionais até hoje. 35 . a República Federalista surgia como remédio para os males vistos na Inglaterra e que eram reflexo de um governo monárquico. ao contrário. 22 . Mas. Antropologia e Cultura Jurídicas pela ideia de interesse geral de uma nação poderosa que havia se formado. como fórmula de introduzi-los à federação.Sociologia. Neste sentido. pelo impulso da modificação de argumentos. territoriais. com a construção de um governo do povo norteamericano. então. Naquele momento. como o Brasil. em que existe um movimento de utilização do modelo constitucional inglês como exemplo do que os Estados Unidos não deveriam seguir. afirmou-se que houve uma experimentação de novos propósitos institucionais que foram pontuais na história e no desenvolvimento do movimento constitucional e.Vol. A Federação.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . conectou um governo presidencialista . notável na interpretação de MADISON (2005). como fazê-lo. E. relacionados à segurança nacional e as iminentes guerras que tenderiam a um modelo monarquista -.econômicos. Ocorre que esse modelo não poderia deixar de atender à realidade social norte-americana. de alguma forma. apesar das 13 (treze) colônias se constituírem de acordo com suas peculiaridades. Com a construção de uma série de argumentos . se para ser federação seria preciso destituir a organização particular de cada Estado? Entendendo essa realidade. por exemplo.na forma de um Estado centralizado -. mantendo a ideia de poder do povo. E com isso. 8 Hamilton. que se manifesta constitucionalmente no sentido material (statute law) e pelo direito judicial (case law). A atuação singular da Suprema Corte no Direito Constitucional norte-americano. 2003. que recebe determinados casos por via recursal das Cortes Estaduais e Federais. Com a união seria possível construir um tesouro nacional por meio da fortificação das finanças oriundas da fomentação do comércio lícito entre os Estados e os resultados de sua tributação. a partir do texto de GARCIA. como foi resumidamente apontado no início deste tópico e explicitado pelo sentimento federalista. 10 Está contido no preâmbulo da Constituição dos EUA. Aliás. impedese que um Estado aceite contrabando de outro e enfraqueça o poder da nação. 35 . de acordo com o princípio da “Judicial Supremacy”. de modo a proteger o povo norte-americano. este é um raciocínio que também aparece no ideário do movimento. em que o governo (sinônimo de administração para os norteamericanos) atuaria por meio de representantes. para entender o movimento de consolidação do Judiciário norte-americano. combater o domínio da Europa e colocar a América como ápice do desenvolvimento da humanidade. the people!”10 Feito esse recorte. Assim. de forma geral para o atendimento dos interesses comuns. 69 Democracia Participativa. sendo necessária a utilização da força da união para combater a falta de virtude que seriam naturais em outros regimes. volta-se ao a verificação do sistema constitucional atual. E a Constituição norte-americana surge como a consolidação dessa união. Outro argumento interessante era o da economia como máquina do governo. p. que é composto pelo common law. GARCIA (2007) trouxe em seu texto algumas peculiaridades do direito anglo-americano.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A justificativa para tal economia se dava pelo tamanho do território e na construção de uma República aos moldes norte-americanos.Sociologia. Antropologia e Cultura Jurídicas A ideologia federalista se apresentava para proteger o caráter empreendedor do povo americano8 da inveja que sua prosperidade poderia gerar nos demais países. criação judicial (interpretação do statute law) e convenções (que são instituições que não eram encontradas no Direito inglês).Vol. traduzindo o orgulho do povo: “Whe. 9 23 . e não de uma Democracia no sentido clássico9. 1999). em que o sistema representativo irá tomar decisões pelo povo. que têm a legitimidade constitucional a partir de seu preâmbulo (“Whe. Com isso. foi um dos primeiros pensadores brasileiros a questionar a utilização de modelos jurídicos que não refletissem a formação do Estado brasileiro. Neste intento. Dessa simples reflexão é perceptível. como fazer diferente? 2. a experiência constitucional norte-americana seguiu os contornos políticos. 35 . de modo a proporcionar sentido e legitimidade às suas instituições. difere do brasileiro. Conferindo ao texto constitucional um caráter aberto. que se mantem no espaço de forma vigente com uma espécie de movimento circular. verifica-se o compromisso que a Constituição norte-americana assume. Durante a sua obra. Antropologia e Cultura Jurídicas para julgamento de casos ligados a identidade nacional. The People”). que o contexto social norte-americano. influenciado por Alberto Torres11. se a resposta for negativa. de modo que atendesse as necessidades da nação que se formava.Sociologia. Diante desses pequenos recortes teóricos. Como se verifica. compreende a atuação judicial neste sistema e a importância do exercício de suas prerrogativas para interpretar a Constituição em nome do povo. é justamente este ponto que se pretende problematizar neste paper. com a realidade social de seu povo. Oliveira Vianna e a realidade social brasileira Oliveira Vianna. Além disso. verifica-se o papel ideológico do movimento federalista na construção da atuação judicial e do movimento constitucional norte-americano. em nome do povo). em acordo com a realidade deste país. sociais e econômicos de seu povo. E. O que permite que a Suprema Corte personifique a Constituição Federal norte-americana de acordo com a sua atribuição de falar em nome desta (ou seja. encerra-se este tópico com a seguinte indagação: as prerrogativas que foram importadas do modelo norteamericano (bem como de outras matrizes constitucionais) fazem sentido para o caso brasileiro? E. 24 .Vol. O federalismo foi construído a partir da composição dos Estados-membros.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . VIANNA (1927) 11 Ver: Capitulo III (VIANNA. O autor aponta como um de seus objetivos. Em seu trabalho. demonstrar que o caráter federalista da Constituição de 1891 não se adequava à configuração política. porque o que os factos têm demonstrado e a experiencia comprovado é que somente pela virtude dos textos constitucionais não conseguiremos reorganisação alguma. não só da Camara. os republicanos da Constituinte construíram um regimen politico inspirado no pressuposto da opinião publica organisada. E por fim. Dahi a eleição direta e popular do presidente da Republica. p. São tudo outras tantas válvulas por onde se pode manifestar e esteriorisar-se a vontade livre. Dahi o selfgovernment local. social e econômica da população brasileira13. a opinião consciente e soberana do Povo. De certo. no mecanismo idealizado pelos legisladores de 91 faltava o sonho inspiriador do seu dynamismo. como se verificou no tópico anterior. Day a nossa falência. assegurado pela autonomia dos Estados e também pela autonomia dos municípios.. positivado na lei. (sic)12 Assim.” In: (VIANNA. afirmando 12 VIANNA. aliás as inspirações dos evangelistas de 70. Contando com isto é que os constituintes de 91. poderíamos desde então fruir. Dahi a eletividade e a periodicidade. sobre a realidade constitucional vigente. se aglutinaria. destaca os impactos negativos que tal tentativa havia gerado14. como também do Senado.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas realizou um estudo.Vol. o autor justifica que a complexidade de nossa organização social exigia mais do que uma reforma legislativa ou constitucional. segundo. Ora. pelo menos. estabeleceram no seu Codigo Fundamental varias preseripções tendentes a facilitar a livre expressão dessa opinião democrática. vejamos: Todas essas considerações nos deixam ver que o problema da nossa organisação política é muito mais complexo do que parece áquelles que pensam poder resolve-lo com simples reformas constitucionais. Como se vê. estabelecido o pleno regimen da opinião – é a maneira do que acontece na América do Norte e na Inglaterra. 42/43) 13 25 . os que assim pensam são espíritos que ainda cultivam a velha crença supersticiosa no poder das formulas escriptas e devem naturalmente ser também espíritos bem-aventurados. VIANNA (1999) identifica a necessidade de desenvolvimento de um estudo que permita um maior diálogo com a realidade social brasileira. 14 “Por esse meio os milhões de opiniões individuaes. com tranquilidade e orgulho justificado. com a bemaventurança assegurada. Com essa Opinião Publica. seguiosas de se revelarem. 63. E teríamos. assim partidariamente arregimentada. p. e ainda não existe perante nós: logo. com a preocupação de verificar uma correspondência entre algumas instituições e a estrutura social do país. em dous ou três grandes partidos. pelo menos. portanto. 1999. ou. essa opinião não existia. todas as bem-aventuranças do regimen do povo pelo povo.Sociologia. em grandes massas. a Republica na sua luminosa pureza e formosura. 35 . a Democracia em summa. dos Partidos. Com isso o autor defende que existe um Direito costumeiro do povomassa que luta contra o Direito disposto pelas elites. ou. arregimentada e militante. 1927. O que difere do caso norte-americano. atribuindo-lhes eficácia e legitimidade perante a própria sociedade? E é partir deste 15 VIANNA. Ressalte-se que o objetivo aqui é o de reforçar a preocupação de VIANNA com a eficácia das normas constitucionais exportadas sem uma correspondência ou diálogo com os costumes da população. O quê é interessante questionar é se a observação feita por VIANNA ainda é atual. que entende ser a partir da lei que a sociedade se molda. estudando o Direito Constitucional como um fato do comportamento humano. Em contraste a esta ideia. Assim. como acima explicitado – ainda que forma sucinta . a realidade social brasileira foi destacada no presente paper por meio de breve recorte do pensamento de VIANNA. A utilização de Oliveira Vianna neste paper serve como um exercício de reflexão e questionamento. Diante dessa reflexão. VIANNA (1999) se opõe ao pensamento desenvolvido por KELSEN (1979). 35 . o seu sistema constitucional. as reformas constitucionais deveriam também ser justificadas por mudanças do comportamento coletivo. para que fossem produzidos modelos constitucionais adequados e eficazes.estava ancorado no tipo de sociedade que se constituía de modo a promover o diálogo entre seu modelo institucional. como formadores de um sistema jurídico exógeno à nação. VIANNA (1999) traça uma crítica às elites de seu tempo. Não se interessa e nem se partilha o caráter autoritário do autor. As referidas observações permitem a inferência de que o constitucionalismo norteamericano foi fundado a partir da estrutura e a organização de seu povo. Antropologia e Cultura Jurídicas que a realidade social à época não estava apta a exercer a Democracia nos moldes estrangeiros15. o que deu legitimidade ao sistema democrático. Daí extrai-se a seguinte indagação: é possível entender e verificar a realidade social brasileira de modo a propor/reformular instituições democráticas.Vol.Sociologia. A fim de refletir sobre a necessidade de pesquisas empíricas. perdendo eficácia se não dialogassem com as mudanças da coletividade. 1999 26 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . sua constituição e seu povo. Assim. quanto à cópia de modelos constitucionais (ou de institutos jurídicos) sem a observação do contexto em que o mesmo fora produzido. A 16 Por exemplo. o papel exercido por Rui Barbosa neste processo ganha grande relevo. 3.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Uma das possíveis conseqüências de tal fenômeno é o distanciamento entre o sistema jurídico e a realidade social a que faça referência. Adiante. do ponto de vista empírico. 27 . que fazia constante diálogo com o Direito norte-americano. que permite a construção de conhecimento teórico a partir do contexto fático existente. que se verifica a importância da pesquisa empírica. A pesquisa empírica como uma fonte complementar de produção normativa: Nos parágrafos anteriores buscou-se traçar um paralelo entre os modelos constitucionais brasileiro e norte-americano a fim de demonstrar a influência deste último no constitucionalismo brasileiro16. de produzir conhecimento capaz de questionar a mera aplicação de teorias que foram construídas em um contexto distinto. um dos autores brasileiros que mais contribuíram ao desenvolvimento de teorias constitucionais voltadas ao sistema de controle de constitucionalidade foi Rui Barbosa. a realidade que se pretende regular. foi demonstrado a partir da visão crítica de Oliveira Vianna que a importação de teorias e modelos constitucionais no Brasil foi feita sem uma adaptação necessária à realidade constitucional brasileira. Essa falta de correspondência resulta em debates cada vez mais intensos sobre a utilização de mecanismos judiciais ou extrajudiciais que permitam a diminuição deste hiato. dando início à importação de teorias e modelos ao Direito brasileiro. Além.Vol. Portanto. A discussão acerca da utilização da pesquisa no presente paper visa tão somente atentar a um novo olhar ao Direito. Embora possam existir controvérsias sobre o caminho percorrido por algumas teorias e modelos constitucionais até chegar ao Direito brasileiro. Antropologia e Cultura Jurídicas questionamento. deixando de abordá-lo como sujeito fundamental à regulação das relações sociais para ser compreendido também como objeto de estudo que permita uma compreensão mais fiel das interações sociais. que não se verifica. ainda que as fizesse sem uma avaliação prévia da realidade social vigente à época. Neste contexto. a partir deste questionamento será desenvolvido o último tópico do presente artigo. 35 . É de se destacar que Rui Barbosa teve fundamental importância ao apresentar ideias que complementassem determinadas lacunas no Direito Constitucional brasileiro. apresentamos a seguir uma discussão acerca da necessidade de utilização de pesquisas em Direito Constitucional como uma das formas de superação à ideia de que copiar modelos jurídicos e/ou institucionais sem a devida reflexão crítica possa ser a melhor alternativa à necessidade constitucional brasileira.Sociologia. por exemplo. uma vez que esta pode ser feita a partir de teorias que procuram determinar a prática. que nos permite a identificação de: (i) inúmeras teses que vem se insurgindo na tentativa criar uma justificação ao processo decisório. A utilização da pesquisa em Direito vem ganhando força num contexto em que a doutrina constitucional vem empenhando esforços na tentativa de racionalizar comportamentos judiciais e extrajudiciais sem a utilização de um método específico. Tomemos como exemplo o caso do “Mensalão”. não pode ser confundida como pesquisa em geral. Tem se tornado bastante comum. por exemplo. neste ponto. abordaremos a empiria como um dos métodos possíveis da pesquisa em Direito capaz de traduzir e demonstrar as interações sociais na realidade constitucional brasileira de modo a permitir que teorias e modelos jurídicoconstitucionais sejam desenvolvidos tendo por base o conhecimento prévio da realidade ao qual se insere. o grande número de estudos aprofundados em Direito Constitucional com a utilização de sofisticadas teses jurídicas sem a observância prévia e cuidadosa do objeto que se está investigando. 28 . e não o inverso. Por tais motivos. 35 . A produção empírica faz justamente o cominho oposto.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . pode-se inferir que o estimulo à pesquisa empírica em Direito Constitucional serviria como uma ferramenta à aproximação das instituições democráticas à realidade em que está sendo aplicada. sem a observação e descrição necessária das sessões de julgamento (e bastidores).Vol. A pesquisa empírica. como a teoria do domínio do fato. e (ii) o surgimento de teses jurídicas sem qualquer correspondência com a realidade constitucional brasileira. principalmente. A tentativa de racionalizar comportamentos e. uma vez que o saber empírico é produzido por meio de pesquisas em que a experiência se torna capaz de determinar a produção de teorias. decisões judiciais é feita basicamente sem uma observação e descrição do campo que permitiria tal inferência. por permitir a produção de teorias e modelos constitucionais determinados pela experiência brasileira. Antropologia e Cultura Jurídicas partir desta reflexão.Sociologia. acaba por fazer 29 .Sociologia. procurador etc. o que é bastante inusitado atualmente. sobrepondo teorias que nem sempre possuem uma verificação prática. Para tanto. para estimular o desenvolvimento de pesquisas empíricas em Direito Constitucional. defensor público. Antropologia e Cultura Jurídicas Mas. pois a lógica do contraditório acaba refletindo não somente na prática judicial. Repensar esta lógica é importante a reflexão aqui proposta. o pesquisador em Direito.. mas na produção de conhecimento jurídico. considera algumas melhores que outras e exclui aquelas que são superadas por meio de uma argumentação um pouco mais sofisticada com normas e doutrina especializada ou até mesmo por mera retórica. os alunos que cursassem Direito teriam acesso não apenas às habilidades e competências necessárias às escolhas de profissões jurídicas como advogado.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Por consequência. além do forte investimento no capital humano (professores qualificados.). grupos de pesquisa etc. com grande número de doutores) e em sua infraestrutura (como grande acervo de consulta de livros e periódicos. O incentivo à realização de pesquisas nas faculdades de Direito pode se tornar um grande diferencial na busca por um ensino do Direito mais crítico-reflexivo. juiz. é preciso a criação de uma cultura naqueles que utilizam o Direito como objeto de estudo e investigação. Deste modo. a faculdade de Direito deve apresentar a pesquisa e suas diversas modalidades aos estudantes de Direito como oferecimento de uma formação mais completa e sólida. a produção do conhecimento ficaria prejudicada e os alunos desenvolveriam a habilidade de destruir teses adversárias utilizando-se de argumentos que não necessariamente refletem a realidade circundante. A utilização do contraditório (bastante estimulada no Direito) acaba por gerar nefasto efeito. Por conta desta formação. em geral. Dentre as habilidades e competências que lhe devem ser estimuladas. Por outro lado. O Direito avalia teses. 35 . O estímulo ao desenvolvimento de tais competências requer mudanças claras na metodologia de algumas instituições de ensino. mas também permitindo a atuação na carreira docente e de pesquisa.Vol. salas de estudo. promotor. faz-se extremamente necessário dar um passo atrás e voltar ao processo de formação do estudante de Direito. fazendo pressupor a prevalência de uma tese jurídica sobre outra. de modo a estimular a construção de teorias a partir da realidade social brasileira. a base teórica ensinada nas universidades torna-se também grande entrave ao desenvolvimento da pesquisa jurídica no Brasil. In: Coleção Jovem Jurista. dando estímulo ao desenvolvimento de teses que melhor interprete. contribuiria ao conhecimento de diferentes culturas e realidades jurídicas. novas concepções ou até mesmo novos entendimentos.Sociologia. o autor defende não ser possível dar plausibilidade a esse tipo de argumentação apenas tendo por base jurisprudência. Mutação constitucional do controle difuso no Brasil? Uma análise do papel do Senado diante do art. independentemente da possibilidade de ser verificável empiricamente. da Constituição Federal. mas não se pode deixar de entendê-las verdadeiramente. da FGV. neste sentido. se tornam leitura comum nas faculdades como fonte do Direito (doutrina). já demonstra o grande abismo que existe no próprio suporte teórico que deveria servir de base epistemológica ao desenvolvimento das pesquisas em Direito. 2010. Rio de Janeiro: Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas. necessitando de base empírica que o permita atribuir mais solidez e consistência a qualquer argumento de mutação constitucional na ordem jurídica brasileira. O Direito. 52. concluiu-se que não merece prosperar a tese do Min. o que também é constatado por uma falha na formação acadêmica do pesquisador. A supervalorização de teóricos já consagrados (principalmente estrangeiros) e a insistência em aplicar suas teorias em realidades completamente diferentes aos quais elas foram criadas. v. 30 . Para analisar a consistência da tese de ocorrência de uma autêntica mutação constitucional do art. Carlos Victor Nascimento dos.18 17 Como exemplo da situação acima descrita. doutrina e argumentação tipicamente constitucional. 52. É preciso confrontar teses. que naturalmente direciona os trabalhos que começam a ser desenvolvidos. como a existência de uma base epistemológica pré-definida na pesquisa em Direito. interessante observar artigo em que se testou a plausibilidade da tese de que teria ocorrido mutação constitucional no sistema de controle de constitucionalidade no Brasil. Diante de tal situação. neste sentido. (a) discutiu-se as condições necessárias à plausibilidade de um argumento de mutação constitucional na ordem jurídica brasileira e (b) realizouse uma análise empírica do papel do Senado Federal diante do art. e pouco estimula à busca de novos métodos. X.Vol. muitas questões surgem. 35 . o autor discute o argumento empregado pelo Ministro Gilmar Mendes. Em trabalho publicado na Coleção Jovem Jurista. Não é incomum a associação de nomes de determinados autores a pensamentos completamente diversos aos seus escritos.) 18 A perspectiva comparada por contraste. p. X. 52. X. do Supremo Tribunal Federal. Como resultado. no julgamento da Reclamação 4335-5/AC. da Constituição. X. e aplicado o conceito de mutação constitucional sobre eles.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . conservador. no referido artigo. especificamente quanto à competência conferida pela Constituição ao Senado Federal para suspender a eficácia de lei ou ato normativo declarado inconstitucional no controle difuso de constitucionalidade. Gilmar Mendes em que defende o reconhecimento de “autêntica mutação constitucional” do art.01. os pareceres feitos por advogados que.151-202.17 Podem ser exemplos. Antropologia e Cultura Jurídicas pesquisas que em alguma medida pretendem firmar um ponto de vista sobre determinada questão. acaba por ser muito tradicional. quando revelam tão somente a defesa de um ponto de vista requerido por algum cliente. 52. Feita a coleta de dados. da Constituição. em muitos casos. (SANTOS. Isso acarreta. pelo menos. O diálogo entre estas diferentes áreas do saber é fundamental ao manejo de pesquisas jurídicas no Brasil. estritamente baseada na lei com o apoio das discussões dos tribunais e doutrina. como a etnografia. que o método etnográfico é apenas uma das compreenda e defina a realidade de uma determinada cultura jurídica. Diante deste cenário. Você Sabe Com Quem Está Falando? In Carnavais.Vol. A prática judiciária exige uma sistematização das demandas judiciais por parte dos magistrados. fortalece e da credibilidade à base teórica necessária ao desenvolvimento de uma qualificada pesquisa jurídica. 31 . como a antropologia. 35 . por exemplo. principalmente por ainda existir falta de sensibilidade jurídica de quem pretende adentrar neste campo. sem levar em consideração as particularidades de cada caso concreto. por intermédio: (i) da possibilidade de maior diálogo com outras áreas das ciências humanas. Roberto. Com vistas à possibilidade de proporcionar uma mudança estrutural na produção do Direito Constitucional.Sociologia. Antropologia e Cultura Jurídicas Outra questão importante. 1979: 139-193. Neste sentido. é a construção dos dogmas. o que reflete um distanciamento entre a prática (o que realmente está em conflito) e o pensamento jurídico dogmático e normativo. está desconectada da práxis constitucional. 19 DAMATTA. já que a realidade jurídica. Além disso. os juízes retiram o verdadeiro conflito da discussão jurídica e acabam por criar teses a fim de sistematizar demandas e construir dogmas a serem seguidos em demandas posteriores. e que prejudica a produção da pesquisa jurídica. dois problemas em uma sociedade desigual e hierarquizada como a brasileira 19. Os elementos destacados acima contribuíriam de forma grandiosa ao desenvolvimento de pesquisas jurídicas cada vez mais qualificadas e relacionadas com a realidade própria da sociedade brasileira. O estudo cada vez mais aprofundado das metodologias de pesquisas sociais. Destaca-se. sugere-se uma nova vertente à discussão do Direito Constitucional no Brasil. depreende-se que a crítica de VIANNA ainda é pertinente. O primeiro é a falta de inserção dos conflitos dos indivíduos que demandam a tutela judicial na discussão jurídica da lide processual. pode se tornar fundamental à correção de uma enorme incongruência no sistema jurídico constitucional do país. e (ii) o desenvolvimento de um novo pensamento na formação acadêmica do estudante do Direito a iniciar pelos projetos políticos pedagógicos das instituições de ensino do país. Malandros e Heróis. Zahar. Rio de Janeiro.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 22 Idem 6.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A “hermenêutica dos tribunais”. BARBARA & KANT DE LIMA. fundamentações filosóficas etc. diferentemente daquela baseada nos diferentes saberes humanos20. e esta abstrativização prévia nem sempre é reflexo de uma demanda social. vez que se coloca distante da realidade a qual se aplica.Sociologia. um deles é a Antropologia com a utilização do método etnográfico. 21 32 . E pior: importa tais padrões normativos. Os verdadeiros fatos que se revelam no conflito são deixados de lado e o seu deslinde pelo Poder Judiciário fica resumido a uma grande análise hermenêutica: decisões judiciais tem sido cada vez mais fundamentadas sob uma nova ótica da interpretação e argumentação jurídica. a pesquisa jurídica perderia sentido. 2010. Há uma abstrativização prévia que será aplicada a um conflito posterior. A visão acima acerca do Direito pode ser superada por diferentes meios. a aproximação com a Antropologia pode fornecer ferramentas aquele que pretende fazer pesquisa jurídica. argumentações tipicamente constitucionais revestidas de alto cunho de retórica. O papel da antropologia no contexto acima delineado seria o de suprir a falta de reflexividade que o Direito tem sobre o que ele está produzindo. para que o pesquisador 20 Ver SOARES. que serviria como ferramenta aos pesquisadores do Direito a fim de se tornarem capazes de relativizar as verdades que lhes são consagradas21. Superada esta tensão. utilizando-se de ponderação de interesses. pois o saber jurídico normativo se reproduz por meio dessas verdades. a normatização do saber jurídico. pode ser um dos fatores que dificultam a relativização por parte do jurista. 2010. 35 . cria padrões que se antecipam aos conflitos. Diferente do fazer antropológico. Sem essa reflexividade. Antropologia e Cultura Jurídicas formas de produção de conhecimento a partir da empiria e é sugerido neste paper como uma ferramenta para a produção do conhecimento jurídico. 3-36. atribuindo sentido a conceitos jurídicos indeterminados. extraindo normas de regras jurídicas por meio da interpretação. E essa característica do fazer antropológico22 é um dos principais obstáculos na interlocução entre os dois campos. ou quando é. p. ganha soluções por teorias que nem sempre foram criadas para solucionar tais questões.Vol. Assim. Neste sentido a mera importação de teorias ou de institutos constitucionais que não foram pensados para a nossa realidade.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . na presente hipótese. O objetivo é estimular uma maior reflexividade no momento em que importamos ou temos contato com teorias. desenvolvendo teorias jurídicas que impulsionem uma produção técnica do Direito. daquilo que o mesmo pretende regular. O olhar antropológico. 2001. O que só se torna possível por meio de uma formação que dê condições para o estudante de Direito de produzir 23 24 KANT DE LIMA. A abordagem feita acima tem por objetivo demonstrar que o Direito Constitucional. Antropologia e Cultura Jurídicas possa comparar e relativizar o que está posto pela lei. Considerações Finais A proposta aqui desenvolvida é de demonstrar uma ferramenta que pode ser utilizada pelo Direito Constitucional (e não apenas ele) de modo a ser possível a produção de teorias e a criação/reformulação de instituições que respeitem as características culturais e socais que compõem a sociedade brasileira. no sentido não apenas de regular da vida social. por si só. não é possível verificar em sua produção ou exercício no espaço público contornos democráticos. 109. uma vez que a vontade da sociedade não estaria posta na produção normativa. com a mera produção normativa.Sociologia. mas principalmente compreendê-la. com o que o Direito está realmente produzindo na prática. que esteja em consonância com a realidade social de nosso país. De acordo com KANT DE LIMA23. o Direito se exerce como uma imposição das autoridades que dominam o conhecimento jurídico e a “competência para a interpretação correta da aplicação particularizada das prescrições gerais” 24. KANT DE LIMA. não consegue abranger sem muitas falhas a realidade social de um povo.Vol. 33 . É preciso um olhar mais específico no comportamento social. estrangeiras o que nos permitiria ir além. contribuiria a uma aproximação maior das práticas sociais ao Direito. acabam por incentivar o distanciamento do Direito Constitucional. 35 . 2001. p. em seus diferentes métodos de implementação (empiria.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol.Sociologia. sobre o Direito brasileiro. Para tanto. Antropologia e Cultura Jurídicas pesquisas. como forma de despertar no estudante de Direito a competência necessária à descrição e compreensão da sociedade ao qual está inserido. algumas teorias e modelos constitucionais foram desenvolvidos a partir de uma maior aproximação à realidade social de seu país. mas ela pode contribuir enormemente a uma nova visão do Direito: ao invés de mero regulador da vida social. por exemplo). Para o primeiro. estimulando habilidades e competências necessárias à atuação neste campo do saber. 35 . Como contribuição ao debate. e Oliveira Vianna. Diferentemente. ele pode ser também um mecanismo de contribuição à compreensão da realidade social em que é aplicado. devemos avançar a nova indagação: se podemos pesquisar. Durante o presente paper. utilizando como exemplo o método empírico e etnográfico. Todo o caminho percorrido pode ser resumido na indagação constante no título do presente trabalho: por que copiar se podemos pesquisar? Agora. Oliveira Vianna destaca a importação de teorias e as suas consequentes adaptações ao Direito brasileiro. apresentamos a visão de dois importantes autores: Corwin. ainda que se qualquer relação com a realidade social brasileira ou com a sua cultura jurídica. buscou-se reproduzir um debate clássico a partir da aproximação de dois diferentes sistemas jurídicos: brasileiro e norte-americano. 34 . como. sugerimos a utilização da pesquisa em Direito Constitucional como forma de aproximar teorias e normas à realidade social. em relação ao Direito norte-americano. em que momento e quem o pode fazê-lo? A sugestão é atribuir um olhar especial à formação do estudante de Direito. Não se está defendendo que todo o cenário descrito pode superado a partir de uma mudança na formação do estudante do Direito. Vol.Sociologia. DAMATTA. Páginas 162-193. Lumen Juris. 2009. 2008. decisão. 1ª Ed. KELSEN. 1981. 4ª ed. 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Organização de Maria Garcia e José Roberto Neves Amorim. Os rituais judiciários e o princípio da oralidade: construção da verdade no processo civil brasileiro. 35 . Volume I. CORWIN. In: ENCONTRO DA ABCP. BAPTISTA. Bárbara Gomes Lupetti. In:______. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito. Rio de Janeiro. Relativizando: uma introdução a antropologia social. O desafio de realizar pesquisa empírica no direito: uma contribuição antropológica. Universidade Gama Filho. 2ed.br/ineac/?q=o-desafio-derealizar-pesquisa-empirica-no-direito LIMA. 2003.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 1997. Recife. Rio de Janeiro. HAMILTON. Zahar. São Paulo: Atlas. Prevenção e Responsabilidade ou Punição e Culpa?: uma discussão sobre alguns reflexos da ambiguidade de nossos modelos de controle social e produção da verdade na burocracia oficial brasileira. FERRAZ JUNIOR. GARCIA. Roberto. FONSECA. 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Carlos Victor Nascimento dos. 35 . 36 . 1999. 2010. In: Coleção Jovem Jurista. DRUMONDO. malandros e heróis: o dilema brasileiro do espaço público. Mutação constitucional do controle difuso no Brasil? Uma análise do papel do Senado diante do art. aumentada.151-202.) O Brasil não para principiantes. 2006. “Deus Mjuda M quem cedo madruga?”: trabalho. 2001. Yale Law School. SANTOS. Lívia. 50).Vol. __________. Paulo Todescan Lessa.01. mas não esculacha! : uma etnografia dos usos urbanos de trens na Central do Brasil. v. Luana Regina D'Alessandro Damasceno Faculdade Nacional de Direito – UFRJ/RJ RESUMO O presente artigo tem como objeto descrever as dificuldades observadas na pesquisa empírica dentro do meio jurídico. estranhamento dos atores do campo para com o pesquisador. Porém. pré (conceito) e preconceito diante da pesquisa ou do pesquisador. 35 . que possui como estudo as práticas realizadas pelo judiciário em demandas relacionadas a menores em conflito com a lei. pois não é suficiente para se construir uma percepção adequada do meio jurídico o estudo e concentração de esforços somente nas doutrinas e jurisprudências.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . para se ter um olhar etnográfico. no caso a descrição das praticas institucionais. Dificuldades como a desconfiança. 37 .Sociologia.Vol. estes amparados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente ECA. THE ETHNOGRAPHY AND LAW: THE CHALLENGES OF LEGAL FIELD EMPIRICAL SEARCH. Antropologia e Cultura Jurídicas A ETNOGRAFIA E O DIREITO: OS DESAFIOS DA PESQUISA EMPÍRICA NO CAMPO JURÍDICO. especificamente sobre a experiência vivenciada em uma determinada Vara de Infância e Adolescência da Comarca do Rio de Janeiro cujo início ocorreu em meados de 2012. identidade predominantemente normativa do meio jurídico. principalmente. são entraves de acesso já enfrentado dentro da produção empírica e nos quais ainda são comuns para quem trabalha com a perspectiva etnográfica. diante de demandas no qual o “segredo de justiça” é presente. A articulação entre o Direito e a Antropologia é uma importante ferramenta que vai de encontro aos discursos eminentemente dogmáticos sustentados pela não correspondência entre M“teoria” do direito e Mempiria. enfrenta-se obstáculos pontuais visto que o conteúdo a ser pesquisado está duplamente protegido: pelo normatismo inerente ao poder judiciário de maneira lato senso e ainda pela natureza do conteúdo a ser tratado. e ainda a não compreensão acerca do objeto da pesquisa a ser realizada. Difficulties 1 . But to have a look ethnographic mainly before demands in which the "secrecy" is present. É bem verdade que o desafio inicial é conseguir criar um liame entre tais campos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . The relationship between law and anthropology is an important tool that goes against the dogmatic speeches eminently supported by the mismatch between the "theory" of law and empiricism because it is not enough to build a proper understanding of the legal study and concentration only effort in the doctrines and jurisprudence. na verdade como é praticado institucionalmente esse conceito e quais são os processos que o permeiam. specifically about their experience in the Court of the County Children and Adolescents in Rio de Janeiro which was initiated in mid-2012. 38 . Judiciary. Antropologia e Cultura Jurídicas Palavras-chaves: Etnografia. e que nesse caso estão tão próximos.Sociologia. É necessário. antes de qualquer coisa.Vol. pre (concept) and prejudice on the research or the researcher. normalmente distintos.ECA. ferramenta trazida da Antropologia como meio de auxiliar no fornecimento de dados empíricos. those supported by the Child and Adolescent . barriers to entry are now faced within the empirical production and which are still common for those working with ethnographic perspective. it faces obstacles off since the content being browsed is doubly protected: by normatismo inherent judicial power so broad sense and by the nature of the content to be treated as having practices study conducted by the judiciary demands related to minors in conflict with the law. explicitar como acontece e como é construída essa relação entre o Direito e a Etnografia.INTRODUÇÃO A proposta da pesquisa que segue é de primeiramente articular o campo do Direito e o da Antropologia. Dificuldades ABSTRACT The object of this article is to describe the difficulties observed in empirical research within legal means. Defende-se isso. Key-words: Ethnography. strangeness of the actors from the field to the researcher. Judiciário. Difficulties as distrust. 35 . identity predominantly normative legal means. and still not understanding the object of the research to be conducted in if the description of institutional practices. visto que a temática inicial da minha pesquisa tem como alicerce os meios de “fazer justiça”. nós. enquanto Direito e Justiça são aspectos quase indissociáveis do ponto de visto jurídico. utilizamos na busca pela interpretação singular e única de quem se insere no campo como pesquisador e não como figura relativa do meio jurídico. Na verdade há significações diferentes. o que é um importante exercício dentro do Judiciário possibilitando transformações concretas por meio do esforço de romper 39 . Ainda é por meio desse “olhar estranho” que essa vivência do campo se conjuga com diversos tipos de saberes necessários e produzidos no campo do Direito. entretanto o que se busca não é uma verdade absoluta. por meio do método etnográfico que alinha os significados teóricos a prática. Antropologia e Cultura Jurídicas Por isso é válido dizer que tanto para o Direito quanto para a Antropologia. quanto pelo o antropológico.) e assim incluí-las no registro de consultas sobre o que o homem falou”. 35 . Assim. desconstruindo assim verdades ditas consagradas. estudantes de Direito ou ainda advogados. mas colocar a nossa disposição as respostas que outros deram (. com o intuito de relativizar categorias e conceitos. o importamos da Antropologia. o que defende-se nesse artigo é uma discussão e por fim uma adequação entre o Direito e a Antropologia.. que há uma ligação entre ambas as disciplinas. O olhar antropológico é um instrumento no qual. Contudo a Antropologia trata do processo de produção da justiça.. Posto isto.Vol. por sua vez. compreendido tanto pelo meio jurídico. e sobre tal é relevante citar que aqui não se tem um caráter de suspeita ou desconfiança envolvido. também trabalha com a noção de Justiça e então é nesse ponto. Como defende Geertz (GEERTZ 2011.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ou melhor. O mesmo é marcado pelo estranhamento.Sociologia. pois. um significado absoluto de Justiça. como o Direito espera. o meio antropológico. enquanto o Direito tem como “cMtegoria natiQM ” a Justiça. 2 . ou ainda melhor. ALVES 2012) “A vocação da antropologia interpretativa não é responder as nossas questões mais profundas. o trabalho está ancorado em uma categoria nativa. esse conceito é importante. A metodologia etnográfica é valiosa. entender sua lógica e funcionamento são conhecimentos construídos mais facilmente através da observação direta e aprimoramento de mecanismos de permeiam o sistema judiciário.A OPÇÃO PELA PESQUISA DE CAMPO O cotidiano institucional. pois aproxima a teoria da prática. e este é ainda mais profundo 1 Este artigo tem como objetivo explicitar as dificuldades encontradas no campo de pesquisa. 5. foi adotada a postura de não identificação da Vara de Infância e Juventude no qual tenho trabalhado. entende-se: “O ECA prevê diversas medidas socioeducativas a ser aplicada para a responsabilização do infrator.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Quais são as etapas enfrentadas. desde o pedido de remissão judicial até o cumprimento no regime fechado. Porém é relevante esclarecer que pesquisas de caráter empírico na área do Direito e ainda ligadas a órgãos decisórios. tanto provisoriamente.. ou seja.Vol. (TABORDA. Quais os crimes mais cometidos e respectivas punições. Os atores. 40 . [. por si só é um grande desafio. 2009. quem deve cumprir a medida socioeducativa de internação. 7. 4. sancionatória.Sociologia. 2. A pesquisa etnográfica dentro do direito é um desafio e uma nova perspectiva que defendemos. e retributiva. p. porque aplicada independentemente da vontade do menor. Como é vista pelos profissionais dessa Vara1 a aplicação da medida socioeducativa e seu processo pelo qual jovens passam até chegar ao local efetivo de cumprimento da sentença judicial. quanto por declaração em sentença ao final do julgamento. 2. sendo que para os casos mais graves reconhece a possibilidade de provação de liberdade.. Essas medidas possuem natureza impositiva. Quem são os profissionais que promovem o “trMPMmento judicial”. bem como o local no qual a pesquisa tem ido realizada. 35 . 06). tais como: 1. aplicadas pelo Estado em resposta ao ato infringente. especificamente a de internação.O INÍCIO DE UMA DESCRIÇÃO O estudo sobre a medida socioeducativa através da aplicação do método etnográfico tem como objetivo observar os aspectos que permeiam esse tema. pois é importante contribuição diante do tradicionalismo dogmático. Antropologia e Cultura Jurídicas com as formas tradicionais de produção de justiça. 6.]”. Qual é a estrutura do órgão que profere essas sentenças. porém executada com meio pedagógico. 8. 3. Qual é o perfil do menor em conflito com a lei. O que representa o caráter pedagógico e o punitivo. porém para proteger e resguardar a imagem das pessoas envolvidas nesse processo.1 . ou seja. Por Medida Socioeducativa. agente peculiar do meio. categoria nativa2. 268). inclusive. 2 Noção que é utilizada como conceito analítico para que seja possível classificar as categorias de linguagem. a fim de começar a fazer a pesquisa na Vara.Vol. a qual mais a diante farei menção. seja porque muitos possuem pensamento normativo enraizado em uma cultura jurídica muito dogmática. apresentada junto ao IUPERJ. 35 . entendida como integração familiar. pesquisa de campo é uma alternativa significativa seja porque os operadores jurídicos pouco estão familiarizados com tal método.. Para compreender o que significa também essa categoria nativa. Por isso adotou-se a denominação de menor em conflito com a lei. p. Na verdade cabe a Vara de Infância e Juventude de qualquer foro investigar e tratar do jovem em conflito com a lei. É a partir desse ponto que se começa a compreender os primeiros entraves do campo. se for o caso.. “RessMlPe-se que essa discussão é norteada pelo Estatuto.” (FRANF HSCHHNHe CAMPOS 2005. 41 . ajustamento/adaptação. O Prof. enfrentado especialmente quando há demandas que envolvem menores. exercício de uma atividade laboral. 270). na estrutura física das instituições para adolescentes. ocupação de um lugar na comunidade e.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . seus conceitos e perspectivas. foram necessários alguns procedimentos administrativos para conquistar a autorização judicial. Entretanto. por ressocialização entendem-se: “É necessário que o diferencial socioeducaPiQo das medidas se manifeste. No caso do município do Rio de Janeiro.Sociologia. 3 Essa classificação caiu em desuso. 1999. a única vara da comarca que trata pontualmente de demandas relacionadas a crimes cometidos por “jovens infratores” 3 é a Vara e cabe então a ela dirimir os conflitos dessa natureza. p. Antropologia e Cultura Jurídicas quando trabalha-se limitado pelo “sigilo judicial”. por isso a necessidade da pesquisa ser realizada em suas dependências. in Tese de Doutorado em Sociologia. ressocialização. participação no sistema de ensino. Vários outros termos correlatos são empregados [.] reintegração social. surgiu à iniciativa de adentrar o campo jurídico no qual o tratamento relativo a essa demanda é dado. ela inicia os trabalhos que tem como foco a tentativa de ressocialização. reorganização de vida etc. Michel Misse é um dos pesquisadores que fazem uso desse conceito. como disposto no ECA.” (FRANCISCHINI e CAMPOS 2005. Então. Para o estudo sobre a medida socioeducativa e obtenção de tais respostas e ainda tratar de novas indagações. pois alguns doutrinadores entendem que é uma maneira pejorativa de referir-se ao menor que cometeu algum crime. na expectativa de se possibilitar a ressocialização. e que o produto do campo. as normas e regulamentos como fonte primária e ainda complementa a experiência no meio. Isso porque por ser um meio eminentemente teórico e basilar. a pesquisa prática tem o então objetivo de nivelar através da descrição minuciosa do meio os rituais oriundos da (re) ação constante daqueles envolvidos. uma vez que sua consagração é praticamente 42 ... 1994). Antropologia e Cultura Jurídicas 2.Vol. consagrado. com seus significados e percepções dos operadores internos. é difícil questionar-se o que já se encontra cristalizado. Por construção dogmática do Direito. o que efetivamente acontece revela-se e acaba por colocar em paralelo o que está no plano ideal normativo. o mesmo é resistente à interdisciplinaridade e isso foi observado como primeira dificuldade.2 – AS MINHAS DIFICULDADES NO CAMPO Em contraste com os discursos construídos pela Dogmática imersa no Direito. KANT DE LIMA 2010. No campo. permite uma interação entre o saber jurídico.Sociologia. o estudo das práticas judiciárias por meio de pesquisas alicerçadas no método etnográfico. 35 . a realidade. O campo jurídico por si. ou seja. “. O campo relativo à Vara de Infância e Adolescência foi o selecionado para realizar a pesquisa de campo e para produzir conhecimentos acerca da aplicabilidade da medida socioeducativa. ou melhor.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Porém ao tentar ser inserida nele encontrei dificuldades explicitas. seja com o objetivo meramente especulativo de conhecimento e sistematização. seja com o escopo prático de interpretar as normas jurídicas parMsua exMP Maplicação”B(LUPETTI. no qual tem-se a Lei. A materialização do Direito acontece quando o trabalho de campo traz a possibilidade de vivenciar o que o referencial teórico das Leis expõe. Partindo-se do pressuposto que o discurso oficial do Direito é eminentemente teórico. o esPudo de caráter cientifica que os juristas realizam M respeiPo do direito. apud DINIZ. O campo jurídico não tem o costume de permitir ser descrito ou analisado. não está OM bituado M sofrer “intervenções” de outros saberes. ou na tentativa de apropriação desse método antropológico. é descartada. A descrição é produto de comparações interpretativas que são amparadas pelo discurso dogmático. 17) No campo no qual comecei a fazer etnografia. ou seja. no caso realizando uma interação entre. mas que. [. 1997. autoavaliação. é exatamente o que permite estranhar o que. Diferente do estranhamento do 43 . mas também entre outras áreas das Ciências Sociais. auto-estranhamento. parece tão natural. pois há intrinsecamente enraizado em seus próprios operadores a lógica de que o Direito não reproduz o cotidiano forense e sim esse cotidiano é que representa um produto de suas teorias.. p. pois este exercício. LUPETTI e KANT DE LIMA 2010) diz: “Nesse sentido. não somente entre a Antropologia e o Direito. não é nada tão óbvio ou natural assim.. LUPETTI e KANT DE LIMA 2010.1– A QUESTÃO DA DESCONFIANÇA Para o meio jurídico entender-se como objeto de uma pesquisa é um difícil processo.. 90 apud LUPETTI. âmbito no qual o Direito está ligado.Vol. O destacado acima serve para retratar a importância da interdisciplinaridade. Fenômeno este tão naturalizado que impede o exercício do olhar para si mesmo e consequentemente o questionamento. Por isso. não foi difícil perceber o quanto fazer pesquisa é um processo de reconhecimento das praticas institucionais e também está relacionado a enfrentamento das desconfianças do outro.] a sociologia a jurídica pode ser uma fundamental alavanca [para desnaturalizar as certezas produzidas pelo direito]. 2008. de olhar para si mesmo e se questionar. p. num primeiro momento. Antropologia e Cultura Jurídicas inabalável. o Direito e a Sociologia: “L. na medida em que ela impulsione MMdoção de uma posturM“epistemologia” que lance M semente da dúvida que elimine os obstáculos de uma discussão mais aberta e questionadora. 10). 1997. Para justificar isso (GARAPON.2. p.Sociologia. (GARAPON. 35 . M imporPânciM da explicitação e da descrição dos rituais judiciários é fundamental. KANT DE LIMA 2010. 2.. é válido trazer a essa discussão o que o filósofo Alex Varella menciona como a importância de refletir e repensar o Direito.]” (VARELLA. por exemplo. visto de outra perspectiva. É um campo pouco favorável ao dialogo interno com aquele que o descreve uma vez que a reprodução é vista como a forma ideal.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA ...”. do Superior Tribunal de Justiça (STJ). que prevê o sigilo em toda e qualquer demanda que possua dados relativos a menores de 18 anos. pois não seria justo que questões pessoais fossem desnudadas ao grande público. uma legitimação. principalmente tange as relações com menores. preserva-se a própria dignidade das partes envolvidas. acaba por não compreender que o processo. a reflexão de como ele se torna um entrave no qual. observada através das visitas e idas autorizadas na Vara.4 O “segredo de justiça” é um conceito primordial.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Para fins de pesquisa. segredo e menor. justifica-se a publicidade restrita aos atores do processo. considerando-se que. em casos de cumprimento de medida socioeducativa especificamente. no caso em tela. primeiramente por não haver um reconhecimento. ou melhor. o olhar dos profissionais já imersos no cotidiano. Para aqueles que já fazem tão parte do meio. que é quase absoluta. necessidade de estudar as práticas dos agentes do campo. Antropologia e Cultura Jurídicas pesquisador. em detrimento da regra. o que torna válido e. proferiu o posicionamento acima. como não familiarizado com o método etnográfico. é. ao discorrer sobre o tema. aí. a proteção da criança e do adolescente é regida pelo ECA. 5 O STJ. através do ministro Arnaldo Esteves Lima. tive por um momento a sensação de que a interação que eu procurava era vista como a de uma espiã. pode-se ter algum tipo de acesso a informações. é de que o pesquisador. Porém para seguir uma proposta hibrida (antropológico-jurídica) a resistência ocorre. legítimo aplicar a exceção. o interesse. principalmente quando há a tríade: justiça.Vol. ou “agente fiscalizador”. no qual as relações institucionais funcionam dentro de uma lógica especifica de normatização e por isso é defendido por órgãos como o Superior Tribunal de Justiça que sobre a necessidade desse conceito. manifesta-se da seguinte maneira: “Em Pais casos. mais do que isso. da sua ampla publicidade” 5 4 No Brasil. 44 . o tratamento dado. é o foco. no qual o que se procura é afastar-se do senso comum. em última análise. me senti em um lugar desconfortável. somente com autorização judicial. Em síntese. é o que verdadeiramente. o fazer pesquisa deve ser relacionado à busca de jurisprudências e casos para aprofundamento dogmático.Sociologia. ou desmotivação de quem pesquisa com o tema escolhido. particular. que é o sigilo processual. pois ele serve inclusive como forma de promover o afastamento. 35 . ou ainda. naturalizam-se como o sendo o meio em si. Faz-se importante destacMr o lugMr do “segredo” no meio jurídico. primordialmente. Muito também da desconfiança. a entrada de um novo sujeito gera desconforto e pode ainda serviu. artigo 155). observados os seguintes princípios: IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos. porém para o ordenamento jurídico. O direito de consultar os autos e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e a seus procuradores. autorizados por lei. Acabam por tornar-se um saber jurídico cada vez mais exclusivo. 45 . permitindo o então acesso negado. conversão desta em divórcio. que demonstrar interesse jurídico. disporá sobre o Estatuto da Magistratura. Varas e demais órgãos do sistema jurídico. posto que a continuidade dessas demandas seja considerada nula.Sociologia. de 2004) e Código Processo Civil – (Lei 5869/73) Art. filiação. porém não o conhece ou não dialogMcom o mesmo. Lei complementar.Vol. Quando “rituais” do judiciário 6 Art. bem como de inventário e partilha resultante do desquite.12. no qual o sigilo é um elemento peculiar. O terceiro. pode requerer ao juiz certidão do dispositivo da sentença.que dizem respeito a casamento. a então chegada ao campo. (Constituição Federal. caso não sejam observados os preceitos constitucionais que garantem a proteção dos mesmos. e Código de Processo Civil. artigo 93. Os atos processuais são públicos. (Redação dada pela Lei nº 6. sob pena de nulidade. As práticas já institucionalizadas pelo Direito. e fundamentadas todas as decisões. 35 . em determinados atos. de iniciativa do Supremo Tribunal Federal. de acesso particularizado e distante da sociedade que é submetida ao sistema jurídico. podendo a lei limitar a presença. 7 A demora em iniciar a pesquisa é fruto da burocracia inerente a demandas que envolvam do judiciário uma resposta para fazer pesquisa em algum setor da Administração pública. separação dos cônjuges.2. ou somente a estes.515. em segredo de justiça os processos: I . Antropologia e Cultura Jurídicas Ao inferir tamanha a relevância da publicidade. os atos realizados que tenham crianças ou adolescentes envolvidos.6 Na Vara de Justiça. nesse caso especifico. às próprias partes e a seus advogados. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45.1977) Parágrafo único. não podem ter seguimento caso a proteção do menor não seja uma realidade. IX. 155.O SENTIDO DAS REGRAS EM UMA DESCRIÇÃO ANTROPOLÓGICA O campo do Direito é firmado em uma certeza que impossibilita apresentar como de fato as demandas aparecem. objeto já vivenciado dentro do cotidiano dos Tribunais. São casos. São aspectos tão consolidados e normatizados que ao passo de serem aceitos de forma plena.2.em que o exigir o interesse público Il . 93. como pretexto no qual se gera uma demora significativa para. são básicas e tão diretas para quem “vive no ou do campo”.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . acabam por não apontar como se processa a sistemática do campo. em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. se é possível ou não reconhecê-lo desvinculado da padronização pouco reflexiva. alimentos e guarda de menores. 7 2. todavia. de 26. Correm. mas também pelos atores que indiretamente fazem parte do meio jurídico.3. 2010. tem-se que hã um abismo entre o que é abstrato e o que se refere à prática. no caso tendo a etnografia como o então instrumento usado para realizar a união entre ambas as disciplinas.Sociologia.2. e principalmente. p. Os trabalhos acadêmicos realizados por pesquisadores com formação jurídica na maioria dos casos têm como fonte as doutrinas e jurisprudências e isso é conhecido não só dentro da cultura jurídica. há também um preconceito com o que se quer conhecer e estudar.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . não reproduz o Direito que se realiza no cotidiano forense. por não compreender a importância da pesquisa jurídica no campo. a pesquisa acadêmica que envolve direito está intimamente envolvida com a dogmática. Vai daí esse abismo entre o campo dogmático (abstrato) e o campo empírico (prático)B” (LUPETTI e KANT DE LIMA. com a pesquisa. 2. 35 . como era cada ritual inerente a atendimento especializado de psicólogos e assistentes sociais. “Sobre essas roPinas e práPicas judiciáriMs não s escreQe e o que se escreve por partir de concepções idéias. Antropologia e Cultura Jurídicas não são absorvidos por aqueles que precisam estar em concordância com este. um assistente social. para todos. uma crise de legitimação acaba por ratificar a não socialização dos cidadãos para com a normalização e assim ações mais reflexivas cada vez mais são minimizadas ou afastadas do campo. graduandos e estudiosos. ou melhor. pelos professores.O (PRÉ) CONCEITO E O PRECONCEITO NO CAMPO Como outro desafio dentro do campo. ou um psicólogo. isso porque a prática já está tão engessada que aquele que vem de fora acaba por ser somente mais um que não entende o meio e que não ará diferença para a então legitimação. como por exemplo. ampliada da Antropologia. 8 Refere-se a fazer uma comparação mais genérica. por exemplo. no caso. (LUPETTI e KANT DE LIMA 2010). 16). continuidade da legitimação do judiciário.Vol. Preconceito este alicerçado no meio jurídico por não se conhecer o que é etnografia. 46 . como forma de aproximação com as praticas jurídicas. A Normatização está tão intrinsecamente estatizada que ao entrar como pesquisadora na 2ª Vara acabou por não entender. Para pessoas que possuem como estudo o liame entre o meio jurídico e a Antropologia em sentido lato senso8. na verdade ninguém entendia que não queria ter acesso a nenhuma demanda especifica. 9 O preconceito na minha pesquisa foi sentido quando ao entrar no campo e passar a observa-lo. 35 . enraizada em um pré-conceito no que se desconfia saber o que é a etnografia. e eu. senti como se o que eu queria fosse um algo tão ínfimo. quando os atores do campo e suas atividades nele. Antropologia e Cultura Jurídicas Contudo. mas na verdade não entendem seu uso no Direito. Antropologia. observada e isso faz parte da etnografia. no caso. é a pesquisa. e sim queria entender o funcionamento do local onde todas essas demandas estavam.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . até porque eu mesma o conheci nMfMculdade.Sociologia. não é muito fácil de ser encontrada. posto que a idéia de campo para um graduando. Alguns me diziam que o objeto que definia minha pesquisa ainda precisava sofrer um amadurecimento. diziam que era necessário que ele deveria tornar-se mais especifico. por exemplo. quase indiscutível. ou mais próprio para o estudo. bem como seu perfil e publico no qual ele atende. e ainda estranham o interesse do pesquisador para um assunto não reconhecido como atividade acadêmica. faz parte da pesquisa. contudo a pouca receptividade que se tem dentro desse ambiente. que no inicio eu a cada pessoa que fazia alguma entrevista. ou melhor. acabam por não deixar o espaço mais livre. 9 Revelada no sentido de ser descrita. ou visiPMpara que eu conhecesse o que me “MgradMQM ” o que eu procurava. contudo. e a razão pela qual a etnografia havia despertado meu interesse. eu sentia um olhar de reprovação uma vez que minha origem acadêmica é na área do Direito. os poucos que entendiam que o campo era o que eu queria. de perto. as rotinas envolvidas e casos mais freqüentes. sei também que Midéia de ter alguém “vigiMndo” seu traNM lho e rotina. acreditavam que bastava uma entrevistM. é o objeto do estudo. estes em um primeiro momento não entendem. tinha que explicar não só o meu objeto e sim como e porque o queria. estava trabalhando em outro ramo das Ciências Sociais. a atuação dos profissionais da Vara. ou que era apresentada. Quando era conquistado o direito de explicar o motivo pelo qual eu queria me aproximar do campo. como estes realizavam seu trabalho.Vol. quando o trabalho no campo. pois ao adquirir e colocar em prática essa idéia. Porém depois acabam por ter receio dessa nova pessoa que faz parte do local no qual suas práticas acabam por serem reveladas. é no mínimo desconfortável. pergunta qual o porquê. Sei que esse método não é conhecido pelo meio jurídico. 47 . não conseguem perceber que essa atitude só prejudica o andamento da pesquisa. já em outras pessoas. Vol. é assim também descrita através de diferentes experiências. reflexos e embasamento originalmente acadêmico. institucionalizado. 18). 10 BárNarMI upetti e KanPde I imMem seu artigo de 2010.. mesmo que tácita. porém são essas as conclusões até aqui. é importante ressaltar que o dito anteriormente é produto da observação e vivência no campo etnográfico. 35 . e ao entrarem no campo.”10 (LUPETTI e KANT DE LIMA 2010. sem dúvida. (LUPETTI e KANT DE LIMA 2010). lado a lado. entraves bem peculiares ao meio jurídico.Sociologia. na qual. Sobre isso. é algo sobre o que os juristas membros do Poder Judiciário precisam começar a pensar. Em uma passagem final do artigo de (LUPETTI e KANT DE LIMA 2010). uma vez que a entrada no campo foi devidamente solicitada. p. Não posso afirmar em especifico se as dificuldades nele encontradas ocorrem dessa mesma forma em outros órgãos que prestam serviços jurídicos ao público. “PermiPir-se pesquisar e ser pesquisado e permitir-se criticar e ser criticado academicamente. explicitam um pensamento valioso. do que o pesquisador pretende com o campo. Direito e Antropologia. perceberam que fazer um exercício antropológico é adentrar em um caminho que possui.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . autorizado e legitimo. 3 – POSSIVEIS CONCLUSÕES Para concluir.” citam como referencia a leitura de Berman (2006) e Bourdieu (1987) que anteriormente trataram desse assunto. E quando manifestamos isso não intentamos diminuir ou subjugar o saber dos integrantes desse campo. ma ao contraditório chamar a atenção para o fato de que a inculpação que neles se faz presente desde os bancos universitários acaba por formar operadores resistentes ao fazer jurW dico diferenPe. há uma ótica que muito é valida em se tratando de teoria do Direito e seu reflexo prático. Pessoas como Bárbara Lupetti (2008) e Luiz Eduardo Figueira (2008) ousaram colocar. a existência de paradoxos. Antropologia e Cultura Jurídicas acaba por dificultar o entendimento e aceitação. fora da lógica do contraditório.. intitulado “O desafio de realizar pesquisa empírica no Direito: uma contribuição antropológica. outros pesquisadores tiveram dificuldades semelhantes as minhas. 48 . A observação do contraste existente entre o meio teórico e o prático. Recife/Pernambuco. Antropologia e Cultura Jurídicas “Logo. portanto trazem uma contribuição muito necessária e relevante para o meio jurídico que se faz presente nas comparações que ela alimenta tendo como finalidade um campo mais critico e uma teoria mais relativa. BárbMraB “O desafio de reMlizMr pesquisa empíricM no Direito: uma contribuição antropológicM”B paper Mpresentado no 7ª encontro da ABF P – Associação Brasileira de Ciência Política. na qual os operadores do direito precisam estar alerta. suas práPicas. KANT DE LIMA. KANT DE LIMA.Sociologia. a partir disso. BárbarMB “O desafio de realizar pesquisa empírica no Direito: uma contribuição MntropológicM”B pMper Mpresentado no 7ª encontro da ABF P – Associação Brasileira de Ciência Política. São Leopoldo. Roberto e I UPETTH. São Paulo: SMraiva. Roberto e I UPETTH. 1994 Hn:________. 4 – BIBLIOGRAFIA BERMAN.Vol. Harold J. BárbMraB“O desafio de reMlizMr pesquisa empíricMno Direito: uma contribuição MntropológicM”BpMper Mpresentado no 7ª encontro da ABCP – Associação Brasileira de Ciência Política. Olhar para a realidade vai possibilitar ver em que medida essa distancia se verifica e. Maria Helena. In: _____.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . sem negar nem criminalizar as eventuais discrepâncias. 2006. 22). Luiz Eduardo de Vasconcellos. p. Direito e Revolução: a formação da tradição jurídica ocidental. 04 a 07 de agosto de 2010. Roberto e LUPETTI. Editora da Unisinos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed. Recife/Pernambuco. 49 . 6. insPiPuições e tradições. As pesquisas etnográficas. sob uma perspectiva empírica é o que permitirá perceber. 04 a 07 de agosto de 2010. como inúmeras pesquisas já apontaram que o Direito que se pratica está muito distante do Direito que se idealiza. o que é necessário fazer para alterar o rumo desses caminhos tão dissonantes. pautada na realidade em mudança constante. 2008. pelo contrário. esPudar GireiPo. In: _____.. Campo Intelectual e Projeto Criador.BBLBBB ]” (LUPETTI e KANT DE LIMA. 35 . O Ritual Judiciário do Tribunal do Júri. BOURDIEU. 04 a 07 de agosto de 2010. DINIZ. Compêndio de introdução à Ciência do Direito. Pierre. ed. 2010. Recife/Pernambuco. FIGUEIRA. KANT DE IHMA. engendrar. apresentada junto ao IUPERJ. In: _____. BárbMraB“O desMfio de reMlizMr pesquisa empíricMno Direito: uma contribuição MntropológicM”B paper Mpresentado no 7ª encontro da ABF P – Associação Brasileira de Ciência Política. KANT DE IHMA. LUPETTI BAPTISTA. In: _____. 1999. Antropologia e Cultura Jurídicas FRAGALE FILHO. A interpretação das culturas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 2008. 04 a 07 de agosto de 2010. Malandros. Marginais e Vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. 50 . In: _____. KANT DE LIMA. CERQUEIRA. Recife/Pernambuco. Roberto e I UPETTH. Os Rituais Judiciários e o Princípio da Oralidade: construção da verdade no processo civil brasileiro. (org. Roberto e LUPETTI. Lisboa: Instituto Piaget. 2006. Tese de Doutorado em Sociologia. Ensinar Sociologia Jurídica nas Faculdades de Direito: possibilidades e significados. VARELLA. pp. Bem Julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Roberto. 45-58. BárbMraB“O desMfio de reMlizMr pesquisa empíricMno Direito: uma contribuição MntropológicM”B paper Mpresentado no 7ª encontro da ABF P – Associação Brasileira de Ciência Política.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . BárbMraB “O desafio de reMlizMr pesquisa empíricM no Direito: uma contribuição MntropológicM”B paper Mpresentado no 7ª encontro da ABF P – Associação Brasileira de Ciência Política. In:________ KANT DE LIMA. Daniel Torres de. Recife/Pernambuco. 04 a 07 de agosto de 2010. In: ______. Saber Juridico e Direito à Diferença no Brasil: questões de teoria e método de uma perspectiva comparada. O Impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem. BárbMraB “O desafio de reMlizMr pesquisa empíricM no Direito: uma contribuição MntropológicM”B paper Mpresentado no 7ª encontro da ABF P – Associação Brasileira de Ciência Política. Alex. GARAPON.Vol. GEERTZ. Roberto e LUPETTI.Sociologia. 1978. 04 a 07 de agosto de 2010. 04 a 07 de agosto de 2010. KANT DE IHMA. 1997. Recife/Pernambuco. Campinas: Millennium Editora.). O ensino jurídico em debate: o papel das disciplinas propedêuticas na formação jurídica. 35 . Roberto e I UPETTH. Recife/Pernambuco. 45-66. Clifford. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. Antoine. Bárbara Gomes. Antropologia e Cultura Jurídicas http://www.com. - Acesso em http://www.Acesso 01/03/2013.com.br/v2/dhall.br/arquivos/direito/20092/michelle-cristina-taborda.Acesso em 08/03/2013.org. http://www.publicadireito.jurisway.br/ojs/index. 35 .asp?id_dh=711 .br/artigos/?cod=dc727151e5d55dde . 51 . - http://www. http://revistaseletronicas.pucrs.php/revistapsico/article/viewFile/1397/1097 Acesso em 04/03/2013.pdf 01/03/2013.pdf .unibrasil.plataformademocratica.org/Publicacoes/12685_Cached.Sociologia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol.Acesso em 04/03/2013. Such an approach will be made from the problematic emergence of ethnic categories in urban areas. this research aims to contribute to current debates in science law without intending. 1 Mestre em Direito Ambiental pela UEA. quilombos. however. without having communicated. pelo seu modo específico de Qiver. pesquisadora do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e do projeto de extensão patrimônio cultural da Amazônia. town and urban planning. Ambos os processos tratavam de impor determinada ordem no mesmo espaço físico. apresentar elementos que ajudem a compreender o que se passa no jogo de correlação de forças políticas na construção e apropriação da cidade. Assim sendo. mas almeja.Vol. The objective of this research is to understand how the city is reflected by the law. Antropologia e Cultura Jurídicas QUILOMBOLAS NA CIDADE: DILEMAS DO PLANEJAMENTO URBANO FRENTE AO TERRITÓRIO DO QUILOMBO DO MAICÁ EM SANTARÉM-PA. This is the Master Plan as a legal instrument to order the city space and the emergence of the group Maroon organized the "Association Remnants of Quilombos Arapemã residents Maicá" which. provide a solution to the problem of titling of areas of related communities in this research topic. de início. perceber de que forma o conhecimento produzido nos circuitos da ciência do direito elaboram sua proposta de intervenção social. simplesmente. uma vez que se pretende refletir sobre a forma como o direito e seus estudos têm se defrontado perante tal questão a fim de melhor explicar o que se passa na realidade social. 35 . Maicá. Tal abordagem será feita a partir da problemática do surgimento de categorias étnicas no espaço urbano. contudo. o qual. to understand how the knowledge produced in the circuits of the science of law elaborate its proposal for social intervention.Sociologia. Cumpre fazer. by its specific mode of living. Thus. It should do. um esclarecimento metodológico. a methodological clarification. É. It is. Keywords: Santarém. professora da Universidade Federal do Oeste do Pará. at first.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . O objetivo desta pesquisa é compreender como a cidade é refletida pelo direito. Trata-se da elaboração do Plano Diretor enquanto instrumento jurídico de ordenar o espaço da cidade e o surgimento do grupo quilombola organizado na “Associação de Remanescentes de QuilomNos do Arapemã residentes no Maicá”. questionMpoliticamente MformMcomo o Poder Público municipal pensou a existência do seu território etnicamente configurado. apresentar uma solução para o problema da titulação das áreas das comunidades relacionadas no tema desta investigação. Both processes were trying to impose a certain order on the same physical space. quilombos. the political questions how the municipal government thought the existence of its territory ethnically configured. Maicá. (PROEX/MEC/UFOPA) 52 . Palavras-chave: Santarém. Abstract This text is confronted two distinct processes occurring simultaneously in the city of Santarém. sem que tenham se comunicado. cidade e planejamento urbano. Pará. portanto. QUILOMBOLA IN TOWN: DILEMMAS OF URBAN PLANNING AHEAD OF THE TERRITORY OF QUILOMBO MAICÁ SANTARÉM EM-PA Judith Costa Vieira1 Resumo Neste texto são confrontados dois processos distintos que ocorreram simultaneamente no município de Santarém-Pará. since it is to reflect on how the law and its studies have faced this question before in order to better explain what is going on in social reality . esta pesquisa pretende contribuir nos debates atuais no campo da ciência do direito sem pretender. therefore. but aims simply to display elements that help to understand what happens in the game of correlation of political forces in the construction and ownership of the city. em áreMonde não OM via qualquer “resquício histórico” de ocupação de “Mntigos quilombos” da épocMdMescraQMturaBÉ por esse motivo que o grupo encontra resistência ao seu reconhecimento. A escolha da comunidade de quilombos do Maicá não se fez de maneira aleatória. esses conflitos relacionados ao reconhecimento formal do Quilombo de Maicá expressam as disputas envolvendo os diversos interesses de controle e de ordenação do território ocupado.Sociologia. O trabalho pretendeu focalizar os fatores que contribuem para Mformação de uma “territorialidMde específicM” no interior de um universo supostamente homogêneo que é a cidade. objetivou-se compreender como um modo de vida peculiar molda e dá significado a um território. visto que permite compreender a correlação de força atuante no 53 . pois os primeiros reconhecimentos formais no município ocorreram no ano de 1996. mas por fatores relacionados à constituição do grupo que permitem problematizar o direito e as maneiras comumente usadas para explicar a formação das cidades. o que faz com que os indivíduos transitem da zona rural a urbana sem estabelecer uma rígida distinção entre estes diferentes espaços. Levantar os agentes sociais e os interesses envolvidos na questão adquire uma importância salutar. O grupo social em questão desenvolve um modo peculiar de vida e utiliza o espaço físico de acordo com as relações sociais estabelecidas. o reconhecimento formal do Quilombo do Maicá acabou intensificando o debate acerca do significado de quilombo e de suas implicações na região.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . trata-se de refletir o direito em face das situações empiricamente observadas. Mais precisamente. e ainda encontra resistência e oposição de um grupo de moradores do próprio bairro do Maicá. inclusive no interior do movimento quilombola. No caso.Introdução Este texto articulada a interpretação e análise dos dados levantados na pesquisa de campo realizada na cidade de Santarém-Pará. embora as discussões em torno da categoria quilombo não sejam recentes. No município de Santarém. Na verdade. As discussões têm como cerne o fato de que o grupo identificado como Quilombola do Maicá se encontrar nMcidade de SMntarém.Vol. Antropologia e Cultura Jurídicas 1. e de que forma esse processo contribuí para as reflexões jurídicas. O Poder Público municipal também vem se manifestando contrário ao reconhecimento. O universo de reflexão tomado é a Comunidade dos Remanescentes de Quilombos do Maicá residentes no Arapemã. 35 . Mpesquisa procura compreender Mrelação exisPente entre duas formas distintas de ordenar a apropriação e o uso do território no mesmo espaço. p. os quais possuem posições antagônicas e com diferentes capacidades de ação sobre o espaço. pois este não se reduz a uma noção geográfica. Michel. Portanto. políticos partidários.Vol. este estudo tem somente a pretensão de confrontar o poder normatizador do Estado de definir a organização territorial municipal por meio do Plano Diretor e as demandas de reconhecimento advindas dos quilombolas em Santarém.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . o bairro Pérola do Maicá é tomado neste estudo como espaço social onde é possível reMlizMr uma leitura da “micropolítica” locMl. mas também em espaços mais particularizados onde os agentes estabelecem suas relações sociais. Assim. Enquanto 2 FOUCAULT. A Mnálise desse processo conflitivo. da Associação de Moradores. motivando a disputa pelo controle do bairro. mas denota uma noção jurídico-politico. Nesse sentido. torna-se impossível analisar o espaço social da cidade apenas pelo seu aspecto físico ou pelas definições administrativas. Os grupos alegam à legitimidade de seu interesse e seu projeto de intervenção no espaço.157)2. Antropologia e Cultura Jurídicas espaço social responsável pela formação dos contornos que o bairro ou o universo estudado adquire física e socialmente. 22ª ed. 2006. Ademais. Por isso é necessário fazer uma leitura dos grupos sociais em relação uns com outros a fim de que seja possível perceber como se dá esse processo de organização espacial. no decorrer do processo de embate pelo controle do espaço. 2006. Sob esta perspectiva. tomando como referência de estudo o grupo que se auto-intitula “quilombo urbano”B Em outrMs palavras. inclusive para impor uma “nova” definição territorial que ultrapasse os limites físicos do bairro. Organização e tradução de Roberto Machado. se a cidade pode ser representada como campo social (BOURDIEU.Rio de Janeiro: Edições Graal. Isso vai implicar no exercício efetivo do poder de ordenar o território. 2005) as disputas não se verificam num único plano. É necessário analisá-lo como espaço utilizado pelos diversos agentes sociais. que expressa um tipo de poder exercido sobre ele (FOUCAULT. Ora. não custa lembrar que esse complexo de relações atua como definidor da localização das pessoas e das atividades em um território dado. 54 . resultado da existência simultânea de vários grupos. mesmo que seja reconhecível a existência de outras instâncias de poder disputando o controle pelo bairro em questão3.Sociologia. cada grupo social elabora estratégias e ações que se propagam em uma arena de luta. permite compreender de que forma as relações de poder atuam na definição do espMço da cidade. 35 . Microfísica do Poder. 3 Existem vários interesses privados. Antropologia e Cultura Jurídicas que uma se dá por meio de dispositivos normativos. no entanto. responsáveis pela alegria dos moradores no final da tarde. é estabelecido um paralelo entre dois processos sociais que ocorrem quase que simultaneamente no município de Santarém: a elaboração do plano diretor como instrumento político e jurídico. e a emergência do grupo de quilombos. estabelecer a dicotomia entre essas duas criações legais. Diante disso. Divido em lotes.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . assim como diversos terrenos desocupMdos com “mato alto”B 55 . fundamenta em recortes espaciais autoritários vinculados a uma forma de conceber a cidade. A presença de quadras com ruas transversais e perpendiculares também são comuns. 2. No entanto.Sociologia. a disposição das casas obedece ao padrão geralmente encontrado nas demais cidades brasileiras.Vol. levando em consideração a percepção e a representação realizada pelos próprios quilombolas a respeito desse processo. e com base em dados empíricos levando no período da pesquisa 4. a outra se verifica a partir das relações sociais vivenciadas pelo citado grupo. resultado do processo da expansão urbana da cidade. contribuem para a composição da paisMgem. alguns elementos que contribuem para construção da territorialidade do quilombo de Maicá serão tomados para a análise. neste texto são tratados os aspectos relacionados ao surgimento da categoria sócio-políticM“quilombo urbano”. e por esse motivo sobre eles serão feitas algumas considerações com o intuito de pensar o surgimento da cMtegoria social “quilombo urbano” em SMntarém. 35 . passamos a destacar o surgimento do grupo e a constituição da associação. Presença quilombola em Santarém Num olhar apressado. Vários campos de futebol. Ressalte-se que a reflexão aqui desenvolvida não tem qualquer intenção de descrever detalhadamente o modo de vida do grupo. o bairro Pérola do Maicá se assemelha a tantos outros bairros. Com efeito. representada pela Associação de Remanescentes de Quilombos do Arapemã. cujo objetivo consiste em direcionar a organização do espaço urbano. Para tanto. O seu território constitui em conjunto que abarca parte do espaço considerado legalmente com urbano pela administração municipal e parte na zona da zona rural sem. que também reivindicam o direito de ordenar seu território. residentes no Maicá. O Lago do Maicá localiza-se à margem direita do rio Amazonas. As comunidades são: Murumurutuba. V. Igarapé. dependendo da época do ano5.Açú. há produção de hortaliças que é utilizada e comercializada pelos moradores. Ele faz parte de um complexo ecossistema. não é suficiente para explicitar os processos sociais que vem se desenvolve de forma intensa no bairro. 10 Plano Diretor de Santarém. sofrem pequenas inundações decorrentes da cheia dos igarapés lá existentes e do lago que o circunda. 35 . São Raimundo da Palestina. Urumanduba (Lei municipal nº.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Santa Cruz. Diamantino. que se encontrM adjacente às áreas de várzeas. 18. a simples indicação de que essa área é parte do processo de expansão da área urbana. sobretudo do interior do município. Enquanto que nas áreas consideradas mais fecundas. o NM irro possui áreMs “Mlagadiças” que. composto por ilOM s e uma parte de “terrMfirme”. sobretudo pelas atividades lá desenvolvidas. o bairro Pérola do Maicá guarda características bem específicas. 8 Lei nº.051/06 (Plano Diretor do Municipio de Santarém). 114. Os bairros são: Mararú. 5 Segundo relatos dos entrevistados. Pérola do Maicá circunda a margem do lago do qual retira do nome “Maicá”. o lago do Maicá banha inúmeros locais que recebem o nome de bairros ou comunidades7. 18. Miritituba. Parte dos indivíduos veio das “regiões de várzeMs”. Como se percebe embora a área seja definida como urbana. Areião e São Francisco da Cavada10. Tiningu. Bom Jardim. que tem a pesca artesanal como uma das principais fontes de alimentos.Sociologia.Vol. utilizados neste tópico. 6 56 . Antropologia e Cultura Jurídicas Apesar de encontrar-se em “terra firme”. Informação obtida durante a pesquisa de campo (2007-2008) 7 Os termos bairro e comunidades. se referem aos nomes dados pelas políticas públicas. Nesse sentido. a época das cheias vai de maio a agosto. Perola do Maicá. Em toda essMáreM. bem como de geração de renda. sendo este local o responsável por proporcionMr condições de vida Ú grande parte dos moradores do bairro. As atividades agrícolas. nos quintais das casas e nos terrenos vazios. agropecuárias e de pesca fazem parte do cotidiano dos seus moradores e se encontram imbricadas na teia de relações estabelecidas. art. Maicá. conhecida como “região do Maicá”8. A ocupação do bairro foi realizada por indivíduos provenientes de vários locais da cidade. Ipaupixuna. Ao longo do seu leito e ao redor de seus braços.051/06)9. Jaderlândia. Açaizal. esparramam os bairros e as comunidades. 9 Plano Diretor de Santarém. Santos da Boa Fé. que rodeiam o próprio NM irro6. conforme sua localizMção. assim como é como o Plano Diretor se refere àquelas localidades. percebe-se pequenas criações de galinha e de gado. Modos de vida de grupos sociais deslocados de zonas rurais para o Pérola do Maicá são reproduzidos neste local e novas formas de viver e fazer. Rio de Janeiro: Contra Capa. este tipo de análise da realidade interpreta as diferentes culturas como estágios hierarquizados de um caminho único de civilização11. Rosirene Martins Lima. o iniciador e outras variações antropológicas. 35 . Alfredo Wagner B. “castanhais livres”. A dicotomia não é. 2000. isto porque. Portanto. Antropologia e Cultura Jurídicas A ideia de expansão urbana é fruto de um diagnóstico fatalista que condiciona a vida das pessoas a artifícios exteriores a elas. O guru. associadas ao urbano são realizadas concomitantemente por estes mesmos grupos. pp. 12 BARTH.Vol. isso porque a paisagem do bairro é criada cotidianamente por aqueles que fazem dessa área seu espaço de vida. por meio de um estudo empírico. O rural no Urbano: Uma análise do processo de produção do espaço urbano de Imperatriz. Os grupos étnicos e suas fronteiras. 2006. 11 Para uma leitura que relativa. para contrariar esse tipo de imaginário evolutivo é preciso lançar mão de instrumentos teóricos . 57 . Fredrik. Além do mais. à noção de bairro apresenta os mesmos problemas.organizativos bem como suas demandas não se encontram adstritas aos aspectos formais 13. no bairro Pérola do Maicá a separação entre área urbana e rural não é um dado facilmente apreciável. que organizam e classificam os espaços a sua forma. 2000)12 e não o dispositivo legal que o faz formalmente. O afastamento dessas noções se faz necessário para se compreender à dinâmica cada vez mais presente nas cidades brasileiras desencadeadas pela emergência dos grupos étnicos cujos critérios políticos .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . No caso. já que seu conteúdo está referido a forma. 2008. 25-67. Portanto. nem mesmo a noção de bairro é suficiente para explicar as disputas identitárias e territoriais que transformam a cidade de Santarém em campo político. é o componente social que promove e “ergue” as barreiras entre os diferentes modos de vida (BARTH. “babaçuais livres”. Negligenciado trajetórias históricas peculiares. sem levar em consideração os processos sociais existentes. Terras de quilombo. de.Sociologia. 13 ALMEIDA. desconsiderando qualquer participação ativa dos sujeitos na construção de suas respectivas realidades.AM. geralmente. a ideia de que na cidade há apenas um modo de viver. nesse quadro. Manaus: PPGSCA-UFAM. faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. O bairro é uma noção tomada pela administração para explicitar um determinado espaço urbano delimitado. terras indígenas. Ética.metodológicos que procurem compreender a essência da construção social do espaço dando ênfase aos sujeitos. suficiente para explicar a formação e os conflitos que fazem do bairro objeto de disputa. ver: LIMA. em refletir sobre essas situações que não podem ser “congeladMs” nos dispositivos legMis.25) A “territorialidade específicM” representMo espaço social onde o grupo estabelece suas “práticMs sociais”BMoldM-se de acordo com a forma. é entendido como espaço de controle estatal. (ALMEIDA. evidenciando. As territorialidades específicas [.Sociologia. 2006. de. que disputam o domínio sobre o mesmo território.. “castanhais livres”. as escolhas e estratégias destes para superar as adversidades a si impostas contribuem para as delimitações territoriais do espaço. o grupo aceita pessoas e famílias moradoras de outros bairros da cidade. Isso quer dizer que as formações étnicas.] podem ser consideradas. Terras de quilombo. edificando um território étnico continuo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . também. Alfredo Wagner B. “babaçuais livres”. 58 . 35 . As relações de antagonismos. têm um caráter situacional.. e na outra como espaço sociMl no qual um grupo específico estabelece suas “práticMs sociais”BA noção de “territorialidade específicM” tomMdMemprestada de Almeida nos Muxilia Muma melhor compreensão do objeto de estudo. formando o que Almeida designa como “territorialidades específicMs”B Aqui reside a dificuldade do direito. como cada grupo vai se apropriando de parcelas físicas da cidade e das zonas adjacentes e. Antropologia e Cultura Jurídicas Esse distanciamento possibilita compreender quais os componentes que explicam o surgimento do “quilombolMurbano”14. diante da relação de força estabelecida com outros grupos. 15 ALMEIDA. Manaus: PPGSCA-UFAM.Vol. terras indígenas. além de desenvolver um modo de vida que se expressa entre o rural e o urbano sem estabelecer diferenças entre estas duas categorias. Apesar deste quilombo ter a maioria dos membros residente no bairro Pérola do Maicá. como resultantes de diferentes processos sociais de territorialização e como delimitando dinamicamente terras de pertencimento coletivo que convergem para um território. em Santarém. 15 p. 2006. Verifica-se que o território possui dois significados diametralmente opostos neste trabalho: numa primeira acepção. como no caso aqui estudado. desse modo o caráter dinâmico e específico das formações territoriais. faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. o que significa que somente é possível compreender dada formação territorial dentro da experiência histórica do grupo. A noção de territorialidades específicas como bem explicita o autor serve para: “nomear as delimitações físicas de determinadas unidades sociais que compõem os meandros de territórios etnicamente configurados. 14 O uso do adjetivo urbano é utilizado pelo próprio grupo para fazer referencia a si e a sua especificidade em relação aos outros grupos quilombolas de Santarém. portanto. para não haver dúvida da sua condição de quilombola. científicos. bem como demonstra compreensão das transformações semânticas pelas quais o conceito de quilombo vinha passado nos círculos jurídicos e. além de demonstrar a lógica que permeia as ações reivindicativas dos integrantes da Associação. A denominação do grupo do Maicá sugere que os remanescentes de quilombos que hoje residem no bairro são originários do Quilombo de Arapemã. Contudo. dúvidas quanto à condição de comunidade quilombola. Portanto. a escolha do nome mais do que uma confusão reflete uma aguçada percepção do momento político pelo qual passava o movimento quilombola em Santarém. reflete uma maneira de pensar seu território como algo presente em dos espaços. O nome escolhido para a associação.Vol. cuja história e o modo de vida do presente são compartilhados pelos moradores de ambos os lugares e que as divisões territoriais administrativas cuidaram de cingir. o seu reconhecimento enquanto sujeitos de direitos. que podem ser explicitadas nos seguintes termos: há uma grande resistência em se proceder ao reconhecimento de grupos identitários no meio urbano. bem como a titulação das áreas que vivem no bairro Pérola do Maicá. Antropologia e Cultura Jurídicas 3.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Quem pode ser quilombo? Em outubro de 2006. quanto a uma forma de pensar a categoria quilombo. Enquanto sujeitos de direito querem ter voz para decidir sua própria vida. onde não há mais. confuso à primeira vista. a comunidade reata sua história com a comunidade do Arapemã. que procura identificar os direitos desses grupos a partir das seguintes situações: local e passado longínquo. que se encontra em Maicá.Sociologia. Essa resistência tem como causa tanto uma tradição teórica que procura descrever os indivíduos que vivem na cidade como um todo harmonioso e homogêneo. a Fundação Cultural Palmares reconhece como quilombola a Comunidade de Remanescente de Quilombo do Arapemã. A necessidade de reafirmação do lugar de origem se deve a circunstâncias bastante claras. indica uma escolha tão lúcida quanto articulada aos interesses desse grupo. 35 . Entre as demandas do presente. pois como poderia um grupo se dizer pertencer a um lugar – Arapemã. Essa escolha. naquele momento. É interessante observar que a resistência pode ser verificada em diversos espaços.residir em outro Maicá. principalmente. inclusive no interior do próprio 59 . O discurso. vinculaQM m Mideia de que apenas os afrodescendentes teriam direitos. a formação do movimento quilombola em Santarém de início traz uma busca pela “origem” das comunidades. isso porque a ocupação do bairro Pérola do Maicá é recente. ÍM verdade. somente poderia reivindicar direitos culturais. acreditava-se que aquele que vivia na cidade era afrodescendente. No caso. 18 Trabalho de campo. entendiam como quilombos somente aqueles grupos que estivessem vivendo nas terras que foram quilombos no passado. À época. essMideia de origem passa a significar mais as relações sociais e a reação aos conflitos por eles vivenciados. Assim. Trabalho de campo. mas não territoriais. para os moradores do Maicá não era possível reconstruir a história de seus antepassados no espaço ocupados por eles. comumente feito pela Federação que congrega as associações das comunidades quilombolas de Santarém16 entendia quilombo como a terra trabalhada pelos presentes e pelos antepassados fazia sentido para as demais comunidades. 17 60 . onde o processo de titulMção seriM“impossível de fazer” 17 . Antropologia e Cultura Jurídicas movimento quilombola de Santarém. o que inviabilizava. pois tinham a convicção que os direitos do grupo estavam vinculados M“terra”BAdemais. embora fosse parente daqueles que moravam no quilombo. No entanto. principalmente pelo deslocamento dos quilombolas provenientes do Arapemã e de outras ilhas da várzea próximas ao Arapemã. Além dessa situação. outro fator que dificultava era o fato de que. as tentativas de construir o que seria o território originário também se fazem presentes quando os grupos procuram relatar a presença de seus antepassados no mesmo território. Por esse motivo. haja vista que as casas daqueles que se auto-intitulavam quilombolas não se dispunham de maneira contínua pelo bairro. a demarcação e a regularização da terra. desencadeada.Vol. o movimento quilombola.Sociologia. segundo as lideranças da Federação18. do que propriamente a ideia de resquícios de um quilombo enquanto conglomerado de negros fugidos do sistema escravocrata. mas não o fazia para o grupo do Maicá. Isto porque este grupo estava reivindicando direito territoriais em terras dMcidade. 35 . assim como a associação do Arapemã entendiam que aquele que tivesse desmanchado sua casa do 16 Federação das Associações Quilombolas de Santarém.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Ou seja. que atrelava o direito da comunidade à imemoralidade da ocupação da terra. podendo somente participar do movimento negro. os quilombos é aqui. 35 .Sociologia. pois o Arapemã não demonstrava qualquer sinal de aceitação de outra associação que se dizia do Arapemã. Explica como se definia e como se define um quilombola: Não. Porém. tais quilombolas. para assegurar seus 19 O nome do entrevistado não foi colocado a pedido do mesmo. Antropologia e Cultura Jurídicas Arapemã para mudar-se definitivamente para o bairro Pérola do Maicá não era mais quilombola e não poderia por isso estar associado em qualquer associação que congregava os quilombolas. Portanto. uma vez filiados na Associação Quilombola do Arapemã. surgiu a necessidade do movimento quilombola em Santarém repensar seu discurso e sua definição de quilombola para legitimar e fortalecer a luta dos quilombolas do Maicá. (Giovane. a fim de contemplar o novo grupo que surgia. mesmo não contando ainda com o apoio do movimento quilombola. Nesse sentido.Vol. assim que agente entende . Eles temiam por em dúvida seu próprio reconhecimento. Assim que agente aprendeu. sendo que esses servem para afastar a ideia inicial que se encontrava preso ao tempo imemorial e a um território fixo. Portanto. A fala deste quilombola serve para explicitar bem as mudanças ocorridas nesse processo. novos elementos são acrescentados à categoria quilombo. além de que a Associação dos Quilombolas do Maicá conturbava arranjos organizacionais anteriores. Então lá eles são afrodescendentes dos quilombos. Eles passam a ter os mesmos direitos dos outros quilombolas que haviam permanecido no Arapemã. Expliquemos melhor: sendo a região do Arapemã uma região de várzea muito próxima à cidade. vários quilombolas de lá possuem casas em Santarém. então aqui e os quilombolas porque tão nos quilombos. que se opera em Santarém. lá no Maicá. 19 morador do Arapemã.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Este ato formal do governo representa o reconhecimento daqueles que viviam no Maicá. 61 . a Associação dos Quilombolas do Maicá consegue o reconhecimento formal da Fundação Palmares. até porque no Maicá não existia os quilombos. Foi necessário reformular a maneira como era compreendida a categoria quilombo no interior do próprio movimento. entrevista janeiro de 2008) As discussões que se operam no plano discursivo conceitual acerca do significado de quilombo irradiam seus reflexos para as disputas territoriais. Insta observar que era na Associação do Arapemã que os quilombolas do Maicá encontravam mais resistências ao seu reconhecimento. porque não existia os quilombos lá. Não existiam os quilombos lá. principalmente nas zonas do Uruará e Pérola do Maicá 20 . Iniciado o processo de reconhecimento das comunidades quilombolas. como: projetos de saúde. Entretanto. perdiam o direito ao recebimento desse benefício. ao surgir outra associação no bairro. também. Para entender melhor esta questão. que até aquele momento eram oito: Arapemã.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . abre-se todo um processo de discussão que envolve os critérios para recebimento das cestas. o benefício continuava ser recebido por aquelas famílias que tinham casa tanto no Maicá quanto no Arapemã. Os critérios estavam atrelados ao lugar e não aos indivíduos. a Associação de Quilombolas do Bairro Pérola do Maicá surgiu de um desentendimento entre associação do Arapemã e alguns membros do Maicá. Murumurutuba. escola diferenciada e cestas básicas. Tiningu e Valentina do Ituqui. consequentemente. em Santarém. 35 . pois estes últimos não podendo ser contemplados com políticas dirigidas aos membros da associação do Arapemã. Além disso. novos contornos na questão quilombola vão sendo delineados. 62 . mesmo tendo lotes ainda nesta localidade. Mururu. Porém. pois se temia o enfraquecimento da associação de moradores. órgão responsável pela titulação das terras quilombolas. Seus processos de luta e resistência cultural vão sendo visibilizados na composição do seu discurso político e outras demandas sociais vão contribuindo para a formação do grupo político de quilombolas urbanos.Sociologia. filiam-se na Associação de Moradores do bairro Pérola do Maicá. A política assistencial do Instituto Nacional de Reforma Agrária. já que na impossibilidade dos quilombolas do Maicá receberem as cestas básicas quando saiam do Arapemã para morarem na cidade.Vol. Antropologia e Cultura Jurídicas direitos aos lotes da zona urbana. têm início. aquelas famílias que desmancharam suas casas e se mudaram para o Maíca. Saracura. um movimento de assistência a estas comunidades com políticas públicas especiais.INCRA. verifica-se certa resistência. Portanto. vale a pena tecer algumas considerações sobre o processo de formação do grupo. as cestas básicas eram distribuídas para aquelas famílias que se encontravam nas áreas dos quilombos. para um discurso onde os quilombolas do Maicá passam a se identificar pelo que são hoje. assim. e há. muito embora. Bom Jardim. Em outras palavras. fossem provenientes do Arapemã. a desvinculação do discurso de origem. de distribuir cestas básicas para as comunidades incentiva a construção da identidade coletiva quilombola do Maíca. resolver constituir sua própria entidade representativa. A divisão foi feita dentro dessa metragem. e porque têm os transportes. (Morador do Arapemã. Antropologia e Cultura Jurídicas Importa fazer um esclarecimento preliminar sobre esse fato. alguns resolvem se mudar definitivamente para o Maicá. 63 . porque era pra usar pra cá. a fim de permanecerem um período21. isso aqui tá limitadoA” Isso aqui é meu é do fulano. entrevista concedida em 2008) Esses fatores MliMdos Ú intensificação do fenômeno das “terras cMídas” no Arapemã fizeram com que inúmeros quilombolas do Arapemã construíssem suas casas no Maicá. enquanto a segunda possui casa nos dois lugares. Então tudo isso veio da. agente podia usar ela pra gente fazer nossas moradias. no Arapemã vinha ocorrendo uma série de conflitos territoriais envolvendo criadores de gMdo e “tiradores de NM rro”. já deram as terras lá. O Arapemã encontra-se localizado em área de várzea. “Não. mas que estavam em Santarém. ai fizemos o movimento de trabalho várias semanas de trabalho e conseguimos limpar a terra. ela também tem problema. A maior parte não.Vol. consequentemente. entrevista concedida em janeiro de 2008). sendo que o primeiro possui apenas um terreno no Maicá. É através da associação. passa por um longo período de cheias. então nós tivemos dificuldade de ficar aqui. Alguns não! Mas outros sim! Não queriam nem que tirasse lenha daquele lado. nossas casas. ai eu fui lá com seu Aurélio. Alguns anos atrás começou a terra caída. ai ele me disse: Ah! Vocês já perderam que ali no Uruará era mais perto pra vocês. Na época nos éramos mais de trinta famílias. Porém. E também tem a questão da pesca. Então apareceu algumas informações que lá no Maicá teria essa terra devoluto que não tinha ninguém habitando dentro. como relatam esses dois quilombolas do Arapemã. além disso. tinha uma invasão aqui.. Os que passaram a morar ai. ai surgiu a ideia de a gente mudar. Ai então vocês não podem pescar lá.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que Mdquiriam MlgumMs posses no ArMpemã. A ida para o Maicá ocorreu da seguinte maneira. mas tem uma invasão lá no Maicá. a área e depois das áreas limpas foi divididas entre os que estavam precisando. alguns começaram botar regra para que nos daqui não pudesse pescar nos lagos que ficam daquele lado. de dez metros para cada uma pessoa com trinta de fundo.Sociologia. reunindo Arapemã e alguns moradores também do Arapemã. porque lá é do outro lado!Ficou uma situação complicada.. Eu comprei é meu quem manda aqui sou eu. assim um emposso para que agente pudesse tá reivindicando nosso direito pra que agente pudesse usar. Quando perguntado sobre quando porque começou o processo de disputa pela regularização fundiária do Arapemã esse quilombola assim descreve a presença dos novos moradores. Ai eu soube que estavam dando. Tira se pau pra cá. Uns sim outros não. Então foi nessa questão e desse jeito que foi adquirido a minha terra e a terra de vários companheiros que estão lá ate hoje no Maicá. 35 . então fomos pra lá em movimento trabalhar. (Donisete. ai ele 21 O período das cheias de maio à agosto. mas não importa que agora não tem mais nada longe. Era uma invasão. cair muito aqui no Arapemã. O plano que eu tenho é. pois estes não poderiam gozar da mesma condição e consequentemente.Que vazia é várzea! Então ela pode ter hoje e amanhã pode não ter. tudo bem ai agente viemos pra limpar ainda os terrenos.. viemos limpamos. dos mesmos benefícios. morador do Arapemã. bem como melhores possibilidades de assistência à saúde. Contudo. ai ele me trousse aqui. entrevista concedida em janeiro de 2008). Então meu plano. representa também a possibilidade de passar um inverno rigoroso que alaga as casas.. Porque se eu não for morar lá um dia. mas se chama terra firme é um local mais seguro. Nota-se. um lote em “terra firme” permite mais que uma segurança para o futuro. Antropologia e Cultura Jurídicas disse é se você quiser nos vamos lá. Algumas famílias. representa também a possibilidade de buscar melhores condições de vida. Isso aqui tudo era mato não tinha casa. meu pensamento é manter lá. mas o infelizmente não são todos que têm. rompendo laços identitários que existiam anteriormente. ainda que possuíssem casa no Maicá podiam ser considerados quilombos com todos os direitos legais que essa condição proporciona. pois este tipo de recorte espacial foi o responsável que permitiu reclassificar e classificar os indivíduos.Sociologia. no decorrer do processo de regularização fundiária das terras do Arapemã e na distribuição das políticas assistencialistas conforme já falado. era seu Alencar. pra fazer a distribuição dos terrenos. (Dona Graça. e fazer a nossa moradia e quem sabe um dia agente possa ir morar definitivamente pra lá. 35 . preferiram “segurar” seus lotes. porque eles tão estudando. (Donisete. O mesmo não acontecia com aqueles que se mudaram para o Maicá. Sim ai ele veio marcou a data.. 4. muito embora possuam ainda terrenos no Arapemã. dependendo de como ficar aqui o processo. tem que mudar. AdemMis. os quilombolas se organizaram e passaram a dividir a área em lotes. estão nesse processo de estudo. ficou corroborado o autoritarismos do fracionamento autoritário do território no município.. nem a terra firme não sei se um dia vai cair ou não vai. no sentido de se precMQer do fenômeno das “terras cMídas”. eu com elas viemos. mas eu quero que fique pra meus filhos. que na ida para o bairro Pérola do Maicá. o dia que era pra gente vim. mesmo Mssim. E aqui você sabe como é a questão da água e também a questão da escola. ai agente da dez por trinta. Essa ruptura se explica do seguinte modo: enquanto aqueles que permaneciam no Arapemã. e agente podendo ter o local mais seguro e muito melhor pra toda pessoa que mora na várzea. inclusive o outro já vai fazer a quinta serie esse ano. ai tinha esse lote aqui. entrevista realizada em 2008).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. Quilombos do Maicá: A construção da identidade coletiva 64 . zelar pelo que é meu. estar lá. que tem se intensificMdo e dos conflitos instMlados na região do ArMpemã. e com certeza se caso for preciso nos temos pra onde se mudar. vamos falar com as pessoas que são vizinhos da terra. muito embora não tivessem a intenção de viver definitiQM mente em “terrMfirme”. principalmente para os filhos que teriam um lugMr para “ficMr na cidade” e Mssim poder estudar. Como já dito. em alguns casos. criação de gado. 65 . o quilombo do Maicá é composto por famílias provenientes do Arapemã. Tais práticas produtivas. retirada de esterco. muito embora residentes em bairros distintos na cidade. porém nem todas as pessoas inscritas na Associação Quilombola do Maicá e que se auto-intitulam quilombolas residem efetivamente no Maicá. na medida em que compartilham o mesmo modo de vida. Tiração de barro. Contudo. a pesquisa de campo pode identificar um conjunto relacionado. Este modo de vidMse expressa no desenvolvimento das mesmas “práticMs sociMis”. residir não significa apenas morar fisicamente. 35 . de criar e de viver. pretendem reforçar e. em lotes próprios. permite a diferenciação do grupo no meio social. Assim. por meio da Associação. pelo fato de que podem ser modificadas livremente pelo grupo quando houver necessidade pela imposição das contingências históricas. construídas sob condições históricas e culturais bastante peculiar. Extrativismo.Vol. mas guarda uma série de significados que implica na existência de laços sociais profundos no Arapemã. Dentre essas práticas. criação de porco. Mais do que 22 Durante a pesquisa conseguir localizar três famílias. Uma parte das famílias22 reside nos limítrofes ao bairro Perola do Maicá como Uruará e Área Verde. as práticas sociais constituem um dos elementos distintivos deste grupo frente a outros. Tais práticas se constituem num conjunto de regras. criação e galinha. guardam grande flexibilidade. Assim. reconstruir os laços de afinidade e solidariedade que existiam quando moravam ainda no Arapemã. Antropologia e Cultura Jurídicas Este tópico tem a finalidade de descrever como vivem os quilombolas de Maicá e quais fatores constituem para a unidade do grupo. A aceitação de pessoas que residem em outros bairros da cidade dá-se em razão de que o critério eleito pelo grupo para definir o direito de fazer parte grupo é o fato de ter residir no Arapemã. sobretudo. além permitir visualizar um modo de vida comum do grupo. que se desenvolvem no interior de uma imbricada rede de atividades. Empreita na roça.Sociologia. buscam se reaproximar.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Os quilombolas do Maicá. Ressalte-se que. instituições sociais e modos de fazer. cultivo de hortaliças e trabalho doméstico no centro da cidade. as quais são distribuídas entre os diversos membros da família: Foram identificadas as seguintes atividades laborais e produtivas exercidas pelos quilombolas do Maicá Pesca artesanal. as práticas produtivas. Antropologia e Cultura Jurídicas isso.Vol. como: ervas para a confecção do chá. que são utilizados nos pequenos tratamentos. Assim. Os conflitos vivenciados na cidade fazem com que esses grupos se utilizem de novas estratégias para garantirem a sua reprodução física e cultural. mas que. a pesca ainda continua sendo a principal atividade praticada pelos membros do grupo. mesmo morando em área urbana. as atividades são múltiplas não havendo família que pratique qualquer uma delas isoladamente. 25 São “Parentes de conQívio” (DonMPaulina. esporadicamente. 23 Entrevista concedida em janeiro de 2008. uma das entrevistadas23. destacaram a importância da pesca artesanal para complemento de renda. fonte de alimentação e. Outro elemento observado é a realização de troca de produtos entre os membros. em pequenos grupos de duas ou três pessoMs sempre Mlternadas entre Mqueles que são “parentes do ArMpemã” 25. o grupo desenvolve atividades que são tidas como rurais. Importa chamar atenção. melancia. Conforme as observações de campo. para distração e lazer.Sociologia. outros que possuem terrenos no Arapemã e são associados lá. articulada no sentido de auxiliar algum membro do grupo. o marido trabalha como contratado na roça. porém. o fato de que as atividades não são as mesmas que se desenvolviam no Arapemã24B Elas são “novas Mtividades”. compreendendo os entrevistados e aqueles com quem somente foi estabelecida uma conversa informal. Assim. Outro dado importante relacionado às atividades é que. estão no Maicá ou em casa de parentes ou em casa própria. jerimum. As práticas se complementam e se diversificam entre os membros das famílias. 35 . além de hortaliças e criação de gado. Porém. frutas. as pescarias são realizadas. os filhos homens pescam e fazem pequenos trabalhos de empreita nas colônias e outros trabalhos ocasionais. 24 66 . por exemplo. destaque-se a produção de milho. Esse procedimento alimenta um fortalecimento dos laços e uma rede solidariedade. quase sempre. essas atividades ajudam a compreender também quais as características e os limites da territorialidade formada pelo grupo. macaxeira. No Arapemã a atividade principal é a pesca. Todos. na casa de Olgarina. que se encontra em dificuldade. pois podem ser outros moradores que não se associaram. terem se deslocado para a cidade. entreQisPMconcedidMem janeiro de 2008) que podem ou não fazer parte formal do grupo do Arapemã. tais como: a extração de pequenos frutos. na medida em que Ms famíliMs buscMm novas estratégias em face da situação. mesmo que novas atividades tenham sido incorporadas. verduras entre outros.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . a empreitada na colônia e pequenos trabalhos domésticos. p.10). 3ª ed. 2002. houve um fortalecimento do grupo que permaneceu. ou seja. Rio de janeiro.). As histórias contêm tradições antigas as quais são ressignificadas ou como nas palavras de HOBSBAWM (2002) 26 . contam o passado de maneira diversa mais voltada aos interesses presentes. Antropologia e Cultura Jurídicas Tudo isso serve para confirmar que. M“territorialidade específicM” dos quilombos do Maicá somente pode ser observada a partir da compreensão da abrangência da rede de relações sociais que estes estabelecem entre seus membros que se encontram dispersos pela cidade. Paz e Terra. HOBSBAWM utiliza o termo para explicar o fato de que as práticas rituais e simbólicMs possuem uma historicidade e uma função. Ms tradições “visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição. Histórias “do tempo do ArMpemã” são reavivadas e reconstruídas na memória coletiva do grupo. por outro lado. ganhando visibilidade política começa a recontar uma história comum como argumento de legitimidade da sua luta. 2002. Portanto. Eric. HOBSBAWM. as tradições têm a pretensão de reavivá-lo na memória coletiva por meio da repetição de hábitos. sem necessariamente repeti-lo. Terence (Orgs. 67 . Sobre o Mdjetivo “inventadas”.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A festa de São Tomé: elementos para pensar a tradição enquanto instrumento constitutivo da identidade Se por um lado os conflitos havidos no interior do bairro fizeram muitas pessoas se afastarem das reuniões da associação quilombola. Quer dizer.10). tampouco aos bairros administrativamente delimitados. não deve ser feitos juízos apressados tendentes a desqualificar essa idéia de tradição. 5. MutomMticMmente. pois a invenção de uma tradição tem finalidades práticas e políticas conforme assevera o autor e não um ato de puro acaso.9). 2002. Este. As tradições são criadas como uma maneira de reagir a situações novas através da referência a situações que ocorreram no passado ou são formulações de um novo passado que é contado através do surgimento de uma tradição (HOBSBAWM. porém. o território quilombola em tese não está adstrito à zona urbana ou a zona rural do município. 26 HOBSBAWM. p.Sociologia. são inventadas. Significa dizer. 35 . 2002. Introdução: A Invenção das Tradições. umMcontinuidade em relação ao passado” (HOBSBAWM. mas formam um território único e continuo que emana um feixe de relações sociais. p. Erik. In. (Tradução Carla Cardim Cavalcante). o que implica. Relembradas e reelaboradas apesar de conterem uma continuidade artificial com o passado (HOBSBAWM. A Invenção das Tradições.Vol. RANGER. (Dona Graça. houve uma festa lá. onde ocorrem as reuniões. também há um resgate físico da imagem do Santo que passa a ter seu lugar reservado na sede da Associação. 29 Essa frase foi expressa em tom jocoso pela entrevistada. Nesse primeiro dia levantavam o mastro de frutas. domingo tinha um almoço dado pela comunidade e de noite ainda tinha outra festa e domingo encerava com a derrubada do mastro na segunda feira. mas mesmo assim eles fizeram a festa lá e fizeram uma festa aqui. Houve duas festas pro São Tomé. porém ao pronunciá-la conta a sua história e a dos seus companheiros. as orações e até mesmo as comemorações. 35 . Os quilombolas do Pérola do Maicá. a leitura que se faz é que eles foram despejados do Arapemã. com oito dias. que os festejos de São Tomé começam a fazer parte do calendário da Associação do MaicáBSão Tomé é um dos “SMntos” do ArMpemã.Sociologia. no sábado antes eles levantavam o mastro com frutas ai ficavam fazendo a novena com esse santo. Desse modo. após construírem a sede da associação resolvem fazer uma comemorMção e MimMgem do santo é buscMda no ArMpemã. pelos conflitos sociais lá OMQ idos e. É neste contexto. no outro domingo faziam a festa.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . E São Tomé. a menina ficava fazendo a festa lá. Ela serve para relembrar o passado compartilhado por eles. como motivo mais QisíQel. pois o lugar dMcasM“dMfMmília do Santo” sofreu erosão como muitos dos lugares onde ficavam as casas dos presentes no momento da entrevista e que riram da brincadeira de Dona Zenaide. é um SMnto de “famíliM” 28 . pelas terrMs caídas. Antropologia e Cultura Jurídicas portanto. a qual 27 O Santo Oficial do Arapemã é Santa Ana.Vol. e houve uma festa aqui. pois cria um elo entre os integrantes do grupo. isso por que: “Mté o SMnto foi despejado” (Gona Zenaide. entrevista janeiro de 2008). que o surgimento de uma tradição é uma atitude voltada para o presente. a Raimunda do Ita. entrevista janeiro de 2008) A partir de então a imagem é colocada na sede da associação toda vez que irá acontecer uma reunião. Portanto há um resgate do Santo. entrevista concedida em janeiro de 2008) 29 . Família Vasconcelos. no outro sábado seguinte que era a festa. faz procissão. o grupo faz referência a sua origem. As festas para São Tomé são recontadas com saudosismos pelos moradores: Era assim. um resgate simbólico da festa e da adoração do Santo e. A imagem do Santo representa o grupo quilombola do Maicá. Ao trazer o Santo para sua sede e realizar para ele uma festa. acho que ele ficou muito alegre. Tinha a festa dançante no sábado. porém fundamentada no passado. Os festejos do Santo também representam a continuidade com o Arapemã. 28 68 . Esse ano até houve um negócio de contra tempo. ai toda noite tinha uma ladainha o pessoal rezavam. agora no Perola do Maicá. mas sempre foram realizados festejos nos quais toda comunidade participava. não é o SMnto oficial 27. já que todos participavam das festas de São Tomé no Arapemã. reza e institui uma nova data de comemoração da festa do Santo. O grupo organiza os festejos. (Dona Graça. não só o passado é acionado nesse processo de construção da identidade coletiva. inclusive denunciando as formas de opressão por eles vividas. 30 As Disputas territoriais do Maicá se dão em torno da regularização dos lotes de cada família. O fato de deixarem as suas terras. mas também novos símbolos são criados com a mesma finalidade. pois pretendem demonstrar que “são filhos do ArMpemã” e que forMm obrigMdos MdeixMr sua PerrM. Mlém de colocMr o grupo como um novo sujeito de direito. por exemplo. Antropologia e Cultura Jurídicas serve parM comprovar que é quilombo. a tradição dos festejos de São Tomé é um dado importante no processo de mobilização e de construção da identidade. constitui e representa a identidade coletiva do grupo. a Associação de Remanescentes do Arapemã residentes no Maicá e a Associação de moradores do Bairro Pérola do Maicá.Sociologia. Os quilombolas do Maicá reclamam pelo direito de ter voz política. Msair do “Mntigo quilombo”. no sentido de reivindicar direitos concedidos Moutros “dos seus”. Com efeito. 35 . Portanto. contando o passado por meio dos festejos de São Tomé ganha um sentido político e social bem especificado. 69 . É possível então dizer que Mconstrução dMidentidade coletiva “Remanescentes de Quilombos do ArMpemã residentes no Maicá” tem cMusas e consequências políticas. ter nascido no Arapemã significa ter os mesmos direitos daqueles que estão lá ainda. que não são as mesmas dos moradores do Arapemã.Vol. onde o processo de titulação já se encontra bem adiantado para um lugar onde pairam as incertezas quanto à regularização dos seus lotes30. pois isso destaca a sua própria condição de vida peculiar e os conflitos por eles vivenciados. Se por um lado é interessante para o grupo afirmar sua origem no Arapemã. pois isso comprovaria suas raízes quilombolas. Inclusive isso é tema de fervorosos debates entre a Federação das Associações Quilombolas. Recriar os laços com o Arapemã. da bandeira elaborada pelo grupo. é igualmente interessante colocar-se como distinto com um grupo quilombola formado por aqueles que vivem na cidade. não significa o fato de terem deixados de serem quilombolas. já que as disposições das casas dos membros do grupo não se encontram em área contígua. Contudo. há um processo de aproximação e distanciamento do Arapemã.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . qual seja a de criar uma representação mental que ateste sua existência enquanto grupo tanto pMrMos “de dentro” quando para os “de forM”BÉ o cMso. Desse modo. Vol. Pierre. mas é o primeiro a ter a própria bandeira. O prazo para a que fosse elaborada a lei municipal 31 BOURDIEU. mas tão somente será realizado um levantamento quanto ao tipo de encaminhamentos vêm sendo realizados pelos órgãos públicos em matéria de ordenamento territorial através do Plano Diretor e a relação deste com a realidade territorial construída pelo grupo quilombola do Maicá. BOURDIEU. 4). p. A atualização do sistema opressor e das condições de vida implica uma releitura da rebeldia com novas formas de atuar politicamente contra a opressão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. “sempre traNMlhou parMMriquezMdesse pMís” 32. 6. pois o negro. Assim. 70 . O significado da bandeira enquanto instrumento estratégico na luta de reconhecimento traz à tona a criação de uma imagem de si que o grupo pretende repassar para os outros (BOURDIEU.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 32 Dileudo em entrevista (janeiro de 2008). o quilombo e o Planejamento Urbano em Santarém: metodologia da imposição O escopo deste tópico é analisar o tratamento dispensado pela Política Municipal aos grupos étnicos existentes no seu território. Uma bandeira atesta a existência do grupo e a figura de um escravo se libertando dos grilhões pelos seus próprios punhos. 35 . Antropologia e Cultura Jurídicas Os quilombolas do Maicá constituem o último grupo que se auto-reconheceu como quilombo. Os quilombolas. a participação nas decisões atinentes a eles. (tradução Fernando Tomaz) 8ºed. O Plano Diretor é uma lei municipal de elaboração obrigatória para os municípios com mais de vinte mil habitantes (art. In. Isto será feito não discutindo todas as políticas realizadas pelo município e direcionadas aos grupos étnicos. 2005. §1º) e para aqueles localizados em regiões metropolitanas (DANTAS. 2005. expressa um ato de rebeldia contra o sistema opressor. O Poder simbólico. Os descendentes passam a olhar de forma positiva a sua própria condição. de modo a tornar clara qual a natureza da relação estabelecida entre Poder Público municipal enquanto órgão gestor dos interesses coletivos do espaço urbano e os grupos que assumem uma identidade coletiva. p. 2006. A identidade e a representação: Elementos para uma reflexão crítica da idéia de região. Pierre. requerendo. 182. segundo eles. a figura do escravo representa a positivação do estigma de negro.Sociologia.112) 31 . e lealdade às instituições. Art. deverão aprová-lo no prazo de 5 (cinco) anos. pagamento de multa civil de até 100 (cem) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber beneficio ou incentivos fiscais ou creditícios. meio ambiente. O Estatuto da Cidade é a lei federal encarregada de traçar as diretrizes gerais da política urbana que deve ser realizada pelos municípios. previstas na legislação específica.257/2001) 34 . o Prefeito incorre em improbidade administrativa.Independente das sanções penais. a lei federal estabeleceu punição aos Prefeitos que não tomassem as devidas providências para a elaboração do Plano Diretor. imparcialidade. Nota-se.praticar ato visando fim proibido em Eli ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência. 35 . se houver. A obrigatoriedade e o prazo estabelecidos em lei para a elaboração do Plano Diretor são fatores indispensáveis para pensar sobre as circunstâncias da criação do Plano Diretor de Santarém. de 2 de junho de 1992. A finalidade deste. 71 . abastecimento de água. está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações: III.Sociologia. e notadamente: I. pois.Vol. 50 c/c art. transporte. Lei nº 10. principalmente quando se pensa na obrigatoriedade estabelecida para a sua elaboração. pelo prazo de 3 (três) anos. até meados de 2006. ressarcimento integral do dano. nos termos da Lei nº. a não ser a falta de consenso interno dos grupos de trabalho. legalidade. Até porque tais etapas consistiam mais 33 Lei nº 8. Art. Segundo a dicção legal este incorreria em improbidade administrativa 33 (art. II. suspensão dos direitos políticos de 3 (três) a 5 (cinco) anos. lembremos.retardar ou deixar de praticar indevidamente. portanto. 50. ato de ofício. civis e administrativas. Antropologia e Cultura Jurídicas expirou em 10 de outubro de 2006 (cinco anos após a vigência do Estatuto da Cidade. segundo a legislação.Os Municípios enquadrados na obrigação prevista nos incisos I e II do art. O Plano Diretor tem sido então. o prazo vencia em outubro de 2006 e a elaboração do Plano Diretor de Santarém teve início em julho de 2005 com a realização de reuniões de grupos de trabalho relacionadas a diferentes áreas públicas como saúde. direta ou indiretamente. anunciado como o principal instrumento público a ser utilizado para coordenar a política urbana. Diante disso.257/2001). 52.429/92: Art. ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário. 34 Estatuto da Cidade: Art. Lei 10.Na hipótese do art. 52. 41 desta Lei que não tenha plano diretor aprovado na data de entrada em vigor desta Lei.Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvidos e da aplicação de outras sanções cabíveis. perda da função pública. 11.429.Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da adminstração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade. Essa metodologia transcorreu sem maiores problemas. é programar as atividades e recursos públicos municipais para a promoção do desenvolvimento urbano. uma revalorização da prática do planejamento urbano no Brasil. VII. 11. 8.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 12. E. o que de fato não ocorreu. Antropologia e Cultura Jurídicas em um levantamento de demandas do que propriamente em uma discussão sobre o papel da Prefeitura e a definição de prioridades. a Prefeitura de Santarém suprimiu a realização das etapas seguintes. posteriormente. nas quais houve a participação de 353 pessoas. também. regularização fundiária e etc. educação. foram realizadas 15 (quinze) reuniões comunitárias no período de 04 de março a 20 de abril de 2006. No curto espaço de tempo que restava para aprovação do Plano Diretor. de um total de 43 comunidades de 14 regiões incluindo várzea. Assim. Vale lembrar que todas as leituras tinham o objetivo discutir as políticas para as diversas áreas de competência municipal como saúde. De acordo com o Relatório das etapas para a Criação do Plano Diretor Participativo do Município de Santarém (outubro de 2006). conflitos.Vol. que tinha o “objetivo elaborMr uma proposta de projePo Lei do Plano Diretor Participativo que tem como função organizar o crescimento e o 35 Leituras Comunitárias foram os nomes oficiais dados às Reuniões. 36 72 . Objetivo da Leitura Comunitária. em conformidade com o Relatório produzido pela Prefeitura sobre o Plano Diretor. 35 . juntando grupos e comunidades diversas como se fossem iguais porque moravam no mesmo tipo de zona. segundo os dados da Prefeitura foram realizadas 20 (vinte) reuniões comunitárias no período de 10 de janeiro a 01 de fevereiro. envolvendo 1529 pessoas.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . passou-se logo para a realização nos dias 06 e 07 de outubro do F ongresso. E. onde deveria ser esboçado o Projeto de Lei do Plano Diretor. para sanar os pontos controversos. PMra “sistematizMr Mpercepção da população em geral sobre a cidade. As audiências serviriam. seus problemas. a metodologia naturalizou a dicotomia tomando a definição legal como critério para compreender a necessidade dos grupos. planalto e rios. na crença de que haveria consenso entre os grupos da zona rural e os grupos da zona urbana. nas quais seriam realizadas as audiências públicas. saneamento.Sociologia. elaborado pela Prefeitura foram realizadas dois tipos de Leituras Comunitárias35. uma atinente a zona urbana e outra à zona rural do Município. com o objetivo de levantar propostas apontadas pelos bairros. potencialidades e as próprias soluções para o encaminhamento dos problemas” 36 . inúmeras entidades retiram-se das discussões em protesto contra a metodologia escolhida para conduzir a participação popular. 35 . ficou acordado que seriam retomadas as discussões pendentes para as quais as entidades sociais seriam novamente convocadas. deste processo é que a tão proclamada participação popular se reduz a um ato formal de legitimação das ações dos grupos que controlam o Estado. O que se verifica. onde se colhem assinaturas e alguém da prefeitura elabora a versão final da ata. Este processo envolveu 263 pessoas.Sociologia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Não há qualquer menção a essas dissidências. dá inicio a um amplo processo de mobilização dos movimentos sociais de Santarém de diversos campos. o projeto aprovado pela casa legislativa municipal foi o projeto elaborado pela Prefeitura no Congresso de 06 de outubro. A metodologia de reuniões formais sem resultado. ignorando completamente as discussões e propostas feitas em conjunto com os representantes das organizações populares durante os meses de novembro e dezembro. em dois dias foram definidos os objetivos e as diretrizes da Política Urbana do Município de Santarém. Inconformadas com os espaços de participação e da metodologia das leituras. A partir desse momento o Ministério das Cidades intervém no Processo. Em reunião realizada entre o representante do Ministério das Cidades. que não correspondiam aos anseios sociais. Nunca a intenção de promover 37 Objetivo da Leitura Comunitária. Portanto. que foi encaminhada ao Ministério Público e ao Ministério das cidades. Antropologia e Cultura Jurídicas funcionamento do Município” 37. Porém. em conformidade com o Relatório produzido pela Prefeitura sobre o Plano Diretor. Essa nova etapa de discussões ocorreu nos meses de novembro e dezembro de 2005.Vol. 73 . Findas as discussões. A ausência de audiências públicas e espaço político apressado e sem debate do Congresso. o novo projeto de lei é encaminhado à Câmara de Vereadores. sob a mediação do Ministério das Cidades. Ainda nas fases de elaboração do Plano Diretor. O que se conclui é que a escolha da metodologia adotada foi um ato de exercício de poder político que inibiu os espaços de debates públicos. em nada atendem os anseios sociais. juntamente com os vereadores e com o Secretário de Planejamento do Município. às entidades mais representativas assinam uma representação. que é responsabilidade da União efetuar tais demarcações. é um Plano Diretor de “boas intenções”BUmM lei que estabelece apenas os princípios. Onde estão os quilombolas no Plano? A lei municipal nº. O número reduzido de representantes nas reuniões nunca foi questionado. tampouco houve uma averiguação para determinar que entidades ou grupos tais pessoas representavam. objetivos e diretrizes da política urbana.Vol. o entendimento. Nem um problema social é abordado.051/06 institui o Plano Diretor Participativo do Município de SMntarém. Dentre os objetivos está o de “QM lorizMr MdiversidMde étnicMpresente no Município. XI). pergunta-se: Como seria possível a realização de uma política urbana que contemplassem as diferenças étnicas? De que forma estão presentes o reconhecimento e políticas voltadas aos grupos portadores de identidades coletivas na cidade de Santarém? Tentando responder a essas perguntas. das normas federais como o Estatuto da Cidade. 35 . Muito embora tenha anunciado a existência de grupos étnicos no território do Município. Que. em grande parte. verificaremos. Antropologia e Cultura Jurídicas qualquer discussão séria sobre o futuro da cidade. como se o simples comparecimento cumprisse o requisito formal de participação democrática. copiados. como o direito à diferença foi abordada na lei municipal do Plano Diretor. nem tampouco há a presença. das demandas sociais encaminhadas quando da elaboração. em outras palavras. prevalecendo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . uma preocupação em cumprir a legislação federal que determinava a obrigatoriedade de elaboração do Plano. Formaliza-se o ato de dominação com as assinaturas nas atas. especialmente. e. entretanto. doravante. mesmo que simbólica.Sociologia. não há o estabelecimento de metas para o poder público municipal. 7. Nesse sentido. houve apenas. 18. e declarado como objetivos a valorização de tais grupos e o respeito a seus limites demarcatórios. O resultMdo deste processo. do grupo quilombola que desfruta de reconhecimento formal e reivindica o reconhecimento de seu território na área considerada urbana do município. a partir da promoção ou cooperação nas políticas públicas voltadas às populações tradicionais e do respeito aos limites demarcatórios de suas terrMs” (Art. 5º. significa que M“respeito” se dará Úqueles grupos que já estão com seus limites demarcados. 74 . federais. de.n. 35 .Vol.22) 39. Boletim Informativo do NUER. In: Mana: Rio de Janeiro: v. Antropologia e Cultura Jurídicas Nesse sentido. p. finalmente. A emergência dos “Remanescentes”: Notas para o dialogo entre indígenas e quilombolas. 75 . 2. pois deste modo não seria mais competência do município proceder à demarcação dessas territorialidades. Isto porque. observa-se certa estratégia institucional de reduzir os fatores étnicos aos problemas agrários (ALMEIDA. um modelo de luta. no seu próprio imaginário (ARRUTI. Plano Diretor. a finalidade da organização do território municipal consiste em “orientar a atuação da administração pública e da iniciativa privada no ordenamento e regulamentação do uso e ocupação do solo” (Art. que ocupam os membros individualizados para uma visibilidade política coletiva. verifica-se que a lei municipal. 7º. p. 2005. 38 ALMEIDA. Alfredo Wagner B. diante dos órgãos oficiais e políticos governamentais.15-44.2. Vol. não seria possível compreender o surgimento do grupo quilombola do Maicá sobre o qual se vem discutindo ao longo deste Capitulo. nº. estaduais ou municipais. na política local. Diante dessas circunstâncias.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . esses grupos demarcam uma fronteira cultural. José Maurício Andion. 39 ARRUTI. 1997. além de negar o fator de que a constituição de uma identidade coletiva significa a reivindicação de um espaço de interlocução direta com os órgãos oficiais do Estado sejam eles.3. Nas bordas da Política Étnica: Os quilombos e as políticas sociais. outubro de 1997. um lugar com seus vizinhos. urbana. Os novos direitos potencializam o deslocamento dos tradicionais lugares políticos invisíveis.18) 38.2. Reduzir a explicação para o surgimento dos grupos étnicos é negar os fatores históricos. no imaginário nacional. mesmo reconhecendo a existência de grupos étnicos no município apenas admite e protege a apropriação privada do território da cidade. Se considerássemos como verdadeira a assertiva que os grupos étnicos surgem no cenário político apenas reclamando direitos a terra. o surgimento do grupo reclamando benefícios públicos e o direito de participar das discussões políticas sobre seu grupo antecedeu à reivindicação territorial que até hoje não se encontra bem definida. Portanto. mesmo que elas estejam localizadas na área. inclusive forçando a positivação do direito à diferença.Sociologia. P. F Mpitulo II que traPMdas políticas setoriais de desenvolvimento). políticos e sociais atuais que permitiram a formação dessa nova esfera de detentoras de direitos. e. considerada legalmente. p.7-38. 2005. Reativando os símbolos de sua identidade. predominando o entendimento de que cabem apenas aos órgãos fundiários oficiais as atividades de reconhecimento das terras. os quilombolas do Maicá ao se deslocarem do Arapemã para os espaços ocupados. mesmo daqueles que insurgiam no meio urbano como os quilombolas do Maicá. saúde. educMção. pois tratou de considerar a questão apenas no seu aspecto cultural e retórico. com anseios e necessidades que não são inteiramente a mesma daqueles que permanecem no Arapemã. nos grupos quilombolas de Santarém. p.Sociologia. segundo o autor. assistência social e patrimônio cultural. Este eixo. na implementação das políticas sociais (energiMelétricM. educação. O outro. 2005. os grupos étnicos são novamente homogeneizados politicamente. Assim. 95 e 100. podemos chegar ao entendimento de que. 76 . em termos de ação efetiva. nas instancias administrativas nas esferas da elaboração do “planejamento participativo do Ministério do Desenvolvimento Agrário. se subdivide em três planos de ação: participação nos órgãos colegiados da estrutura administrativa responsáveis pelas políticas quilombolas.Vol.)”BTalvez não por acaso. este eixo está formatado predominante apenas no plano discursivo (ALMEIDA. de um lado na categoria de quilombolas e de outro lado na qualidade de público carente. 40 O que se depreende da leitura dos dispositivos legais é que a questão quilombola (e indígena também) está atrelada ao favorecimento de uma política especial em áreas sociais. 83. 86. sem uma articulação concreta com o modo de vida do grupo. e num terceiro plano. Pensando. 40). p. 89. 40 Os dispositivos do plano diretor que trazem a questão étnica são: Arts. Quilombola é uma categoria genérica que não explica as especificidades de grupos sociais. hoje em dia. as ações governamentais têm se concentrado na prestação de serviços básicos às comunidades quilombolas (ALMEIDA. desenvolveram um modo de vida. 2005. a menção aos grupos étnicos no Plano Diretor de Santarém se restrinja às temáticas de saúde. ALMEIDA descreve dois eixos de intervenção pelos quais se dirigem as ações oficiais relativas à questão étnica relativa aos grupos quilombola. Um diz respeito ao deslocamento da dimensão étnica para os instrumentos de ação agrária. uma vez que cada grupo social vive de maneira diferente um dos outros. 35 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA ... o Plano Diretor negou sistematicamente a existência política dos grupos étnicos. 39). Antropologia e Cultura Jurídicas Nesse sentido. Neste sentido. sem a preocupação de avaliar de que forma tal medida implicaria no modo de vida do grupo quilombola que tem o lago como extensão de seu território. Ser considerado pobre é ser destituído de sua identidade coletiva. Cadê o quilombo que estava aqui? O Plano Diretor anulou A consolidação do Plano Diretor enquanto política de desenvolvimento para a cidade não significou o atendimento das demandas quilombolas. 2005. 42). p. rompe a força e a visibilidade geradora de potencialidades de alcance de novos direitos perante os órgãos institucionais.Sociologia. muito embora a questão da reivindicação pelo reconhecimento e demarcação dos territórios etnicamente configurados seja uma verdade e haja uma imprescindibilidade para que isso ocorra diante das ameaças de usurpação sempre constantes em relação aos grupos. considerar os grupos quilombolas apenas como público alvo de políticas setoriais desloca sutilmente os critérios étnicos e de identidade que são responsáveis pela construção de laços de solidariedade e articulação coletiva. Por este último viés homogeneizador: “QuilomNola tornM-se assim um atributo que funciona como agravante da condição de “poNre”B Ser “poNre” numM sociedade autoritária de fundMmentos escrMQ isPM s implica em ser privado do controle sobre sua representação e sua identidade coletiva. 8. p. A despreocupação da política municipal em compreender as dinâmicas que contribuíam para o surgimento dos quilombos do Maicá trouxe como conseqüência uma série de formulações de intervenção do Poder Público no espaço reivindicado como território quilombola. Ademais. reduzir à questão a essa problemática consiste em negar os avanços políticos organizativos realizados pelo grupo quanto à tomada de consciência quanto a sua condição de sujeito. Antropologia e Cultura Jurídicas Do mesmo modo.. abstendo-se de reconhecer os fatores que condicionam o surgimento de categorias étnicas e as devidas configurações sociais de tais grupos. no inciso II do artigo 46. 2005. ou quando define como 77 . 35 . quando afirma que será implantada área de manejo sustentável extrativo e turístico na região do Maicá. Um delas pode ser vista quando o Plano Diretor. Com efeito. os quilomNolas correm o risco de serem tratados como umM “poNrezM exótica [.]" (ALMEIDA. 41).. que positivam a organização do grupo em movimentos sociais (ALMEIDA.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. A política municipal encontra-se desarticulada da questão da proteção e reconhecimento territorial. Antropologia e Cultura Jurídicas zona portuária a área do área do Uruará (Lei municipal nº. 18. especialmente por aquelas direcionadas ao ordenamento territorial como se não existente. no território quilombola. e. 78 . sistematicamente. área urbana. O grupo quilombola do Maicá se articula atualmente com as demais comunidades quilombolas de Santarém no sentido de garantir terras aos membros dessas outras comunidades. as articulações e reivindicações do grupo quilombola ultrapassam a delimitação da zona rural e urbana. ou como não capaz de definir os rumos da cidade.Vol. pelas políticas municipais. ultrapassam os limites 41 Na antropologia destaquem-se os estudos sobre quilombos realizados por Alfredo Wagner Berno de Almeida de Almeida. principalmente no sentido de garantir terras aos membros do Arapemã que ainda sofrem o problema das terras caídas. Assim. ultrapassam os limites dos bairros. Neste sentido. determina que podem ser construídos portos privados. na qual também há presença de quilombolas (associados ao grupo do Maicá). apesar disso a teoria jurídica pouco tem incorporado as suas construções explicativas os elementos das práticas plurais e como consequência dessa rigidez o direito vê-se diante de uma crise que recai sobre suas normas e seus institutos. intervém com um processo de regularização fundiária baseadas nos modelos de apropriação individual das terras.051/2006). o grupo quilombola é pensado. Bonislaw Malinowski. Inúmeros estudos antropológicos ou mesmo jurídicos41 têm revelado a diversidade de formas organizativas presente no universo social.Sociologia. área de manejo sustentável. Nesta esteira. 35 . todos constantes nas referências bibliográficas deste trabalho. pela negação o Poder Público autoritariamente define as funcionalidades do território da cidade. Edna Castro e Rosa Acevedo e no Direito o trabalho de Joaquim Shiraishi Neto. o que se verifica é um imobilismo do direito e das políticas públicas quando pensados como instrumentos direcionados a um universo de pessoas iguais. Portanto.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . realizar regularização fundiária no bairro Pérola do Maicá e que demonstra o autoritarismo e desvinculação social da lei municipal de ordenamento territorial é o fato que o território reivindicado pelo grupo quilombola é maior do que aqueles que eles efetivamente ocupam. como se estes não estivessem lá. Outra questão negligenciada pelo Poder Público municipal que vem tentado. Considerações finais Os diferentes modos de se apropriar da cidade implicam a criação e defesa de territorialidades específicas que dão vida e sentido aos espaços ocupados. elaborada pelos agentes sociais. o estudo sobre a cidade traz em seu bojo a necessidade de investigar quais são usos e as representações da cidade. Entender quais são os motivos e interesses envolvidos na disputa. desenvolvidos por estes diferentes agentes sociais e quais os interesses defendidos quando se opõe ao que determina a lei. visto que o homem age em conjunto e sempre buscando alcançar objetivos coletivamente criados. Antropologia e Cultura Jurídicas entres os bairros e as comunidades rurais evidenciando uma ampla consciência de identidade quilombola que abarca a cidade de Santarém como um todo. é verificável que não há ocupação do espaço realizada por um único individuo isolado. onde as atividades e as funções que se quer realizar tentar enquadrar os sujeitos que habitam estas áreas. são elementos obrigatórios para compreender as novas formas de relações sociais existentes no espaço urbano.Sociologia. expressando histórias e interesses.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . uma vez que evidencia as representações sobre o mesmo território e. uma vez que a própria cidade é produto dessa realidade. A criação de territorialidades específicas nas cidades traz como resultado a sua defesa diante da disputa pelo direito de usar o espaço urbano. Assim. Uma leitura da cidade mais condizente com a realidade parte dos sujeitos envolvidos na construção do espaço. o modo como se entende a cidade diz muito sobre a maneira de ler a realidade social. Ademais. Diante das territorialidades os sujeitos são os atores eles a definem. Expressa a forma de pensar e de agir sobre o espaço. 35 . 79 . retratar a trajetória histórica de um grupo específico tem uma importância crucial.Vol. assim como perceber as múltiplas cidades existentes num mesmo espaço. Nesse sentido. Percebida como campo de disputa. na defesa do direito de usar o espaço de acordo com seus desejos e representações. 9. criada e recriada no processo dinâmico de embate das relações sociais. eles as modificam. uma vez que são eles que dão sentido e razão de existir a elas. Os sujeitos sociais se organizam e se mobilizam em nome da defesa de um projeto político que diz respeito também a defesa de uma territorialidade. ou seja. Perceber a cidade a partir das territorialidades específicas é um método muito diferente da noção de zonas com a qual trabalha o planejamento. de. Nesse sentido. In. é o reconhecimento das condições presentes de conquista política desses grupos.15-44. pp. é a luta para ser reconhecido como diferente e para manter esta diferença.2. o grupo quilombola recria entre o espaço urbano-rural da cidade um modo de viver próprio que vem sendo acionado como elemento integrante da identidade do grupo. Antropologia e Cultura Jurídicas também. 35 . residentes no Maicá. Como ficou evidente.2340. Nas bordas da Política Étnica: Os quilombos e as políticas sociais. Alfredo Wagner B. o reconhecimento de um grupo que se auto-intitula “remanescente de quilombo” longe de ser Mbusca da preservação de um passado. Quilombos: Identidade étnica e territorialidade. de. Referencias bibliográficas ALMEIDA. muito embora o Estado brasileiro venha reconhecendo no plano do discurso a existência dos grupos étnicos. Cese Debate. Alfredo Wagner B. O’ GRyer (Org. ALMEIDA. assim como demonstrar que. criando a falsa imagem de que se pode dissociar o território do modo de vida desses grupos. os quilombolas são tratados pela Prefeitura como público diferenciado somente no que diz respeito ao atendimento das políticas sociais como saúde. Rio de Janeiro: Editora FGV. O Quilombo e as novas etnias. 80 . mesmo na contramão do estabelecido nas diretrizes e no zoneamento para a cidade de Santarém que foram oficializados no Plano Diretor. 10. 2. é a luta para ser reconhecido como senhor de seu destino. não o faz do mesmo modo na elaboração das políticas. maio de 1994. Vol. ano IV. Ms Mnálises feitMs Mo longo do texto e especialmente na parte que trata do processo de construção da territorialidade quilombola em Santarém. nº 3. a luta para ser reconhecido como quilombo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Sociologia. Assim. Alfredo Wagner B.). P. ALMEIDA. Portanto. 2002. nº. enquanto que no assunto atinente ao reconhecimento de seu território são simplesmente negligenciados. afasta qualquer possibilidade de aplicação de esquemas gerais que entendem como cMusa dos “problemMs” o processo de urbanizMção. Universalização e Localismo: Movimentos sociais e crise nos padrões tradicionais de relação política na Amazônia.Vol. tiveram como meta demonstrar que a cidade comporta diferentes formas de viver. 2005. educação ou patrimônio cultural. Por este cMminho. desencadeada pela Comunidade dos Remanescentes de Quilombo do Arapemã. Boletim Informativo do NUER. de. Miriam de Fátima F OM gMs. o iniciador e outras variações antropológicas. Revisão Paula Montero. BRAVO. 25-67. BOURDIEU. DANTAS. Medioambientes y Sostenibilidade. MARQUES. O Poder simbólico.7-38. MEIRELELLES. A delegação e o fetichismo político. Fredrik. Rio de Janeiro: Contra Capa. A políticMdo reconhecimento dos “Remanescentes das F omunidades de Quilombos”BHorizontes Antropológicos. HOBSBAWM.3. LIMA. Pierre. Malheiros Editores: São Paulo. FOUCAULT. p. pp.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . SHIRAISHI NETO. 2006.Vol. Ética. A Invenção das Tradições. HOBSBAWM. In. Eric. 2000. BOURDIEU. Hely Lopes. F HAGAS.2. ArCiBel Editores: Espanha. Organização e tradução de Roberto Machado. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário. RANGER. Direito Municipal Brasileiro. O guru. Tradução Cássia R. Planos Diretores na Amazônia: participar é um direito. 2006. Fernando Antônio de Carvalho. Microfísica do Poder. sociabilidade e territorialidade negra em Porto Alegre/RS. In: Mana: Rio de Janeiro: v. 2005. Porto Alegre. n.). Entre a Avenida Luís Guaraha e o Quilombo do Areal: estudo etnográfico sobre memória. In. Antropologia e Cultura Jurídicas ARRUTI. 22ª ed. O rural no Urbano: Uma análise do processo de produção do espaço urbano de Imperatriz. 81 . p. 2005. São Paulo: Brasiliense. (tradução Fernando Tomaz) 8ºed. 2007.Sociologia. Anais do XIV Congresso Nacional do CONPEDI. 2007.AM. Erik.Rio de Janeiro: Edições Graal. Michel. Terence (Orgs. A emergência dos “Remanescentes”: Notas para o dialogo entre indígenas e quilombolas. da Silveira e Denise Moreno Pegorim. Introdução: A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. José Maurício Andion. Rio de janeiro. São Paulo: Instituto Pólis. Olavo Ramalho. Prêmio ABA/MDA. 2004. BARTH. Territórios Quilombolas/ Associação Brasileira de Antropologia. outubro de 1997. julho de 2001. Pierre. Cidades. JoaquimB“F rise” nos padrões jurídicos tradicionais: O direito em face dos grupos sociais portadores de identidade coletiva. atual. SAULE JUNIOR. Florianópolis: Fundação Boiteux. 35 . 2001. Paz e Terra. 2002. Ano 7. 12ª ed. Álvaro Sánchez. Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural. Nelson. Os grupos étnicos e suas fronteiras. Possibilidades de aplicação do marco legal urbano brasileiro na proteção dos direitos socioambientais das populações indígenas. Rosirene Martins Lima. 209-235. Por Célia Maria e Prendes e Márcio Schneider Reis. Coisas Ditas. 2006. (Tradução Carla Cardim Cavalcante). 3ª ed. n. In.15. In. Organizador. 35 . Mestranda no programa de Direito Agroambiental da UFMT. Intruders.br 82 . This article aims to give an overview of the occupation of land in the State of Mato Grosso. Marãiwatsédé. Conselheira do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CEDHU). todos do Estado de Mato Grosso. Email: ludmilamonteiro@bol. isso reflete a nossa história. desde então.Sociologia. e finalizada em janeiro de 2013. Graduada pela PUC-RJ. em 1998. and completed in january 2013. com destaque para a ocupação ilegal da Terra Indígena Marãiwatsédé. while also addressing the historic lawsuit to remove invaders of this indigenous land. as well as the fact that. and since then drags up the conflict with successive measures of judicial suspensive effect. there was setting as the demarcation and ratification of these lands by decree of the President of the Republic. abordando também o histórico da ação judicial para a desintrusão da terra indígena em questão. e. Desintrusão. SUMÁRIO  * Procuradora da República e Coordenadora Criminal no Estado de Mato Grosso.com. arrasta-se o conflito com sucessivas medidas judiciais de efeito suspensivo. bem como o fato de que.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ABSTRACT Considering the conflict between squatters and landless farmers against the Indians Marãiwatsédé because of illegal occupation of the Indigenous Land Marãiwatsédé. e a derradeira desintrusão dos invasores levada a cabo em dezembro de 2012. sem terra e fazendeiros contra os índios marãiwatsédé por conta da ocupação ilegal da Terra Indígena Marãiwatsédé. this reflects our history. in 1998. Marãiwatsédé. Palavras-chave: Terra indígena. especially the illegal occupation of Indigenous Marãiwatsédé.Vol. Illegal occupation. e do Conselho Penitenciário (COPEN). houve definição quanto à demarcação e homologação dessas terras por Decreto do Presidente da República. and the way that the government and society have always treated with indifference and disrespect indigenous rights. Ocupação ilegal. Antropologia e Cultura Jurídicas A PROBLEMÁTICA DA DESINTRUSÃO DOS NÃO ÍNDIOS NA TERRA INDÍGENA MARAIWATSEDE THE PROBLEM OF THE NO INDIANS INTRUDERS IN THE INDIGENOUS LAND MARÃIWATSÉDÉ LUDMILA BORTOLETO MONTEIRO∗ RESUMO Considera-se o conflito entre posseiros. e a maneira com que o Governo e a sociedade sempre trataram com indiferença e desrespeito os direitos indígenas. Keywords: Indigenous Land. do Conselho de Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAE). O presente artigo visa traçar um panorama da ocupação de terras no Estado de Mato Grosso. and the last of the invaders brought intruders out in December 2012. Tradução Maria Júlia Goldwassar. onde o próprio Governo visa asfaltar a BR-158. cooptado uma parcela da população indígena Xavante.1 HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO NO ESTADO DE MATO GROSSO A ocupação da terra é um processo econômico antes de ser um processo político: e são os motivos econômicos que trazem os diferentes capitais e grupos econômicos para a fronteira. que. O ponto nodal da questão é que a disputa pela T. através da: 1 FOWERAKER. A ocupação da terra no Estado de Mato Grosso. Goiás. 1982. Um detalhe relevante é que. comercializando as suas terras.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A OCUPAÇÃO DA TERRA NO ESTADO DE MATO GROSSO 2. a T. Referências. iniciando-se no Pará e passando pelos Estados do Mato Grosso.composta por índios da etnia Xavante. 3. 2. A retomada da Terra Indígena Marãiwatsédé. com o objetivo de aumentar a sua receita.Sociologia.2 Ocupação irregular de terras indígenas. onde encontra seu término na fronteira com o Uruguai. Rio de Janeiro: Zahar. São Paulo. a qual liga o norte ao sul do Brasil. 83 . 4. Mato Grosso do Sul.2 Histórico da ação judicial para a desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé na terra indígena. INTRODUÇÃO O presente trabalho desenvolveu-se no interesse de traçar um panorama da ocupação da Terra Indígena Marãiwatsédé por fazendeiros e pequenos agricultores. 2. 3.I.Vol. aí procuram os títulos à terra que possam legitimar sua atividade econômica. 1 Para acelerar o processo de ocupação durante as décadas de 1930.1 O povo A'uwe Xavante e Marãiwatsédé 3. 1. 2.1 Histórico da ocupação de terras no Estado de Mato Grosso. 5.encontra-se no centro de um eixo de escoamento de soja e gado. Introdução.I. o governo de Mato Grosso. 2. Paraná. especialmente pelo fato de que. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil. tendo. se negam a deixar a área. Joe. adotou um novo modelo de gestão das terras públicas. Considerações finais. além dos interesses dos posseiros que invadiram a área. ao invés de pequenos posseiros. num conflito de uma terra indígena homologada há quatorze anos. Antropologia e Cultura Jurídicas 1. que. Marãiwatsédé expõe a dificuldade do governo em controlar os conflitos fundiários. inclusive. o embate dos xavantes é com grandes ruralistas. provocando divisão interna na comunidade indígena em comento. no município de Santana do Livramento. através da violência e de ameaças. 35 . Marãiwatsédé. Colonização e especulação fundiária em Mato Grosso: a implantação da Colônia Várzea Alegre (1957-1970). Assis. 84 . com o intuito de incentivas a ocupação dos espaços considerados vazios. Cláudio Alves de. não lhe assistiu com qualquer recurso. Já havia desde 1892. os agricultores tinham apenas a opção trabalhar de empregado nas fazendas vizinhas ou se “apossar” de outra área para continuar vivendo com sua família. um dos fatores que provocaram a invasão 2 VASCONCELOS. até a década de 60. Antropologia e Cultura Jurídicas [. o que redundou que. para “conquistarem os espaços supostamente vazios”. minas e colonização. Ocorre que o Mato Grosso sempre teve um obstáculo. 22-23 3 LOMBA. com o escopo de que os mesmos pudessem explorar devidamente as terras de uma maneira sustentável. atraindo para o Estado de Mato Grosso produtores rurais estimulados pela propaganda de terras baratas e férteis. consistente na distância geográfica que o separa dos grandes centros econômicos e políticos. Dissertação. à época do Governo Vargas. p.Vol.55. com o incremento de “Contratos de Compra e Venda de terras devolutas”.Sociologia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .3 Ocorre que os trabalhadores rurais que se estabeleceram nas áreas destinadas à colonização dirigida se depararam com diversas dificuldades..] a chamada colonização dirigida. terras. sem obedecer a qualquer ordenamento fundiário. 35 . pela sua exploração depredadora.. orientação. passou a vender as suas terras. 2003. houve uma mudança da política de transferência das terras para domínio privado em Mato Grosso. eis que o Estado . Do final dos de 1940. embora estimulando a ocupação de terras no Mato Grosso dos supostos espaços vazios. tornassem as terras improdutivas. seguindo as terras do Estado o modelo brasileiro de padrão latifundiário. Mestrado em História.]. 2 Em 1938. Universidade Estadual Paulista. (Mestrado em História).. Nesse contexto de ocupação irregular do território. Desse modo. Essa legislação fornecia o suporte institucional necessário para ativar a ação do capital no sentido de intensificar os investimentos fundiários. desencadeou-se o que se denominou “Marcha para o Oeste”. uma vez que proporcionava a venda de terras devolutas [. p. e. entendendo-se por tal a ação desencadeada pelo Estado de Mato Grosso no sentido de prover a ampliação da área do capital. uma legislação específica para tal atividades. Jocimar. UFMS. Sobre o processo de ocupação e as relações de trabalho na agropecuária: O extremo sul de Mato Grosso (1940-1970). e a venda de grandes extensões de terras passou a ser a principal fonte de receita do estado.. com a criação da diretoria de obras públicas. 1986. Dourados. A política fundiária de Mato Grosso concedeu privilégios especiais aos fazendeiros do agronegócio. 4 Todavia. o que. protegê-las e fazer com que todos os bens indígenas sejam respeitados. ficou apenas determinado que o governo do estado deveria reservar terras públicas para o aldeamento dos índios mansos. Campo Grande: UFMS. trama e continuidade. não foi nada “generoso” com os indígenas.Vol.2 OCUPAÇÃO IRREGULAR DE TERRAS INDÍGENAS Primeiramente.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que eram considerados. a Constituição Federal de 1988. 35 . cumpre registrar que a política de ocupação territorial e a legislação afeta ao tema ignoravam in totum a presença indígena no território. 2. O Decreto n° 200 do coronel Generoso Paes Leme de Souza Ponce. foi a falta de uma política de colonização devidamente executada. p. Cláudio Alves de. Antropologia e Cultura Jurídicas das terras indígenas em Mato Grosso. bem como a discussão em torno da política de ocupação territorial. 85 . A questão indígena na província de Mato Grosso: conflito. Sobre o tema veja-se: As terras indígenas incluídas no rol devolutas não receberam nenhum tratamento específico. Toda a elaboração da legislação. 1999. 166. em seu art. regulamenta sua posse e usufruto. em seus parágrafos.Sociologia. outrossim. determinando o uso exclusivo pelos índios dos recursos naturais existentes nas terras por eles ocupadas.define o que seriam terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. desqualificando a cultura indígena. Foram incluídas nos planos de colonização deste governo regiões densamente povoadas. 231. 4 VASCONCELOS. atribuindo à União a competência para demarcá-las. bem como às empresas capitalistas para explorarem as terras do Estado e os recursos naturais nelas insertos.e ainda são considerados por grande parte da sociedade. presidente do estado de Mato Grosso. refletiu no apossamento de terras indígenas. parece ignorar a presença indígena neste território.um entrave ao desenvolvimento econômico do Estado. reconheceu expressamente os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. lamentavelmente. Parabubure.Vol. 11 2011. URL: http://confins. Sangradouro. que tinha a intenção de exploração de minas de ouro e escravização indígena. José R. Antropologia e Cultura Jurídicas 3.1 O POVO A’UWE XAVANTE E MARÃIWATSÉDÉ O povo Xavante e os Xerente se autodenominam A’uwe e constituem o grupo Akuen. Marãiwatsédé encontra-se em área de transição consistente em cerrados.revues. 6 GOMIDE. que pertencem ao tronco lingüístico Macro-jê. impeliram os Xavantes às 5 LOPES DA SILVA. em nove terras indígenas. sendo o total de sua população na ordem de 14. no século XVIII. 1986. A RETOMADA DA TERRA INDÍGENA MARAIWATSEDE 3. 35 . Marãiwatsede.000 (quatroze mil) índios. Marechal Rondon. posto online em 06 Abril 2011. Confins [Online].Sociologia. quais sejam: Areões.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Território no mundo A’uwe Xavante. Registre-se que. quando foram aldeados juntamente com outros povos indígenas na aldeia Pedro III.org/6888. p.floresta amazônica.4000/confins. porém a T.I. Consultado em 23 Dezembro 2012. 5 Maria Lucia Cereda Gomide aduz que a política dos aldeamentos oficiais é implantada após inúmeros conflitos indígenas no “ciclo de caça ao índio” durante o bandeirismo. os maus tratos e as violências cometidas pelos não índios. as ameaças.I. Em síntese. fugindo do contato com os “brancos” se mudam e estabelecem-se no Mato Grosso. Xavantes localizam-se preponderantemente em cerrados. Note-se que as T. Aracy. Maria Lucia Cereda.6 A mesma autora dispõe que a suposta conquista de pacificação dos Xavantes demorou de 1784 a 1788. em diversas aldeias. FFLCH-USP. os mesmos encontravam-se entre os rios Araguaia e Tocantins. Freire atesta que a epidemia de sarampo que acometeu os Xavantes.6888 86 . o povo Xavante vive no estado do Mato Grosso. DOI: 10. atualmente. Nomes e Amigos: da prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê. já o segundo período consiste no perído a partir de quando. do Sítio do Carretão. Especula-se que as primeiras notícias sobre os xavantes são no sentido de que.363. São Marcos e Ubawawe. Pimentel Barbosa. pode-se dividir a história Xavante em dois períodos: o primeiro remonta o período em que viviam na então Província de Goiás e foram aldeados no Carretão. Chão Preto. a aproximadamente 400km de seu território. José Rodrigues.7 Estudos comprovam que os xavantes vivem na região do leste mato-grossense desde o século XIX. Cristalino e das Mortes. Acroá) onde hoje situam-se os estados de Minas Gerais. Relação da conquista do gentio Xavante. Maria Lucia Cereda. em aviões da Força Aérea Brasileira. coleção textos e documentos FFLCH/USP. Xacriabá. No que tange especificamente à área da Terra Indígena Marãiwatsédé.8 milhão de hectares. com o fim de colonização do centro-oeste do Brasil.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . para a Missão Salesiana São Marcos (na região sul do Mato Grosso). que formam o grupo Akuen (Xavante. Importante destacar que a “Marcha para o Oeste” foi promovida pelo governo federal através da Expedição Roncador-Xingu e a Fundação Brasil Central (FBC). para permitir o avanço das frentes de ocupação do Centro Oeste e da Amazônia. momento em que houve a separação dos Xavante e Xerente. Confins [Online]. 35 . 1790. Tocantins chegando provavelmente até o Maranhão. atravessando esta etnia os rios Cristalino.org/6888 . há registros que. O território Marãiwatsédé. 1790. posto online em 06 Abril 2011. Xerente. Goiás. em 1966.4000/confins. Relação da conquista do gentio Xavante conseguida pelo. Território no mundo A’uwe Xavante. Antropologia e Cultura Jurídicas migrações. viveram por séculos nos cerrados do centro-oeste.. passou para as mãos do Grupo Ometto. uma epidemia de sarampo dizimou um terço do grupo em apenas duas semanas. no Mato Grosso. senhor Tristão da Cunha Menezes. Todavia. quando a Agropecuária Suiá-Missú instalou-se na região. Nesse modelo de política econômica e indigenista. transformando-se no latifúndio denominado Suiá-Missu. entre os anos de 1943-1967. e capitão general da capitania de Goiás. e lá permaneceram por cerca de quarenta anos. o povo Xavante que vivia em Marãiwatsédé foi retirado de sua terra à força pelo governo militar brasileiro e levado. há registros que concluem que esta supera 165 mil hectares. 1951. de Ariosto da Riva. após ser adquirido por uma empresa colonizadora paulista.. Araguais e o das Mortes.Sociologia. de acordo com as fontes de viajantes e cronistas. ao lá chegarem. numa ampla área que. seria habitado pelos Jê centrais. há aproximadamente 200 anos. em 1967. 11 | 2011.Vol.6888 87 . 7 FREIRE. quando atravessaram os rios Araguaia.revues. DOI : 10. 8 GOMIDE. com 1. Maria Lucia Cereda Gomide aborda o assunto em testilha8: Antes. URL: http://confins. visando a ocupação dos supostos espaços vazios. porém. Lisboa: Typografia Nunesiana. governador. e do mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju. Consultado em 23 Dezembro 2012. Antropologia e Cultura Jurídicas A posteriori.241 hectares da T. em que os políticos incentivaram publicamente posseiros e famílias de sem terra a entrarem no território indígena em questão.000 hectares.00 hectares de terra. por seus atos contrários aos direitos indígenas no Brasil.001/73 (Estatuto do Índio) e o Decreto 1. foram se sucedendo. por autoridades italianas e brasileiras. numa invasão deliberada e de má fé. 231 da Constituição Federal. Nesse contexto. o território está registrado em cartório na forma de propriedade da União Federal. 35 . Há petição da FUNAI.I. ora a desintrusão. I. 88 . ora a suspensão da sentença. No entanto. a área foi declarada Terra Indígena Marãiwatsédé. os Xavante apenas retornaram a uma parcela ínfima de seu território Marãiwatsédé em 2004. foi homologada por decreto presidencial. já demarcada. e seu processo de regularização é amparado pelo art. Nessa sucessão jurídica de posse. assim. A Funai afirma que neste mesmo ano – quando iniciaram-se os estudos de delimitação e demarcação da Terra Indígena – Marãiwatsédé começa a ser ocupada por não índios. Marãiwatsédé. foi adquirida pela empresa italiana Agip Petrolli. Porém. os índios ocupavam uma área que representaria apenas 10% do seu território. a terra indígena em comento foi adquirida pela Liquigás e. conforme legislação em vigor. enquanto a empresa multinacional Agip Petroli reconhecia publicamente a tradicionalidade da ocupação daquela região pelos índios. houve a invasão da área. Mesmo assim. de 01/12/2000. marcando a divisão de lados entre os produtores e indígenas. em 1998. depois de permanecerem acampados por dez meses à beira da estrada. que afirma que. desde 1995. se comprometeu a devolver aos Xavante 165. cumpre registrar que. e. sendo que apenas por ocasião da Eco-92 houve mudanças. Ainda em 1992. e a Agip foi constrangida. definindo-se territorialmente até onde ficaria instalado cada um. medidas judiciais determinando. a Lei 6. Destaque-se que.Sociologia. consistindo esta.Vol. em 1970. Em 1993. sob o discurso de que estes não colaborariam com o desenvolvimento da região. do universo de 165. até o momento da efetiva desintrusão dos não índios da área em dezembro de 2012.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . o esbulho da T. naquela época os posseiros ocupavam menos de 20. e. houve um encontro entre fazendeiros e políticos locais. bem como embasada no preconceito contra os índios. Xavante restou totalmente ignorado. icto oculi.775/96. sustentada pela cobiça pela terra e no mercado de terras. Isso porquanto a Eco-92 deu visibilidade internacional ao caso em tela. I. devendo a FUNAI responsabilizar-se e tomar todas as providências cabíveis para a implementação do retorno dos indígenas em questão à sua área primitiva”. 35 . conforme relatório do Ministério Público Federal. Antropologia e Cultura Jurídicas Lamentavelmente. decisão liminar deferida para a desintrusão dos posseiros até que a Funai e a União concluíssem a demarcação da Terra Indígena Marãiwatsédé. para a retirada desses ocupantes. Marãiwatsédé. houve conversão do solo. criação ilegal de gado. o que leva o Ministério Público Federal a ingressar com ação civil pública (nº 95. venda irregular de lotes. desmatando cerca 85% de Marãiwatsédé. 3. Já em 10/11/2000.Vol. de 01/10/93 do Ministro da Justiça. Outro fato digno de nota é que. conhecida como a terra indígena mais devastada da Amazônia Brasileira. Em 10/02/2004. por enquanto. 5ª Vara). grandes fazendeiros e até um desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Ademais. não obstante a conclusão do processo administrativo e a ausência de ataque judicial a quaisquer de seus atos. sem prejuízo. na justiça federal de Mato Grosso. A demarcação veio a ser homologada por decreto do Presidente da República em 11/12/98 (DOU 14/12/98). essa área é invadida por pessoas coordenadas por opositores ao estabelecimento da área indígena. ao dar 89 . vice-prefeitos e ex das Municipalidades de Alto Boa Vista e São Felix do Araguaia). em face de acórdão proferido pela 5ª Turma Recursal do TRF 1ª Região que. o qual foi provido para reformar a decisão de 1º grau. grilagem. perante o STF.Sociologia. entre politicos da região (tal como prefeitos. foi interposto pelo Parquet Federal recurso extraordinário. Na iminência de ocorrer a demarcação. bem como a destruição de grande parte dos recursos naturais de Marãiwatsédé. os invasores perpetraram um desmatamento sem precedentes na T. o Juiz Federal da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Mato Grosso determinou e autorizou “o retorno da comunidade indígena Xavante à Terra Indígena Marãiwatsédé. da permanência dos posseiros no local onde estão. em 10/05/1995. os Réus interpuseram Agravo de Instrumento perante o TRF 1ª Região.00.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Porém. é provido pelo TRF da 1ª Região agravo de instrumento contra a liminar que determinava a extrusão dos invasores. um terço das terrras está nas mãos de vinte e dois grandes posseiros. havendo.2 HISTÓRICO DA AÇÃO JUDICIAL PARA A DESINTRUSÃO DA TERRA INDÍGENA MARÃIWATSÉDÉ A Terra Indígena Marãiwatsédé foi declarada de ocupação tradicional indígena pela Portaria 363.00679-0. Todavia. dando lugar a extensas plantações de soja e pastagens para bovinos. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .36. em 17/12/2007. os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal deram provimento ao recurso extraordinário. o que 90 . Min. a questão devolvida a esta Corte cinge-se à possibilidade da convivência provisória destes com os índios a serem introduzidos na área em litígio. bem como condenando os requeridos ao reflorestamentos da área que ocupam.051031-1. em 05/02/2007. sem prejuízo. ao que Apelações foram interpostas pelos réus. A alusão a iminente conflito não se presta a suspender a decisão que autoriza a entrada dos silvícolas nas terras indígenas cuja posse lhes é assegurada pelo texto constitucional. nos termos do voto da Relatora. Segunda Turma. Ellen Gracie. Rel. Estando a permanência dos posseiros no local garantida por anterior decisão do Tribunal Regional Federal que não é objeto do presente recurso. Vejamos: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. sob pena de inversão da presunção da legitimidade do processo de demarcação. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE DEU PROVIMENTO A AGRAVO DE INSTRUMENTO PARA REFORMAR DECISÃO QUE HAVIA AUTORIZADO A FUNAI A INTRODUZIR OS SILVÍCOLAS EM RESERVA INDÍGENA DEMARCADA. em razão da sentença parcialmente procedente. Des.Sociologia. da permanência dos posseiros no local onde estão. 231. SEM PREJUÍZO DA PERMANÊNCIA DE POSSEIROS NO LOCAL.00.DJ 1º/10/2004) Convém destacar que. Recurso provido para restabelecer a decisão proferida pelo Juízo de origem. em 23/08/2007 (Processo nº 2007.01. para restabelecer a decisão proferida pelo Juízo de origem. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TERRAS INDÍGENAS. reformou decisão proferida pelo Juiz Federal da 5ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Mato Grosso. sem prejuízo. o MPF requereu em juízo o cumprimento provisória da sentença. incertos. 35 . determinando que os réus e todos aqueles.Vol.144. Cumpre ressaltar que. sob o nº 2007. 1. da permanência dos posseiros no local onde estão. Antropologia e Cultura Jurídicas provimento a agravo de instrumento. Min. concedendo efeito suspensivo à apelação cível. desconhecidos e terceiros. autorizando o retorno da Comunidade Xavante à Terra Indígena Marãiwatsédé. sem prejuízo da permanência dos posseiros na aludida área. (RE 416.00.012519-0). 2. foi proferida Sentença pelo Juiz Federal da Seção Judiciária do Mato Grosso– sentença com exame do mérito procedente em parte. por unanimidade de votos. Desse modo. por enquanto. no que tange à Apelação distribuída no TRF 1ª Região no dia 06/11/2007. houve decisão do Desembargador Relator. até a decisão definitiva. Ellen Gracie. Fagundes de Deus. que se retirem da Terra Indígena Marãiwatsédé. 3. Ofensa ao art. autorizando o retorno da Comunidade Indígena Xavante à Terra Indígena Marãiwatséde. a qual autorizara o retorno da comunidade indígena Xavante às terras que lhe foram destinadas (terra Indígena Marãiwatsédé). Desta feita. §§ 2º e 6º da CF. em face do Projeto de Lei 215/2011.Sociologia. defiro o pedido de suspensão do processo. à unanimidade. a marcha regular do 91 . reforço policial por parte do Departamento de Polícia Federal”. Federal Souza Prudente. aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso e sancionada pelo Governador do Estado. in casu. Nesse sentido. e é bem da União. a hipótese legal de suspensão do feito tãosomente pode ocorrer em caso de convenção das partes. o pedido de suspensão do processo em testilha. desde já. declarou sem efeito a decisão do Des. havendo. a fim de transformá-la em Reserva Indígena Marãiwatsédé. Ocorre que o Des. Porém. assim. com prazo de vinte dias. qual seja: “Tendo em vista a possibilidade de acordo noticiada nos autos (fls. Aliás. em face do acórdão. Antropologia e Cultura Jurídicas redundou na suspensão do cumprimento provisório da sentença. o MM. Outrossim. Fagundes de Deus. acertadamente. a inconstitucionalidade de lei estadual que pretende tratar de área indígena. restando autorizado. retomando-se. no acórdão em 28/08/2010. como em caso de epidemia. 35 . a transferência de índios para outra área somente pode ser realizada em caráter provisório. havendo. Fagundes de Deus. datada de 29/06/2011. e ainda motivada por razões extremas.364-5. até ulterior deliberação deste relator”. inclusive. outrossim. Juiz Federal da 1ª Vara da Seção Judiciária de Mato Grosso acolheu o requerimento do MPF e determinou no sentido que “prossiga-se a presente execução provisória. fora do comércio. o Ministério Público Federal. 5. Destaque-se que a lei do Estado de Mato Grosso que autoriza a permuta da terra indígena em questão é inconstitucional. recusa dessa providência por parte do MPF.Vol. determinou a suspensão do processo. por conseguinte. o TRF da 1ª Região.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Por outro lado. com base em equivocado fundamento. indeferindo. requereu a continuidade do cumprimento da sentença (agora confirmada por acórdão). em 16/02/2011. uma vez que é área indígena indisponível. expedindo-se mandado de desocupação da área em litígio. o Des. Sendo assim. em 29/06/2011.357). No entender do MPF. e. político e econômico. apenas um dos promovidos veiculou pedido nesse sentido. a proposta fere a Constituição Federal. para que fosse determinada a extrusão de todos os não-índios da Terra Indígena Marãiwatsédé. da FUNAI e da União Federal. pelo qual se autoriza a permuta da área em litígio por área correspondente localizada no Parque Nacional do Araguaia/MT. onde deverão ser mantidos apenas os indígenas. deu provimento parcial à remessa oficial e negou provimento às apelações dos réus. em 29/06/2011. foram oferecidos lotes no assentamento Santa Rita. a Justiça Federal de Mato Grosso homologou o plano de desocupação elaborado pela Funai para retirada de não índios que estão na Terra Indígena Marãiwatsédé. região na qual posseiros estão sendo retirados da T. em juízo. incontinenti. restando autorizado. que pertencem a não índios. de antemão. do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). sendo que. Marãiwatsédé tem 242 empreendimentos. Nesse contexto. Criado em 19/12/2012. bem como o auxílio da Força Nacional de Segurança. Diante disso. na gleba Suiá Missú.I. determina-se a expedição. da Força Nacional e do Exército. em Alto da Boa Vista. foram verificados 619 (seiscentos e dezenove) pontos entre residências e comércios. podendo ampliar a meta de acordo com a demanda. Em síntese. através de força-tarefa do governo federal.I. apresente.Sociologia. o “PAC Vida Nova”. Verificou in loco a força tarefa que a T. receberá inicialmente 30 famílias oriundas de Posto da Mata. no prazo improrrogável de 10 dias. A operação de desintrusão deu início em 10/12/2012 para a operação de retirada de fazendeiros e trabalhadores rurais que vivem no interior da T. entre casas. Em 19/12/2012. comércios e fazendas. o Ministério Público Federal requereu o prosseguimento do cumprimento provisória da sentença. do mandado de desocupação da área em litígio. Marãiwatsédé. o plano de desintrusão da Terra Indígena Maraiwatsede. o desforço policial por parte da Pólicia Federal. formada por representantes da Secretaria-Geral da Presidência da República. Marãiwatsédé. (ii) apresentado o plano de desintrusão. além do Projeto Casulo. e que se adequem ao perfil para a reforma agrária. para as famílias que ocupavam a TI Marãiwatsédé. devendo serem mantidos apenas os indígenas. todos desocupados. 92 . no Diário Oficial da União. em Ribeirão Cascalheira. Antropologia e Cultura Jurídicas presente feito. 35 . com prazo de trinta dias. na região nordeste do estado. a criação do Projeto Assentamento Casulo. do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . no município de Alto Boa Vista. ao que o Juiz Federal da Seção Judiciária de Mato Grosso Marllon Sousa proferiu decisão determinando: (i) a expedição de ofício à Presidência da FUNAI para que.T. da Polícia Rodoviária Federal. o INCRA publicou. denominado “PAC Vida Nova”. Ressaltou-se que o projeto de assentamento surgirá depois da conclusão do processo de desocupação e que serão implantadas 300 unidades familiares destinadas aos ocupantes cadastrados previamente e que vivem no Posto da Mata. da Polícia Federal (PF). da Fundação Nacional do Índio (Funai).Vol. tanto na área rural como no distrito de Posto da Mata. Contexto. Mércio Pereira. cidadão com direitos plenos. que são transmitidas de gerações a gerações. incorporou-a de forma definitiva no rol dos bens da União. CONSIDERAÇÕES FINAIS O art. p. São Paulo: Ed. porquanto.Vol. Presente e Futuro. XI da CR/88. os atos que tenham por objeto a ocupação. não produzindo efeitos jurídicos. 231. sendo nulos e extintos. 2012. os esbulhadores de suas riquezas. as doenças e o preconceito ainda existente. é a partir dos elementos que compõem a fauna e a flora dos territórios.a desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé foi totalmente concluída. oficial de Justiça realizou o último sobrevoo para verificar a situação da área em 28/01/2013. nos termos do §6º do art. 20. define o que seriam terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. a terra para esses povos é dotada de grande relevância mítica. e entregou à Funai o “Auto de desocupação final”. de modo que o direito de propriedade da União declarado pelo ato administrativo em análise reveste-se dos requisitos de inalienabilidade e indisponibilidade. 93 .Sociologia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Ademais. outrossim. em 27/01/2013. Antropologia e Cultura Jurídicas Conforme declara a FUNAI no Informe 12 . o próprio Supremo Tribunal Federal conclui que o Decreto Presidencial de 11/12/1998. em seus parágrafos. os usurpadores de terras. que declarou a área objeto da ação como terra indígena. Quanto ao caso da T. 231 da CR/88 reconheceu expressamente os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.I. e determina o uso exclusivo pelos índios dos recursos naturais existentes nas terras por eles ocupadas. atribuindo à União a competência para demarcá-las. Nessa senda.9 Insta destacar que a ocupação dos territórios pelos povos indígenas sempre esteve intrinsecamente ligada às relações sociais. coletividades com formas próprias de conduta social e cultural. 4. o domínio e a posse das terras identificadas. dispõe Mércio Pereira Gomes: A Constituição brasileira definiu o índio como parte essencial da nação brasileira. quando.Operação de desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé (MT). protegê-las e fazer com que todos os bens indígenas sejam respeitados. inc.286. da 9 GOMES. nos termos do art. povos específicos com direitos legitimados pela sua historicidade. relacionada umbilicalmente ao modus viendi da comunidade indígena tratada. Marãiwatsédé. que surgem as lendas. regulamenta sua posse e usufruto. O Estado lhes garante sua proteção contra seus inimigos. Os Indios e o Brasil: Passado. 35 . 231.10 Na verdade. trata-se de posse ilícita. promoveram a expulsão dos indígenas de suas terras. Marãiwatsédé é uma página invertida de muitas situações que ocorreram na história do Brasil com o esbulho de terras indígenas. submetendo-os à extrema necessidade de sobrevivência. Suspensão de liminar. o que está acontecendo na região da T. dos rios e dos lagos nelas existentes. circunstância da qual não decorre nenhum direito de indenização ou direito de retenção. que resultou na drástica redução dos meios de subsistência e posterior alocação dos mesmos em uma pequena área alagadiça onde ficaram expostos a inúmeras doenças. dissimulando os atos de violência num suposto espírito humanitário. Assim. Logo. 94 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 35 . sendo que a comunidade indígena Marãiwatséde foi despojada da posse de suas terras na década de sessenta quando o Mato Grosso passou a emitir título de propriedade a não-índios. e de má-fé. e parágrafos. objeto da ação. a fim de respaldar a obtenção de financiamento junto à SUDAM. todos os invasores sobre a área objeto do litígio. consoante art. impulsionados pelo espírito expansionista de "colonização". requerem junto à FUNAI uma certidão atestando a inexistência de aldeamento indígena nas referidas terras. importa saber se à época da promulgação da CR/88 os índios Xavante Marãiwatséde eram ocupantes habituais da área posteriormente demarcada e homologada por Decreto Presidencial. quanto ao marco da tradicionalidade da ocupação. as condutas espúrias praticadas pelos dirigentes da Agropecuária Suiá-Missú. tanto que assim fora reconhecido posteriormente por ato do Presidente da República. ou se delas foram desalojados anteriormente. Ayres Britto. Destarte. Outrossim. cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo.7 milhão 10 STF.Sociologia. sobre bem imóvel da União. da CR/88. De fato. em função da acentuada degradação ambiental. SL 644/ MT. e de má-fé. Publicação: 22/10/2012. Antropologia e Cultura Jurídicas CR/88. Também segundo o Supremo. não produzem efeitos jurídicos quaisquer atos que tenham por objeto a ocupação e a posse sobre referidas terras.área contínua de 1.que é ilícita. Decisão proferida pelo Min. em 1966. as quais se destinam à posse permanente da respectiva comunidade indígena. Julgamento: 17/10/2012. O caso que mais marcou os nossos tribunais e com repercussão midiática foi a demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol.Vol. articularam a transferência da comunidade indígena Marãiwatséde para a Missão Salesiana de São Marcos para. anos depois. em Roraima. em virtude de esbulho praticado por não-índios. são sabedores de que se tratava de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios Xavante Marãiwatséde. I. 95 . ex vi do art.Roraima. o constituinte da Carta Magna de 1988. e com a Operação Upakaton 3. participação e exploração dos recursos nas terras por eles tradicionalmente ocupadas. mas também garantir o espaço cultural necessário ao respeito e à realização de suas tradições. com clareza cristalina. 35 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . é de fundamental importância para a sobrevivência física e cultural dos vários povos indígenas que vivem no Brasil. bem como à permanência. as autoridades federais. tendo apenas natureza eminentemente civil. a similitude do presente caso de invasão da T. de 13/04/2005 e a sua homologação em 15/04/2005 pela edição do decreto presidencial. XI da CF/88). a atos de sabotagem destinados a impedir a entrada dos policiais nas fazendas. costumes. sendo que alguns destes resistiram por longo período à investida do governo e policial. Ayres Britto. É mister registrar a grande mudança de paradigma que veio à baila com a Constituição da República de 1988. a defesa dos territórios indígenas garante a preservação do meio ambiente e de um imenso patrimônio biológico e do conhecimento milenar detido pelas populações indígenas a respeito deste patrimônio. cultural e a legitimação de suas terras. por meio da demarcação. os direitos indígenas restringiam-se basicamente ao direito de posse sobre a terra (eis que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios pertencem à União. Verifica-se. O reclamo em matéria indígena dá-se pois há urgência de incluir as populações indígenas como parte constitutiva de um processo pós-colonial ainda vigente que afirme a sua autonomia política. Raposa Serra do Sol. com ações que consistiam desde protestos públicos na capital. retiraram definitivamente da área os últimos ocupantes que ainda ali estavam: pequenos proprietários rurais. Maraiwatsédé com a invasão da T. 20. Na verdade. Por outro lado. O ponto nodal a se destacar é no sentido de que a regularização das terras indígenas. uma operação policial para a retirada de arrozeiros ocupantes de parte da área foi objeto de reação violenta e que apenas teve fim com a decisão do Supremo Tribunal Federal. em 2009. I. embora administrativamente concluída desde abril de 2005. Anteriormente à Constituição de 1988. Boa Vista. que deu azo à grande polêmica nacional. Antropologia e Cultura Jurídicas de hectares. e todos os seus desdobramentos. Ademais. crenças. divorciando-se da visão integracionista típica do antecedente período militar.Vol. comerciantes e um grupo de grandes e influentes produtores de arroz.888. Após a decisão do Supremo. porquanto. I.Sociologia. assegurar o direito à terra para os índios significa não só assegurar sua subsistência. da Relatoria do Min. assegurou aos índios o direito à manutenção de sua organização social. com usufruto dos mesmos. com a Portaria do Ministro da Justiça nº 534. línguas e tradições. em 2009. na PET 3. Maria Lucia Cereda. GOMES. Campo Grande: UFMS. Joe. REFERÊNCIAS FOWERAKER. 1995. Aracy Lopes da & GRUPIONI. 96 . Brasília.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 1999. DOI : 10. José Rodrigues. governador. Egon Dionísio. São Paulo: Ed. Dissertação de Mestrado. 1986. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil. Cláudio Alves de. e em toda a regulamentação alienígena. Unicamp: Campinas.. posto online em 06 Abril 2011. Universidade Estadual Paulista. In: SILVA. senhor Tristão da Cunha Menezes. João Pacheco de Oliveira. Dissertação. 35 . LOPES DA SILVA. Aracy. em tratados em que o Brasil é parte. Os Indios e o Brasil: Passado. Colonização e especulação fundiária em Mato Grosso: a implantação da Colônia Várzea Alegre (1957-1970). A questão indígena na província de Mato Grosso: conflito. VASCONCELOS. a garantir aos povos indígenas o gozo pleno dos direitos e garantias fundamentais reconhecidos na Constituição Federal de 1988. Assis. 11| 2011. LOMBA. Mestrado em História. Lisboa: Typografia Nunesiana. FREIRE. OLIVEIRA. cultural e a legitimação de suas terras. VASCONCELOS.. coleção textos e documentos FFLCH/USP. Cláudio Alves de. A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. (Mestrado em História). 1986. 1982. GOMIDE. Relação da conquista do gentio Xavante conseguida pelo. FFLCH-USP. 1996. 1951. Tradução Maria Júlia Goldwassar. Contexto. UFMS. há urgência de incluir as populações indígenas como parte constitutiva de um processo pós-colonial ainda vigente que afirme a sua autonomia política.6888 HECK. Os índios e a caserna: Políticas indigenistas dos governos militares (1964-1984).revues. 1790.4000/confins.org/6888. Sobre o processo de ocupação e as relações de trabalho na agropecuária: O extremo sul de Mato Grosso (1940-1970). Rio de Janeiro: Zahar. Território no mundo A’uwe Xavante.Vol. 1790.Sociologia. Luís Donisete Benzi (organizadores). 5. 2003. na legislação pátria. Consultado em 23 Dezembro 2012. trama e continuidade. Relação da conquista do gentio Xavante. DF: MEC/ UNESCO. Confins [Online]. Mércio Pereira. Presente e Futuro. URL: http://confins. e capitão general da capitania de Goiás. Muita terra para pouco índio? Uma introdução (crítica) ao indigenismo e à atualização do preconceito. Dourados. Jocimar. Antropologia e Cultura Jurídicas Sendo assim. 2012. Nomes e Amigos: da prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê. ilha da marambaia. 97 . de autoria da União Federal e que possui como réus. os debates e as tensões em torno do reconhecimento de parte da Ilha da Marambaia como território remanescente de quilombos apontam para a permanência. descendentes de escravos. Além dessas. que se mantêm nos dias atuais.Vol. com a instalação do centro de treinamento da Marinha do Brasil. da Ilha da Marambaia. livelihoods. do relato de membros da comunidade remanescente de quilombos e dos estudos já produzidos. a partir da análise de documentos históricos. 35 . cerca de onze moradores. through the analysis of historical documents. the debates and tensions surrounding the recognition part of the island territory as Marambaia remaining quilombos point to stay over their history. da reprodução e da ocupação dos membros da comunidade descendente de escravos que lá reside. direitos humanos Abstract: Often. the report of community members and the remaining quilombos studies ever produced. da Escola de Pesca Darcy Vargas. Palavras-chave: remanescentes de quilombos. Será abordado o período de transição entre o funcionamento da Escola de Pesca Darcy Vargas (1932-1970) e a administração militar na Ilha.Sociologia. Mestre em Ciências Sociais (CPDA/UFRRJ) e Professora da graduação e da pós graduação em Direito no Centro Universitário de Volta Redonda (UniFoa) e no Centro Universitário Geraldo Di Biase (UGB). de formas de controle sobre aspectos do cotidiano. Antropologia e Cultura Jurídicas “UM TEMPO MELHOR QUE HOJE1”: RUPTURAS E PERMANECÊNCIAS NA HISTÓRIA SOCIAL DA ILHA DA MARAMBAIA "A TIME BETTER THAN TODAY": SOCIAL HISTORY OF THE ISLAND OF MARAMBAIA Aline Caldeira Lopes2 Resumo: Frequentemente. As fontes primárias trazidas para análise são documentos históricos que compõem ações de reintegração de posse que tramitam na Justiça Federal do Rio de Janeiro. no local. 1 A expressão é constantemente utilizada pelos moradores da Ilha da Marambaia ao referir-se ao tempo de funcionamento. ao longo de sua história. forms of control over aspects of everyday life. meios de vida. O presente artigo tem como objetivo compreender algumas das dimensões das relações de poder nesse campo de estudo. entre as décadas de 1930 e 1970. em 1970. This article aims to understand some of the dimensions of power relations in this field of study. parte do artigo utilizou a metodologia de realização de grupos focais.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . elaborados com o objetivo de reconstruir a história social do grupo a partir da memória dos moradores mais antigos que vivenciaram esse período transitório. reproductive and occupation of community members descended from slaves who resides there. 2 Advogada. Frequentemente. em 1970. Estão em jogo no conflito contemporâneo 3 duas formas opostas de apropriação do território. da reprodução e da ocupação dos membros da comunidade descendente de escravos que lá reside. dos meios de vida. administrada pela Marinha do Brasil e considerada de interesse militar. ver: LOPES. Marambaia: Processo Social e Direito. Aline Caldeira. with the installation of Navy training center in Brazil in 1970. Antropologia e Cultura Jurídicas Will address the transition period between the operation of the School of Fisheries Darcy Vargas (1932-1970) and the military administration on the island. Para a comunidade quilombola a Marambaia é espaço de vida. reprodução física e cultural. part of the article used the methodology of conducting focus groups. com a instalação do centro de treinamento da Marinha do Brasil. Sobre o tema. 3 Trata-se do conflito com relação ao reconhecimento de parte da Ilha da Marambaia como território pertencente à comunidade remanescente de quilombo e à oposição da União Federal e da Marinha do Brasil quanto a isso. which remain today. para quem a Marambaia é local privilegiado para atividades de treinamento militar com a possibilidade de realização de treinamentos de tiro com bala real.Sociologia. authored by the Federal Government and which has as defendants. The primary sources for analysis are brought historical documents that make up actions for repossession processed by the Federal Court of Rio de Janeiro. os debates e tensões em torno do reconhecimento de parte da Ilha da Marambaia4 como território remanescente de quilombos apontam para a permanência de formas de controle sobre aspectos do cotidiano. descendants of slaves. 2010.Vol. disputas e tensões. Atualmente estão em trâmite uma Ação Civil Pública no TRF2 e um processo administrativo no INCRA. É tecnicamente uma restinga. 35 . 98 . pesca. Keywords: remanescentes de quilombos. developed with the goal of reconstructing the social history of the group from the memory of the oldest inhabitants who lived through this transitional period. será analisado o período de transição entre o funcionamento da Escola de Pesca Darcy Vargas (1932-1970) e a administração militar. Marambaia Island. De um lado a Marinha do Brasil.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . O presente artigo tem como objetivo compreender parte desse processo histórico de reconhecimento. litoral do estado do Rio de Janeiro. Para tanto. Dissertação apresentada no CPDA/UFRRJ. As duas formas estão em conflito e têmse demonstrado incompatíveis. Besides these. que se mantêm nos dias atuais. 4 A Ilha da Marambaia está situada na Baía de Sepetiba. de festa. the island of Marambaia . human rights INTRODUÇÃO A Marambaia contemporânea é fruto de lutas históricas e das disputas cotidianas de diversas gerações e administrações. A área é propriedade da União Federal. about eleven residents. parte do artigo utilizou a metodologia de realização de grupos focais. Além dessas. descendentes de escravos. um dos estudiosos a elaborar acerca da fundamentação teórica dos “direitos do homem” ou dos direitos humanos. comunidades. e nascidos de modo gradual. sob a perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Flávia Piovesan. apontando para uma pluralidade de significados para a referida categoria e remetendo-nos para uma concepção contemporânea da mesma. 1992. são direitos históricos. ou seja. analisa a concepção contemporânea dessa questão à luz do sistema internacional de proteção. não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (BOBBIO. de autoria da União Federal e que possui como réus. objetivos. 35 . elaborados com o objetivo de reconstruir a história social do grupo a partir da memória dos moradores que vivenciaram esse período transitório. ainda. assim como para Bobbio. questionando a plausibilidade de uma visão integral dos direitos humanos (2004). caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes. lógica e principiologia e.Sociologia. continentes. Daí a importância da identificação e compreensão dos diferentes acúmulos para a construção “gradual” dos direitos humanos no mundo. O processo histórico de reconhecimento das comunidades quilombolas pode ser analisado sob a ótica do processo histórico de fundamentação e elaboração dos direitos humanos no Brasil e no mundo.Vol. de 1993. regiões. etc. nascidos em certas circunstâncias. a era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana – que resultou no envio de 18 milhões de pessoas a campos de 99 .5). observando seu perfil. A historicidade da categoria dos direitos do homem apontada por Bobbio pode ser interpretada ainda como uma historicidade construída pelo acúmulo articulado de lutas e conquistas travadas em diversos países. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos. como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos pelo regime nazista. Para a autora: Tal concepção é fruto de um movimento extremamente recente de internacionalização dos direitos humanos. Antropologia e Cultura Jurídicas As fontes primárias trazidas para análise são ações de reintegração de posse que tramitam na Justiça Federal do Rio de Janeiro. Podemos afirmar que a noção de direitos humanos apontada pela autora. introduzida com a Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena. é elaborada a partir de uma concepção de direito como construção social (2004). econômicos e culturais e os direitos civis e políticos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . por mais fundamentais que sejam. Norberto Bobbio. Piovesan analisa a historicidade dos direitos humanos. p. surgido no pós-guerra. afirmou categoricamente “que os direitos do homem. cerca de onze moradores da Ilha. ao abordar os direitos sociais. descreve o esforço de reconstrução dos direitos humanos como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea (2004). o século 20 foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial (PIOVESAN. 2004). o que lhe proporcionou durante anos fonte constante de reposição de 100 . em meados da década de 2000 . 149). ou seja. busca contribuir para o campo de reflexões sobre a construção histórica dos direitos humanos no Brasil. foi um importante ponto de desembarque clandestino de escravos do Comendador Joaquim José de Souza Breves. a reconstrução de períodos relevantes para a compreensão dos conflitos contemporâneos. Nesse sentido. de modo que os obstáculos representam uma dimensão do direito como campo de tensões. buscando uma reflexão crítica sobre os obstáculos que circundam essa temática desde as primeiras declarações de direitos.especialmente na Bolívia. No mesmo sentido. então proprietário do imóvel. ao observar as movimentações no continente . No dizer de Ignacy Sachs (1998. no litoral do Estado do Rio de Janeiro. O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos. ciganos. “uma imensa restinga e ilha ao sul do Rio de Janeiro. “civilizacionais”. “tan grande hoy en día que destruye la ecología y las relaciones sociales” (SANTOS.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .o caso do conflito entre a comunidade remanescente de quilombolas da Ilha da Marambaia e as Forças Armadas. segundo Piovesan. com a morte de 11 milhões... quase oposto. sendo.comentou o que ele caracterizou como um sentimento de urgência no país acerca de mudanças no sentido do desenvolvimento capitalista no continente. sendo 6 milhões de judeus. No que diz respeito à construção histórica dos direitos na América Latina. a consolidação da democracia estaria intimamente relacionada com a consagração de sistemas de proteção dos direitos humanos. como processo histórico. Observou ainda um sentimento. No século XIX o local. Antropologia e Cultura Jurídicas concentração. na região de Mangaratiba e estrategicamente situada no Sul Fluminense”.Sociologia. 35 . da certeza de que essas mudanças deverão ser feitas em longo prazo. O cenário apontado. Boaventura de Souza Santos. disputas e conflitos. Nessa perspectiva.Vol. a condição de sujeito de direitos. por meio das mobilizações em torno da Assembleia Constituinte no país. além de comunistas homossexuais. portanto. 2007). p. portanto. Os autores apontam o referido processo – de afirmação dos direitos humanos – como um processo não linear. tendo como referencial empírico – neste artigo . José Ricardo Cunha e Nadine Borges (2009) analisam o panorama histórico do processo de afirmação dos direitos humanos. situado na Ilha da Marambaia. à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana. 2004:35). mas fornecer mão de obra forte e robusta para o trabalho no cafezal” (CHATEAUBRIAND. a historiadora Fânia Fridman faz menção a esta ação de usucapião através da referência a uma localização da Secretaria de Patrimônio da União (SPU). Alberto apud URBIATI. ARRUTI. O jornalista chegou até a Marambaia seduzido pela descrição de um amigo geógrafo e se jogou no “reconhecimento” da Marambaia numa úmida manhã de agosto. que esteve em funcionamento até 1910.Vol. 1927 apud BREVES. em situação de “evidente subnutrição”. como a ação de usucapião de autoria dos moradores da Ilha da Marambaia em face da União Federal no ano de 19326. 101 . 2007).antigo proprietário da Ilha que possuía na Marambaia uma “estação de engorda de seu pessoal do eito” .Sociologia. devido às modificações nos sistemas classificatórios da Secretaria desde a pesquisa da historiadora. que talvez seja a mais difundida descrição sobre a Ilha da Marambaia. 2009). 2003. este foi um fator essencial para a constituição de sua imensa fortuna (URBIBATI. 2003. 2007). sendo então transferida para a cidade de Campos dos Goitacazes (MOTA. 5 LAMEGO. 2004:35. MOTA. Após o fim do empreendimento escravista de Breves. Disto conclui-se que “deveria comerse bem na Marambaia. YABETA. a documentação não pode ser localizada. No entanto. os homens e mulheres descendentes de escravos que habitavam a Ilha da Marambaia no final do século XIX permaneceram desenvolvendo estratégias de sociabilidade (com os moradores das ilhas próximas) e de sobrevivência (através da manutenção de roças e principalmente da pesca) em meio aos diversos projetos instalados ao longo do século XX (ARRUTI. 2003. 6 No livro “Donos da Terra em Nome do Rei: Uma História Fundiária da Cidade do Rio de Janeiro” (1999). Antropologia e Cultura Jurídicas mão de obra escrava. No ano de 1908 a Marinha do Brasil instalou na Marambaia a Escola de Aprendiz de Marinheiros do Estado do Rio de Janeiro. porque o objetivo mais importante daquela fazenda não era produzir café. Em sua chegada. Para alguns autores como Alberto Lamego 5. sua morte e a abolição da escravidão.pôde observar “as ótimas recordações que aqueles velhos escravos” guardavam “do senhor já desaparecido há tantos anos”.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . observou as “condições miseráveis de existência” de uma população não inferior a 500 pessoas. 2003). Conversando com alguns dos antigos escravos do Comendador Joaquim José de Souza Breves . 1927 apud BREVES. 35 . Alguns indícios apontam que esta permanência não se deu sem conflitos. É do início do século XX o relato de viagem do jornalista Assis Chateaubriand ao “Pontal da Marambaia” em 1927. pescando para comer e destituídas de “qualquer estímulo para trabalhar e poupar” (CHATEAUBRIAND. Na década de 1970 o Brasil contava com seis anos de ditadura militar e estava sob o comando do General Emílio Garrastazu Médici. entre moradores e Marinha do Brasil. das florestas. de local de recepção de trabalhadores de todo o país passou. da fauna. É nesse ponto que se inicia o presente artigo. paulatinamente. 2003. a Marinha do Brasil dispôs não somente da propriedade do imóvel Marambaia. os descendentes de escravos integraram-se aos novos residentes da Ilha. Justiça Federal). o local – propriedade da União Federal desde 1905 . a Ilha da Marambaia passou à administração militar através da instalação de uma unidade da Marinha do Brasil. passou paulatinamente a ser um local de uso exclusivo das Forças Armadas. Quanto à Ilha da Marambaia. das nascentes de água. Isso porque a administração militar finalizava o período em que funcionou na Marambaia a Escola de Pesca Darcy Vargas. A modificação pode ser relacionada ao início do conflito contemporâneo pelo território. da flora e por fim 102 . TEMPO DE “DESGOSTO”: A CHEGADA DA MARINHA Na década de 1970 o Brasil contava com seis anos de ditadura militar e estava sob o comando do General Emílio Garrastazu Médici. Ao chegar. entre remanescentes de quilombos e Marinha do Brasil. Antropologia e Cultura Jurídicas Em 1939 foi instalada na Ilha da Marambaia a Escola de Pesca Darcy Vargas (nome da esposa do então Presidente da República). Nesse período. 2003).Vol. sendo absorvidos seja como trabalhadores da Escola ou como estudantes e formando núcleos familiares entre os descendentes dos escravos de Breves e entre os novos moradores (ARRUTI.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . destinada à formação de pescadores profissionais. exercer o controle das atividades agropecuárias e colaborar com as atividades governamentais de ações cíveis (Aviso Ministerial n° 0485 anexado ao processo judicial n° 980013150 – União Federal x Eugênia Eugênio Barcellos.Sociologia. Em meados da década de 1970. A unidade militar instituída tinha as seguintes atribuições: executar a conservação dos bens móveis e imóveis da área de responsabilidade da Marinha do Brasil. MOTA. Quanto à Ilha da Marambaia. mas das praias. A modificação pode ser relacionada ao início do conflito contemporâneo pelo território.passou à administração militar através da instalação de uma unidade da Marinha do Brasil. de local de recepção de trabalhadores de todo o país. Durante este período. a ser um local de uso exclusivo das forças armadas. 35 . trabalho ou casamento.Vol. enxadas ou foices para afastá-los ou impedir que passassem em seus quintais (ARRUTI. como os coqueiros da Praia da Armação. A paisagem da região foi progressivamente modificada após o período de instalação da administração militar. foi um empecilho à utilização militar da Marambaia. precisariam solicitar autorização antecipada do Comando Militar7. ela veio a falecer. sob um quadro de depressão. A memória. A população local foi reduzida com relação ao período anterior. As ruínas da antiga senzala de escravos. do início dos anos 70. portanto. 2003: 142). nativo da Ilha da Marambaia e informante da pesquisa. Os episódios foram marcados na lembrança dos moradores. no qual a velha já não comia nem conversava com os vizinhos. nem capim. cortando imediatamente o coqueiro familiar. que contam a história de uma senhora que faleceu por depressão após a derrubada do coqueiro de seu quintal: É deste período. os que precisaram deixar a ilha por motivo de estudo. restando os descendentes do período escravista e os oriundos da Escola que constituíram algum tipo de vínculo na Marambaia. Diante de sua firme resistência. que ela tinha por estimação. foi adaptada de modo que servisse como hotel aos visitantes da Ilha. a manutenção de roças e criações na Marambaia (frequente no período anterior) foi-se tornando paulatinamente insustentável e 7 Informação cedida gentilmente por Bertolino Dorothea. foram destruídos coqueirais e pomares seculares. O objetivo foi a ampliação de uma estrada que passava do seu lado (ARRUTI. muito marcante para todos daquele lado da ilha e. 35 . 2003: 142-143). por exemplo. que experimentavam a violação de seus espaços domésticos. No esforço para a “limpeza do terreno”. Poucos dias depois. especialmente àqueles convidados por membros de postos hierárquicos superiores. como o matrimônio. o soldado afastou-a com violência física e sob ofensas e xingamentos. receberam um cartão de “visitante permanente”. o relato da morte de uma senhora idosa que tentou se interpor entre um jovem soldado e o coqueiro de seu quintal. que restou das ruínas históricas da Casa Grande da Fazenda da Armação. as mulheres saíssem de suas casas empunhando vassouras.Sociologia. motivo pelo qual foram destruídos os vestígios da capela Nossa Senhora da Soledad. 103 . que ao longo do tempo foi extinto. Assim tornou-se comum que quando os soldados se aproximavam de suas casas. Os moradores e seus familiares passaram a ser cadastrados e monitorados anualmente e. surgiu a crença (ou “lenda” como costumam chamar) sobre uma maldição associada aos militares: dizia-se que onde os soldados pisassem não crescia mais nada. Na nova dinâmica de ocupação do território. A partir dessa história. em especial para as mulheres. para entrar na Marambaia. destruídos em 1975. Antropologia e Cultura Jurídicas das pessoas e da história da ilha. Desde então.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . apesar de existirem em pequeno número. impôs um rearranjo das atividades agrícolas praticadas pela comunidade e. excluiu as formas tradicionais de ocupação da terra por camponeses. 35 . a introdução de búfalos. 2003). O morador Felipe. Zenilda. por exemplo. assim. Devido à inexistência de solução alternativa. os soldados fardados ou camuflados pouco se diferenciavam dos jagunços de um grande senhor soberano. mas o de lançar-se ao mar. Repetia-se assim um modelo de apropriação territorial que. Como a família não teve recursos para manter a área cercada optou pela desistência das roças (ARRUTI. quilombolas e indígenas e a forma de uso militar da Marambaia. o cemitério local seria mantido até que fosse dado melhor encaminhamento à situação: 104 . criados soltos pela Marinha do Brasil. com a predominância das atividades pesqueiras como estratégia de sobrevivência (ARRUTI. porém. adotando definitivamente o modo de vida pescador (ARRUTI. Mesmo a criação de porcos fica dificultada. A transição foi feita ainda por meio da desoneração ou diminuição da participação da nova administração na manutenção de estruturas de auxílio aos moradores locais. Outra moradora. 2003). mas que havia sido modelado pelas classes latifundiárias coloniais: o avanço das pastagens sobre as roças como forma de ampliar domínios e descaracterizar as posses tradicionais dos camponeses. Nesse caso. A transição entre a administração da Escola de Pesca e a da Marinha do Brasil foi realizada por meio do encerramento e da desativação de estruturas locais específicas. aproximava-se da forma de uso de grileiros e latifundiários (ARRUTI. cerca de trinta anos antes. mantidas para a comercialização da pesca ou para o suporte da atividade pesqueira e agropecuária. em alguns locais. 2003). a sua extinção. Além dos cavalos.Vol. dono da lei. por tratar-se de uma ilha. o único que atualmente permanece na Praia da Armação. eram criados soltos e invadiam os espaços de horta. da terra e da guerra. também mantém atualmente uma casa próxima à Armação. Ela conta que o motivo do fim de suas roças foram as invasões pelos cavalos da Marinha que. 2003): Assim repetia-se o método que a Escola Técnica já havia usado. Neste contexto.Sociologia. Antropologia e Cultura Jurídicas inviável economicamente. o recurso dos camponeses não poderia ser o de embrenhar-se pelos sertões. 2003). assim como em regiões de expansão das fronteiras agrícolas. pois com frequência é utilizada pelos marinheiros nos acampamentos militares como complemento do alimento disponibilizado pela Marinha (ARRUTI.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . como a “Escola Primária”. ressente-se de não poder manter sua antiga roça por morar muito próximo aos campos de treinamento. Ressalto que não deverá ser assumida pela MB [Marinha do Brasil] nenhum encargo no tocante ao fornecimento de merenda escolar. devendo os doze restantes serem empregados em 105 . d) determinar que a carpintaria naval e a oficina mecânica tenham suas atividades adaptadas e reduzidas. que existirá em função da presença do CR-CFN (Aviso Ministerial n° 0485 anexado ao processo judicial n° 980013150 – União Federal x Eugênia Eugênio Barcellos. Neste sentido. fábrica de redes. maternidade e ambulatório sejam adaptadas ás necessidades do CRFN e PNIM.° Chefe do Estado Maior da Armada. e) determinar que a conservação da Igreja seja mantida às expensas da Marinha do Brasil. a maioria foi dispensada: h) determinar que as atividades do hospital. Do: Ministro da Marinha Ao: Exm° Sr. em colaboração com a sede paroquial.Vol. ora em funcionamento para atender a população local. os serviços de hospital. N° 0485. de desarticulação da organização social de descendentes de escravos e trabalhadores da Escola de Pesca. no âmbito da União. desde que mediante convênio e sob a responsabilidade da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro. g) determinar que as atividades secundárias de caráter agro-pecuário sejam reduzidas a dimensões mínimas. consoante o contido no anexo da referência [sic]. podemos afirmar que a base da Marinha do Brasil na Ilha foi implementada a partir de uma orientação. O Aviso da referência (…) ora resolve: a) determinar que sejam encerradas. para suprirem tão somente o apoio indispensável à conservação dos bens móveis e imóveis do Centro de Recrutas do Comando de Fuzileiros Navais (CRCFN). f)determinar que o cemitério seja conservado às expensas da Marinha do Brasil. j) determinar que. mediante convênio. Justiça Federal). de material de pesca e a fábrica de pescado. Antropologia e Cultura Jurídicas Aviso. Exm° Sr° Comandante de Operações Navais. Mais do que a instalação de uma base de treinamento militar. Brasília. as atividades locais referentes a carreira. i) determinar que sejam alienadas as embarcações e viaturas consideradas irrecuperáveis ou de custosa recuperação ou que não servirem aos fins específicos do CRFN e PNIM. definitivamente. 35 . até que “a experiência decorrente do uso da área indique mais adequada solução para o caso”. c) determinar que seja mantida a Escola Primária. b) considerar irreversíveis as desativações da escola de pesca. As providências discriminadas no referido documento apontam indícios acerca da organização social da Ilha da Marambaia neste período de transição. maternidade e ambulatório que haviam na Ilha foram caracterizados como atividades secundárias. cabendo à Marinha do Brasil tão somente a colaboração para a conservação do imóvel utilizado para tal fim.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . cujo caráter de obrigatoriedade legal é de responsabilidade da administração da escola. podendo secundariamente atender à comunidade civil. no máximo a adequadas ao atendimento à comunidade militar – civil. Assunto: Prefeitura Naval da Ilha da Marambaia. estaleiro e fábrica de gêlo. seja providenciada a dispensa de 30 (trinta) dos atuais 42 (quarenta e dois) funcionários civis. 17 de maio de 1972. Quanto aos trabalhadores civis da administração da ilha.Sociologia. reprodução e circulação da população local: m) determinar que seja demarcada perfeitamente a área geográfica de responsabilidade do CRCFN. marcada. sendo destruídos os casebres e edificações que se demonstram irrecuperáveis. (Aviso Ministerial n° 0485 anexado ao processo judicial n° 980013150 – União Federal x Eugênia Eugênio Barcellos. Justiça Federal).e a população local cadastrada por meio um recenseamento. Antropologia e Cultura Jurídicas atividades locais. exclusivamente. ocupadas pelos familiares dos militares que estiverem servindo no local. a região deveria ser demarcada – como de fato o foi . A referência aos moradores locais através da categoria “remanescentes” aponta o modo como a administração concebia as formas de ocupação dos moradores da Ilha. Isso porque no ano de 1972 havia 42 (quarenta e dois) trabalhadores nesta função. por familiares dos militares. Podemos depreender ainda que o emprego na Escola de Pesca tinha um papel significante na economia local. Essas passavam pela utilização da estrutura da 106 . o que apontou a tentativa de estabelecimento de mecanismos de controle sobre a ocupação. 35 . Justiça Federal). de acordo com critérios de hierarquia militar. (Aviso Ministerial n° 0485 anexado ao processo judicial n° 980013150 – União Federal x Eugênia Eugênio Barcellos. inadequadas aos seus fins ou de alto custo de reparação e as demais residências deverão ser. Esta dispensa foi gradativa e finalizada até a data de 30/06/1972.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . n) determinar que seja refeita a lotação do CRCFN a fim de que não haja dispersão de esforços e recursos em decorrência das atividades que ficarem estabelecidas e devem existir nas áreas. De acordo com a orientação contida no Aviso Ministerial citado. especialmente. estas foram consideradas de “condições higiênicas precárias” e de “alto custo de reparação”.foram ocupadas. O documento aponta a existência de uma rede de sociabilidade e de estratégias de sobrevivência em torno da atividade pesqueira. exclusivamente.Vol. As demais – oriundas das instalações da Escola de Pesca . pela transitoriedade.Sociologia. (Aviso Ministerial n° 0485 anexado ao processo judicial n° 980013150 – União Federal x Eugênia Eugênio Barcellos. recenseando o pessoal civil que residir no interior dessa área (o qual deverá ser constituído tão somente pelo pessoal que presta serviço à referida OM) e a Marinha do Brasil deverá estar desvinculada de toda e qualquer obrigação quanto ao pessoal que habita as áreas não pertencentes à Marinha. segundo o critério natural de níveis hierárquicos. visando ao aproveitamento de suas experiências e capacidades profissionais individuais. De acordo com esse critério as casas com melhor estrutura e acabamento ficariam destinadas aos militares das mais altas patentes: l) determinar que sejam redistribuídas as casas pelos civis remanescentes. de condições higiênicas precárias. Justiça Federal). Quanto às residências dos “civis remanescentes”. como recordam os que viveram aquele tempo. a pontualidade da embarcação que realiza diariamente o trajeto entre a Marambaia e Itacuruçá. Como opções de lazer havia cinema e matinê. No que tange à pescaria. 8 A dissertação intitulada Marambaia: Processo Social e Direito. era a permissão para a construção de casas.Sociologia. aspectos relacionados ao modo de vida dos moradores na Marambaia. A análise do período de desativação da Escola de Pesca Darcy Vargas a partir da instalação de uma administração militar na Marambaia é fundamental para a compreensão de processos sociais que se desenvolveram após este período. o “tempo da Escola” é recordado como uma “lembrança boa”9. quando lembrado em oposição ao presente. “UM TEMPO MELHOR QUE HOJE”: A ESCOLA DE PESCA DARCY VARGAS Na memória de alguns moradores da Ilha da Marambaia que viveram ou vivem lá desde o período de funcionamento da Escola de Pesca Darcy Vargas. sob a orientação de Regina Bruno. de “um tempo melhor que hoje”.Vol. Mesmo os que não viveram diretamente aquele tempo guardam boas recordações oriundas de histórias contadas pelos pais e avós. “bons” médicos e maternidade na Ilha. bem como as tensões8 decorrentes de tais mecanismos. elaborada por Aline Caldeira Lopes. deve-se a esse período. 9 Utilizarei expressões entre aspas para designar transcrições de falas dos moradores. aborda o período do conflito na Ilha da Marambaia nas décadas de 1990 e 2000. armarinho para as mulheres que costuravam ou faziam artesanato e tecelagem. na Marambaia havia serviços como correios. Havia fábrica de gelo (fundamental para a conservação do pescado para a venda nos mercados do continente) e locais de beneficiamento do peixe (como prensa de peixe para a venda de sardinha enlatada). Relaciona-se ainda com as oportunidades de empregos aos moradores por meio da Escola de Pesca. Especialmente o desenvolvimento de mecanismos de limitação e controle do crescimento populacional na Marambaia. 35 . em 2010. Antropologia e Cultura Jurídicas antiga Escola de Pesca – compreendida por fábrica de gelo. A caracterização como tal se relaciona a diversos elementos como. açougue. oficina de carpintaria naval e mecânica –. a existência de hospitais. além de uma estrutura de educação primária e assistência médica e espiritual (igreja). a criação de gado e o cultivo de roças. estimulada pelo oferecimento de cursos profissionalizantes. Outro aspecto marcante.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Segundo relatos. as lembranças também são boas. no CPDA/UFRRJ. de pescado. telégrafo. de rede de pescaria. 107 . por exemplo. Disponível em: http://www. porcos. E agora. Hoje. 10 A principal consequência da chegada da Marinha foi o “desligamento” dos trabalhadores e a desocupação das casas funcionais. é com frequência relacionado com sentimentos de “derrota”. Nesta época. ele ficava no abrigo e depois era levado ao continente. O restante casou e teve que sair da ilha. Fonte: Zona Oeste de 2/08/1998. trabalhou 35 anos como cozinheiro na Escola de Pesca da Ilha da Marambaia. em geral maior que o do próprio pescado. armarinho e farmácia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .br/oq/dossies. Na Ilha tinha até cinema. Tenho 12 filhos vivos. quando não dava para tratar o doente. Tinha fábrica de farinha de peixe. O treinamento dos militares com bomba em locais de reprodução de animais. “decepção”. do gado e da embarcação pesqueira. de sardinha e de gelo. Ainda hoje. a metade mora aqui. Exemplo disto é declaração de Adelino Juvenal Machado ao Jornal Zona Oeste no ano de 1998: Antigamente tinha de tudo na ilha. Isso era cheio de gente. Na década de 1990 foi notificado a derrubar sua casa. 35 . Não dava pra ficar todo mundo igual a sardinha em lata. Sem o recurso da fábrica de gelo na Marambaia. morre aqui. cadê? No carnaval. posto que fundamental para o desenvolvimento da pesca como meio de vida e não somente subsistência. Até manteiga era fabricada aqui. temas que interferiram diretamente nos principais meios de sobrevivência do grupo. onde “tudo o que havia. até então utilizadas por estes profissionais. de 76 anos. o barracão de tecelagem era cedido para trazer os artistas. que são diretamente afetados pela diminuição da pesca. todo o pescado precisa ser vendido imediatamente. também é um tema recorrente entre os moradores. “revolta” e “humilhação” ou ainda com a perda de meios de sobrevivência. muitos moradores da Marambaia saíram da Ilha para morar em outras regiões. Tinha carpintaria. deixou de existir”.Vol.asp. O tempo de chegada da Marinha na Ilha da Marambaia. búfalos. Acessado em 8 de novembro de 2009. a dificuldade com relação à conservação do peixe é com frequência mencionado. Outra alternativa seria a compra de gelo do continente. portanto. Tinha criação de bois. 108 . Quando chegava um barco era uma festa. No hospital. Uma mudança marcante para os atuais moradores foi o fim da fábrica de gelo. principalmente aqueles que pescam.org. no entanto fica inviabilizada pelo custo.koinonia. em conversas com os moradores.Sociologia. 10 Adelino Juvenal Machado. se passar mal e não tiver canoa. Antropologia e Cultura Jurídicas O “tempo da Escola” é oposto constantemente ao tempo de “chegada da Marinha” na Ilha (1970). o que interfere nos preços pagos pelos atravessadores. perus e galinhas. por exemplo. é relacionada à década de 1990. após protestos. há relatos de que. posto que os comandos militares se alternam de dois em dois anos. Antropologia e Cultura Jurídicas Como mencionamos anteriormente.Vol. podendo retornar nos finais de semana para passear ou visitar a família que permanecia na Ilha. Os que saíam recebiam uma “carteirinha” de “visitante permanente” da Marambaia. De acordo com os moradores. que não é tão presente na memória dos moradores. havia doação de material de construção pela Marinha e a fixação do prazo de três meses para a conclusão da obra. Estava à frente do CADIM neste período o Comandante “Beda”. Ainda que condicionada por restrições aos principais meios de sobrevivência do grupo. De modo aparentemente contraditório. A necessidade de reforma ou construção das moradias partia muitas vezes das condições precárias em que as residências (muitas de pau a pique) se encontravam. a quem estão relacionadas as autorizações para construção. A recordação mais marcante está relacionada ao início das proibições para a construção. Consta da ata fundacional da Associação que a referida doação de material para a construção de casas estava vinculada à assinatura de um documento no qual o morador declarava que a casa pertencia à Marinha do Brasil. O barro com que eram construídas ocasionava problemas alérgicos nas crianças. alguns dos pedidos de reforma de casas eram justificados por laudos médicos que atestavam esta condição. É deste período a lembrança de alguns moradores da tentativa de cobrança para a utilização da embarcação de transporte para o continente (pela Marinha do Brasil) que. Data de um período anterior a este (17 de março de 1990) a fundação da Associação de Amigos e Moradores da Ilha da Marambaia (AMADIM). ampliação e reforma de casas na Ilha. A propósito. é possível que estivesse relacionado com o término da atuação de determinado comandante na Ilha da Marambaia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Sociologia. no entanto. grande parte dos moradores da Marambaia saiu da Ilha nesta época (década de 1970) em busca de melhores condições de vida no continente. Foi o tempo da “retirada do pessoal da Marambaia”. já que a existência na Ilha tornava-se cada vez mais limitada. neste tempo. antes da proibição. Uma mudança na situação de relativa estabilidade entre moradores e militares. (pelo Comando da Marinha) para a construção de casas. as proibições eram feitas mesmo após a permissão “de boca”. não foi levada a cabo. 35 . Quanto ao prazo de três meses para a finalização da obra. a decisão de saída do local ainda soava (ao menos na aparência) como uma opção e não imposição do comando militar. especialmente ao ano de 1995. 109 . segundo contam. tivemos notícia de pelo menos onze reintegrações de posse ajuizadas contra os moradores entre os anos de 1996 e 1998 (LOPES. que realizava trabalho de campo na Marambaia nesta época para a elaboração de sua monografia no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF). o Padre João (CPT) e o Escritório de Assistência Jurídica Gratuita da Universidade Estácio de Sá. o fazia com lágrima nos olhos. que atuou na defesa de alguns moradores nas ações de reintegração de posse. Foi presente na década de 1990 a atuação de alguns agentes. as demolições foram realizadas por militares armados. duas na Praia do Sítio. que também atuou na defesa dos moradores nas ações judiciais. Houve relatos de que o próprio militar. Na recordação dos moradores. dos Comandantes Gulat. uma na Praia da Armação. Antropologia e Cultura Jurídicas De maneira geral. “tristeza”. uma na Praia do Cutuca e uma na Praia do José.Sociologia. 35 . as proibições ocorriam da seguinte maneira: após a autorização para a construção (feita “de boca”). “desprezo”. Trata-se de um período que. uma na Praia do Sítio. que testemunhou em alguns processos de reintegração de posse a favor da posse dos moradores.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . o Padre Galdino Canova da Comissão Pastoral da Terra (CPT). estes relacionados com a autorização de construções e doação de materiais (Gulat e Beda) ou com a proibição e demolição de casas (Mário Sérgio). Dentre estas. o “Beda”. está relacionado com sentimentos de “raiva”. identificamos. duas na Praia da Pescaria Velha. “desgosto”. como o pesquisador Fábio Reis Mota. estão presentes também agentes vinculados ao CADIM. no ato da demolição. duas na Praia da Caetana. uma na Praia Grande. na memória dos moradores. o que se materializava por meio de notificações emitidas pelo Comando Militar e enviadas ao morador para que este derrubasse a própria casa devido à “irregularidade” da construção. Havia ainda a presença do Pastor Ailton Vidal. uma na Praia do Cutuca e uma na Praia da Caetana. “abalo no coração” ou ainda com “doença” e “morte” (no caso de pessoas que morreram de “desgosto”). apoiava a luta da 110 . “perda”. “revolta”. como o Capelão Lenílson (Igreja Católica) que. a obra era embargada. Houve ao menos cinco demolições de casas de moradores pela Marinha do Brasil neste período: duas na Praia Suja. Caso o morador não demolisse a residência por si próprio. 2010). do advogado João Gomes Vieira. pelo menos. havia dois caminhos que se alternavam de caso em caso: a demolição da residência “irregular” ou o ajuizamento de ação judicial de reintegração de posse. Quanto às ações judiciais.Vol. Na maioria dos casos. da Igreja Batista (parente do advogado João Gomes Vieira). Mário Sérgio e Carlos Alberto Beda. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 18% brancos. negros. Antropologia e Cultura Jurídicas comunidade para permanecer na Marambaia e. PROPRIEDADE DA UNIÃO E TERRITÓRIO QUILOMBOLA: ENTRE LEIS E DISCURSOS Para a Marinha do Brasil como instituição e seus membros. este reflete. Acessado em 20 de janeiro de 2010. Quanto ao padrão de ocupação demográfica da comunidade. A comunidade local é referida como oriunda de um processo de ocupação mais recente na Ilha. 12 Idem. a ocupação da Marinha do Brasil é exclusiva. que dizia claramente que a comunidade teria o “direito” de procurar “seus direitos”. familiares e empregados do Comendador Breves. 13 Idem. 19% pardos. apesar disto não ser explicitado. FAZENDA ESCRAVOCRATA.br/cgcfn/. podemos notar que este pode ser percebido como um ponto de tensão no conflito. a representação da história da Ilha da Marambaia é constantemente associada à sucessão de títulos de propriedade. talvez por isto. a composição étnica da Ilha da Marambaia se assemelha à miscigenação característica da população brasileira. havia ainda um membro da Marinha chamado Lima Neve (cuja posição na hierarquia militar não ficou clara).Vol. De acordo com a conclusão do Comando Geral do Corpo de Fuzileiros Navais. dentre as regiões destinadas ao treinamento de fuzileiros (Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo e o Centro de Instrução Milcíades Portela Alves). Disponível em https://www. 38% morenos e 21% negros13. Exemplo disto é o peso relevante do tema na descrição da Marambaia apresentada no sítio virtual do Comando Geral do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil (CFN)11. apesar da “origem muito variada”. Um quadro intitulado “autodenominação étnica dos chefes de família da Ilha da Marambaia” apresenta dados sobre a composição étnica dos moradores. O texto ressalta que. 4% dos moradores são mulatos. aquela com maior destaque é a Marambaia. período em que foi instalada a Escola de Pesca Darcy Vargas. 35 .mil. tenha sido transferido da Ilha nesse período. A população é descrita como tendo “origem muito variada” composta por “descendentes de diversos grupos e etnias que por razões diversas passaram por lá” como os “descendentes de índios carijós. a maior parte dos atuais moradores passou a residir na Ilha da Marambaia somente a partir do ano de 1938. Além dele. No entanto.mar. 111 . Sítio do Comando Geral do Corpo de Fuzileiros Navais. Nas demais áreas. 11 Destaque-se que.Sociologia. mesmo na narrativa do sítio. talvez por ser a única que comporta um modo de ocupação diversa da militar. Segundo este. trabalhadores e alunos da extinta Escola de Pesca Darcy Vargas”12. analogamente à mesma miscigenação que caracteriza a população brasileira. em 1896. a sucessão de títulos de propriedade da Ilha da Marambaia torna-se um ponto de tensão nos debates. Após a morte do Comendador. que veio a falecer em 1889. a influência da principal atividade econômica adotada pela maior parte das famílias: a pesca. o histórico do Centro de Adestramento Militar da Ilha da Marambaia pode ser contado por meio da narrativa sobre as transmissões do imóvel. em 1905. por liquidação forçada. conforme a Lei nº 1316. a Ilha da Marambaia foi posta à disposição da Marinha do Brasil. o primeiro documento formal da posse da Ilha da Marambaia foi registrado em 1856. No século XX. onde a Ilha é descrita e deixada. matrícula nº 121)16. brancos e mulatos. Parte significativa dos atuais moradores passou a residir na Marambaia a partir de 1938 quando foi instalada a Escola de Pesca14. 15 112 . pelo aviso nº 48 do Ministério da Fazenda. publicado no 14 Idem. processos judiciais e trabalhos acadêmicos.Sociologia. Em meio ao conflito contemporâneo entre moradores e Marinha do Brasil. em nome do Comendador Breves. a União foi autorizada a adquirir a Ilha da Marambaia com todas as suas benfeitorias. a Marambaia foi vendida à Companhia Promotora de Indústrias e Melhoramentos (1891) e depois. por ocasião da liquidação forçada da referida Cia. Antropologia e Cultura Jurídicas segundo o sítio virtual. no início do século XX. ao Banco da República do Brasil: Mais tarde. a propriedade da Ilha foi transferida para o Banco da República do Brasil. 35 . de 31 de dezembro de 1904. de 18 de setembro de 1850.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . desde o ano de 1850. além da localização da maioria das residências próximas às praias: A comunidade da Ilha é composta por 379 moradores. Dona Maria Isabel de Morais Breves15.Vol. para a sua viúva. Segundo informações do sítio do Comando do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil. conforme consta do Cartório de Rio Claro (Livro 1. 16 Idem. despendendo a quantia de 95 contos de réis do erário público. fl 68. Após sua morte. mencionado no tópico anterior. a União Federal tornou-se proprietária e em 1906 a ilha foi “posta à disposição” da Marinha do Brasil: Finalmente. sendo composta por negros. Em 23 de maio de 1906. como herança. quando a Ilha é registrada em nome do Comendador Joaquim José de Souza Breves: Em decorrência da Lei 601. Idem. em 1890 se dá a abertura de seu testamento no processo de inventário. bem como todo o acervo móvel. ocorreu um fluxo migratório de trabalhadores e familiares oriundos do continente em busca de emprego e oportunidades. Com a transferência para a Marinha em 1906.Vol. Conforme certidão do Cartório de Barra Mansa. uma parte da ilha da Marambaia foi cedida à Fundação Abrigo do Cristo Redentor. não consta qualquer averbação ou registro relativo à Ilha posterior a sua aquisição pela Fazenda Nacional.760.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A narrativa ora descreve um acontecimento com riqueza de detalhes. Idem. O modo de exposição pode ser indicativo do reflexo do conflito 17 Idem. por força do Decreto 68. Antropologia e Cultura Jurídicas DOU de 24 maio de 1906. ficou sob o patrimônio da citada fundação entre 1944 a 1971. instalou-se a Escola de Aprendizes Marinheiros e. como no exemplo da transferência da propriedade da Companhia de Indústrias e Melhoramentos (1886) – com a descrição detalhada da localização da documentação no cartório da cidade de Rio Claro. imóvel e contratos de trabalho da escola de pesca. ocupando determinados pontos da ilha. fl 68. de 8. foi reintegrado ao patrimônio da União. interior do Estado do Rio de Janeiro (Livro 1. Portanto. vale ressaltar que a Marinha do Brasil está presente na Ilha da Marambaia há mais de um século17.224. lá situado até os dias de hoje19. foi criado o Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia (CADIM). Nessa época. matrícula nº 121) –.5 km². Esta porção. Em 19 de agosto de 1943. de 16 de junho de 1908. a Escola de Pesca Darcy Vargas: Com a transferência da Ilha para a Marinha do Brasil. 19 Idem. Em 1971 houve a ativação do campo da Ilha da Marambaia. Em 1981. por meio de um novo Termo de Entrega para a Marinha do Brasil. ora de modo sintético. no local onde ficava a extinta escola de pesca. que ocupava o restante da Ilha18. pelo Decreto-Lei nº 5. 18 113 . em seguida. a Marinha contava com o Campo de Aviação da Armada.Sociologia. por meio do Aviso Ministerial nº 2671. para a instalação da Escola de Pesca Darcy Vargas. ocorreu a ativação do Campo da Ilha da Marambaia. Durante o período em que a Escola de Pesca permaneceu na Ilha. de 12 de fevereiro de 1971. 1971. em 1908 foi instalada a Escola de Aprendizes-Marinheiros. quando. 35 . sob a administração da Marinha do Brasil e em 1981 o funcionamento do Centro de Adestramento Militar da Ilha da Marambaia (CADIM): No mesmo ano. por exemplo. 21 Sítio do Comando Geral do Corpo de Fuzileiros Navais. como a mídia e o poder judiciário 20. declarando que não consta qualquer averbação ou registro relativo à Ilha da Marambaia no período posterior à sua aquisição pela Fazenda Nacional. avisos oficiais. O texto está disponível no sítio do Comando do Pessoal de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil. Os argumentos serão explorados ao longo do trabalho. Assim como na descrição dos demais centros de formação do Corpo de Fuzileiros Navais. A categoria posse marca o primeiro documento formal de domínio da Ilha da Marambaia (1856) em nome do Comendador Joaquim José de Souza Breves. cujo público alvo é. jovens interessados em seguir a carreira de fuzileiros navais. Acessado em 20 de janeiro de 2010. Antropologia e Cultura Jurídicas contemporâneo. Aponta também elementos relevantes para a compreensão de 20 A descrição da Marambaia como uma sucessão de títulos de propriedades e administrações estatais é reproduzida nos processos judiciais e notícias de jornal referentes ao período do conflito que abordaremos nesta pesquisa (1996 – 2006). Tamanho detalhamento sobre um dos centros de formação da Marinha do Brasil nos sugere uma relação desta narrativa com o conflito atual na Ilha da Marambaia. 35 . todas as informações disponíveis com relação a números de decretos. na Ilha da Marambaia.mil.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. aponta para permanências na dinâmica das relações de poder no local. Alguns trechos parecem confirmar os argumentos da Marinha nas arenas de disputa.br/cgcfn/. a internet seria um dos meios de divulgação da fala de uma das partes da disputa. A inclusão talvez represente uma tentativa de emprestar a legitimidade de tais documentos à narrativa da instituição. códigos e publicações no Diário Oficial e até mesmo o valor pago em algumas transações são detalhadas no corpo do texto. O histórico de transferência da propriedade do imóvel Ilha da Marambaia é concluído com a certidão do cartório do município de Barra Mansa. Disponível em https://www. pelo qual se conclui que “a Marinha do Brasil está presente na Ilha da Marambaia há mais de um século” 21.Sociologia. CONSIDERAÇÕES FINAIS O período de transição. Nesse sentido. entre as administrações da Escola de Pesca Darcy Vargas e a Marinha do Brasil. portarias. No decorrer da narrativa a categoria desaparece sendo substituída por propriedade ou demais verbos que expressem pertencimento. leis.mar. 114 . __________________________ (org). NAEA/UFPA. Relatório Técnico Científico sobre o Cangume.scielo. José Maurício Andion. Direitos Territoriais das Comunidades Negras. instaura-se a manutenção de mecanismos de dominação que envolve a desqualificação do Outro. Mana. __________________________. Antropologia e Cultura Jurídicas dimensões pertinentes ao conflito contemporâneo entre comunidade remanescente de quilombos e Marinha do Brasil. __________________________. o civil.M. o não militar. Terras de Indio. Terras de Preto. Oct. Nota-se. n° 5. E. é visto a partir de categorias que denotam transitoriedade. Setembro de 2003. ALMEIDA. a compreensão do processo histórico de reconhecimento da comunidade da Ilha da Marambaia como remanescente de quilombos.Vol.4. Agosto/2004. Configurações da “questão quilombola”. Acessado em 20 de outubro de 2010. 3. v. passa pela análise do período trazido no presente artigo. 1989. Nesse sentido. 2003. p. 35 . J. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA. a partir da estigmatização. Cadernos Koinonia n°1.sp. Ford Fundation. 2. Rio de Janeiro. A partir da mudança na administração da Marambaia. __________________________. Acessado em 10 de Novembro de 2010. Cadernos do ISA.br/scielo.itesp. ARRUTI.gov. Alfredo Wagner Berno In: LEITÃO. a emergência de uma identidade positiva. Alfredo Wagner Berno de. ainda. Terras de Santo. o Outro. a tentativa de suprimir seus meios de sobrevivência e o controle de aspectos essenciais da sua reprodução.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 1997. Sérgio (org.br/br/info/acoes/rtc/RTC_Cangume. A emergência dos "remanescentes": notas para o diálogo entre indígenas e quilombolas. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço. a manutenção de um modus operandi proprietário. Relatório Técnico Científico da Comunidade Remanescente de Quilombo da Ilha da Marambaia.php?script=sci_arttext&pid=S0104 93131997000200001&lng=en&nrm=iso>. In: Hebette. Castro (organizadores) Na Trilha dos Grandes Projetos. Belem. Mocambo: antropologia e história no processo de formação quilombola.). ainda que se trate de administrações do poder público. Nesse sentido.Sociologia. 1999. n. Disponível em: <www. Disponível em: <http://www. Uso comum e conflito. 2006. 115 . Bauru: Edusc.pdf>. de valorização das origens do grupo. Niterói: UFF. 2° Ed. Nem tanto negro.Vol. Dissertação defendida no Programa de Pós Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento. Fábio Reis.fgv. Marambaia da Terra. n°1.br/oq/dossies/marambaia/textos2b. O 'quilombo-como-metáfora' e a Marambaia. Aline Caldeira. Rio de Janeiro: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço. Rio de Janeiro: Campus. Setembro de 2007.Sociologia.org. Petrópolis. Antropologia e Cultura Jurídicas __________________________. 116 . Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. Direitos sociais. Lei Maria da Penha e Juizados Especiais Federais. nem tanto branco: uma discussão sobre o processo de construção da identidade da comunidade remanescente de quilombos na Ilha da Marambaia/RJ. Marambaia: Processo Social e Direito.br . Centro de Justiça e Sociedade.pdf . LOPES. (org) Relatório Técnico Científico da Comunidade Remanescente de Quilombo da Ilha da Marambaia. __________________.surnet. BOBBIO. Acessado em 2 de Maio de 2011. 35 . Acessado em 15 de agosto de 2010.direitorio. ________________ O Breves e a Ilha da Marambaia. IANNI.br/materia. Flávia.org . A garantia dos direitos humanos na reconstrução do Estado de Direito: A luta contra a exclusão In: CUNHA. 2004.cfm?tb=artigos&id=51>. Disponível em: http://www. Buenos Aires: CLACSO. José Ricardo e BORGES. sob orientação de Regina Bruno. SANTOS.clacso. 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Monografia apresentada no curso de Ciências Social da Universidade Federal Fluminense. preservação. 2003. 2001.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . n° 22. José Ricardo (org). Dano ambiental. Nem muito mar.ar/ar/libros/osal/osal22/D22SousaSantos. 1992. In: ARRUTI. 1979. A Era dos Direitos. Norberto. Boaventura de Sousa. Disponível em: <www. CUNHA. Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). BREVES. no ano de 2010. 304 p. 2003. nem muita terra. 2009. PIOVESAN. Berenice Abreu de C. Rio de Janeiro.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . jun/2004. p. Revista Nossa História. 14-21. “Odisséia numa Jangada”. Monografia.Sociologia. Inoã Pierre Carvalho. n° 8.Vol. São Paulo: Vera Cruz. Antropologia e Cultura Jurídicas NEVES. IFCS/ UFRJ. URBINATI. 35 . Política e Escravidão no Brasil Império: A Vida de Joaquim de Souza Breves. 117 . 2004. This prerrogative individualized the character and allows the citizenship exercise. O presente trabalho pretende verificar. no qual se inclui o direito ao nome em linguagem tribal em Registro Civil. em caso de minoria étnica. acima de uma identificação. Será observado. se. This article intends to verify if above an identification. as the indigene. The civil name. quais as formas de proteção ao direito de autoidentidade cultural. Antropologia e Cultura Jurídicas DO DIREITO AO REGISTRO CIVIL EM LINGUAGEM TRIBAL COMO MEIO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À IDENTIDADE CULTURAL INDÍGENA NO BRASIL: UM ESTUDO DE CASO A PARTIR DE JULGADOS DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA E RIO DE JANEIRO THE RIGHT TO CIVIL REGISTRATION IN TRIBAL LINGUAGE. em registro civil. Esta prerrogativa individualiza o sujeito. e lhe permite o exercício da cidadania. AS THE EFFECTION OF THE INDIGENE CULTURAL IDENTITY RIGHT IN BRAZIL: AN STUDY OF CASE FROM SENTENCES OF THE JUDICIAL STATE COURT OF SANTA CATARINA AND RIO DE JANEIRO Alex Xavier Santiago da Silva Resumo Analisa o direito ao nome tribal. pois. the name represents an autoidentity right. besides of its function of identifying and locating socially. Multiculturalismo. como os indígenas. Indígenas. em sua cultura. como meio de efetivação do direito à autoidentidade do povo indígena no Brasil. 35 . quando expresso em linguagem tribal. O nome civil. são efetivadas no Brasil e como os tribunais nacionais tem se posicionado acerca desta prerrogativa fundamental para a preservação das culturas em nosso país. Abstract It analyses the right to tribal name. no qual se inclui o direito ao nome em linguagem tribal em Registro Civil. Neste prisma. nesse sentido. um encontro da pessoa com a sua ancestralidade. on cases of ethnical minority. além de função de identificação e localização social. Palavras-chave: Nome. on civil registration. as a path to effect the autoidentity right to indigene people in Brazil. possui o condão de autoidentidade cultural. o nome representa um direito de identidade cultural.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . no que tange aos grupos étnicos minoritários. a sua história de vida. nesse sentido. in Brazil.Será observado.Sociologia. when expressed in tribal language. Direitos Humanos. has the meaning of cultural autoidentity. a partir do contraponto entre duas decisões: do Poder Judiciário no Estado do Rio de Janeiro e do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. são efetivadas no Brasil e como os tribunais nacionais tem se posicionado acerca desta prerrogativa fundamental para a preservação das culturas em nosso país. quais as formas de proteção ao direito de autoidentidade cultural. será traçada uma discussão sobre o direito subjetivo das crianças indígenas em possuir registro civil (em especial o prenome) em linguagem tribal. a 118 . Identidade Cultural.Vol. resgatando. no Brasil. 0212. Dentre os empecilhos ao deferimento do pedido. a exarada nos processos de nº 0008157-54. rescuing.8. Keywords: Name. antes do nome em língua portuguesa da criança. mais especificamente do Núcleo de Direitos Humanos. Rio de Janeiro. 0008156-69.2010.8. como meio de garantia à identidade cultural do mesmo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 35 . O presente estudo foi desenvolvido a partir do estudo de duas decisões judiciais: a primeira. Introdução O presente artigo cuida do estudo do direito ao nome tribal em registro civil. on the point of view of two judicial sentences: from the Rio de Janeiro State Judicial Court and from Santa Catarina State Judicial Court.19. A decisão de primeiro e de segundo grau foram desfavoráveis ao pleito dos requerentes. Human Rights. o direito de utilizar seu nome em guarani à frente do nome em português. it will be started na discussion about the subjective right of indigene children on possessing a civil registration (specially on first name) in tribal language. como forma de resguardar o vínculo cultural da garota com seus pais biológicos. para garantir a um índio de 3 anos de idade.Vol. da 1ª Vara de Família da Comarca de Niterói.19.8. e como instrumento primeiro de identificação do índio a sua cultura. em sede de Apelação. mais precisamente da 3ª Câmara Cível. Multiculturalism.19.Sociologia. parágrafo único da Lei nº 6. 119 . in these sense. A formulação do pedido de retificação de registro cível surgiu a partir da iniciativa dos pais adotivos em inserir. além de ausência de necessária demonstração de vínculo da criança requerente com a cultura indígena. 000815147. Antropologia e Cultura Jurídicas special contact from a character with his ancestrality. which forms of protection to the cultural autoidentity right are effected in Brazil and how the nacional tribunals has positioned on this fundamental prerogative to the preservation of the cultures in Brazil. da tribo Guarani que habita a praia de Camboinhas. Cultural Identity. In these lines.0212.2010. then. um nome em linguagem indígena. em que houve o deferimento de pedido formulado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.015/73 (Lei de Registros Públicos). em Ação de Retificação de Registro Civil ajuizada pelos pais adotivos de uma criança que teria origens indígenas. A segunda decisão judicial que também será objeto de estudo. Indigene. por sua vez. It will be noticed. região atlântica de Niterói. vem do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. por motivos diversos. estariam o artigo 55. in his culture.2010. his life story.0212. como meio de efetivação do direito à identidade cultural do indígena no Brasil. em especial. 1 A argumentação trazida aos autos pela Defensoria Pública é a de que o nome é um importante elemento constitutivo na autoidentidade cultural. passa-se a investigar o direito ao nome enquanto um direito de identificação cultural. Desta forma. neste ensejo analisarmos a importância da declaração do nome sob uma perspectiva de localização social e cultural para o indígena. resta claro que a pretensão deste trabalho é. serão avaliados os aspectos de valoração jurídica e cultural envolvidas na presente questão. uma vez que representa o 1 Art. mais especificamente. inclusive a recente publicação da Resolução de nº 03 do Conselho Nacional de Justiça. O artigo constituiu-se de pesquisa qualitativa. em que se lançou mão essencialmente de fontes bibliográficas e documentais. neste diapasão. 120 .015 de 31 de dezembro de 1973 e Decreto nº 7.Vol. bem como os dispositivos legais que regulamentam esse direito. 55.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . da região de Camboinhas. antes do nome em português alegando malferimento à Lei de Registro Civil (Lei 6. apesar de ser tratado como direito da personalidade no Código Civil Brasileiro. e. a relevância do nome civil enquanto um direito que. 1 Da análise das decisões judiciais Os cartórios cariocas negavam-se a apor prenome tribal de crianças guaranis. propor uma análise jurisprudencial rica em argumentação (uma vez que se buscou o contraponto entre duas decisões antagônicas). Após esta importante remissão. Antropologia e Cultura Jurídicas A partir da essência destes dois julgados. estabelece-se um melhor juízo quanto aos argumentos utilizados nas decisões judiciais à luz das propostas dos Direitos Culturais e do respeito à Teoria do Multiculturalismo. na verdade.Sociologia. em conjunto ao Conselho Nacional do Ministério Público. bem como ao direito ao nome. pelo reconhecimento ao nome tribal em registro civil ao indígena. Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. para a cultura indígena.231/2010). 35 . para. Por fim. avaliar os dispositivos jurídicos nacionais e internacionais (os quais o Brasil tenha aderido). apresenta toda uma significação sócio-cultural. no direito brasileiro. em Niterói-RJ. parágrafo único. e sua significação. como tais. que dão guarida à proteção dos direitos culturais de identidade dos indígenas e das crianças. ressaltando. que desde já demonstram a tendência. 1.015/73). conseguiu após este caso paradigma mais nove retificações de certidão de nascimento. mas não pelo motivo alegado pelo julgador de primeiro grau.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . César Felipe Cury. como também determinou à FUNAI que todos os registros de nascimento da Fundação Nacional do Índio no Rio de Janeiro também deverão constar o nome indígena na frente. em favor de sua filha adotiva Dainara Caxias de Almeida. como forma de reforçar as origens culturais indígenas de seus pais biológicos. foi pela improcedência da apelação. de três anos. na Comarca de Itjaí. Inconformados. a fim de inserir no prenome da criança. à frente do nome em português. Ao assimilar o argumento da diversidade cultural existente no Brasil e a importância do nome como elemento de auto-identificação cultural.Sociologia.Vol. concedeu ao pequeno índio Karaitataendy (em tupi-guarani. o registro de nascimento.1 Da decisão judicial proferida nos autos da Apelação Cível de nº 2009. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro. sob a alegação de que o prenome requerido exporia a criança ao ridículo. para os índios guaranis de Camboinhas. de Itajaí Em Santa Catarina. Em primeiro grau. já que o nome é o instrumento de referência à pessoa em qualquer comunidade. Senão vejamos trecho do voto da Desembargadora: 121 . O julgamento da Desembargadora Maria Rocio Luz Santa Ritta. região praiana de Niterói. 35 . Antropologia e Cultura Jurídicas primeiro ato de expressão própria de uma cultura. através do Núcleo de Direitos Humanos (NUDEDH). e integra um bloco de direitos culturais dos índios que merece tutela e respeito por parte do Estado e do Poder Judiciário. de 19 de abril de 2004.044156-4. para a pedida retificação. fundamentado na Convenção de nº 169 da OIT. o nome “Txulunh” (mel. o Juiz de Direito da Comarca de Niterói não apenas autorizou a retificação no registro de nascimento. em guarani). O juiz de Direito da Comarca de Niterói. pelo que não haveria a permissão legal (Lei 6. o pedido foi negado. “o pequeno que sabe”). ratificada em 25 de julho de 2002 e promulgada através do Decreto Presidencial de nº5051. Odilon de Almeida e Daiane Caxias Popo propõe "Ação de retificação de prenome". os pais adotivos da criança recorreram ao Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. outra situação. um pouco mais peculiar ocorreu. com seu nome indígena. 115 da Lei 6. 122 . a fim de evitar modificações com caráter fraudulento ou das que sejam fruto de mero capricho pessoal. "Amin Amou Amado" ou "NaidaNavindaNavolta Pereira". 47. portanto. em sentença (art. principalmente porque. Lei n. Antropologia e Cultura Jurídicas A Lei de Registros Públicos estabeleceu as hipóteses em que é permitida a mutação do nome. todavia. para além de pecar pelo excesso de subjetivismo. parágrafo único. LRP). 3. o norte estabelecido pelo legislador é o da imutabilidade do nome.815/90). A primeira hipótese diz respeito a alteração levada a efeito no primeiro ano após o interessado atingir a maioridade civil. como "Dolores Fuertes de Barriga".Vol. mas sim na inexistência dehipótese que se enquadre em algum dos permissivos da Lei de Registros Públicos. A segunda.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Ao que se vê. § 5º. a regra é expressa acerca de sua definitividade por ser o meio identificador da pessoa no meio social. não encontra amparo nem na prova dos autos nem em qualquer outro dado concreto a partir do qual se possa validamente sacar alguma presunção calcada na experiência subministrada por aquilo que ordinariamente acontece. 55. 58. (IV) aportuguesamento de nome na naturalização de estrangeiros (art. do Estatuto da Criança e do Adolescente). sob a condição de que não prejudique os apelidos de família (cf. estabelece que qualquer alteração posterior de nome será permitida por meio de decisão judicial "somente por exceção e motivadamente". que a sentença incorre em certo equívoco ao negar o pedido sob o fundamento de que o nome Txulunh. (II) em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime. Decerto incorrerá em algum exagero quem se animar a comparar o nome Txulunh (que não é feio nem ridículo. não cuidando a espécie de substituição mas sim de adição de prenome. 58. LRP). Rel. Fundamento assim manifestado. na esteira do princípio da segurança e da estabilidade jurídica. por determinação. por estranho. § único. 35 . LRP). Passada em revista a legislação sobre o tema. (III) na adoção (art. exige-se ou a (I) existência de apelido público notório ou (II) a demonstração de que a acionante é conhecida no meio social por meio do prenome (STJ . Especificamente quanto ao prenome. mas apenas diferente) com alguns outros já famosos no anedotário registral brasileiro. tenho. de fato. (V) nome que expõe ao ridículo (art. 56. A razão de ser do enjeite do pedido. 6. expondo-a ao ridículo. a sua substituição nas seguintes hipóteses: (I) existência de apelidos públicos notórios (art.Sociologia. afigurar-se-ia suscetível de causar embaraço à criança no ambiente escolar. Nancy Andrighi). admitindo-se.015/73). não está no nome que a família da acionante pretende lhe emprestar.296. prevista no artigo subseqüente. art. Min.REsp 647. e a não formulação de provas no sentido de que a criança teria ascendência indígena. e os direitos originários sobre as terras que tradicionamente ocupam.031740-8) como o STJ (REsp 729429) aplicam o princípio da razoabilidade para tutelar casos específicos que. esta Corte (ACv 2006.Vol. Os argumentos utilizados pela desembargadora em seu voto. voto pelo desprovimento do recurso. ainda assim merecem especial atenção e por isso admitem a mutação. conforme a seguir melhor explicitado. todavia. 56. para além de não se enquadrar em nenhum dos permissivos contidos na Lei de Registros Públicos. 123 . (Grifo nosso) Perceba-se que o critério utilizado pelo julgador foi a inexistência de previsão legal para retificação de prenome nestas circunstâncias. o qual. fulmina o pedido manifestado na inicial. pleitear em nome próprio o que agora seus pais pleiteiam em seu lugar (art. Essa situação de mingua probatória.Sociologia. como se tira de seu artigo 231: "São reconhecidos aos índios sua organização social. no lapso de um ano após a maioridade. Poderia até ser o caso dos descendentes indígenas. Lei 6.015/73).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . penso. posto não enquadráveis nas exceções legais. proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Não há uma única prova documental que ligue o pai ou a mãe dela à genealogia indígena. 17).não ficou demonstrada. competindo à União demarcá-las. se a prova dos autos não corresponde à verdade real e a família da acionante realmente possui ascendência indígena. e com vigorosos argumentos. não parecem os mais adequados quando à luz das diretrizes da OIT nº 169 e dos outros dispositivos normativos que se propõem hoje a preservar os direitos culturais indígenas (dentre os quais o direito à autoidentificação cultural através do registro civil). Porém. em tema de alteração de prenome e sobrenome. tenho que a ascendência indígena da acionante . De resto. também não se reveste de qualquer traço de singularidade que permita elastecer o direito objetivo em nome do princípio da proporcionalidade. 35 . ou mesmo registro da FUNAI ou prova testemunhal que corrobore a afirmação de que sua mãe tenha efetivamente habitado uma aldeia durante o período de dois anos. aos quais a própria CF/88 dispensou especial tratamento. Criada que seja a criança no valoroso caldo cultural indígena. indo à instrução da causa (fl.e mesmo a de seus pais . costumes. Isso posto. Antropologia e Cultura Jurídicas Não se desconhece que. poderá ela. cumpre então que a eduquem dentro – ou ao lado – dos costumes de seus ancestrais. línguas crenças e tradições. como o nome. Ao demonstrar a importância do nome como meio de efetivação da identidade cultural. quer acessório como o reconhecimento de filiação. Representa não apenas a individualização de cada um.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Rabinadrath Capelo De Souza (2011. naturalidade ou domicílio. enquanto componente de um conjunto de direitos à identidade do indivíduo. Para ela o nome “integra a personalidade por ser sinal exterior pelo qual se designa.183) traz a dupla dimensão do conceito do nome: a individual e a sócio-cultural. afirmando que: o nome e outros sinais identificadores da pessoa são os elementos básicos de associação de que dispõe o público em geral para o relacionamento normal.Vol. comercial e 124 . negocial. que trata dos direitos da personalidade. sendo uma chave inicial da descoberta de seu passado e de suas origens culturais. ainda. como direito da personalidade e como direito à identidade cultural O direito ao nome. essencialmente previsto no Capítulo segundo do Código Civil Brasileiro. a exemplo do que nos mostra a história. imprescritível e protegido juridicamente". 486) estabelece que no bem da identidade englobam-se os próprios sinais sociais de identificação humana. Carlos Alberto Bittar em adição a isto estabelece que o direito à identidade pessoal pertence ao quadro dos direitos morais. é elemento relevante. de fato. sucessório. p.Sociologia. possui significância imediata individual (já que em uma primeira dimensão o nome é a localização individualizada de um determinado sujeito. uma vez que é definitivo na inserção sócio-ambiental de todo e qualquer ser humano. Antropologia e Cultura Jurídicas 2 Do direito ao nome. se individualiza e se reconhece a pessoa no seio da família e da sociedade. Em simples definição Maria Helena Diniz (2002. 35 . em meio a uma coletividade). culturais e sociais. 2 A individualização e o reconhecimento no seio social são os dois aspectos relevantes para este duplo dimensionamento do conceito. quer principais. daí ser inalienável. p. entre os artigos 11 e 21. Segue. considerando-se um direito ínsito à condição da personalidade humana. no presente estudo é mister que se perceba o direito ao nome sob um prisma de afirmação de identidade cultural. todavia. o nome assume também uma importante ferramenta de localização cultural do homem. O nome. Como. mas. assim o é. nos diversos núcleos possíveis: familiar. sim. não se tinham nomes próprios. do que propriamente de individualização. o direito ao nome está entre eles. elementos de identidade próprias.Sociologia. adicionando referências às origens familiares. primeiro era meio de afirmação de identidade cultural. duas funções essenciais: a de permitir a individualização da pessoa e a de evitar confusão com outra. tais como os clássicos exemplos Sócrates. enquanto direito à identidade cultural. Todavia com o desenvolvimento da pólis grega. a diversidade cultural. ao longo da história e. Aristóteles e Platão. enquanto um Direito Cultural. inicialmente o nome era único. aliás. portanto. Ao analisarmos desde os primórdios da história humana. seus ofícios e suas funções coletivas. A Declaração de Direitos Culturais elenca em seu artigo 8º a definição de identidade cultural: Trata-se do conjunto de referências culturais por meio do qual uma pessoa ou um grupo se define. no qual a utilização de prenomes era consideravelmente reduzida. Demonstrando-se mais uma vez a predileção pela função de estabelecimento sociocultural do nome 125 . Após uma breve definição do direito ao nome. se manifesta e deseja ser reconhecido. Na pré-história.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . houve a necessidade de inserir ao nome. Também implica as liberdades inerentes à dignidade da pessoa e integra. em favor do destaque aos nomes subsequentes que expressavam a origem familiar e cultural do sujeito. e. Possibilita seja a pessoa imediatamente lembrada. no qual centra-se o objeto central deste artigo. as hordas humanas diferiam cada um de seus membros por aquilo que cada um fazia. onde se percebe a importância do nome enquanto afirmação individual de sua cultura. Na Grécia. Inclusive os prenomes eram por muitas vezes abreviado. por fim. O mesmo em Roma. eram atribuídos aos membros alcunhas. o particular e o universal. Cumpre. às comunidades indígenas. Sem dúvidas.Vol. Assim. como “guerreiro”. em um processo permanente. e com o consequente crescimento populacional. mesmo em sua ausência e a longas distâncias. ao contrário do que há em primazia de pensamento. “operário”. ou de sua gente (agrupamento social). “líder”. 35 . percebemos que o nome. a memória e o projeto. ressalte-se a valoração sócio-cultural dada ao nome. vide os exemplos de Tales de Mileto e Parmênides de Eléia exatamente. Antropologia e Cultura Jurídicas outros. enquanto que a utilização dos nomes era vasta e plural. mas sim. Disponível em: [http://www. também. no interior de uma parentela. O conectivo “bar” tinha o significado de filho. vocação ou. Names and the Value of a Human Person. freqüentemente. filho de Gedeão.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Evita-se 3 UZO. é costume das pessoas ao se apresentarem explicarem aos desconhecidos também o significado de seu nome. mas. como pais. como se verifica em Bartolomeu (filho de Tolomeu) e no personagem bíblico Barrabás (filho de Abas). Patrick. A relação entre estes dois últimos é. sim. a significância do nome dado à pessoa não se resume a um mero identificador individual. 35 . Antropologia e Cultura Jurídicas O povo hebreu também utilizava o nome prioritariamente como meio de afirmação de sua identidade cultural. Este trabalho realizado pelo antropólogo francês Patrick Menget. tão forte era essa vocação de afirmação cultural do nome que esse indicativo da filiação passou a designar a própria pessoa nominada. em parceria com o núcleo de Antropologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Há então um outro que designa e alguém que é designado. 3 Todos estes exemplos históricos se afirmam com a análise de valoração dadas pelos povos indígenas no Brasil.mercatornet. quando se observa o ritual da tribo Ikpeng (que habita tradicionalmente o pantanal mato-grossense) para dar nome aos recém-nascidos. naquele significado próprio. A escolha do nome não é arbitrária. é elucidador. de parentesco próximo. Uchenna. Um parente escolhe para uma criança uma seqüência de nomes já existentes de um de seus próprios parentes. até hoje. Em alguns casos. 4 O batismo do jovem índio se faz de acordo com uma cadeia de três membros. geralmente morto. Exemplos: Elisur. A importância dos Nomes. filho de Sedem. Acessado em 14 de novembro de 2012 4 MENGET. uma promessa. em favor de sua coletividade.Sociologia. como meio de afirmação cultural para o próprio sujeito nominado. Disponível em: [http://www. Afere-se tal importância. tios e avós.Vol.socioambiental. Abidau. por considerações sobre a qualidade da identidade social. expectativas do que aquela pessoa poderá fazer ao longo de sua vida.org/piinterno/epi/ikpeng/impot. que representa.com/articles/view/names_and_the_value_of_a_human_person]. Na África. professor da Universidade Livre de Bruxelas. 126 . Acessado em 14 de novembro de 2012. como em José Bar Jacob. tanto é assim que utilizava geralmente um nome simples. ainda. orienta-se por regras sobre a transmissão dos nomes e.shtm]. acompanhado da filiação ou ascendência. uma vez que para eles. dentre os quais está o direito ao nome. o Brasil admitiu que índio é aquele que assim se autodeclara. p. daquele que assim se considera. 3 Dos dispositivos asseguradores do direito à identidade cultural. asseguram a priori o direito à cultura indígena.Vol. ou.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A proteção aos direitos culturais tem se tornado uma constante no espectro legislativo nacional e internacional. e do direito à preservação cultural da criança. organização 127 . Mas não apenas a continuidade social é assegurada. as tribos indígenas concebem uma relação contínua com os ancestrais. (…) This is self-evident on account of the centrality of the right to cultural integrity and identity in the context of the legal discourse on cultural rights. 35 . O artigo 2º deste diploma legal diz que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”.is generally put into effect in the context of international legal practice. Federico Lenzerini (2008. jamais poderia o poder judiciário negar o direito ao registro civil do nome em linguagem tribal a qualquer sujeito. Assim sendo. por meio da ordem de proteção dos bens (materiais e imateriais). em seu art. e principalmente. seja porque determinados apelidos são adotados como nomes e transmitidos.Sociologia. que remontam até os heróis fundadores míticos de suas aldeias. caput. pois há possibilidade da repetição de seu destino Dessa forma. pela incorporação de nomes dos cativos estrangeiros. Antropologia e Cultura Jurídicas assim dar a uma criança o nome de um antepassado que tenha sofrido de uma falta grave ou de um excesso pernicioso.110) analisa essa apropriação da matéria por parte da prática legal internacional: Today. uma vez que a autodeclaração e o direito à identidade cultural. consequently. their cultural identity and integrity. que trata da proteção ao índio no ordenamento jurídico brasileiro. O próprio texto da Constituição Federal de 1988. firma o direito à preservação cultural. por motivo de ausência de provas de vínculo à uma determinada tribo ou aldeia. como também novos nomes podem ser incorporados ao longo do tempo. however the awareness of the need to protect cultural rights of peoples and. É importante ressaltar que ao ratificar a Convenção 169 da OIT. 231. por meio da transmissão de nomes. Vol. de sua livre escolha. a pedido do apresentante. tradições orais. É de se ressaltar que a Convenção foi internalizada no ordenamento jurídico brasileiro.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . utilizar. costumes. Apesar de as decisões exaradas no âmbito da Corte Interamericana dos Direitos Humanos não possuírem força vinculante em relação aos julgados nacionais. 128 . 18. há o reconhecimento de que a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos protege o direito à identidade cultural dos indivíduos. a seguinte garantia: 1. a fundamentação mais especifica acerca da garantia ao direito ao nome indígena. línguas. Ao qual podemos aliar os ditames do art. é importante ressaltar que o voto dissidente do juiz Abreu Burelli. é de se ressaltar que a evolução normativa brasileira. no tocante à tutela do direito ao nome tribal. lugares e pessoas e de mantê-los. dentre os quais estão os direitos culturais. o nome indígena do registrando. desenvolver e transmitir às gerações futuras suas histórias. Por fim. e de atribuir nomes às suas comunidades. integrado ou não. encontra-se no art. Art. em registro civil.Os povos indígenas têm o direito de revitalizar. por isso. proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. que traz em seu caput. e. deve ser lançado. à população indígena.Sociologia. que instituiu o seguinte: Art. no caso Tribo YakieAxavs Paraguay.13 da Declaração das Nações Unidas dos Direitos dos Povos Indígenas. da resolução de Nº 03. em linguagem tribal: “São reconhecidos aos índios sua organização social. Antropologia e Cultura Jurídicas social. idiomas. do Conselho Nacional de Justiça. pode possuir força normativa em relação às decisões judiciais nacionalmente tomadas. sistemas de escrita e literaturas.015/73. 1º O assento de nascimento de indígena não integrado no Registro Civil das Pessoas Naturais é facultativo. competindo à União demarcá-las. no qual se encaixa o direito ao nome. 55.º 6. desde mesmo diploma que cuida da proteção ao direito ao nome. filosofias. costume e tradições. Além disso. culminou com a publicação no recente dia 26 de outubro de 2012. crenças e tradições. e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 35 . 2º No assento de nascimento do indígena. parágrafo único da Lei n. nos quais se insere o direito à identidade cultural. não sendo caso de aplicação do art. em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público. a partir de uma interpretação evolutiva de alguns dispositivos em específicos. Antropologia e Cultura Jurídicas § 1º.Vol. é a Convenção sobre os Direitos das Crianças. 35 . aos do eventual país de origem. juntamente com o município de nascimento. caso necessário. terão direito à proteção e assistência especiais do Estado. § 3. a etnia do registrando pode ser lançada como sobrenome. como observações do assento de nascimento. Os Estados Partes reconhecem que a educação da criança deverá estar orientada no sentido de: c) imbuir na criança o respeito aos seus pais. poderão figurar. que trata da maneira como o Estado se compromete a tutelar o direito à identidade cultural das crianças adotadas (“privadas temporária ou permanentemente do seu meio familiar”.. deve-se dar especial atenção à origem 129 .. conforme os termos utilizados no pacto): ARTIGO 20 1.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . à sua própria identidade cultural. (Grifo nosso) Outro diploma legal de que o Brasil é signatário e que possui significância para o presente estudo. a colocação em instituições adequadas de proteção para as crianças. que traz em vários dispositivos a necessidade de os Estados signatários garantirem o respeito aos direitos culturais das crianças. mais especificamente o art. a aldeia de origem do indígena e a de seus pais poderão constar como informação a respeito das respectivas naturalidades. ou cujo interesse maior exija que não permaneçam nesse meio.. 29 desta Convenção que cuida da proteção a identidade cultural das crianças: ARTIGO 29 1. assinados no âmbito da Organização das Nações Unidas. §2º. a pedido do interessado. (Grifo nosso) Ainda em estrita pertinência com o julgado oriundo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Esses cuidados poderiam incluir (. Ao serem consideradas as soluções. a declaração do registrando como indígena e a indicação da respectiva etnia. é de se relembrar o que aduz o art.Sociologia..As crianças privadas temporária ou permanentemente do seu meio familiar. A pedido do interessado.º A pedido do interessado. a adoção ou.). e aos das civilizações diferentes da sua.) 3. 20 da mesma convenção. No caso de registro de indígena. (. ao seu idioma e seus valores. aos valores nacionais do país em que reside. 4 Da discussão das decisões judiciais à luz dos dispositivos legais e doutrina de Direitos Culturais A primeira decisão discutida conferiu o direito ao índio Karaitataendy a inserir seu nome tupi-guarani antes mesmo de seu prenome em português baseado na Convenção 169 da OIT. 68) 130 . §único dessa lei. não se pode dizer “ridículo” um determinado nome (impedir direito de registro). religiosa. ante uma grafia em linguagem tribal. que determina o dever de o oficial de registro impedir o registro de nome que exponha a pessoa ao ridículo.Vol. e se a criança buscava através da Defensoria Pública o direito de registrar-se com prenome tribal. apenas por aparentar estranho. passemos à análise das decisões judiciais à luz do que já foi exposto. citando o artigo 55. Segundo o magistrado. é que o magistrado não apenas julgou procedente aquele pleito específico como determinou a comunicação da FUNAI-RJ para que passasse a assim proceder acerca de outros registros civis que por ventura viessem a acontecer. bem como à conveniência da continuidade de sua educação (Grifo Nosso) Após a farta exposição dos apontamentos legais e doutrinários que basilam a proteção aos direitos culturais (nos quais se incluem o direito à identidade cultural. compreende o direito ao nome. e que. 35 . por sua vez. assim sendo. cultural e lingüística da criança. suffused with ethical considerations and questions centringaround the justifications for a new focus in human rights instruments and a specifically addressed body of rights. em linguagem tribal). Antropologia e Cultura Jurídicas étnica. The question of who is indigenous is mired in politics. Patrick Thornberry discorda da acepção adota pelo direito brasileiro. em especial.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2002. p. por força da Convenção da OIT 169. Nesta senda. bem como pontuando parâmetros doutrinários quanto à identidade indígena. Os valores de semântica certamente são variáveis de cultura a cultura.Sociologia. ao abordar o tema dos direitos culturais e da identidade indígena. adota o sentimento de que a simples autodeclaração deve se somar a outras características para que o sujeito seja considerado identificado como indígena: However the conceptualisation of indigenous peoples cannot be a simple exercise of description. se essa Convenção estabelece a autodeclaração como o critério para a classificação étnica de um sujeito. a Lei de Registro Públicos não poderia apresentar qualquer óbice. (THORNBERRY. que negou o pleito dos pais adotivos de uma criança com ascendência indígena.Sociologia. com as origens da família biológica. da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. e todo o conjunto de dispositivos normativos anteriormente citados. equivocada em argumentos. disposto no artigo 20. A segunda decisão judicial discutida. ante essas diretrizes principiológicas. Neste caso. e absorvendo a essência da Teoria do Multiculturalismo. que a Convenção 169 da OIT determina o critério da autoidentidade como sendo preponderante para a classificação étnica enquanto indígena. como teoria reconhecedora da multiplicidade de culturas e da necessidade de um convívio respeitoso entre as mesmas.Vol. os representantes legais da criança. abordando concretamente o direito ao nome em linguagem tribal como parte do conjunto de direitos à identidade cultural do povo indígena. por ela agindo. Conclusão É sob este prisma interpretativo. a criança teria uma ascendência tribal. e sendo inquestionável o dever de posicionamento da jurisprudência brasileira ante a Convenção 169 da OIT. os pais adotivos da criança. Apesar de ter sido a fundamentação dada incompleta. do qual o Brasil é signatário. invocando a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. 35 . decidiram requerer a inclusão do prenome como forma de garantir à criança o direito de identidade cultural. uma vez que se nega a permitir a retificação do registro civil da criança (incluindo prenome indígena) sob o fundamento de que não havia nos autos qualquer prova de que. que o presente estudo se prestou a abordar a jurisprudência nacional à luz dos preceitos de respeito e valorização de outras culturas. a garantia ao direito ao nome em linguagem tribal para fins de registro civil representa um passo no longo caminho a ser trilhado no sentido de reconhecer e 131 . poderiam requerer a tutela do Estado no que tange ao direito de identidade cultural da criança adotada. haja vista os inúmeros dispositivos. de fato. e daí seus direitos à identidade cultural.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas Ultrapassada tal discussão. No caso. por sua vez. mostra-se. Os fundamentos que explicam o equívoco da decisão são semelhantes aos da primeira sentença: primeiro. Além disso. parágrafo terceiro. é que vemos como acertado o deferimento concedido nestaprimeira decisão. I. 132 . In: LENEZRINI. 2004. Direito Civil Brasileiro.45. São Paulo: Saraiva.. Revista de Informação Legislativa. Revista de Informação Legislativa. Constituição. Acesso em: 14 de novembro de 2012. “Proteção constitucional dos direitos fundamentais culturais das minorias sob a perspectiva do multiculturalismo”. 5 Coerente a todo este importante contexto destacado é que. p27. sem preconceito de origem. A importância dos Nomes. 110/111.Vol. 1988. Ana Maria D’Ávila. Brasília: Senado Federal. proibindo qualquer tipo de discriminação e promovendo o bem de todos. Federico (ed). Impor padronizações ou modelos culturais é ir de encontro à própria natureza do ser humano e. Patrick. 18. sexo. Carlos Alberto. ir contra sua dignidade. cor. V. DINIZ.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 35 . Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária.1º. Disponível em: [http://www. idade ou quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV. O dever do Estado é de resguardar o direito de diversidade cultural dessas diferenças. 7. Brasília. em primeiro lugar.Vol. BRASIL. Os Direitos da Personalidade. é tarefa do Estado reconhecer. consequentemente. III) (. Reparation for indigenous people. 2008. 3º)”.Sociologia. Senado Federal.socioambiental. v. The trail of broken dreams: the status of indigenous peoples in international law. ao analisar as decisões judiciais anteriormente mencionadas.. como os nossos valores são respeitados.shtm]. ed. LOPES. Senado Federal. 2008. raça. Federico.p. Brasília. Ana Maria D’Ávila. essas diferenças para assim protegê-las. Constituição da República Federativa do Brasil. ed. LENZERINI. MENGET. deve-se reconhecer ao indígena o direito ao nome. Proteção constitucional dos direitos fundamentais culturais das minorias sob a perspectiva do multiculturalismo.45. LOPES. em registro civil. Referências BITTAR. New York: Oxford. 5 “Não existe nada mais rico do que a diversidade humana. p27. 2002. do art.) Portanto. 2008. como meio de efetivação e consolidação do direito à identidade cultural e de forma a trazer uma perspectiva jurídica de respeito e compreensão aos valores próprios da cultura indígena. em linguagem tribal. princípio fundamental do Estado Brasileiro (art. International and comparative perspectives.org/pi-interno/epi/ikpeng/impot. Maria Helena. Antropologia e Cultura Jurídicas respeitar os valores indígenas. Coimbra: Coimbra Editora. 35 . Manchester: Manchester University Press. 2011. Names and the Value of a Human Person.com/articles/view/names_and_the_value_of_a_human_person] Acesso em: 14 de novembro de 2012. UZO. 133 .Sociologia. THORNBERRY.Vol.mercatornet. Disponível em: [http://www. Antropologia e Cultura Jurídicas SOUZA. Patrick. Uchenna. Direito Geral da Personalidade. 2002. Rabindranath Capelo de.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Indigenous people and human rights. examinera la proposition de la médiation 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. tel que présenté par Santos . a exemplo da mediação transformadora de Warat. qui constituent un véritable mécanisme de l'exercice d'une citoyenneté active et la construction d'une justice citoyen. L'étude intègre la discussion de la notion de citoyenneté à partir d'un articulation entre la raison et la sensibilité. 35 . Crise do Poder Judiciário.peut favoriser l'émergence de propositions alternatives pour la résolution des conflits.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . será examinada a proposta de mediação transformadora de Luis Alberto Warat. a partir da experiência do Juspopuli – Escritório de Direitos Humanos no município de Feira de Santana-BA. Email: [email protected] 134 .Sociologia. que se constituem enquanto verdadeiro mecanismo de exercício de uma cidadania ativa e de construção de uma justiça cidadã. Neste sentido. PALAVRAS-CHAVE: Mediação. a fim de identificar o impacto de sua prática para o exercício da cidadania.la crise structurelle du système judiciaire et de la crise paradigme juridique dominante .Vol. RÉSUMÉ Ce travail se propose de descuter en double crise de l'activité judiciaire de l'Etat. conforme apresentada por Santos . O estudo retoma o debate do conceito de cidadania a partir de uma articulação entre a razão e a sensibilidade.a crise estrutural do poder judiciário e a crise paradigmática do direito . En ce sens. Antropologia e Cultura Jurídicas A MEDIAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: UMA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DO JUSPOPULI EM FEIRA DE SANTANA-BA MÉDIATION ET DE CONSTRUCTION DE LA CITOYENNETÉ: UNE ANALYSE DE L'EXPÉRIENCE DE L'JUSPOPULI DANS FEIRA DE SANTANA-BA Tássio Túlio Braz Bezerra1 RESUMO Este trabalho pretende discutir como a dupla crise da atividade jurisdicional do Estado. l'exemple de la médiation transformatrice Warat.pode propiciar o surgimento de propostas alternativas de resolução de conflitos. Cidadania. 2 O CONTEXTO DA DUPLA CRISE A função jurisdicional do Estado passa contemporaneamente por um processo de 135 . à partir de l'expérience de Juspopuli . a questão central do trabalho que se segue é saber se a mediação transformadora. seja no campo quantitativo. a partir da ressignificação de interesses contrapostos. por sua vez . Antropologia e Cultura Jurídicas transformatrice de Luis Alberto Warat. prover uma maior participação social na administração da justiça.Vol. Crise du Pouvoir Judiciaire. dentre os quais destacamos a mediação. 1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem por finalidade.Sociologia. Neste sentido. propiciando uma retomada dos meios alternativos de resolução de conflitos. quanto qualitativo. tem o poder de restabelecer o diálogo e o reconhecimento do outro. Assim. MOTS-CLÉS: Médiation. conforme apresentada por Boaventura de Sousa Santos: a crise estrutural do poder judiciário e a crise paradigmática do próprio direito. O desgaste da estrutura do judiciário que não consegue atender a demanda popular.na perspectiva transformadora de Luis Alberto Warat –.Bureau des Droits de L'homme la ville de Feira de Santana-BA. dá impulso ao surgimento de instrumentos de resolução de conflitos à margem da estrutura estatal. impulsionando o surgimento de uma cidadania ativa por parte dos indivíduos. Este mecanismo. a partir de um curto esforço teórico. à d'identifier l'impact de leur pratique à la l'exercice citoyenneté. Citoyenneté. 35 . a partir dos postulados teóricos de Warat.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . discutir as novas possibilidades de resolução de conflitos que emergem da dupla crise enfrentada pela atividade jurisdicional do Estado. será feito um diálogo com prática de mediação realizada pelo Juspopuli – Escritório de Direitos Humanos que realiza no município de Feira de Santana. de modo a que se possa analisar empiricamente o alcance do impulso à cidadania que pode efetivamente ser promovido por um modelo que se inspira na mediação transformadora waratiana. Debate este que tem contribuído para ampliar a discussão dos mecanismos de suposta regulação social. inclusive propiciando o surgimento de maneiras diversificadas e cada vez mais plurais de resolução dos diversos problemas comuns ao convívio cotidiano. pode se constituir enquanto prática criadora de um modelo participativo de cidadania que possa contribuir com a possibilidade de construção de uma justiça cidadã. 35 . emergem no contexto brasileiro os novos movimentos sociais que buscam. dos valores dominantes. trataremos os referidos e atuais impasses da função jurisdicional do Estado a partir da ótica de uma crise de dupla face: estrutural e paradigmática4. apontam para uma tripla face da crise. 256-259). por hora. A segunda. na medida em que a busca da efetivação material daquilo que apenas formalmente é garantido se constitui em um front de luta e atuação dos novos sujeitos coletivos de direito5. a exemplo de Streck (2001). levando 136 . 'paradigma' é um modelo científico de verdade. com as novas demandas da sociedade e dos movimentos sociais em especial.1 A crise estrutural do Poder Judiciário O desenvolvimento histórico do Estado Moderno em sua atual feição de Estado Democrático do Direito foi resultado de um progressivo deslocamento do centro de decisões do poder legislativo (Estado Liberal) e executivo (Estado Social) para o judiciário (Estado Democrático de Direito). 2009. 2). 2. se expressa pela crise do paradigma3 jurídico dominante e a inadequação do direito produzido pelos tribunais ao guardar descompasso. Neste processo. indicando também uma crise de imaginário do direito. p. em tese. Por volta da década de 70 do século passado. Krínein) é a agudização das contradições estruturais e dos conflitos sociais em dado processo histórico. ou seja. 2 ). A queda do muro de Berlim em 1989 e a esfacelamento do Bloco Soviético em 1991 foram acontecimentos que enredaram no mundo ocidental o sentimento da vitória final do capitalismo sobre o solicialismo.Sociologia. Assim. A primeira.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . o retorno de uma lógica neoliberal de mercado – pós-queda do muro de Berlim e do Bloco Soviético6 – e a consequente precarização dos direitos econômicos e 2 3 4 5 6 “Crise (do grego Krisis. p. a falta de eficácia ou o esgotamento do modelo. Expressa sempre a disfuncionalidade. Por seu turno. aceito e predominante em determinado momento histórico. construir novas formas de reivindicação e intervenção na busca de seu reconhecimento e conquista de direitos (SOUZA JÚNIOR. a crise estrutural que se manifesta pela incapacidade operacional do sistema judicial em cumprir com aquilo que ele mesmo.Vol. dizer o direito pondo termo aos mais diversos conflitos sociais dentro de um processo judicial democrático. o judiciário passou a ser o último recurso dos cidadãos para garantir a efetivação de direitos previstos na legislação. mas também como mecanismo transformador da sociedade (STRECK. Trata-se de 'práticas científicas compartilhadas' que resultam de avanços descontínuos. não nos adentraremos em sua análise em apartado. Antropologia e Cultura Jurídicas crise2 que se expressa em duas dimensões. seus aspectos dentro da própria crise paradigmática do direito. 1991. debatendo. p. 2001). saltos qualitativos e rupturas epistemológicas” (1975. Kuhn. passando ao papel de garantidor da efetividade dos direitos constitucionalmente assegurados e não cumpridos pelo legislativo e executivo. ou situação histórica aceitos e tradicionalmente vigentes” (WOLKMER. a partir de uma identidade e atuação coletiva. quando não a própria incompatibilidade. 218 apud WOLKMER. se propõe. “Segundo Thomas S. p. Alguns autores. porém não realizados pela atuação dos outros poderes. Apesar de compreendermos a pertinência da categoria. 2009. Assim. coloca o direito não apenas como trincheira. de luta e contradição. Antropologia e Cultura Jurídicas sociais acarretou em um grande aumento das demandas ao poder judiciário (SANTOS. Para um conceito amplo de modernidade são expressivas as palavras Marshall Berman ao declarar que: “Existe um tipo de experiência vital – experiência de tempo e espaço. p. p. 1996. 15).Vol. cria um excesso de expectativas que por si só geram enorme frustração quando não atendidas. autotransformação e transformação das coisas ao redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos. Designarei este conjunto de experiências como ‘modernidade’. 7 8 9 os países capitalistas a reavaliarem suas políticas na área social. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais. 35 . das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo. uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança. 2007b. a boa administração (nomos) ou a boa ordem. p. crescimento. 2002. p. tudo o que somos. onde este existiu. do mundo social” (BOURDIEU. Porém. poder. p. 212). 171). haja vista a inexistência de modelo econômico alternativo que pudesse servir de referencial a nortear a luta da classe trabalhadora. alegria. de religião e ideologia: nesse sentido. justa. hoje. 13 apud STRECK. É necessário uma nova ressignificação da própria concepção hermenêutica do direito. tudo o que sabemos. como disse Marx. 19). A viragem (reviravolta) lingüística do pensamento filosófico do século XX vai centralizar justamente “na tese fundamental de que é impossível filosofar sobre algo sem filosofar sobre a linguagem. de ambiguidade e angústia. O deslocamento da legitimidade dos poderes legislativo e executivo para o judiciário. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura. normativista-liberal-individualista. 10. de si mesmo e dos outros. levando à própria descrença no papel do direito na construção democrática (SANTOS. 5961). entende o direito em sua objetividade técnica e científica que busca ainda em verdades prédefinidas a essência das coisas. é uma unidade paradoxal. 2007b. sustentado pela atuação de atores em um campo jurídico8 hermético às mudanças da viragem linguística9. 2001. Aos problemas estruturais da atividade judicial é acrescida uma crise do próprio paradigma epistemológico dominante da modernidade7 que se reflete diretamente no campo do direito. de tal modo que a formulação de conhecimentos intersubjetivamente válidos exige reflexão sobre sua infra-estrutura lingüística” (OLIVEIRA. culminando com a crise estrutural do poder judiciário. quer dizer. 137 . p. de classe e nacionalidade. 2001. uma vez que esta é momento necessário e constitutivo de todo e qualquer saber humano. pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima. a partir de uma compreensão que possa extrair da constituição e das demais leis as regras e princípios necessários a efetivação dos direitos (STRECK. “O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito. p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 16).Sociologia. desmantelando o welfare state. esperando-se que este resolva problemas que o sistema político não consegue resolver. ‘tudo o que é sólido se desmancha no ar’” (1986.2 A crise paradigmática do direito O paradigma jurídico dominante. 2. Na modernidade. o colonialismo. sendo elas no campo da regulação a comunidade e no da emancipação a racionalidade estético-expressiva (SANTOS. ao desenvolvimento de novas formas de regulação. Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos: Todo o conhecimento implica uma trajectória. Pelo seu próprio afastamento do paradigma científico.Vol. 78). 2007a. 79). para o saber. A relação dinâmica entre as formas de conhecimento e a prevalência da lógica da racionalidade cognitivoinstrumental permitiu o domínio da regulação sobre a emancipação e a recodificação desta última sobre os termos da primeira. designado por ignorância. Por sua vez o conhecimento-emancipação progride da ignorância. no domínio da regulação.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . devido a sua própria fluidez. o estado de saber no conhecimento-emancipação passou a estado de ignorância no conhecimento-regulação (a solidariedade foi recodificada como caos) e. As formas de conhecimento distinguem-se pelo modo como caracterizam os dois pontos e a trajectória que conduz de um ao outro (2007a. a ordem.Sociologia. perceber e interagir com o mundo a partir de um outro paradigma. Tal referencial teórico emerge das representações mais inacabadas e abertas da modernidade. p. a ignorância no conhecimento-emancipação passou a estado de saber no conhecimento-regulação (o colonialismo foi recodificado como ordem) (2007a. p. pelo mesmo intitulado de um conhecimento prudente para uma vida decente (2007b. da arte. No paradigma cognitivo vigente. Vislumbra-se assim a possibilidade de uma verdadeira inversão paradigmática na epistemologia ocidental. resistiu a sua cooptação sendo relegada à marginalização e ao esquecimento. mostra-se hoje mais apta. Em contrapartida. a racionalidade estético-expressiva representa por sua vez a busca do prazer. inversamente. ao contrário da lógica performático-utilitária da ciência. O conhecimento-regulação é uma trajetória entre um estado de ignorância. a racionalidade cognitivo-instrumental colonizou os pilares do mercado e do Estado. 35 . calcada quase sempre em uma ótica instrumental do saber. p. uma progressão de um ponto ou estado A. Antropologia e Cultura Jurídicas De acordo com Boaventura de Sousa Santos. a comunidade. Um processo de construção de um novo modo de pensar. p. O elemento restante. o caos. Quanto a esta questão Boaventura de Sousa Santos afirma que: Assim. designado pela solidariedade. 74). 74-76). designado por saber. da autonomia e da construção do diálogo enquanto forma de conhecimento e emancipação. vivemos hoje um período de transição paradigmática. a identificação do desenvolvimento do capitalismo com o 138 . para um estado de saber. para um ponto ou Estado B. Vol. Tem-se notícia. 3 A CONSTRUÇÃO DE ALTERNATIVAS10 3. 117). 170).1 Os métodos alternativos Os métodos alternativos de resolução de conflitos são assim definidos devido a uma faculdade de escolha. p. Os meios mais comumente utilizados são a negociação direta. a comunidade e a política (WARAT. 139 .C. 2011. 2011b). o registro de utilização de seus métodos são muito antigos. p.. o intercâmbio de sentidos entre direito e ciência se dá pela transformação do primeiro em alter ego da segunda (SANTOS. na Babilônia (MEDINA.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . haja vista que a prevalência política da ordem sobre o caos foi atribuída ao Estado moderno Não se pode aqui perder de vista que “[. podemos inferir que a dupla face da crise – estrutural e paradigmática – propiciou dentro do próprio judiciário o surgimento de uma crítica ao formalismo jurídico – seja ele substantivo ou procedimental – impulsionando. a retomada dos métodos alternativos de resolução de conflitos. a se submeter à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência ou ser isomórfica dela. O caminho que se aponta é no sentido do reconhecimento da pluralidade de universos jurídicos em paralelo ao ordenamento estatal.] a absorção do direito moderno pelo Estado moderno foi um processo histórico contingente que. p. apenas a título de exemplo. 2004. (2011a. 2003. envolveu também a sua estatização. Deste modo. Antropologia e Cultura Jurídicas progresso científico propiciou a subordinação do direito à ciência.000 a. 52-53) Não se pode perder de vista que a cientificização do direito moderno. como qualquer outro processo histórico. frente à jurisdição estatal. em uma de suas direções. 2011. A partir da discussão desenvolvida. a arbitragem e a mediação. 10 Esta seção é uma versão revisada e ampliada de trabalhos já anteriormente publicados.. teve um início e há-de (sic) ter um fim” (SANTOS. a conciliação. Se faz urgente um novo processo de autonomia do direito que possa fazê-lo sair de sua aderência ao Estado e promover uma articulação mais complexa entre o direito. 35 . de registros de utilização da arbitragem por volta de 3. como regulação científica da sociedade. T. passando a racionalidade moral-prática do direito. surgida por volta da década de oitenta do século passado nos Estados Unidos. Apesar da nomenclatura ADR (Alternative Dispute Resolution) ser relativamente nova. por parte do jurisdicionado. Para acesso aos originais ver Bezerra. para ser eficaz.Sociologia. p. O processo de mediação: estratégias práticas para a resolução de conflitos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A melhor ilustração é ministrada pelos casos em que o conflito não passa de um episódio em relação complexa e permanente. cristãs. Neste sentido. 32)11. a justiça conciliatória. o que tornou a Igreja Católica na Europa Ocidental e a Igreja Ortodoxa no leste Mediterrâneo as principais organizações de mediação e administração de conflitos no mundo ocidental. não se deve conceber a ideia de alternatividade dos métodos alternativos como expressão latente de um método subalterno (SANTOS. possibilita não só uma melhor solução do ponto de vista procedimental. Assim. como também material. islâmicas. pode-se concluir com segurança que não basta apenas possibilitar o acesso à 11 Para a consulta a exemplos históricos e contemporâneos da prática da mediação em outras sociedades ver MOORE. que a medição tem uma longa e variada história que perpassa as culturas judaicas. haja vista que este – quando obtido – deve ser fruto do mútuo entendimento entre os conflitantes. Antropologia e Cultura Jurídicas p. comunidades judaicas utilizavam da mediação que era praticada tanto por lideranças religiosas quanto políticas. Posteriormente. tais práticas foram incorporadas pelas comunidades cristãs emergentes que perceberam Jesus Cristo como mediador entre Deus e os homens.107) àquele que poderíamos designar como supostamente normal. É importante ressaltar. faz-se necessário ressalvar que o impulso dado aos meios alternativos. 2ª. Deve-se recordar que o monismo jurídico estatal é bastante recente no mundo ocidental e que a resolução privada dos conflitos sempre se constituiu a regra ao longo da história. em seu modelo tradicional. a mediação. papel este assumido em sequência pelo clero. budistas. p. a jurisdição estatal. 1998. p. Por sua vez. 32-47. do que os resultados do processo contencioso. não podendo o mediador propor nenhum acordo. 18-19). apenas para citarmos exemplos da comunidade judaico-cristã (MOORE. 74). há situações em que a justiça conciliatória (ou coexistencial) é capaz de produzir resultados que. até qualitativamente. em especial a mediação. se caracteriza pela intervenção de um terceiro no conflito que funciona como facilitador do diálogo entre as partes. apenas a título de demonstrar sua experiência. p. Porto Alegre: Artmed.Vol. (2001. Dito isto. 1998. 2006. 35 . hinduístas. ed. longe de serem de “segunda classe” são melhores. para dirimir conflitos de idêntico teor. aí. confucionistas e diversas culturas indígenas. 140 . como afirma Cappelletti: Primeiro.Sociologia. Christopher W. Desde os tempos bíblicos. ou – conforme se lhe poderia chamar – a “justiça reparadora” tem a possibilidade de preservar a relação tratando o episódio litigioso antes como perturbação temporária do que como ruptura definitiva daquela. 5). sem marcos afetivos” (WARAT. 67). encarando-a em sua perspectiva transformadora dos sujeitos envolvidos no conflito e as possibilidades que abre a uma ressignificação do mesmo e à preponderância ativa dos indivíduos envolvidos de modo a se tornar uma prática emancipatória da cidadania e promovedora de autêntica democratização do acesso à justiça. A mediação. A mediação waratiana se diferencia da negociação direta por ser uma autocomposição assistida. porém no significado que lhe é dado. e sim um reencontro com o outro. Tem-se por finalidade não o mero acerto de um acordo – em distinção da mediação acordista –.2 A mediação transformadora A partir de agora adentraremos na análise da mediação. Antropologia e Cultura Jurídicas justiça. 35 . “a mediação é um trabalho sobre afetos em conflito. quando animada pelas qualidades humanas afetivas. 2008. um resgate do ser humano e a preocupação das implicações futuras que aquela decisão irá trazer.. psicológicas e morais” (BEZERRA. p. não um acordo entre partes.. neste modelo. p. Nesta direção.] uma forma ecológica de resolução dos conflitos sociais e jurídicos. nas palavras de Luis Alberto Warat: [. exclusivamente patrimonial. 141 . Ainda assim. não se pode ou deve esquecer que “uma ordem jurídica será mais estável e eficiente. deixando de lado a lógica competitiva do perde-ganha. O termo mediação se origina do latim mediare tendo por significação repartir em duas partes iguais ou dividir ao meio (VELOSO.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A mediação é uma forma alternativa (com o outro) de resolução de conflitos jurídicos. 2009.Sociologia. de modo a dotá-los de autonomia para dar-lhe solução. 8). visto que mais urgente e necessário ainda é mudar a justiça a que se tem acesso. uma forma na qual o intuito de satisfação do desejo substitui a aplicação coercitiva e terceirizada de uma sanção legal. Constitui-se em um trabalho de reconstrução simbólica do conflito a partir da significação dos sujeitos envolvidos. p. sem que exista a preocupação de dividir a justiça ou de ajustar o acordo às disposições do direito positivo (1998. P. visto que muitas vezes o problema não se encontra no conflito em si. 1998. busca a ressignificação do conflito. Consequentemente.. Deste modo. faz-se importante distinguir o conflito aparente do conflito real. p.Vol. para uma perspectiva de cooperação. cumpre primeiramente conceituar o tipo de mediação de que estamos a falar. 25). 3. Neste sentido. A mediação deve andar junto com este. compete ao mediador estabelecer a comunicação entre as partes. p. o que muitas vezes culmina com sua escalada. 25-28). Podemos claramente denotar a dificuldade de grande parte da população de compreender o “mundo jurídico” – haja vista que é apresentado como um plano distinto da realidade concreta – pelo fato de este conter uma linguagem. É interessante destacar a grande semelhança que este método utilizado especialmente em conflitos humanitários guarda com a proposta mediatória waratiana. ter a sensibilidade de trazer a realidade do problema à tona. 2007. são sintomáticas as palavras de Hicks ao discorrer sobre utilização do método RIP – Resolução Interativa de Conflitos12. Cabe ao mediador buscar intervir enquanto terceiro no conflito de modo que os envolvidos possam ter um outro olhar sobre a desavença. como lembra Boaventura de Sousa Santos: Diz-nos o sábio Kierkegaard: “A maioria das pessoas são subjetivas a respeito de si próprias e objectivas – algumas vezes terrivelmente objectivas – a respeito dos outros. 17). haja vista a ausência de reconhecimento do outro. de construção de sua autonomia e de um outro direito.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2007. 2004. enfim. – ao longo de sua trajetória narrada na obra de Franz Kafka. A linguagem da mediação está longe do linguajar hermético do direito. quando analisa a interação de pessoas em contextos de relações de conflito desumanizadores: “Uma consequência destrutiva do conflito é o processo de alienação e o isolamento entre as partes. 43). Anseio este que permaneceu insolúvel até sua condenação prática. percebendo os reflexos da disputa e suas implicações na relação de todos os envolvidos. Deve ser a língua dos sentimentos e do amor. p. ouvir no silêncio. “O Processo” – para entender de que se tratava o processo do qual era acusado. p. “O amor é o religamento com a natureza e com os outros” (WARAT. p. apesar de tratar-se aqui de indivíduo com grau de 12 “A abordagem RIP lida com o nível 'humano' do conflito e analisa as formas como as partes em conflito interagem uma com as outras” (HICKS.Sociologia. Antropologia e Cultura Jurídicas tirando o foco do individual para o coletivo. ritos e procedimentos ininteligíveis para o senso comum. p. em um autêntico processo de tradução. Neste contexto. O importante é ser-se objectivo em relação a si próprio e subjectivo em relação aos outros” (2011. 152).Vol. enxergando-a como espaço de reconstrução e aprendizado. visto ser o amor meio do indivíduo poder enxergar seu próprio interior e principalmente ao outro. criando a distância e a falta de comunicação que resultam no processo de desumanização” (2007. buscar nas entrelinhas o significado interior das coisas. Serve como ótima ilustração deste fato a busca incansável de Josef K. saindo da negatividade do conceito de culpa para o reconhecimento da responsabilidade (SALES. 35 . 152). O distanciamento a que as partes em desavença mutuamente em geral se submetem se converte em elemento desumanizador do conflito. 142 . 226. categorias de percepção e apreciação perfeitamente irredutíveis às dos não especialistas. há um processo de distanciamento da partes em conflito.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . nada tem de acidental. p. 143 . 20). num cliente. Deste modo.. Dito isto sem considerar a conhecida e abissal diferença entre o direito legislado e aquele que é praticado nos tribunais. o que dirá do cidadão comum. fatos e provas. 227-232). sendo bastante precisas as palavras de Pierre Bourdieu ao afirmar: O desvio entre a visão vulgar daquele que se vai tornar num judiciável.. que fundamenta dois sistemas diferentes de pressupostos. Antropologia e Cultura Jurídicas intelecção bastante acima de um homem médio. e a visão científica do perito. em particular. O espaço judicial funciona como um lugar onde ocorre um processo de neutralização dos conflitos por meio de sua transmutação em termos jurídicos. 35 . 2003. revela o caráter desumano do processo judicial. de intenções expressivas. ainda assim não teria condições de compreendê-lo. conselheiro jurídico e etc. numa palavra. grifo do autor). sendo agora o litígio operado mediante procuração por profissionais habilitados que tem como pressuposto o conhecimento do direito e dos procedimentos jurídicos (BOURDIEU. Este processo de separação e distanciamento das partes. A distinção entre a percepção popular e erudita da atividade jurídica em nada é ocasional. juiz. conhecer todo o ordenamento. quer dizer. duas visões do mundo (2005. p.Sociologia. p. p. consistindo esta premissa básica do Estado de Direito – o conhecimento da lei por todos – na mais incontestável ficção. constituindo uma linguagem e uma cultura totalmente próprias. 2005. 2005. advogado.] as instituições judiciais tenderem a produzir verdadeiras tradições específicas e. É importante que se deixe claro que mesmo na situação hipotética ideal em que o cidadão comum tivesse acesso a todo o acervo normativo e tivesse a curiosidade e interesse de sobre ele se debruçar.. Neste sentido. se produz o efeito de hermetismo no direito que se manifesta no fato de: [. gerando os seus problemas e suas soluções segundo uma lógica totalmente hermética e inacessível aos profanos (BOURDIEU. além da fragmentação do conflito em normas. Ele é constitutivo de uma relação de poder. O pensamento jurídico de concepção normativista do direito guarda aqui enorme semelhança com o pensamento científico e propicia em sua interpretação do direito um divórcio entre o presumido conteúdo semântico das leis e o destino das vidas humanas em conflito (WARAT. 226). sem em nada considerar o drama humano que lhe fundamenta.Vol. haja vista se tratar de um léxico várias vezes superior ao seu. A enorme profusão normativa torna impossível a qualquer profissional jurídico. ainda segundo o referido autor. que atua como uma lógica da vida social. Faz se necessário ainda perceber que apesar do direito informar um conjunto de valores presente no âmago da sociedade. 1998. o poder jurisdicional percebe no conflito a lide judicial a qual deve ser posta termo. não no sentido de que os elimina. visto que reflete algum distúrbio ou quebra da ordem social. 14). ou não é compreendido. 2007. Ou seja. p.. nos quais não há a consciência de sua natureza jurídica. p. com pouca ou nenhuma percepção de seus significados e alcances (1998. quando é por ele apanhado através das instituições estatais mobilizadas na defesa dos mais diversos interesses privados (CÁRCOVA. O direito. Em verdade. por seu lado negativo. como uma partitura. com reflexos no direito. A visão da mediação transformadora13 sobre o conflito percebe-o como uma situação-problema comum ao convívio e que deve servir de oportunidade ao amadurecimento das relações. 16) em contraposição ao modelo acordista de mediação. Segundo o mencionado autor: Existe. a decisão jurídica é aquela capaz de lhes pôr um fim. a decisão autoritária põe fim à lide processual. portanto.] as decisões. como um livreto. 35 . absorvem insegurança. p. Estes realizam certos rituais. imitam condutas. 21). p. reproduzem certos gestos. 24). permanecendo ou até mesmo piorando o conflito. Neste sentido. paradoxalmente não é conhecido. 2009. não satisfazendo muitas vezes o resultado a nenhuma das partes. 13 Termo utilizado por Warat (1998. segundo conceituação de Carlos Maria Cárcova. ou seja. Assim. Tal fenômeno pode ser definido.. nem sempre esta indicação axiológica coincide com a consagrada no ordenamento jurídico. podemos perceber que “há sempre uma tensão dialética entre a consciência jurídica da coletividade e as normas editadas pelo Estado (COMPARATO. A restrição do conflito a sua dimensão judicial acaba por fim prejudicando os próprios indivíduos sujeitos à sua tutela (RABELO. a grande maioria dos cidadãos apenas conhece o direito pelas costas. 144 . pois. 1998. vai discorrer o referido autor sobre a relação das decisões judiciais com os conflitos: A institucionalização do conflito e do procedimento decisório confere aos conflitos jurídicos uma qualidade especial: eles terminam. pois na maioria dos casos a determinação judicial trabalha de forma binária com a ótica maniqueísta de vencedores e perdedores.Sociologia. 27).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . p. pelos atores em cena. p. Assim. 84). p. uma opacidade do jurídico. não porque eliminem o conflito. mas porque o transformam” (2007. são eficazes as palavras de Tércio Sampaio Ferraz Júnior ao afirmar que “[. SALES.Vol. como opacidade do direito. Antropologia e Cultura Jurídicas Não é difícil se constatar que diversos são os atos cotidianos realizados pelos indivíduos. Contrariamente. Mais adiante. 327). A abordagem judicial dos conflitos representa sua passagem do domínio privado para o público ocasionando a perda do controle de seu desfecho por ambos os disputantes (MOORE. com a verdade formal contida nos autos. vários sistemas jurídicos e judiciais não sendo necessariamente o sistema estatal o melhor ou o mais importante da gestão de situações 145 . ao contrário das modalidades anteriormente citadas. Mas. p. SALES. tem como única finalidade a obtenção de um acordo. as causas e consequências do conflito. conforme se extrai desta passagem: A mediação não se preocupa com o litígio.1 A pluralidade do fenômeno jurídico Um ponto de inflexão da teoria waratiana que a difere de grande parte das concepções vigentes de mediação é a sua desvinculação do direito positivo. principalmente. quando não possibilitando o próprio amadurecimento dos indivíduos em sua relação entre si. Tampouco. 82). 2009. arbitragem e mediação acordista) está no fato de que naquela modalidade de mediação há uma reconstrução simbólica do conflito a partir do discurso e uma busca da satisfação da real necessidade dos indivíduos com base no sentido que dão à desavença. A simples facilitação do diálogo já manifesta por si só o êxito da mediação. Antropologia e Cultura Jurídicas mas que impede sua continuação (2007. do ponto de vista sociológico. não resume o conflito a sua dimensão legal. ajudar os interessados a redimensionar o conflito. como o mercador negociando a mercadoria. pois mesmo que não leve a um acordo. Diferentemente de uma perspectiva acordista da mediação – que concebe o acordo como o fim último do processo – em que o mediador trabalha a busca do consenso. a mediação transformadora se preocupa na construção de uma relação dialógica que possibilite o entendimento de sentidos. circulando simultaneamente. culturais e sociais que determinaram um choque de atitudes e interesses no relacionamento das pessoas envolvidas (WARAT. buscando as origens. conciliação. se pode inferir que um dos grandes diferenciais da mediação waratiana dos métodos tradicionais (sentenças judiciais) e alternativos de resolução de conflitos (negociação direta. resulta em entendimento e respeito com o outro (RABELO.Sociologia. 2004. ou seja. muito menos processual. A mediação transformadora. Consequentemente. Não se deve esquecer que as sociedades contemporâneas são jurídica e judicialmente plurais. aqui entendido como conjunto de condições psicológicas. p. 328). visa. Analisa ainda a dimensão afetivo-conflituosa. 35 . a partir da determinação da autonomia dos indivíduos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 4 DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA E PLURALISMO JURÍDICO 4. p.Vol. 80-81). . De modo a legitimar a prática de uma mediação transformadora das relações jurídicas podemos utilizar dos próprios espaços do ordenamento jurídico estatal. e com grande frequência não o principal. p. valoriza-se aqui a autodeterminação dos indivíduos enquanto sujeitos ativos do conflito e capazes de livremente conceber-lhe solução. a fim de realizar os interesses de segmentos sociais mais desfavorecidos (WOLKMER. 178). 35 . 242). O próprio fato de a mediação ser um procedimento não regulamentado dentro de 14 O uso alternativo do direito consiste em uma estratégia de desenvolver procedimentos político-jurídicos capazes de utilizar o ordenamento jurídico estatal em uma direção emancipadora. como. maior é a probabilidade de que ela não seja aplicada” (SANTOS. igualmente. Radicaliza-se aqui o que foi relativizado por Cappelletti: A componente normativa do direito não é negada. construindo concretamente uma justiça cidadã e participativa. do direito.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 146 .Sociologia. Não se deve esquecer a grande afinidade – quando não identidade – dos intérpretes e aplicadores do direito com os detentores do poder político e econômico. de modo concreto. Antropologia e Cultura Jurídicas de conflitualidade (SANTOS. 271). mas encarada como um elemento. até mesmo fora das regras formais. percebe-se que “quanto mais caracterizadamente uma lei protege os interesses populares e emergentes. p. 165). 2008. 2008. a possibilidade de um verdadeiro pluralismo jurídico. o que faz com que pretensões que consubstanciem interesses. Assim. p. conforme afirma o referido autor: No amplo quadro da legislação estatal brasileira subsistem vários dispositivos que viabilizam não só explorar as lacunas da lei e as antinomias jurídicas. p.Vol. p. 83). 272). Abre-se aqui. 1994. valores e visões antagônicas tenham poucas probabilidades de desfavorecer os extratos dominantes da sociedade (BOURDIEU. Segundo afirmação de Antônio Carlos Wolkmer: Trata-se de explorar. fundada na equidade. 2007). com todos os seus traços culturais. 2005.. p. p. 41). mediante o método hermenêutico (interpretação de cunho libertário). na justiça social e na socialização do Direito (WOLKMER. a partir do uso alternativo do direito14 ou da aplicação de um outro modo de regulação das relações comunitárias diverso do ordenamento estatal. O elemento primário é o povo. Neste sentido. 2001. econômicos e psicológicos (2001. as contradições e as crises do próprio sistema oficial e buscar formas legais mais democráticas superadoras da ordem burguesa estatal (1994. exercer uma interpretação flexível e menos rígida.] igualdade de todos os cidadãos perante a lei passou a ser confrontada com a desigualdade da lei perante os cidadãos” (SANTOS. A afirmação ideológica liberal da “[. que se possa extrair das regras jurídicas uma verdade inconteste para a resolução do conflito. de forma objetificante.] a segurança jurídica não significa inflexibilidade da norma. na presença de valores no mundo social e mesmo jurídico. A desconsideração deste posicionamento tem como base a utilização da filosofia do sujeito cognoscente17 que tem as normas e os fatos jurídicos como objeto de análise apartados do homem e deles pode extrair uma solução objetiva para o caso concreto. 35 . na medida em que garante a possibilidade de fluidez15.. A certeza e a segurança não impedem uma atitude interpretativa mais ampla do que o texto expresso na lei. 171). de modo a permitir uma maior liberdade em sua prática. 16). [. mundo este por ele ‘objetivável e descritível’ [. membro da comissão de juristas responsável por elaborar o anteprojeto do novo Código de Processo Civil. 2001. Mesmo na modernidade. “Predominantemente.827/1998 que institucionaliza e disciplina a mediação como método de prevenção e solução consensual de conflitos. p. 90). Acredita-se. possibilita uma maior flexibilidade em seu exercício. Tal crítica carece de fundamento teórico e representa em verdade um enfoque ideológico do problema. 13). p. Benedito Cerezzo Pereira Filho. na possibilidade da existência de um sujeito cognoscente. Daí advém o medo de alguns de que a regulação desta atividade 16 possa sufocar muitas de suas principais características: seu caráter não decisionista. onde um sujeito observador está situado em frente a um mundo. 2008.] Crer na existência de valores. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei Nº 4. Não se pode perder de vista que o Estado nunca deteve exclusivamente o monopólio do direito (SANTOS. 152). Uma das mais significativas resistências a larga utilização da mediação é o argumento segundo o qual não possui um arcabouço teórico que possa garantir a previsibilidade dos acordos e sua consequente segurança jurídica. que estabelece..Sociologia. ainda vigora na dogmática jurídica o paradigma epistemológico que tem como escopo o esquema sujeito-objeto.] Acredita-se. realizado em Brasília-DF. o direito estatal sempre 15 16 17 Não se pode deixar de aqui registrar que por ocasião da apresentação de trabalho preparatório desta pesquisa no 31º ENED – Encontro Nacional dos Estudantes de Direito.. na medida em que pressupõe a necessidade de o direito se manifestar enquanto técnica científica na solução de situações-problema. e não autoritário no tratamento de conflitos (MORAIS. nesta perspectiva. A referida matéria já foi aprovada na Câmara dos Deputados e após receber proposta substitutiva no Senado Federal retornou à casa de origem para nova apreciação.. nas palavras de Paulo Cesar Santos Bezerra. Não se pode deixar de perceber. 2011. que: [. algo mais que a expressão normativa (2008.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . p. O erro epistemológico nesta abordagem se dá na premissa de não compreender o próprio direito enquanto linguagem e de descartar a possibilidade de se utilizar desta ferramenta para construir soluções muito mais criativas e garantidoras da paz social. Antropologia e Cultura Jurídicas nosso ordenamento jurídico. foi afirmado por este. 147 . Dr. p. a manifesta intenção de manter sem regulamentação legal expressa o procedimento de mediação no novo CPC.. longe de ser concebido como um prejuízo a sua prática. em suas considerações. professor da USP. p.. pois. a qual contou com a presença do Prof. condições de interpretação e aplicação” (STRECK. leva a que se busque na própria normatividade. desde que revestida de certa razoabilidade (2008.Vol. Neste sentido.1 A origem do conceito de cidadania O conceito de cidadania surge inicialmente a partir de uma relação de ordem política entre um indivíduo e determinada comunidade.Vol. o conceito de cidadão. Pode-se com segurança afirmar que o processo de transição democrática no Brasil.2 Democratização do direito e cidadania No atual tempo de expansão acelerada do neoliberalismo. 35 . 2005. 171). foi sempre apenas uma entre várias ordens jurídicas integrantes da constelação jurídica da sociedade. das dinâmicas e relações de poder de fato locais. tendo sua origem histórica na antiguidade. […] Por outro lado […] o Estado nacional. enquanto membro do agrupamento político constituinte da polis grega. ligada a uma concepção republicana e de participação política. 171). liberal e concretizada por meio de uma democracia representativa (CORTINA. a outra é o reconhecimento da pluralidade. não guarda identidade com os limites físicos 148 . Assim. Apesar da semelhança etimológica. p. 2011.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .2. Neste contexto. pode-se perceber que: A constelação jurídica das sociedades modernas foi assim. 79). A primeira delas é grega e guarda consigo uma dimensão política. faz-se urgente o resgate do debate da cidadania. supraestatal. 19). bem como com um direito infraestatal. p. Antropologia e Cultura Jurídicas conviveu com um direito supra-estatal. ficou restrito ao plano jurídico formal e político (SADER. A segunda é latina e decorre de uma tradição jurídica. ao conceder a qualidade de direito ao direito estatal. 2006. 2007. vive-se um período em que “as sociedades são politicamente democráticas e socialmente fascistas” (SANTOS.Sociologia. 28). 4. A recuperação de um potencial emancipatório do direito passa necessariamente por duas premissas. O desenvolvimento do capitalismo promoveu uma democracia ausente de cidadania. Uma é a separação entre direito e Estado. p. O primeiro elemento é a coexistência de várias ordens jurídicas (estatal. da dinâmica de suas relações com outros Estado e com o próprio Mercado. por muito importante e central. desde o início constituída por dois elementos. o direito estatal. negou-a às demais ordens jurídicas vigentes sociologicamente na sociedade (SANTOS. infraestatal) em circulação na sociedade. p. p. cada vez mais mundializado. 4. para poder repensar o direito num período de transição paradigmática se faz necessário promover a devida separação entre o Estado e o direito (SANTOS. 2011. após o desgaste da ditadura militar. a partir de uma dupla raiz. todavia. em virtude da qual o indivíduo é membro de pleno direito dessa comunidade e a ela deve lealdade permanente (HEATHER apud CORTINA. são esclarecedoras as palavras de Arendt ao afirmar que: Esses muros. Na atualidade. Antropologia e Cultura Jurídicas impostos pelas muralhas das cidades-estado. 43. A lealdade para o comunidade é equivalente ao próprio compromisso da comunidade com a busca do bem estar de cada um de seus membros enquanto seus integrantes. não eram condição suficiente para a preservação da polis. a representação do cidadão pela segmentação/heterogeneização. é possível perceber que o que caracteriza a cidadania em sua origem grega é o poder exercido por meio da convivência humana e do acordo de vontades. ao mesmo tempo. p. havendo identidade dos interesses do primeiro para com esta última. a polis é o espaço que “situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito” (1995. une a racionalidade da justiça com o calor do sentimento de pertença (2005. Desta assertiva. 31). Neste sentido. 2007 p. O cidadão é o indivíduo que se ocupa das questões públicas. 211 apud WAGNER. homogeneizando as diferenças existentes (SILVEIRA. transformando a lógica do mercado em parâmetro de socialização e integração cultural. 2002. 257). constituindo-se enquanto espaço físico-geográfico capaz de emprestar permanência e estabilidade à ação e à palavra. Neste sentido. 32).. sendo esclarecedoras as palavras de Cortina. O vínculo político como elemento de identificação social faz constituir a cidadania a partir de um processo de “[..Vol. p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . enquanto consumidor diferenciado. naquilo que 149 . É que cidade-estado e polis não são termos coincidentes: a cidadeestado localiza-se intramuros – limites ou fronteiras –. Havia até então a concepção de uma indivisibilidade entre o indivíduo e sua comunidade. 2728). busca ocultar a desigualdade de acesso ao mercado e representa um interdito à expressão de culturas não hegemônicas. 35 . para quem: A cidadania é um conceito mediador porque integra exigência de justiça e. se pode concluir que a cidadania é um conceito que é: […] primordialmente uma relação política entre um indivíduo e uma comunidade política. 2005. 2005. Deste modo.Sociologia. p. a lógica capitalista mercantiliza as relações sociais. na chamada alta modernidade.] aproximação dos semelhantes e separação em relação aos diferentes” (CORTINA. A esta realidade busca-se apresentar um abstrato cidadão universal. p. A cidadania desde os tempos antigos à modernidade continua a se manifestar pela junção do aparente paradoxo entre a razão e o sentimento. faz referência aos que são membros da comunidade. p. p.. 35 .] (2006.. São rejeitados. propõe-se com a mediação transformadora uma atuação das pessoas enquanto sujeitos na busca proativa de seus próprios desejos. continua na ordem do dia. se baseia em um modelo de democracia representativa (de conotação teatral). 4. De fato.. na solução dos conflitos comunitários e na perspectiva de elaboração de uma justiça cidadã. merece crítica a tradição ocidental que optou pela razão em detrimento do desejo. Consequentemente. sem cidadãos e sem cidadania. bem como nenhuma noção de felicidade pode ser considerada superior as demais (STRAUSS.2 A mediação como efetivo exercício da cidadania Ao contrário de uma concepção privada de resolução do conflitos que. manifesta-se totalitária.] é um conjunto de processos sociais mediante os quais grandes setores da população são irreversivelmente mantidos no exterior ou expulsos de qualquer tipo de contrato social. na qual a participação política popular. 2004. 37-38).2. implica na própria privação do indivíduo em manifestar sua faculdades humanas (ARENDT apud WAGNER. Assim. assim como na pólis pré-filosófica. aonde os cidadãos são meros telespectadores (WARAT.192). ao contrário do que afirmam muitos teóricos pósmodernos. 2006. 2005. p. o próprio exaurimento das estruturas centralizadoras do Estado possibilita o desenvolvimento de limitações ao seu poder. 150 . 255). haja vista que “é prudente quem concilia desejo e inteligência” (CORTINA. Assim. 2002. Não se deve esquecer que nenhuma autoridade é onisciente sobre os desejos humanos. a luta pelo controle democrático do Estado.. tanto mais racional será um procedimento de realização da justiça quando mais se aproxime da satisfação dos desejos. passiva e inativa. p. quer porque nunca integraram – e provavelmente nunca integrarão – qualquer contrato social [. a mediação longe de se constituir em um processo de privatização da administração da justiça se manifesta de forma diametralmente oposta como a inserção do cidadão dentro do espaço público do exercício do direito.Sociologia.Vol. abrindo oportunidade à expansão de uma democracia de base que participe de maneira ativa na tomada de decisões. p. Nesta direção. Não se pode admitir que a convivência seja uma forma de organização social que embora formalmente democrática.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 50). p. 47). excluídos ou lançados para um espécie de estado de natureza hobbesiano. Antropologia e Cultura Jurídicas Boaventura Sousa Santos vai definir como fascismo social: [. estando a cidadania focada em sujeitos produtores. a igualdade e a diversidade (MELO NETO.Vol. Por sua vez. cada um com um perfil próprio de cidadão ideal. é possível demarcar pelo menos duas claras concepções de democracia. A partir do dupla origem da tradição democrática – conforme acima exposto –. resta evidente perceber que o debate sobre a cidadania na própria modernidade está longe de ser monolítico. sem questioná-lo. empreendedores e consumidores. espraiada por múltiplos espaços sociais. podendo assim ser entendida como multidimensional (SILVEIRA.] não é tanto caracterizar o cidadão verbalmente por sua participação nos assuntos públicos quanto pôr em prática as condições para que essa participação seja significativa” (2005.. visto que. enfatiza uma cidadania coletiva. p. A dicotomia exposta também resvala nos próprios marcos político-ideológicos que servem de referencial aos direitos humanos. o ultrapassa espraiando-se por outras searas. segundo Cortina. Neste sentido.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas Dada a singularidade e complexidade do humano. Busca-se aqui a possibilidade de construção de uma cidadania democrática. p. A segunda. p. p. 262). privilegia atores sociais comprometidos com a transformação social e promove o empoderamento dos grupos sociais e culturais marginalizados (CANDAU. também se pode perceber um enfoque dialético e contra hegemônico aonde os direitos humanos são vistos como mediações para a construção de um projeto alternativo de sociedade: inclusiva. 429) Podemos perceber que a cidadania monolítica liberal está a abrir espaço para uma cidadania de múltiplas cabeças. cidadania ativa pautada por princípios como a liberdade. 2007. 2007 p. faz-se mister retomar uma concepção de democracia que implique na participação efetiva do cidadão dentro espaço público. 2006. podendo ser identificada uma ideologia liberal que percebe os direitos humanos como estratégia de melhorar a sociedade no sistema vigente. Consequentemente. de uma cidadania liberal que está adstrita a uma ótica jurídica formal que percebe o cidadão enquanto sujeito produtor e consumidor dentro de uma lógica inclusiva do mercado e excludente de todas as outras dimensões. 35 . podendo ser definidas ao menos duas claras concepções distintas. sustentável e plural. mas que tem em 151 . uma representativa e outra participativa. aquilo que realmente importa “[. que favorece a organização da sociedade civil. e não sua mera representação formal. 42).. 2007. pois tal conceito carrega consigo os valores inerentes a cada tipo de regime (ARISTÓTELES apud STRAUSS. uma cidadania pós-liberal. que além de abarcar o aspecto liberal da cidadania.Sociologia. A primeira. 408). 73). p. A prática da mediação transformadora impulsiona uma cidadania participativa na medida em que reforça a autonomia dos sujeitos para a construção de um diálogo de igualdade entre diferentes. sendo livre para fazer aquilo que quiser. antes de uma ruptura a qual precisa ser posta termo. conforme aqui apresentada. enquanto. 116). p. A palavra posta em diálogo. p. p. 2005. p. Uma solução articulada por meio do diálogo leva a que o sujeito possa reconhecer a si próprio e ao outro como iguais em dignidade. busca de forma criativa rearticular uma proposta do direito que esteja em harmonia com a vida e que possa fugir da suposição de adequação lógica e submissão do cotidiano a um suposto mundo jurídico (POUND. 166). dá dignidade a uma experiência humana e facilita o reconhecimento do outro na busca cooperativa da verdade e da justiça (CORTINA. 2004. A aparente ausência de autoridade – pelo menos terceirizada e coercitiva – do processo de mediação em nada leva a crer que a solução adotada terá menor possibilidade de cumprimento do que aquela que pode ser imposta por meio de uma resolução heterocompositiva do conflito. 89). p. 2004. 121). a resolução justa de conflitos que vão surgindo ao longo da vida (2005. que se bifurca em dois ramais: a busca compartilhada do verdadeiro e do justo. um caminho que compromete totalmente a pessoa de todos os que o empreendem porque. Antropologia e Cultura Jurídicas comum a resistência à exclusão em suas mais diversas formas (WARAT. a autonomia. e ativamente escutada. na busca do entendimento entre os sentimentos em desencontro. se introduzem nele. deixam de ser meros expectadores. Para Cortina: O diálogo é. 2007. Na concepção de Kreisberg. Para autores clássicos como Rousseau e Kant. 2003. 179). o pleno exercício da cidadania é um processo através do qual as pessoas e/ou as comunidades aumentam seu controle ou seu domínio sobre suas próprias vidas e sobre as decisões que afetam sua vida (MEINTJES. para se converter em protagonistas de uma tarefa compartilhada. consiste na possibilidade do indivíduo dar a si próprio ordens. escolhe obedecer (BERLIN. mesmo a partir de suas diferenças. Deve-se reconhecer a dinâmica e tensão do conflito como um elemento historicamente natural ao desenvolvimento humano (HEGEL apud BERLIN.Vol.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A mediação transformadora possibilidade a articulação de um diálogo das diferenças pautado pela igualdade. 116). 195). a verdadeira liberdade. 35 . que. então.Sociologia. 2004. 152 . A mediação. p. 52-54).Vol. Luiz Alberto Warat. Saramandai.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . no município de Salvador-BA. expressa menção deste como exemplo de caráter popular e transformador do processo de mediação que realiza19. 2007. Declaração proferida pelo Prof. O referido enfoque teórico guarda significativo lastro com a proposta de mediação defendida por Warat – ressalvadas pontuais divergências a serem oportunamente destacadas em outro trabalho –. Engenho Velho da Federação e Roma). tendo como objetivo: 18 19 20 O Juspopuli Escritório de Direitos Humanos é uma organização não governamental que tem como missão contribuir para a efetivação dos direitos humanos. inclusive. a partir da reivindicação de lideranças populares de bairros periféricos da cidade20. podendo citar dentre elas: no campo governamental os programas Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e Justiça Comunitária Itinerante do Tribunal de Justiça do Acre. p. Será analisado o modo como a mediação realizada pelo Juspopuli pode se constituir em uma prática de impulso ao exercício da cidadania. Antropologia e Cultura Jurídicas A mera possibilidade dos indivíduos se constituírem por meio da mediação transformadora como protagonistas dos dilemas de sua existência. a construção de uma autonomia necessária ao exercício da cidadania. citando como experiência não-governamental o Juspopuli Escritório de Direitos Humanos18 na Bahia (SANTOS. por ocasião de sua participação no I Congresso Princesa do Sertão. na medida em que visa. sete deles em Salvador (bairros: Periperi. 153 . realizado na UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana-BA. à expressa inclinação teórica. O Juspopuli Escritório de Direitos Humanos foi fundado em 2001.Sociologia. Calabar. por si só impulsiona uma perspectiva de empoderamento e autonomia nas resoluções de suas situações-problema. 35 . Pernambués. dentre outras razões. em buscar compreender o conflito como algo inerente a condição humana e sua própria diversidade. o recorte arbitrário se deve. tomando o processo de mediação em sua perspectiva transformadora. Palestina. através da democratização do Direito e da promoção do acesso à Justiça. um em Santo Amaro da Purificação (Comunidade de Acupe) e um em Feira de Santana (Comunidade Irmã Dulce). Atualmente o Juspopuli conta com nove escritórios. no dia 13 de outubro de 2008. merecendo. a partir do empoderamento dos sujeitos envolvidos. refletida na prática da referida instituição. 5 A EXPERIÊNCIA DO JUSPOPULI EM FEIRA DE SANTANA No atual contexto brasileiro são diversas as experiências jurídicas que tem como intuito a construção de formas não adversariais de resolução dos conflitos. Primeiramente. se estendendo do conflito em particular para uma nova lógica comportamental de exercício de uma cidadania participativa que por sua vez contribui para a construção de uma justiça cidadã. para ressaltar a postura ativa das partes envolvidas. Deste modo. LEONELLI. p. por pautar-se em prática que busca equacionar conflitos sociais (sejam comunitários ou intersubjetivos) a partir do estabelecimento do diálogo. Antropologia e Cultura Jurídicas [. poderia ser 21 O emprego do termo mediante. 35 . LEONELLI. ainda que sem a facilitação de um terceiro (VELOSO. Assim.a hipótese inicial de que: A mediação popular realizada pelo Juspopuli Escritório de Direitos Humanos. V. na persecução de sua missão institucional de construir uma cultura de direitos humanos indispensável ao alcance da justiça social (AMORIM.. A instalação de um Escritório Popular de Mediação na cidade de Feira de SantanaBA surgiu de um projeto de parceria entre a UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana e o Juspopuli – Escritório de Direitos Humanos. M. Primeiro. Segundo. 2009. do reconhecimento do outro e do empoderamento dos indivíduos enquanto sujeitos aptos a resolver suas situações-problema. p.. foi realizada pesquisa de campo que teve como intuito verificar o impacto da mediação praticada pelo Juspopuli para o exercício da cidadania dos mediantes21.11) são desenvolvidas prioritariamente duas atividades centrais: a mediação de conflitos e a orientação sobre direitos. adentrarse-á apenas na primeira. em lugar de mediado ou mediando. para afirmar o caráter de processo da prática mediação.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . promover a cidadania.] o objetivo pedagógico de resgatar e fortalecer a autonomia das pessoas abrindo trincheiras de acesso ao conhecimento e da conscientização sobre a sua identidade como cidadãos aptos ao exercício do protagonismo no equacionamento de seus conflitos... 5. De modo a verificar .Sociologia. Pelo desiderato deste trabalho. de modo a melhor referenciar o que até aqui tem sido exposto.1 Aspectos metodológicos Compete aqui apresentar de modo sucinto alguns aspectos metodológicos pertinentes ao presente estudo. com a finalidade de expandir uma experiência já bem sucedida em Salvador de proporcionar um modelo não adversarial de resolução de conflitos que possa.confirmando ou negando .] socializar o conhecimento jurídico e trazer para as comunidades uma escolha de resolução de conflitos que preze pela participação ativa dos envolvidos [. 154 . além de prevenir a violência. 2007. com o apoio financeiro da Petrobras.Vol. empoderando sujeitos socialmente excluídos. Dada a natureza do objeto. tem duas justificativas. 102). será abordada a atuação do Juspopuli no município de Feira de Santana-BA pretendendo realizar um estudo de como a mediação popular praticada por este instituto pode se constituir em prática de promoção da cidadania dos sujeitos envolvidos no processo mediatório. em buscar a tentativa de construir uma solução articulada pelo diálogo entre as partes. pois boa parte das demandas pleiteadas.2 Quem são os mediantes? Ao se falar dos mediantes surge uma pergunta a princípio óbvia. por meio de observação in situ. Quanto a faixa etária. Para responder à questão suscitada. quando não uma maior sensibilidade. Primeiramente. utilizando como instrumento a realização de entrevista semidiretiva com as partes que participaram de processo de mediação realizado no Escritório Popular de Mediação de Feira de Santana. Talvez tal fato esteja acima de tudo relacionado com a própria natureza dos conflitos.Vol. A amostragem para a realização da entrevista com os mediantes foi escolhida de modo aleatório entre os casos encaminhados para a realização de mediação. 126-127) e efeitos subjetivos de empoderamento e alteridade das partes envolvidas. 2007.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . observa-se que aproximadamente 66% das pessoas atendidas 155 . Foi também realizado o acompanhamento. Antropologia e Cultura Jurídicas reconhecida como um referencial prático da mediação transformadora na forma propugnada por Warat. Uma outra hipótese a ser aventada para reflexão – não abordada no presente estudo – seria uma maior capacidade comunicativa das mulheres. versam sobre pedidos de pensão alimentícia ou dissolução de união estável ou casamento. Quem são os mediantes? A partir da análise dos dados elaborados pelo próprio Juspopuli em seu Relatório Anual de 2011 do Escritório Popular de Mediação de Feira de Santana. buscou-se verificar os reflexos na dimensão da cidadania através da investigação de mudanças atitudinais (MEINTJES. elegeu-se como instrumento de pesquisa a realização de entrevistas com os mediantes de modo a buscar identificar as representações que estes atores tem do processo de mediação. independentemente de ao seu final ter sido obtido acordo ou não.Sociologia. de algumas sessões de mediação. É importante ainda salientar que a opção por uma abordagem semidiretiva na elaboração das perguntas. foi elaborado roteiro para a realização das entrevistas. 35 . foi realizada pesquisa qualitativa. observa-se que praticamente três em cada quatro atendidos são mulheres. 5. se deu pelo intuito de possibilitar uma maior liberdade na expressão das representações de cada parte sobre a mediação. Para tanto. Deste modo. p. foi possível traçar um perfil das pessoas que buscam atendimento. sendo percebida como um processo pedagógico de emancipação e exercício da cidadania dos sujeitos que dela participam. Buscando atender aos objetivos da investigação. nas mais diversas dimensões observadas. 35 . algumas inclusive contraditórias: 1) que apenas com a maturidade se busca o auxílio necessário para uma solução não adversarial dos conflitos. a escolaridade e a renda dos segmentos excluídos da sociedade. o que em confronto com os dados acima referidos apenas demonstra a já conhecida grande interseção entre a questão racial. A partir das entrevistas realizadas. Um dado que bastante ilustra o perfil socioeconômico do público atendido é sua situação de trabalho. foi possível verificar que 88% das pessoas atendidas se declararam de cor parda ou negra/preta.Sociologia. 2) que somente a partir da fase adulta surgem conflitos mais complexos que demandam auxílio para sua solução. 3) que as pessoas tardam a buscar auxílio para a solução de seus conflitos gerando por vezes um demanda retida. nas comunidades atendidas.3 Alguns resultados Dentre os resultados observados pela mediação promovida pelo Juspopuli. Da análise deste item pode-se perceber que aproximadamente 68. além da própria satisfação das pessoas atendidas de verem seus problemas solucionados por elas mesmas. Para a surpresa inicial. o que se pode depreender que se encontram em situações ou de ausência ou de precarização de condições de trabalho. Antropologia e Cultura Jurídicas tem mais de trinta anos de idade. No que se refere ao aspecto racial. De uma análise conjunta dos elementos verificados é possível perceber um clássico perfil de uma comunidade essencialmente marginalizada. 5. Este dado aponta curiosamente em três direções. Este dado guarda ressonância com o seu próprio nível de instrução. haja vista que mais da metade não possui sequer o ensino fundamental completo.Vol.5% das pessoas atendidas declararam serem donas de casa ou estarem desempregadas ou com empregos informais. Apesar de interessantes pontos de partida para uma investigação.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . por meio dos Escritórios Populares de Mediação. dados os limites do presente trabalho e de se constituírem em um outro desdobramento desta pesquisa. tais questões não serão analisadas com profundidade agora. foram as mais diversas as informações identificadas. refletindo diretamente em 156 . buscou-se tentar identificar que impressões os mediantes tiverem sobre o processo de mediação de modo a tentar observar mudanças de percepção e atitude a identificar tal prática como um mecanismo de emancipação dos sujeitos participantes. pode-se perceber a contribuição para uma melhor percepção da dimensão coletiva das dificuldades diuturnamente enfrentados pelos indivíduos que a compõem. 6 CONCLUSÃO 157 . A perspectiva da alteridade adotada pela mediação transformadora pode em muitos casos desvelar o conflito de sua face destrutiva e apresentá-lo como possibilidade de nova harmonização de relações porventura desfeitas ou fragilizadas. o poder. pudemos verificar o surgimento de elaborações apontando a importância do diálogo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . a partir de mudanças em suas práticas cotidianas. seus efeitos sobre suas mudanças atitudinais são mais notórios.Sociologia. é o empoderamento dos sujeitos envolvidos no processo. porém. ao serem questionados se “você se sentiu mais capaz de resolver seus problemas após a mediação?”. Estes sinais apontam para uma efetiva possibilidade de empoderamento dos mediantes. cumpre melhor conceituar o que estamos a entender por empoderamento. 405). Quando perguntados sobre se “houve alguma mudança na maneira como você passou a enxergar os conflitos de seu dia a dia?”. as nuances de empoderamento são percebidas em escalas bastante distintas entre os diferentes atores. Nas palavras de Candau. 2007. a potência que cada pessoa tem para que ela possa ser sujeito de sua vida e ator social” (2007. atitude e até mesmo proatividade para a resolução de seus próprios dilemas. a partir da construção de um processo dialógico de comunicação. a grande maioria das respostas foi em sentido negativo. O resultado de maior efetividade do processo de mediação que pode ser percebido em todos os seus atores é a possibilidade de reconhecimento do outro. A fala como instrumento de autoafirmação própria e a escuta como momento de dar dignidade ao ser humano e sua experiência. Primeiramente. Neste caso. Outra constatação marcante foi que a mediação contribuiu de forma significativa para prevenir situações de violência. 404). “o empoderamento começa a liberar a possibilidade. p. p. porém mais sutilmente identificado. No nível coletivo. Analisando as entrevistas realizadas com os mediantes é interessante observar que as representações feitas por eles próprios sobre o processo de mediação são bastante díspares. Antropologia e Cultura Jurídicas sua autoestima.Vol. o empoderamento reflete a possibilidade de favorecimento da organização de grupos sociais marginalizados para participarem da sociedade civil (CANDAU. a aproximação e restabelecimento das relações. mais da metade da respostas indicou uma maior segurança. Por fim. 35 . Ao serem indagados sobre “o que mudou na sua vida após a mediação?”. no entanto. haja vista que o conflito não solucionado poderia propiciar a sua resolução privada de modo agressivo. Outro elemento observado. Um cidadão impulsionado pelo desejo que lhe dá sentido à vida.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 35 . propiciando o surgimento de novos modelos de resolução de conflitos. alicerçada na construção de um novo sujeito. tanto no plano individual quanto no coletivo. se alinhando com a perspectiva apontada por Boaventura de Sousa Santos de um direito plural. emancipatório e originário da autorregulação da comunidade. A mediação transformadora de Warat perfeitamente se coaduna com as perspectivas apresentadas por Santos como uma nova política judiciária que deve ter por base o compromisso com a democratização do direito e da sociedade. Antropologia e Cultura Jurídicas A deficiência do Estado em gerir os conflitos sociais propicia a perda de seu monopólio jurisdicional.Vol.Sociologia. na medida em que possibilita a criação de um direito inclusivo. monista. rompendo com o normativismo jurídico estatal e possibilitando concretamente o surgimento de um direito plural. contribuindo com a construção de uma cidadania ativa e consequentemente de uma justiça mais cidadã. ao mesmo tempo em que comprometido com a coletividade e o futuro. Da forma como apresentada a proposta waratiana de mediação quebra o paradigma do direito moderno. capaz de absorver as expectativas de uma maior variedade de sujeitos sociais. em especial aqueles oriundos de segmentos mais marginalizados da sociedade. A partir dos pressupostos cognitivos de uma proposta de autorregulação pautada na subjetividade e no desejo. a mediação transformadora se transmuta de um mero procedimento de resolução de conflitos para se converter em um verdadeiro instrumento de exercício da cidadania. 158 . BOURDIEU. BRASIL. A mediação transformadora: apontamentos para uma proposta emancipatória da cidadania e de democratização da Justiça e do direito. revista. 2008. André Luis (Org. 322 p. Rosa Maria Godoy. Adela. Simone. 1992. São Paulo: Saraiva. Acesso à Justiça: Um problema ético-social no plano de realização do direito. A afirmação histórica dos direitos humanos. Antropologia e Cultura Jurídicas REFERÊNCIAS AMORIM. COMPARATO. Bryant. rev. vol. Mauro. Margaret. In: SILVEIRA. 1986. O poder simbólico. LEONELLI.gov.conpedi. CAPPELLETTI. Fábio Konder. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Projeto de Lei N. São Paulo: Edições 159 . 2ª ed. Educação em direitos humanos: desafios atuais. Rio de Janeiro: Renovar. p. 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It is expected to deepen this discussion based on anthropology in order to find a model that respects the Constitution. resultando numa possível tensão de direitos. Indigenous Land San Marcos. explicar o processo de demarcação da Terra Indígena São Marcos e por fim. da Universidade Federal de Roraima e Membro do IBAP (Instituto Brasileiro de Advocacia Pública 163 . indicar qual procedimento hermenêutico constitucional deve ser aplicado.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 1 Mestre em Direito Ambiental UEA/AM. Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Nilton Lins-Manaus-AM.Sociologia. indigenous rights. EDUARDO DANIEL LAZARTE MORÓN1 RESUMO O presente trabalho de pesquisa trata da criação do município de Pacaraima após a demarcação da Terra Indígena São Marcos e suas implicações jurídicas e socioambientais. Professor de Direito na Faculdade Atual da AmazôniaBV/RR. explain the process of demarcation of indigenous land San Marcos and finally. Macuxi e Wapixana e a posterior criação do município poderia ser vista como forma de limitar os direitos territoriais e culturais indígenas. the non-Indian residents and preserve the environment. indicate which procedure should constitutional hermeneutic be applied. ABSTRACT The present research deals with the creation of the municipality of Pacaraima after the demarcation of indigenous land San Marcos and its legal implications. That Indigenous Land is occupied by communities historically Taurepang Macuxi and Wapixana and the subsequent creation of the city could be seen as a way to limit the land rights and indigenous cultural. Espera-se aprofundar essa discussão tendo por base a antropologia a fim de encontrar um modelo que respeite a Constituição. both secured by CF. social and environmental. The present study aims at analyzing the process of creating the light of these issues and aimed at verifying the constitutionality of the creation of the Municipality of Pacaraima. os moradores não índios e que preserve o meio ambiente. Municipality.Vol. como principal rodovia de acesso2. O Município de Pacaraima que também é conhecido como BV-8.Sociologia. 35 . constituída por comerciantes. Boa Vista (RR): Universidade Federal de Roraima.Vol. 164 .php?uf=14>. militares. bem como Uiramutã.gov.11. 3. são vistos por Marcelo Leite como uma reação dos parlamentares roraimenses contra os trabalhos de identificação pela Fundação Nacional do Índio da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Trata-se de uma população diversificada e flutuante. as outras duas sedes restaram expressamente excluídas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol por intermédio das Portarias 820/98 e 534/2005. área fronteiriça entre Brasil e a República Bolivariana da Venezuela.320 habitantes3. o Município de Pacaraima tem uma população de 10. localiza-se na região norte do Estado de Roraima. 3.º 96 de 17.º A sede do Município será a Vila Pacaraima. Segundo os dados do IBGE colhidos no último censo em 2010. principalmente com a importação da energia elétrica vinda da Venezuela para Roraima. Monografia de especialização em Relações Fronteiriças. ou seja. e sua instalação ocorrerá no dia 1.10.º dispõe: “Art. instituído pela Lei Estadual 98. Ele está a 213 Km de Boa Vista e tem a BR174. com zona rural que se estende para dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A Vila Pacaraima foi erguida à categoria de município com a Lei Estadual n. ambas de 17. criado pela Lei Estadual 96.95.1995. cuja economia se baseia sobretudo no comércio de fronteira e na pecuária de corte. Antropologia e Cultura Jurídicas 1) O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO DE PACARAIMA E SUAS CONTROVÉRSIAS CONSTITUCIONAIS. Acesso em 17/02/2012.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2 SANTOS. p.censo2010. p. 3 Disponível em: <http://www. com a posse do Prefeito. Silveira (2010.ibge.109) ao comentar a criação do município de Pacaraima pondera: Pacaraima. 1993 e para garantir na região uma escassa população não índia. Pacaraima se estabeleceu como a porta de entrada norte do Brasil. O processo de produção do espaço fronteiriço da Amazônia: O caso de Pacaraima-RR. concluídos que foram dois anos antes. que em seu art. Centro de Ciências Sociais e Geociências. Com exceção da sede do município de Pacaraima porque encravada na vizinha Terra Indígena São Marcos. funcionários públicos e índios. Edilamar Oliveira. 44. 1998. 1998.º de Janeiro de 1997. do VicePrefeito e Vereadores eleitos em 03 de outubro de 1996”. Universidade Federal de Roraima.br/dados divulgados/index. 2500-3 da Justiça Federal.º 96/1995:”A sede do Município será a Vila de Pacaraima. Assim. alterando as regras do decreto n. em pleito conduzido pela justiça eleitoral. pois em tese.º da Lei estadual n. 165 . estão suspensos em virtude da nova orientação de política demarcatória sobre reservas de índios que passou a viger. com a posse do Prefeito. 6 Informações extraídas do Relatório do Ministro do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. Verifica-se que a discussão da constitucionalidade do Município de Pacaraima não se restringe somente aos aspectos formais do seu processo de criação. e adotada pelo atual Governo Federal.º e 6. o ato demarcatório não se acha perfectibilizado. situada em área indígena. No que se refere a esse aspecto a Procuradoria Geral da República ajuizou junto ao STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade com medida cautelar (ADI 1512-RR). Antropologia e Cultura Jurídicas O Estado de Roraima defende a constitucionalidade no processo de criação do Município de Pacaraima. 3.º do art. restando apenas o registro na Secretaria do Patrimônio da União.10.º da Lei n. sobretudo. Vice-Prefeito e Vereadores eleitos em 03/10/1996. mas. Acrescenta ainda. os registros que dariam eficácia plena à demarcação homologada. de complementação de seu respectivo termo constitutivo.º 1512-5Roraima. de 17. que a referida Terra Indígena já foi demarcada com homologação por Decreto Presidencial. na parte em que determina que a sua sede seja instalada na Vila com o mesmo nome. Por fim. não sendo possível ainda considerar-se como área reconhecidamente indígena. que é o cerne do presente trabalho e que será aprofundando em momento posterior quando da análise do caso referência em si e a possível colisão de direitos fundamentais. Na inicial da referida ADI o Procurador Geral da República afirma que a sede do novo Município está situada no interior da Terra Indígena São Marcos que se encontra afetada constitucionalmente às etnias indígenas. visando ver suspensa a eficácia da expressão contida no art.º 96. sem que houvesse oposição alguma da União4. teria violado o art. 35 . 231 da CF/886. 3.º 2003.1995 do Estado de Roraima5que criou o Município de Pacaraima. e sua instalação ocorrerá no dia 01/01/1997. 231 da CF/88. O Ministro Relator da ADI assevera em seu voto que no caso da Terra São Marcos. 5 Art. na forma da CF e da legislação vigente. 4 Informações extraídas da Contestação do Estado de Roraima nos autos de ação civil pública n. alega ofensa aos § 1.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .º 22/91.Sociologia. pois dependem de providencias para a sua definição final. a sua sobreposição na Terra Indígena São Marcos.Vol. já que foi criado após consulta plebiscitária. 16. Assim sendo. Vice-Prefeitos e Vereadores. p. os seus Prefeitos. Solução da lide que exige a apuração de um estado de fato concreto e contraditório cuja natureza do tema e deslinde não são compatíveis com os moldes e limites do juízo cautelar nem com o 166 . nº 1. pesquisa de documentos e depoimentos de eventuais testemunhas que conheçam o passado destas áreas. da mesma forma. 231. o município. por eleição patrocinada pela Justiça Eleitoral.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 4. que a regulamentou. nº 22/91. 96 E 98. 6. 2. a ação sequer foi 7 Informações extraídas do Voto do Ministro do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. onde se pretende instalar os novos Municípios. DE 17.775/95. 13. que se anulem a vontade política do Estado roraimense que criou esse novo município e a dos eleitores locais que elegeram seus mandatários7. DA CONSTITUIÇÃO.º 1512-5Roraima. 25 da CF/88 assegurou-se aos Estados a sua organização através de suas constituições. Pendência de interdito proibitório requerido pela FUNAI contra o Estado de Roraima.918. Enquanto isso. as leis estaduais que criaram o município de Pacaraima foram objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao STF9. Casos como a demarcação homologada da Reserva de São Marcos. que alterou o Decr. Escorço histórico dos contornos dos fatos relacionados com a ocupação das áreas do Estado de Roraima. por cima da decisão do voto popular dos habitantes eleitores dos municípios contestados que já escolheram.º 1512-5Roraima. 1. desse Município. e Decreto nº 1. antes que a situação de mérito sobre a destinação da região seja dada. realizaram-se plebiscitos juntos aos eleitores das áreas envolvidas. com o art. já diplomados”. que ao instituir.10.Vol. Incerteza quanto aos requisitos exigidos pelo § 1º do art. 5. 3. entre outros). ALEGAÇÃO DE QUE ESTÃO SITUADOS NAS ÁREAS INDÍGENAS DE "SÃO MARCOS" E "RAPOSA TERRA DO SOL". Vice-Prefeitos e Vereadores8. de 1850. §§ 1º. parecendo-me extrema violência. 9 ADI 1512 / RR . E DE OFENSA AO ART. não se vê como se possa arrostar a autonomia do Estado. MAURÍCIO CORRÊA Julgamento: 07/11/1996 EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. 231 da Constituição. vejo igualmente que precedido das leis impugnadas. Antropologia e Cultura Jurídicas O Relator prossegue: “a par de tudo isso. 8 Informações extraídas do Voto do Ministro do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. inexistência de ato demarcatório das áreas aperfeiçoado. no entanto. o que em princípio estaria a coonestar a criação por leis votadas pela Assembleia Legislativa do Estado de Roraima. situação que não permite arrostar a autonomia do Estado. de 1854. com a concretização dos limites de suas fronteiras. que autorizaram a criação de Pacaraima.Sociologia. pelos seus deputados estaduais. INSTALAÇÃO DAS SEDES DOS RECÉM-CRIADOS MUNICÍPIOS DE PACARAIMA E UIRAMUTà EM VILAS COM OS MESMOS NOMES: ARTIGOS TERCEIROS DAS LEIS NºS. desde 1768. por votação unanime. que se venha a deferir pleito liminar dessa grandeza. estão com a eficácia suspensa em virtude da nova orientação de política demarcatória de reservas indígenas adotadas pelo Decr. sob pena de passar. para se considerar que as áreas mencionadas são tradicionalmente ocupadas pelos índios. foram realizadas eleições. Com efeito. O deslinde das questões ligadas à ocupação da área exige observância à legislação da época (Lei nº 601. RESPECTIVAMENTE. tendo com sede a Vila do mesmo nome. 35 . p. 4º E 6º.95. com a escolha de seus Prefeitos. manifestada ao criar os Municípios.RORAIMA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. º. Em relação à Terra indígena Raposa Serra do Sol. mais uma vez a análise da legalidade da criação do Município de Pacaraima deixou de ser enfrentada pelo STF. impedindo a discussão da matéria em sede de ADI junto à Suprema Corte. 231. Nestas condições. Ademais. da Constituição Federal. 231 da CF/88 e do conceito do indigenato.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Ação direta não conhecida. é sabido que o requisito da tradicionalidade é inerente às terras indígenas. em relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Na verdade. de tal sorte que. ordenado pelo parágrafo 6. é sabido que as áreas São Marcos e Raposa Serra do Sol são Terras Indígenas estando com todo o seu processo de reconhecimento. quando abordaremos o conceito de indigenato. Antropologia e Cultura Jurídicas conhecida. 167 . que a meu ver acaba se confundindo com o próprio mérito. vez que. por ser matéria estranha à Petição n.Sociologia. perde-se a completude para a formação do núcleo do conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. 10 Para que se encaixe a pretensão contida nesse preceito é indispensável que todos esses elementos se congreguem em um mesmo sentido para que essa tradicionalidade se realize. podemos destacar que a conclusão do STF não se coaduna com a natureza declaratória do processo de reconhecimento. já que na época o registro que daria eficácia plena à demarcação homologada estava suspenso diante da nova política demarcatória que se estabelecia.º 1512-5-Roraima. a questão poderia ter sido enfrentada pelo STF. p.º do art. a questão foi mais simples. demarcação e homologação de terras indígenas. Atualmente. 14. do art. a conteúdo da ação de controle normativo abstrato das leis. Precedentes. diz respeito à situação da Terra indígena São Marcos. demarcação e homologação concluídos. Trecho extraído do Voto do Ministro do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. De modo geral.º 3388. faltando um deles.Vol. Posteriormente. 7. conforme se analisará no próximo capítulo.º e 6. pois se constatou que ainda estava em processo de reconhecimento estatal. 35 . conforme trecho do Voto do Ministro Relator a seguir transcrito: A Portaria 820/98 do Ministro da Justiça que demarcou a Terra Indígena Raposa excluiu os núcleos urbanos dos municípios de Normandia e Uiramutã. o requisito da tradicionalidade não estava presente10. Outro argumento utilizado pelo STF para o não conhecimento. portanto. sob o argumento de que tratava de matéria fática. o STF concluiu que as duas terras indígenas não poderiam ainda ser consideradas como áreas reconhecidamente indígenas. inclusive com a chancela do próprio STF. sob o enfoque dos §§ 2. por se tratar de direito congênito e originário dos índios. 14 Trecho extraído da inicial de Ação Cautelar nos autos nº 499-3. cuja propriedade pertence à União. quanto pelos seus estratos econômicos. com todo vigor. porquanto. Antropologia e Cultura Jurídicas ação nesse aspecto não foi conhecida pelo STF.. mesmo no senso anterior à reclamada extrusão. Analisando a petição n. em: <http://www. (.asp. o Estado de Roraima não poderia ter criado o Município em Terras Indígenas. 11 Trecho extraído do Voto do Ministro Relator Carlos Ayres Brito na Petição 3.br/portal/processo/verProcessoAndamento.jus.. narram os autores indígenas que com as leis estaduais malsinadas e com as instalações dos paços municipais procede-se de forma absolutamente ilegal a transferência de terras do domínio da União ao domínio particular.Vol. E quanto à sede do município de Pacaraima.) Também é de se afirmar. posto ser este o propósito do Estado réu. o STF na petição 3388 que discutia o processo de demarcação e homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. já que não se pode confundir titularidade de bens com senhorio de um território político.Sociologia... cujo pedido é a abstenção de instalação do 168 .. Estados e Municípios... Quanto à criação do município de Pacaraima encravado na Terra Indígena São Marcos não conheceu do pleito por ser matéria estranha à presente demanda. entregues a si mesmos. Assim. 35 . tanto pela sua classe dirigente.Acesso em 20/02/2012>. vez que..COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Ademais. A mencionada ação ainda está pendente de julgamento e seu último andamento processual data de 03/03/2008 como concluso ao Ministro Relator13. indígenas Macuxi. ajuizada pela FUNAI em 14/08/96 questionando a legalidade da criação do Município de Pacaraima.º 499.. Atualmente tramita junto ao STF a Ação Cível Originária n. cuida-se de território encravado na “Terra Indígena São Marcos” ..º 1191-1 que integra os autos da Ação Civil Originária 499-3. não conheceu da demanda em relação à criação do município de Pacaraima encravado na Terra Indígena São Marcos12. que a atuação complementar de Estados e Municípios em terras já demarcadas como indígenas há de se fazer em regime de concerto com a União e sob a liderança desta. É que subjaz à normação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal o fato histórico de que Estados e Municípios costumam ver as áreas indígenas como desvantajosa mutilação de seus territórios.. os índios somavam 90% da população local.388 quando do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol no STF. nada tendo a ver. em face do Estado de Roraima.... com a presente demanda. é de todo natural que o município de Uiramutã seja ocupado por índios em quase sua totalidade.) Pelo que. pois nenhum dos municípios foi extinto por decreto presidencial. de modo a obstaculizar a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a Terra Indígena São Marcos14.. 13 Cf.stf. tendem a discriminar bem mais do que proteger as populações indígenas11. (. 12 Petição 3388 o STF declarou a regularidade do procedimento de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. portanto.. ali.. ajuizada no STF por Nelindo Galé e Adalberto da Silva. Sem falar que o ato em si de demarcação de terras indígenas não significa varrer do mapa qualquer unidade municipal. O primeiro a ser analisado é o direito à autodeterminação dos povos indígenas. Por fim. Para que possamos delinear seus limites. a análise limita-se basicamente às reivindicações das minorias com o objetivo de conquistar direitos sociais e/ou políticos específicas dentro de um Estado nacional. p. devemos levar em consideração determinados conceitos e princípios. normas. op.Sociologia. na seção judiciária de Boa Vista-RR têm como objeto principal a retirada dos moradores não índios do Município.Vol. ainda não decididas. por se tratar de Terra Indígena e não a extinção do referido ente. padrões e leis reconhecidas socialmente que garantem a determinados Município de Pacaraima ou a sua suspensão e declaração incidental de inconstitucionalidade da Lei 096.2. mas para satisfazer interesses pessoais de lideranças locais. No primeiro caso. cuja análise será feita posteriormente.. culturalista. a definição de autodeterminação dos povos segundo Albuquerque (2008. é preciso fazer a distinção entre uma interpretação política e outra.1). Do Multiculturalismo O multiculturalismo lança a problemática dos direitos das minorias em relação à maioria. As minorias nacionais como os índios nos Estados Unidos surgem por um processo de conquista ou incorporação. 169 . p. 2. do multiculturalismo. cit. Antropologia e Cultura Jurídicas As demais ações judiciais. e que tramitam na Justiça Federal de 1.) Da Autodeterminação dos Povos Indígenas Na presente temática. 2) – DIREITOS ORIGINÁRIOS DOS ÍNDIOS SOBRE AS TERRAS QUE TRADICIONALMENTE OCUPAM 2.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .43/44. Ademais. a situação ainda se torna mais complexa quando a criação ocorre em detrimento dos direitos territoriais indígenas ou como forma de limitação dob poder da União em demarcar Terras Indígenas. exigindo uma ampla autonomia político-administrativa. 35 . 15 SEMPRINI. é de se lastimar a frequência com que ocorre a transformação de um distrito em Município não por interesse social. podendo chegar até a autodeterminação15. Nesse sentido. 148): A autodeterminação dos povos consiste em um direito enquanto conjunto de regras. discutindo o problema da identidade e seu reconhecimento.ª instância. entre si. Todos têm o direito de utilizar os recursos do meio ambiente como a caça. Piazzaroli (2008. segmentos. terras indígenas e defesa nacional. 149) “o conceito de território é totalmente diferente. sem serem subjugados ou dominados por outros grupos. segmentos ou grupos sociais o poder de decidir seu próprio modo de ser. 170 .Sociologia. guardam infinita distância à ideia patrimonial de terra que fundamenta o direito moderno”. se estaria por tabela deixando de reconhecer uma pluralidade de culturas que sempre existiu e que. p. 16 SILVEIRA. 35 . a noção de propriedade para as comunidades indígenas não existe. e todos. econômica. prejudicaram seus direitos. viver e organizar-se política. Antropologia e Cultura Jurídicas povos. 2. mesmo que tal reconhecimento tenha sido efetivado por meio de processos que. 32. passou a incomodar quem de fato controla e dita os rumos da sociedade hegemônica16. Edson Damas da. 198) do ponto de vista da antropologia traz novos conceitos ao abordar a questão das territorialidades indígenas. e como a terra não é objeto de apropriação individual. em muitos casos.13) descreve as terras indígenas enquanto categoria jurídica: Terras indígenas é uma categoria jurídica que originalmente foi estabelecida pelo Estado brasileiro para lidar com povos indígenas dentro do marco da tutela. Negando-se o direito de autodeterminação das minorias invisíveis que resistiram ao poderia opressor do estado-nação. a coleta e a agricultura.3. p. p. A TERRA. a pesca. De todos os povos tradicionais. os povos indígenas foram os primeiros a obter o reconhecimento de suas diferenças étnicas e territoriais.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . classes sociais ou povos estranhos à sua formação específica. p. Meio ambiente. O TERRITÓRIO E AS TERRITORIALIDADES INDÍGENAS Little (2002. com a supremacia dos interesses privados do mercado e a sua confusão com as políticas de estado. enfatizando a relação e a concepção dos povos indígenas no tocante à noção de propriedade da terra: A posse da terra para o povo indígena é um recurso natural. Para Souza Filho (2008. embora o produto fosse individual.Vol. de um povo para outro. social e culturalmente. o seu aproveitamento e divisão eram feitos de forma coletiva. 2010. de 19. DEMARCAÇÃO E HOMOLOGAÇÃO DA TERRA INDÍGENA SÃO MARCOS. alterado pelo Decreto n. 2500-3 que tramita na Justiça Federal.06. 35 .828. isto é. de 22.º 84.197518. 17 Petição 3. nos termos da Portaria nº 1149/90. no Município de Boa Vista.º do Decreto: Fica decretada intervenção na área indígena localizada na “Fazenda São Marcos”. seria sempre reservado o direito dos índios. Ocorre que o STF17.Vol. Piazzaroli (2008. 1. 2003). tradições e costumes indígenas (CUNHA. O conceito de tradicionalidade que reveste as terras indígenas não leva em consideração o tempo de ocupação.11. excluindo qualquer interpretação literal do dispositivo. 231. 2. nas terras outorgadas a particulares. A concessão da posse em caráter permanente e o usufruto de forma exclusiva implicam em afastar a posse ou ocupação de terceiros não índios no interior da terra indígena. quando o Alvará Régio.1980. do Poder Executivo Federal. como fonte primária e congênita da posse territorial. confirmado pela Lei de seis de julho de 1755.311. Art. tem suas raízes nos primeiros tempos do Brasil Colônia. primários e naturais senhores delas. o direito ao usufruto. 19 Informações extraídas dos autos de Ação Civil Pública n.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . de 23. 18 171 . no Território Federal de Roraima. 204) ressalta “que a Constituição Federal de 1988 reforçou a tese do indigenato.Sociologia.1990. recepcionado pela CF/88 como direito originário. sem poderes delas dispor”.º 2003. O PROCESSO DE RECONHECIMENTO.º (primeiro) de abril de 1680. ao julgar o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A Terra Indígena São Marcos foi identificada pela FUNAI e interditada e delimitada através do Decreto nº 76.09. firmara o princípio de que. da FUNAI 19. A permanência de não índios no território indígena contraria a CF/88. p. concedendo aos povos indígenas o reconhecimento de suas terras tradicionalmente ocupadas. dando uma interpretação inovadora ao § 2º do art. que assegura a exclusividade do usufruto em favor dos indígenas.388 Ação Popular. estabeleceu restrições ao instituto do usufruto indígena. mas a sua qualidade.4. porém. A Fazenda São Marcos passou a ser denominada área Indígena São Marcos. a utilização em conformidade com as crenças. Antropologia e Cultura Jurídicas O indigenato. de 1. ajuizada em 20 de maio de 2005. ANDRELLO. Edson Damas da. na prática ainda são sistematicamente violados ou cerceados de diversas formas.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .110 hectares. a Venezuela e a República Cooperativista da Guiana. onde designa uma grande população indígena de língua Carib que ocupa a chamada Gran Sabana. Considerando ainda o levantamento feito pela Fundação Nacional de Saúde. na área fronteiriça entre o Brasil.Vol. 99. Mimeografado. possui. Embora os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam tenham avançado com a CF/88. terras indígenas e defesa nacional. 3) CASO REFERÊNCIA: AS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS E SOCIOAMBIENTAIS NA CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO DE PACARAIMA/RR DENTRO DA TERRA INDÍGENA SÃO MARCOS 20 SILVEIRA. Campinas. Os Taurepang: Memória e Profetismo no Século XX (Dissertação de Mestrado). Os Taurepang são um grupo de filiação linguística Carib e habitam o norte do atual Estado de Roraima. mas com a implementação e avanço do gado pelas savanas do Vale do Rio Branco na segunda metade do século XVIII tornaram-se exímios pecuaristas. uma extensão de 654. Meio ambiente. nas proximidades do rio Tacutu.Sociologia. 1993. impondo às populações indígenas uma subutilização das suas terras demarcadas e homologadas.º 312 de 29 de outubro de 1991. na região do Taiana e do rio Uraricoera. Antropologia e Cultura Jurídicas A terra indígena São Marcos é habitada por índios Taurepang. conforme dados do ISA (2000). 2010. tendo sido demarcada em 1975 e homologada pelo Decreto Presidencial n. Geraldo. Universidade Estadual de Campinas-SP. termo que significa “povo” ou “gente”. predominantemente. feito em 1995. correspondentes à porção sudeste do estado Bolívar21. Pouco conhecido no Brasil. principalmente com a sobreposição posterior de Municípios. este etnônimo é empregado com uma frequência muito maior na Venezuela. com tendências cada vez maiores de participação ativa na economia regional20. a região da Serra da Lua. p. 35 . 10. o CIDR estimava uma população em torno de oito mil Wapixanas. Em 1989. 21 172 . Os Taurepang se autodenominam “Pemon”. O Povo Macuxi tem uma longa historia de resistência ao contato com os portugueses na época da colonização. Wapixana e Macuxi. p. porquanto teriam começado a se aldear junto ao Forte São Joaquim somente a partir de 1789. Os Wapixana são do grupo de filiação Aruak e habitam. estimava-se uma população em torno de seis mil Wapixanas habitantes do território brasileiro. com o intuito de fixar alguns parâmetros que contribuam para o entendimento e possível solução do problema. na maioria das vezes surgem conflitos entre as populações indígenas e não indígenas. Antropologia e Cultura Jurídicas No capítulo anterior analisou-se a problemática dos direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam notadamente no que concerne à demarcação pela União de espaços geográficos. É o caso em que um direito fundamental colide com a integridade ambiental. há colisão de direitos . contudo. 41. Por meio desse processo. No Estado de Roraima esses conflitos são acentuados em decorrência do seu território ser demarcado por diversas terras indígenas. Apresentado e discutido o processo de demarcação e homologação da referida Terra Indígena. entre outros bens coletivos constitucionalmente protegidos23. p. territoriais indígenas e dos habitantes não índios do Município de Pacaraima. a realização de um direito fundamental repercute negativamente sobre direitos fundamentais de outros titulares de direitos fundamentais.1.Vol. os direitos fundamentais colidentes podem ser idênticos ou distintos22. É nesse aspecto que residem os direitos coletivos . busca-se preservar a cultura indígena das mais diversas etnias. a saúde pública. 47.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . fundamentais com bens coletivos. 173 . reconhecendo a existência de terras indígenas. bem como o processo de criação do Município de Pacaraima e suas controvérsias constitucionais. Nesse caso. a segurança pública interna. 3.Sociologia. 22 23 Idem. O PROBLEMA DA COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Nas colisões de direitos fundamentais em sentido restrito. estar localizada em faixa de fronteira e ainda sofrer a incidência de instalação de municípios em suas áreas territoriais demarcadas e homologadas. 35 . É possível ainda que as terras indígenas estejam sujeitas a diversas afetações. p. passamos à análise do caso referência e a possível colisão de direitos fundamentais. Nas colisões de direitos fundamentais em sentido amplo. podendo ser ao mesmo tempo unidade de conservação. Idem. Sociologia. por realizar mais adequadamente a vontade constitucional.2. por via da qual ele fará concessões recíprocas. diante da complexidade do problema. especialmente as proferidas mediante ponderação24 . 35 . passando a ter o Estado de Roraima o domínio das referidas terras. Luis Roberto. à razão prática.1 Juízo de Ponderação de Interesses Nesse cenário. Ocorre que. 174 .Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. no limite.312. a União transferiu todas as terras devolutas do extinto território.Vol.2. a ponderação de normas. p. A CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO DE PACARAIMA DENTRO DA TERRA INDÍGENA SÃO MARCOS O caso referência objeto do presente trabalho analisa as consequências jurídicas e socioambientais da sobreposição do Município de Pacaraima-RR na Terra Indígena São Marcos.1. necessário se faz encontrar argumentos jurídicos sólidos que viabilizem um discurso jurídico harmônico no exercício de ambos direitos. após a sua demarcação e homologação. à argumentação. A criação do município de Pacaraima encravado na Terra Indígena São Marcos constitui de fato. procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa ou. ao controle da racionalidade das decisões. os princípios da segurança jurídica. por fim. uma tensão entre direitos constitucionais aparentemente inconciliáveis? Numa análise preliminar e à luz dos dispositivos citados. Por que o Município de Pacaraima deve ser mantido? Quando o Estado de Roraima foi criado decorrente da transformação de Ex-Território. Conceito chave na matéria é o princípio instrumental da razoabilidade. 2010.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . São Paulo: Saraiva. 3. bens ou valores é a técnica a ser utilizada pelo intérprete.2. Chegase. Além disso. poderia se pensar na ocorrência de uma aparente tensão entre esses direitos constitucionais. da autonomia municipal e da consolidação podem servir de alicerce para evitar a nulidade dos atos de criação do município 24 BARROSO. 3. Antropologia e Cultura Jurídicas 3. procederá à escolha do bem ou direito que irá prevalecer em concreto. . 175 . afirmando que a cidade está estagnada em virtude do problema indígena e que os índios estão prejudicando o crescimento da cidade25. A esse respeito interessante destacar trecho de uma notícia publicada na Tribuna de Roraima em que as lideranças indígenas demonstram preocupação com a degradação 25 Trechos de entrevistas realizadas quando da elaboração da Monografia: “O processo de produção do Espaço fronteiriço da Amazônia: O caso de Pacaraima-RR”. O ato de discriminar é uma ação constante dos não-índios em relação aos índios dentro do Município. em especial o seu usufruto exclusivo. Os índios também acusam de sofrerem discriminação quanto à ocupação à área urbana26 . configurando possível violação ao art. p. O laudo é categórico em afirmar que há unanimidade entre os índios em apontar problemas socioambientais surgidos com a instalação do Município27 . Em sentido diverso. p. p. 3. o que será analisado no tópico seguinte.Sociologia. 35 . poderia se indagar se foi a criação do município que acabou gerando dificuldades e cerceando o direito territorial das etnias indígenas que ocupam a região. 27 Ibid. 231 da CF/88. Antropologia e Cultura Jurídicas de Pacaraima.2. 26 Ibid.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 33-35. 1998.3. atribuem à demarcação da Terra Indígena a dificuldade para o crescimento da cidade. O laudo aponta a existência de um sentimento de discriminação étnica em relação aos índios da região. Essa situação é retratada pelos moradores do município de Pacaraima ouvidos à época.. Em suma. conforme delineado no primeiro capítulo do presente trabalho. 60.Vol. 45. princípios que o STF já aplicou ao julgar ações em que se discutia que um determinado município tinha sido criado em desacordo com a CF/88. Por que a criação do Município de Pacaraima teria violado os direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam? Um documento relevante é o laudo antropológico que analisa os impactos socioambientais às comunidades indígenas da Região de São Marcos com a criação do Município de Pacaraima. na fronteira com a Venezuela.º do art.Sociologia. sendo nulos os títulos que foram expedidos30 . 231 da CF/8829 .º 1. por militares e seus familiares. com a abertura da BR 174 em meados da década de setenta intensificou-se o processo de ocupação da referida área. O objetivo do debate foi achar uma brecha legal para arrancar a sede do Município de Pacaraima de onde ela esta hoje localizada. como poluição das cabeceiras dos rios. 32-33) ao narrar o processo de criação do município de Pacaraima dentro da Terra Indígena São Marcos comenta: É no âmbito deste processo. É nesta perspectiva que o Governo do Estado de Roraima. Mais uma vez Santos (1998. p. criando a instalando a sede do município de Pacaraima no interior da Área Indígena São Marcos. aumentando assim os limites territoriais da Vila Pacaraima. Antropologia e Cultura Jurídicas ambiental trazida com a criação do Município e apontam os motivos pelos quais são contra a sua instalação28: A instalação da sede do Município de Pacaraima dentro de nossa terra foi e é uma invasão que vem nos trazendo sérios problemas. o Estado sempre se preocupou em buscar mecanismos que garantissem a ocupação e o controle da região. Outro aspecto relevante é o iminente conflito entre as populações indígenas e os moradores não índios do município. que ocorre o processo de formação do município de Pacaraima.º 1512-5Roraima. Não estamos deixando que pessoas não índias utilizemse dos recursos naturais da nossa terra.Vol. contraria a CF/1988. em decorrência da discussão quanto ao processo demarcatório ser contínuo ou não. Ano 01. Como se trata de uma área estratégica e de fronteira. p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . na forma do §. depredação do solo e ocupação indevida de matas importantes para a sobrevivência do nosso povo. Esta situação acirrou ainda mais a disputa pela posse da terra.º 031. são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e de posse imemorial. 29 Informações retiradas do laudo antropológico fls. 176 . de 24 a 30 de junho de 2001. p. Um dos argumentos trazidos pelo laudo de índole constitucional a favor das comunidades indígenas da Terra São Marcos refere-se à afirmação de que as terras onde o Município de Pacaraima foi criado. 35 . era apenas uma Vila formada principalmente. n. A FUNAI sustenta que essas terras não eram e não são devolutas e sim pertencentes tradicionalmente aos índios. 10. As comunidades indígenas sustentam ainda que o Estado de Roraima ao criar o Município exerceu turbação indevida na posse indígena. 40/41) é enfática ao criticar a criação do Município de Pacaraima: 28 Entrevista extraída do Jornal da época “Tribuna do Estado de Roraima”. No princípio esta localidade. 30 Informações extraídas do Voto do Ministro do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. Porém.54. Santos (1998. 04.2. 231 da CF. pois não é mais apenas os campos que são ocupados pelos criadores de gado e sim a ocupação total de seu território. a questão demanda uma análise profunda diante da complexidade e relevância dos direitos constitucionais envolvidos e aparentemente colidentes. foi apropriado por particulares que contaram com a total participação do Estado. em 1911. Decisão: 18/03/2008. ainda que a tenham exercido de boa-fé.Vol. por se tratar de direito congênito.) A produção do espaço urbano do município de Pacaraima é um exemplo desta luta de classes. Inteligência do disposto no art.4. em face do inafastável reconhecimento de que a área sub judice historicamente pertence aos indígenas. com base no § 6º do art. pois é evidente que a abordagem da criação e a extinção do Município de Pacaraima configuram interesse público coletivo de igual peso que os direitos territoriais indígenas.ª Região. Em diversos julgados. 231 da CF/88 leva conclusão de que a resposta a essa indagação é negativa. Os índios tem os seus territórios comprimidos e saqueados.) 177 . Tal circunstância torna despicienda a discussão sobre a posse do Apelante. Nesse processo de espoliação.71. o Tribunal Regional Federal tem reconhecido a posse originária das terras aos indígenas. Antropologia e Cultura Jurídicas Esta situação esdrúxula tem desencadeado problemas ainda mais sérios para os povos indígenas da região. em prejuízo de direito congênito e constitucionalmente garantido aos índios.ª Turma. 231 da Constituição. em detrimento dos moradores não índios31.) TRF 4.: Des. esses julgados somente discutiram o interesse particular de moradores não índios. No entanto. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. (. O caso referência objeto de discussão do presente trabalho aborda a possível colisão de dois interesses públicos coletivos de igual simetria.. 31 Ação de reintegração de posse ajuizada por proprietário de imóvel rural situado no Município de Ronda Alta/RS. ocupado parcialmente por índios pertencentes à etnia Kaingang. (. sempre prevalecendo os direitos originários dos índios às terras que tradicionalmente ocupam.. O caso referência e o discurso jurídico de consenso A simples leitura do §6. 3..011548-1/RS. Ocorre que.º do art. DE de 23/04/2008. Do conjunto probatório acostado aos autos desponta que o imóvel sob litígio encontra-se dentro dos limites da Terra Indígena Serrinha. demarcada. os “civilizados se apossaram das terras indígenas e passaram a impor novas relações de produção que interferiram diretamente na organização social das comunidades indígenas.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . decretando a nulidade qualquer título dominial conferido a particulares dentro de terras indígenas. pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul. agasalhados ambos pela CF/88..Sociologia. Rel. pois este espaço que é reconhecido historicamente como Terra Indígena. O decurso do tempo não é capaz de convalidar posse precária dos agricultores da região. A construção de uma cidade implica na criação de uma infra-estrutura que acabaria por completo o caráter tradicional das terras de São Marcos. 3. à medida que se processa a produção deste espaço. como o direito de posse e propriedade. 35 . AC 2004. de um Município com toda a sua estrutura política e administrativa. Dispõe sobre o procedimento para a criação..) VI identificação do percentual da área ocupada por áreas protegidas ou de destinação específica. áreas indígenas. 13. de 2002 . O CONGRESSO NACIONAL decreta: CAPÍTULO I DAS DISPOSIÇÕES GERAIS. exigindo um exercício hermenêutico. suas autarquias e fundações. Assim. diante de uma verdadeira colisão de direitos fundamentais. Art. se foram atendidos os seguintes requisitos: (. sobretudo. embora os seus princípios. seria a não declaração da sua nulidade diante dos princípios da consolidação. conceitos e teorias possam ser aplicados ao caso concreto. de 2002 Complementar.... § 4º A viabilidade sócio-ambiental e urbana deverá ser demonstrada a partir do levantamento dos passivos e potenciais impactos ambientais. com fulcro na proporcionalidade para resolver o caso submetido à sua apreciação. 35 . a fusão e o desmembramento de Municípios. Na discussão do problema não podemos desprezar que a situação não se trata apenas de uma ocupação de pessoas individuais fazendeiros ou arrozeiros. tais como unidades de conservação. a fusão e o desmembramento de Municípios. a incorporação.. 18 da Constituição Federal . 1º Esta Lei Complementar dispõe sobre a criação. a incorporação. em relação ao Município a ser criado. para regulamentar o § 4º do art. que regulamenta o procedimento para a criação. § 4º da Constituição Federal). a partir das seguintes informações e estimativas: (. 18 da Constituição Federal (.) Art. da segurança jurídica e do município putativo. nunca tendo optado pela 32 A Comissão Diretora apresenta a redação final do Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado nº 98. nos termos do § 4º do art. O Estudo de Viabilidade Municipal tem por finalidade o exame e a comprovação da existência das condições que permitam a consolidação e desenvolvimento dos Municípios envolvidos.) VI . o que evidencia a necessidade de um discurso jurídico de consenso à luz do caso concreto. preliminarmente. quilombolas ou militares. a incorporação. A extinção do Município de Pacaraima seria uma solução drástica e acarretaria diversas consequências negativas no âmbito institucional.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . mas.área urbana não situada em reserva indígena. Redação final do Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado nº 98. a fusão e o desmembramento de municípios e dá outras providências (art. pois inexiste legislação vedando a criação de município dentro de terras indígenas já demarcadas.Vol. O STF em outras situações tem decidido pela permanência do ente político sob o argumento do princípio da consolidação e segurança jurídica.º 499/RR reconheça a existência de uma colisão de direitos fundamentais e acabe exercendo um juízo de ponderação e harmonização. Um dos fundamentos que podem ser invocados para a sua manutenção.. podemos estabelecer a premissa de que não estamos. e deverá comprovar. 178 . embora o STF acabe reconhecendo a inconstitucionalidade material da instalação do município em face da sua sobreposição em Terra Indígena. no presente caso referência. Antropologia e Cultura Jurídicas O caso referência carece de legislação própria. 18 .Complementar. Além disso. vedando a criação de municípios dentro de terras indígenas32 . área de preservação ambiental ou área pertencente à União. consolidando as Emendas aprovadas pelo Plenário. nada impede que no futuro o STF ao julgar a ACO n.Sociologia. Interessante mencionar a existência de projeto de lei tramitando no âmbito do Congresso Nacional. Portanto. Taba ou Município: A Cidade dos índios e o direito brasileiro. portanto. o que não é o caso. Seja como o reconhecimento de um ente político diferenciado específico ou com a criação de municípios indígenas. Alguns precedentes podem servir de parâmetro para o deslinde da questão. da Silva. elaborando ensaios reflexivos acerca do tema. Por outro lado. não seria viável a sua transformação em Município indígena como alternativa de resolução do problema e evitar a sua extinção. possam exercer a autogestão territorial. apesar da sua inconstitucionalidade ou irregularidade na criação. 5020)331 defendem a criação de municípios indígenas: Neste item.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 179 . o presente trabalho apenas tem a iniciativa de expor a realidade das normas constitucionais brasileiras frente aos fatos observados como as “cidades indígenas” que crescem em meio às terras indígenas. a meu ver. isto é. p. com base nas suas próprias organizações. serão tratados como desafios ao Direito brasileiro em proporcionar a consolidação dos direitos dos índios previstos na Constituição de 1988. A tese sustentada pelos autores é diversa da que se trata no presente trabalho. já que semelhante problematização ocorreu quando da criação do município de Normandia 33 NOGUEIRA.º 499.Sociologia. ainda está pendente de julgamento no STF na Ação Civil Originária n. Cabe mais uma vez. 14. sem nenhuma pretensão de propor alterações nos princípios basilares constitucionais que sustentam a democracia brasileira. embora encontre na sua administração membros de etnias indígenas. 35 . porém.Vol. 15 e 16 de outubro de 2010. pois defendem a criação de municípios habitados e administrados exclusivamente por índios. pois o Município de Pacaraima já existe e é habitado em sua maioria por não indígenas. a fim de que. os itens apresentados a seguir. desde que seja oferecido aos povos indígenas maior administração local. Fernando A. a criação do Município de Pacaraima na Terra Indígena São Marcos. Antropologia e Cultura Jurídicas drástica decisão de extinguir um Município. destacar que a matéria em relação a esse aspecto. ALVES. se trata de um desafio diante da ausência de legislação tratando do tema. Trabalho publicado nos Anais do XIX Congresso Nacional do CONPEDI realizado em Florianópolis-SC nos dias 13. Outro argumento em busca de uma solução ponderada para o problema seria a transformação do Município de Pacaraima em Município Indígena a esse respeito de modo geral Nogueira e Da Silva Alves (2010. a criação do Município ocorreu dentro dos limites de Terra Indígena São Marcos. A tese defendida pelos autores é interessante. Caroline Barbosa Contente. Por outro lado. 231 da CF que garante a posse territorial indígena sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Os elementos constantes dos autos provam. a meu ver. o usufruto exclusivo. embora ai instalado esse município. 35 . qual seja. a exclusão apenas da sede do Município. o que a princípio somente pode ser feito pela via judicial com fundamento em princípios de hermenêutica constitucional. Estados e Municípios). se lhe desse traçado de jurisdição territorial. demarcação e homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.º 1512-5Roraima. a solução adotada. de tal sorte que os seus limites ficassem fora da região dos índios. manteria o Município de Pacaraima viável sem afetar o direito do Estado de Roraima que no passado o criou e ao mesmo tempo preservaria o art. da Terra Indígena São Marcos pela via administrativa implicaria uma indevida revisão do decreto demarcatório. no entanto. 35 Informações extraídas do Voto do Ministro do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. A exclusão da sede do Município implica na prática a exclusão física de pessoas. Antropologia e Cultura Jurídicas incrustado na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. reside no fato de que a criação do município pelo Estado não atingiu o núcleo essencial dos direitos territoriais indígenas. foi a de fixar os limites territoriais do município fora da região indígena34. a sua criação foi anterior ao processo de reconhecimento.388-STF. ressalvando que o usufruto exclusivo não alcança os entes políticos. p. 13. para se concluir pela ausência de colisão de direitos fundamentais no caso referência que se estuda. que nessa mesma área do território encontra-se já criado o município de Normandia. conforme o STF já decidiu no julgamento da Raposa Serra do Sol. no caso a Vila de Pacaraima. Caso a exclusão da sede do Município seja adotada no âmbito judicial pelo STF. 180 . 36 Ver os itens 14 e 16 da Ementa do acórdão proferido na Petição 3.Vol. vez que. o STF no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol 36 relativizou esse instituto ao estabelecer que o mesmo não afeta os entes federativos (União. inusitadamente.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . fazendo inclusive fronteira com o lado oeste da Guiana. neste caso. solução essa que a prudência deve ter orientado para que.Sociologia. A principal razão. incrustado dentro da mesma reserva (Raposa Serra do Sol). petição 3388. o que indica ao administrador federal que possa seguir-se pelo seu próprio parâmetro35 . 34 É necessário esclarecer que no caso do Município de Normandia. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas O STF deixou assentado nesse julgamento que o usufruto exclusivo é conciliável com a presença de não-índios e com a instalação de equipamento públicos, prestação de serviços públicos ou de relevância pública, podendo ser inserida a instalação de municípios. Podemos afirmar que a criação do Município de Pacaraima no Estado de Roraima não violou o usufruto exclusivo previsto na Constituição Federal, pois na ótica do STF, quando do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em especial a condicionante n.º 19, se interpretou que o usufruto exclusivo indígena não alcança os Estados e Municípios, entes federativos, asseverando, inclusive, que esses entes tem efetiva participação e deverão ser ouvidos em todas as etapas do processo de demarcação de terras indígenas. Sob o enfoque de que o usufruto exclusivo indígena não atinge os entes federativos, não se verifica uma colisão de direitos fundamentais entre o poder do Estado em criar municípios e o art. 231 da CF/88, sendo possível a manutenção do Município. Contudo, a permanência de moradores não índios dentro da Terra Indígena São Marcos, por conta da criação do município de Pacaraima, impõe solução diversa, por se tratar de circulação de pessoas particulares dentro uma Terra Indígena. Num raciocínio simples, a solução possível seria aquela que a jurisprudência tem adotado reiteradamente nos casos de ocupação particular em terra indígena, reconhecendo a precariedade da posse. Ocorre que, a questão prejudicial externa incidente, refere-se à constitucionalidade ou não na instalação do Município de Pacaraima encravado na Terra Indígena São Marcos. Essas questões serão decididas pela Justiça Federal, assim que o STF julgar a ACO 499/RR que discute a instituição do Município de Pacaraima, ressaltando que os parâmetros fixados e o discurso jurídico estabelecido na presente pesquisa poderão contribuir para conhecer o problema. Se a questão jurídica se limitasse a ocupação particular de terra indígena, a solução seria recorrente, pois a jurisprudência tem decidido reiteradamente pela precariedade da posse e consequente retirada de particulares, fazendo jus em determinados casos, a uma indenização37. 37 Ver nota 220. 181 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas Contudo, o nosso caso referência possui um ingrediente político relevante que ultrapassa a discussão da posse precária do particular, pois qualquer solução adotada passa necessariamente pela análise da instalação do município de Pacaraima, conforme foi abordado no item anterior. Finalmente, diante da ausência de legislação atual tratando da matéria, inúmeros conflitos a esse respeito poderiam ser evitados, se os Estados não criassem municípios dentro de reservas indígenas, a exemplo do que ocorreu com a reserva São Marcos e a cidade de Pacaraima. 3.2 5. O caso referência no âmbito judicial A questão no âmbito judicial precisa ser bem delimitada e esclarecida, pois existem inúmeras ações judiciais envolvendo a criação do Município de Pacaraima na Terra Indígena São Marcos, em diferentes instâncias judiciais (STF e Justiça Federal). Inicialmente foram ajuizadas ações civis públicas pelo Ministério Público Federal, FUNAI e União na Justiça Federal figurando no polo passivo da demanda os moradores não índios do município de Pacaraima38. As referidas ações tratam da ocupação da Terra Indígena São Marcos por particulares, restringindo-se o objeto da lide à defesa das comunidades indígenas da referida ocupação. No panorama atual essas ações encontram-se suspensas por força de decisão judicial do Tribunal Regional Federal da 1.º Região 39, aguardando o julgamento da Ação Cível 38 Ações civis públicas n.º 2003.42.00.002504-8/RR, n.º 2003.42.00.002563-0/RR e n.º 2003.042.00.0024478/RR.www.trf1.jus.br/processos/jurisprudênciaoracle/jurisprudênciadetalhesacordao...Acesso em 19/04/2012. 39 EMENTA: CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROTEÇÃO DE TERRA INDÍGENA. ESTADO DE RORAIMA E MUNICÍPIO DE PACARAIMA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA N. 499/STF. “PREJUDICIALIDADE EXTERNA”. PRECEDENTE DA PRIMEIRA SEÇÃO DO STJ: ERESP 988.616/RR. AGRAVO RETIDO E APELAÇÕES PROVIDAS.1. Trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público Federal, pela União e pela Fundação Nacional do Índio de sentença em que se indeferiu a petição inicial, com extinção do processo sem resolução do mérito, de ação civil pública ajuizada em face de particular por ocupação ilegal da Terra Indígena São Marcos.2. Considerou o Juiz que: a) “melhor refletindo sobre a questão conclui que a solução encontrada pela MM. Juíza Federal Cristiane Mirando Botelho, então da 2ª Vara Federal desta Seção Judiciária, de extinguir os processos sem exame do mérito e a mais consentânea para este momento. Transcrevo parte dos fundamentos invocados por Sua Excelência: ‘(...) Analisando os fatos e fundamentos da inicial, tenho que o prosseguimento da presente ação mostra-se prejudicado, eis que se postula a desintrusão casuística de várias áreas dentro do Município de Pacaraima, providência que me afigura equivocada, pois imbuída de nítida contestação da própria existência jurídica do Município de Pacaraima. A referida municipalidade situa-se em ponto estratégico do território nacional, na fronteira do Brasil com a 182 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas Originária de interdito proibitório n.º 499/RR, ajuizada pela FUNAI e que tramita junto ao STF, tendo como objeto a criação e a instituição do município de Pacaraima. Os objetos da ação de interdito proibitório (que tramita no STF) e das ações civis públicas são distintos, eis que a primeira foi movida pela FUNAI contra o Estado de Roraima e o Município de Pacaraima, insurgindo-se contra a instalação desse município, enquanto a segunda trata de ação ajuizada contra particular por ocupação ilegal da Terra Indígena São Marcos. Todavia, ambas as ações guardam entre si um vínculo estreito, suficiente para justificar a suspensão das ações civis públicas, à vista do caráter prejudicial que reveste a eventual decisão proferida na Corte Suprema, configurando a hipótese de “prejudicialidade externa”. Possível, portanto, a suspensão do processo, com base no art. 265, IV, “a”, do CPC40. Nas ações civis públicas mencionadas, o Juízo da 1.ª Vara Federal acatou a intervenção do Estado de Roraima e do Município de Pacaraima no polo passivo na qualidade de litisconsortes necessários, sob o argumento de que havia interesse processual desses entes Venezuela, estando encravada na Reserva Indígena São Marcos. Contudo, sua instituição jurídica já é objeto de ação em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, não se justificando a proliferação de ações visando a desocupação ‘no varejo’ das pessoas que residem e construíram no Município’”.3. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, “no julgamento dos Embargos de Divergência 988.616/RR, em sessão realizada no dia 25.11.2009, pôs fim à divergência jurisprudencial acerca do tema, definindo que o Estado não é litisconsorte passivo necessário na ação civil pública movida para repelir ocupação indevida de terra indígena (EREsp 988.616/RR, Rel. Min. Eliana Calmon, Primeira Seção, Julgamento em 25.11.2009, DJe 8.3.2010)” (EREsp 988551/RR, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, DJe 20/04/2010).4. Da mesma forma, o Município de Pacaraima não ostenta legitimidade para figurar no polo passivo desta ação, que visa à proteção de comunidades indígenas em face de ocupação ilegal da Terra Indígena São Marcos por particular (TRF – 1ª Região, AC 2003.42.00.002479-3/RR, Rel. Juiz Federal Convocado David Wilson de Abreu Pardo, Sexta Turma, DJ 19/11/2007).5. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “...2. Os objetos da ação de interdito proibitório (que tramita no STF) e da presente ação civil pública são diferentes, eis que a primeira foi movida pela FUNAI contra o Estado de Roraima e o Município de Pacaraima – insurgindo-se contra a instalação desse Município –, enquanto a segunda trata de ação ajuizada contra particular por ocupação ilegal da Terra Indígena São Marcos. 3. Todavia, ambas as ações guardam entre si um vínculo estreito, suficiente para justificar a suspensão da presente ação civil, à vista do caráter prejudicial que reveste a eventual decisão proferida na Corte Suprema, configurando a hipótese de ‘prejudicialidade externa’. Possível, portanto, a suspensão do processo, com base no art. 265, IV, ‘a’, do CPC” (REsp 992682/RR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 04/08/2009).6. No mesmo sentido tem decido este Tribunal: “Afigura-se, presente, de qualquer sorte, a existência de uma relação de dependência entre o interdito proibitório (em curso na Suprema Corte) e a presente ação, que poderia, a princípio, justificar a suspensão deste processo, mediante a aplicação do art. 265, IV, ‘a’, do Código de Processo Civil, uma vez que a causa submetida a exame pelo STF contém questão prejudicial ao deslinde da controvérsia travada nestes autos” (AC 2003.42.00.002504-8/RR, Juiz Federal Convocado Cesar Augusto Bearsi, Quinta Turma, e-DJF1 21/11/2008).7. Agravo retido do Ministério Público Federal provido para reformar a decisão de citação, e consequente integração à lide, do Estado de Roraima e do Município de Pacaraima.8. Apelações providas para anular a sentença em que se indeferiu a petição inicial, com remessa dos autos ao juízo de origem, a quem é facultada a aplicação da norma do art. 265, IV, “a”, do Código de Processo Civil, até julgamento final da ACO 499/RR, que tramita no STF. Decide a Quinta Turma do Tribunal Regional Federal - 1ª Região, por unanimidade, dar provimento ao agravo retido e às apelações, nos termos do voto do Relator. Brasília, 30 de março de 2011 (data do julgamento). Rel. João Batista Moreira, Desembargador Federal – Apelação cível n.º 200342000024478/RR. Processo na Origem: 200342000024478. 183 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas na lide, em razão do Município de Pacaraima ter sido criado pelo Estado e o mesmo se encontrar dentro dos limites da Terra Indígena, podendo acarretar a sua extinção na via judicial. Esse entendimento não prevaleceu e posteriormente o Superior Tribunal de Justiça pôs fim à divergência jurisprudencial acerca do interesse processual ou não, nesse tipo de ação, do Estado de Roraima e do Município de Pacaraima, definindo que nenhum dos entes ostenta legitimidade para figurar na demanda a título de litisconsortes necessários, pois as ações visam à proteção das comunidades indígenas em face de ocupação ilegal da Terra Indígena São Marcos por particular41. O juízo da 1.ª Vara Federal da Seção Judiciária de Boa Vista-RR suscitou a existência de conflito federativo nas referidas ações civis públicas, diante da relação de dependência entre as ações civis públicas e ação possessória n.º 95.00.00683-9/RR já remetida ao STF, razão pela qual determinou a remessa dos autos à Suprema Corte, por se tratar de hipótese ligada a sua competência originária42. Esse entendimento esposado pelo Juízo da 1.ª Vara Federal não prevaleceu no STF que declinou da competência remetendo os autos de volta à 1.ª instância, pois não se discutia a criação do Município de Pacaraima, visando apenas a proteção dos direitos indígenas sobre 40 Trecho extraído do voto do acórdão de Resp 992682/RR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 04/08/2009. 41 Nesse sentido são os seguintes julgados: EREsp 988.616/RR, Rel. Min. Eliana Calmon; EREsp 988551/RR, 25.11.2009, Rel. Min. Humberto Martins, 20/04/2010. Em relação ao município de Pacaraima ver o julgado ( TRF 1.º Região, AC 2003.42.00.002479-3/RR, Rel. Juiz Federal Convocado David Wilson de Abreu Pardo, Sexta turma, DJ 19/11/2007). 42 EMENTA. PROCESSUAL CIVIL. PROTEÇÃO DE TERRA INDÍGENA. COMUNIDADE INDÍGENA DE PACARAIMA E SÃO MARCOS (RR). CONFLITO FEDERATIVO. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.1. Trata-se de agravo de instrumento contra decisão em que foi determinada remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal, à consideração de que existe relação de dependência entre a ação civil pública e a possessória (autos nº 95.00.00683-9/RR), remetida àquela Corte, eis que se reproduzem de forma fragmentária, as mesmas razões em ambas. Argumenta a agravante que: a) “a ação possessória mencionada foi movida pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI contra o Estado de Roraima e os Municípios de Pacaraima e Uiramutã, insurgindo-se contra a instalação desses municípios”; b) “esta ação civil pública nada tem a ver com o objeto daquela ação possessória, vez que é movida contra pessoa de direito privado e se insurge contra a ocupação ilegal da Terra Indígena São Marcos e não contra a instalação do Município”.2. A ausência da petição inicial da ação possessória impede verificar se esta tem relação ou não com a ação civil pública. Porém, examinando os argumentos lançados na petição de agravo, observa-se que o interdito possessório, em princípio, sinaliza para um possível conflito entre União e Estado-Membro.3. Nos termos do art. 102, I, letra f, da Constituição, compete, originariamente, ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta. 4. Agravo de instrumento a que se nega provimento. (AG 001809489.2004.4.01.0000/RR; AGRAVO DE INSTRUMENTO DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA15/03/2010). 184 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas o usufruto exclusivo de suas terras, posse e ocupação tradicional, se tratando apenas da ocupação de um imóvel construído pela ré dentro dos limites da Terra Indígena São Marcos43. Constata-se que as ações ajuizadas pela União, Ministério Público Federal e a FUNAI em face de cada morador não índio do Município de Pacaraima tem como pedido a desintrusão dos mesmos da Terra Indígena São Marcos, por se tratar de uma posse precária. Se a questão jurídica se limitasse a ocupação particular de terra indígena, a solução seria recorrente, pois a jurisprudência tem decidido reiteradamente pela precariedade da posse e consequente retirada de particulares, fazendo jus em determinados casos, a uma indenização44. Contudo, o nosso caso referência possui um ingrediente político relevante que ultrapassa discussão da posse precária do particular, pois qualquer solução adotada passa necessariamente pela análise da instalação do município de Pacaraima, conforme foi abordado no item anterior. É nesse contexto, que as ações civis públicas mencionadas têm com um dos seus pedidos a desinstalação do Município de Pacaraima e que seja desempossado o Prefeito e todos os Vereadores. Fazendo uma breve análise das petições judiciais que integram as referidas ações civis públicas, podemos destacar alguns argumentos jurídicos: a posse e o usufruto exclusivo das terras indígenas, os direitos originários sobre as suas terras de ocupação tradicional no interior da Terra Indígena São Marcos, no município de Pacaraima, pois a sua criação não dá acesso a terceiros não-índios dentro dos seus limites que coincidam com os da terra indígena demarcada, nos quais somente comporta ocupação exclusiva indígena45. A terra indígena São Marcos, na localidade denominada Vila de Pacaraima, vem sofrendo investidas de terceiros não indígenas, com o intuito dela se apossarem, em flagrante detrimento dos direitos dos índios àquela parte de seu território de ocupação tradicional46. 43 44 45 46 Questão de Ordem em Ação Cível Originária n.º 1.006-6-Roraima-STF. Ver nota 220. Informações extraídas dos autos de Ação Civil Pública n.º2003.2500-3, que tramita na Justiça Federal. Informações extraídas dos autos de Ação Civil Pública n.º 2003. 2500-3 que tramita na Justiça Federal. 185 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas Por sua vez, a CF/88 em seu § 6º do art. 231 declara a nulidade de qualquer ato envolvendo a ocupação, o domínio e a posse de terras indígenas por particulares. No mesmo sentido, o art. 62 do Estatuto do Índio47. Os autores da ação afirmam ainda, que os moradores não-índios têm a ocupação não só ilegítima, mas também de má-fé, o que aumenta ainda mais as razões para a sua retirada do território indígena. Ao final da ação o pedido principal é a condenação do réu (morador não-índio do Município de Pacaraima) para se retirar em definitivo da Terra Indígena. Entre os argumentos de defesa invocados pelos moradores do município podemos destacar: a indevida intervenção federal no Estado de Roraima que não encontra respaldo na CF/88, ferindo a autonomia estadual e a inexistência de turbação à posse indígena, pois no local há uma perfeita interação entre índios e não índios. O Estado de Roraima ingressou na referida ação, na condição de litisconsorte 48 e atuando ao lado do réu (morador não índio do município de Pacaraima) em sua contestação se contrapõe aos argumentos da inicial asseverando que as comunidades indígenas da Terra São Marcos estão totalmente integradas à comunhão nacional, vivendo em perfeita harmonia entre si e com os não índios49 Nesse mesmo sentido, foram as conclusões do assistente técnico do . Estado de Roraima em sua impugnação ao laudo antropológico nos referidos autos, quando afirma que integram a comunidade índios e não-índios em situação permanente e relativamente pacífica. Em sentido oposto, são apresentados argumentos que retratam a inexistência de interação pacífica e harmoniosa entre índios e não índios na referida região, conforme já salientado anteriormente, por ocasião da análise do laudo antropológico. Nesse raciocínio, Santos (1998, p. 55), ao comentar a luta entre índios e não índios na região, pondera: Trata-se de uma luta terrivelmente desigual, onde os índios quase sempre saem perdendo. De um lado temos os povos indígenas que tentam resistir com as armas que possuem e no outro extremo temos a elite local que conta com a participação do Governo do Estado para legitimar o processo de invasão, como é o caso da criação do município de Pacaraima. 47 Argumentos extraídos dos autos de Ação Civil Pública n.º 2003.2500-3 que tramita na Justiça Federal. Vale ressaltar que, conforme julgado citado do STJ, posteriormente se reconheceu que o Estado não tem interesse processual para figurar como litisconsorte necessário passivo nas presentes ações. 49 Informações contidas na contestação do Estado de Roraima nos autos de Ação Civil Pública n.º 2003-2500-3 que tramita na Justiça Federal. 48 186 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas O Estado alega que quando da demarcação da Terra Indígena São Marcos a cidade de Pacaraima foi excluída das terras devolutas do Estado de Roraima para ser incluída integrante de área indígena, que, sabidamente, não abrange aquela localidade. A FUNAI admitiu em processo administrativo que a cidade de Pacaraima tem área urbana que se distingue das áreas ocupadas por índios. O Estado de Roraima em sua peça chama a atenção para o fato de que a cidade de Pacaraima já esta consolidada em vilas e povoados e atividades agropecuárias onde predominam os costumes da civilização não-índia, não se podendo concluir que os índios as habitam em caráter permanente e as utilizam para as suas atividades produtivas. A ação mais importante, por tratar do caso referência, é a Ação Civil Originária de interdito proibitório n.º 499/RR que tramita no STF, porém, infelizmente, a mesma encontrase pendente de julgamento desde 2008, conforme assinalado ao final do primeiro capítulo. Constata-se que no âmbito administrativo existem grupos de trabalho do Ministério da Justiça e do Governo do Estado tratando da matéria e propondo a exclusão apenas da sede do município de Pacaraima, isto é, a Vila de Pacaraima, da Terra Indígena São Marcos, nos moldes do que ocorreu com os municípios de Normandia50 e Uiramutã. É muito provável que a solução administrativa anteceda a judicial, no presente caso. Na nossa visão, a solução administrativa para o caso referência não pode passar pela revisão do decreto (ato administrativo) que demarcou a Terra Indígena São Marcos com o intuito de excluir a sede do Município de Pacaraima, pois o reconhecimento de uma terra, como indígena, remonta ao conceito de indigenato, possuindo o aludido decreto natureza declaratória por se tratar de um direito preexistente não podendo ser revista a demarcação no âmbito administrativo. O ideal é aguardar a decisão do STF, no julgamento da ACO n.º 499/RR. 50 Vale registrar que, diferentemente do Município de Pacaraima, o Município de Normandia já existia quando da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, conforme já observado no presente trabalho. 187 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Antonio Armando Ulian do Lago. 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Monografia de especialização em Relações Fronteiriças. Carlos Frederico Marés de. 1a ed. Direito socioambiental: tratado de cooperação amazônica. Andrea. Juliana (Coord). Curitiba: Juruá.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . O renascer dos povos indígenas para o direito. 1999. 2008. Mimeografado. será realizada uma revisão bibliográfica sobre os conceitos que serão abordados para analisar o tema. também. debatidos por Leopoldo Zea (2005). will be held a literature review about the concepts that are addressed of analyzing the theme. and how this issue also reverberates today . por meio do conceito de poder simbólico e violência simbólica. construirá uma ponte com o pensamento de Pierre Bourdieu (1998). em especial. Key-words: "Break Shango". Abstract: This article seeks to work the issue of religious intolerance by analyzing the movement of religious persecution african-Brazilian cult. through the concept of symbolic power and symbolic violence. PMmbém. Para tanto. which occurred in 1912 in Maceió-Al. 35 . ‘ Discurso desde Mmarginalização e Mbarbárie’(2005).Sociologia. build a bridge with the thought of Pierre Bourdieu (1998). reverbera atualmente. denominado “QueNrMde Xangô”. em Maceió-Al. discussed by Leopoldo Zea (2005).Vol.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .cnpq. Diversity. Antropologia e Cultura Jurídicas “Quebra de Xangô”: a questão do ‘outro’ e a violência simbólica "Break Shango": the question of the 'other' and symbolic violence Andréa Letícia Carvalho Guimarães 1 Resumo: o presente artigo busca trabalhar a questão da intolerância religiosa através da análise do movimento de perseguição religiosa aos cultos afro-brasileiros. será utilizada a tese de doutorMdo de Ulisses RMfMeÕ(2004) que descreve M‘ QueNrMde Xangô’ e. 192 . A partir desse fato. Symbolic Violence. 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB). ainda. Thus. we used the doctoral thesis of Ulysses Rafael (2004) that describes the 'Breaking Shango' and also news and documentaries about the issue of religious intolerance. From this fact. called "Break Shango". E. Palavras-chaves: “QueNrMde Xangô”ÉVioÕênciMSimNXÕicMÉGiversidadeÉHnPoÕerância Religiosa. o problema da tomada de consciência histórica e a questão da diversidade. o conceito de violência simbólica elaborado por Pierre Bourdieu. e como essa questão. involve the problematization of difficulty of dealing with the 'other'. que envolvem a problematização da dificuldade de lidar com o ‘diferenPe’. Currículo Lattes: http://lattes. the 'other' within society. In addition.br/0440751393147035. Religious Intolerance Introdução O presente artigo pretende analisar os conceitos trabalhados na disciplina de Sociologia Jurídica II. o ‘ouPro’ dentro da sociedade. And also the problem of historical awareness and the issue of diversity. Ademais. em ‘O poder simbólico’(1998) e a questão do ‘ouPro’ tratada na obra de I eopoÕdo ZeM. que ocorreu em 1912. notícias e documentários sobre a questão da intolerância religiosa. ao longo do tempo.Sociologia. enfim.Vol. Demonstrando que a sociedade se divide. e compreende que a partir de suas concepções devem ser tomadas todas as decisões sociais. ele se vê como o próprio contexto social. sempre dicotomizou. as relações sociais. que se referem a um tipo de poder/violência velada. principMÕmenPe. que auxiliam a analisar o mundo a partir de relações dialéticas e do modo como essas relações se reproduzem. dentro de um padrão de dominação. Assim. para compreensão desta dicotomia. estudada por Leopoldo Zea (2005). sendo a referência para a sociedade. os referidos conceitos serão articulados com a questão da intolerância religiosa. logo após. a partir de práticas de dominação que existem e persistem independentes das consciências ou das vontades individuais.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . analisar-se-á os estudos de Pierre Bourdieu. ideológica. Após essa revisão bibliográfica dos autores acima narrados e dos conceitos por eles construídos. propõe-se analisar os conceitos de poder simbólico e de violência simbólica. Nesse sentido. Além disso. será usado o trabalho etnográfico realizado por Ulisses Neves Rafael. far-se-á uma análise do percurso desenvolvido por Leopoldo Zea das relações de dicotomia (gregos/bárbaros. ocorrido em 1912. 35 . Então. cristãos/não cristãos. quando envoÕQe religiões que não estão em consonância com o padronizado pela sociedade. ao invés de se reconhecer como individuo pertencente a um contexto social. buscará no terceiro ponto do artigo articular os conceitos apresentados com a questão da intolerância religiosa. civilização/barbárie). que apresenta como o ser humano. no primeiro tópico. burguesia/proletariado. movimento de perseguição religiosa aos cultos afro-brasileiros. no segundo tópico será trabalhada MquesPão do ‘ouPro’. Antropologia e Cultura Jurídicas Nesse sentido. que tem como propósito a indução de valores de uma classe social sobre outra. utilizando-se como iÕusPrMção M‘OperMção Xangô’. 193 . como é o caso das religiões afrobrasileiras. será observada a questão da tomada de consciência histórica. é um poder que tem pouca visibilidade. quando o ser humano. Para tanto. que se faz de forma dissimulada e se naturaliza nas relações sociais. mas que ocupa praticamente todos os espaços. ao longo da sua história. em Maceió. “‘Xangô rezado baixo’: um estudo das perseguições aos terreiros de Alagoas em 1912”. Europa/periferia. ou seja. E. através de uma relação de hierarquia. que ilustra bem a violência simbólica e a quesPão do ‘ouPro’. em aqueles que são ‘superiores’(civilizMdos) e aqueÕes que são ‘inferiores’(NárNM ros). e a sua percepção de forma problemática. império/colônia. Antropologia e Cultura Jurídicas Deste modo. como um dos fundamentos para a compreensão da reprodução da ordem e da regulação social. reconstruindo o fato. No topo da hierarquia está o grupo dominante. 35 . por ter um elevado acúmulo de capital e uma identidade própria. esquemas de percepção e apreciação do mundo. cujos interesses são impostos à coletividade. que é o espaço social. observa-se que o objetivo do presente trabalho é entrelaçar conceitos trabalhados por Pierre Bourdieu e Leopoldo Zea que se referem a questões de dominação e relações de poder. O habitus influem nas preferências. 194 . em Maceió-AL. como no caso ilustrado pela ‘QueNrMde Xangô’B 1 O pensamento de Pierre Bourdieu A teoria de Bourdieu possibilita o entendimento dos mecanismos de dominação e a compreensão da lógica das práticas dos sujeitos num ambiente desigual e conflituoso. valores. A função dessa ordem hierárquica é a de situar os sujeitos de acordo com sua ocupação e distinguir as diferenças relativas ao seu capital cultural e econômico. e se traduzem em modos de agir considerados naturais para o grupo que os incorpora. ou seja. Bonnewitz(2003) ressalta a análise de Bourdieu da relação existente entre o habitus e o campo social. atitudes. no qual se estabelecem relações entre indivíduos que possuem diferentes níveis de acesso aos bens econômicos e culturais. segundo a estrutura e acúmulo de capital. o conceito de habitus auxilia no entendimento da sociedade e tem significativa importância na sociologia de Bourdieu. adquiridos através de experiências significativas. Habitus são disposições cognitivas e avaliativas. que caracteriza bem as referidas questões.Sociologia. Para uma melhor compreensão dos processos de dominação. expectativas. comportamentos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . será avaliado um movimento de perseguição religiosa denominada ‘OperMção Xangô’. Trata-se de um instrumento conceitual que auxilia a pensar as relações que se estabelecem entre os condicionantes sociais exteriores e a subjetividade dos indivíduos. Como enfatiza Bonnewitz (2003). Nesse sentido. A hierarquia vertical dos grupos sociais os distingue. Portanto.Vol. que ocorreu em 1912. com a questão da perseguição religiosa. será utilizada a tese de doutorado de Ulisses Rafael que trata do caso. inclinações. portanto. imperceptível. ou seja. pode ser entendida como áreas que compõem a sociedade. Nesse sentido. ambientes determinados onde ocorrem as inúmeras relações constitutivas da estrutura social. que também se consProem em ‘universos simNXlicos’B Os ‘sisPemMs simNXlicos’ atuam como instrumentos de comunicação e conhecimento e asseguram a dominação de uma classe sobre outra. importante se faz analisar o conceito de poder simbólico e a sua manifestação. a violência simbólica.Vol. ou seja. a arte e a língua. Ressalta-se. irreconhecível. como conceituado por Bourdieu(1998): “O poder simNXÕico é umMformMPrMnsformMdM. Essas são relações de força e de luta. MparPir de insPrumenPos de imposição da ÕegiPimMção. construindo-se.reconhecer a violência que elas encerram objetivamente e transformado-Ms Mssim em poder simNXÕico” (1998. como uma mão invisível dentro das relações sociais. definida como a habilidade para conservar ou transformar a realidade social pela formação de suas representações. pB15)B O poder simbólico apresenta-se em “sisPemMs simbXÕicos” que se expressam em estruturas estruturantes (1998) tais como a religião. neles estão inseridos agentes e instituições que produzem e reproduzem os saberes. das outras formas de poder. mMs sim pelas vias simbólicas da comunicação e do conhecimento. transfigurada e legitimada. A adesão aos valores dominantes só é possível pelo fato de a dominação exercer um poder “hipnXPico”. desse modo. travadas entre grupos que ocupam diferentes posições na sociedade. onde são geradas as produções culturais. Nesse sentido: “O cMmpo de produção simbólica é um microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao servirem os seus interesses na luta interna do campo de 195 . 35 . O trabalho de dissimulação e de transfiguração que garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo ignorar. que os campos se constituem em microuniversos.1 O Poder Simbólico A categoria de poder simbólico (1998). 1. pela inculcação de instrumentos cognitivos de construção da realidade que escondem ou iluminam suas arbitrariedades inerentes. “domesPicMndo” os dominados. isto é. assim.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . É um poder que se exerce como oculto. Antropologia e Cultura Jurídicas Em relação à noção de campo. O poder simbólico é aquele que consegue se impor e legitimar significados de forma sutil na sociedade. que não se dá peÕM forçM.Sociologia. um processo de adesão consentida. 2 A violência simbólica A violência simbólica apoia-se nas disposições induzidas pelos processos de dominação. a ação sobre o mundo. que é travada nos conflitos simbólicos cotidianos. Segundo ele. ao contrário. que reconhecem a necessidade desta dominação se colocando em um papel subordinado e passivo. Pierre Bourdieu (1998) usou o conceito de violência simbólica para descrever o processo pelo qual a classe dominante economicamente impõe sua cultura e interesses aos dominados. na concepção de Bourdieu (1998). de modo geral. ignorado como arbitrário” (1998. Antropologia e Cultura Jurídicas produção (e só nesta medida) que os produtores servem aos interesses dos grupos exteriores do campo de produção” (1998. não são questionadas. de confirmar ou de transformar a visão do mundo e. desempenha características parecidas como será explicado no próximo tópico. As representações. que. já que não se percebe como vítima desse processo. Desse modo. quer dizer. A luta de classes fica retratada na teoria de Bourdieu (1998) como uma luta pelo domínio do poder simbólico. p. Por isso. Assim. deste modo. a dominação se expressa na imposição dissimulada de uma cultura concebida como superior. poder quase mágico que permite o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica). ou por um corpo de especialistas que conduz à retirada dos instrumentos de produção simbólica dos membros do grupo. de modo particular. 35 . só se exerce se for reconhecido.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . As instituições. portanto mundo. é entendido como efeitos simbólicos da dominação aceita como legítima e natural. 196 . considera a situação inevitável. p. de fazer ver e fazer crer. ao contrário. Esse mecanismo. 14). constituem-se em agentes de manutenção e reprodução da violência simbólica.Sociologia. os “sisPemMs simNXlicos” são produzidos e MpropriMdos peÕo prXprio grupo. o poder simbólico se exerce de forma invisível. o conjunto de opiniões e crenças assimiladas e aceitas pelos grupos aos quais se impõem. ocorre a internalização desses referenciais nos dominados. e a escola. Neste ínterim.Vol. graças ao efeito específico de mobilização. também. 1. “O poder simNXÕico como poder de consPiPuir o dado peÕMenunciMção.são internalizadas e naturalizadas. e o dominado não se opõe a essa indução. 12). naturalizada através da violência simbólica. com a interiorização da cultura dominante.Sociologia. como por exemplo: alimentação. segurança. a escola. torna-se mais difícil de ser percebida ou mesmo categorizada e combatida. Jean Claude Passeron e Bourdieu partem do princípio de que a cultura. Considera a situação natural e inevitável e. 35 . suas consequências são evidentemente desastrosas. pB23). isto é. Antropologia e Cultura Jurídicas Na mesma linha. os quais trazem em si atitudes que podem ser consideradas como violentas à dignidade do ser humano. A violência simbólica se expressa na imposição dissimulada. concessão ou mesmo incentivo feito pela veiculação de informações através da mídia. reproduzindo-Ms como MÕgo ÕegíPimo e ‘cerPo’. moradia. uma vez que não se assenta numa realidade dada como natural. propriamente simbólica (BOURDIEU. quanto na estrutura que trata da formação política e cultural do sujeito. A sociedade legitima este tipo de violência seja por descaso. aquela que prepara o indivíduo para atuar no contexto social. a mídia. sendo admitida também na educação de certos padrões de comportamentos que devem ser seguidos. Porém. físico. é arbitrário. não respeitando sua liberdade de escolha. biológico ou espiritual. muitas vezes. por não utilizar os meios da violência direta. A violência simbólica. Todo poder de violência simbólica. O sistema simbólico de uma determinada cultura é uma construção social e sua manutenção é fundamental para a perpetuação de uma determinada sociedade. p. todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas. 1975. assim. prescreve-se como mão invisível agindo sobre a sociedade. isto é. mas não detectada com clareza e. A vioÕênciM simNXlicM esPá “infiÕPrMda” em Podos os espaços da sociedadeB Podemos identificá-la tanto nas estruturas básicas do setor econômico e social. acrescenta sua própria força. não estando unidas por nenhumM espécie de reÕMção interna Ú “naPurezM dMs coisMs” ou M umM “nMPurezMOumMna” (BOURGIEU e PASSEROÍ .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ou o sistema simbólico. através da interiorização da cultura por todos os seus membros. 19).. ou seja. procura conformar-se. 197 . podendo ser exercida em diferentes esferas da sociedade: o Estado. Ela é sentida. lazer etc. O dominado não se opõe ao seu opressor. em especial para a formação de uma sociedade justa e igualitária. 1975.Vol. seja física ou armada. educação. A esse respeito comentam: A seleção de significações que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma classe como sistema simbólico é arbitrária na medida em que a estrutura e as funções dessa cultura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal. é a construção e o reflexo de um longo processo de “diferencialismo”.Sociologia. sendo colocados em situação de subordinação e submissão. minimizado pelas relações de poder. O discurso de “(BBB) celebrar a diversidade muitas vezes significa apenas a exorcização da diferença. de se colocar em seu lugar ou nM sua prXpriM “peÕe”. No entanto. fascinante ou curioso . O Outro é construído como diferente. algumas marcas que podemos chamar de diferentes e. nacionalidade. Antropologia e Cultura Jurídicas 2 A questão do ‘outro’ A discussão soNre M“diferençM”. ignorando ou negligenciando outras espécies de diferença. causa muitas reflexões e.Vol. Desse modo. sexualidade. porém não uma utopia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . transformado. para Skliar (2006). aquele que se diferencia. aparência física. positivas ou negativas. somos convocados a assumir “posições” que são impostas pelo sistema simbólico dominante e pelos mecanismos de poder do qual fizemos parte.mas ainda visto e avaliado em função de um ponto de visPMdominanPe” (BURBULES. há a necessidade de se discutir sobre a diversidade e as singularidades existentes dentro da sociedade. são simplesmente diferenças. boas ou más. se está negando também a sua infinitude. Na visão de Burbules (2003). subordinado. etnia. religiosidade. Geralmente o Outro. Pois.163). devendo renunciar a sua própria identidade para se adequar ao padrão dominante. A capacidade de conviver com o diferente. de reconhecê-lo como Outro. se estabeleceu um processo de “diferencialismo” “(BBB) que consisPe em sepMrMr. p. é aquele que frequentemente foi “mMnoNrMdo” peÕo poder da idenPidMde OegemônicM. reduzindo-o a um mero objeto do mundo. apenas acomoda as características da diferença dadas pelos modelos dominantes. Nem como MquesPão reÕMPiQMMo Outro. de uma atitude de separação e de diminuição de algumas características. do Outro. constrói alteridade (ZEA. Estas diferenças. como algo exótico. ou seja. em geral. ao 198 . fixado. em geral. classe. em distinguir. não são melhores ou piores. O diferente. como sujeitos. Construir alteridade numa sociedade onde os indivíduos têm sido continuamente condicionados a se manterem fixados na valorização das diferenças individuais – gênero. 2005). algumas marcas. é essencial questionar os padrões que orientam as ações. inteligência – representa um grande desafio. de algumas identidades em relação há grande variedade de diferenças. uma posição pluralista de tolerância à diversidade. 2003. 35 . superiores ou inferiores. dentro da diferença. as implicações da sua própria tarefa (ZEA. mas já com conhecimento de causa.Sociologia. importante se faz compreender através do conceito de tomada de consciência histórica. tanto o já realizado como o que está em processo de realização. o problema não está nas diferenças. 35 . segregação. subalterna” (Skliar. isto é. todo ser humano. demonstrando que cada um possui uma idenPidade. através da obra de Marx e Engels. Õhes fMz semeÕOM nPes” (2005. para ver a floresta inteira deveriam conhecer cada árvore. realizam. cada um desses homens. Assim. a dicotomia das relações sociais e a sua hierarquização. p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . trabalhado por Zea (2005). o homem concreto em relação inevitável com outros indivíduos. preconceito. indiQidualidade e personaÕidMdeB“GiversidMde que Õonge de fMzer dos Oomens indiQíduos mMis ou menos Oomens. ao analisar a obra de Marx e Engels. Trata-se da tomada de consciência de uma grande tarefa que os homens. mas sim em como produzimos. o ser humano compreende as realizações humanas. sempre a partir de uma conotação pejorativa. atribuindo significado a um fluxo sobre o qual não se tem controle. cotidianamente. Por isso. compreendendo o passado e o presente.55).1 A tomada de consciência histórica De acordo com Zea (2005). negativa. p. o ser humano só poderia ver as árvores concretas e. Assim: 199 . Antropologia e Cultura Jurídicas fazer isso. 2. Desse modo. 2005. A tomada de consciência evidencia sua própria origem: o indivíduo. p. não basta apenas tolerar: é preciso questionar esta produção que gera discriminação. 2006.49). ou povo se assemelham exatamente pelas características que os diferenciam.48). 74). realizaram e continuarão realizando. Leopoldo Zea (2005) analisa a metáfora elaborada por Marx e Engels para compreender o processo de tomada de consciência histórica: ‘a relação que a floresta mantém com as árvores que a compõem’ (2005. O sistema seria a expressão da tomada de consciência de que trata Marx. como surge esta diferenciação e a partir disso. violência e morte. sabendo. p. De acordo com Leopoldo Zea (2005). a tomada de consciência histórica é a compreensão do ser humano como individuo entrelaçado ao meio social. Os filósofos gregos entendiam que somente Deus poderia captar a totalidade da floresta e. O ser humano concreto que toma consciência do sentido que adquirem as múltiplas ações dos múltiplos humanos que forma a humanidade compreende a sua realidade e a do contexto social que vivencia.Vol. e a partir disso. os diferentes. Sociologia.. construíram e organizaram a floresta(sociedade) como elas acreditavam ser verdadeiro. por isso.49). Dessa forma. mas sempre na condição que não sejam esquecidas as árvores que formam a floresta” (ZEA. classificando como ‘ciQilizMdo’C‘Qerdadeiro’. qualquer expressão verbal da mesma. Desse modo. há quem não só esquece como também sacrificam as árvores em favor de um suposto benefício da floresta. sem sacrificar nenhuma árvore. o que não conQerge com o ‘diPMdo’ por essas árvores. ou melhor.Vol. e conciliando as vontades na realização de metas comuns. a floresta é ordenada e concebida de acordo com sua própria visão. 2. nenhuma identidade.) A tomada de consciência é a forma como o homem concreto trata de captar a floresta inteira da qual ele mesmo é parte. A consciência dita por Marx e Engels deve ser de que sem árvores não existe floresta. Antropologia e Cultura Jurídicas “(. Qualquer visão que não seja a dele será falsa e. ainda. o outro é visto como algo ruim. respeitando o que é diferente. acredita que tomada de consciência realizada por ele é a única e exclusiva possibilidade de compreensão. sendo inferiorizado. no sentido original. deve ser considerado ‘barbárie’. o problema reside no fato de que o ser humano ao tomar consciência se esquece das outras árvores da floresta e. a tomada de consciência histórica realizou-se de forma equivocada. que cada árvore tem sua importância para a existência da floresta. No entanto.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . o que implica. o bárbaro. por sua vez. ao longo da história.2 Dicotomia: civilização versus barbárie O estabelecimento da dicotomia perdura ao longo da história. significa 200 . E. o outro. que os interesses da floresta sejam seus próprios interesses. E. cada ser humano é essencial para a sociedade. sendo que tudo que não se encaixasse em sua percepção de mundo deveria ser marginalizado e subjulgado. esquecendo que ele é árvore e. as relações são dicotomizadas. passa a se considerar floresta. 2005). um conjunto de árvores se viram como floresta e. assim. O sistema que origina esta tomada de consciência é a cristalização do esforço em conhecer a floresta como totalidade. bárbara (ZEA.. A tomada de consciência deveria implicar que todas as árvores devessem ser consideradas. Todavia. 2005. p. assim como. o que está de Mcordo com Ms árQores ‘donMs’ da fÕoresPMe. 35 . ou seja. por isso. sendo apresentado por Zea (2005) o seu percurso. infelizmente. então. Desse modo. o dono do logos é a única expressão possível da ordem.30).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . entes que devem ser submetidos. compreendem que ‘os outros’. 2005. aquilo que não se podia falar. à margem. 35 . pode ser marginalizado na floresta. todos os homens que acreditam em Cristo e na sua promessa de vida santa.59). p. isto é. p. qualquer outra expressão resulta bárbara. então.52). marginalizados. Assim. O diálogo com o outro é impossível. ou ainda. com o Império Romano. bárbaros eram aqueles alheios ao logos. ‘É Deus mesmo. Aqueles que não estivessem sob a proteção da lei seriam considerados os marginalizados. isto é. era então aquele que não tinha acesso à verdade e a palavra capaz de expressá-la. 51) O logos tem o significado de razão e de palavra (ZEA.bárbaro. Então. a partir dessas duas concepções de civilizado e bárbaro. suposto conhecedor da floresta inteira. Surge. o termo bárbaro passa a designar povos exteriores ao campo de vigência do Direito (ZEA. 2005. E. desse modo. de centro e periferia. nesse sentido. pode ser visto como paradigma que estabelece o que está fora. balbuciante. Para os gregos. que é considerado como simples doxa/opinião (ZEA. Com o Cristianismo. Contudo. por isso. por não conhecerem/ acreditarem no novo logos. A Palavra é a possibilidade de expressar este conhecimento a outros (capacidade de comunicar ao outro o conhecido e definido). se inicia a história da divisão das árvores da floresta. Antropologia e Cultura Jurídicas aquele que não tem acesso ao logos. o termo bárbaro passa a designar os povos não cristãos.Sociologia. aquele que não possui a verdade. surgem à dicotomia civilização/ barbárie como signo de poder e dependência. o civilizado é aquele que detêm a verdade. considerado por ele mesmo a floresta inteira e. fora do logos só existia o nada. os povos dominantes e os povos destinados a serem dominados por serem bárbaros. ao longo da história. ou seja. e também. parâmetro para poder subjulgar as demais árvores. portanto. por não serem cópias de seus dominadores (ZEA. por isso. todos os não cristãos podem serem subjulgados. encarnado em Cristo. Contudo. p. o novo logos. O logos.Vol. Portanto. 2005. A razão esclarece e define o que se conhece (precisar o que se conhece a partir do conhecido). p.não deve nem pode discutir o expresso pelo logos. 2005. Assim. são os mal falantes e. quem dá unidade e sentido a esta ordem 201 . o outro. sendo considerado balbuciante por ser diferenPe do que é esPMNeÕecido peÕM “árQore dominanPe”. a barbárie cristianizada. Nesse sentido. 75). Desse modo. com os iberos e os russos. os nãos cristãos. adjetivando de forma negativa a diversidade. sendo novo centro de poder e de civilização que abarcará a mesma Europa. apesar de mudar os paradigmas. apesar de separados do continente europeu por obstáculos naturais. os quais devem ser explorados. Entes. E. como ilustra o movimenPo de perseguição reÕigiosM. condenados à exploração ou à periferia. Na sequência. como Ásia e África. para realizar com seus esforços e suas necessidades peculiares. Mas fora desta ordem estarão os pagãos. ‘Xangô rezado baixo’: um estudo das perseguições aos terreiros de Alagoas em 1912 foi defendida por Ulisses Neves Rafael. há uma dificuldade de lidar com o diferente. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais 202 . converte sua suposta barbárie em expressão de civilização..) entes cuja humanidade está em suspeição.53). Então. Entes com os quais os homens e os povos por excelência têm de evitar de se misturar. consequentemente. Ao invés de ter sido feita a tomada de consciência histórica compreendida por Marx e Engels. 3 A ‘Operação Xangô’: a narrativa de Ulisses Rafael A tese de doutorado.2005. também. uma nova dicotomia.Vol. do que em fazer parte da Europa. sempre houve o estabelecimento de uma dicotomia. Tratam os bárbaros. ‘OperMção Xangô’. 2005. mesmo com suas diferenças. a relação de dicotomia se perpetua nas relações sociais e. pode ser percebida na questão religiosa. com o outro. p. mantém a dicotomia civilização/ barbárie como expressão de suas relações com os povos situados ao oriente do seu continente. a Europa quando forma um corpo de nações. em que os seres humanos se unem. não no sentido de incorporar à civilização. como é o caso da relação entre o catolicismo e as religiões afro-brasileiras. Portanto. os seres humanos decidiram se dividir e estabelecer noções de hierarquia. os bárbaros novos: forma-se. senão lenha para cortar em suposto benefício da floresta (. no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia.. Já os britânicos. 35 .Sociologia. que se aliará à América do Norte. ao longo da história.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas nova do mundo’ (ZEA. mas no sentido de selvagens. então. Nesse sentido: “Árvores que Óá não fMzem parte da floresta. à NMrNárie ou ÚseÕQMgeriMpermMnenPe” (ZEA. estavam mais determinados a criar um novo império. p. 6 Produzido com pesquisadores do INCT/InEAC . perseguiram-se mães de santo. Antropologia e Cultura Jurídicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. como ficou PMmNém conhecido o ‘quebra-quebra’. liderado por integrantes da Liga dos Republicanos Combatentes. nMmMnifesPMção do cenPenário da ‘OperMção Xangô’. sob a orientação de Peter Henry Fry. na cidade de Maceió (estado de Alagoas). "Em 12 de julho de 1912. seu uso deve esPMr cercMdo de precauções. o episódio do Quebra de Xangô teve grande importância para apressar a renúncia de Euclides Malta. como nos alerta Rafael (2004) citando Beatriz Góis Dantas(1988). que já administrava Alagoas por 12 anos seguidos e. ao som de palmas.Sociologia. religiosidade de matriz africana. Euclides Malta. associação civil de caráter miliciano. M questão da perseguição aos cultos de matriz africana 5. dando razão para que na sequência dessa destruição surgisse uma modalidade exclusiva de culto: o “xMngô rezMdo NMixo” 4. devido a propalada carga ideológica a ele associada. PMmNém. A “Operação XMngô”. 35 . 4 O culto seria feito sem o som dos atabaques. Além do que. continuamos utilizando. que tinha ligação com os terreiros e havia recebido até o título de papa do xangô alagoano. completa o vice-presidente do IHGAL. o Soba. figura de relevo nos quadros do Exército e primo-irmão de Hermes da Fonseca. como ela. não deixa de ser atual. O interessante é que Euclides era um fervoroso católico". No entanto. juntamente com o vice José Fernandes de Barros Lima". como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Sociologia e Antropologia. conta o historiador. De acordo com Gomes. médico e vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL). marginalizados e perseguidos. que ocorreu em 1°de fevereiro de 1912.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . o que implicou na destruição das principais casas de culto da capital e de municípios circunvizinhos. no ano de 2004. na falta de um outro mais satisfatório. O movimento tinha um forte viés político com o objetivo de afastar do poder o então governador do Estado. pais de santo e seguidores do culto. A etnografia trabalha com um dos episódios mais violentos de que se tem notícia na história dos cultos afro-brasileiros2. conforme pode se QerificMr MPrMQés dos reÕMtos MpresenPMdos no documenPário ‘F onfliPos de fé’6 e. 5 O ensMio utiÕizMrá diQersos Permos para designar os ‘XMngôs’ que forMm QíPimMs do ‘QueNrM-queNrM’. Fernando Gomes. mas que. que foram temporariamente ‘calados’. é empossado governador. 3 "Foi uma perseguição ao governador Euclides Malta. religiões afro-brasileiras. pois os cultos afro-brasileiros continuam sendo estigmatizados. em que o 2 O Permo “Afro-NrMsiÕeiro” que Mqui uPiÕizMmos. considerava que existia um estreito relacionamento3 entre ele e as casas de culto afro-brasileiras. apenas. que aconteceu em 13 de março de 1912. observa-se que apesMr da ‘OperMção Xangô’ Per ocorrido em 1912. Clodoaldo Fonseca.Vol.Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos e do NUFEP – Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da pela 203 . como: seguidores dos cultos afro-brasileiros. Agência Alagoas. Lenilda.1 Identificando a violência simbólica O interesse de Rafael (2004) pelo episódio advém da época do seu mestrado. 10 “FMndomNÕé em siÕencio”. foram os principais jornais em circulação no estado entre os anos 1900 e 1912. Disponível em: maracatus-sao-temas-do-izp-na-folia. Ascom IZP. Quebra de Xangô: 100 anos de intolerância no Brasil.Vol.edu. Correio de Alagoas. Jornal de Debates.2012. diálogos com antropólogos que apresentam como a religiosidade de matriz africana sofreu e sofre discriminação no país. Acesso em: 29.08.br/noticias/quebra-de-xango-e01/02/2012. quase trinta Mnos depois da fMPídicM“Operação XMngô”B 204 . 1974. O combatente. Pendo dedicMdo Mo MssunPo. Extra Globo. Universidade Federal Fluminense(UFF). http://www. Acesso em :29. Desse modo.Quebra de Xangô e maracatus são temas do IZP na Folia. portanto. 8 DUARTE.agenciaalagoas.Sociologia. “UmMnoQMSeiPMAfro-brasileira – O Xangô rezado-NMixo”. Catalogo Ilustrado da Coleção Perseverança8. maior responsável pelos ataques contra Euclides Malta. oficialmente. a reconstituição desse episódio precisou ser feita através dos únicos documentos disponíveis. período que marca a trajetória política de Euclides Malta como Governador.gov. intiPulMdo. Acesso em:29. 35 .Alagoas.08. A principal fonte para construção do fato foram os jornais da época9. Correio de Maceió. em que encontrou um documento organizado por Abelardo Duarte. Antropologia e Cultura Jurídicas governador de Alagoas declarou. são vítimas de perseguição. 3. 9 O Jornal A Tribuna órgão oficial do Partido Republicano de Alagoas. mas retrata casos de vitimização de intolerância religiosa sofrido em vários segmentos e.al. Maceió. Rosiane. os escritos de Gonçalves Fernandes10 que PesPemunhou M‘noQMmodalidade’ de cuÕPo ‘ O Xangô-rezado-NMixo’11.com/noticias/religiao-e-fe/comissao-de-combate-aintolerancia-religiosa/quebra-de-xango-100-anos-de-intolerancia-no-brasil-3807384.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que. Na falta de processos judiciais ou de inquéritos policiais. 01/02/2012 . pois ele observou que não havia quase nenhum material a respeito. o fato chamou sua atenção. periódico da oposição.2012.O documentário não será objeto do presente estudo. Abelardo. UFAL.globo.10h10m Disponível em: http://www.html. Maceió: DAC/SENEC.08. Catalogo ilustrado da Coleção Perseverança. ainda. apesar de existir uma tradição antropológica em Alagoas e o fato ter repercutido nos rituais das religiões afro-brasileiras da região.2012. 7 RODRIGUES. LUDA. também.br/noticias/2012/01/o-quebra-do-xangopesquisadores-da-ufal-avaliam-os-reflexos-deste-episodio-de-intolerancia-religiosa. pedido de perdão as comunidades de terreiros de todo o estado7. Podo o primeiro capítulo do seu livro O Sincretismo Religioso no Brasil. Jornal de Alagoas. o qual narrava o ‘queNrM-queNrMde Xangô’BAlém do que. Disponível em: http://extra. Rio de Janeiro.ufal. Quebra do Xangô: pesquisadores avaliam a intolerância religiosa. onde trata da sua incursão a algumas casas de culto de Maceió em junho de 1939.31/01/12. governador do estado se mantém no poder durante doze anos consecutivos. em que Euclides Malta. poderes. e não mais ao som dos atabaques. Neste sentido. ela os institui. 12 Foi entrevistada Laura Maria da Silva. a ideologia da sociedade que se encontrava no momento da pesquisa e a da época do fato (CARDOSO DE OLIVEIRA. como a dimensão política que envolve o ‘quebra’ 13 . Antropologia e Cultura Jurídicas e. as ironias e sátiras. 1997.Sociologia. p. às visões de mundo. também. no bairro do Jacintinho. os cultos afro-brasileiros passaram a ser em silêncio. 2006). ela não apenas veicula. presenciou que depois da perseguição. No entanto.6). analisar a linguagem empregada: perceber o racismo. frequenPemenPe MssociMdas MmoQimenPos sociMis” (2009. 35 . a maioria das entrevistas. os entrevistados se mostraram reticentes e tinham cuidado com as palavras. sendo perceptível a pobreza da narrativa (2004. Luís Roberto Cardoso de Oliveira ressalta no trabalho A Dimensão Simbólica dos Direitos e a Análise de Conflitos. “A linguagem não apenas expressa relações. Esta articulação entre direito e política se expressa nitidamente também nas pesquisas sobre direitos de cidadania. relatou o modo como as cerimônias religiosas de cunho afro-brasileiro realizavam-se na casa dos seus parentes. p. ou sobre processos que envolvem demandas por direitos de todo tipo. Desse modo. periferia de Maceió.Vol. os diminutivos e o etnocentrismo que ela carrega e produz. Faz a seguinte referência: “A MnPropoÕogiMoÕOMpara o direiPo ou para MpoÕíPicMcomo cMmpos MNerPos. ainda. mais conhecida na cidade como Mãe Netinha. a colheita de depoimentos dos pais e mães de santo mais antigos de Maceió 12. Observa-se que é essencialmente importante para iniciar/continuar o processo de resistência. instrumento simbólico fundamental para os rituais. 13 A etnografia se associa a Antropologia Política. tão ou mais importante do que analisar o que é dito sobre os sujeitos. lugares. apenas ao som de palmas.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . aquilo que é silenciado. gerando o desagrado da política local. conforme o desenvolvimento da pesquisa e a interlocução com os atores no campo. no período posterior à perseguição. pois o episódio do Quebra tem sua constituição a partir de disputas políticas entre as elites locais e. Rafael (2004) ao realizar a etnografia teve que observar as representações incutidas no fato. 65). 205 . sem esquecer-se de observar as representações simbólicas que permearam a ‘OperMção Xangô’. mas produz e pretende fixar diferençMs” (LOURO. 41). sujeiPos M redefinições múltiplas. As ausências da fala 11 Gonçalves Fernandes visitou os terreiros da capital alagoana em junho de 1939 e. E. parece ser também perceber o não-dito. que se desdobra em conflitos e inimizades para o alcance de dominação do poder. de 93 anos e mãe de santo do Centro Africano Nossa Senhora do Carmo. procurando realçar a dimensão política dos conflitos. Nota-se que o fato permeia-se por um complexo processo político. os preconceitos. p. o intercâmbio da Antropologia do Direito com a Antropologia da Política. 2004. exatamente por isso. No caso de Alagoas. a memória da perseguição sofrida nunca é acionada sem a presença de um estímulo. Antropologia e Cultura Jurídicas podem funcionar como uma garMnPiMda “normM”. um silêncio/ esquecimento sobre a ‘OperMção Xangô’ e. indefinida.1. meu Deus. vem destituída dos requintes que a situação exige. portanto. Os informantes sabem da existência do evento. imprecisa e vaga. Meu Deus o que foi aquilo? Identifica-se. agora a nação de origem que ela fundou foi Nagô. Narradora: 1912. eu conheço a tia Celina dali. como a indagação sobre o episódio. sendo símbolo de resistência por parte dos seguidores do culto. na seguinte passagem: Repórter: A senhora já ouviu falar do Quebra de Xangô? Elza (Casa da Pomba Gira): Quebra de Xangô? Do Quebra? Não. 206 .Vol.p. a lembrança só desponta quando provocada.44). que deveria ser lembrado com toda força. Quando isso acontece. 35 . pode-se dizer que o silêncio caracteriza a violência simbólica sofrida pelos praticantes do culto. apenas vagamente referido(RAFAEL. 3. elaborado por Siloé Amorim. conforme apresentado no documentário 1912. porque foi ela que fundou o candomblé nesse estado.O Quebra de Xangô. mas não tenho conhecimento dele não. as vagas referências ao acontecido assumem a forma de um relato remoto e sem a qualidade e o crédito que o investigador espera encontrar. Pai Maciel (Federação dos Cultos Afro. tanto que Ms ‘noQMs’ gerações não têm conhecimento do fato.1 O silêncio como negação de ‘verdades’ O silêncio é uma cMrMcPerísPicMmMrcMnPe no movimenPo da “OperMção Xangô”. então. Tem-se uma história genérica e. pois naturalizam um movimento de perseguição religiosa.Sociologia. Repórter: Já ouviu falar da Tia Marcelina? Ângela Brandão (Casa dos Pretos Velhos): Quem? Repórter: Tia Marcelina Ângela Brandão (Casa dos Pretos Velhos): Não. mas o descaso que revelam nos comentários a seu respeito consideram como uma condição de sobrepujamento e. Assim sendo. Repórter: E o senhor já ouviu falar do Quebra dos terreiros em 1912? Luiz Brandão (Casa dos Orixás): Rapaz eu já ouvi falar.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Umbandistas de Alagoas): Tia Marcelina é verdade que ela foi a Yalorixá mais famosa do estado de Alagoas. no qual se tenta evitar algo que não se deva conhecer. e quando narrada. § 3º .A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade. não há nenhum processo judicial ou inquérito policial sobre o fato. ao construir no imaginário social. mas também simbólica. observadas as disposições do direito comum. seja ela coletiva ou individual. a historiografia oficial.Vol. § 9º . (. compreendendo como se a violência física contra os seguidores do culto não fosse vista como crime.Todos são iguais perante a lei. Além. apesar do fato ter acontecido em 1912. 2004).A todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas. Desse modo.) § 8º . à segurança individual e à propriedade. é claro. não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública. mediante petição. Por isso. denunciar abusos das autoridades e promover a responsabilidade de culpMdos”B 207 . A República não admite privilégios de nascimento. o exercício do poder simbólico. tende a estender o espaço do empobrecimento ao espaço do esquecimento (RAFAEL. dos 14 “Art 72 . dita estamental. Ou seja.. observa-se. aos Poderes Públicos. dos subterfúgios. a sociedade se esquece do fato.Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto. bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho. a elite incomodada com os cultos afro-brasileiros querem destruí-los sob uma violência física. neste episódio.Sociologia.. muitas vezes esquecidos ou ignorados. Dessa forma. que determinava liberdade de culto e instituía um Estado laico. Antropologia e Cultura Jurídicas Ademais. de ressaltar a importância de rastros significativos que uma pessoa. O “esquecimenPo” é uma categoria que funciona como uma elaboração da técnica da ‘desmemória’ que alcançou toda a consciência social de uma região. Principalmente quando os rastros. 35 . um grupo ou uma nação vai deixando em suas experiências de vida e que se tornam pontos de referência para qualquer estudo histórico. que a respectiva violência é MÕgo nMPurMÕparM MqueÕes que não seguem MreÕigião ‘correPM’B Assim. a (re) construção do episódio é um processo que demanda um trabalho árduo de interpretação dos mundos existentes e dos submundos. sob a égide da Constituição de 189114. por compreendê-lo sem importância.É permitido a quem quer que seja representar. revelam interpretações distintas da oficial ou mesmo da que se acostuma ouvir. associando-se para esse fim e adquirindo bens. § 2º . observa-se a importância dos ditos e dos não-ditos para a construção de uma memória.Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. nos termos seguintes: § 1º .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias. 1. tinha um quartinho e tinha essas estatuetas. Antropologia e Cultura Jurídicas esquecimentos. em que o esquecimento e a desmemoria da Operação Xangô simboliza a manutenção da ordem dominante. tinha um acarajé. Que sempre tinha São Lázaro. Então. muito bem forrada com uma toalha de linho.. Então era uma casa comum. Nossa Senhora da Conceição e o Senhor do Bomfim. compreendendo a perseguição não como crime. o silêncio pode ser considerado resultado desse processo de produção de crenças. Santa Bárbara. Nossa Senhora da Conceição e. Então aquela toalha ali comprida. muito bem engomada.41). de 93 anos e mãe de santo do Centro Africano Nossa Senhora do Carmo: Você chegava numa casa que você sabia que lá. mas como uma medida necessária para manter as crenças e padrões do discurso dominante. a relação com o seu universo místico está cercada de embaraços.Sociologia. Quando estes padrões transformam. mais conhecida na cidade como Mãe Netinha. temos esse salão. haja vista a identificação primordial com a Igreja Católica. que erMo nome reMÕ mente esse. então ali tinha.. O que eu tô vendo aqui é o Senhor São Jorge. né?. 208 . geralmente tinha São Jorge.SX PinOMsanto da IgreÓMFMPXÕ icMBEntão diziam: “Disseram que Mqui Pinha umMmacumba”.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .. das angústias e dos prazeres. colocava um búzio. Então tinha aquelas imagens de São Jorge.. Então num quartinho ali. p.2 ‘Xangô rezado baixo’: a mudança nos rituais Observam-se. não é peji como nós temos hoje esse peji. Então se alguém chegasse ali não percebiMnada. também. outros assim. uma mesa de madeira. dizemos que esta violência é não somente simbólica como também institucional. pois para os integrantes dos cultos afrobrasileiros. um acaçá. “mas eu não to vendo nada.). das mentiras. invadem não somente a consciência coletiva de uma sociedade. Por isso. era de palmas (2004. através da associação com santos e símbolos católicos. então tinha. peji. conforme se verifica na entrevista realizada por Rafael (2004) com Laura Maria da Silva.Vol. dos silêncios. Então geralmente tinha pipoca. que induzem o individuo a se posicionar no espaço social. evidências de violência simbólica na transformação dos rituais da religiosidade afro-brasileira. como o Senhor do Bomfim (. e embaixo é que tinha as oferendas. seguindo critérios e padrões do discurso dominante. as estatuas. das meio-verdades. 35 . uma carta. 3. muito bem forrada. E os toques não eram de atabaque.) Sempre tinha aquela mesa. Dizemos que esta violência é simbólica por que se funda na fabricação de crenças no processo de socialização. São Jorge. um negócio assim. Santa Bárbara. mas se legitima a partir dos aparatos legais de repressão. (.se em regras de conduta social. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Mssim denominado por dispensMr o uso de PMmNores e zabumbas. eram agora realizados como uma atividade doméstica qualquer. afirmar-se na sua diferença (NOVAES. Os sacrifícios. Não havia mais também. semelhante ao modo como qualquer dona de casa preparava uma galinha caipira a ser consumida nos dias de domingo. que buscam. o caráter e a qualidade da sua vida. como narrado na etnografia: Esses cultos realizavam-se sem música. tendo a função de comunicação com as divindades.o quadro que fazem do que são as coisas na 209 . nMformM dos rituais e dos cultos afro-brasileiros de Alagoas. nota-se na narrativa apresentada que a imitação (. p. pois são elementos que constituem o sagrado e. Dessa forma.. seu estilo e disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo. os rituais também se modificaram. Entretanto.queNrM’ resuÕPou em uma nova modalidade de culto mais discreto. já que em vez da imagem de Exu. PMmNém.. a ausência dos atabaques rompe com o sistema simbólico do culto. 1993. que insistiram em permanecer no local mantendo suas atividades religiosas. sem danças. Como Geertz apresenta: (. pois devido o movimento de perseguição. a qual se convencionou chamar de “Xangô rezMdo NMixo”. numa sala de visitas acima de qualquer suspeita.39). 35 . que continuaram a ser cultuados pelos poucos remanescentes das antigas casas. Diante disso.) do modelo dominador. em grande parte. 2004. o ‘queNrM. sem toadas. embora mantidos como etapa fundamental na abertura da função. para qualquer grupo minoritário. Nesse sentido. é utilizado em quase todos os rituais. sem a presença dos objetos litúrgicos que sempre foram a marca desse tipo de cerimônia. tudo se passando como uma novena comedida. a possessão. como se tanto crentes como orixás tivessem vergonha de ainda precisarem se cruzar em situação tão vexatória (RAFAEL. haja vista que os atabaques possuem importante representatividade nas religiões afrobrasileiras.. não foi só isso que mudou nos cultos. A mediunidade aparente foi suprimida em favor de um sentimento contido que dispensava manifestação. Antropologia e Cultura Jurídicas Desse modo.o tom. Restaram as orações sussurradas. verifica-se que a ‘OperMção Xangô’ repercutiu. parece ser um passo importante para o todo um conjunto de sociedades ou grupos dentro de uma sociedade específica.Sociologia. toda a simbologia em que se baseavam.. um prato de sopa qualquer é que recebia o líquido derramado. reservado e sem a complexidade de outrora. contraditoriamente.) os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo.Vol. acompanhadas de palmas discretas. perdendo.70). sobre a qual era despejado o sangue do animal morto. p. as manifestações populares integradas por negros passaram a ser vistas com certa desconfiança. principalmente os ‘xangôs’. Eu era uma pessoa muito feliz. também. o novo governador Silvério Péricles continua a interferir nos terreiros fechando aqueles que não se apresentavam de acordo com o estabelecido pelas elites locais. obtivemos a seguinte resposta: Não.. após a Operação Xangô. Dona Pastora tinha o amparo das mais altas autoridades políticas de Alagoas. no enPMnPo. Perseguiu muito.Sociologia.146). Ele ia na minha casa e muitas vezes ele mandava o empregado dele. Pastora. sustentam cada uma delas com a autoridade emprestada do outro(1989. conforme apresentado na tese de Rafael (2004). Desse modo. proprietária de uma casa de consultas de mesa branca no bairro do Tabuleiro. no mais das vezes) e. p. como pra aquele Dr. se ela já havia sofrido algum tipo de perseguição policial. No entanto. com meu esposo. Pastora. proprietária de uma casa de consultas de mesa branca no bairro do Tabuleiro. Constancia. por isso. Silvestre Péricles. pra eu jantar lá no palácio com a D. Eu trabalhei muito. mais uma vez a violência simbólica. na sua própria identidade. de incutir no imMginário desse grupo MreÕigião ‘correPM’ que deveriMm seguir parM que sejam aceitos socialmente. me lembro como hoje. na entrevista da D. Nota-se.) Os símbolos religiosos formulam uma congruência básica entre um estilo de vida particular e uma metafísica especifica (implícita.p. se diziam católicos.. graças a Deus e ainda hoje sou. Maria PasPora”(2004.Vol. E. dizia em voz alPM que eÕe erM Podo nerQoso: “M únicM pessoa que QMi ficar PrMNM Õhando aqui dentro de Maceió e em todo o Estado de alagoas é a D. muitos só continuavam no cuÕPo por medo dos ‘orixás’ e. 35 . para os seguidores do culto a mudança nos rituais era algo necessário e não conseguiam notar o ato violador da medida. Seu Bernardo. Nunca.Ele dizia mesmo. que narra o seguinte acontecimento: Nas entrevistas realizadas durante a realização dessa pesquisa. o que reflete também. Quando indagamos a D.. ir me buscar na minha casa. graças a Deus não. no sistema de crença dos seguidores e. entre as quais. mãe dele. então. Antropologia e Cultura Jurídicas sua simples atualidade.67). Eu sou uma pessoa que graças a Deus eu trabalhava até pros Governador. tivemos a oportunidade de confirmar a continuidade em Maceió do trânsito entre a política e esse ramo marginalizado da religião.O Silvestre Péricles perseguiu muita gente aqui. ainda. cumpriMm suas oNrigações com eÕes. verifica-se que a imposição tácita na mudança dos cultos e dos rituais constitui em uma violação na identidade da religiosidade afro-brasileira do estado de Alagoas. exercendo seu papeÕ..COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ao fazê-lo. A mim graças a Deus. suas ideias mais abrangentes sobre ordem (. o próprio Silvestre Péricles (1951/51) e o ex-governador que o sucedeu 210 . tendo em vista que os símbolos constituíam a identidade do culto. também. pejorativo. E. precisam sair do esquecimento os atos de violência que esses grupos sofreram ao longo de tantos anos de história brasileira e.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . como se constata na fala de D. Assim. como MconPeceu com os ‘xMngozeiros’. como as religiões afro-brasileiras foram vistas como símbolo de MÕgo ‘criminoso’. igualmente merecedor de atenção. 2004. ainda. não sendo merecedoras da tutela estatal e. ou devido ao fato das condições sociais e do senso comum correspondente enfatizar uma visão hierárquica do mundo social. O culto na sua casa se parecia mais com a Igreja Católica do que com o culto afro-brasileiro. 35 . seja devido à falta de educação e à ignorância sobre direitos de cidadania. muito menos. ela contratava o pessoal dos terreiros conhecidos para vir tocar e os pagava por esse serviço (RAFAEL. ressalta-se a importância de mecanismos que construa outra concepção sobre o que significa a religiosidade de matriz africana. ela. Portanto.Sociologia. a fim de que se retire do imaginário social a associação como algo ruim. vangloriava o governador e não se via vítima de violência. Pastora. Arnon de Mello (1951/1956). Trata-se da construção de crenças coletivas a partir do discurso dominante. podendo inviabilizar o seu tratamento como um ser humano respeitável. como a de São João. Além do que. p. possam usufruir dos direitos de cidadania e. do seu respeito. afaste futuras agressões. por exemplo. A seguinte passagem identifica-se com o conceito de violência simbólica de Pierre Bourdieu. Dessa forma. 211 . Nesse sentido. Dessa forma. pois se baseia na fabricação de crenças no processo de socialização. a violência simbólica se apresenta nas repercussões do episódio. os direitos de cidadania não estavam ao alcance de uma parcela significativa da população. pois a D. Pastora acredita que não sofre nenhuma violência e mudar o culto pelas exigências do governador não é nenhuma afronta a sua religiosidade.147). Antropologia e Cultura Jurídicas no executivo. a interferência na identidade de crença de um grupo religioso. para que estes grupos. estimulando a negação de sua dignidade. que deveriMser exPirpado da sociedade. que deve ser destruído.Vol. represenPM o não reconhecimento do valor ou da identidade/substância moral dos indivíduos. respeito e consideração. por ocasião de alguma festa. que induzem o indivíduo a se enxergar e a avaliar o mundo de acordo com critérios e padrões definidos por alguém. porque o culto consistia basicamente em “cMnPMroÕMs e Ms pMÕminhas”BRMrMmenPe essMzeÕMdorMreMÕizMQMPoques em sua cMsMe quando isso acontecia. os próprios seguidores do culto acreditavam nessa construção e buscavam no sincretismo formas para estarem de acordo com os padrões dominantes. identidade e personalidade. ser vista como decorrência da inferioridade natural dos excluídos (CAPUTO apud GUIMARÃES. ainda. também. Por isso.172) O segundo modo de estigmatizar é atribuir como características do outro grupo a anomia( a desorganização social e familiar) e a delinquência( o não cumprimento das leis). p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . o outro não quer ser visto como o outro. por isso. voltem a ser tocados com toda força! 3. Dentro da dicotomia cristãos/ e não cristãos aqueles não adeptos da religião dominante podem ser excluídos. devido a construção elaborada pelo poder simbólico. Desse modo. Nesse sentido. pois aquilo que é diferente. A dificuldade de lidar com a diversidade humana faz com que os seres humanos subjulguem o que é diferente. que tais estigmas são (ou podem ser) verdadeiros. 35 . 2005). ou seja. prestígio social e vantagens materiais. O grupo dominante detém o poder de fazer crer a si e aos próprios marginalizados. são árvores da floresta que podem ser destruídas sem problema algum. pois para serem respeitados devem estar de acordo com o imposto pelo padrão dominante. Antropologia e Cultura Jurídicas sejam reconhecidos com igual respeito e consideração.Vol. cuja humanidade está posta em suspeição (ZEA. quer negar a sua identidade para ser incluído na sociedade. que os atabaques e zabumbas. ou seja. E. pois não são donos do logos. o grupo dominante precisa monopolizar as melhores posições sociais. em termos de poder. não detêm a palavra e nem a razão. violentados. O primeiro modo de estigmatizar é a pobreza. caracterizam a questão do outro retratadas por Zea(2005). então. isso faz dele excluído e. ou quase animais. então. não devem ser respeitados e. Apenas nessa situação. 212 .172). os cultos afro-brasileiros.Sociologia. ao invés de opor resistência aos padrões construídos sob o interesse de um grupo. pois são considerados bárbaros. p. a história do episódio é esquecida e a mudança da ritualística para que fiquem na invisibilidade é vista como natural. a pobreza pode. 2002.2 A questão do o outro: o diferente como ‘ameaça’ A questão do esquecimento da ‘OperMção Xangô’ e a mudança dos cultos. ou não inteiramente pertencentes à ordem social (CAPUTO apud GUIMARÃES. O terceiro é atribuir hábitos deficientes de limpeza e higiene. pela religião católica. pois já está incutido e naturalizado em seu pensamento que ser diferente é ruim. O quarto e último é tratar e ver os dominados como animais. é necessário. não são respeitadas a sua individualidade. 2002. o outro. Para utilizá-la. o barqueiro que no traz a mercancia. que mora na periferia. semi-perdido. na salvaguarda da autonomia do Estado e no combate aos invasores de lar alagoano (.2. Desse modo. o outro precisa ser destruído. ainda mais da religiosidade de matriz africana. Desse modo. Como constata-se na seguinte passagem da tese de Rafael(2004).. para alcançar isso. o operário honesto e diligente. da raça e da cultura. construindo uma identidade social estigmatizada. ao preço das mais cívicas abnegações e ao salário do mais acendiado heroísmo. (. das liberdades e fraquezas populares. A Liga é a união de um punhado de bravos a reagir. na defesa dos poderes constituídos.Sociologia. suburbanos. apostilhão que nos entrega a gazeta. p. o insulto religioso.23). facção paramilitar surgida em Maceió. enfim. como forma de eliminar o estigma.. católico. para não sofrer com a discriminação imagina-se que aquele outro deve ser destruído. para não ser excluído.Vol. engloba o insulto da pobreza.. Antropologia e Cultura Jurídicas Desse modo. pois como é incutido no imaginário social. com os quais estavam profundamente identificados não apenas pelas relações de contiguidade que mantinham. identificados suponham que destruir o outro seria uma saída. já que moravam e frequentavam as mesmas áreas sociais.) A Liga é o plantador descalço e suarento. que pode ser tratada como coisa. pois a melhor identidade é ser branco. a partir disso.1 O outro não querendo ser reconhecido como outro A Liga dos Republicanos Combatentes. que mora no centro. os que trabalham. 2004. 35 . o machinista que conduz a machina. os que produzem. 3. que promoveu destruição nas casas de cultos afro-brasileiros era composta em sua grande maioria por homens de ‘cor’. o que é bom ou ruim. como por uma série de outras condições sócio-culturais semelhantes (RAFAEL.) a liga é o 213 . suburbanos. e descendentes de seguidores ou até seguidores dos cultos afro-brasileiros. em 1911. o motorneiro que dirige o carral. assim. então.. pobres. ninguém quer ser excluído. não sendo consideradas árvores pertencentes à floresta. Os combatentes não queriam ser o outro. importante se faz analisar o motivo pelo qual levaram ao confronto entre este segmento e os integrantes das casas de Xangô. o ideal é que se sigam os padrões estabelecidos pelo grupo dominante e para não serem. no amparo dos direitos. e algo que têm a salvar neste paiz. o carregador que nos transporta a mala. vizinhos de terreiro querem e procuram destruir aqueles que deturpam a sua identidade. conseguiriMsua ‘Mscensão’ sociMÕB Por isso. e. o caixeiro activo e leal.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . aqueles negros. o typographo que nos imprime o livro. o grupo de cor. compreendia as áreas mais desprovidas da cidade. a manutenção das práticas religiosas. O outro não poderia ser visto como humano e.2 Processo de acusação de bruxaria: a concretização da barbárie O grupo dominante que detinha o poder estabelecia qual seria a religião. Assim. inclusive. Observa que essa dicotomia pode ser trazida para a Operação Xangô.217e 218). 35 . sobretudo. 2004. Observa-se. p. e foi 214 . a cultura. que era onde moravam ou circulavam os seguidores dos cultos e onde se situavam alguns dos terreiros da cidade. Para esses caberiam à violência. e que no Brasil traduz uma certa condição social.2. não sendo. enPão. Também o local de residência que. no fato de que. então. tem sua explicação. na imputação de uma competência e eficácia às práticas ali desenvolvidas que necessitavam ser frustradas e. os cultos pararam de ser perseguidos. a coluna vertebral da reacção sobre que há de se assentar-se o magro edifício social. Assim sendo. Antropologia e Cultura Jurídicas baluarte das redenções políticas. entre os membros da Liga e. a interpretação realizada pela Liga soNre os seus vizinhos “xangozeiros”. sobretudo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . nem árvore. pôr parte daqueles acostumados a obedecer. primeiro. não detentores do conhecimento ‘ Qerdadeiro’ e. não fazia parte da floresta. pois quando Euclides Malta estava no poder. denota uma atitude afrontosa e indesejável. que num contexto de dominação e subserviência. depois. o ressentimento contra as casas de Xangô verificado. reveste-se de uma resignação. entre os quais se encontram os traços associados à cor. subjulgado. tudo que estivesse além do paradigma imposto deveria ser rechaçado.Sociologia. 3. afaiado das bençãos somente das alagoas. seriam considerados os bárbaros. a moral e todos os demais padrões que as pessoas deveriam se encaixar. mas que nem sob ameaças os fiéis cogitam abandonar. mas do Brasil unido (RAFAEL.Vol. desenvolvidas muitas vezes a contragosto. não havia problema em serem oprimidos. discriminado. O sentimento de pertença a uma mesma categoria social explica a revolta contra eles e a consequente invasão de suas casas. nos dois casos. então. à exploração. mais próxima das camadas mais baixas da população. entre os combatentes e os integrantes dos xangôs antepunham-se algumas características sociológicas que os aproximavam profundamente. enconPrM-se permeada por ressentimentos. marcado pôr relações sócio-econômicas autoritárias e excludentes. como um alerta a sociedade de que ser diferente é sinônimo de morPe ou desPruição. o diferente. EnPão. ou seÓM. atingindo uma grande parcela da população submetida à sua administração. como. anteriormente reservados aos redutos sagrados dos terreiros.Sociologia. MqueÕes que não erMm MrQores da fÕoresPM esPMQMm ‘atrapMÕOMndo’ o bom desenvolvimento da floresta e. funciona como um valioso corretivo contra impulsos supostamente anti-sociais. Sendo que o infortúnio de estar submetido por tanto tempo às intempéries de um governo oligarca. dando ao lugar um aspecto festivo e alegre. demonstra um desdobramento da violência sofrida por aquelas casas (RAFAEL. a crença na bruxaria em Alagoas. a crença na bruxaria apresenta-se como um sistema básico de explicação para os infortúnios e reflete uma realidade social extremamente marcada por tensões e conflitos. algo de pejorativo. Dessa forma. o que remete a época da Santa Inquisição. semelhante ao de um presépio de natal. segundo a oposição. não esPMr Mdequado Mos padrões ‘ciQilizMdos’. Antropologia e Cultura Jurídicas atribuídos a religiosidade afro-brasileira pela manutenção do governador no poder. por isso. A exposição nos remete a exposição de cabeças de líderes revolucionários na história das revoluções do Brasil.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . quando não se reconhece e respeita a existência do outro.Vol. Desse modo. é um risco para a própria vida ou para aquilo que é valioso para aquele grupo. O que se condena. Assim. o que Zea (2005) chama de autêntica barbárie. cuja principal sala foi transformada em Museu. Em Alagoas. sem que jamais se ponha em cheque sua verossimilitude. destrutivo e ruim. que promovem o infortúnio. em que interesses antagônicos são acentuados pelas acusações de feitiçaria. justifica-se a perseguição dos seguidores dos cultos afro-brasileiros e de suas casas. os cultos afro-brasileiros são acusados de bruxaria. 2004. atraindo um grande número de curiosos que para aquela parte da cidade se dirigiu. no 215 . e por que não dizer no Brasil. é o uso indevido que se faz da magia e dos poderes malignos dos “xMngozeiros”. Exemplo disso é a conservação de alguns objetos de rituais apreendidos durante a invasão aos terreiros e que foram expostos à visitação pública. pois se associa ao culto. ainda mais num contexto político altamente transitório é graças à proteção adquirida nas casas de Xangô da cidade. nesse caso. A decisão de expor publicamente imagens e objetos ritualísticos. A Liga dos Combatentes organizaram o grosso do material que sobreviveu a essa destruição para a exposição na sede da Liga. deveriam ser rechaçados. pois não fazem e nem devem fazer parte da floresta.37). p. 35 . COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas caso, a exposição dos objetos ritualísticos do culto dos Xangôs, que tem um grande valor religioso e sagrado para aquele povo. Contudo, a autêntica barbárie são as acusações de feitiçaria e a exposição dos artefatos religiosos, como compreendido por Zea (2005), que entende como verdadeira barbárie a negação da diversidade existente entre os seres humanos, pois, ao invés de aceitar o que lhe é diferente, discriminam como também hierarquizam pessoas, grupos sociais, crenças, religião e cultura, modelando, inclusive, a própria identidade dos seres humanos. Considerações finais Após a análise da narrativa construída da ‘Operação Xangô’ por Ulisses RMfMeÕ, com os conceitos trabalhados por Pierre Bourdieu e Leopoldo Zea. É preciso, portanto, reconhecer a diversidade, percebendo os significados diferentes que provém dos mais diversos referenciais culturais. Desse modo,segundo Louro (1997), são as práticas comuns e rotineiras que precisam ser o alvo de nossa atenção, de questionMmenPo, de desconfiMnçMB“A PMrefM mais urgente talvez seja exMPMmenPe essM: desconfiMr do que é tomMdo como ‘nMPurMÕ” (1997, p.63). Assim, não NMsPM“ceÕeNrMr Mdiversidade”, toÕerMrBÉ preciso tomar o ponto de vista daqueles sobre os quais se fala, se relaciona, daqueles os quais se costumou chamar de Outro. A instituição da diferença como diferente, é uma construção social ligada ao jogo das relações de poder. Portanto, isso tudo não foi dado, mas produzido; e isso traz consigo a constatação de que as coisas poderiam ter sido feitas de outra forma e de maneiras diversas. Isso permite desestabilizar as divisões e problematizar a conformidade de que tudo seÓM“nMPurMÕ”BEssMs refÕexões MÓudam Ms pessoMs Mse PornMrem mMis conscienPes das diferenças que podem ter sido ocultadas e não verbalizadas. Estas reflexões fornecem condições para que pessoas/grupos oprimidas/os possam entender como se criou a situação desvantajosa em que foram colocadas, e que esta opressão/dominação, constituem também construções histórico-sociais produzidas por outros sujeitos, possíveis, portanto, de serem questionadas e transformadas. Essa 216 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas compreensão pode possibilitar a desnaturalização dos critérios usados para justificar a superioridade de certos indivíduos/grupos em relação a outros. Portanto, para que se veja o Outro como rosto que fala, que se revela, é preciso analisar tudo o que está impregnado pela lógica da exclusão. É preciso quebrar os modelos e os padrões que são impostos sob os ombros de cada sujeito, e que impedem reÕMções de “fMce-a-fMce”, sem menosprezo do Outro. Referências Bibliográficas 1912 O QUEBRA DE XANGÔ. 9 minutos. Direção: Siloé Amorim. Maceió-AL, 2007. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=n3Obri5EnxA. Ascom IZP.Quebra de Xangô e maracatus são temas do IZP na Folia.Agência Alagoas,Alagoas, 01/02/2012. Disponível em: http://www.agenciaalagoas.al.gov.br/noticias/quebra-de-xango-e-maracatus-sao-temasdo-izp-na-folia. Acesso em:29.08.2012. BARBULES, Nicholas C. 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Tradução de Luis Gonzalo Acosta Espejo e Maurício Delamaro. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. WOODWARD, K. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In.: SILVA, T. T. (org.), Identidade e Diferença: Perspectivas dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 1997 219 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas ANÁLISES SOCIOLÓGICAS DAS PROFISSÕES JURÍDICAS E DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO SOCIOLOGICAL ANALYZES OF LEGAL PROFESSIONS AND OF JUDICIALIZATION ON POLITICS IN CONTEMPORARY BRAZIL André Filipe Pereira Reid dos Santos1 Paula Ferraço Fittipaldi2 RESUMO Com base na teoria de Pierre Bourdieu, o presente artigo pretende analisar a expansão do campo jurídico e o aumento da importância das profissões jurídicas na concretização dos direitos a partir da redemocratização do Brasil no ano de 1988. Através do método dialético buscou-se demonstrar que essa expansão do campo jurídico possibilitou o fenômeno da judicialização, que embora impulsione o crescimento de todas as profissões jurídicas favorece de modo particular a magistratura, a qual realiza sua função jurisdicional sempre no sentido de reafirmar e reproduzir o seu habitus, mantendo-se em uma condição privilegiada frente à sociedade e frente à estrutura burocrática. Palavras-chave: Profissões Jurídicas; Judicialização; Campo Jurídico; Magistratura; Expansão do Direito. 1 2 Sociólogo, professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e líder do Grupo de Pesquisa Direito, Sociedade e Cultura. [email protected] Professora dos cursos de direito do Centro Universitário São Camilo e do Instituto de Ensino Superior do Espírito Santo, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Membro do BIOGEPE – Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Direito à Saúde, Políticas Públicas e Bioética. Membro do grupo de Pesquisa Direito, Sociedade e Cultura. Email: [email protected] 220 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas ABSTRACT Based on the theory of Pierre Bourdieu, this article aims to analyze the expansion of the legal field and the increasing importance of the legal profession in achieving the rights from the redemocratization of Brazil in 1988. Through the dialectical method was sought to demonstrate that this expansion of the legal field enabled the phenomenon of judicialization, although that boost the growth of all legal professions, favoring in particular the judiciary, which always performs its judicial function to reaffirm and play your habitus, staying in a privileged position facing the front of the society and bureaucratic structure. Keywords: Legal Professions; Judicialization; Legal Field; Judiciary; Expansion of the right. INTRODUÇÃO A complexidade das relações cotidianas tem enfatizado e reafirmado a presença do direito como um meio, praticamente exclusivo, para concretização das garantias constitucionais e reequilíbrio das relações sociais. O direito como forma oficial de resolução de conflitos, tem delineado um cenário onde as profissões jurídicas se apresentam, cada vez mais, como indispensáveis à concretização da justiça, já que detentoras de um saber especializado (e esotérico). Esse protagonismo do direito nas sociedades contemporâneas cria uma via de mão dupla, em que, por um lado, a expansão do direito impulsiona o crescimento das profissões jurídicas – por serem elas conhecedoras dos instrumentos que envolvem o universo jurídico –, e, por outro lado, o aumento do papel exercido pelas profissões jurídicas reforça o papel do direito na sociedade, ampliando sua esfera de atuação, colocando-o em evidência como indispensável à realização da justiça. Em meio a esse processo, impõem-se as seguintes questões: Em que sentido as profissões jurídicas participam da expansão do direito no Brasil pela via da judicialização da política? A judicialização interessa igualmente a todas as carreiras jurídicas ou algumas teriam mais interesses que outras nesse processo? Para responder essas questões (e levantar outras), faremos reflexões sobre a judicialização a partir, principalmente, da abordagem bourdieusiana 221 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas para análise das profissões jurídicas. Afinal, precisamos compreender como se dá na prática a auto referência (que é também uma auto reverência) do campo jurídico brasileiro, que é parte do habitus das próprias profissões jurídicas brasileiras. 1 CAUSAS E EFEITOS DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NO BRASIL Após os anos de ditadura militar (1964-1985) e a publicação da chamada Constituição Cidadã (1988), que fez a transição entre o autoritarismo de estado e a redemocratização política do Brasil, houve um aumento significativo da “necessidade” das profissões jurídicas numa realidade socialmente injusta. O protagonismo social do campo jurídico na sociedade brasileira tem sido levado adiante hoje em nome do que se convencionou chamar de judicialização da política. O judiciário tem desempenhado uma atuação mais ativa na fiscalização dos demais poderes do estado por meio de suas decisões judiciais. Embora não saibamos se a expansão do campo jurídico brasileiro tem contribuído para a redução das desigualdades e injustiças sociais, é perceptível o aumento anual do número de processos judiciais no Brasil e o maior acúmulo de poder das profissões jurídicas. O fenômeno da judicialização não acontece só no Brasil, mostrando-se presente em muitas democracias modernas. No entanto em países caracterizados como democracias frágeis, principalmente por seus processos históricos de rupturas políticas constantes (por meio de golpes ou revoluções), como os países latino-americanos, a judicialização se faz sentir com muita intensidade, dando ao judiciário um protagonismo político que ainda não experimentara antes. Essa atuação engajada do judiciário, por meio de decisões judiciais carregadas de “inovações”, não deixa de ter um aspecto positivo, já que em países de recente democratização o mesmo judiciário antes era visto como um poder meramente legitimador dos atos de um executivo centralizado(r). O ativismo judicial produz numa sociedade como a brasileira, uma jovem democracia, o sentimento de que o judiciário (e o campo jurídico como um todo) se tornou um defensor dos interesses da sociedade. Para uma sociedade desatendida numa série de direitos fundamentais que (ainda) não se efetivam pela via política tradicional – pela representação e participação política da sociedade –, o judiciário se apresenta como um novo guardião da sociedade, retroalimentando a sensação de hipossuficiência política da sociedade 222 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas brasileira. Quer dizer, com o engajamento do judiciário para “corrigir” antigos (e novos) problemas sociais, efetivando direitos fundamentais por meio de decisões judiciais, a arena política tradicional (partidos políticos, sindicatos, ONGs e associações) se torna mais desacredita, mais esvaziada, e deixa-se de pensar no agir interessado das diferentes carreiras jurídicas que compõem o campo do direito no Brasil. Deixa-se de refletir que a judicialização da política pode interessar ao campo jurídico brasileiro (e às suas distintas profissões), já que reforça seu próprio poder. Ao tentar explicar a judicialização num plano mais teórico, usando suas infindáveis categorizações/classificações, Boaventura de Sousa Santos (1996) associa a expansão do direito nas sociedades contemporâneas à crise do Estado-Providência dos países centrais, que ocorreu a partir de fins da década de 70 devido aos seguintes fatores enunciados por ele: incapacidade financeira do estado para atender às despesas sempre crescentes da previdência estatal; criação de enormes burocracias com elevado nível de desperdício e ineficiência; clientelização e normalização dos cidadãos; revoluções tecnológicas que causaram alterações nos sistemas produtivos e na regulação do trabalho; difusão do modelo neoliberal; proeminência das agências financeiras internacionais (Banco Mundial e FMI) e globalização da economia. Para Santos, a crise do Estado-Providência causou alguns impactos sobre o sistema jurídico, a atividade dos tribunais e o significado sócio-político do poder judicial nos países centrais: 1) sobrejuridificação das práticas sociais; 2) explosão da litigiosidade3; 3) complexificação dos litígios; 4) aumento das desigualdades sociais e enfraquecimento dos movimentos sociais; e 5) crise da representação política (sistema partidário e representação política). Segundo o mesmo autor, enquanto os países centrais enfrentavam a crise do EstadoProvidência, os países periféricos, como o Brasil, passavam por regimes autoritários. Após a redemocratização, estes países foram obrigados a queimar etapas e incluir em suas constituições direitos conquistados pelos países centrais num longo processo histórico. Luiz Werneck Vianna (1999) mostra que a sociedade brasileira, especialmente os estratos sociais mais pobres, vem colocando no Judiciário suas esperanças de verem resolvidos seus conflitos, o que aumenta ainda mais a importância deste poder estatal frente aos outros poderes4. Mas 3 4 Vianna, citando Antoine Garapon, diz que “a explosão do número de processos não é um fenômeno jurídico, mas social”. (1999, p. 25) Bernardo Sorj, ao falar da relação conflituosa entre os três poderes da República, diz que o Poder Judiciário é colocado “no centro do sistema político, em grande parte em confronto com os outros dois poderes, que sofrem uma erosão de legitimidade e transferem para o Judiciário (entre outros através da crescente privatização dos serviços públicos) os conflitos que antes se resolviam na arena política. Essa confrontação 223 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas essa valorização do judiciário é fruto da introdução dos novos direitos constitucionais brasileiros mais que do aparelho burocrático judicial, que continua sendo alvo de críticas por sua morosidade e por denúncias de corrupção interna. Mario Grynszpan (1999), mostra em resultado de pesquisa a baixa legitimidade social do Judiciário brasileiro. Arantes (1994, p.3536) corrobora esta mesma percepção usando para isso uma pesquisa de opinião feita pela Data Folha em março de 1994, em que os resultados apontam que o povo brasileiro não se sente satisfeito com a atuação do judiciário. Tal pesquisa fora realizada com membros das diferentes classes sociais, todos apontando em suas respostas um alto índice de insatisfação com o judiciário brasileiro. Gisele Cittadino afirma que “a expansão do poder judicial é vista como um reforço da lógica democrática”. (2001, p. 2) Criações como os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, proporcionaram “um canal novo de expressão ao processo de democratização social, pela facilitação do acesso à justiça” 5. (VIANNA, 1999, p. 48) Para Vianna, a judicialização das relações sociais no caso brasileiro desempenha o papel democrático de organização social, depois de décadas de autoritarismo, fortalecendo ainda mais o judiciário e as profissões ligadas à justiça. Mas é precisamente isso que propalam os próprios profissionais do direito, reforçando ideologicamente a imprescindibilidade das carreiras jurídicas para realização da justiça. Cittadino afirma o consenso em torno de princípios jurídicos após o fim da ditadura militar, embora não ressalte que esse consenso tenha sido mediado e influenciado pelos próprios profissionais do direito e que se a construção do estado de direito interessou à sociedade como um todo, interessou ainda mais às profissões jurídicas. Se hoje nos permitimos discutir o processo de “judicialização da política” é porque fomos capazes de superar o autoritarismo e reconstruir o Estado de Direito, promulgando uma Constituição que, nesse processo, representa um consenso, ainda que formal, em torno de princípios jurídicos universais. (Cittadino, 2001, p. 10) Mas não é consensual esta visão “positiva” da expansão do direito: Habermas (1989), 5 produz, por sua vez, uma reação dos poderes Executivo e Legislativo, que tentam novos mecanismos de controle do Judiciário (através do orçamento, da nomeação de juízes, de sistemas externos de auditoria)”. (2001, p. 108-109) É preciso ressaltar que a legislação constitucional brasileira prevê outras maneiras facilitadas de acesso à justiça, como a Ação Civil Pública, a Ação Popular e a Iniciativa Popular para elaboração de leis, mas, sem dúvida, são os JECs os mais bem sucedidos instrumentos de democratização do acesso à justiça. 224 Para Vianna. defende argumentos favoráveis à judicialização. não haveria mais uma moeda planificada. acha que essa expansão do direito nas sociedades modernas reduz a autonomia privada de participação política. como se o direito tocasse a política e esta se juridificasse. as decisões judiciais seriam a manifestação dos interesses da sociedade política que autodefende (porque auto define) suas leis. da política. Cappelletti vê a judicialização com bons olhos porque ela 225 . p. o direito material. Para os representantes do eixo procedimentalista. Esse deslocamento. como complementar ao espaço do direito. Antropologia e Cultura Jurídicas por exemplo. se contaminasse. mas sim uma esfera oca em que a face política fora engolida pela jurídica. Na visão habermasiana. configurando total invasão da política pelo direito. Segundo Vianna. o que importa é o conteúdo do direito. aos quais ele denominou eixo procedimentalista e eixo substancialista. Vianna (1999. 23-26). Judicializar é um verbo que pressupõe uma ação de tornar jurídico o que era anteriormente político. a uma justiça de salvação. portanto. 37) afirma existirem dois importantes eixos que explicam o fenômeno da judicialização.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ainda que o argumento para justificar a ocorrência deste deslocamento seja a busca pela igualdade. o direito vem do espaço público. tornando a política inacessível e desconfiável. 1999. Segundo este eixo existe grande perigo em se permitir que a efetividade dos direitos sociais seja remetida exclusivamente à esfera do direito. na visão de Garapon. ao gozo passivo de direitos. Segundo os autores que representam esse eixo. definindo-se o espaço da política. à privatização da cidadania. entendendo que a partir do momento em que a face política começasse a ser engolida pela face jurídica. 1999).Vol. que defendem argumentos contrários à judicialização. Já o eixo substancialista se mostra favorável à judicialização. é necessário que haja um equilíbrio entre as duas faces da moeda. isso “levaria à perda da liberdade. 23-26). p. 1999. poderia conduzir “à clericalização da burocracia. 35 . Judicializar significaria. Habermas se mostra contra a judicialização. Habermas e Garapon entendem que a aproximação do direito com a política certamente causará o esvaziamento do campo da política. ao paternalismo estatal” (VIANNA. acarretando uma desmobilização da sociedade. Para o eixo procedimentalista. Pensando o direito e a política como duas faces de uma mesma moeda. Assim. que é onde nasce o direito pela via das democracias participativa e representativa. o primeiro eixo seria representado por autores como Habermas e Garapon.Sociologia. enquanto o segundo eixo. sustentado pelos argumentos de Dworkin e Cappelletti. p. com a redução dos cidadãos ao estatuto de indivíduos clientes de um Estado providencial” (VIANNA. que é mais importante do que o procedimento. esvaziando o campo da política (VIANNA. tornar o espaço político em jurídico. 601). vai conseguindo transformar os seus conflitos sociais em jurídicos porque temos um novo Poder Judiciário que não se exime de dar respostas às demandas sociais.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Vianna parece não perceber o agir interessado das carreiras jurídicas por trás do processo recente de judicialização da política.Sociologia. “inovador” diante do papel que ele exercera historicamente. de seu mercado de atuação profissional. vai retomar o texto de Mary Ann Glendon (1994) para lembrar que esta autora fez uma análise da expansão do direito na sociedade norte-americana ressaltando que tal judicialização marcou naquela sociedade não só um processo de maior democratização do acesso à justiça. Para Vianna. Segundo ele. No entanto. Neste sentido. onde o aumento do número de processos judiciais é expressão clara de um maior conhecimento dos direitos e uma maior demanda do Poder Judiciário para a solução de conflitos sociais. que ressaltam o tempo todo a “necessidade” das profissões jurídicas para a democratização do país. Este tipo de análise talvez tenha faltado em Vianna (1999). O papel hoje exercido pelo judiciário seria. como também uma ampliação do poder dos juristas. Assim. que realiza controle externo das cortes judiciais. mas de políticas públicas. ao defender essa ideia de que a judicialização tem desempenhado importante papel na sociedade brasileira. “Sem Advogado não há Justiça. já que problemas sociais não eram vistos como problemas judiciais. O Poder Judiciário brasileiro. é emblemático da produção de ideologias profissionais para valorização das próprias profissões jurídicas. o que não acontecia antes. que aguardava provocação via demanda judicial. mais próximo da realidade social. seria possível pensar que a judicialização da política tem desempenhado um papel de redemocratização da sociedade brasileira após tantos anos de ditadura militar. Antropologia e Cultura Jurídicas dá ao judiciário uma nova feição.Vol. 226 . a sociedade brasileira. uma vez que agora temos um judiciário ativo e proativo no encaminhamento de soluções para os problemas sociais. que garantiram uma expansão. então. p. depois de anos de autoritarismo. sobretudo. A postura do Poder Judiciário era uma postura inerte. por exemplo. o judiciário hoje seria instado pela sociedade a resolver problemas de direitos fundamentais. sem Justiça não há Democracia”. O slogan da campanha publicitária da OAB-RJ no início dos anos 1990. durante a ditadura militar foi acusado de ser um poder cartorário subserviente ao poder autoritário. ao mesmo tempo em que era uma postura muito conveniente na medida em que ele não enfrentava os demais poderes políticos do estado. Não podemos esquecer que profissionalização de um grupo significa acesso e mais poder para esse grupo na sociedade. o eixo substancialista tem produzido uma democratização da sociedade brasileira. 35 . Barbosa (2003. que às vezes parece sucumbir ao canto da sereia das ideologias produzidas pelos próprios profissionais do direito. p. por exemplo. faculdades de direito. principalmente. 22. 23) a crítica mais acertada. por exemplo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Sociologia. 2000. evidenciaram o projeto das profissões jurídicas brasileiras. A expansão do direito não se deu como um passe de mágica. 35 . e do surgimento de lideranças políticas contestadoras e de lutas pela redemocratização do Brasil. o que requer “maior formalização e objetivação das relações interindividuais” (Pierucci. do declínio da ditadura militar. mesmo que de maneira polida – sem citar nomes – às análises que atribuem ao judiciário um papel democratizante na nova sociedade brasileira. Enfim. não se pode identificar (ou atribuir) nenhuma característica democrática ao Judiciário no pós-88 sem investigar se houve mudanças em sua cultura político-jurídica. que vai além de uma democratização político-eleitoral. Antropologia e Cultura Jurídicas Mas está em Falbo (2002. a Constituição Cidadã. A expansão do poder das profissões jurídicas ainda está em andamento e responde ao que chamamos de projeto profissional (LARSON. A Assembléia Nacional Constituinte e seu maior produto. O projeto profissional das profissões jurídicas reforçou o campo do direito como um todo. Seria no mínimo duvidosa uma análise sobre democratização da sociedade que não considerasse. o que inclui o declínio da legitimidade social do regime ditatorial. como. O aumento do número de processos no judiciário pode não indicar uma democratização deste poder de estado se estiver sendo ampliados também os espaços extraestatais (e antiestatais) de resolução de conflitos sociais.Vol. 136). mercado de trabalho das profissões jurídicas. por exemplo. p. ela foi sendo construída em um longo processo a partir. A democratização do judiciário está no contexto de democratização da sociedade. Com relação à expansão da política concomitantemente à expansão do direito. se tornando menos formalista. a urbanização do Brasil – a Carta Cidadã é a primeira Constituição de um Brasil eminentemente urbano –. os altos índices de desigualdades sociais em que vivemos. associações profissionais etc. por vários motivos. houve uma expansão do campo do direito (e das profissões jurídicas) a partir da redemocratização política do país. A expansão do direito na sociedade brasileira após 1988 também acontece devido a outros fatores além dos já citados. Só haverá democratização do judiciário quando houver uma mudança cultural que permita aos atores político-jurídicos implicados nesse poder de estado a capacidade de olhar a sociedade e de se deixar ser vista por ela. Santos (1996) afirma que ao mesmo tempo em que acontece uma judicialização dos conflitos 227 . Para Falbo. Só haverá democratização do judiciário quando a sociedade se sentir à vontade para procurar a justiça estatal e o judiciário procurar atender mais de perto a sociedade. 1977). pela concretização de direitos individuais e/ou coletivos também representa uma forma de participação no processo político”. para entender a sociedade é preciso analisar os diversos campos sociais. Importante observarmos que esta expansão das profissões jurídicas brasileiras e do campo do direito após 1988 esconde conflitos no interior do campo jurídico e competições inter e intraprofissionais deste campo. diversos grupos. Investigando a atuação dos bacharéis em direito identificamos um recuo destes profissionais no campo da política (SANTOS. 2 FUNCIONAMENTO E REPRODUÇÃO DO HABITUS DAS PROFISSÕES JURÍDICAS NO CAMPO JURÍDICO BRASILEIRO Partindo da abordagem teórica de Pierre Bourdieu (2005). Para 6 E Cittadino diz que “é preciso não esquecer que a crescente busca. um mesmo modo de percepção e de atuação. buscando sempre o fortalecimento e o aumento do poder do campo social ao qual pertencem. o que pode ser medido a partir do aumento do número de concursos públicos destinados às áreas jurídicas e pela maior presença dos profissionais do direito na mídia. uma vez que os tribunais são responsáveis por apenas uma pequena parte dos conflitos sociais existentes. no âmbito dos tribunais. Os conflitos existentes no interior do campo do direito não são percebidos com macro-análises ou só com métodos quantitativos. p.Vol.Sociologia. que a todo o momento interagem entre si no desenvolvimento das relações sociais. 35 . esses atores sociais se fazem reconhecer ao mesmo tempo em que afirmam sua distinção dos demais grupos existentes. o que Bourdieu (2004) denominou “habitus”. sendo a maioria dos conflitos resolvidos em outras instâncias não oficiais (nem todo conflito social se torna jurídico). acontece também uma politização dos conflitos judiciários 6. 2008) e um fortalecimento das profissões jurídicas. Antropologia e Cultura Jurídicas políticos. os quais compartilham de uma mesma ideologia. principalmente magistrados e membros do MP. conhecer o que pensam os profissionais do direito e como se vêem e uns aos outros para captar um pouco do clima de disputa no campo jurídico. Cada grupo social se volta à reprodução de sua ideologia interna. Essa imposição do “habitus” só é possível através da ação dos indivíduos que pertencem a determinado campo. 3) 228 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . É preciso baixar ao nível das intersubjetividades. (2001. Através do habitus. Cabe a este campo jurídico “ditar as regras” do direito para a sociedade. magistratura. livre de quaisquer “segundas intenções”. 2002. Em palavras simples. o habitus constitui “um conjunto de conhecimentos práticos adquiridos ao longo do tempo que nos permitem perceber e agir e evoluir com naturalidade num universo social dado” (2002. o que só é possível diante do aumento de poder social dessas carreiras. Logo.Sociologia. Portanto. porém conduzindo toda a atuação de modo eficaz e dominador a permitir o alcance do resultado pretendido: disseminar uma ideologia provocando aumento de poder. onde aqueles que o detêm se utilizam do mesmo para inculcar o seu habitus nos “outros”. os dominados (LOYOLA. 66). (LOYOLA. o poder simbólico age sem que os demais atores sociais percebam de forma clara a relação de dominação que está sendo exercida. o seu “habitus”. porém extremamente eficaz. enfim. 2002. Uma espécie de moldura utilizada pelos membros de determinado campo social. o que facilita demasiadamente sua atuação. ministério público etc. p. o que para Bourdieu (2004. a qual se mostra como resultado da atuação do poder simbólico. 210) só se tornou possível a partir do momento em que os atores sociais pertencentes ao 229 .). Conforme já fora apontado anteriormente. traduzidos a partir da idéia do que Bourdieu chamou de “capital simbólico”. Para que ocorra essa propagação do “habitus” de determinado grupo social. Esse “capital simbólico” é formado por um conjunto de signos e símbolos que são utilizados pelos atores sociais integrantes de um mesmo campo social para disseminar suas idéias. compreensão e disseminação do direito. Antropologia e Cultura Jurídicas Maria Andréa Loyola. p. 68). seu modo de pensar. os atores sociais que o integram necessitam se valer de instrumentos eficazes. por denotar um claro processo de naturalização que permite a visão de todo este processo como algo natural.Vol. que será traduzido em suas ações e reações. onde se situam todas as profissões jurídicas (advocacia. A utilização do capital simbólico permite que seja delineado o que a teoria bourdieusiana entende por violência simbólica. seu modo de agir. a partir da qual irão tecer seu modo de percepção da realidade. um poder que não se mostra. o processo de inculcação do habitus só é possível através do exercício do poder simbólico. p. É através da utilização deste capital simbólico que se forma uma relação de dominação. 75) Diante da existência desses diversos campos sociais.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que atua de modo encoberto. Bourdieu considera a existência do campo jurídico como lócus privilegiado de apreensão. p. é a forma de impor a alguém determinado modo de pensar e de agir sem o fazer de maneira clara. 35 . o crescimento deste campo se deve ao seu acúmulo de poder dentro da estrutura social frente aos demais campos sociais existentes. Mas.Vol. essa disputa de poder entre as próprias profissões jurídicas não é capaz de provocar a desestruturação ou o enfraquecimento deste campo. compostos pelos profissionais de determinada carreira jurídica. as quais são detentoras de espécies diversas de capital jurídico. o que. p. uma vez que ambas as profissões integram o mesmo campo. estarão a reproduzir o mesmo habitus ali compartilhado. também proporcionou uma luta interna de poder entre essas profissões. permitindo que determinada profissão se sobreponha às outras por deter maior acúmulo de capital simbólico. promovendo o campo jurídico da mesma forma. Antropologia e Cultura Jurídicas campo jurídico passaram a se valer de um modo específico de atuação.219) afirma que essa diversidade de atuação e de interesses próprios na interpretação do Direito permite que seja delineado um importante cenário. vestimenta própria altamente formal. de modo especial a partir do processo de redemocratização. Bourdieu (2002. no entanto.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . produzindo um capital específico que é o capital jurídico. o fato de o direito passar a ocupar um lugar central na resolução dos conflitos acabou ocasionando um fortalecimento de todas as profissões jurídicas existentes no campo. Pois. Embora o funcionamento do campo jurídico sempre se encontre gravitando ao redor do direito. os quais a todo o momento. com palavras específicas de alto rigor técnico. onde o papel desempenhado por uma profissão jurídica impulsiona a atuação de outra. Certamente. 35 . fazendo-se parte indispensável na concretização dos direitos e na concretização da justiça na vida dos cidadãos brasileiros. é importante visualizarmos que cada uma dessas profissões forma uma espécie de pequenos microorganismos. Para compreender essa luta interna existente no campo jurídico. Essa luta travada entre as profissões jurídicas por status dentro do próprio campo jurídico denota a existência de uma espécie de “hierarquia” entre esses grupos profissionais. E que a existência de disputas internas só é possível em função da existência de interesses singulares e antagônicos de cada uma dessas carreiras. etc. cada carreira jurídica desempenha papel específico dentro do campo do direito. Tudo isso fora permitindo ao campo jurídico uma dominação exclusiva da aplicação e da própria condução do Direito. No caso brasileiro. Ocupar esse lugar de privilégio significa ocupar uma posição de superioridade dentro do campo. procedimentos só por eles apreendidos. estão a disputar o lugar de maior privilégio para dizer o direito. sedimentando a visão do campo jurídico como ferramenta central 230 .Sociologia. esse aumento de poder é claramente justificado diante da importância singular que os profissionais do direito foram alcançando. sua atuação mais contundente se dá sobre a magistratura. externamente o efeito é exatamente de fortalecimento do grupo e reforço de sua lógica de atuação. Ambas as decisões envolvem questões que em determinado momento foram polemizadas pela sociedade. 35 . Entretanto. as conseqüências dessa atuação são sempre a de reforçar o habitus compartilhado pelo grupo. fomentando o fenômeno da judicialização. Assim como a luta entre as profissões jurídicas não enfraquece o campo jurídico. fortalecendo ainda mais a coesão do grupo e o poder ali existente.Sociologia. evidenciando-o ainda mais (BOURDIEU. 2011). 19). essas disputas por poder não se restringem apenas às lutas entre as diferentes carreiras jurídicas.Vol. mantendo sua coesão e reforçando seu poder. desencadeando o processo de dominação simbólica. O que pode ser observado. 2012) e o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo (SANTOS. Importante ressaltar que embora a judicialização ocasione o fortalecimento do campo jurídico em sua totalidade. ocorrendo demonstrações de forças entre membros de uma mesma carreira. por exemplo. Essas lutas ocorrem exatamente no sentido de buscar a manutenção e a reafirmação do habitus por eles compartilhado. É possível que existam divergências e lutas dentro de um mesmo grupo profissional pertencente ao campo do direito. Ocupar esse lugar central tem permitido à magistratura mostrar-se parte indispensável para a efetivação dos direitos constitucionalmente garantidos. a existência de instâncias superiores e inferiores na magistratura permite observar a existência dessas lutas internas reforçando o poder desta categoria profissional ao invés de abalar suas estruturas. Por meio do fenômeno da judicialização. também as lutas entre os profissionais de um mesmo grupo não ocasiona seu enfraquecimento. Quando o Supremo Tribunal Federal interpreta e concretiza o direito analisando questões polêmicas que envolvem a sociedade ou ainda a política. a que se destaca nesta disputa pelo poder é a magistratura. no julgamento de questões altamente polêmicas como a possibilidade do aborto no caso de fetos anencéfalos (SANTOS. Quando o Supremo Tribunal Federal se coloca a decidir sobre determinada questão. submete todas as demais instâncias do Judiciário à sua compreensão. Antropologia e Cultura Jurídicas para a efetivação dos direitos. Dentre as profissões jurídicas existentes no campo jurídico brasileiro. 231 . E ainda que internamente essas lutas possam trazer ranhuras. p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ocupando um lugar privilegiado na estrutura social e na estrutura burocrática. 2002. por repousar sobre este grupo profissional a função de interpretar e dizer o direito. objetivando sempre a manutenção e o aumento do poder deste grupo profissional. Essas profissões atuam sempre reproduzindo e impondo o habitus compartilhado internamente naquele campo. pois ao reformar uma sentença adequando-a ao posicionamento do STF. No entanto. a magistratura tem sido o grupo profissional que mais tem se beneficiado com este fenômeno. Considerando o campo jurídico um lugar privilegiado para a compreensão e disseminação do direito. passaram a ter seus entendimentos reformados pelos tribunais superiores. REFLEXÕES FINAIS O processo de redemocratização do Brasil possibilitou uma expansão significativa do direito e. Essa expansão do campo jurídico evidenciou a existência de um projeto profissional por parte das carreiras jurídicas. importa entender que há. as quais passaram a ocupar um lugar importante na concretização dos direitos garantidos constitucionalmente. possuir maior status significa ocupar um lugar de destaque demonstrando 232 . inúmeros magistrados que se posicionaram contrários negando pedidos dessa natureza. Entretanto.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . principalmente. as profissões jurídicas estão em constante luta por maior status. uma imposição de sua interpretação sobre as interpretações oriundas das instâncias inferiores do próprio Poder Judiciário. Para essas profissões. Nos casos envolvendo o aborto de anencéfalos e a união de casais homoafetivos.Vol. Ao contrário. A atuação contundente das profissões jurídicas tem proporcionado entre nós o fenômeno da judicialização. tendo em vista serem as detentoras do conhecimento jurídico. consequentemente. o que significa a manutenção do poder do campo jurídico. 35 . fortalece sua coesão e reafirma a reprodução do habitus por eles compartilhado. o Judiciário está prezando pela manutenção da ideologia por eles adotada em suas decisões. do campo jurídico.Sociologia. Antropologia e Cultura Jurídicas Embora seja perceptível que o papel desempenhado pelo STF seja de impor sua interpretação sobre a sociedade e o próprio Estado. que essa “discordância” não é algo que enfraquece o Poder Judiciário. embora a judicialização permita o fortalecimento de todo o campo jurídico. que reforça a presença desses grupos profissionais na efetivação dos direitos. é preciso compreender. por repousar em suas mãos a prerrogativa de interpretar e dizer o direito. 233 . Revista Brasileira de Ciências Sociais. quanto frente á estrutura social e a estrutura burocrática. v. delineando uma clara relação de hierarquia entre esses profissionais. n. onde a instância superior sempre impõe sua forma de interpretar o direito às demais instâncias. 39. 35 . São Paulo. Quando a instância suprema do Judiciário se pronuncia sobre determinada questão “obrigando” as instâncias inferiores a acatarem tal interpretação. é preciso compreender que essas lutas ocorridas dentro de um mesmo grupo profissional. Esta percepção é claramente comprovada quando observamos as mais diversas instâncias que existem dentro do Judiciário. ao invés de provocarem ruptura reforçam o poder desta classe profissional. voltado à valorização dessas profissões. não apenas sob uma perspectiva interna do campo. demonstrando a coesão ali existente e reforçando o habitus por eles compartilhado. Antropologia e Cultura Jurídicas maior poder e maior prestígio. 83-102. em especial. Importante destacarmos que essas lutas por maior acúmulo de poder. mas também na estrutura social e burocrática. O Ministério Público e a defesa dos direitos coletivos. fevereiro 1999. ela está buscando exatamente reforçar o poder deste grupo. 14.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. ocorrem também entre os próprios profissionais que pertencem a uma determinada carreira jurídica. a atuação da magistratura tem revelado a busca deste grupo profissional tanto pela manutenção de sua condição privilegiada frente às demais profissões jurídicas. p. neste caso a magistratura.Sociologia. No caso brasileiro. Pensar a atuação das profissões jurídicas no Brasil contemporâneo requer compreender a existência de um projeto profissional revelado por meio do processo de redemocratização. E. estando o fenômeno da judicialização a contribuir neste sentido. REFERÊNCIAS ARANTES. Entretanto. Rogério Bastos. a magistratura tem sido o grupo profissional que mais tem se destacado. José Murilo de. 2004.br/scielo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 3. n. “Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido”. CAPPELLETTI. Rio de Janeiro.php?script=sci_artt ext&pid=S0102-69091998000200003&lng=en&nrm=iso>. 2001. “Poder Judiciário. 1998. BOURDIEU. 37. Maria Ligia de Oliveira. Gisele Guimarães. 46. 35 . Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. LARSON. UERJ. 2005. Pierre. 2013. As profissões no Brasil e sua sociologia.ANPOCS. Antropologia e Cultura Jurídicas BARBOSA. Caxambu. Antônio Flávio. CITTADINO. Getúlio. Rio de Janeiro: Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Dados. A Justiça deve ir aonde o povo está. 2002. v. ______________. Ricardo Nery. Bryant. Ano 2. Acesso à justiça. LOYOLA. FALBO. Available from <http://www.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Maria Andréa. Jun. ativismo judicial e democracia. 234 . PIERUCCI. São Paulo. 1988. Tradução: Fernando Tomaz. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 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Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2011. Revista Brasileira de Ciências Sociais. 12 abr. Brasília. Supremo decide por 8 a 2 que aborto de feto sem cérebro não é crime. G1. Disponível em http://g1. Direito e profissões jurídicas no Brasil após 1988: expansão. CARVALHO.com.globo. Antropologia e Cultura Jurídicas SANTOS.Vol. Débora. Acesso em 15 jan. Disponível em http://g1. Os tribunais nas sociedades contemporâneas. Rio de Janeiro: Revan. André Filipe Pereira Reid dos.Sociologia. 2013. Brasília. 2008. Luiz Werneck. MARQUES.globo. 05 mai. competição. SANTOS. G1O portal de notícias da Globo. Manuel Palácios da Cunha e. 35 . Los significados de la categoría "policía comunitaria" en el contexto de las prácticas institucionales de la policía en el Estado de Río de Janeiro. A primeira amparada na lógica da “repressão” e a segunda na “prevenção”.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . onde a PM desenvolveu uma ação considerada “de sucesso”.Sociologia. Jorge Antonio Paes Lopes Luiz Eduardo Figueira RESUMO O presente estudo tem como objetivo discutir os sentidos da categoria “policiamento comunitário” no contexto das práticas institucionais de policiamento no Estado do Rio de Janeiro. (MIRANDA. em Niterói. Antropologia e Cultura Jurídicas Os sentidos da categoria "policiamento comunitário" no contexto das práticas institucionais de policiamento no Estado do Rio de Janeiro. 2008). O primeiro projeto de maior visibilidade elaborado pela polícia do Rio foi o GPAE (Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais) e as informações trazidas para este trabalho advém do estudo de caso realizado no Morro do Cavalão. Essa modalidade policial ganhou uma roupagem específica no contexto do estado. A emergência dessa prática policial trouxe para a corporação a existência de dois grupos: “polícia tradicional” e “polícia comunitária”. que utilizaram diversas categorias estigmatizantes para tratar do assunto. no Rio de Janeiro. dentre elas: “policiais cor-de-rosa”.Vol. Não há consenso sobre o significado do conceito do policiamento comunitário. Entretanto. a polícia Militar foi a responsável por trazer para o cenário da Segurança Pública as primeiras práticas policiais chamadas de “comunitárias”. Palavras-chave: polícia comunitária. Um dos problemas encontrados pelos comandantes dessa ação foi a rejeição por parte dos próprios policiais militares. favela. o que dá margem a diferentes interpretações teóricas e a diversas possibilidades de projetos que possam ser classificados como tal. passando a ser utilizada como modelo de ação a ser seguido nas áreas que “precisam ser pacificadas”: as favelas. segurança pública 236 . No existe un consenso sobre el significado del concepto de policía comunitaria. 2008). 237 . es decir: “favelas”. 35 . Antropologia e Cultura Jurídicas RESUMEN Este estudio tiene como objetivo analizar los significados de la categoría "policía comunitaria" en el contexto de las prácticas institucionales de la policía en el Estado de Río de Janeiro. favela. Mientras tanto. lo que da lugar a diferentes interpretaciones y diferentes posibilidades teóricas de los proyectos que pueden ser clasificados como tales. (Miranda. apoyada por la lógica de la "represión" y la segunda en la "prevención”. Esta modalidad de policía obtuvo una característica específica en el contexto del Estado. Policías de color rosa" La aparición de esta práctica llevó la policía a convivir con dos grupos: " policía tradicional" y "policía comunitaria". que utilizaba diversas categorías estigmatizantes para abordar el tema. El primer proyecto con visibilidad preparado por la policía de Río fue GPAE (Agrupación de Zonas Especiales Policiales) y la información presentada en este trabajo deriva del estudio de caso realizado en Morro do Cavalão en Niterói. Palabras-clave: policía comunitaria. en Río de Janeiro.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . la Policía Militar fue responsable de traer a la escena de la seguridad pública las primeras prácticas de la policía llamadas "comunitarias". La primera.Vol.Sociologia. y fue utilizado como un modelo de acción a seguir en áreas que "deben ser pacificados". incluyendo lo siguiente: ". en donde la policía militar ha desarrollado “con éxito” la acción. seguridad pública. Uno de los problemas encontrados por los jefes de esta acción fue el rechazo por parte de la policía militar. Sociologia. (GONÇALVES apud VALLADARES. Além da vitimização interna. O termo favela sempre esteve associado à ideia de ilegalidade. Alvito de Souza (1998). as favelas passam a fazer parte do cenário urbano a partir da segunda metade do século XIX. OLIVEIRA. 2008) 1 Estas informações estão presentes também como nota em ALBERNAZ et al. luz. 2005. produto de invasão ou apropriação. LEITE. Valladares e Medeiros (2003). Seus habitantes sempre foram vistos à margem da lei e. ideia sustentada. etc. (ZALUAR. em geral fruto de uma violência física. As políticas públicas parecem não abarcar essas áreas das cidades. 2007. criminosos ou tendentes à prática de crimes e/ou à conivência com esta. 35 . 1994) 238 . Zaluar (1985. em geral. 2005) Se estamos diante de uma população que é vista como cúmplice dos criminosos. Esse viés repressivo/preventivo dos programas de políticas sociais e/ou ações filantrópicas no Brasil funciona como uma espécie de ampliação dos instrumentos de controle social. não tinham acesso aos bens de consumo coletivo (água. (SILVA. saúde. reproduzida e objetivada pelas políticas sociais e/ou ações filantrópicas. Antropologia e Cultura Jurídicas No Rio de Janeiro. esgoto. estas mesmas representações parecem fazer com que sejam criados programas cujas ações centrais sejam repressão/prevenção.). ocorrida dentro dos limites geográficos das favelas.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . lazer. As casas eram construídas em terrenos para os quais os moradores não dispunham de título de propriedade. quanto entre os próprios habitantes dessas áreas. Este processo resultou na reiterada exclusão dos atores que ali habitavam da chamada cidadania formal. Na nossa sociedade.Vol. como tal. ver também Santos (1993). (LEITE. pobreza e favela são fatores criminógenos por excelência. 1988) A representação da favela hoje é a de “territórios da ilegalidade e do crime”.22)1 A violência nas favelas vitima um grande número de seres humanos por causa dos constantes conflitos tanto entre policiais e traficantes. visando afastar as categorias sociais “vulneráveis” ou “de risco” das “tentações” da carreira criminal. p. porque remetia a espaços excluídos da cidade “formal”. esse grupo sofre historicamente um processo de estigmatização que faz com que a população do “asfalto” veja os moradores de favelas como integrantes de um bloco homogêneo de pessoas cujas características resultam em seres potencialmente perigosos. Para saber mais sobre favelas no Rio de Janeiro. 35 .” (ZALUAR. uma ameaça à cidade que surgem os primeiros discursos sobre implementação de uma política de Segurança Pública voltada para as populações faveladas. sem plano urbano.Sociologia. 2006. VALLADARES.Vol. Aos poucos. distinto do morador civilizado da primeira metrópole que o Brasil teve. do vazio a ser preenchido pelos sentimentos humanitários. Alba Zaluar e Marcos Alvito (2006) apresentam alguns aspectos importantes da história do Brasil e do surgimento das favelas. especialmente a proposta do chamado policiamento comunitário. Dessa precariedade urbana. p. o “outro”. “Mas a favela ficou também registrada oficialmente como área de habitações irregularmente construídas. sem arruamentos. após anos de abandono. lugar da finura e elegância de tantos sambistas. e de torná-la uma cidade europeia não vingou graças à força contida nos grupos que habitavam as favelas. Na introdução do livro “Um século de favela”. então capital federal. (LEITE. Antropologia e Cultura Jurídicas A partir do final dos anos 1980. a tentativa dos republicanos radicais de “embranquecer” o Rio de Janeiro. 239 . sem água. com políticas oriundas da Secretaria de Segurança Pública. OLIVEIRA. do carnaval e da cultura popular e passou a representar uma ameaça à cidade. e da violência dos mais famosos bandidos que a cidade conheceu ultimamente. sem esgotos. 2005.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . sem luz.. ALVITO. 2000). foi deixando de ser apenas o berço do samba. a favela sempre inspirou e continua a inspirar tanto o imaginário preconceituoso dos que dela querem se distinguir quanto os tantos poetas e escritores que cantaram suas várias formas de marcar a vida urbana do Rio de Janeiro. 07) É nesse contexto de construção e reafirmação da ideia de que as favelas representavam. Lugar do lodo e da flor que nele nasce. Segundo os autores. surgiram as imagens que fizeram da favela o lugar da carência. desde sempre. no entanto. dentre outras coisas. resultado da pobreza de seus habitantes e do descaso do poder público. as favelas do Rio de Janeiro passaram a ter uma representação negativa. da falta. do perigo a ser erradicado pelas estratégias políticas que fizeram do favelado um bode expiatório dos problemas da cidade.. o Estado queira se fazer presente nestes locais. lugar das mais belas vistas e do acúmulo de sujeira. Observa-se que as populações faveladas convivem há muito tempo com a falta de políticas públicas que atendam às suas necessidades básicas e que. ... Passadas as experiências do “Policiamento Comunitário de Quarteirão” e do “Gape”3. e ali foi instalada a primeira sede de policiamento comunitário. onde morreram cinco pessoas em confronto com a polícia. que hoje é Coronel.. a comunidade desceu... muito preparado que hoje comanda a Escola Superior de Polícia Militar. então. “O surgimento mesmo do primeiro GPAE com força total foi em 2001. um local impossível de fazer esse tipo de policiamento.. surge... Neste trecho. antes de cuja existência era praticamente impossível traçar uma linha de demarcação rigorosa entre as várias funções do Estado: legislar. foi instalado no Cavalão. uma manifestação contrária à ação da polícia. no cenário da Segurança Pública do Rio de Janeiro o GPAE. inicialmente nas favelas do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo. Suas práticas serão explicitadas adiante. foi um problema muito sério de perturbação da ordem. o uso da força policial como veículo de promoção de “cidadania”2 nas favelas pode estar associado ao fato de serem as mesmas vistas no senso comum como “territórios da ilegalidade e do crime”..Sociologia.. 35 . Antropologia e Cultura Jurídicas De qualquer forma.. Depois isso foi expandido para outras áreas como Formiga. e na Vila Cruzeiro.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais. 3 Gape (sigla usada para Grupamento de Aplicação Prático Escolar) e Policiamento Comunitário de Quarteirão foram as formas pioneiras. criado como uma unidade operacional especial da Polícia Militar nos anos 2000. os homicídios. O efetivo era grande. Ele foi quem colocou o 1º GPAE lá onde tem o projeto Criança Esperança devido a um problema que houve em Copacabana. no Rio de Janeiro. de prática policial baseada no policiamento comunitário. Boréu. que se desenvolveu no mundo moderno..... 09). era o Major Carbalo.” (Oficial PMERJ entrevistado em 2010 e em 2012) 2 Segundo Regina Lucia Teixeira Mendes (2005) “a cidadania é um fenômeno historicamente definido. 2005 p. 240 . as representações sociais que inspiram/constroem as políticas públicas para estes territórios sugerem que estes são “problemas de polícia”. se não me engano no governo da Benedita.. também por causa de um problema que houve lá.. Depois. Depois buscar com os órgãos públicos solucionar os problemas da comunidade. Por esta lógica.. nos limites territoriais dos Estados Nacionais. entre os bairros de Copacabana e Ipanema. no morro do Pavão Pavãozinho e Cantagalo. E o comandante.. que também é um estudioso de policiamento comunitário.O objetivo maior do GPAE era diminuir a letalidade nas comunidades. um homem muito culto.Vol.. administrar e julgar” (Mendes. estou utilizando esta categoria no sentido de promoção dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988.. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Um exemplo pode ser o trabalho desenvolvido pela Polícia Civil –RJ em parceria com o Afro Reggae. Esta proposta surgirá num contexto próprio. Digo isto porque. ao se buscar elementos que compõem o contexto político-histórico de surgimento da proposta de policiamento comunitário no Rio de Janeiro. 5 As siglas utilizadas ao longo do estudo para designar esta instituição serão PM (Polícia Militar) e PMERJ (Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro). Sendo assim.com. qual seja. A sigla PM também é uma categoria utilizada para nomear o policial. foi possível constatar que os documentos e registros existentes no mundo da Segurança Pública do Rio de Janeiro apontam. a militar4. 35 . com a pesquisa. de início. cujo objetivo é conversar com os adolescentes e jovens em idade escolar sobre os riscos da criminalidade. Apresentada discursivamente pelos atores da Segurança Pública como uma alternativa à “política do confronto” a proposta de uma modalidade de policiamento denominada comunitário. contrariando o senso comum. está presente no conjunto das ações idealizadas pelo setor da Segurança Pública do Rio de Janeiro. para práticas realizadas pela polícia militar. Antropologia e Cultura Jurídicas É importante considerar. a PM5 foi a instituição policial que trouxe mais elementos de tentativa de implementação de um policiamento chamado de comunitário. superada a fase inicial6 também para um grupo específico: a favela. que trouxeram para o cenário da Segurança Pública do Estado o “Papo de Responsa”. Isso não significa dizer que o policiamento comunitário seja uma prática exclusiva dessa corporação. em sua maioria. instituição que desenvolve projetos sociais nas favelas. 4 Estamos nos referindo aos trabalhos mais expressivos da polícia do Rio de Janeiro pautados nessa filosofia. qual seja a zona sul da cidade do Rio de Janeiro. 6 A fase inicial corresponde ao período em que o policiamento comunitário estava sendo praticado na zona sul do Rio de Janeiro.papoderesponsa.Vol. Conforme narra um oficial reformado que entrevistei. que se faz menção apenas a umas das polícias. Para saber mais sobre este trabalho. que atuou por 36 anos na PM “a Polícia Militar do Rio de Janeiro sempre se amparou numa doutrina militarista”. a fase inicial do policiamento “comunitário” não surgiu como uma modalidade pensada para essas áreas (“comunidades”) e sim para áreas nobres da cidade. visando solucionar os problemas de um território que passou a representar uma “ameaça à cidade”. basta acessar o sítio www. tendo sido pensada. Há ações da polícia civil do Rio que se baseiam na chamada polícia de proximidade (modelo europeu). O fato é que.Sociologia. 241 .br. até o tempo em que ele foi duas vezes Secretário de Estado. particularmente. 242 . Ver SOARES e SENTO-SÉ. que era o segundo homem da hierarquia. esses “inimigos internos” eram vítimas da violência praticada pelo Estado. as universidades. Eu era Tenente do 6º BPM e a gente já fazia policiamento comunitário. juntamente com alguns pensadores da polícia militar e até de fora da PM. os artistas e estudantes. Ele criou. coisa que não existia. todos fazemos parte desse sistema.Sociologia. de certa forma. 35 ... treinando de acordo com a ideologia militar e sendo preparado para combater um inimigo interno. formados pelas lideranças políticas de esquerda. com práticas que eram consideradas como integrantes dessa modalidade de policiamento: “O embrião do policiamento comunitário data de 1978. os intelectuais. depois a gente fazia um relatório e. ele implantou uma filosofia voltada para a polícia comunitária. dentre outros. uma doutrina própria e toda uma bibliografia apropriada à atividade de polícia. ou seja uma polícia preventiva. 2000. desde o tempo em que ele era chefe do Estado Maior. pela Defensoria Pública. pelo Ministério Público. surgiu nos anos 1970. Já a modalidade policial que busca uma prática menos repressiva (combate) é chamada de prevenção. ou seja. antropólogos. pelo Judiciário. Antropologia e Cultura Jurídicas “A gente ficou anos e anos estudando os manuais do Exército. está até hoje presente na formação ideológica da PM do Rio de Janeiro. suas práticas.. depois a gente fazia o deslocamento.Vol. onde a 7 De acordo com um estudo feito por Luiz Eduardo Soares e João Trajano Sento-Sé.... A gente fazia um trabalho de supervisão técnica.” (Oficial PMERJ entrevistado em 2010 e em 2012) Esse treinamento para o combate ao inimigo interno7 que. Isso mudou totalmente a concepção da polícia. já revelavam essa modalidade de policiamento que se distanciava da tradicional repressão e se aproximava da prevenção: “Depois que o Coronel Cerqueira começou a gerenciar a polícia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Existia também o trabalho chamado Policiamento de Bairro. A prática policial do combate ao inimigo interno é entendida como repressão. a gente também participa das atividades acadêmicas.. a gente tem que ser controlado pela OAB. uma série de documentos. pesquisadores. começou a dar lugar à chamada filosofia de policiamento comunitário a partir de 1978. A gente faz parte de um sistema.. de acordo com este mesmo oficial. sociólogos. Ele concebia a polícia como um sistema aberto. a gente ia de casa em casa fazer entrevistas.. O Coronel Celso era o braço direito do Coronel Cerqueira.” (Oficial PMERJ entrevistado em 2010 e em 2012) O chamado “embrião” do Policiamento Comunitário. De acordo com a entrevista feita com o oficial da PMERJ.... a sociedade civil. Eu me lembro que a gente fazia uma supervisão técnica.. de acordo com as necessidades.. a partir de 1984. Existia também o policiamento em circuito. em dupla. Considerado como o grande responsável pela introdução de uma filosofia diferenciada para a atuação policial brasileira. Foi também a partir desse momento que o interesse acadêmico pelo tema se expandiu.. por várias ruas do Grajaú. Isso nos anos 70.. começou a introduzir de forma mais contundente na corporação as idéias sobre o assunto. seja através dessas conversas ou através das caminhadas feitas em dupla na região pelos policiais. o “Policiamento Comunitário de Quarteirão”. em 1984. que o policial percorria a pé. em suas duas gestões de Comando da PM – de 1982 a 1986 e de 1990 a 1994.. através dessa proximidade seria mais facilmente detectado o problema (necessidades) e não haveria razão para uma intervenção/incursão pontual e combativa por parte da corporação. fazia uma pesquisa e dali irradiava um policiamento a pé. ver Nobre. Carlos Magno Nazareth Cerqueira8. o então comandante geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro Cel. Antropologia e Cultura Jurídicas gente pegava uma kombi e ia pra uma praça.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . durante os governos de Leonel Brizola – ele se imbuiu em mudar a doutrina da corporação para torná-la uma polícia cidadã.Sociologia.” (Oficial PMERJ entrevistado em 2010 e em 2012) De acordo com esse relato. materiais de formação e de informação sobre o policiamento comunitário. muitos seguidores da idéia trazida à tona pelo Coronel Cerqueira passaram a replicar. na corporação e fora dela. 8 “Formado em Filosofia e Psicologia. tipo Cosme e Damião. observa-se que a prática policial para ser considerada preventiva está associada à existência de entrevistas prévias com a população e de sua aproximação com a polícia. o primeiro homem negro9 a ocupar os altos escalões da PMERJ. 35 . (LEMLE. através do chamado “Plano Diretor da PMERJ”. aos 59 anos. A partir disso. o Comandante Geral da PM.Vol. crime e carreira no estado do Rio de Janeiro. institui. O tema do Policiamento Comunitário no Brasil permanecia praticamente desconhecido pela população. quando. 2011) 9 A polícia militar sempre foi um mercado tradicional para afrodescendentes. Sobre esse tema. morreu assassinado com um tiro no olho em 1999. ou seja. Intelectual humanista e precursor da defesa dos Direitos Humanos.. 2007. num episódio jamais devidamente esclarecido” Texto extraído de matéria publicada no Blog Comunidade Segura. 243 . Laranjeiras. Essa aproximação da polícia e a disponibilidade em ouvir a população remetia à ideia de um trabalho preventivo. Trata-se de dissertação de mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes cujo título é: O negro na polícia militar: cor. Urca. Flamengo e Botafogo. que foi desenvolvido nos bairros de Copacabana. Não adianta dissimulá-las nem dourar a situação.. O ato de “se rever” e de “rever suas práticas”. 35 . Canadá. como é o caso do PM que entrevistei: “Eu sou adepto de tudo isso porque investiram na minha formação. A PM. especialmente pelo fato de se estar vivendo a chamada transição democrática. 1985) Segundo o estudo de Luiz Eduardo Soares e João Trajano Sento-Sé (2000).. especialmente as classes populares.” (Oficial PMERJ entrevistado em 2010 e em 2012) Ainda anos 1980. Áustria. nessa época. ano da realização do 1º Congresso Internacional sobre Policiamento Comunitário no nosso país. eu diria que a população. Edição de outubro de 1985. vivenciei a experiência. E as classes mais educadas tratam a polícia com desprezo. a violência e a Segurança Pública deixaram de ser um problema menor. tem de se rever. e sempre procurei adaptar isso ao nosso modelo de policiamento. já era possível constatar que alguns discursos tanto da corporação quanto dos especialistas no assunto apontavam para a necessidade de mudanças na prática policial.Vol..Sociologia. no que diz respeito à polícia. E a transição democrática exige isso.” (PINHEIRO. oriundos da oportunidade que alguns oficiais tiveram de conhecer as experiências da polícia de outros países.. trabalhei na polícia do Canadá patrulhando... Itália.. começou a aparecer nas falas dos formadores de opinião. mas como se esta fosse instrumento para a defesa de seus interesses particulares. dos debates em torno da redemocratização do Estado. Antropologia e Cultura Jurídicas A partir de 1991. se a PM não quiser ficar à margem da mudança.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Sem entrar em detalhes. Gradual e lentamente. O face-a-face consigo mesma e com a população é o único caminho eficiente para a transformação.. 244 . como a corporação fluminense já está fazendo. contando-se com a participação de pesquisadores e comandantes de várias polícias norte-americanas e canadenses. artigo intitulado “Democracia requer revisão das práticas policias”. de rever suas práticas. não se reconhece na corporação. que escreveu uma matéria para ser publicada na revista da PM: “Não sei quais são as queixas da população do Rio em relação à PM. Eu viajei várias vezes para os Estados Unidos. diversos países.. mas em um 10 Revista da PMERJ.. viajei pra França. Deve-se levar em conta que muitos estudos realizados pela PMERJ tomaram por base o chamado “estudo de polícia comparada”.. Essa revista me foi entregue por um Comandante do CPAE – Comando de Policiamento em Áreas Especiais. conforme aparece no discurso do professor da Unicamp Paulo Sérgio Pinheiro (1985)10. lançou-se a semente dessa prática em todo o Brasil. surge um dos primeiros projetos do Coronel Cerqueira voltados para áreas de favelas. o que facilitaria um contato mais próximo com seus moradores e o rompimento de um longo histórico de incursões policiais pontuais. que foi lançado em 1993. Em 1994. Dando início. Assim nos confirma o PM entrevistado: “Em 1993. (ALBERNAZ. que foi o assassinato de uma policial civil. sem nenhum vício de conduta.. recém formado. não havia celular. revelando uma abertura da PM.Sociologia. ou desvio. então. e se colocava ali no Morro da Providência. pesquisadores e lideranças da sociedade civil em processo de reorganização. O caráter inovador do projeto estava na permanência diuturna dos policiais na favela. PATRÍCIO. 2007). aconteceu um caso grave no Rio.. traduzindo para o português o livro “Policiamento Comunitário: Como Começar” de Trojanowicz. à difusão dessa nova modalidade de policiamento. A criação desse projeto aconteceu por causa de uma ação de violência que vitimou uma policial civil no Morro da Providência. no Morro da Providência. a Polícia Militar produzia um caderno sobre Policiamento Comunitário. lá no alto do Morro da Providência.. Pegava-se o recruta. Também tinha num Morro da Tijuca. a ONG Viva Rio se fazia presente promovendo a experiência do Policiamento Comunitário em Copacabana. denominado Grupamento de Aplicação Prático-Escolar – Gape. Nos anos 1990. e ali era feito um trabalho de prevenção à criminalidade. até então acostumada a dialogar apenas consigo mesma enquanto órgão estatal. olha só que démodé.. realizando o policiamento regular. localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro. o tema passa a ser objeto de interesse e de inquirição de lideranças políticas.” (Oficial PMERJ entrevistado em 2010 e em 2012) 245 . Na época se usava secretária eletrônica.. Ali foi criado um policiamento. cujo piloto foi testado no Morro da Providência. que era chamado de Grupamento Prático Escolar. O grupamento era formado essencialmente por recrutas e visava ser um laboratório de práticas comunitárias de policiamento.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas movimento de crescimento constante. 35 . Era um policiamento a pé..Vol. CARUSO. à participação de outros setores da sociedade. É interessante observar que a maioria dos casos de implementação de policiamento comunitário em favelas surgiu como resposta do estado a uma determinada ação violenta com repercussão midiática. . ao contrário dos policiais mais velhos na corporação. Quando a palestra era de pessoas “de fora”. É fácil ficar lendo um monte de abobrinhas e depois chegar aqui e dizer que descobriu a pólvora.. nota-se que esse discurso está pautado nas experiências da prática profissional. um tempo em que a temática da Segurança Pública passa a despertar o interesse da academia e dos chamados formadores de opinião. ao invés de repressivamente. Com o surgimento desses novos grupamentos. Para exemplificar essa dificuldade da polícia em ouvir e atender ideias de quem é “outsider” (ELIAS. ou seja. (risos do grupo). de “autoridade” sobre os alunos policiais. há a utilização de recrutas para atuarem nessa modalidade policial. Inaugura-se. Dessa forma. Foi nesse período de “polícia como sistema aberto”. havia certo desprezo pelas falas. Ainda de acordo com os relatos dos oficiais. 2000). que não atuavam como policiais... Quero ver ele lá. os recrutas. A questão da “palavra autorizada” em Bourdieu (1996) é uma ferramenta que serve bem para dialogar com a maneira como os policiais lidavam com as diferentes falas durante o curso. a PM. Esse tipo de tratamento dado pela polícia aos discursos daqueles que são considerados pela sociedade civil e pelas universidades especialistas no assunto é observado nos 246 . nos intervalos do curso. Além disso. pegando no pesado com a gente. e não costumam ser corrompíveis. de certa forma. até então acostumada a ouvir-se a si e aos seus pares apenas. quanto por parte de membros da própria corporação. que surgiu uma onda de reivindicações por mudanças na polícia. então. Notei que a fala dos palestrantes que eram policiais militares ou civis detinha um certo grau de “poder”. desvios. 35 . que não faça parte da rígida hierarquia militarista da polícia. conforme definiu o oficial que entrevistamos. mas que detinham certo grau de influência intelectual na sociedade.Sociologia. isso se deve ao fato de serem esses recrutas mais facilmente convencidos de trabalhar preventivamente. influenciada por pessoas que não faziam parte da corporação. desqualificarem todo o discurso de pessoas tidas como influentes no meio acadêmico: “Ah.”.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . não possuem vícios de conduta. esse cara não sabe de nada. Antropologia e Cultura Jurídicas Outro ponto interessante a ser observado na fala do PM é que desde o primeiro projeto até os dias de hoje. tanto por parte daqueles que não eram da corporação. Muitas vezes ouvi os alunos-policiais. passou a ser. cito a experiência que tive quando fiz um curso com policiais.Vol. mas a transgressões tais como “levantar a voz para um superior”. cujas linhas de fatos e de formação da rede da história são sabidamente infinitas. Essa espécie de “mentalidade de casta” que tradicionalmente vigora numa estrutura militar como a da PM. FREIRE. como ser “menos polícia”. surgem as propostas e. 1996) Em meio a cursos livres e palestras. 1997) 12 Apenas para informar: esse tipo de prática foi. “não justificar as faltas ao trabalho”. Com o policiamento comunitário não foi. em geral do meio acadêmico. pelo “excesso de militarismo” 11 (MUNIZ. ensinando e difundindo aquilo que “de dentro” eles entendem como policiamento comunitário. “não fazer nada”. ser 11 A PM continua sendo regida por um regulamento interno do tempo da ditadura militar. proibição de prestar declarações à sociedade civil ou à imprensa. (MUNIZ. o detentor do “cetro”. para a corporação. Este deve ser. consequentemente. de certa forma. que ministrarão os cursos cuja duração é de seis meses. 35 . ainda contavam com categorias estigmatizantes da corporação para com ela mesma. se caracteriza justamente pela atribuição de prestígio hierárquico. no qual se estabelecem como princípios fundamentais de controle: 1) estreita subordinação de todas as companhias ao comando do batalhão e deste ao Estado Maior da Polícia Militar. etc. conforme constatou estudo feito por Jaqueline Muniz (1997). apresentar “aparência descuidada”. Somente policiais recém ingressados na PM participam dessa formação. sem autorização do Estado Maior. Atualmente.o que. não se refere a atos delituosos. (BOURDIEU. et al. as práticas do chamado policiamento comunitário no Rio de Janeiro.Sociologia.Vol. “questionar outro policial de igual patente”. os policiais que se dispunham a se informar e atuar pautados nessa nova forma de patrulha. com policiais protagonizando a produção de uma didática. pela concentração de poder decisório nos escalões superiores. 2) “lei do silêncio”.12 Os primeiros cursos da PM voltados para essa formação específica já se mostravam precários. amparados em literaturas e experiências estrangeiras. 1997) A “autoridade” para falar à corporação e ter credibilidade dependerá da posição social do locutor. Antropologia e Cultura Jurídicas diversos momentos das tentativas de mudanças na polícia. uma pessoa autorizada a tomar a palavra. e. pelo controle disciplinar. revista com a implementação das UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). LARVIE. isto é. 3) abertura de Inquérito Policial Militar (IPM) e aplicação sumária de penas a quaisquer situações que possam ser interpretadas como “indisciplina” ou desrespeito às normas de conduta institucional . e não tem sido diferente. como em Homero. Não raro. que inclusive também se utilizam desses dados de composição histórica do policiamento comunitário. enfim. que selecionam os profissionais. MUSUMECI. Além disso. ouvi policias dizerem que todas as mudanças propostas à corporação são de pessoas “de fora” que “não sabem nada de polícia”. 247 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . na maior parte das vezes. os cursos de formação dos policiais que vão atuar no policiamento comunitário contam com outro tipo de material e são organizados por ONGs. em média. “usar bigode ou barba sem autorização”. parece ainda não possuir uma resposta definida que possibilite uma comparação entre o discurso e a prática. Antropologia e Cultura Jurídicas “relações públicas”. fazer “brincadeira de menina”. 1997) O processo pedagógico que deveria levar os policiais a internalizarem mais profundamente uma mentalidade alternativa à cultura institucional dominante possui um histórico de “precariedade” e de falta de apoio de membros da própria corporação. FREIRE. dominante. de fato. 2007 e MUNIZ. como apostilas. palestras. Apenas constatei que há certa dificuldade em apresentar o significado de tal conceito. praticar atividades “menores”.Sociologia. MUSUMECI. FREIRE.Vol. 248 . LARVIE. A pergunta “o que é o policiamento comunitário?” desde o surgimento dos primeiros programas que adotaram essa filosofia. “masculinidade duvidosa”. tendendo a considerar secundárias outras tarefas. (ALBERNAZ. “policial cor-de-rosa”. (ALBERNAZ. 1997) Isto se observa. que supervaloriza como critério de desempenho e como “verdadeiro trabalho de polícia” atuações mais diretamente relacionadas à repressão do crime. LARVIE. Não se quer dizer que deva haver essa definição. etc. já que será o fazer que nos trará as respostas. Mesmo após o processo histórico de difusão de uma nova filosofia13 da prática policial. 13 Filosofia aparece como categoria nativa. 35 . vídeos. CARUSO. conforme se vê nos estudos realizados sobre o tema. CARUSO. 2007 e MUNIZ. “aquele que não sobe morro”.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . na forma como os policiais elaboravam e difundiam essa filosofia. reforçava-se na corporação a cultura policial tradicional. foi produzido por integrantes da PMERJ e até por algumas ONGs na tentativa de difundir entre os atores policiais esse tipo de filosofia que se revelava diferente das práticas tradicionais da polícia. Isso sem adentrar na problematização da própria categoria “comunitária” para adjetivar a polícia. tanto a polícia quanto a população não haviam compreendido muito bem do que se tratava. PATRÍCIO. No interior mesmo da corporação havia dissenso a respeito do que seria realmente um policiamento comunitário. PATRÍCIO. Um grande número de material. “aquele que não encara bandido”. MUSUMECI. Paralelamente. “aquele que não troca tiro”. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . os autores referendados também explicam que “Skolnick e Bailey (2008). Não há consenso no mundo sobre o significado do conceito. entre os anos 1960 e 1970. 2008) “Para estes policiais. o que se chama de filosofia de policiamento comunitário na PMERJ tem como pilar fundamental a “colaboração ativa entre as forças policiais e as comunidades na construção de políticas locais. (MUNIZ.. o que dá margem a diferentes interpretações teóricas e a diversas possibilidades de projetos classificados como policiamento comunitário” (MIRANDA. 1998)14 14 Em nota. S. o caráter dos moradores dos morros. Além disso. como conduzir enfermos para o hospital. além de conseguir presentes para as crianças para conquistá-las. MUSUMECI. Sua premissa central é a participação ativa da população na promoção da segurança. Entretanto. LARVIE. Antropologia e Cultura Jurídicas Com base em seus estudos a respeito do tema. ou formar. 1997 apud CERQUEIRA. e não como uma filosofia.” (SILVA. como doutrina estruturada.Sociologia. pois com os adultos não teria mais jeito. destaca essa dificuldade de haver consenso sobre o que venha a ser essa modalidade policial: “.o policiamento comunitário é entendido como uma estratégia. voltada para a eficácia policial na prevenção e controle do crime. a professora Ana Paula Mendes de Miranda (2008). sendo um subproduto de uma intensa movimentação pública. datando as origens do policiamento comunitário entre os anos 1914 e 1919. também seria uma maneira de realizar Policiamento Comunitário. ainda retrocedem um pouco mais. mas também transformar. quando a população e os segmentos organizados levantavam pautas como a guerra. que poderia ser considerado como inovador até mesmo entre os atuais chefes de polícia. “Woods viu a responsabilidade do policial para com a comunidade de maneira tão abrangente. ser Policial Comunitário é implementar projetos sociais no morro. preventivas e participativas de segurança”. 2006) Em linhas gerais. realizar ocorrências categorizadas pela PM do Rio de Janeiro como assistencialistas... etc. os direitos civis e mesmo as práticas dos órgãos policiais. FREIRE. conforme aparece nos materiais elaborados por membros da própria PM. Eles desejam não só prevenir o crime através do trabalho da polícia.Vol. quanto os conseguidos através de apoio com a prefeitura e com a iniciativa privada. 35 . essa alternativa de policiamento surgiu nos Estados Unidos. Cada policial era responsável pelas condições sociais de uma rua ou de um bairro” (2008) 249 . na gestão de Arthur Woods como comissário de polícia de Nova York. tanto os realizados por eles. dou destaque às apostilas e apresentações em Power Point elaboradas por policiais que atuavam sob essa filosofia. a priori. Vale ressaltar que os cursos nos quais esse material foi utilizado foram os pioneiros na formação dos policias que atuariam no chamado policiamento comunitário. “Organizar uma comunidade é uma tarefa difícil”. mas sim na zona sul da cidade. ambas encontradas nos discursos policiais que atuaram no “Policiamento Comunitário de Quarteirão” ganharam novos significados quando se passou a pensar essa prática para as favelas. Portanto. Sendo assim. 250 . A prática de polícia comunitária nessa época. No acervo pessoal desses policias16 pude ver centenas de fotos do trabalho da polícia comunitária. o termo comunitário passou a ser incorporado no discurso policial para designar uma comunidade específica: a favela. De que “comunidade” está se falando? Deve-se considerar que “comunidade” passou a ser uma categoria nativa. adotando. para a elaboração de dissertação mestrado. por exemplo. Com esse material.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 16 Fiz um curso de pós-graduação com policias e lá tive a oportunidade de conhecer diversos profissionais dessa área que trabalhavam com policiamento comunitário. para designar “favela”. essa prática visava à incrementação da “qualidade de vida” dos moradores de áreas nobres e a prevenção do crime num horizonte de médio a longo prazo. em Niterói. O policiamento comunitário não foi criado. ampliando-se ao senso comum. 35 . previa uma 15 Algumas informações trazidas para este trabalho advém do estudo de caso realizado no Morro do Cavalão. documentos históricos do tema. Baseei-me neste material para produzir uma compreensão/interpretação da maneira como os policiais entendem essa “filosofia de polícia comunitária”. Essa frase compõe um dos slides produzidos pelo PM responsável pela formação dos seus pares na corporação.Vol. Antropologia e Cultura Jurídicas Do material que analisei para realizar parte deste estudo15. tanto no discurso policial quanto no da própria população favelada. categorias como “cultura de participação” e “comunidade organizada”. no Rio de Janeiro para ser implementado exclusivamente nas favelas. apostilas e palestras realizadas para policiais e lideranças tanto de favelas quanto de outros setores da sociedade.Sociologia. quando muito. Recebi das mãos deles (oficias da PMERJ) todo o material dos cursos e as fotos dos trabalhos realizados na PMERJ. uma “filosofia diferente”. então. foi possível observar de que forma eram preparados esses profissionais da área da Segurança Pública para atuar de maneira “diferente” do tradicional. No primeiro momento. porteiros. boates. implicando sobretrabalho e risco para os soldados. garçons.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . flexibilizando-se a escala de trabalho dos policiais de acordo com as necessidades que a própria experiência revelasse (as escalas eram limitadas aos 28 quarteirões e ao período de 8h às 20h). Outro problema e/ou dificuldade apontado no estudo acima. um caminho efetivo para superá-las. via-se como “sobretrabalho e risco”. p 201) Com efeito. do ponto de vista da Segurança Pública. Essa prática informal. seguranças e gerentes de bares. (MUNIZ. é o fato de deixar de abarcar diretamente os chamados “focos maiores de desordem. ser punidos) alguns policiais de ponta faziam a chamada “arribação”. nota-se que. ou ampliavam o território das rondas diárias. quando se iniciou essa filosofia de polícia no Rio de Janeiro. de modo a abranger localidades não cobertas oficialmente pelo projeto (inclusive algumas vias de acesso às favelas. 1997) Essa modalidade policial “embrionária” voltada inicialmente para áreas nobres da cidade começa a dar lugar a outras preocupações consideradas mais relevantes. além da subutilização de uma das principais características do policiamento comunitário. não constituiu. Isto porque. Assim. o acesso dos “policiais de ponta” à “comunidade residente” ficou restrito. que é a adaptabilidade às demandas de resoluções de problemas. Outros atores que poderiam “constituir parcerias fundamentais para a redução da violência noturna” na zona sul e que não tinham contato com os policiais de ponta eram os travestis. deslocavam-se de seus quarteirões para resolver problemas noutros subsetores. LARVIE. conforme se observa no trecho abaixo: “Mesmo sem autorização expressa (arriscando. portanto. como o mercado sexual noturno”. na tentativa de conseguir informações e maior controle sobre “elementos suspeitos” de criminalidade provenientes dos morros). na fala dos pesquisadores. hotéis. 1997. inseridos no trabalho de polícia comunitária. 35 .Vol. atuando nas proximidades das favelas. apenas contornou precária e parcialmente as limitações impostas à experiência. nem podia constituir. já que moradores e síndicos de edifícios estavam trabalhando fora nos horários em que a PM ali atuava.” (MUNIZ. não incluindo as favelas existentes no seu entorno. FREIRE.Sociologia. em meio ao descontentamento daqueles que consideravam os resultados desse tipo de programa como “positivos” e a “luta contrária” 251 . prostitutas. como vimos. alguns bastante óbvios. MUSUMECI. a atuação desses policiais se limitava geograficamente à área que correspondia ao quarteirão de uma zona nobre da cidade. et al. Antropologia e Cultura Jurídicas atuação não autorizada nas vias de acesso às favelas. Além disso. o fato de se ter soldados da PM. isto é. Levando-se em conta as resistências e os obstáculos manifestos desde o início do programa. e que consideram inócuo o enfrentamento da desordem pública e exaltam as práticas puramente repressivas como verdadeiro. contribuiu para que a primeira tentativa de implementação ruísse. possui. 198) A existência de duas modalidades distintas de policiamento dentro da PMERJ aparece não só no fragmento acima.Vol. Como todos os outros “projetos especiais”.Sociologia. pela corporação. et al. et al. pouco tempo faltava. não teve grande dificuldade em desmontá-lo em poucos meses. 1997. demonstrando posicionamentos ideológicos de um lado favoráveis e de outro contrários ao trabalho preventivo. conforme observa-se no trecho abaixo: “O projeto ficou tão fragilizado – dentro e fora da PM – que o novo comando da política de segurança do Estado. essa desativação representou a vitória de setores que se opõem a transformações na doutrina e nas formas tradicionais de atuação policial. como o “crime organizado”. Antropologia e Cultura Jurídicas dos policiais filiados às doutrinas e às formas tradicionais de atuação policial. 35 . fosse na favela. nota-se que a prática de policiamento comunitário. sem alarde. podemos assim chamá-la. “trabalho de polícia”. primeira versão do policiamento comunitário do Rio de Janeiro. não contava com o apoio nem com a simpatia de uma boa parcela da corporação. desde aquele então. o trabalho de polícia comunitária.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . senão único. Nesse sentido. cujos atores eram vistos na corporação como “policiais cor-de-rosa”. Se o pretexto para que esse tipo de programa fosse desativado era a “urgência de se confrontar o propagado crime organizado no Rio de Janeiro”. Além dos problemas apresentados no estudo feito por Jaqueline Muniz (1997). (MUNIZ. 1997) O Policiamento Comunitário não era visto. para que essa modalidade de polícia se voltasse para áreas onde o “crime organizado” se mostrava mais “evidente”. a patrulha comunitária de Copacabana foi desativada sob o pretexto da “urgência” de se “confrontar” o propagado “crime organizado” no Rio de Janeiro. encerrou-se a. p. e sem que qualquer avaliação prévia de seus resultados justificasse considerálo supérfluo ou secundário. como algo que servisse como uma política de Segurança Pública capaz de combater os reais problemas da cidade. (MUNIZ. naquele então. Com isso. o que é entendido como prevenção não é aceito pela corporação como “verdadeiro trabalho de polícia”. A falta de identificação da corporação com esse tipo de trabalho que se distancia do repressivo. que desejam preservar a autossuficiência corporativa dos órgãos de segurança pública e desaprovam ou temem sua abertura ao diálogo com a sociedade civil. os estigmas de um trabalho que não é de polícia. fosse na zona sul. mas também no material 252 . já em suas versões primeiras. assumindo em maio de 1995 com a bandeira do “endurecimento policial”. Sociologia. 35 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . De qualquer forma. ele amplia e complementa as ações de polícia! Deve-se considerar.Vol. ao importarem certas categorias e adotarem um discurso que não é fruto de constatações empíricas na nossa realidade. gerando uma espécie de “discurso oficial”. COMPARANDO OS MODELOS DE POLICIAMENTO POLICIA TRADICIONAL POLICIA COMUNITÁRIA Policiamento aleatório Policial anônimo Baixa participação comunitária Policiamento fixo Policial conhecido Alta participação da comunidade Polícia é reativa Ênfase na repressão Policial = executor Polícia é pro-ativa Ênfase na prevenção Policial = chefe de polícia local Foco: resolução de crimes Abordagem ampla de solução de problemas Problemas que perturbem a comunidade Eficiência: cooperação do público Prioridade: crimes de destaque Eficiência: tempo de resposta Policia Comunitária não disputa espaço com o TRADICIONAL. o fato de que muitos dos textos utilizados nos materiais de formação do policial comunitário são meras reproduções literais e/ou parafrásicas de autores cuja experiência de pesquisa em nada tem a ver com a realidade brasileira. a “comunidade” é outra. Aqueles que “exaltam as práticas puramente repressivas como verdadeiro. “autorizado”. que acabam gerando posicionamentos contraditórios dentro da própria corporação. apesar das reclamações desses mesmos atores da falta de elementos orientadores do trabalho. senão único. o que se vê é uma espécie de “mosaico” de idéias sendo lançados no universo policial brasileiro. antes de tudo. Mesmo assim. A polícia é outra. esse material foi pensado e apresentado por policiais. como “apostilas”. as realidades são outras. Antropologia e Cultura Jurídicas utilizado nos cursos de preparação voltados para a filosofia do policiamento comunitário. 253 . trabalho de polícia” sequer reconhecem a existência desses dois modelos. Nota-se que este tipo de comparação entre as duas polícias só é visto pelos policiais que participam dessa formação. 254 . o pastor.. Na fala do oficial PMERJ.. e a outra como “intervenção cirúrgica para retirada de tumor malígno”..... Eu visitei uma cidade muito desenvolvida nesse ponto.. Você precisa de remédios.. a partir das conversas com os policiais. mas houve aqui uma resistência muito grande. Cada Batalhão. Constata-se a existência.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A gente viu nos EUA que tem um policial que trabalha só com negros. tirar uma parte que tem um tumor maligno. pode contar com esses dois tipos de polícia.. Observei. De um lado o “verdadeiro trabalho de polícia” e de outro o trabalho dos de “masculinidade duvidosa” ou de “policiais corde-rosa”. no Canadá. só idosos.. chegando. amparadas e com atribuições definidas num mesmo texto constitucional. Havia uma ideia assim. mas não é só essa questão de morro.. Mas tem que usar a inteligência. só hispânicos.. que a criação de modelos de policiamento diferenciados não é aceita pela corporação. “tradicional” e “comunitária”. por sua vez. “As pessoas achavam que a gente ia passar a mão na cabeça dos bandidos. embora criadas. funções distintas.. repressivo...” (Oficial PMERJ entrevistado em 2010 e em 2012) As duas polícias possuem.Vol. à noite. O que se tem é uma cultura enraizada no chamado modelo tradicional. só gays. trabalho de vitimização. precisa tirar um apêndice.. Uma atua como “remédio”. metáfora para a prevenção. Agora se você entra numa comunidade e morre uma criança. um padre. Principalmente quando se falava em direitos humanos.. Essas duas polícias estão contidas numa mesma corporação. vamos comparar o mal social com uma doença. respeito à Constituição. às vezes precisa de táticas cirúrgicas. uma grávida.. só voluntários. Tem o trato com grupos minoritários. na fala do PM. surgem no mundo policial duas polícias distintas. polícia cidadã. de uma modalidade policial que se contrapõe à doutrina e à forma tradicional de atuação da polícia.. tem um policial que trabalha só com asiáticos. É essa tropa repressiva especializada [que faz isso]. metáfora para a repressão. Antropologia e Cultura Jurídicas Não há previsão legal e/ou doutrinária no ordenamento jurídico brasileiro para esses dois tipos de polícia... na prática. Tem que ter os dois. é uma coisa. um policial. 35 ... tem outras questões. Muita gente só gosta do que aparece no Tropa de Elite: matar ou morrer. Você prender o camarada saindo. considerando-se a dimensão prática. direitos individuais. Ás vezes você precisa de remédios. a comunidade vai ficar com mais raiva da polícia.. uma série de programas interessantíssimos.. Assim sendo.Sociologia. Não é só a repressão pura e simplesmente.. de favela. esses dois tipos de policiamento são necessários.. ... de maneira geral. me desculpem as autoridades. se resume a denunciar criminosos. quatro normas básicas devem ser contempladas: organizar a prevenção do crime com base na comunidade. aumentar a responsabilidade das comunidades locais. oito bairros. na Vila Cruzeiro.... A possibilidade de o policial se corromper vai ser muito grande. em oposição à tradicional repressão. até chegarem os serviços. No discurso da PMERJ. não podem ser alvo desse tipo de policiamento.. Embora implantada de maneira restrita e fragmentada na PMERJ. (ALBERNAZ. Na prática. os complexos... para que se possa classificar uma experiência como policiamento comunitário. e depois a comunidade voltar ao normal. não vai dar certo. esses quatro presupostos.. em geral... onde não exista uma incidência criminal muito grande. É impossível fazer um trabalho de policiamento comunitário numa comunidade como aquela que envolve sete. 35 . PATRÍCIO.. enfatizar os serviços não-emergenciais nas atividades de patrulhamento. Antropologia e Cultura Jurídicas Segundo Skolnick e Bailey (2008). a quantidade de marginais que tinha ali. é como você viu aí na TV.. Um ponto quase cirúrgico. a prevenção é apresentada como ação assistencialista por parte da polícia e de ONGs e a participação da comunidade. descentralizar as estruturas de comando de controle A PMERJ. como os complexos. altamente armados. a filosofia de policiamento comunitário constitui o norte teórico de suas práticas operacionais. Lugares muito grandes. somente a ocupação é viável. 2007) E isso se mostra no material que analisei para realizar parte deste estudo. a letalidade 255 . “O policiamento comunitário tem que ser em área pequena. esse tipo de trabalho só é possível em comunidades pequenas. é impossível o policiamento comunitário..Vol. Na opinião do oficial PMERJ. em manuais e documentos de referência sobre o tema.. Ali tem que ser um trabalho de ocupação e a longo prazo. Essa prevenção se apóia na ideia de participação efetiva da comunidade. A PM terá grandes problemas no Alemão e na Rocinha..COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . O complexo do Alemão são oito bairros. a ênfase do trabalho comunitário é dada à prevenção..Sociologia. Lá a cultura da comunidade é uma cultura de violência.. retoma. CARUSO. As grandes favelas.. Para estes espaços. 1994) a ideia era mais “universalizadora”. na nossa experiência brasileira. especialmente Estados Unidos e Canadá. “áreas especiais”.Sociologia. nos anos 1980. p. A “prevenção” só é viável em espaços geográficos pequenos. nos moldes do que é entendido como policiamento comunitário.” (Oficial PMERJ entrevistado em 2010 e em 2012) Com esse discurso. necessariamente.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . para diferentes bairros.. e. Numa expressão bastante adequada. A “ocupação” se diferencia da “prevenção” e se aproxima mais da “repressão”. Conforme observamos.. 35 . especialmente se considerarmos que. Sob esse prisma. juntamente com a polícia. 2006. LEITE. esse tipo de policiamento passou a ser pensado para as favelas.” Ou ainda: “Policiais veteranos reconhecem que seus trabalhos se tornam mais fáceis se o público ‘coopera’ com a polícia e lhe dá ‘apoio’. incorporada no Rio de Janeiro. Nas propostas estrangeiras (SKOLNICK e BAILEY. A não ser que pare de entrar armas. nem mesmo o sistema de justiça criminal pode fazer isso. se distanciam da realidade e do contexto onde esse tipo de trabalho policial foi mais amplamente implementado no Rio de Janeiro. sozinho. Antropologia e Cultura Jurídicas vai ser muito grande. só é possível a atuação policial chamada de “ocupação”. o público deve ser visto como ‘co-produtor’ da segurança e da ordem.” (SKOLNICK E BAYLEY. 2008) através de projetos sociais. pois a polícia não consegue arcar sozinha com a responsabilidade. Isso nos mostra que apenas a presença física da polícia num determinado local não caracteriza. TRAJANOWICS.18). sem a ideia praticamente reducionista do “afastamento das tentações da carreira criminal” (SILVA. Para grandes espaços. mesmo tendo-se ensaiado essa prática na zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Para se pensar esses trechos cujos conceitos são 256 . o uso do adjetivo “comunitário” para designar um tipo de trabalho policial distinto dos demais pode ser alvo de interpretações diversas. proximidade com a população ou abertura ao diálogo com a mesma. o PM nos apresenta uma prática que se chama “ocupação”. 2008. como os complexos de favelas. ou seja. ideias como a de que a população “deve exercer um papel mais ativo e coordenado na obtenção da segurança. esse tipo de trabalho policial denominado comunitário se difundiu na corporação com base em literatura estrangeira e em experiências dessa prática em outros países.Vol. Neste sentido. aparece nesse contexto como sinônimo para “comunidades”. Só que houve também um interesse político nisso. 35 .. Ver bibliografia: LOPES. onde existam elevados indicadores de violência e criminalidade.Sociologia. que por sua vez tem significado próprio no discurso não só da corporação como do senso comum. quadruplicado. 2010.. combinado com destacada deficiência na prestação de serviços públicos essenciais e onde também se verifica a existência de condições inadequadas para o desenvolvimento humano e comunitário. Vou dar minha opinião pessoal.. de acordo com o recorte temporal de nosso estudo. Qualquer troca de tiros ali vai ferir inocentes.. a exemplo do que comumente fazemos na área do Direito.. Acho que quem criou esse nome quis se referir a comunidades que precisavam ser pacificadas.... importamos terminologias usadas em outros contextos e criamos uma prática de Policiamento Comunitário própria. então..” (Oficial PMERJ entrevistado em 2010 e em 2012) A categoria “áreas especiais”. “comprar discursos” e reproduzi-los indistintamente.. O “mundo” do Direito.. Antropologia e Cultura Jurídicas importados de outras culturas. naturalizá-las. onde discuto a questão da pesquisa e da metodologia aplicadas no Direito. não equivale ao mundo dos fatos sociais. Ao ser indagado sobre o que seria uma área especial.. é importante atentar para o perigo que há em se universalizar categorias. até um ator foi morto ali. A área é especial porque havia um risco muito grande de baixas de pessoas inocentes causadas pelos dois lados: policiais e bandidos. assim. qual seja “favelas”. A polícia quando entrar ali tem que ter um cuidado triplicado. é perceber que.. construímos saberes de acordo com a orientação da dogmática jurídica. que inclusive recebe no contexto carioca. propiciando dessa forma um fértil campo para proliferação de atividades 17 Escrevi um artigo específico sobre esse tema. onde a taxa de homicídio era muito alta e onde houvesse a possibilidade de sucesso.17 Na nossa cultura legal. (KANT DE LIMA. não sei. No Pavão Pavãozinho e Cantagalo você tem uma comunidade incrustada no meio dos prédios... 257 . “Entende-se por Áreas Especiais (AE) o espaço geográfico de densa ocupação humana. por isso é melhor já estar ali.. passa pobre também. sem sequer problematizá-los. um novo nome: “Policiamento em áreas especiais” ou. ali não passa só rico.. “Policiamento para áreas especiais”.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. portanto... não tem uma resposta. no que diz respeito a nossa política de Segurança Pública.. 1989) O que nos interessa neste raciocínio. o oficial PMERJ entrevistado disse: “Boa pergunta. que consiste em uma concepção normativa abstrata e formal do Direito. p.17) entendidas como “áreas especiais”. a tentativa original de se “quebrar” ou minimizar alguns dos preconceitos recorrentes na relação da polícia com os favelados valendo-se da categoria “especial” acaba por possibilitar a incorporação de cargas semânticas diferentes. propiciando dessa forma um fértil campo para proliferação de atividades desordeiras e criminosas. uma ameaça à cidade que surgiram os primeiros discursos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. nem no interior da corporação. CARUSO. para interpretar “áreas especiais”. PATRICIO. no contexto do Rio de Janeiro. são categorias incorporadas ao discurso policial. principalmente em termos de infra-estrutura e serviços”. desvirtuada. Considerações finais Foi num contexto histórico-social de construção e reafirmação da ideia de que as favelas representavam. a tentativa de se aproximar essa categoria de algo que seja “especial”. na corporação e fora dela. sobre implementação de uma política de 258 . (BLANCO. OLIVEIRA. 2002. parece não ter ganhado força nem no senso comum. a ausência total da ação do Estado. combinado com destacada deficiência na prestação de serviços públicos essenciais e onde também se verifica a existência de condições inadequadas para o desenvolvimento humano e comunitário. a ausência total da ação do Estado.Sociologia. que não interpretam a categoria “áreas especiais” com o eufemismo desejado. Antropologia e Cultura Jurídicas desordeiras e criminosas. 2005) Dessa forma. 2007) Essas áreas com “elevados indicadores de violência e criminalidade. principalmente em termos de infra-estrutura e serviços”. e sua população representa uma ameaça à cidade. em face da pouca presença. 35 . dentre outras coisas. (ALBERNAZ. (LEITE. 2002. à medida que transita entre diversos contextos relacionais. ou até mesmo. ou até mesmo. p. Assim. resulta na criação de uma nova construção semântica. ou ainda “comunidades” ou “favelas”. Favelas são vistas como territórios da ilegalidade e do crime. em face da pouca presença. considerando-se seu sentido mais positivo. (BLANCO. que ocupam um mesmo grupo semântico para designar o lugar onde o trabalho policial com filosofia “comunitária” será desenvolvido.17) Esse esforço semântico para se apresentar a favela como um lugar “especial”. Sociologia. MUSUMECI. viam como “sobretrabalho e risco” (MUNIZ. Inclusive. Um exemplo é o caso da categoria “comunitário” que ficou atrelada à ideia de “comunidade”. que por sua vez é sinonímia. p 201) a atuação nas entradas das favelas próximas aos quarteirões da área considerada nobre.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . LARVIE. na própria corporação. então amparado na ideia de “prevenção” e não de “repressão”. FREIRE. possibilitando a existência de sentidos diversos surgidos no contexto das práticas institucionais de policiamento no Estado do Rio de Janeiro. que. No início. para desqualificar o trabalho desenvolvido pela PMERJ. segundo um policial que entrevistei são “comunidades que precisam ser pacificadas”. os policiais comunitários. Os policiais ligados a essa prática voltada para uma “nova filosofia”. por isso muitas categorias foram importadas da literatura estrangeira sobre o assunto e passaram a fazer parte das práticas discursivas dos policiais. tinham de conviver com o estigma do “policial cor-de-rosa”. no contexto do Rio de Janeiro. de acordo com o discurso dos membros da corporação que fizeram parte dessa pesquisa. do “combate ao inimigo interno”. O comando dos policiais comunitários teve dificuldades para criar um material que desse conta de formar os recrutas nessa modalidade de atuação. Com a emergência do GPAE (Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais). As primeiras práticas policiais que foram chamadas de “policiamento comunitário” sequer foram pensadas para as favelas. para denominar “favela”. 35 . a atuação baseada na “prevenção”. nas favelas do Rio de Janeiro. A “polícia comunitária” tem como proposta. então na zona sul da cidade. encararam as dificuldades para difundir. aqueles que eram responsáveis pela formação dos policiais que atuariam como policiais comunitários. Essa e outras categorias eram utilizadas pelos policiais “tradicionais” e até por atuantes na nova proposta.Vol. 259 . A proposta do chamado policiamento comunitário trouxe para o mundo policial uma alternativa à chamada “polícia tradicional”. 1997. demonstrar e tornar aceitável um modelo de ação policial que romperia com anos de formação e atuação amparadas na lógica militar. Antropologia e Cultura Jurídicas Segurança Pública voltada para as populações faveladas. a PMERJ passou a denominar as favelas como “Áreas Especiais”. que atuava com base na “repressão”. In: Miséria do mundo. 35 . GPAE: uma experiência de polícia comunitária.21. 2003. 1989. Elizabete R. Economia das trocas lingüísticas. para os policiais do GPAE. 58.C. n. (MISSE. A. Além disso. 2.2007. Tensões e desafios de um policiamento comunitário em favelas do Rio de Janeiro: o caso do Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais. 2008) Bibliografia ALBERNAZ. Antropologia e Cultura Jurídicas Atuar como policial nessas “áreas especiais” requer o uso de “estratégias voltadas para a eficácia policial na prevenção e controle do crime” (MIRANDA. O Galo e o Pavão.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2012) De qualquer modo.” (MIRANDA. 1996. reproduzindo uma questão histórica de assistencialismo vindo ora de políticos. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.. 39-52. “ser Policial Comunitário é implementar projetos sociais no morro” (SILVA. PATRICIO.Vol. S. Pierre. jul/dez. Haydée. n. “não há consenso no mundo sobre o significado do conceito. 27ª ed. Luciane.. ora de milicianos. BLANCO. Rio de Janeiro.159166) _______.. “Efeitos de Lugar”. 2001. v. _______. 260 . São Paulo: Edusp. O poder simbólico.C. CARUSO. Comunicação do ISER. 2006). p. ano 22. 2008). 2008 (p. ora de policiais. Revista São Paulo em Perspectiva. Rio de Janeiro: Saraiva.Sociologia. BOURDIEU. ora de traficantes. Petrópolis-RJ: Vozes. Por outro lado. deve-se considerar que a participação ativa da população na promoção da segurança é um importante elemento na promoção desse modelo de atuação policial. Lisboa: Difel. o que dá margem a diferentes interpretações teóricas e a diversas possibilidades de projetos classificados como policiamento comunitário. GOFFMAN. Pedro Paulo de. MISSE. E.. “Igualdade à Brasileira: Cidadania como Instituto Jurídico no Brasil”. Praia Vermelha – PPGSS . Acessado em 19/12/2011. 1989. In: Maria Stella de Amorim. Ana Paula Mendes de. Jul/Dez 2008. A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Policiamento Comunitário no Rio de Janeiro. Coronel Nazareth Cerqueira.Vol. Entre Pavões e Pinguins: a questão da metodologia e da pesquisa em Direito. Petrópolis: Vozes. __________. John. 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João Trajano. em nossa sociedade moderna e ocidental. dos operadores do direito. por meio de conceitos extraídos da antropologia e a partir da etnografia de Conley e O’Barr sobre as estratégias discursivas e os jogos de linguagem executados por advogados de defesa de acusados de estupro. CONLUSAO. political economy of truth. Those categories are categories from Pierre Bourdieu. 35 . verdade jurídica. muitos são os mecanismos disponíveis a conformar o campo e o habitus. as percepções sobre a histórica política do conhecimento. fundamentalmente. Abstract: The law is in our modern and occidental society one of the most principal institutions where the socials discourses that have the status of truth are made. Neste trabalho. estratégias discursivas de advogados de defesa. 2 O DIREITO NA CONSTRUÇÃO DA VERDADE DO ESTUPRO: ANÁLISE DOS MICROMECANISMOS QUE PERMITEM AO DIREITO DECLARAR A VERDADE. Antropologia e Cultura Jurídicas A VERDADE JURÍDICA NOS CRIMES DE ESTUPRO: ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DE ADVOGADOS DE DEFESA DE ACUSADOS DE ESTUPRO Igor Lima Goettenauer de Oliveira1 THE LEGAL TRUTH IN RAPE CRIMES SUMÁRIO: INTRODUÇAO. rape. Como marco teórico. many are the available mechanisms to conform the categories field and habitus of the professionals who works with the legal system. Membro do Núcleo de Estudo de Direito Alternativo – NEDA. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Resumo: O direito é. By the concepts taken from the anthropology and through the Conley’s and O’Barr’s ethnography about the discursive strategic and language games used for defensive lawyers in rape cases I try to show those mechanisms working using the Michel’s Foucault theory about the policital economy of truth. Therefore.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . discursive strategies of defense lawyers. Mestrando em direito pela Universidade de Brasília – UnB. 1 Graduado em direito pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. 264 .Sociologia. economia política da verdade. uso. Palavras-chave: análise de discurso. uma das principais instâncias de construção dos discursos sociais que possuem o estatuto de verdade. categorias tomadas emprestadas de Pierre Bourdieu. legal truth. procuro encontrar elementos que desnudem aquela tese sobre a centralidade do fenômeno jurídico e que demonstrem esses mecanismos em funcionamento. de Michel Foucault. 1 O DIREITO E A LUTA PELA VERDADE: A HISTÓRIA POLÍTICA DO CONHECIMENTO. estatuto da verdade.Vol. estupro. status of truth. Para tanto. Key-words: discourse analysis. Assim.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . as opiniões.Vol.Sociologia. a formação da verdade necessita de mecanismos e procedimentos próprios que são reconhecidos socialmente como legítimos para a produção do verdadeiro. Para desenvolver 2 3 Sobre o estatuto da verdade e a função econômico-político que desempenha. as certezas sociais e. A verdade é que no bucho de toda mentira verdade tem! (Chico Buarque de Holanda – Verdadeira Embolada) A Verdade. um núcleo sólido. A percepção central deste trabalho é que. as regularidades. Esse processo é aquilo que Michel Foucault vai denominar como economia política da verdade. os argumentos. patriarcal. profissões e profissionais aos quais específica comunidade delega esse prestigiado papel de serem os reveladores do que seja válido. – o discurso jurídico é instrumento essencial3 a conformar a economia política da verdade. um componente absoluto em que a Verdade repousaria 265 . que basta aquele algo em si mesmo considerado para compreendermos a ontologia desse fenômeno. o conto. em contrapartida. ou em termos mais precisos. pensar assim nos leva a considerar que há um elemento imutável livre e fora de toda temporalidade e qualquer historicidade a repercutir inelutavelmente nesse fenômeno. os conhecimentos. p. em uma palavra. os fatos. Se disfarça de palpite pra verdade enfeitiçar. cristã. em nossa sociedade – moderna. ver Foucault (1979. não poso supor como o faz parte considerável da tradição filosófica. de passado colonial etc.. o irregular. a falácias. Antropologia e Cultura Jurídicas INTRODUÇÃO A mentira. são construídos por meio de um complexo sistema dialético e analógico de mútua exclusão/afirmação. Usar o vocábulo ‘essência’ implica que se façam algumas advertências. ocidental. a ilusão. ou seja a mentira social. o equívoco. Muitas são as instituições. capitalista. me acredite com a verdade vai casar. o engano. 13). institutos. 35 . Todo mundo quer convite a capela vai rachar pra ver a verdade se mordendo de apetite ao pé do altar. compacto e imanente que força alguma pode perturbar. Quando afirmo que algo é essencial a um fenômeno qualquer.. o discurso que dentro de um determinado espaço-tempo possui o status de verdade não é qualquer coisa que possua validade imanente ou que possa ter seu fundamento de verdade encontrado em si mesmo.2 Antes. 35 . 2002. funcionando dentro da engrenagem maior do espaço judicial. a verdade jurídica de forma relativamente autônoma e mesmo antagônica à verdade factual. p. são usados pelos advogados para recriar os fatos alegados pelas vítimas.Vol. O DIREITO E A LUTA PELA VERDADE: A HISTÓRIA POLÍTICA DO CONHECIMENTO Afirmar que o direito possui o privilégio de dizer a verdade não significa dizer que seja algo como um método profético de revelação da divina substância das coisas. Como nos ensinam Nietzsche e Foucault. passarei aos depoimentos de alegadas vítimas de estupro coletados secundariamente por John M. como lhes é possível construir. language and power”. Vide concepção do vocábulo em Adorno (2008. do imperturbável. não se pode dizer que o impulso ao conhecimento seja “o mais antigo instinto do homem”. Ora.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . mas não devemos tomar o ato de conhecer como uma atividade meramente abstrata ou como uma ação encerrada no sujeito cognoscente em contraposição à passiva realidade cognoscível. Não podemos conceber as atividades intelectuais. Ora. 16). por meio das regras específicas do campo jurídico. ou seja. p. Em seguida. baterem-se e se ajustarem. farei uso do olhar antropológico e examinarei os microdiscursos que advogados de defesa de acusados de estupro desenvolvem para desqualificar e desacreditar os depoimentos prestados pelas vítimas. O’Barr na obra “Just Words: law. impulsos e desejos. 1. iniciarei o trabalho abordando a questão da economia política da verdade e a construção histórica do conhecimento para situar adequadamente a tradição intelectual e teórica da qual sou fiador. A vontade de conhecer não está inscrita na natureza humana. Contudo. desejo conceituar o direito como um conhecimento historicamente desenvolvido que de natural nada possui. após se atropelarem. nem os núcleos atômicos possuem tal propriedade. o conhecimento é o resíduo que fica quando finalmente nossas paixões. 92-93). em analogia. A intenção é perceber como micromecanismos da linguagem. Conley e Willian M. 266 . decantam-se no compromisso equilibrado e possível (FOUCAULT. Antes.Sociologia. o conhecimento é a resultante da constante luta entre nossos divergentes instintos. Antes. Antropologia e Cultura Jurídicas minha hipótese. O debate sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico. o caráter terreno de seu pensamento. O ser é analógico. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade. a realidade é exterior e contraposta ao sujeito que a mentaliza. chega-se à 267 . Antropologia e Cultura Jurídicas pensamento. Marx critica o materialismo que o precedeu.. a realidade e a força. conforme M. procedimentos etc. 2002.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . (FOUCAULT. em oposição às atividades práticas e objetivas. – é de fato responsável em grande parte por construir a verdade. 1979. Nessa estrutura de pensamento. mas o ‘conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder’. Marx afirma na II Tese: O problema se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva não é um problema da teoria. (FOUCAULT. ressaltando que. e entre esses e o conjunto das relações sociais que o cerca.Sociologia. p. entendendo-se também que não se trata de um combate ‘em favor’ da verdade. 13) Avançando na definição das peculiaridades do fenômeno jurídico que o garantem ser o portador do privilégio social de declarar a verdade. Nas célebres Teses sobre Feuerbach. rituais. e sim um problema prático. É preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais não em termos de ‘ciência/ideologia’. isto é. A divergência marxiana parte da denúncia de uma lacuna ontológica: o materialismo antigo ignora a objetividade social. estruturas. normas. Pelo contrário. Foucault: [. instituições. agentes. sua construção e obstinada atualização realizada pela atividade sensível dos seres humanos.. não havendo qualquer outro vínculo entre subjetividade e objetividade. 35 . instituições e institutos pensados e realizados pelos seres humanos advêm de uma prática refletida e reflexiva em relação à realidade circundante. o direito – por meio de seus mecanismos. 16) Essa considerações importam porque nos levam a refletir que o direito não apenas declara qualquer verdade já pré-concebida ou imanente ao universo do real. compõese em constante dinâmica dialética entre ação e pensamento. p. permanecendo ambas estanques em suas próprias esferas. Da mesma forma se comporta o mundo social: os sistemas. estatutos. mas em torno do estatuo da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha. mas em termos de ‘verdade/poder’.] por verdade não quero dizer ‘o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar’.Vol. K. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Tal pretensão é aquilo que Foucault denomina como “vontade de verdade”. (FOUCAULT. efetivamente. meios de comunicação). não obstante algumas limitações rigorosas). de várias formas. 2002. Em nossas sociedades. vários são os discursos que circulam tendo todos a pretensão de ser reconhecidos como verdadeiros. certamente. em verdade. nas coisas do mundo. afinal: […] O que. desde Descartes. é objeto. imanente e imutável. exército. Descartes precisou afirmar a existência de Deus. Antropologia e Cultura Jurídicas categorização analítica de ser o fenômeno jurídico um discurso prático4 construído historicamente capaz de conformar. enfim. p. senão Deus? Deus. 268 . 19) 4 Sobre a capacidade prático-discursiva do fenômeno jurídico de ‘produzir’ o mundo social. está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica.Vol. a ‘economia política’ da verdade tem cinco características historicamente importantes: a ‘verdade’ é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem. 237). orientar. coagir. 35 . p. não exclusivo. de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade. cuja extensão no corpo social é relativamente grande. quanto para o poder político). é esse princípio que assegura haver uma harmonia entre o conhecimento e as coisas a conhecer. ilusão. de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação. mas dominante. que existe préescrita na essência dos fenômenos e anterior ao desenvolvimento desses. é produzida e transmitida sob o controle. para não ir mais além e ainda mesmo em Kant.Sociologia. não poderíamos sustentar essa esperança sem acreditar que de alguma maneira a verdade é divina. 1979. inibir e direcionar a vontade dos que o temem ou o professam. (FOUCAULT. na filosofia ocidental assegurava que as coisas a conhecer e o próprio conhecimento estavam em relação de continuidade? O que assegurava ao conhecimento o poder de conhecer bem as coisas do mundo e de não ser indefinidamente erro. p. 13) Isso quer dizer que numa determinada sociedade. Para demonstrar que o conhecimento era um conhecimento. é objeto de debate político e de confronto social (as lutas ideológicas). apenas aguardando pacientemente até ser surpreendida pela genialidade ou revelada por profetas. é um saber-poder que possui uma história política – porque fruto de intrincadas relações de poder – e funciona dentro de determinado sistema de verdades – de uma economia política da verdade. Não podemos esperar encontrar a verdade verdadeira em algum deles – pelo menos. arbitrariedade? O que garantia isto na filosofia ocidental. olhar avaliação de Bourdieu (1989. escritura. é claro. distribuído. repartido e de certo modo atribuído.Sociologia. a maneira como se sanciona uns e outros. as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade. 35 . mas uma característica prática que dota os discursos de funcionalidade e eficácia. pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade. como é valorizado. O importante. desenhando o movimento geral descrito como sistema institucional de exclusão onde o que é reconhecido como verdadeiro por aquela comunidade é. mais profundamente sem dúvida. apoia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia. 2002.. como o sistema dos livros. p. 12) A verdade é poder.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Ela é também reconduzida. na realidade. os mecanismos e as instancias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos. ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. A verdade é deste mundo. Cada sociedade tem seu regime de verdade. Antropologia e Cultura Jurídicas O que profana e secularmente constatamos é que esses vários discursos colidem historicamente. Ora. Sua construção é localizada – há instâncias sociais e instituições dentro das quais é produzida –. essa vontade de verdade como os outros sistemas de exclusão. é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder [. os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros.. especializada – há um corpo profissional cujo trabalho se diferenciou até o ponto em que apenas os produtos que dele resultam podem ser reconhecidos como verdadeiros – e obedece a uma metodologia específica – há procedimentos necessários pelos quais qualquer discurso tem de antes passar se deseja o status de verdade. 17) A verdade não é metafísica. da edição. p. (FOUCAULT. Nisso consiste o que Foucault chamou de ‘política geral da verdade’.Vol. como as sociedades de sábios outrora. creio. o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.]. Sua produção é condição materialmente necessária intensamente requisitada pelo exercício do poder: 269 . das bibliotecas. (FOUCAULT. sua ‘política geral’ de verdade: isto é. instituído como verdadeiro. 2002. os laboratórios hoje. complementam-se e se anulam uns aos outros. pois.. somos julgados. Contudo. 35 . estamos submetidos à verdade também no sentido em que ela é lei e produz discurso verdadeira que decide.Sociologia. Não lhe cabe atuar como o ‘rei-filósofo’ platônico. posicionar-se no espectro político e social em favor da manutenção da opressão ou da edificação da emancipação daqueles que de fato suportam os efeitos negativos desse discurso. 2. para compreendermos o que é o poder do direito e de que forma ele se materializa empiricamente. p. como nos ensina M.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .(2002. pois. ou melhor. temos que produzir a verdade para poder produzir riquezas. (FOUCAULT. “onde há poder. desvelar as funções econômicas e políticas que o discurso tido como verdadeiro desempenha e os mecanismos através dos quais se define o que é falso e o que é verdadeiro e. obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder [.Vol. O poder não para de nos interrogar. O DIREITO NA CONSTRUÇÃO DA VERDADE DO ESTUPRO: ANÁLISE DOS MICROMECANISMOS QUE PERMITEM AO DIREITO DECLARAR A VERDADE Conforme me esforcei em demonstrar. Antes. No fundo. 180) Dessa perspectiva. Afinal. Devo.]. é poder. o papel do intelectual é recolocado e atualizado. ao menos em parte. classificados. de indagar. Antropologia e Cultura Jurídicas Para caracterizar não o seu mecanismo mas sua intensidade e constância. Foucault.. condenados. 2002. poderia dizer que somos obrigados pelo poder a produzir a verdade. capaz de entregar à sociedade aquilo que é essencialmente o Belo. efeitos de poder. como tal. a partir da percepção do combate pela verdade. 75) Assim. o poder do discurso jurídico não reside nalgum fascínio imanente do fenômeno. Tenho defendido que a capacidade do direito declarar a verdade é uma de suas principais e mais potentes facetas. ele se exerce”. registrar e institucionalizar a busca da verdade. Por outro lado. é necessário que investiguemos os mecanismos que se utiliza para se impor enquanto mandamento. o Bem e o Justo. temos que produzir a verdade como temos que produzir riquezas. Antes. daí então. somos obrigados ou condenados a confessar a verdade ou a encontrá-la. o direito é um discurso e. transmite e reproduz. situar-me agora numa posição tal em que me seja permitido observar esses mecanismos 270 . profissionaliza-a e a recompensa. é poder porque pode ser exercido. portanto. Os mecanismos de poder podem ser avaliados e reconhecidos em várias escalas. que permitam equacioná-lo de acordo com princípios de imparcialidade. 271 . Assim nos ensina Cardoso de Oliveira: […] Se no Direito tal articulação [entre o geral e o particular] se pauta pela necessidade de situar o caso particular no plano de regras ou padrões gerais.Vol. como uma conduta que lhe foi imposta em antagonismo à vontade que livremente possuiria.Sociologia. Desde um alto nível de abstração até situações cuidadosamente localizadas. Tal constatação nos leva a dois caminhos: em primeiro lugar. geral e universal – para então chegar à localidade do caso concreto. procura identificar em práticas específicas aspectos que podem ser considerados universais. por definição. em última instância. (CARDOSO DE OLIVEIRA. Contudo. parte da abstração da norma – cujo caráter é. num exercício de subsunção lógica que tende a desconsiderar os pormenores sutis do fato que se investiga. Tal decisão se deu por algumas razões. a percepção antropológica nos socorre. aquilo que ao sujeito se manifestar como violento. ou seja. p. é o que chamamos de violência.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . p. as pessoas tendem a convergir sobre o que seria ou não um estupro e. Para tanto. a violência que o estupro representa possui um alto grau de repúdio social. Em primeiro lugar. Em geral. sendo sua caracterização relativamente fácil segundo os padrões morais vigentes na sociedade. neste sentido. inclusive existindo exames de corpo de delito que o confirmam. toda violência individual só pode ser assim caracterizada se houver o seguinte elemento subjetivo: a vítima tem de reconhecer a violência como violência. em regra. 454) Escolhi. avaliar a microfísica do discurso do direito na construção da verdade funcionando empiricamente em situações bastante emblemáticas: o depoimento de vítimas de estupro. uma série de situações podem ser caracterizadas como estupro se a vítima assim as perceberem. A preocupação da ciência do Direito. este pode ser definido como uma violência objetivamente constatada. 2009. para apreender em que medida a singularidade do caso em tela teria algo a nos dizer sobre o universal. pois. com ela. pelo contrário. Antropologia e Cultura Jurídicas e instancias de construção da verdade funcionando dentro daquilo que Pierre Bourdieu chama de habitus e campo jurídico (1989. Já a antropologia. pode-se promover uma importante inversão epistemológica. à luz do ponto de vista nativo. na Antropologia o objetivo seria desvendar o sentido das práticas locais. poderemos perceber formas pelas quais a dominação de fato se exerce. 61). externos ao caso. 35 . uma situação que comumente possa parecer estupro. pode ser descaracterizado como tal – e o estuprador declarado inocente – quando judicializado. however. ao analisar a revitimização que muitas vezes acomete as vítimas de estupro quando vão prestar seus depoimentos em juízo. (CONLEY. possui um alto grau de consenso social.1998. 18) John M. partindo das considerações foucaultianas. inclusive com laudos periciais que o atestem. ademais. Assim é que um caso de estupro que. And by structuring the way that actions get talked and thought about. É exatamente sobre essa dualidade da violência que os advogados de defesa dos acusados de estupro se movimentam. Discourse at its various levels is not mere talk. O’BARR. ressaltam o discurso como um conjunto de noções que são tidas como socialmente verdadeiras e. discourse ultimately suggests and limits the possibilities for future actions”. ] Percebe-se aqui impressa aquela propriedade distintiva do direito funcionando: declarar o que venha a ser a verdade.Sociologia. As estratégias de defesa usadas nos tribunais tendem ou a desqualificar objetivamente ou subjetivamente a situação denunciada como estupro. A way of talking about something is also a way of thinking about it. O’Barr. since what we say both reflects what we think and helps to shape what we and others will think in the future.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . p. Antropologia e Cultura Jurídicas independentemente do resultado de perícia clínica ou do exame de corpo de delito. vinculam práticas concretas: […] discouse in the concrete linguistic sense of connected sequences of speech or writing and discourse in the more abstract sense of ‘a way of talking about actions and relationship’. A capacidade ativa dos discursos foi abordada largamente por Michel Foucault.Vol. chegaram a uma série de constatações que podem também ser aproveitadas na 272 . Um fato que quando nu ninguém de senso comum negaria como sendo caso de flagrante violência sexual pode travestir-se de mil fantasias ao passar pelas regras de persecução da “verdade jurídica” até que nos autos do processo seja discursivamente desacreditado como violento. it is intimately connected to both thought and action. dessa forma. Em segundo lugar. 35 . Conley e William M. pode ser desqualificada como tal se aquele elemento subjetivo não for localizado. Também Conley e O’Barr. 273 . Our shared understandings of power give meaning to the way we talk.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Ainda. It is also a means by which we reaffirm those power relations. Na ocasião. os autores estavam também interessados em utilizar o estudo para orientar alterações no sistema jurídico que evitassem o fenômeno da revitimização. […] linguistic analysis can help us to understand the nature of power itself.Sociologia. não haveria como a verdade juridicamente construída pelos advogados do acusado de estupro suplantar a verdade fática da vítima de estupro. argumentativas e retóricas. Mas.Vol. em termos gerais eles assim caracterizaram os benefícios da análise microlinguística: Understanding the microlinguistics – the microphysics. to use Foucault’s term – of power may lead to more effective rape reform by exposing the futility of current efforts. pois. (CONLEY. Contudo. Ambos os elementos somados levam à possibilidade de se construir uma verdade jurídica relativamente descolada da verdade fática. Language is the primary mechanism by which we act out the power relations in our society. the way we talk helps to shape our understandings.18) É preciso ressaltar que. mesmo quando essa possui materialidade. p. o estupro é a materialização da relação de domínio violento do homem sobre a mulher e que. antes e acima de tudo. o poder dizer a verdade está distribuído de forma não equânime entre os partícipes. o crime de estupro é definido em termos masculinos e que possuem significados próprios do universo cultural masculino.1998. Os autores promovem uma análise microlinguística de depoimentos pessoais que vítimas de estupro prestaram em juízo quando interpeladas pelo advogado de defesa do acusado de cometer o crime. Os autores verificaram a estrutura jurídica em que esses depoimentos devem ser prestados e também as especificidades da linguagem jurídica. dentro do campo jurídico essa violência de gênero – que se estrutura também sob a forma de um discurso e que colide com outros discursos vigentes dentro da economia política dos discursos em busca do status da verdade – funciona segundo uma lógica específica adequada aos mecanismos próprios do discurso jurídico. Antropologia e Cultura Jurídicas identificação dos mecanismos jurídicos de criação da verdade. but at the same time. não fosse assim.. 35 . por meio de estratégias linguísticas. numa sociedade patriarcal e machista como a nossa. O’BARR. 1998. existindo pois. as considerações de caráter mais genérico do estudo de Conley e O’Barr podem ser aqui aproveitadas sem grandes empecilhos. Lá os advogados direcionam suas perguntas diretamente ao interrogado que as deve responder. From an everyday perspective. comentários avaliativos e desafios à capacidade de compreensão da vítima (CONLEY. nos termos que achar mais apropriados. O’BARR. if a witness strays in answering a question. os advogados fazem suas perguntas ao juiz que as retransmite. O’BARR. 1998. have no comparable power to demand that lawyers ask questions that they deem relevant to the issue at hand. while restructuring others to giving answers to whatever questions they are asked.Sociologia. a gestão do tema. For example. No Brasil. p. Entretanto. Such institutional constraints introduce into courtroom interactions a degree of rigidity not found in everyday contexts and thereby help the court do its assigned task of trying cases. há um filtro – o magistrado – posto entre o advogado e o inquirido. Witness. the lawyer may ask the judge to instruct the witness to answer the question. But. p. however. As estratégias características são: o silêncio. ao interrogado. From the outset. Os autores identificaram cinco estratégias características dos advogados de defesa que lhes permite – por meio de sua fala e da estrutura legal do cross-examining – manter o domínio sobre o depoimento da vítima para que esta acabe encurralada de tal forma que o que diga possa ser desqualificado e redirecionado contra si mesma. the lawyer has considerable leeway to interrupt and bring the witness back to the point of the question. Assim. o que tende a minimizar essas estratégias discursivas e jogos de linguagem invocados pelos patronos legais. também em turnos alternados de perguntas e respostas. 21) Vale ressaltar que os depoimentos que serão aqui transcritos foram colhidos nos Estados Unidos de forma diversa do que ocorre no Brasil. 35 . turnos alternados de perguntas e turnos de resposta. a forma da pergunta. (CONLEY. principalmente enquanto a finalidade de sua utilização é demonstrar aquelas várias estratégias discursivas que em maior ou menor medida sempre fazem parte da prática judicial. it would be very peculiar to limit some speakers so that their only type of turn is asking questions. these courtroom-specific rules have the consequence of empowering lawyers linguistically over the witnesses they examine.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . in addition. é o que se chama cross-examinig. 22) 274 . Antropologia e Cultura Jurídicas The special rules of the courtroom are highly unusual from a conversational point view. the structural arrangements for talking in court do not privilege all speakers in the same way.Vol. And if the witness proves unresponsive despite such efforts. 1998. and some do smoke.Vol.] LAWYER: To many people your age that means sexual activity. 35 . doesn`t it? [An objection by prosecuting attorney at this point is overruled by judge. O’BARR. WITNESS: (Drugs. dando a entender que esta mentiu em seu depoimento sobre a quantidade de álcool que havia ingerido na noite em que fora supostamente estuprada.8) that in four hours at the Grainary you had oly two drinks? (1. confusa. pondo em xeque a credibilidade de seu depoimento. O advogado afeta a credibilidade da vítima. LAWYER: It implies to many people that. o juiz irá mandá-la falar. people your age. Já o silêncio do advogado não faz com que o juiz tome qualquer atitude e pode ser estrategicamente utilizado. como no caso abaixo transcrito. os autores trazem a seguinte transcrição: LAWYER: What`s meant by partying? You.0) LAWYER: Linda…(CONLEY. Se for a quem vítima silencia. em que os números em parênteses representam os segundos transcorridos entre as falas: LAWYER: Is it your sworn tertimony (1.) LAWYER: Is it not true. partying among people your age. (45. o silêncio da vítima pode sugerir que ela está tergiversando. Brian’s age. dos not mean to go to a party? WITNESS: That’s true. Ainda. some do take the pills. and have a few drinks. with some friends.Sociologia. mentindo etc. SWORN oath (0. LAWYER: What’s meant among youthful people. Em outra passagem. Antropologia e Cultura Jurídicas O advogado de defesa mantém controle absoluto sobre o silêncio. LAWYER: Partying. implies sexual activity. uma vez que apenas ele pode escolher quando e por quanto tempo pode silenciar antes ou depois de iniciado seu turno. p. dos it not? 275 .2) WITNESS: Yes. by partying? WITNESS: Some take it just to go and. percebe-se combinada duas estratégias: o silêncio habilmente manejado pelo advogado subentende um comentário avaliativo sobre a vítima ter declarado que bebeu “apenas” dois drinks nas quatro horas que permaneceu no estabelecimento. you`re what? Nineteen? Were you nineteen at that time? WITNESS: Yes.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .0) under sworn. people. 24) No exemplo acima. p. vai expandindo o conceito para que comporte também o consumo de álcool e drogas. faz com que a própria vítima inclua atividade sexual como parte do conceito. Antropologia e Cultura Jurídicas WITNESS: To some yes. LAWYER: So the word partying. Outra estratégia usual dos advogados de defesa para desqualificar e desacreditar o depoimento das vítimas identificada pelos autores é o desafio à capacidade de compreensão da vítima. o advogado de defesa usa perguntas em formas abertas utilizando-se de advérbios. Nesta forma. altera para perguntas que apenas comportam respostas sim/não – as chamadas tag question –. Ainda. Em seguida. Dessa forma. Vejamos: 276 . é capaz de transformar o diálogo com a vítima em monólogo consigo mesmo. 1998. (inaudible) not just go to a party? WITNESS: Mmhmm. por meio do controle da forma da pergunta. (CONLEY. No começo do interrogatório. entre elas o sexo. 25) Este exemplo também ilustra duas estratégias. Por fim. LAWYER: So. percebe-se também na transcrição a gestão do tema.Sociologia. Aos poucos. who suggested that you go partying? WITNESS: I don’t know who first brought it up. when they suggested. Neste exemplo. pois o foco recai sobre a polêmica que os argumentos já contidos na pergunta suscitam. there would be friends who had the apartment who would be having a party. o advogado de defesa . seria possível absolver réu sob a alegada verdade jurídica que a vítima sabia e consentia sobre o conteúdo e implicações de “partying”. 35 . LAWYER: And at the very least it means the use of intoxicants? WITNESS: Yes. se a vítima aceitou o convite para “partying” ela estaria de acordo com as atividades inclusas. ainda que a violência sexual tenha sido objetivamente constatada através de laudo pericial e exame de corpo de delito. as respostas pouco importam. They [did mention]– LAWYER: [Then did–] WITNESS: –did mention that. I guess. LAWYER: Correct? WITNESS: Mmhmm. Assim. O’BARR. A manobra faz com que um alegado estupro passe a ser encarado como sexo consentido. O advogado de defesa inicia o interrogatório abordando o que seria o conceito de “partying” para a vítima e seus amigos. some like that. uh. o que lhe garante maior condução e previsibilidade nas respostas da vítima.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . let’s go party.Vol. LAWYER: (Okay). O’BARR.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . sob efeitos de entorpecentes ou simplesmente distraída com o caminho. Pelo contrário. quanto favoreçam seu cliente. o que indicaria que não estava se sentindo ameaçada de forma alguma pelo réu. p. esta pode ser autônoma e até antagônica em relação à verdade fática.Vol. Glen Carbon. os advogados se valem de outras verdades disponíveis nos discursos sociais – tal qual o discurso patriarcal e machista – para deixar opiniões morais subentendidas que tanto abalem as vítimas. (CONLEY. por conta das regras específicas de produção da verdade dentro do mundo jurídico. Os advogados desenvolvem estratégicas específicas dentro das estruturas jurídicas que os possibilitam desqualificar o discurso da vítima no mesmo movimento em que elevam seu próprio discurso à condição de verdadeiro. O controle que o advogado exerce sobre a troca de turno e as variações nas formas da pergunta fazem com a vítima seja levada a cair em confusão. 35 . Ainda. or had you been told you were in Glen Carbon at that point time? WITNESS: I was told that was a part of Glen Carbon. Muitas coisas podem ser então subentendidas: ela poderia estar alcoolizada. Antropologia e Cultura Jurídicas LAWYER: You say that Brian’s car led the way over to this Glen Carbon area? WITNESS: Mmhmm. Isso faz com que a capacidade de compreensão que da vítima sobre os fatos ocorridos seja questionada. As perguntas do advogado de defesa sugerem que a vítima não saberia onde estava não fosse os policias lhe contar. Por fim. conforme demonstrado. so you don’t actually know it was Glen Carbon of your own personal knowledge. Essas transcrições demonstram como refinados micromecanismos legais e discursivos são usados dentro do campo jurídico para a construção de uma verdade que não é necessariamente a verdade fática. o advogado de defesa interrompe a fala da vítima com um eloquente comentário avaliativo.Sociologia. LAWYER: How do you know that was Glen Carbon? WITNESS: There’s a water tank? Maybe? A big silver [bubble]– LAWYER: [(What?)] WITNESS: –thing that says Glen Carb –. 30) Há muitos elementos significativos nesta transcrição. Conforme afirmam Conley e O’Barr: 277 . 1998. LAWYER: By the police officers? WITNESS: Mmhmm. LAWYER: (Okay) but you don’t actually know whether or not you were in Glen Carbon. WITNESS: No I assumed it when I’d seen [(that big)]– LAWYER: [And when] the police officers told you. Como ensina o professor Kant de Lima: Acima de tudo. Antropologia e Cultura Jurídicas [. tal cruzada em busca da verdade absoluta não pode ser sustentada sem se prescindir de noções divinizadas sobre a História e a essência dos fenômenos. (KANT DE LIMA.Sociologia. dentre as ciências sociais. p. as well as the role that law can play in either strengthening or subverting those values. (CONLEY.Vol. a contribuição da antropologia ao direito é específica porque este tende a ser acrítico sobre o discurso e o saber que ele mesmo produz. 2008. Nesse sentido. We see how the law translates social values into social action. Como debati. 38) CONCLUSÃO Localizar o direito dentro da arquitetura de funcionamento da economia política da verdade é passo filosófico e epistemológico importante. mas o resultado de ações dotadas de finalidade política.] The fine-grained analysis of the discourse of legal practice. o desvendamento das categorias que organizam seu saber e sua sistemática implosão são os objetivos definitivos da Antropologia. o olhar antropológico é crítico e impiedoso com seus próprios produtos intelectuais e aqueles das suas companheiras Ciências Sociais. affords insights that are not available at higher levels of abstraction. Os juristas e a ciência do direito tendem a cair na cilada metafísica de ser o fenômeno jurídico algo como revelador da verdade imanente do mundo. A permanente etnografia de seu próprio conhecimento. O’BARR. e que esses desvios podem não ser acidentais. p. o que transformaria o desenvolvimento do conhecimento e da civilização como realização do designo pré-estabelecido de algum deus. 12) 278 . 1998. entretanto. however. aquela que menos consciência possui sobre seus próprios mecanismos e consequências. In the words of Alan Hunt and Gary Wickham..COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . enquanto disciplina científica. 35 . que tantas e tantas vezes a injustiça é produzida e reproduzida dentro das regras tidas como existentes para buscar justamente o justo.. ‘Discourses have real effects: they are not just the ways that social issues get talked and thought about’ (1994:8). Tomar o direito dessa forma mitificada retira o histórico e o humano do discurso jurídico e pode nos cegar para o fato que tantas e tantas vezes sob a carapaça do direito está o torto e o não-direito. Analysis such as this enables us to understand what those effect are and how they come about. Talvez a ciência do direito seja. 2008.. no entanto.. p. Parecem ignorar que o direito não é apenas resultado da ordem social ou um mecanismo de racionalização do poder. – e pouco com a questão do poder. até eventos destilados. desde decisões do júri.Sociologia. muitas vezes. Seu exercício é instrumental e formal em sua capacidade de agregar conteúdos aparentemente contraditórios em torno de eixos de significação específicos. sem perder suas propriedades fundamentais.] o argumento aqui. princípios e valores limitados. sentido. que não residem exclusivamente em seu conteúdo mas nas formas de sua utilização como poder. abrangência etc. os fatos “não nascem espontaneamente” e sim que 279 . que geram tudo que tenha a ver com o direito. Antropologia e Cultura Jurídicas As pesquisas do direito em geral se preocupam muito com a norma jurídica – sua validade.Vol. de forma até autônoma e mesmo antagônica ao que é faticamente existente. regulamentos. 259) Por meio das especificidades do campo jurídico e do habitus dos agentes jurídicos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . o direito é capaz de tanto declarar a verdade como construí-la. aplicação.. isso porque [.. e sim parte de uma maneira específica de imaginar a realidade. 16) A antropologia está mais à vontade – e possui melhores instrumentos – em afirmar que. destinados a ‘resolver’ paradoxos observados em casos particulares. atualizando-se. 1998. 35 . p. (GEERTZ. O antropólogo Clifford Geertz possui clarividência acerca das potencialidades e atuação das normas jurídicas sobre a realidade do que os juristas em geral demonstram. é que a parte ‘jurídica’ do mundo não é simplesmente um conjunto de normas. Segue um dos argumentos centras do autor no famoso estudo O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa: [. (KANT DE LIMA. o direito é em grande medida produtor dessa ordem social. em verdade.] esse saber [o direito] é um poder difuso mas nem por isso menos eficaz em produzir conteúdos e orientações formais para a ação social de uma maneira geral. Incorpora facilmente outros saberes. CONLEY. São Paulo: Edições Loyola.. 2008.Vol. Theodor W. estratégias. restou fortalecido o argumento que tenho defendido: ser o direito instância central onde se defini e se constitui – de forma histórica e por meio das mais variadas instituições. BOURDIEU. A verdade e as formas jurídicas. desde os regulamentos sobre evidência. Antropologia e Cultura Jurídicas [.. 20 ed. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO. Tradução Wolfgang Leo Maar.. Rio de Janeiro: Nau Editora. O’BARR. Luís Roberto. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil. – a verdade. A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflito. Pierre. suscita questões importantes para um teoria da administração da justiça que considera. realizada durante o I Encontro Nacional de Antropologia do Direito. a retórica dos juízes. Willian M.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . e os academicismos ensinados nas faculdades de direito. na Faculdade de Filosofia. Michel. São Paulo: Editora Unesp.. Por fim. 1998. como ‘uma série de emparelhamentos de configurações factuais com normas’ nos quais ou ‘uma situação factual pode ser emparelhada com uma das normas’ ou ‘uma norma específica. O Poder Simbólico.pode ser sugerida por uma seleção das versões competitivas sobre o que aconteceu’. John M. 258) As análises acerca dos microdiscursos formulados por advogados de defesa de acusados de estupro para desqualificarem o depoimento das vítimas do alegado crime permitem evidenciar algumas regras e mecanismos de atuação do poder. Trad. a etiqueta que regula o comportamento nos tribunais. Chicago: The University of Chicago Press. CARDOSO DE OLIVEIRA. (GEERTZ. Fernando Tomaz. Ainda. language and power. condutas etc. Just words: law.] são construídos socialmente por todos os elementos jurídicos. ações. 35 . Introdução à sociologia. 280 .Sociologia. 2002. A ordem do discurso. citando o exemplo representativo. nos dias 29 e 21 de agosto de 2009. Trabalho apresentado na mesa-redonda Antropologia do Direito no Brasil: campo e perspectivas. 2011. FOUCAULT. Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. 1998. e as tradições em relatórios jurídicos até as técnicas da advocacia. 1989.. _______________. aquelas análises possibilitam a percepção de que os grandes discursos abstratos de poder e de dominação existentes na sociedade – como o discurso patriarcal e machista – podem ser sistematizados segundo as regras próprias do campo jurídico para gerarem efeitos bastante eficazes. Letras e Ciências Humanas na Universidade de São Paulo. p. Revista Brasileira de Educaçao. 20. Maria da Graça Jacintho. Antropologia e Cultura Jurídicas _______________. KANT DE LIMA. Clifford. Karl. São Paulo: Edições Sociais. Por uma Antropologia do Direito no Brasil.Sociologia. Rio de Janeiro: Lumen Júris Editora. K.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Microfísica do poder. 1998. 35 . ENGELS. In: Ensaios de Antropologia e Direito.Vol. 2008. 1977. Rio de Janeiro: Edições Graal. SETTON. Petrópolis: Editora Vozes. 1979. Maio/Jun/Jul/Ago 2002 n. MARX. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Organização e tradução de Roberto Machado. 281 . GEERTZ. MARX. Friedrich. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. Teses sobre Feuerbach. In: O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Roberto. Textos I. GENDER AND LAW Lúcia Freitas1 Cecília Caballero Lois2 Resumo Nesta apresentação. está realizando estágio de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ. professora em cursos de graduação e pós-graduação na Universidade Estadual de Goiás. gênero e linguagem. Exerce o cargo de professora.Sociologia. O corpus do estudo piloto se constitui de 10 acórdãos." The original project proposes a critical discourse analysis of what has been registered in judgments of the Superior Court of Justice (STJ) on processes covered by the Maria da Penha Law from 2011 to 2012. gênero. propomos uma análise piloto de um estudo focado no trio: direito. atuando junto ao Observatório da Justiça Brasileira (OJB). linguagem. Palavras-chave Direito. aos quais um exame preliminar é proposto na direção de se detectarem futuras categorias para análise. 2 É bolsista de produtividade CNPQ (PQ2). discurso. GÊNERO E LINGUAGEM JUDGMENTS OF THE STJ ABOUT LAW MARIA DA PENHA: A PILOT STUDY ON LANGUAGE. The main 1Doutora em linguística pela UnB. crítica Abstract In this presentation. 282 . em regime de colaboração técnica. Antropologia e Cultura Jurídicas ACÓRDÃOS DO STF SOBRE LEI MARIA DA PENHA: UM ESTUDO PILOTO DA RELAÇÃO DIREITO. O objetivo central é analisar como a violência contra a mulher tem sido tratada recentemente em uma instância pública da altura do STJ. we propose an analysis of a pilot study focused on the trio: "language". popularmente conhecido como o Tribunal da Cidadania justamente por alegar a garantia de exercício de vários direitos da população brasileira. nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro e é (co)coordenadora do Observatório da Justiça Brasileira (OJB). 35 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . "gender" and "rights. desenvolvendo projeto de pesquisa sobre alternativas democráticas ao “judicial review”. O projeto original desenvolve uma análise crítica do discurso que tem sido registrado em acórdãos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em processos na Lei Maria da Penha de 2011 a 2012. O sistema de representação de atores sociais e a categoria de topoi foram evidenciados neste estudo prévio e serão tratados na presente apresentação para discutirmos como a Justiça Brasileira lida com a violência contra a mulher e que ideologias estão ai implicadas.Vol. Tal percepção é partilhada por diferentes 283 . Nessa tarefa. na “linguagem”. para empreender uma abordagem transdisciplinar de um fenômeno social de intensa gravidade. recai sobre o direito um papel determinante. gender. critics Introdução Neste texto. uma vez que ele é idealizado como instrumento capaz de promover a justiça. Não obstante. gênero e linguagem. contrariando sua função precípua. The corpus for this pilot study consists of 10 judgments to which a preliminary analysis is proposed in order to detect further categories for discussion. concentramos nossas ferramentas analíticas.Vol. language discourse. Key words Law. por fim.Sociologia. Tal direcionamento é tomado em função de algumas reflexões sobre a forma como o campo jurídico tem interpretado os direitos conquistados pela mulher brasileira na contemporaneidade. conhecida como Lei Maria da Penha. é resultado de um empenho na direção de atender tal demanda. popularly known as the "Tribunal of Citizenship" for allegedly guaranteeing the exercise of various rights to the Brazilian population. o sistema jurídico é passível de inúmeras críticas e. 35 . A Lei 11. formado por instituições que têm a função de garantir a efetivação dos direitos do ser humano como ser livre em cada configuração histórica.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . como signatário de vários tratados e convenções internacionais de direitos humanos. Do “direito” buscamos os dados concretos dessa problemática. direito. conforme declara Izumino (2004). que ao mesmo tempo registra e lida com a questão. o primeiro elemento que encabeça essa proposta tripartida. Antropologia e Cultura Jurídicas objective is to analyze how violence against women has been dealt with recently in a notorious public agency such as STJ. tem funcionado como instância reprodutora de desigualdades. E. O Brasil.340 de 2006. Nessa direção. na prática. a “violência de gênero”. e com a implementação de políticas voltadas à garantia dos direitos da população feminina. a partir de acórdãos do STJ sobre a Lei Maria da Penha. The representation of social actors and the use of topoi were highlighted in this previous work and will be treated in the paper to show how Brazilian Justice deals with violence against women and what ideologies are implicated. constitui o problema central de nosso estudo. que é a violência contra a mulher. considerada uma violência de gênero. tem se comprometido formalmente com o combate à violência contra a mulher. procuramos unir três áreas in(ter)dependentes. das concepções de linguagem que o orientam. reconhecemos que a demanda proposta por Warat. que começa a reconhecer alguns impasses epistemológicos. ainda demonstram como o sistema resiste à incorporação da categoria de gênero das ciências sociais e dos estudos feministas. 35 . objetivando fazer a crítica do saber jurídico dominante. Ao mesmo tempo. o direito como dogmática (leis. Paralelamente. Colares (2008) aponta o treinamento lingüístico e social da comunidade jurídica que. tais análises não percebem as evocações repressivas que as mesmas linguagens provocam: a função policial da linguagem do direito”. Na década de 1980. 2007). doutrina e decisões dos tribunais) enfrenta cada vez mais uma crise de efetividade e de legitimação que inquieta a própria cultura jurídica contemporânea. 1999. O teórico argumentava que a maior parte das análises produzidas à época deixava de apontar as dimensões sociais dos diferentes discursos do direito e seu papel como elemento constituinte das relações sociais capitalistas. determinando mudanças no mundo legalmente estruturado.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Sociologia. Nas palavras do autor (Warat. 2008.79): “fundamentalmente. 1981 p. Antropologia e Cultura Jurídicas teóricos. o pesquisador Luis Alberto Warat já propunha um balanço crítico das formas pelas quais os juristas utilizavam o instrumental lingüístico. segundo a autora.Vol. Dentre esses impasses. Considerando-se que é substancialmente por meio da linguagem que o direito se estabelece. O trabalho de Monteiro (2003). expõe como as categorias jurídicas dão expressão formal à matéria-prima extraída da vida social de modo a reproduzir e até a reforçar o jogo das estratificações sociais e das hierarquias de gênero já estabelecidas. mesmo quando. a despeito dessa categoria informar a própria Lei Maria da Penha. Assim. ou seja. principalmente. destacamos a necessidade do direito de empreender uma revisão inevitável e urgente de seus paradigmas convencionais e. 2006). como bem observa Colares (2008). pela utilização da palavra certa. É o que propomos neste 284 . não se apercebe das assimetrias marcadas em seus textos e até os reconhece como naturais e não problemáticos. aparentemente. os autores acusam o direito de ser sexista e de reproduzir a desigualdade entre homens e mulheres. Pandjarjian e Belloque. pela pessoa certa. por exemplo. suas regras estão formalmente destinadas a proteger as mulheres vítimas de violência de gênero (Castilho. Estes. pode ser alcançada pela associação do direito ao campo da linguística e suas ferramentas teóricas. Andrade. além de destacarem a morosidade e a ineficiência do Poder Judiciário brasileiro no trato aos casos de violência contra a mulher (Dias. cada ato jurídico se performa por atos de fala. Pimentel. de buscar na linguagem do direito seus vínculos sociais e ideológicos. por isso mesmo. detalhamos a proposta e apresentamos nossas primeiras observações. procuramos empreender uma revisão metodológica sobre os dados construídos na instância jurídica. no âmbito de um órgão público da Justiça da altura do STJ. Chamada Nº 32/2012 . especialmente os que tiveram maior repercussão no meio jurídico e na mídia. sobre processos enquadrados na lei Maria da Penha nos anos de 2011 a 2012. construídas a partir da crença na pureza conceitual e na idéia de autonomia de campos do conhecimento. A pesquisa propõe uma análise crítica do discurso que é registrado em acórdãos do Superior Tribunal de Justiça (STJ). em suas interfaces e confluências com as demais ciências humanas e sociais. Pela união dessas três áreas distintas. direito e violência contra a mulher: análise crítica de discurso em acórdãos do STJ”. Ao mesmo tempo. doravante ADC (Fairclough. 2003). 35 . de forma a superar limitações teóricas baseadas em visões fechadas. ao qual o piloto se liga. herdada das ciências positivas. detalhamos a abordagem teórica proposta ao estudo piloto de 10 julgamentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre Lei Maria da Penha. 3 Projeto “Linguagem. Nessa direção.Vol. devido à sua instrumentalidade frente ao problema proposto. responsável por garantir às cidadãs e cidadãos o exercício de vários direitos e. a fim de desalojarmos estereótipos textuais do mundo jurídico e a naturalização de assimetrias de poder. financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A abordagem teórica A partir deste tópico. Antropologia e Cultura Jurídicas estudo. na direção de operarmos um deslocamento da noção de dado. Nos próximos tópicos. A principal preocupação da ADC é analisar e revelar o papel do discurso. 1. buscamos empreender um esforço sistemático.Categoria 2. adotamos uma abordagem do problema pelas vias do referencial teórico-metodógico da Análise de Discurso Crítica. responsável por garantir às cidadãs e cidadãos o exercício de vários direitos e por isso conhecido como o “Tribunal da Cidadania” 285 . Nosso intuito é acessar um problema social como a violência contra a mulher e a forma como o mesmo tem sido tratado recentemente. conhecido como o Tribunal da Cidadania. tem como objetivo empreender uma análise crítica do discurso que é registrado nas decisões do STJ nos últimos dois anos (20112012). aliando ainda a categoria de gênero. conforme propõe Colares (2008). sobre processos enquadrados na lei Maria da Penha. O projeto original3. no âmbito de um órgão público da Justiça da altura do STJ.Sociologia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . O objetivo principal é observar como um problema social como a violência contra a mulher tem sido tratado recentemente. como atividade socialmente organizada. buscamos empreender um esforço analítico sobre essa esfera pública. O autor. é essencial captar a noção de texto sob o viés teórico da ADC. instituições ou grupos. Basicamente. de características étnicas. bem como as atividades específicas que esses textos realizam por meio de sua linguagem própria. que é a decisão em instância superior. o conhecimento da realidade em nível bem amplo. a partir dos textos que são aí utilizados. uma vez que as decisões judiciais afetam diretamente a vida das pessoas. conforme é compreendida nas ciências sociais.Sociologia. a conveniência de exploração de uma atividade voltada ao clímax da ação legal. Eles codificam relações de poder produzidas e reproduzidas nas interações e eventos lingüísticos. em moldes que procuram seguir os preceitos de Warat (1981). tomando partido de práticas sociais reais e de textos concretamente produzidos em interações efetivas. gêneros “são o aspecto especificamente discursivo de formas de agir e interagir no curso dos eventos sociais”. Para isso.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. Por outro lado. em nível nacional. portanto. o termo “gênero” é também associado ao viés teórico da ADC dentro da noção de “texto”. com vistas a confrontar relações de poder. o STJ soluciona uma enorme diversidade de questões legais de diferentes regiões do país. p. em seu texto “À procura de uma semiologia do poder”. 2003). conclama os juristas a empreender um tipo de estudo semiológico sobre o direito capaz de elaborar um “contra-discurso apto a revelar o poder do conhecimento e seus condicionamentos sociais” (Warat. na condição de Corte responsável pelo exame dos recursos de ações originárias da Justiça Comum. Tal corrente procura contemplar simultaneamente forma e sentido da linguagem. 35 . que resulte em discriminação de classe. na perspectiva de “gênero textual ou discursivo” (Fairclough. De acordo com Fairclough (2003. com vistas a essa “tarefa contra-discursiva” que propomos o presente estudo piloto. Até aqui. os acórdãos do STJ ainda têm como importante característica o fato de uniformizarem. etc. 65). subsidiando. o que ora propomos é um enfoque nos sentidos produzidos sobre a violência contra a mulher na esfera jurídica. Considerada uma prática social de grande relevância. de sexo. Dentro dessa moldura teórica. os acórdãos do STJ 286 . portanto. Antropologia e Cultura Jurídicas na (re)produção do exercício do poder social por pessoas. a palavra “gênero” foi usada em associação às teorias sobre construção social de identidades sexuais. 2003). Ademais. 1981 p.). A proposta de analisar esse gênero textual exclusivo cumpre. como “atividade socialmente organizada sob alguma instância de linguagem” (Fairclough. É. o entendimento jurisprudencial. aqui restritos a acórdãos do STJ. por um lado. Nessa direção. O estudo piloto Por definição. no período de 2011-2012. Rio Grande do Sul. é uma mini versão do estudo completo. sócio-histórico e crítico quanto às práticas sociais em que se inserem. 35 . a pesquisa que gerou este estudo piloto está analisando as decisões do STJ sobre lei Maria da Penha.com. sete são habeas corpus impetrados por defensores públicos ou advogados dos réus contra os Tribunais de Justiça dos seguintes estados: Mato Grosso do Sul (dois acórdãos). selecionando no mesmo portal respostas à pesquisa feita com os conectivos “STJ” e “Lei Maria da Penha”. A busca pelos textos é feita no portal JusBrasil (www. (Bailer. Conforme já introduzimos. Os demais se tratavam de recursos assim especificados: Recurso Especial do Ministério Público do Ceará. bem como desvendar a que interesses essas formas linguísticas se voltam. em pequena escala. Agravo em Recurso Especial do Ministério Público do Distrito Federal e Recurso em Mandado de Segurança do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul. assim. 2011. começamos a traçar algumas demarcações preliminares sobre a estrutura genérica dos acórdãos a partir de estudos já disponibilizados por diferentes autores do campo da linguística (Saito. no período de 2011 e 2012?”.jusbrasil. de forma que optamos por começar nossas análises. Ou seja.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas serão analisados basicamente segundo um enfoque gramatical. Espírito Santo. Após a coleta. Pessoa e Cardoso. um estudo piloto é um teste. sobre Lei Maria da Penha. 287 . Prestes. Minas Gerais e Pernambuco. gramática. A pergunta orientadora é: “Como se estrutura o discurso da violência contra a mulher que é registrado nos acórdãos das juízas e juízes do STJ. O montante de documentos coletados constitui um volume considerável de material linguístico. dos procedimentos. 2. Escolhemos. Dentre esses dez acórdãos selecionados.Vol. materiais e métodos propostos para determinada pesquisa. na seção de jurisprudência. Tomitch e D’ely. aleatoriamente dez acórdãos para levantar nossas primeiras categorias analíticas. Rio de Janeiro. estruturas textuais). 2011. 2009.Sociologia.br). 2011). que envolve a realização de todos os procedimentos previstos na metodologia de modo a possibilitar alteração ou melhora dos instrumentos na fase que antecede a investigação em si. O estudo concomitante desses eixos procura lançar luz sobre as razões prováveis de certas escolhas na estrutura lingüística (vocabulário. ao mesmo tempo. que atividades eles acionam. Autores como Saito (2005) observam que acórdãos são um tipo de texto altamente padronizado. e que posicionamentos são tomados por parte dos envolvidos.Vol. vale lembrar que esse gênero textual representa uma decisão acordada entre vários juízes sobre outra decisão com embasamento em leis. representam a violência contra a mulher como fenômeno social. Antropologia e Cultura Jurídicas Graça Neto. Nesse sentido. Segundo Fairclough (2003). 2011.Sociologia. Perucchi. tendo em mente as proposições de Fairclough (2003). O ato de decidir é considerado uma das práticas sociais mais importantes no sistema jurídico. ao mesmo tempo. Por meio de sua textualização própria. são eles: o “significado acional” (o texto como modo de ação e interação em eventos sociais). Analisar os acórdãos sob este viés teórico é procurar compreender como eles. pois a decisão é o clímax de qualquer ação legal. Seguem uma orientação em moldes clássicos (proposição – argumentação – conclusão). Bortoluzzi. de todo e qualquer texto é possível depreender três significados que agem de forma associada e simultaneamente. 3. 2009. O gênero acórdão do STJ sobre Lei Maria da Penha Começamos essa empreitada. como providências jurídicas. é essencial observar como os acórdãos agem e interagem como prática social.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2010 e 2011). que mantém relações intertextuais igualmente padronizadas. mental e social) e o significado “identificacional” (o texto como construção e negociação de identidades no discurso). por exemplo. como essa realidade é reconstruída nesses textos. de que os gêneros textuais variam consideravelmente em termos do seu grau de estabilização. Félix. representar o mundo e suas histórias e nele acionar atividades. fomos explorar o que dentro da Análise de Discurso Crítica (ADC) é reconhecido como os “significados da linguagem”. É o que buscamos em nossas análises preliminares. 1997. 35 . o “significado representacional” (o texto como representação de aspectos do mundo físico. e dela depende uma sentença que afeta concretamente a vida de pessoas 288 . fixidez e homogeneização de acordo com a natureza das atividades que eles constituem ou das quais são parte. Para além de identificar a estrutura textual dos documentos. a faculdade dos textos de. ou seja. conforme desenvolvemos a seguir. quer no próprio plano jurídico ou a partir da perspectiva daqueles que compõem a sociedade. apresentando a estrutura básica do silogismo: um relatório (premissa maior). a fundamentação legal (premissa menor) e a decisão (conclusão). Antropologia e Cultura Jurídicas reais. Tais decisões mais refletem do que rompem com o jogo das estratificações sociais de gênero já estabelecidas na nossa sociedade. emanadas pelo Estado e que são aplicadas a toda a sociedade através de uma administração profissional. já se encontravam. caso o agressor não reincidisse em nenhuma outra falta. 289 . Poder que aspira a uma racionalidade lógico-formal de contornos científicos que o legitimam como um sistema racional de leis. as repercussões têm sido polêmicas e geraram críticas de vários segmentos de luta pelos direitos das mulheres. de modo que sua atuação repercute no cotidiano de todos os segmentos da sociedade.Sociologia. No início de 2011. outra decisão revoltou membros de organizações defensoras dos direitos humanos e da igualdade de gênero. O Superior Tribunal de Justiça é reconhecido como um dos principais órgãos judiciais responsáveis por garantir segurança jurídica e reforçar a crença na legalidade embasada pelo paradigma do Estado democrático e de direito. antes mesmo de serem normatizadas. no âmbito do Poder Judiciário. codificadas na cultura luso-brasileira. O autor ainda denuncia que esses papéis foram direcionados pelo modelo burguês de família. com base em uma radical diferença de funções entre o homem e a mulher que. procedendo a uma espécie de “tradução”. ao qual os codificadores e doutrinadores concedem sanção legal em detrimento da extrema variedade de práticas sociais relativamente à família no Brasil. Algumas sanções legais lançadas pelo o STJ com relação à Lei Maria da Penha parecem ter levado em conta mais as codificações tradicionais de que nos fala Monteiro (2003) que o viés de gênero que informa a lei.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Isso porque esses textos refletem a situação comunicativa específica da comunidade em que estão inseridos. de longa data. a notícia de que violadores de direitos de mulheres poderiam ter seus processos suspensos por habeas corpus por um período de dois a quatro anos e a punibilidade poderia ser extinta após esse período. universais e abstratas. 35 . Em fevereiro de 2010. por exemplo. Com relação ás decisões do STJ sobre a Lei Maria da Penha. na falta de definição expressa no seu texto sobre se a violência doméstica tem natureza jurídica incondicionada. que historicamente o tratou no âmbito das relações de família. Monteiro (2003) observa que o tema é recente dentro no Direito. o Tribunal julgou que é imprescindível a representação da vítima para propor ação penal nos casos de lesões corporais leves. Embora essa lei se articule diretamente em torno de questões de gênero. é a mídia quem efetivamente propaga as decisões. A despeito dos acórdãos terem repercussões amplas e às vezes se tornarem de domínio púbico. em geral.Vol. capaz de resgatar os significados nela codificados. Antropologia e Cultura Jurídicas Como observa Mozdzenski (2007). trazendo consigo um sentido invariável interpretado da mesma maneira por todos. Van Leeuwen. a um conhecimento de mundo partilhado entre as partes – apelantes e apelados. Contraditoriamente.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 35 . Segundo Van Leeuwen (1997. a seguir: 1. acórdãos são textos plenos de significação que visam.1 A representação dos atores sociais Embora reflitam os hermetismos de seu campo. juízes. ao analisarmos as dez decisões que constituem o nosso corpus neste estudo piloto. como se as palavras e as ações delas decorrentes fossem transparentes. 3. 129. desembargadores e a sociedade em geral (Saito. Ao longo de toda esta apresentação tomamos o mesmo cuidado com todas as pessoas 290 .Da detida análise dos autos. (1997) é um autor que se dedicou a uma sistematização sobre as formas linguísticas de representação de atores sociais. provendo uma série de categorias que direcionam nosso foco analítico nos textos. constata-se que o paciente foi denunciado como incurso nas penas do art. a quem é dada pouquíssima visibilidade. com seu enredo.Sociologia. causando-lhe 4 Não revelamos o nome da vítima para preservar sua identificação e resguardar sua identidade. principalmente as vítimas. essa linguagem encontra-se estruturada de forma que praticamente inviabiliza sua compreensão por quem não pertence a uma elite treinada. Quando. Sobre essa questão. a vítima 4XXXXXXXXXXX. podemos identificar certas intenções dos autores que “podem ser inclusivas ou excludentes para servir aos interesses e propósitos em relação aos leitores a quem se dirigem”. por meio das palavras. p 180). conforme exibe o recorte. em geral. já adiantamos que uma evidência inicial foi o apagamento das mulheres agredidas.Vol. 2005). Dentro da ADC. a linguagem do direito busca caracterizar-se por uma impressão de verdade. advogados. teria agredido fisicamente "sua companheira. em 7-11-2007. observamos uma série de apagamentos na representação da história de violência. Tal percepção demandou um olhar mais detido sobre o sistema de representação dos atores sociais nos acórdãos. só aparecem nos acórdãos em um único campo textual que Saito (2005) enquadrou como pertencente à “categoria de relato”. ao seguirmos os modos de representação de atores sociais em um dado discurso. que. § 9º do Código Penal porque. guiada por esses nortes. de descrição do real. na realidade. cenário e atores. É uma representação que reflete o contexto de cultura e de situação de onde foi feito o recorte. § 9º. ao redigirem os relatos. designada para o dia 18/2/2008. é compreensível que as estratégias desses operadores do direito. Ao contrário..COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que se articularam. o que dá um efeito de personificação. e sem nenhuma menção direta à violência. ainda que em moldes impessoais.940 – RJ).. a mulher agredida é incluída no texto a partir do recorte extraído da folha 35 do processo penal que gerou a demanda. 35). conforme são transcritas as declarações no inquérito. sua aparição é feita mais uma vez na categoria de relato e. 35 . Sua aparição é feita com o artifício que Van Leeuwen (1997) denomina de nomeação. de diferentes formas. a ofendida declarou expressamente que se retratava da representação ofertada em sede policial (. Observa-se que este recorte tem a particularidade de trazer para o texto uma representação da cena de violência. 291 .) (HABEAS CORPUS Nº 154. articulem-se de forma a apagar a presença das mulheres que foram vítimas dos homens a quem defendem. quando os atores sociais são incluídos no texto nominalmente. ainda na fase policial do processo. ainda que de forma exígua. associada ao seu agressor pela categorização “ofendida”. Assim. valendo-se "de uma vassoura e um pedaço de mangueira para agredir a vítima" (fls.Sociologia. Neste exemplo.Consta dos autos que o paciente foi denunciado como incurso no art. Neste exemplo. embora a mulher agredida tenha sido trazida ao texto.Vol. agora. Os dois recortes exibidos fazem parte da lista dos sete acórdãos que se referem a julgamentos de habeas corpus impetrados por advogados ou defensores públicos. 36) (HABEAS CORPUS Nº 120. com o intuito de livrar os agressores de mulheres das penalidades a que foram submetidos em esferas anteriores. Na audiência preliminar. sem nomeação. Antropologia e Cultura Jurídicas lesões descritas no laudo de exame de lesões corporais" (fls. por uma representação da mulher agredida de forma impessoal. mas que nos dá alguma informação sobre a forma com a violência foi perpetrada pelo agressor. Essa mulher é ainda associada a seu companheiro e categorizada como vítima. conforme mostra o próximo recorte: 2.151 – ES). Tais evidências não são as mais comuns. do Código Penal. para enfatizar seu ato de se retratar da acusação. o que se observa com frequência é um apagamento tanto da figura das vítimas como das cenas de violência por elas sofrida. Da mesma envolvidas nas demandas acordadas. 129. aos olhos do leigo. ainda explorando as representações de atores sociais.940 . Vale ressaltar. sob moldes bastante instrumentais aos interesses de seus defensores. neste momento.Sociologia. Sobre estes últimos. ao argumento de que a referida Lei é inconstitucional. livrar os agressores dos crimes que cometeram. Aqui. Antropologia e Cultura Jurídicas forma que não nos surpreende que eles as tragam à cena.151 – ES). uma observação se faz fundamental sobre a questão da 292 . Ao contrário das vítimas. sobre a alcunha de “pacientes” e muito próximos desses outros atores (relatora. é difícil a identificação desses atores como os que concretamente perpetraram uma violência de gênero. Recortamos de um dos acórdãos os trechos de identificação que os encabeçam para demonstrar: 3. na maioria das vezes naquela categoria de relato. na prática. Dando prosseguimento a nossas exposições. defensora pública. eles aparecem nominalmente no início dos acórdãos. 'naturais' e não problemáticos. além do princípio da proporcionalidade.RJ (2009/0231509-0) RELATORA : MINISTRA XXXXXXXXXX IMPETRANTE : XXXXXXXX . pois viola. o da igualdade em relação ao sexo das vítimas (HABEAS CORPUS Nº 120. é transmutado para a posição de vítima. também é interessante destacar a forma pela qual são incluídos nos textos. igualando-se valorativamente no mesmo nível á mulher que ele agrediu. representado como paciente. baseadas na idéia de que a justiça é neutra e de que seus textos são objetivos.HABEAS CORPUS Nº 154. como os recursos textuais utilizados pelos operadores do direito nesses exemplos expõem a incompatibilidade entre as práticas desses agentes e as crenças que fundam o imaginário da comunidade jurídica. 35 . Tribunal) de quem.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .DEFENSORA PÚBLICA IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO PACIENTE : XXXXXXXXXXXX Além dessa aparição. pelos artifícios de categorização e impessoalidade. na parte a que Saito (2005) denominou de “categoria de identificação”. Eles são categorizados como “pacientes”. estão distanciados por diversas assimetrias de poder. os agressores também foram incluídos em outras partes dos textos.Vol. é claro.Sustenta que o paciente é vítima de constrangimento ilegal. para relatar suas iniciativas de se retratar e. conforme mostra outro trecho do acórdão de onde tiramos nosso primeiro exemplo: 4. o agressor. de maneira que. TERCEIRA SEÇÃO. Jorge Mussi. 16 da Lei Maria da Penha. é feita com recursos de pessoalidade. o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (em caixa alta). buscando "alcançar maior grau de conscientização da retratação da mulher. Maria Berenice Dias. de modo que a presença desses atores em muito supera a daqueles de quem acabamos de tratar. p. 1273) "é atingir um maior grau de solenidade e formalidade para o ato". Mas o que surpreende na leitura desses textos é perceber como eles incluem um contingente de 293 . (HABEAS CORPUS Nº 154. Em um dos acórdãos do corpus. como entidade social. A todo momento. Geraldo Prado. Monteiro (2003 p. Saito (2005) já nos chamava atenção para o alto grau de interdiscursividade manifesta nos acórdãos. Revista dos Tribunais. juristas. Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO. Isso explica a necessidade dos operadores do direito de legitimarem seus discursos. Curiosamente. Mohamad Ale Hasan Mahmoud. O que se pretende. doutrinadores e todo um rol de participantes são constantemente trazidos aos textos. o que aumenta o prestígio de suas identidades. os seguintes atores: Guilherme de Souza Nucci. Rel. diversas entidades sociais.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Recurso especial improvido. 4. Maria Lúcia Karan. vítima e agressor." (RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 35.109 – MS) Nesses recortes. Antropologia e Cultura Jurídicas inclusão ou exclusão. a representação desses outros atores. exigindo a sua realização em audiência especialmente designada para tanto pelo Juiz. ou seja. Guilherme de Nucci. 6- Referido dispositivo buscou dificultar a renúncia ou a retratação da representação.Sociologia. a Revista dos Tribunais. estão representados de forma pessoal. os verdadeiros implicados no processo e sobre quem concretamente recaem os efeitos dos acórdãos. ou seja. 2010. Ed.. eles são nominalmente mencionados nos acórdão (nome e sobrenomes completos). Os recortes seguintes expõem essas evidências: 5- Nos termos do art. segundo Guilherme de Souza Nucci (in Leis Penal e Processuais Penais Comentadas.. Pedro Rui da Fontoura Porto. apareceram além dos nomes completos de mais de cinco relatores de outros acórdãos mencionados no texto. o qual terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada. p/ Acórdão Ministro JORGE MUSSI.940 – RJ). trazendo para seus textos as vozes de autoridades consagradas em seu campo.Vol. alguns ainda são honorificados. na grande maioria das vezes. com prévia oitiva do Ministério Público. Ainda aparece. (REsp 1097042/DF. a retratação da ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado. 56) elucida que “um texto dota-se de sentido jurídico quando se refere a noções de direitos e obrigações e adquire valor jurídico ao atribuir ao seu argumento força normativa fundada em normas de um sistema jurídico”. 35 . que afastará a punição do agressor . Esse padrão formal é comentado por Monteiro (2003). É nesse sentido que o autor denuncia que a eficiência jurídica ou a justiça social são menos privilegiadas pelo direito que a crença no seu formalismo. atual e existente. A realidade jurídica. sobre as quais trazem decisões. 3. apresenta um repertório de palavras portadoras de um sentido transcendente. 124). prescrevem uma realidade possível. tecido por uma rede de palavras cristalizadas. dar-se ou não na realidade. portanto. cenários etc. enquanto.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ignorando sua arbitrariedade e a interpenetração de conteúdos políticos e ideológicos que no fundo determinam suas decisões. Bourdieu (2006) é um teórico cuja interpretação da linguagem do direito traz algumas explicações sobre esse trabalho de apagamento e realce que o discurso jurídico promove. conforme já discutimos. autônoma e desconectada desta primeira. 1981). que pode.2 Os topoi e as performances dos operadores do direito nos acórdãos O formalismo a que se refere Bourdieu reveste a linguagem dos acórdãos em vários níveis e opera além desses efeitos de invisibilidade dos protagonistas das histórias de violência. categoria à qual damos atenção nesta discussão. que entende que: “as normas jurídicas não descrevem uma realidade concreta e sensível. que enxerga nos moldes jurídicos um processo de transformação da realidade social em realidade conceitual. Tal percepção é também apoiada por Warat (1985 p. que fazem uso de um metadiscurso que.Sociologia. Para o autor. e condicionada axiologicamente”. ainda que seja factível e inspirada na realidade circundante e existente. 35 . desaparecem completamente os protagonistas das histórias de violência. o autor destaca o repertório de topoi. Dentre o fechado corpo de prescrições e hábitos desse campo. a illusio do campo jurídico significa reconhecimento tácito dos valores que se encontram em disputa no jogo e o domínio de suas regras. Antropologia e Cultura Jurídicas atores sociais de forma bem destacada. é construída por modos próprios de enunciação. divinamente legado das crenças tradicionais que os juristas sustentaram a respeito da natureza e funcionalidade das palavras da lei (Warat. conforme descreve o mesmo autor. as regras próprias desse discurso busca dar a ele eficácia simbólica.Vol. 294 . a certa altura. Em suas palavras. encarada como exigível e devida. também apagam essas mesmas histórias com seus enredos. porém. Vol. 98). o sistema legal. da Lei Maria da Penha. As escolhas feitas pelos operadores do direito também podem estar relacionadas a esses tipos de topoi. estabelecido na Constituição Federal. estado de direito. 295 . podem ser encontrados. e da isonomia. interesse público. 2000. fins sociais da lei” (Andrade. a legalidade. Há topoi que só podem ser considerados comuns no campo do direito. Para Andrade (1991). onde argumentos concretos. Antropologia e Cultura Jurídicas O termo topoi vem da palavra grega “” (comunes loci). p. porque na sociedade não alcançam uma expressividade para ganhar um efeito de consenso. a ele somamos os trechos seguintes: 7- Noutro giro. para fins diferentes. porque fere o princípio de igualdade. Ele tem suas raízes na retórica. embora de natureza semântica. De acordo com Van Dijk (2000). o papel dos topoi no direito é o de superar as antinomias. a maioria dos pedidos nos acórdãos estavam relacionados a demandas de defensores públicos ou advogados. porém. e há os sociais. a autonomia.099/95 (HABEAS CORPUS Nº 181. Muitos institutos de direito são formados em torno desses tipos de topoi. 1991. Além disso. eles devem ser estudados como parte da argumentação em si. por ter sido um artifício de argumentação recorrente. 41. que “representam o raciocínio de senso comum típico para questões específicas” (Van Dijk. vamos nos ater ao “inconstitucionalidade”. tece considerações acerca da inconstitucionalidade do art. há topoi que são divulgados pela mídia. Assim.217-RS). com o intuito principal de suspender ou extinguir os processos.º 9. a legitimidade. são os elementos mais típicos da natureza argumentativa e persuasiva. como: “interesse social.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 35 .Sociologia. que significa “lugar comum”. Esta estratégia tem como premissa a crença de que o artigo 41 da Lei Maria da Penha é inconstitucional. O recorte número quatro. Aristóteles descreveu topoi como “lugares vazios”. Conforme já mencionamos. Na ADC. traz um exemplo desse argumento. há topoi jurídicos. p. porque podem normalmente ser usados como argumentos mais ou menos padrão. Esses topoi seriam equivalentes aos princípios gerais do direito na terminologia tradicional. bem-estar. que afasta a incidência dos institutos despenalizadores previstos na Lei n. Neste sentido. os direitos individuais. para esta apresentação. Vários topoi foram identificados na análise preliminar. a boa vontade. topoi são entendidos como esquemas padrão de argumentação. em defesa dos réus. Eles favorecem a aceitabilidade da escolha dos operadores do direito. 202). Em três decisões o principal argumento utilizado por esses agentes foi introduzido pelo argumento de “inconstitucionalidade”. já exposto. 296 . a sociedade etc. também. ressaltando uma incompatibilidade entre a Lei Maria da Penha e a Constituição Federal. Tratam-se de “falácias jurídicas”. 35 . um conjunto estereotipado de formas metodológicas.134.Vol. o que restou ratificado pela Juíza de Direito do Juizado Especial Criminal por meio do decisum de fls.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . da incompetência do Juizado Especial Criminal. e para suscitar conflito de competência. de rever princípios legais que competem somente àqueles que os dominam dentro de seu campo especifico. o que estava realmente em jogo era o alcance da suspensão condicional do processo para livrar os agressores das sanções aos crimes que cometeram. 123). no interesse da persuasão. isto é. Em pesquisa sobre a Lei Maria da Penha na jurisprudência dos Tribunais. “a decisão judicial é uma peça persuasiva. 38/39 (RECURSO ESPECIAL Nº 1.Sociologia. Antropologia e Cultura Jurídicas 8- Em face dessa decisão. 1985). que funcionam como princípio de inteligibilidade. mas que logra sua aceitação por associação psicológica. Desse modo. nem está mais em jogo os efeitos de tal violência sobre a vítima. conforme já nos elucidaram Monteiro (2003) e Warat (1981. é. especialmente advogados. Seguindo o raciocínio desse teórico. recursos argumentativos que tendem a impor uma conclusão não derivada logicamente. da política e da comunidade e a satisfação das exigências valorativas do direito. emotiva. 37) manifestou-se no sentido da inconstitucionalidade do art. os operadores do direito apelam para uma série de “slogans operacionais”. O topos de inconstitucionalidade. argumento que se encaixa nos topoi jurídicos bastante recorrentes. a Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Ceará (à fl. Ele se adéqua aos moldes do discurso jurídico que transmuta a realidade social em realidade conceitual. Trata-se. uma falácia jurídica. conforme foi usado nos acórdãos. Na prática forense. bem enquadrada nos termos conceituados por Warat (1985). Não se trata mais de arbitrar sobre atos de violência praticados por um homem contra uma mulher em particular. É assim que o argumento de inconstitucionalidade foi usado nos acórdãos. e por coincidência valorativa. seus filhos. 41 da Lei Maria da Penha. tem a funcionalidade de compactar ao quase apagamento toda a história de violência e seus elementos mais sórdidos e ajustar o caso nos limites da circunscrição legal.030 – CE) Segundo Warat (1985 p. Ao acionar esse slogan. que só relativamente podem ser alcançadas”. de suas pautas axiológicas. o apelo à inconstitucionalidade. diz o autor. ao contrário. da doutrina. é óbvio que os operadores do direito. que persegue a aprovação da instância superior. fazem um grande uso das falácias em defesa dos interesses de sua pátria. o que deu legitimidade ao topos para ser acionado.Sociologia. na prática de defensores e advogados. se por um lado. a constitucionalidade daquele dispositivo legal. o de “constitucionalidade”.099/95 (HABEAS CORPUS Nº 181.217 – RS). nos autos do Habeas Corpus n. tornando impossível a implementação de seus institutos despenalizadores. Nesse sentido cabe observar como essas autoridades lidaram com esse artifício argumentativo. denegou a ordem ali postulada. tornando impossível a aplicação dos institutos despenalizadores previstos no mencionado dispositivo a estes delitos (HABEAS CORPUS Nº 120. já é de conhecimento de todos que o Plenário do Supremo Tribunal Federal. Isto não significa que os juízes sejam imunes à sua influência.212/MS. no julgamento do Habeas Corpus nº 106. nas decisões de nosso corpus o STJ negou esse argumento com o topos de "constitucionalidade" e legitimou a negação ao mencionar o julgamento do habeas corpus (hc) 106. o uso das falácias é recorrente.2011. ou que. por unanimidade. por outro lado. 297 . Antropologia e Cultura Jurídicas Guattini e Azevedo (2011) mostraram como o apelo à inconstitucionalidade da lei Maria da Penha foi acatada por alguns magistrados de 1º grau antes da decisão do STF.212/MS ocorrido aos 24-03-2011. pela unanimidade dos votos de seus integrantes. 35 . em relação aos crimes cometidos com violência doméstica contra a mulher. 89 da Lei nº 9. 41 da Lei Maria da Penha. conforme vimos nos recortes.03. 10- Quanto à alegada inconstitucionalidade do art.que afasta a incidência do art.340/06. deliberadamente ou não.340/2006. o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade do artigo 41 da lei 11. por unanimidade de votos. absolve e condena. cumpre ressaltar que a questão foi levada à apreciação do Plenário do Pretório Excelso que. que faz nascer e desaparecer entidades. quando. cria compromissos. entendendo pela inexistência de qualquer ofensa a regra ou princípio constitucional o disposto no art. no que tange à aventada inconstitucionalidade da Lei nº 11. como a suspensão condicional do processo.º 106. o topos de “inconstitucionalidade” perdeu a sua eficácia e sua menção em julgamentos do STJ passam a acionar o topos reverso.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher -. afastando de uma vez por todas quaisquer questionamentos quanto à não aplicação dos institutos despenalizadores previstos na Lei n. Como se pode ver. Warat (1985) propõe que. Após o julgamento do habeas corpus mencionado. declarou no dia 24. As múltiplas finalidades e condições dos eventos comunicativos próprios do campo jurídico dão à sua linguagem um caráter essencialmente performativo. que rejeitou a aplicação do artigo 89. conforme mostramos nos recortes a seguir: 9- Inicialmente.099/1995. 41 da Lei Maria da Penha .Vol.º 9. confere poderes.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . as empreguem. da lei 9. é ao julgador que toca a tarefa de desentranhar as falácias encontradas.151 – ES).212/MS. seguindo os moldes teórico-metodológicos da ADC. distribuição. expõem a instrumentalidade do recorte teórico-metodológico da ADC na detecção dos aspectos de 298 . os elementos que apontam para a prática discursiva. Considerações Ao realizarmos o piloto. força. o treinamento lingüístico e social da comunidade jurídica brasileira faz como ela reconheça como 'naturais' e não problemáticos textos tipicamente marcados por assimetria de poder. no fundo as decisões judiciais se devem mais às atitudes éticas dos participantes que às regras puras do direito. um discurso autoritário que em essência acaba por “barrar” a voz do outro. as análises. Bourdieu (2006) completa essas observações.Sociologia. performatividade. que para o senso comum se projetam como neutras e universalizantes. Assim.Vol. permite e proíbe (Ataídes e Oliveira. a que nos referimos no início desta apresentação. intertextualidade etc. como contexto de produção. mostrando que. o topoi. 35 . etc. a coesão. considerando a gramática.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . na realidade. dentre outros dados linguísticos. dividimos nossas observações em dois tópicos: o primeiro sobre os significados acionais e representacionais dos textos. Nesse sentido. aqui empreendidas. pois as vozes que naturalmente se mostram nos textos polifônicos são abafadas ou ocultadas sob a aparência de uma única voz. Para Ducrot (1987). as características desse discurso acabam por torná-lo monofônico. para exemplificar o funcionamento da lógica jurídica e seu sistema ideológico. e o segundo em que decidimos por dar destaque a uma categoria de argumentação. políticas. optamos por selecionar um recorte que captasse as principais impressões colhidas a partir dessa primeira aproximação com os dados. acusando-a de ser. voltada ao balanço crítico das formas pelas quais os juristas utilizavam o instrumental lingüístico. a prática social que os mesmos acionam e suas dimensões ideológicas. Nessa direção. olhamos os textos sob três orientações específicas: sua textualização. O rol de categorias analíticas elencadas a partir dessa investida é relativamente diversificado e sua descrição não caberia nos limites desta apresentação. Antropologia e Cultura Jurídicas ordena. a idealizada “voz da Justiça”. Conforme observa Colares (2008). por fim. e. em que focamos a representação de atores sociais. Essas incursões iniciais sobre o sistema de textualização dos acórdãos já introduzem a instrumentalidade do recorte teórico da ADC na tarefa sugerida por Warat (1981). para o presente momento. O autor critica esses moldes da linguagem do direito. culturais. coerência. 2011). Acesso em: set de 2011. 9. Rodrigo Ghiringhelli de. Tradução Fernando Tomaz. 299 . Congresso Fazendo Gênero 9. Julho de 2005 [Internet]. São Paulo.ufg.br/lec/01_05/Valeria. CASTILHO. 4. Santa Maria. Disponível em: http://extras. 2011. Raquel Carolina Souza. Valéria Iensen.105117.br/9/resources/anais/1278275561_ARQUIVO_ PaperFazendoGenero9. UFSM. 1991.Sociologia. 3. In: CAMPOS. A organização temática da sentença da jurisprudência como mecanismo de construção da identidade social profissional do juiz do STF. OLIVEIRA. BOURDIEU. n. Sulina. 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Planejamento como processo dinâmico: a importância do estudo piloto para uma pesquisa experimental em linguística aplicada.21 de Setembro. Criminalização do tráfico de mulheres: proteção das mulheres ou reforço da violência de gênero? Cadernos Pagu (31). 2008. Hermenêutica jurídica no Brasil. p. AZEVEDO. Fenomenologia.ed. 078-7: uma exegese à luz da análise crítica do discurso. 12.br/index. Luís Alberto. 1997. Wânia Pazinato. M. London: Routledge. VAN DIJK.33-70.dominiopublico.. Teun. 16. Luis Alberto. 1º Semestre 1981.Sociologia. Silvia. Florianópolis. Disponível em: <http://www. Rev. Seqüência. p.) The semiotics of racism. Acesso em Março de 2013. 2007. 35 . Campinas: Pontes. v.br/download/texto/cp053348.evocati. ano II. Acesso em fevereiro de 2013. p. O.br/index. 22.pdf>. Approaches to critical discourse analysis.ufsc. GRAÇA NETO. 10. O processo de codificação civil na instauração da ordem liberal conservadora do Brasil. Acesso em: julho de 2011. Florianópolis. 11. 1996. 153 f. 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Antropologia e Cultura Jurídicas LEI MARIA DA PENHA E A INCONDICIONABILIDADE DO CRIME DE LESÃO CORPORAL DE NATUREZA LEVE: UM ESTUDO SOBRE OS IMPACTOS DO JULGAMENTO DA ADI 4424/DF E ADC 19/DF PELO STF NA REALIDADE SOCIAL RESUMO: O presente trabalho teve o objetivo de avaliar o impacto social do julgamento da ADI 4424/DF e ADC 19/DF. jurisprudence and theory. Palavras chave: Lei Maria da Penha. To do so. vieram. complemented by empirical surveys in the municipality of Itainópolis. até dezembro de 2012. bem como em levantamento empírico de informações. Impacto Social. Para tal desiderato.Sociologia. precedentes jurisprudenciais e teóricos que discorrem sobre o tema.Vol. sobre a Lei Maria da Penha. houve levantamento dos casos de violência doméstica que foram distribuídos na Vara Única da Comarca de Itainópolis no período de 2000 a 2012.340/2006. Criminal action. predominantemente. Piauí. which led to the reclassification of simple domestic battery as subject to unconditioned public criminal action. 35 . pautado em dispositivos legais. apresentar as discussões suscitadas por meio da ADI 4424/DF e ADC 19/DF e os impactos que o julgamento dessas ações teve. MARIA DA PENHA LAW AND UNCONDITIONED PUBLIC CRIMINAL ACTION OF SIMPLE DOMESTIC BATTERY: A STUDY WAS EVALUATE THE SOCIAL IMPACT OF SUPREME FEDERAL COURT RULING OF COURT CASES ADI 4424/DF AND ADC 19/DF ABSTRACT: The objective of the present study was to evaluate the social impact of the Supreme Federal Court ruling of court cases ADI 4424/DF and ADC 19/DF. Supreme Federal Court rulings. a ser expressamente tratados como de ação penal pública incondicionada. a partir de então. compilados os dados encontrados no livro de distribuição do Ministério Público. domestic battery cases tried in Civil Court in the District of Itainópolis in the period 20002012 were reviewed and data from the archives of the Public Ministry covering the period August 2008 to December 2012 were retrieved and analyzed. Ação Penal. ii) presenting the discussions generated in the course of ADIN 4424 and ADC 19 and the impact of these rulings on the Maria da Penha Law. e feito um cotejo analítico das informações angariadas. pelo Supremo Tribunal Federal. que busca uma contextualização histórica e uma compilação de dados obtidos. documental. fazer uma breve análise acerca da aplicação da Lei Maria da Penha. São objetivos específicos do trabalho: fazer uma análise contextual e histórica da Lei 11.340/2006. The study was predominantly documental. considerando a realidade da comarca de Itainópolis-PI. 301 . Tratase de um estudo. The specific objectives included i) performing a contextual and historical analysis of Law 11. havendo grande prevalência da violência física (47% (quarenta e sete por cento)) e psicológica 22% (vinte e dois por cento) (Informações obtidas no site: www. dados doutrinários e jurisprudenciais sobre o assunto. classe ou status dentro da sociedade. no último ano. das delações ocorridas. busca abordar a temática da violência. alvo de diversas críticas e questionamentos sobre a constitucionalidade.br. na comarca de Itainópolis que. mulheres. quando adultos. como mecanismo propulsor da reflexão para fomento da modificação da realidade vigente. chegando a 70% (setenta por cento) dos casos entre a idade de 30 e 39 anos. a todos os membros de uma entidade familiar.340/2006. que possui efeito multiplicador na medida em que compromete. Antropologia e Cultura Jurídicas INTRODUÇÃO O trabalho tem por objetivo analisar a incondicionalidade do crime de lesão corporal de natureza leve nos casos de violência doméstica. 1 Segundo dados 71.Vol. crianças que terão a tendência de repetir. poderão ser mais bem comprovados após compilação dos dados obtidos perante a distribuição da Vara Única e da Promotoria de Justiça local. Acesso em: agosto de 2012 – Mapa da violência). independentemente da estratificação (posição econômica. O interesse pelo estudo dos reflexos da recente decisão do Supremo Tribunal Federal. vale destacar que durante a pesquisa foram colacionadas as principais ideias dos ministros do STF.8% (setenta e um e oito por cento) dos casos de violência doméstica contra mulher acontecem na própria residência da vítima.340/2006. como meio de expandir o conteúdo da norma. considerando-a como fenômeno social que afeta. um enfoque preocupado com a divulgação da lei e a conscientização das mulheres vítimas sobre dados e direitos e a divulgação da norma aos agressores. está relacionado ao trabalho direto com este tipo de crime. ocupacional. proferida nos julgamentos citados na Lei nº 11. A banalização da violência doméstica 1 acabou levando à invisibilidade de um dos crimes de maior incidência na realidade brasileira. acerca deste interessante e atual tema e trazidas à baila. sendo que na faixa etária de 20 a 50 anos mais de 50% (cinquenta por cento dos agressores das mulheres são os cônjuges ou ex-cônjuges. A Lei 11. de modo geral. 35 . certamente.org. popularmente nominada de Lei Maria da Penha. suas implicações práticas.patriciagalvao.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . mas também. Nesse sentido. política). principalmente. considerando-se o julgamento da ADC 19/DF e ADI 4424/DF do Supremo Tribunal Federal e avaliar o impacto social da decisão citada. o comportamento vivenciado na infância e se tornar violadores de direitos no âmbito de suas famílias restritas. e ao aumento. a olhos vistos.Sociologia. no Ministério Público do Estado do Piauí. 302 . não apenas. de forma global e indistinta. possibilidade de prisão preventiva do agressor e inaplicabilidade da Lei dos Juizados Especiais Criminais. na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra mulheres e Convenção Interamericana para prevenir. nos casos de lesão corporal de natureza leve. Essa Lei trouxe várias alterações no aspecto penal e processual penal. 35 .340/2006 foi publicada em 07 de agosto de 2006 e passou a ser nominada de Maria da Penha. que sofreu mais de um atentado por parte de seu marido. que não se restringem às mulheres – diretamente atingidas com as agressões praticadas. punir e erradicar a violência contra mulher.Vol. Essa norma é fruto de uma proposta de lei específica. cada vez mais. com a assistência às vítimas desse tipo de delito. 303 . 1 LEI MARIA DA PENHA 1. estudos sobre o assunto são importantes para adentrar. se esta decisão tem contribuído para o aumento do número de delações dos casos de violência doméstica ou para inibi-las. Marco Antônio Heredia Viveiros.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ao excluir a necessidade de representação das vítimas. descortiná-la e possibilitar seu enfrentamento. 226. à Secretaria de Políticas para Mulheres por um grupo de organizações feministas. igualmente vitimados com a violência generalizada. da Constituição de 1988 e no Direito Internacional. pretende-se igualmente. Todavia.1 Histórico A Lei 11. com a repressão aos crimes que a envolvem. por este estudo. avaliar se a Lei Maria da Penha foi fruto de anseio da sociedade. sobretudo. em homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes. apresentada em março de 2004. na cidade de Fortaleza/CE. mas a seus filhos. há em seu bojo uma gama de previsões de natureza social e acauteladora. mesmo em caso de ilícitos de menor potencial ofensivo. que causaram sua paraplegia. essa complexa seara. tendo amparo no art. que refletem uma natureza assistencialista da norma. reflete uma mudança de perspectiva social. Buscou-se. o professor universitário e economista. No mais.Sociologia. § 8º. com aumento da imputação a ser imposta. vítima da violência doméstica. dentre os quais: alterações no valor das penas a serem aplicadas. preocupada. não apenas. Antropologia e Cultura Jurídicas razão pela qual. se a decisão da Corte máxima do país. mas. à luz da decisão da ADI 4424/DF e ADC 19/DF do Supremo Tribunal Federal discorrer sobre o impacto das decisões judiciais na realidade social e no direito vigente. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas Em virtude da demora na resolução judicial desse caso, houve intervenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em 2001, que impôs ao Estado Brasileiro o pagamento de indenização no valor de vinte mil dólares em favor de Maria da Penha, além da responsabilização por negligência e omissão no tocante à violência doméstica, e recomendou, ainda, a adoção de várias medidas, dentre elas, a simplificação dos procedimentos judiciais penais a fim de reduzir o tempo processual. Considera-se oportuno, destacar que essa norma é fruto de movimento de grupo sociais – organizações feministas tais como: Assessoria Jurídica e Estudo do Gênero; Centro Feminista de Estudos e Assessoria; Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação; Organização Feminista da Sociedade Civil; Advocacia Cidadã pelos direitos humanos e Comitê latino Americano e do Caribe para defesa dos direitos da mulher, e reflete uma realidade preocupante, a existência de considerável número de agressões, praticadas no âmbito familiar, por parceiros ou ex-parceiros, que corresponde, em média, a 65% (sessenta por cinco por cento) das agressões sofridas por mulheres na faixa etária de 20 a 49 anos de idade2. Nesse contexto, enfatiza-se que houve trabalho intenso de grupos para elaboração da Lei 11.340/2006, criação de uma Secretaria especial para política de erradicação de violência contra mulher, fruto da pressão sofrida em âmbito internacional, o que denota que a norma em estudo é produto de intensos debates, do enfrentamento de um tema polêmico, complexo e difícil, pauta internacional de direitos humanos, em que a quebra de paradigma instaurou-se para tentar superar uma realidade social preocupante e de difícil enfrentamento. Parcela da sociedade, por conseguinte, concorreu para criar uma norma que tem a intenção de mudar uma realidade, afastar omissão estatal ou punições inexpressivas (muitas vezes representadas pelo pagamento de cestas básicas no Juizado Especial Criminal) e evitar uma conduta sufocada, por parte das vítimas que, temerosas de represália e ausência de resolutividade, calavam-se. Destarte, é imprescindível reconhecer que a Lei 11.340/2006 é fruto de movimentos sociais, do reconhecimento da desigualdade de gêneros, da mudança conjuntural de papeis na realidade atual, enfim, de uma projeção da mulher no mercado de trabalho e na sociedade e de uma, cada vez maior, quebra do sistema patriarcal, conduzindo à adoção de medidas para 2 Informação obtida no Mapa da Violência de 2012. Disponível em: <http: www.patriciagalvao.org.br.>. Acesso em: ago.2012. 304 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas superação desse tipo de violência que se impõe a todo Estado que se intitula democrático de direito e se pauta na dignidade da pessoa humana. 1.2 Natureza Jurídica da Lei A lei em exame possui natureza preventiva, assistencial, assecuratória, não obstante revele caráter punitivo, razão pela qual convém destacar não ser ela uma lei de natureza penal ou processual penal, eminentemente, mas de caráter social 3, típica de um Estado Democrático de Direito, preocupado com o resguardo das minorias que, muitas vezes, revelam parcela considerável da população. Ela é, portanto, uma lei de cunho sociológico, que se consolida em estudo da realidade social, no enfrentamento de tema que merece preocupação e cautela, a violência impingida no espaço familiar, por companheiros, maridos, ou namorados, a exposição da vítima, a fragilidade, a dificuldade de enfrentamento, a necessidade de proteção e resguardo estatal. Segundo Tavares (2006, p. 727), os direitos sociais são aqueles que exigem do Poder Público uma atuação positiva, uma forma concreta de implementação da igualdade social das minorias. São, pois, direitos que visam à proteção aos menos favorecidos econômica e socialmente, com o fim de garantir-lhes igualdade, que transcenda o aspecto meramente formal traduzido em dispositivos legais, afetando-os materialmente4. Por isso e nesse sentido, é interessante destacar que a Lei Maria da Penha, em seu artigo 13, prevê a aplicação subsidiária de leis que regulam direitos de crianças e adolescentes e de idosos, as quais têm nítido caráter protecionista. Destarte, tendo em vista que o fim precípuo da Lei 11.340/2006 é corrigir a distorção existente entre a realidade jurídica, prevista na Constituição Federal e em tratados 3 4 Art. 1º da Lei 11.340/2006: Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A promoção da igualdade se dá por meio da cessão de oportunidade diversas a pessoas em situações diversas para igualar suas perspectivas. Com efeito, de nada adiantaria servir a mesma quantidade de nutrientes ou cobertores para pessoas que vivem realidades sociais totalmente díspares e dependem de quantidades de calorias completamente diversas para sobreviverem. 305 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas internacionais, e a situação das mulheres, alvo primordial da violência doméstica, através de prestações positivas do Estado (União, Estados e Municípios), que proporcionem melhores condições de vida a elas, resta notória a natureza social e protecionista dessa norma. As regras contidas nos dispositivos 1º ao 4º; 8º e 9º; 23 e 24; 28 a 32 e art. 37 são exemplos desse caráter protecionista. Outros apresentam caráter conceitual (5º a 7º). Alguns, dizem respeito à Organização Judiciária: 15, 27, 34, 35 e 36 e têm caráter híbrido: 11, 14, 21, 22, 25 e 26. Há, contudo, apenas nove dispositivos de índole eminentemente penal: 12, 16, 17, 20 e 41 a 45, o que comprova a prevalência da natureza social e protecionista da norma em estudo. O exame da natureza da Lei Maria da Penha mostra-se interessante, no caso em apreço, para demonstrar seu caráter híbrido e a intensa participação social em sua elaboração e justificar a existência de discrimines positivos que visam desigualar as penalidades aplicadas aos agressores de mulheres, com o escopo de concorrer para a diminuição de casos de violência dessa natureza e provocar uma alteração de conduta social a médio e longo prazo. 1.3 Conceito de Violência Doméstica e Formas Pode-se conceituar violência doméstica como todo tipo de agressão, seja física, moral, psicológica, sexual, patrimonial. praticada contra a ‘mulher’, em determinado ambiente (doméstico, familiar ou de intimidade), com a finalidade específica de objetá-la, aproveitando-se de sua vulnerabilidade. Não há qualquer necessidade de habitualidade na conduta do agente, na medida em que não se admite que o Estado tolere nenhum tipo de agressão, para tomar providências contra o agressor, consoante prevê o art. 5º do Texto Constitucional. O parágrafo 5º da Lei 11.340/2006 permite que a violência doméstica se aplique às 306 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas hipóteses de relações homossexuais femininas. 5 Atualmente, já foram proferidas algumas decisões, reconhecendo a incidência da Lei Maria da Penha em favor de homens, 6 o que, na interpretação destas pesquisadoras, desnatura o sentido da norma em estudo e pode banalizar sua aplicação, levando-a a perder força social. 5 6 Fato que demonstra que a concepção de gênero na atualidade é bastante ampla não se limitando a noção de ‘sexo biológico’, mas abrangendo opção e conduta sexual. Decisão interlocutória própria padronizável proferida fora de audiência: Autos de 1074/2008 - Vistos, etc. Trata-se de pedido de medidas protetivas de urgência formulada por CELSO BORDEGATTO, contra MÁRCIA CRISTINA FERREIRA DIAS, em autos de crime de ameaça, onde o requerente figura como vítima e a requerida como autora do fato. O pedido tem por fundamento fático, as varias agressões físicas, psicológicas e financeiras perpetradas pela autora dos fatos e sofridas pela vítima e, para tanto instrui o pedido com vários documentos como: registro de ocorrência, pedido de exame de corpo de delito, nota fiscal de conserto de veículo avariado pela vítima, e inúmeros e-mails difamatórios e intimidatórios enviados pela autora dos fatos à vítima. Por fundamento de direito requer a aplicação da Lei de nº 11.340, denominada “Lei Maria da Penha”, por analogia, já que inexiste lei similar a ser aplicada quando o homem é vítima de violência doméstica. Resumidamente, é o relatório. DECIDO: A inovadora Lei 11.340 veio por uma necessidade premente e incontestável que consiste em trazer uma segurança à mulher vítima de violência doméstica e familiar, já que por séculos era subjugada pelo homem que, devido a sua maior compleição física e cultura machista, compelia a “fêmea” a seus caprichos, à sua vilania e tirania. Houve por bem a lei, atendendo a súplica mundial, consignada em tratados internacionais e firmados pelo Brasil, trazer um pouco de igualdade e proteção à mulher, sob o manto da Justiça. Esta lei que já mostrou o seu valor e sua eficácia, trouxeram inovações que visam assegurar a proteção da mulher, criando normas impeditivas aos agressores de manterem a vítima sob seu julgo enquanto a morosa justiça não prolatasse a decisão final, confirmada pelo seu transito em julgado. Entre elas a proteção à vida, a incolumidade física, ao patrimônio, etc. Embora em número consideravelmente menor, existem casos em que o homem é quem vem a ser vítima da mulher tomada por sentimentos de posse e de fúria que levam a todos os tipos de violência, diga-se: física, psicológica, moral e financeira. No entanto, como bem destacado pelo douto causídico, para estes casos não existe previsão legal de prevenção à violência, pelo que requer a aplicação da lei em comento por analogia. Tal aplicação é possível? A resposta me parece positiva. Vejamos: É certo que não podemos aplicar a lei penal por analogia quando se trata de norma incriminadora, porquanto fere o princípio da reserva legal, firmemente encabeçando os artigos de nosso Código Penal: “Art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.” Se não podemos aplicar a analogia in malam partem, não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu quando não se trata de norma incriminadora, como prega a boa doutrina: “Entre nós, são favoráveis ao emprego da analogia in bonam partem: José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Costa e Silva, Oscar Stevenson e Narcélio de Queiróz” (DAMÁSIO DE JESUS – Direito Penal - Parte Geral – 10ª Ed. pag. 48) Ora, se podemos aplicar a analogia para favorecer o réu, é óbvio que tal aplicação é perfeitamente válida quando o favorecido é a própria vítima de um crime. Por algumas vezes me deparei com casos em que o homem era vítima do descontrole emocional de uma mulher que não media esforços em praticar todo o tipo de agressão possível contra o homem. Já fui obrigado a decretar a custódia preventiva de mulheres “à beira de um ataque de nervos”, que chegaram a tentar contra a vida de seu ex-consorte, por pura e simplesmente não concordar com o fim de um relacionamento amoroso. Não é vergonha nenhuma o homem se socorrer ao Pode Judiciário para fazer cessar as agressões da qual vem sendo vítima. Também não é ato de covardia. È sim, ato de sensatez, já que não procura o homem/vítima se utilizar de atos também violentos como demonstração de força ou de vingança. E compete à Justiça fazer o seu papel de envidar todos os esforços em busca de uma solução de conflitos, em busca de uma paz social. No presente caso, há elementos probantes mais do que suficientes para demonstrar a necessidade de se deferir a medidas protetivas de urgência requeridas, pelo que defiro o pedido e determino à autora do fato o seguinte: 1. que se abstenha de se aproximar da vítima, a uma distância inferior a 500 metros, incluindo sua moradia e local de trabalho; 2. que se abstenha de manter qualquer contato com a vítima, seja por telefonema, e-mail, ou qualquer outro meio direto ou indireto. Expeça-se o competente mandado e consigne-se no mesmo a advertência de que o descumprimento desta decisão poderá importar em crime de desobediência e até em prisão. I.C. Revista Consultor Jurídico, 30 de outubro de 2008. (Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2008-out-30/lei_maria_penha_aplicada_ proteger_homem>. Acesso em: 28 nov.2012). 307 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas Vale destacar que o referido instituto foi criado em defesa de uma minoria desprestigiada historicamente, vitimada pelo preconceito e que deve ser protegida, já havendo, para as demais vítimas de violência do sexo masculino, previsão legal de tipo penal que regulamenta conduta de violência, não sendo necessário aplicar-se a Lei Maria da Penha a esse tipo de situação. Tal extensão interpretativa, certamente, enfraquece o conteúdo da lei que regula a violência doméstica contra o gênero feminino, desconsidera o contexto histórico da criação e implementação da Lei 11.340/2006, bem como a importância de coibir conduta social reprovável, que atinge parcela significativa da população mundial, com seu efeito multiplicador e silencioso, na medida em que o comportamento impingido em um lar se expande para outros grupos e pode vir a contaminar ambientes diversos, afetando mais de uma geração. A Lei 11.340/2006 é autoexplicativa quanto às formas de violência doméstica descrevendo como pode a conduta do agente concorrer para a configuração do ilícito penal no art. 7º da norma de referência. 2 DA AÇÃO PENAL NOS CRIMES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA 2.1 Da aplicação subsidiária do Código Penal A Lei 11.340/2006 não traz previsão expressa sobre o tipo de ação penal a ser proposta nos casos de violência doméstica, razão pela qual o Código Penal passou a ser aplicado de forma subsidiária aos delitos descritos na norma de referência, sendo admitido, pela maioria dos tribunais pátrios, a ação penal pública condicionada à representação da vítima nos casos de crimes de ação penal pública condicionada e à queixa, quando se tratar de ilícitos submetidos à ação penal privada e, de igual sorte, à ação penal pública incondicionada nas demais situações. Quando a ação penal for condicionada, a lei o dirá expressamente, trazendo, em geral, ao fim do artigo, o preceito de que somente se procederá mediante representação. O 308 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas Ministério Público é o titular desse tipo de ação e só poderá dar início a ela se a vítima, ou seu representante legal o autorizarem, por meio de uma manifestação de vontade. Sem a permissão do ofendido, nem sequer poderá ser instaurado o inquérito policial (CPP, art.5ª,§ 4º). Entretanto, uma vez iniciada a ação penal, o Ministério Público assume a ação de forma integral, a qual será informada pelo principio da indisponibilidade do objeto processual, sendo irrelevante qualquer tentativa de retratação em momento posterior. No caso da Lei Maria da Penha, o artigo 16 trouxe previsão expressa da retratação, como se percebe in verbis: Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata a Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. Assim, há possibilidade de juízo de retratação, antes da instauração da ação, perante o juiz, em audiência designada para tal fim, após oitiva do Ministério Público, o que gerou grande celeuma doutrinária acerca do tipo de ação penal cabível no caso de lesão corporal de natureza leve, vindo grande parte da doutrina a sustentar, inicialmente, que esse tipo de ilícito seria de ação penal pública condicionada e dependeria, por conseguinte, de manifestação da vítima para ter seguimento legal. De fato, dentre as muitas polêmicas e divergências a respeito da Lei Maria da Penha e de seus institutos inovadores, merece destaque a questão da natureza jurídica da ação penal nos ilícitos de lesão corporal de natureza leve (artigo 129, § 9º, do Código Penal), que representa o maior número de casos registrados na comarca de Itainópolis-PI, consoante levantamento feito, que será mais bem abordado em tópico próprio, e no mapa da violência contra mulher, de 2012, conforme aferido no Instituto Patrícia Galvão. Durante os primeiros anos de vigência da Lei 11.340/2006, era pacífica a interpretação de que a ação penal cabível, nos casos de lesão corporal leve, era pública condicionada à representação da vítima, contudo, tal entendimento sofreu diversos questionamentos principalmente, no âmbito dos Ministérios Públicos Estaduais, uma vez que a Lei 11.340/2006 rechaça, expressamente, em seu artigo. 41, a incidência da Lei dos Juizados Especiais Criminais, aos casos de violência doméstica, sendo incongruente manter o reconhecimento da condicionalidade do crime de lesão corporal de natureza leve, criado pela 9099/95, e afastar sua incidência. 309 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas 2.2 Da inaplicabilidade da Lei 9099/95 às hipóteses de violência doméstica O artigo 41 da Lei n.º 11.340/06 cuidou de vedar, expressamente, a aplicação da Lei n.º 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim, o autor de uma lesão corporal de natureza leve, perpetradas no âmbito doméstico contra a mulher, independentemente da pena cominada in abstrato, não tem direito aos benefícios da Lei dos Juizados Especiais Criminais (composição civil dos danos, transação penal e suspensão condicional do processo). O desiderato de tal norma era justamente afastar o pagamento de cestas básicas e a constante sujeição da vítima ao agressor, no âmbito familiar, bastante comum nessas circunstâncias. Houve grandes discussões acerca da constitucionalidade de diversos dispositivos legais da Lei Maria da Penha, tendo o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por votação unânime, declarado em sessão de 09/02/2012, a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41, da Lei 11. 340/2006. Por meio de decisão, a Corte declarou procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 19, ajuizada pela Presidência da República, que teve por objetivo propiciar interpretação judicial uniforme dos dispositivos já citados desta lei. Desde a entrada em vigor da Lei 9.099/95, mormente no que tange à incidência dos princípios da informalidade, celeridade, oralidade e economia processual (artigo 62 da lei 9.099/95) dos Juizados Especiais, sempre houve uma preocupação dos movimentos feministas em relação a este novo direito penal conciliador e mais flexível, baseado na vontade do ofendido, a fim de evitar que ele chegasse a macular a vontade da vítima, obstar o oferecimento da notícia-crime, coibir a delação e a apuração de ilícitos, contribuindo, sobremaneira, com o aumento desse tipo de criminalidade silenciosa. A Lei Maria da Penha surgiu, exatamente, na fase em que a sociedade evoluiu para um processo penal cada vez mais constitucional, sob o qual se assenta uma série de direitos e garantias. Dessa forma, o procedimento adotado pela Lei dos Juizados criou importantes mecanismos de aperfeiçoamento das normas processuais e da prestação jurisdicional, com a finalidade de garantir a razoável duração do processo, o acesso ao Judiciário, a defesa ampla e a garantia da dignidade da pessoa humana, os quais não devem ser aplicados à Lei 11.340/2006, considerando-se a vulnerabilidade da parte ofendida, a necessidade de que haja 310 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas uma penalidade mais significativa ao agressor e que não haja banalização da violência doméstica, a ponto de obstaculizar que as partes ofendidas noticiem os fatos contra si praticados. O artigo 41 da Lei 11.340/2006 afastou a aplicação da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica contra a mulher e excluiu o dispositivo no artigo 61 da Lei 9.099/95, que define o que são infrações de menor potencial ofensivo dos crimes cometidos em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher. A despeito de inúmeras críticas que foram lançadas, não há dúvida de que a opção do legislador foi a mais franca possível, no sentido de afastar, peremptoriamente, do âmbito do JECrim, o julgamento dos crimes perpetrados com violência doméstica e familiar contra a mulher. O principal argumento para essa postura se funda, em síntese, na ‘banalização’ do crime praticado contra a mulher, decorrente da brandura da resposta penal proposta pela Lei n.º 9.099/95, que se contentava, como já descrito, com o pagamento de cestas básicas sem, efetivamente, buscar uma alteração de conduta social, uma mudança de paradigma do agressor e uma releitura da situação em que se enquadrava a vítima. No seio das inúmeras discussões que precederam à lei em exame, estabeleceu-se o debate em busca de saber se os mecanismos propostos pelos Juizados Especiais Criminais eram suficientes para conter a onda de violência contra a mulher ou se, ao contrário, haveria necessidade da adoção de medidas mais especificas, visando a atacar, diretamente, o problema. Alguns doutrinadores entendem que, se o objetivo da lei foi o de afastar, nos casos de violência doméstica, os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, a proibição da aplicação da lei 9.099/95 não é inconstitucional, afrontando o princípio da igualdade, mas uma forma de garantir a isonomia material, configurando-se, pois, como um discriminante positivo e necessário para viabilizar uma igualdade de gênero. 2.3 Da desigualdade de tratamento como elemento norteador da igualdade material O tratamento normativo diferenciado, com o afastamento da incidência da Lei dos Juizados Especiais Criminais, no caso em apreço, visa a dar isonomia e justiça às relações firmadas sob a égide da convivência familiar. Sobre o princípio da igualdade e da isonomia, 311 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas diz a jurisprudência: APELAÇÃO CRIME. LEI MARIA DA PENHA. LESÃO CORPORAL SIMPLES. ESTANDO AFASTADA A APLICAÇÃO DA LEI N.º 9.099/95 NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU FAMILIAR CONTRA A MULHER E INEXISTINDO QUALQUER RESSALVA, CONCLUI-SE QUE NÃO SE APLICA A LEI POR INTEIRO, INCLUSIVE SEU ART. 88, DE FORMA QUE REINTEGRA-SE A REGÊNCIA DO ART. 100 DO CÓDIGO PENAL, QUE IMPÕE A AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. DERAM PROVIMENTO AO APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. VOTO VENCIDO. (Apelação Crime Nº 70024691271, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcel Esquivel Hoppe, Julgado em 06/08/2008). APELAÇÃO - LEI MARIA DA PENHA INCONSTITUCIONALIDADE INOCORRÊNCIA - BUSCA DA IGUALDADE SUBSTANTIVA - COERÊNCIA COM O PRINCÍPIO DA ISONOMIA. A ação afirmativa do Estado que busque a igualdade substantiva, após a identificação dos desníveis socioculturais que gere a distinção entre iguais/desiguais, não se pode tomar como inconstitucional já que não lesa o princípio da isonomia, pelo contrário: busca torná-lo concreto, efetivo. As ações políticas destinadas ao enfrentamento da violência de gênero desaguem ou não em Leis - buscam a efetivação da igualdade substantiva entre homem e mulher enquanto sujeitos passivos da violência doméstica. O tratamento diferenciado que existe - e isto é fato - na Lei 11.340/06 entre homens e mulheres não é revelador de uma faceta discriminatória de determinada política pública, mas pelo contrário: revela conhecimento de que a violência tem diversidade de manifestações e, em algumas de suas formas, é subproduto de uma concepção cultural em que a submissão da mulher ao homem é um valor histórico, moral ou religioso - a origem é múltipla. Arguição de inconstitucionalidade rejeitada. Acordão: DERAM PROVIMENTO PARCIAL. Processo: 106720622224150011 MG 1.0672.06.222241-5/001(1), (Rel. ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO, J. 06/05/2008). Corroborando com os que entendem dessa forma, os julgados, majoritariamente, consideram constitucional o artigo 41 da Lei Maria da Penha, sob o fundamento de haver tratamento desigual entre homens e mulheres, no mundo jurídico, para que haja uma maior igualdade fática. Nucci (2007) manifesta o mesmo entendimento e defende ser constitucional o afastamento da Lei 9.0095/95, alegando que “se deve tratar desigualmente os desiguais,” tudo, certamente, com o fim de torná-los, o mais possível, socialmente iguais. Adota-se como regra, portanto, a total inaplicabilidade da Lei 9.099/95 aos crimes e, inclusive, às contravenções penais cometidas contra a mulher, no âmbito doméstico, até mesmo no que tange a eventuais benefícios a que teriam direito os autores de fatos delitivos naquela norma, quais sejam: a composição de danos, a suspensão condicional do processo e a transação penal. Igualmente, afastada a competência dos Juizados Especiais Criminais, também resta afastada a competência da Turma Recursal, para julgamento de eventual irresignação interposta de decisão proferida pelo Juizado Criminal, que decidiu sobre casos de violência 312 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas doméstica, para a qual, deverá ser encaminhado o feito ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado federado competente. Ressalte-se, por derradeiro, que a decisão do Supremo Tribunal Federal, de 09 de fevereiro de 2012, proferida na ADI 4.424/DF e na ADC19/DF, considerou inconstitucional qualquer argumento contrário à aplicação do dispositivo em estudo, pois passou a vislumbrar, como adstrito a ação penal pública incondicionada, o crime de lesão corporal de natureza leve praticado no âmbito familiar, sujeito aos ditames da Lei 11.340/2006. A partir da decisão do STF, na ADI 4424/DF e na Ação Direta de Constitucionalidade 19/DF, julgados em 09 de fevereiro de 2012, chega-se à conclusão de que o dispositivo do artigo16 experimentou sensível alteração no que se refere ao crime de lesões corporais de natureza leve, pois até aquele momento se entendia, de forma unânime (sobretudo na jurisprudência do STJ), que a ação penal, nesses casos, era condicionada à prévia representação da vítima. O STF fundamentou a alteração do seu posicionamento, dentre outros argumentos, na dignidade da pessoa humana, considerando que ninguém pode se submeter a qualquer tipo de violência física e que o Estado tem obrigação de intervir, de forma mais efetiva, quando a violência vier a ocorrer no âmbito familiar. Julgada a ADI 4424/DF, que deixa de exigir, para o crime de lesão corporal de natureza leve, representação da vítima, o Estado passou a ser o titular das ações penais conforme sugerem as seguintes decisões: RELATOR: MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR IMPETRANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS ADVOGADO: WILIAM RICCALDONE ABREU - DEFENSOR PÚBLICO IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS PACIENTE: ROGÉRIO REGINALDO DA SILVA EMENTA HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL E PENAL. LESÃO CORPORAL NO ÂMBITO DOMÉSTICO. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. DECISÃO DO STF. EFICÁCIA ERGA OMNESE VINCULANTE. RETRATAÇÃO DA VÍTIMA. REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA ESPECÍFICA. QUESTÃO SUPERADA. PENABASE. MAJORAÇÃO. CULPABILIDADE. UTILIZAÇÃO DE ELEMENTOS DO TIPO PENAL. DESCABIMENTO. ANTECEDENTES. PROCESSOS E INQUÉRITOS ARQUIVADOS. APLICAÇÃO DA SÚMULA 444/STJ. 1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n. 4.424/DF, deu interpretação conforme aos arts. 12, I, 16 e 41 da Lei n. 11.340/2006, estabelecendo que, nos casos de lesão corporal no âmbito doméstico, seja leve, grave ou gravíssima, dolosa ou culposa, a ação penal é sempre pública incondicionada. 2. Em razão da eficácia vinculante e erga omnes das decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade, a questão não mais comporta discussão em outros tribunais (art. 102, § 2º, da CF). 3. Diante da posição firmada pelo Pretório Excelso, o disposto no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 não tem aplicação aos delitos de lesão corporal, ficando superado, nesse caso, qualquer debate acerca da necessidade de realização de audiência específica para oportunizar a renúncia da representação oferecida pela 313 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas vítima. 4. O fato de ter havido violação da integridade física e dignidade da mulher não constitui fundamento válido para considerar negativa a circunstância judicial referente à culpabilidade na aplicação da pena do delito de lesões corporais praticadas no âmbito doméstico (art. 129, § 9º, do CP), uma vez que a agressão corporal e a relação marital são elementos integrantes do tipo penal. 5. Ações penais em que houve a extinção da punibilidade bem como inquéritos arquivados não podem ser utilizados como maus antecedentes, segundo a inteligência da Súmula 444/STJ. 6. Ordem parcialmente concedida a fim de, afastado o desvalor atribuído à culpabilidade e aos antecedentes, reduzir a pena para 3 meses e 15 dias de detenção, mantidos o regime inicial aberto e a substituição por duas penas privativas de direitos, conforme decidido pelo Tribunal de origem. DJe 02/04/201224 24 STJ. www.stj.jus.br Decisão publicada no diário eletrônico em 02/04/2012. HABEAS CORPUS Nº 222.528 - SE (2011/0252402-2) RELATOR : MINISTRO OG FERNANDES IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SERGIPE ADVOGADO : EDGAR PATROCINIO DOS SANTOS JUNIOR DEFENSOR PÚBLICO IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SERGIPE PACIENTE : CARLOS ANTÔNIO PEREIRA DOS SANTOS EMENTA HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LEI MARIA DA PENHA. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. DESNECESSIDADE. AÇÃO PÚBLICA INCONDICIONADA. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 4.424/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, modificou entendimento majoritário do STJ, reconhecendo a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, praticado mediante violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. Na hipótese, condenado o paciente nas sanções o art. 129, § 9º, do Código Penal, defendia-se que a representação da ofendida é condição de procedibilidade para a ação penal. Diante do acolhimento da orientação da Suprema Corte, o pedido não prospera. 3. Ordem denegada. DJe 11/04/201225 Destarte, em resumo, pode-se dizer que, com a decisão do Supremo Tribunal Federal que a todos vincula e tem eficácia erga omnes, a ação penal, nos crimes de lesões corporais leves que envolvam violência doméstica, passou a ser pública incondicionada, não mais exigindo, portanto, a prévia representação da vítima. Com isso, restaram prejudicados os inúmeros pronunciamentos, em sentido contrário, dos tribunais estaduais, bem como o firme posicionamento do STJ. 3 ANÁLISE DO JULGAMENTO DA ADI 4424/DF E ADC 19/DF 3.1 Análise dos votos dos ministros do STF A título ilustrativo e para dar uma noção do fundamento que margeou a decisão do Supremo Tribunal Federal nas ações declaratória de constitucionalidade e de inconstitucionalidade, de nº, 19/DF e 4424/DF, respectivamente, que questionavam dispositivos da Lei 11.340/2006, é interessante ressaltar a necessidade de se fazer, de forma 314 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas pontuada, uma análise dos principais argumentos suscitados nos votos dos Ministros da Casa referida. Consoante noticiado no portal do Supremo Tribunal Federal 7, por maioria de votos, vencido o presidente do STF, Ministro Cezar Peluso, o Plenário da Corte julgou procedente, em 09 de fevereiro de 2012, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República quanto aos artigos 12, I; 16; e 41 da Lei 11.340/2006. A maioria dos ministros acompanhou o voto do relator, Ministro Marco Aurélio de Melo, viabilizando que o Ministério Público desse início à ação penal, nos casos de lesão corporal de natureza leve, sem a necessidade de representação da vítima. Nesse sentido, vale destacar que, não obstante o artigo 16 da lei em comento disponha que as ações penais públicas “são condicionadas à representação da ofendida,” para a maioria dos ministros do STF, essa circunstância acaba por esvaziar a proteção constitucional assegurada às mulheres, em se tratando dos ilícitos de lesão corporal leve ou culposa. Também foi esclarecido que não compete aos Juizados Especiais julgar os crimes cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha, razão pela qual corrobora o afastamento da norma para os casos de lesão corporal de natureza leve. O relator do processo, Ministro Marco Aurélio, expôs que a Lei Maria da Penha “retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidades ocorridas na privacidade do lar e representou um movimento legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas o acesso efetivo a reparação, a proteção e a justiça.” Ele entende que a “norma mitiga realidade de discriminação social e cultural” que, enquanto existente no país, legitima a adoção de legislação compensatória a promover a igualdade material, sem restrição do direito de pessoas que pertençam ao gênero masculino, dando ênfase ao fato de que a Constituição protege, sobretudo, a família e a todos que a compõem. A Ministra Cármen Lúcia, por sua vez, destaca a mudança de mentalidade pela qual passa a sociedade, no que se refere aos direitos das mulheres e cita ditados anacrônicos tais como: ‘em briga de marido e mulher, não se mete a colher’ e ‘o que se passa na cama é segredo de quem ama’, ocasião em que afirma ser dever do Estado adentrar o recinto das ‘quatro paredes’ quando na relação conjugal houver violência. Para ela, discussões como as enfrentadas nessas ações são importantíssimas: A interpretação que agora se oferece para conformar a norma à Constituição me parece basear-se exatamente na proteção maior à mulher e na possibilidade, 7 Informação obtida no site: http: www.stf.jus/portal/cms/verNoticiasDetalhes.asp?idConteudo=199853. Acesso em agosto de 2012. 315 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas portanto, de se dar cobro à efetividade da obrigação do Estado de coibir qualquer violência doméstica. E isso que hoje se fala, com certo eufemismo e com certo cuidado, de que nós somos mais vulneráveis, não é bem assim. Na verdade, as mulheres não são vulneráveis, mas sim maltratadas, são mulheres sofridas. [...] A Igualdade é, desde sempre, tratar com desigualdade aquele que se desigualam e, no nosso caso, não é que nós nos desigualamos, fomos desigualadas por condições sociais e estruturais de poder que nos massacram séculos a fio. Eu me ponho inteiramente de acordo pela procedência da ação. A Ministra Rosa Weber, nesse contexto, foi a primeira a acompanhar o relator e afirma que exigir da mulher agredida uma representação para a abertura da ação penal se relava como atentatório à dignidade da pessoa humana: “tal condicionamento implicaria privar a vítima de proteção satisfatória à sua saúde e segurança”, exclama a Ministra. Segundo destaca, é necessário fixar que aos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei dos Juizados Especiais, razão pela qual o crime de lesão corporal leve deve ser submetido à ação penal pública incondicionada, quando praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei 9.099/95). O Ministro Luiz Fux, por outro lado, ao acompanhar o voto do relator, afirmando não ser razoável exigir-se da mulher que apresente representação contra o companheiro em um momento no qual se encontra em total fragilidade emocional, advinda da violência experimentada, oportunidade em que destaca: “sob o ângulo da tutela da dignidade da pessoa humana, que é um dos pilares da República Federativa do Brasil, exigir a necessidade da representação, no meu modo de ver, revela-se um obstáculo à efetivação desse direito fundamental, porquanto a proteção resta incompleta e deficiente, mercê de revelar subjacentemente uma violência simbólica e uma afronta a essa cláusula pétrea.” O Ministro Dias Toffoli, por sua vez, ao acompanhar o posicionamento do relator, salienta que o voto do Ministro Marco Aurélio está ligado à realidade e afirma ser o Estado ‘partícipe’ da promoção da dignidade da pessoa humana, independentemente de sexo, raça e opções, conforme destacado na Constituição Federal. Assim, fundamentando seu voto no artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), no qual se preceitua que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” O Ministro Ricardo Lewandowski, igualmente, acompanha o relator, advertindo para o fenômeno conhecido como ‘vício da vontade’. Nessa oportunidade, salienta a importância de se permitir a abertura da ação penal independentemente de a vítima apresentar qualquer tipo de representação, expondo: 316 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 35 - Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas Penso que estamos diante de um fenômeno psicológico e jurídico, que os juristas denominam de vício da vontade e que é conhecido e estudado desde os antigos romanos. As mulheres, como está demonstrado estatisticamente, não representam criminalmente contra o companheiro ou marido, em razão da permanente coação moral e física que sofrem e que inibe a sua livre manifestação da vontade. O Ministro Gilmar Mendes, a seu modo e mesmo afirmando ter dificuldade em saber se a melhor forma de proteger a mulher é prevendo a ação penal pública incondicionada, resolve acompanhar o relator, considerando que, no momento, esta parece ser a decisão mais acertada. Segundo ele, em muitos casos, a ação penal pública incondicionada poderá ser um elemento de tensão e desagregação familiar, o que pode, até, vir a ser objeto de revisão de posicionamento ulteriormente. Nesse contexto, destaca: “mas como estamos aqui fixando uma interpretação que, eventualmente, declarando (a norma) constitucional, poderemos rever, diante inclusive de fatos, vou acompanhar o relator.” O Ministro Joaquim Barbosa, por seu turno, afirma que a Constituição Federal trata de certos grupos sociais, ao reconhecer que eles estão em situação de vulnerabilidade. Para ele, quando o legislador, em benefício desses grupos, edita uma lei que acaba se revelando ineficiente, é dever do Supremo Tribunal Federal, levando em consideração dados sociais, rever as políticas de proteção, como está sendo feito no julgamento levado à baila, no caso em questão. O Ministro Ayres Britto destaca, por sua vez, que em um contexto patriarcal e machista, a mulher agredida tende a condescender com o agressor, expondo: que “a proposta do relator, no sentido de afastar a obrigatoriedade da representação da agredida como condição de propositura da ação penal pública, parece rimar com a Constituição.” O Ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, de igual sorte acompanha o relator, ao afirmar: Estamos interpretando a lei segundo a Constituição e, sob esse aspecto, o ministrorelator deixa claramente estabelecido o significado da exclusão dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher do âmbito normativo da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), com todas as consequências, não apenas no plano processual, mas também no plano material. Para ele, a Lei Maria da Penha é importante instrumento a ser implementado, posto que o artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal prevê a prevenção da violência doméstica e familiar pelo Estado. O Ministro Cezar Peluso, então presidente da Corte, único a divergir do relator, adverte para os riscos que a decisão poderia causar à sociedade brasileira, destacando que a 317 infelizmente.” O Ministro cita. que há a necessidade da tutela estatal e que as mulheres. elementos trazidos por pessoas da área da sociologia e das relações humanas. propício e bastante justo. e que o IPEA. que é a responsabilidade do ser humano pelo seu destino. O cidadão é o sujeito de sua história. depois de feitas as pazes. a circunstância em que a ação penal tenha se iniciado e o casal. Ao analisar os efeitos práticos da decisão. Enquanto esse momento não vem. precisando. não estão aptas ao exercício livre de sua própria defesa. Cesar Peluso. assim como a sociedade civil. considera-se razoável. 318 . é dele a capacidade de se decidir por um caminho. Apesar das considerações e do voto divergente do então presidente do Supremo Tribunal Federal. mostrando-se apta ao exercício livre de sua defesa. 35 . Ele deve ter levado em consideração. no enfrentamento do tema. Espera-se que.Vol. ao que parece.Sociologia. se o caráter condicionado da ação foi inserido na lei. como exemplo. Antropologia e Cultura Jurídicas doutrina jurídica se encontraria dividida quanto ao alcance da Lei Maria da Penha. ainda no contexto atual. o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal. o presidente do STF afirmou que é preciso respeitar o direito das mulheres que optam por não apresentar queixas contra seus companheiros. houve motivos justificados para isso: Não posso supor que o legislador tenha sido leviano ao estabelecer o caráter condicionado da ação penal. com certeza. e isso me parece que transpareceu nessa norma agora contestada. não só as mulheres.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . quando sofrem algum tipo de agressão e destaca: “Isso significa o exercício do núcleo substancial da dignidade da pessoa humana. apontou as conclusões acerca de uma eventual conveniência de se permitir que os crimes cometidos no âmbito da lei sejam processados e julgados pelos Juizados Especiais Quanto ao entendimento majoritário que permitirá o início da ação penal mesmo que a vítima não tenha a iniciativa de denunciar o companheiro agressor. seja surpreendido por uma condenação penal. em um futuro não muito longínquo. que apresentaram dados capazes de justificar essa concepção da ação penal. seja possível que. de instituições que lhes defendam. a história da sociedade brasileira revela que a agressão contra a mulher é preocupante. o ministro Peluso adverte que. mas qualquer minoria seja politicamente conscientizada sobre seus direitos e responsabilizada pela escrita de sua própria história. inclusive por meio de audiências públicas. que revela a realidade brasileira de vítimas e agressores e a necessidade de instituições capazes de defendê-los e protegê-los. em virtude das atividades exercidas pelas pesquisadoras na comarca e de ter havido ampla contribuição da Secretaria. sem embaraços para seu exame físico. que tem. Apesar da ausência de dificuldade de acesso aos documentos disponíveis na Secretaria da Vara. conta 9. vale expor que o Brasil ocupa a vergonhosa posição de 7º (sétimo) lugar entre os países que possuem o maior número de mulheres mortas em decorrência de violência de gênero.2012. Antropologia e Cultura Jurídicas 3. Reconhece-se como oportuno. 319 . uma média. os primeiros referentes ao período compreendido entre 2000 e 2012 e o segundo a partir de 2010 até 2012. 2. Antes de examinar. O Estado do Piauí possui o menor percentual avaliado. segundo censo do IBGE de 2010 8. as informações colhidas em Itainópolis. num universo de 87 (oitenta e sete) países pesquisados.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . esclarecer que. qual seja. nesse sentido. 2011 e 2012 Para realizar a pesquisa deste capítulo. 35 . tendo.Sociologia. O Espírito Santo é o estado brasileiro com o maior percentual de mulheres vítimas de homicídio. Foi viabilizado o alcance dos dados citados. as informações analisadas.4 vítimas de homicídio feminino para cada cem mil mulheres.Vol. no ano de 2010. sido colhidas diretamente do livro de registro existente na Secretaria da Vara Única da Comarca de Itainópolis e nos assentos do Ministério Público Estadual.099) habitantes.org/wiki/Anexo:Lista_de_municípios_do_Piauí_por_população. observa-se que a estrutura organizacional do local deixa a desejar. que possibilitou livre acesso aos documentos citados.2 ADI 4424 e reflexos na delação 3. a Promotoria de Justiça registrou cinco inquéritos com especificação dos nomes das partes. enquanto foram vislumbrados quatro registros nos livros da Secretaria. pois parte das anotações encontrava-se em um livro e parte encontra-se em outros. neste tipo de situação. medidas adotadas para dar maior confiabilidade às informações colhidas no Ministério Público.wikipedia. Acesso em: 01 nov. ou seja. especificamente.1 Estudo dos casos noticiados na Comarca de Itainópolis pertinente aos anos de 2010. o que pode ter gerado falhas nos dados compilados e ter resultado em interpretação errônea de informações.2.>. levou-se em conta a realidade do município de Itainópolis/PI. onze mil e noventa e nove (11.6 mulheres vítimas de homicídio por cem mil 8 Informação disponíveis em: < pt. assim como de prisões preventivas em decorrência do descumprimento de medidas protetivas. por violência doméstica. que deixou de dar efetivo cumprimento à decisão judicial prolatada. Destaca-se.9 Diante disso e considerando a viabilidade de se realizar um estudo na cidade de Itainópolis. houve uma falha no cumprimento da medida de proteção. representado no caso.Sociologia. posto que a Secretaria da Vara Única deixou de comunicar. como já exposto. 35 . Essa mesma situação se verificou em outro caso. os livros da distribuição com o livro de registro do Ministério Público. de forma tempestiva. reflete uma ausência de resposta eficaz por parte do Estado. o que acabou gerando a extinção do feito. a primeira cautela imposta. por ocasião da instrução do feito. no caso em que se constatou a existência de três processos por violência doméstica contra a mesma vítima. sendo uma lesão corporal e quatro ameaças. ocasião em que obtiveram os seguintes dados: foram registrados 5 (cinco) casos de violência doméstica em 2010. embora esta não seja a regra. antes do recebimento da peça acusatória e suspeita de ineficácia da norma no caso concreto. pela conduta da Secretaria da Vara. Vale expor que.>. levando o agente a vir a reiterar a conduta ilícita e a viabilizar um retorno da convivência comum. segundo dados do Mapa da Violência de 2012. havendo denunciados com mais de um processo instaurado. no município de Itainópolis e contra a mesma vítima. sendo três ameaças e duas lesões corporais de natureza leve e em 2012.patriciagalvao.Vol. Acesso em: maio. há mais de um ano. que culminou na repetição de ilícito criminal de mesma natureza. confrontando. 09 (nove) casos. não havendo quebra de paradigma de agressão. 2012.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . culminando em uma situação de desamparo à 9 Dados disponíveis em: < www. por retratação desta última em juízo. igualmente. que houve aumento do número de ações para fins de aplicação de medidas protetivas de urgência.org. ao agressor. sendo possível observar que agressor e vítima tinham restabelecido a convivência familiar e a ofendida encontrava-se grávida. embora com medida protetiva de afastamento do agressor decretada.br. portanto. Antropologia e Cultura Jurídicas mulheres. 320 . 5 (cinco) casos em 2011. sendo sete ameaças e duas lesões corporais de natureza leve. Essa última situação. as pesquisadoras fizeram o levantamento dos casos de violência doméstica distribuídos nesse município. situações que têm levado as mulheres a conhecerem os seus direitos e saberem como reivindicá-los e levar os agressores a (re)pensarem melhor antes de agir (no sentido da repetição da conduta agressiva). Após a vigência da Lei observou-se um aumento considerável da delação de casos. na reconstrução da família desestruturada em volta da agressão e no receio da repetição de novos atos de agressão. percebe-se que. verifica-se que. havendo possibilidade de a parte ofendida buscar os seus direitos e as formas de resguardá-los e obstar que o agressor se limite a pagar cestas básicas. Dessa forma. uma média de trinta e um (31) casos e. somente em 2012. capazes de proteger e assegurar a integridade física. foram criados instrumentos específicos. era pequeno o número de casos noticiados envolvendo violência doméstica no município de Itainópolis.Vol. Antropologia e Cultura Jurídicas vítima. com a Lei Maria da Penha. sem um adequado acompanhamento psicossocial. busca propagar a existência desse tipo de violência e encorajar as vítimas a delatarem seus agressores. provavelmente motivada pela abordagem da mídia que. incapazes de intimidá-lo e de conter sua agressividade. repercussão dos casos de afastamento e prisões decididos na sociedade local em favor da ofendida. nos seis anos de vigência da Lei Maria da Penha. Pelos dados colhidos. viabilizando a delação de maus tratos sofridos no âmbito familiar.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . praticamente. O Gráfico 1 mostra os índices de violência doméstica em Itainópolis. 35 . registraram-se doze (12) casos.Sociologia. 321 . vindo a ser registrados. no período de 2007 a 2011. e necessário para um bom andamento das causas. emocional da mulher. visto que. no município de Itainópolis/PI. Apesar disso. antes da Lei Maria da Penha. mental. vem ocorrendo uma dinâmica ascendente de delações da prática de violência doméstica contra a mulher. no período de 2001 a 2006. no período de 2001 a 2012. o que demonstra que a delação da violência doméstica. exigido pela Lei Maria da Penha. cada vez mais. agilidade no andamento da maioria dos feitos. já após o julgamento da ADI 4424/DF e a ADC 19/DF que afastou a necessidade de representação por lesões corporais leves. somente foram registradas 15 (quinze) notícias de agressões contra mulher. observa-se que. triplicou no município de Itainópolis. nesse tipo de agressão. também. Essa Lei estimula o avanço dos mecanismos de punição da violência doméstica.000 habitantes. senhor soberano de respeito e submissão. em decorrência de violência doméstica.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . reiterar que o município de Itainópolis conta com pouco mais de 11. no âmbito familiar. fazendo valer os direitos da mulher. sendo o número de delação de casos de violência bem relevante para o universo investigado.Vol. em Itainópolis. o que deve ser considerado no mapa da violência. buscou-se demonstrar que a referida lei protege a mulher vítima de violência doméstica. que desde a edição da Lei Maria da Penha não se registram. em Itainópolis Vale. 35 . é que a inércia na resolução efetiva dos casos redunde em morte das vítimas e destruição familiar. nesse contexto. homicídios ou tentativas de homicídios. tendo por objetivo erradicar qualquer forma de agressão no âmbito familiar. CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo deste trabalho foi analisar a incondicionalidade dos crimes de lesão corporal de natureza leve. previstos na Lei Maria da Penha e avaliar o quanto a sociedade concorreu para criação da Lei 11. Vale ressaltar.Sociologia. visto que o maior temor. Nesse contexto. 322 .340/2006 e vem concorrendo para sedimentá-la no mundo fático. Antropologia e Cultura Jurídicas 21% 26% 53% 2001-2006 2007-2011 2012 Gráfico 1 – Ocorrência de violência doméstica de 2001 a 2012. além de afastar o uso do Juizado Especial Criminal nos casos de violência doméstica. desconsiderando o homem como símbolo do poder familiar. 2012.org.assufba. São Paulo: Revista dos Tribunais. colocando sob o crivo do Ministério Público o poder de dar seguimento ao feito. Iares Ramalho. Maria Berenice. Ronaldo Batista.conteudojuridico. pela sociedade em geral. Não resta dúvida. 35 . na redução das hipóteses de violência e expansão da autonomia feminina. Disponível em: <www.com.br/ interno. para o espaço social do conhecimento da lei. Lei Maria da penha: do papel para a vida. PINTO. Brasília: centro feminino de estudos e assessoria. CUNHA. REFERÊNCIAS BARSTED. Acesso em: 12 maio de 2012. da esfera privada e familiar para a esfera do debate público.pdf. 2008. Acesso em: 23 maio de 2012. se após o reconhecimento. Leila Linhares.2012. BELO. é possível concluir que o julgamento da ADI 4424/DF e ADC/19 levou a um efetivo aumento do número de delações de violência doméstica. possibilitou um fortalecimento da dignidade humana e uma expansão da perspectiva social de combate de uma realidade.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .br/legis/leimariadapenha. portanto. pelas mulheres.>. Acredita-se que a decisão do Supremo tem poder para gerar efeito multiplicador nas cortes infraconstitucionais e concorrer a médio e longo prazo. avaliando a delação das vítimas e fazendo um levantamento das investigações distribuídas na comarca de Itainópolis.asp?canal=violencia&id=violencia>.Sociologia.Vol. nos crimes de lesão corporal de natureza leve. ed. Rodrigo. Acesso em: dez. São Paulo: Revista dos Tribunais.org. Pela realidade aferida no município de Itainópolis-PI. A ‘Nova’ Violência doméstica no Supremo Tribunal Federal. Violência doméstica: lei Maria da penha (lei 11340/2006). Rogério Sanches. Disponível em: <http://www. 323 . pelo Supremo Tribunal Federal da incondicionalidade da ação penal. em uma cidade de pequenas dimensões.pdf>.mulheresnobrasil.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11. CORTÊS. Antropologia e Cultura Jurídicas Esse trabalho buscou analisar as decisões mais recentes do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. porque não mais se poderá imputar a mulher vítima a responsabilidade pelo processamento desse tipo de ação. certamente. passou a haver um aumento da delação de fatos dessa natureza. DIAS. que a saída.br/pdf/cj037078. comentada artigo por artigo. A violência contra as mulheres no Brasil e a convenção de Belém do Pará dez anos depois. com o propósito de ponderar. deste tema. Disponível em: <http://www. 2007. MATOS. 4. Myllena Calasans de. mpsp. Tradução Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.>.Vol. Acesso em: 19 fev..>. Antropologia e Cultura Jurídicas MARMELSTEIN. LEIS PENAIS E PROCESSUAIS COMENTADAS. 324 . Cartilha de Orientação/ Organizado por Gilda Pereira de Carvalho. Uma teoria da Justiça. Sociologia Jurídica e Geral. A eficácia dos direitos fundamentais. LEI MARIA DA PENHA & DIREITOS DA MULHER. 2. que declarou a natureza pública incondicionada da ação penal nas infrações penais e lesão corporal e vias de fato regias pela Lei Maria da Penha. Para uma revolução democrática da justiça. 35 . 2006. Porte Alegre: Livraria do Advogado. RAWLS.br/juridico/santin. 2011.2012. Curso de direito constitucional. Madrid: 1999. Madrid: 1999. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL: Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.apmp. Valter Foleto. John. Atual e ampl. NUCCI.ammp. São Paulo: Saraiva. 3. SÁ. Réplica a Alexander y Musgrave. Itanieli Rotondo. Boaventura de Sousa. Disponível em: <http://www. de 7 de agosto de 2006. Teresina: Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Piauí.2007.et. André Ramos. Miguel Ángel Rodilla. 2007. Fortaleza : Qualygraf. Justiça: o que é fazer a coisa certa. ed. rev. 2007. John. 2007. Aspectos Polêmicos sobre a Lei 11. Luis Paulo.com. Da eficácia erga omnes da decisão do STF proferida na ADI n. 2011.br. SANTIN. 3.gov. São Paulo: Revista dos Tribunais. Porto Alegre:Livraria do Advogado Ed. A Lei 11340 e o Papel do Ministério Público. TAVARES.. Disponível em: <http://www. Curso de direitos fundamentais. que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. ed. Guilherme.. PORTO. SIRVINSKAS.org. Trad. John. ed. RAWLS.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2005. 6. São Paulo: Atlas. Itanieli Rotondo.424/2012.ed.. O Ministério Público e a concretização dos direitos sociais. SANTOS. 2002. Antônio Sérgio. SANDEL. In: Filosofia y Ensayo. Trad. Acesso em: janeiro de 2012. São Paulo: Cortez. São Paulo: Martins Fontes. 2011. Ingo Wolfgang. 2011. ed. ed. Violência doméstica e familiar contra a mulher: Lei 11340/06/ análise crítica e sistêmica. Pedro Rui da Fontoura. Brasília. In: SÁ. SARLET. Disponível em: http://www.Sociologia.br/inst/artigo/Artigo-56. 4. John. Miguel Ángel Rodilla. 2006.340. Acesso em: 19 fev. TONET. Acesso em: Acesso em: 01 nov. 2. RAWLS. Igualdade constitucional na violência doméstica.al. La Justificación de la desobediência civil. 2012. In: RAWLS.pdf. PT. Agerson Tabosa. PINTO. George. Filosofia y Ensayo. Disponível em: <wikipedia.º 4. Michael J.org/wiki/Anexo:Lista_de_municípios_do_Piauí_por_ população. br/rhamas/violenciagen.org.ipas.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas VIOLÊNCIA DE GÊNERO E SAÚDE DA MULHER.Sociologia. 35 . 325 . Acesso em 18 fev. 2007.Vol. Disponível em: http:// www. Palavras-chave: Sociologia jurídica. e a que funda a doutrina da proteção integral na área da infância e juventude. bem como de análise de conteúdo realizada em acórdãos do Superior Tribunal de Justiça. SELETIVIDADE: O MENORISMO VIVO NAS DECISÕES DO STJ SOBRE O ATO INFRACIONAL VULNERABILITY. EXCLUSÃO. as semelhanças param por aí: se é verdade que arbitrariedades ocorrem diariamente no sistema adulto. Este trabalho busca problematizar essa perspectiva diante de duas rupturas de paradigma: a que funda a criminologia crítica. A partir desse arcabouço teórico. e. it is possible to verify that the youth system in Brazil closely follows the structure of the adult criminal justice system in the selectivity and the precariousness of the physical 1 Doutoranda em direito (UFPR). Porém. Ato infracional. 326 . Mestre em direito pela UFSC. seja na precariedade de sua estrutura física. na esfera da infância e da juventude elas são a regra. Na esfera da infância e juventude essa concepção está ainda mais enraizada. no senso comum dos juristas. In the realm of childhood and youth this conception is rooted even more because the poor teen is understood from the tutelary perspective: from victim of the society to victimizer. pois o adolescente pobre é compreendido sob a ótica tutelar: de vítima da sociedade a vitimizador.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . de criança em perigo a adolescente perigoso. from child in danger to dangerous adolescent. From these theories. torna-se possível verificar que o sistema da infância e juventude no Brasil segue de perto a estrutura do sistema penal adulto. Superior Tribunal de Justiça Abstract: The relationship between poverty and crime is one of the most common views on the violence issue in Brazil. compreendidos sob a chave da periculosidade. Professora no Centro Universitário Franciscano (Unifra. SELECTIVITY: THE LIVING MENORISMO IN THE JUDICIAL DECISIONS OF THE STJ ON INFRACTIONAL ACT Marília De Nardin Budó1 Resumo: A relação direta estabelecida discursivamente entre pobreza e criminalidade é uma das leituras mais comuns no tema da violência no Brasil.Sociologia. A sobreposição do direito penal do autor em relação ao direito penal do fato nessa esfera provoca uma grave justificação ideológica do já cotidiano extermínio de adolescentes pobres no Brasil. This work seeks to problematize this perspective through two paradigm shifts: one that founds the critical criminology and one that founds the integral protection doctrine in the youth field.Santa Maria-RS). 35 . ainda. Antropologia e Cultura Jurídicas VULNERABILIDADE. breaking the tutelary perspective to recognize children and adolescents as subjects of rights. seja no grau de seletividade em relação a crimes e autores.Vol. na sociedade. e trata o tema segundo uma leitura macroestrutural da criminalização da pobreza. faz com que os adolescentes se convertam em verdadeiros inimigos do Estado. Criminologia crítica. rompendo com a perspectiva tutelar em prol do reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. A permanência de brechas menoristas. EXCLUSION. pois a prática judicial permite a condenação de adolescentes e internações provisórias em situações que no sistema adulto seriam inadmissíveis. antidemocráticas e discricionárias no Estatuto da Criança e do Adolescente. vulnerabilidade. and the content analysis realized in judicial decisions of the Superior Court of Justice. e trata o tema segundo uma leitura macroestrutural da criminalização da pobreza. a construção social do paradigma menorista. The overlapping of the criminal law of the author in relation to criminal law of the fact in this sphere provokes a severe ideological justification of the daily extermination of poor adolescents in Brazil. causes teens from becoming real enemies of the State. antidemocratic and discretionary gaps in the Statute of Children and Adolescent.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Na primeira busca-se. como os Estados Unidos. pois o adolescente pobre é compreendido sob a ótica tutelar: de vítima da sociedade a vitimizador.Sociologia.Vol. de criança em perigo a adolescente perigoso. e a que funda a doutrina da proteção integral na área da infância e juventude. Na esfera da infância e juventude essa concepção está ainda mais enraizada. na 327 . Antropologia e Cultura Jurídicas structure. Na esteira de outros países. A utilização do braço repressor do Estado vem simbolizada na quantidade de privações de liberdade de adolescentes. Daí que tentar compreender os mecanismos discursivos que movem a adoção de posturas punitivistas baseadas em preconceitos sociais que alimentam a seletividade do sistema penal parece ser um importante caminho na sua desconstrução. in the realm of childhood and youth they are the rule. in the common sense of the legal experts and around the society. Superior Court of Justice. trabalhar. bem como nas estatísticas de assassinatos de que foram vítimas. O momento atual é de expansão do sistema penal na maior parte dos países. Este trabalho busca problematizar essa perspectiva diante de duas rupturas de paradigma: a que funda a criminologia crítica. Key words: Sociology of law. rompendo com a perspectiva tutelar em prol do reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. o Brasil vem inflando seu lado repressor nos últimos vinte anos. 35 . com o intuito de. de maneira que diferentes emergências vêm se sobrepondo às questões sociais na ótica dos governos. vulnerability. Introdução A relação direta estabelecida discursivamente entre pobreza e criminalidade é uma das leituras mais comuns no tema da violência no Brasil. the similarities seem to stop there: if it is true that arbitrariness daily happen in the adult system. However. tendo multiplicado por quatro o número de adolescentes internados nos últimos quinze anos e por três o número de adultos encarcerados nos últimos dez anos. The permanence of tutelary. em uma perspectiva histórica. Critical criminology. O trabalho se divide em duas partes. infractional act. since the judicial practice permits judicial condemnation of adolescents and provisional admissions in situations that in the adult system is inadmissible. este tópico primeiramente busca apresentar a emergência e consolidação do chamado paradigma menorista. a criança e o adolescente passaram a ser objeto de preocupação do Estado a partir de uma leitura que pode ser traduzida no binômio abandono-infração. o qual ainda prepondera em muitas das instituições brasileiras (1. 1981). às crianças escravas era reservado o trabalho precoce.Sociologia. para em seguida estabelecer algumas das principais distinções entre o paradigma menorista e o paradigma da proteção integral. No Brasil. De fato. problematizar a ideia de vulnerabilidade que costuma ser atribuída nos dias atuais a algumas crianças e adolescentes. Na segunda parte apresenta-se o resultado da análise de 26 acórdãos do Superior Tribunal de Justiça sobre a relação entre ato infracional e vulnerabilidade. vulnerabilidade e ato infracional. a filosofia positivista. instituído no Brasil a partir de 1988 muito mais como vir-a-ser do que como uma realidade (1. também foi responsável por uma maior preocupação assistencial dirigida a vários grupos sociais. De qualquer maneira. O objetivo é o de problematizar o uso dessa categoria na decisão a respeito da medida socioeducativa adotada pelos julgadores. 1 Marginalizados e vulneráveis: o foco do sistema de controle da juventude no Brasil Historicamente. é o menor como problema de ordem pública o objeto das políticas elaboradas a partir de fins do século XIX no Brasil.1 De vítimas a bandidos: a percepção social da infância e juventude no Brasil A compreensão que se tem hoje da infância e da juventude é o resultado de uma longa construção social.1). No Brasil. dentre 328 .2). a percepção que relaciona à infância a incapacidade e a necessidade de tutela surge a partir de final do século XIX e início do século XX. a sociedade escravista condicionava uma importante diferenciação na compreensão da infância: se as crianças brancas tinham a possibilidade de gozar desse período da vida. 35 . que sustentou ideologicamente a proclamação da República. sabendo-se que até o século XVII sequer o sentimento de infância estava presente na Europa (ARIÉS. Busca-se inverter a lógica desse conceito: da vulnerabilidade como dado ontológico relacionado à condição pessoal e social do adolescente à vulnerabilidade em relação ao sistema penal.Vol. 1.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas segunda parte. Para compreender essa relação e sua ligação com a ideia de marginalização social. 146). segundo García Mendez e Costa (1994) “a obra mais gigantesca de negação e mistificação dos profundos conflitos estruturais. 2004). assim. É nesse contexto que nasce o paradigma menorista e a categoria menor: agora não mais um adjetivo comparativo. o interesse do Estado pelos menores de idade se amplia e faz com que essa designação se estenda de uma mera categoria jurídica a um caráter eminentemente social e político (RIZZINI. A moral do trabalho e a necessidade de disciplinamento vêm acompanhados nesse período de um grande internamento de crianças. demonstrando “a inter-relação entre as práticas médicas e jurídicas na definição do menor como um objeto institucional” (LONGO. Nesse período. e também em vários países europeus e latino-americanos. todos aqueles que não estivessem de acordo com os padrões da sociedade da época (LONGO. que tem em sua base a etiologia do crime e o determinismo. 2007. O Código de Menores.Sociologia. Os tribunais específicos de menores começam a surgir no início do século XX nos Estados Unidos. A previsão do futuro é. O Brasil é. 146). e paulatinamente enraizado na sociedade brasileira. p. é atravessado pelos saberes psicológico e antropológico. correntes essas que ergueram. sobretudo. jovens e adultos. Antropologia e Cultura Jurídicas eles os jovens. nesse momento. 35 . No contexto dessa matriz teórica.Vol. 2009). na criminologia positivista. O discurso médico. embasadas. Em termos ideológicos. RIZZINI. mas um substantivo de significado equívoco. É o período das reformas. p. 2007. a criminologia positivista dá origem à ideia da defesa social e então. a partir desse momento. 2009).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Esse determinismo teórico legitimava o deslocamento da reprovação de condutas cometidas pelo sujeito no passado – base da legitimidade da aplicação de sanções no direito penal clássico – “a uma reprovação – com base em um diagnóstico pseudocientífico – ao que no futuro possa chegar a fazer a criança ou o adolescente” (CORTÉS MORALES. o agir sobre a chamada infância “desvalida” passou a ser compreendido como uma forma de evitar a transformação – certa – da criança abandonada na criança delinquente. realizada em conjunto: “através de ferramentas como os exames de discernimento se busca detectar o grau de ‘enfermidade’ de que padece o sujeito e com base nisso o juiz – que melhor atuaria aqui como um médico – receita o remédio adequado a cada situação” (CORTÉS MORALES. influenciado também pelo que ocorre em outras partes do mundo. empregada claramente na prática 329 da . publicado em 1927 para compilar toda a legislação existente até então sobre a assistência aos menores trazia um artigo para determinar o papel que deveria exercer o médico psiquiatra no juízo de menores. fundamental na ideia do tratamento e cura do delinquente. que as sociedades latino-americanas atravessam”. assim como o do repressivo sempre foi voltado para os mesmos grupos sociais. É evidente na história uma diferenciação essencial para compreender o status da infância nesse período: o foco desse sistema assistencial. vício ou delinquência. menores vadios (art. Como observa Rizzini (2008). a indistinção entre menores abandonados e delinquentes se converteu na profecia que se autorrealiza. aqueles das classes sociais baixas e não brancas. e cita a fala de Arenaza. a medida por tempo determinado seria contraproducente.Vol. 1927). 26). mas apenas aquelas que eram o foco do controle estatal. abandono ou exposição. Para a maior parte dos entendidos em assunto de menores na época. “A categoria ‘menor’ é construída então para designar a criança objeto da Justiça e da Assistência. a importância da compreensão da categoria menor em sua especificidade: ela não teve o papel de designar todas as crianças menores de idade. menores delinquentes (art. nem ofensora. seja em razão de sua orfandade. 68). Para García Méndez. menores abandonados (art. na análise da literatura histórica. seja em função da libertinagem. COSTA. 35 . em determinados casos. 30). destinado especificamente a um grupo especial designados pelas expressões: crianças de primeira idade (art. p. A questão das medidas por tempo indeterminado.Sociologia. pois significaria uma proteção temporária. Antropologia e Cultura Jurídicas institucionalização de crianças acaba se legitimando a ideia de que a pobreza gera criminalidade e um novo tipo de infância e adolescência é então criado: a menoridade. em diferentes fontes consultadas a respeito da criança. o que mais aparece é a preocupação com os estratos empobrecidos da população. A praticidade de se anular as garantias jurídicas se dá no sentido de garantir a eficácia das tarefas de “proteção-repressão” (GARCÍA MÉNDEZ. 68). 2°). menores mendigos (art. para explicar: “Dá-se que. no lugar de uma proteção 330 . portanto. se a criança não fosse nem vítima imediata. não haveria como o Estado intervir. 29). 78) (BRASIL. 28). impostas por um juiz-pai. sem as figuras da acusação e da defesa. RIZZINI. 1994). A rigor. 1994). se para as crianças continuasse a ser utilizado o paradigma do direito penal liberal. Assim. 2004. não teria como o Estado agir para protegê-la (e principalmente controlá-la). foi um dos principais pontos sustentados nas origens ideológicas do reformismo emergente no início do século XX. O Código de Menores era. Por isso. menores libertinos (art. simula-se ou acusa-se a criança de uma contravenção para que a ação protetora do Estado possa tornar-se um benefício” (GARCÍA MÉNDEZ. COSTA. tornando-se o alvo das políticas de internação” (RIZZINI. infantes expostos (art.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . juiz de menores e teórico argentino da época. 14). capoeiras (art. . e justamente por isso não é uma surpresa que a eficácia da FUNABEM tenha sido invertida. de maneira que o PNBEM e a FUNABEM tinham já. de pouca participação no consumo de bens materiais e culturais. 21).. em virtude do não atendimento de suas necessidades básicas e da ausência ou incapacidade dos pais ou responsáveis. O menor desassistido. então. a pena em proteção. 1976. chegando-se a internar.Vol. Isso significa que o menor de conduta antissocial é originado na pobreza. 14). processo entendido como “[. atingido pelo processo de marginalização. portanto. 37). O menor foi pensado como um dos objetivos nacionais permanentes. educação e lazer”(BRASIL.]”. p. ou os ‘internatos-prisão’ [. Como notam Rizzini e Rizzini (2004. p. Antropologia e Cultura Jurídicas permanente (GARCÍA MÉNDEZ. 1976. 151). 35 . Por mais que a década de 1960 e a instituição da Fundação Nacional de Bem-estar do Menor (FUNABEM) pretendesse romper com a cultura da institucionalização e priorizar programas de integração comunitária. e não de puni-lo. a insistência no debate sobre o 331 . 1991. saúde. O discurso da desinstitucionalização não se ajustava à doutrina de segurança nacional. 1994). por um lado. 21). se constitui em ‘Menor-Problema Social’” (BRASIL. 1976. permitia-se que a resposta ao ato criminoso praticado por criança ou adolescente fosse encarada como um bem: o Estado intervém no sentido de protegê-lo. tanto o aspecto assistencial como o correcional – muitas vezes indistintos – estava voltado para eles..] o grande modelo difundido no período foi o do internato de menores. “[. apenas entre 1967 e 1972. “aquele que infringe as normas éticas e jurídicas da sociedade” (BRASIL. isto é. era conceituado como “todo menor que.. ou está sendo vítima de exploração” e o menor de conduta antissocial. categoria utilizada à época da instituição e desenvolvimento da FUNABEM.. Duas categorias do menor desassistido eram ressaltadas: o menor carenciado. a identificação de seu foco como sendo apenas o daquele grupo social: menor é o menor de 18 anos em situação de marginalidade social e. aqueles que se realizam em longo processo histórico através da definição dos elementos fundamentais da nacionalidade como a terra.. “O chamado problema do menor foi inserido nos aspectos psicossociais da política de segurança. de incapacidade de trazer a si os serviços de habitação. COSTA. essa ruptura não ocorreu. em seu discurso declarado. Se. 53 mil crianças. o homem e as instituições” (PASSETTI. p. p. A origem de ambas as categorias de menores está na marginalização social. Transmudando-se.] uma situação de baixa renda. ainda que a principal resposta fosse a privação da liberdade por tempo indeterminado. “aquele que. se encontra em situação de abandono total ou de fato. p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Sociologia. em despacho fundamentado. dependendo de que “a autoridade judiciária. 2008. Para Custódio. seus primeiros artigos se dedicam a apresentar a finalidade dessa lei: assistência. penas sempre limitadas no tempo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . “Era a construção de um mundo paralelo. por outro lado. p. 1. ficando completamente à mercê do arbítrio judicial.Vol. na medida em que acabava por responsabilizá-los individualmente por sua condição de “irregularidade”. podendo. surge o novo código de menores. em 1979.Sociologia.2 A doutrina da proteção integral: um vir-a-ser A abertura política no Brasil e o avanço na legislação internacional a respeito da 332 . requisitar parecer técnico do serviço competente e ouvir o Ministério Público” (BRASIL. observa-se que. Antropologia e Cultura Jurídicas aspecto socioeconômico para identificar a origem do “menor-problema social” pode ser visto como um aparente avanço. Daí que se os adultos autores de infrações penais tinham em seu favor as garantias penais e processuais penais. vigilância e assistência aqui são englobados dentro da terminologia da situação irregular. Assim. determine o desligamento. 35 . proteção e vigilância. os adolescentes não dispunham de nada disso. todas aquelas qualificações presentes no Código de 1927 para designar os menores que seriam o objeto de proteção. conforme a natureza do caso. onde a irregularidade era imaginada com base em preconceitos e estereótipos e depois restava aos agentes do Estado enquadrar o público perfeito à caracterização da barbárie” (CUSTÓDIO. 1979). e o seu objeto: menores até dezoito anos de idade em situação irregular e os menores entre dezoito e vinte e um anos nos casos dispostos em lei (BRASIL. o artigo 41 deixa claro que não há limite máximo de tempo para a aplicação dessa medida. com prazo a depender da gravidade da conduta. Trata-se do aprofundamento da chamada Doutrina da Situação Irregular. com intervalos máximos de dois anos (§2°). Seguindo a lógica da PNBEM. A verificação sobre a manutenção ou permanência da medida deveria ser realizada periodicamente. Quanto à previsão legal no Código de Menores sobre a responsabilização dos autores de infrações penais. 25). 1979). apesar de a internação ser medida subsidiária às demais. ainda durante a ditadura militar. a continuidade da identificação menorista das crianças e adolescentes pobres como “menores em situação de risco” ressignificava a realidade. as pessoas são culpabilizadas pela sua situação de marginalização. Lá. mas a antecipação havia sido possível graças à mobilização dos grupos sociais organizados interessados na superação da doutrina da situação irregular. através de práticas libertárias. à liberdade e à convivência familiar e comunitária.Vol. vítimas de suas famílias desajustadas ou de um sistema econômico injusto. mas sim como agentes de suas próprias vidas. à dignidade. o direito à vida. discriminação. pais de crianças internadas. uma das características do trabalho da sociedade civil para com as crianças foi a utilização da Educação Social de Rua. 2007). com a chamada Pastoral do Menor. crueldade e opressão (BRASIL. 35 . até intelectuais. Os agora chamados meninos e meninas de rua não eram mais entendidos como incapazes. e. Antropologia e Cultura Jurídicas criança e do adolescente foram a combinação perfeita para a elaboração de uma lei histórica no trato desse contingente. defensores de direitos humanos e outros cidadãos. 227. da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente. violência. e. O movimento de defesa das crianças congregou desde aqueles vinculados às FEBEMs. A propagação dessas ações levou o seu desenvolvimento para fora de São Paulo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . passivas destinatárias de políticas assistencialistas que escondem o controle e a repressão. Isso ocorre apenas em 1989. promotores deuma nova sociedade justa. como cidadãos. buscando interagir com as crianças em situação de rua e propiciar a autonomia desse público. Para Santos. O resultado de toda essa mobilização está no artigo 227 da Constituição Federal promulgada em 1988: Art. 1989). com um detalhe: ela ainda não havia sido assinada. A influência da Igreja Católica esteve presente. 52). à alimentação. ao respeito. portanto. à saúde. O Estatuto da Criança e do Adolescente foi uma conquista desses mesmos grupos que 333 . administradores. como sujeitos políticos. líderes comunitários. com absoluta prioridade.Sociologia. É dever da família. Esse texto traz claramente a adoção da doutrina da proteção integral e o respeito aos princípios da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (ONU. à educação. em 1985. Esse é o significado da nova concepção da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. esse momento histórico simboliza a mudança de uma compreensão jurídico-política da criança relacionada ao filantropismo leigo e religioso para aquela compreensão associada à ação de emancipação do cidadão no século XX (SANTOS. p. à profissionalização. Ao longo da década de 1980. foi fundado o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR). fraternal e participativa (OLIVEIRA. portanto. técnicos e outros trabalhadores. 1988). à cultura. onde nasceu e. ao lazer. Foram vários os setores que intervieram nesse tema no final da década de 1970 e no início da década de 1980. 2008. exploração. além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência. na esfera da infância e da juventude ela chega a ser caricatural. especialmente a de abrir mão do conceito de vulnerabilidade e assumir a responsabilidade penal que obrigue as autoridades a abrir mão da discricionariedade para lidar com a infância (GARCÍA MÉNDEZ. Antropologia e Cultura Jurídicas participaram na implementação de uma legislação para todas as crianças e não só para aquelas marginalizadas. protetivos e democráticos. se na esfera criminal adulta ainda persiste a mentalidade inquisitorial. apesar de todas as garantias. não mais se admite a privação da liberdade para a proteção do adolescente. seja na representação da criança e do adolescente. Para proteger foram criadas as medidas protetivas que não contemplam a privação da liberdade. 2007). diferentes estudos vêm mostrando que. que defendem a responsabilização dos adolescentes e primam pelas políticas de universalização das políticas sociais. “Juízo”. como bem representado no documentário de Maria Augusta Ramos. mas não arca com todas as suas consequências. As medidas são condicionadas a uma condenação judicial. figurando à sombra do protagonista. sobretudo o direito de defesa. que fala. No âmbito da academia. seja na questão das políticas públicas relacionadas a essas pessoas podem ser resumidamente pelo menos três: repressivos – não ultrapassaram a situação irregular. Além de todos os direitos e garantias individuais dos adultos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A implementação do SINASE. em especial o direito à ampla defesa. Entretanto.Vol.Sociologia. e uma posição. as crianças passaram a dispor daqueles relacionados à sua condição peculiar de ser humano em desenvolvimento. 35 . Sendo assim. em São Paulo. Isso implica na 334 . ao mesmo tempo. um exemplo é o estudo etnográfico da antropóloga Paula Miraglia (2005). em janeiro de 2012. vem confirmar a necessidade de respeito a esse novo paradigma na leitura das medidas socioeducativas: tudo o que implicar em redução de direitos não pode ser encarado como um bem para a criança e o adolescente. através de um processo onde imperam todas as garantias processuais. Quanto ao ato infracional. aconselha e julga – legal e moralmente: o juiz da infância e juventude. sempre atravessada pela participação política da sociedade mas também dos próprios membros desse grupo social. onde demonstra que acusado e defensor são totais coadjuvantes. realizado nas audiências da Vara de Infância e Juventude do Brás. mais a que programas assistencialistas pontuais. tornar excepcional a privação de liberdade. As posições existentes. interpreta. as medidas socioeducativas foram elaboradas no intuito de manter a separação entre adultos e adolescentes no sistema prisional e. que assume teoricamente os postulados da proteção integral. García Méndez (2007) denomina essa posição de “paradigma da ambiguidade”. amparado pelo saber psiquiátrico (BUDÓ. a partir da criminologia crítica.Vol. trabalhando com a ideia de prevenção da violência diretamente focada nas periferias (KULAITIS. uma das mais altas cortes do país que se buscará. Tal paradigma parece ser predominante tanto na esfera judicial quanto na executiva e mesmo na legislativa. Neste tópico do artigo busca-se estabelecer uma análise crítica desse conceito. São todas decisões publicadas no período de 21 de outubro de 2010 a 16 de outubro de 2012. porém. O primeiro subitem traz os resultados da análise de conteúdo de 26 acórdãos. Estudo recente realizado nos projetos de lei elaborados por deputados federais entre 2009 e 2012 concluiu que se mantém naquela esfera a relação direta entre pobreza e criminalidade. compreender a postura adotada diante da situação do adolescente autor de ato infracional. ou social. 2012).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . LXVIII da Constituição Federal de 1988. Antropologia e Cultura Jurídicas redução da busca pelo diagnóstico discricionário a respeito da existência e características da disfunção individual do adolescente autor de ato infracional. utilizada 335 . e entre trabalho e regeneração do indivíduo. ação fundamentada no artigo 5º. É a respeito do discurso do STJ. Talvez seja no Judiciário. Esse é um dos pontos de que parte Uriarte para discutir o conceito de vulnerabilidade tal qual usado na área da infância e da juventude para decidir sobre as mais diversas questões. oito ou dez anos.Sociologia. no próximo tópico. Trata-se de concessões ou denegações de ordem de Habeas Corpus. 35 . 2 O menorismo enrustido nos acórdãos do STJ: sobre o conceito de vulnerabilidade A vulnerabilidade não existe senão em relação a algo. concluindo que tais documentos estabelecem uma relação direta entre juventude pobre e criminalidade. resultantes da pesquisa na jurisprudência daquele tribunal a partir do termo de busca “ato infracional e vulnerabilidade”. partindo de sua utilização quando relacionada ao tema do ato infracional nas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ). delimitando a análise à questão da vulnerabilidade. Em estudo sobre os documentos destinados à prevenção da criminalidade dos jovens no âmbito da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça nos anos 2000. que se encontrem as evidências mais palpáveis a respeito da adoção do paradigma da ambiguidade. sempre de acordo com a periculosidade do indivíduo e conforme a discricionariedade do juiz. Dentre as propostas realizadas tem-se desde o aumento da medida de internação para cinco. 2012). Esses termos. Eugenio Raúl Zaffaroni e Carlos Uriarte. 35 . o Estatuto da Criança e do Adolescente. respectivamente. As decisões foram catalogadas conforme seu pertencimento a uma das duas categorias. ligadas ao uso que se faz da vulnerabilidade.. bem como analisar qual uso é feito desse termo no momento da decisão. a Justiça da Infância e Juventude.. Considerando a origem e a história dessas expressões.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Os casos analisados tratavam.Vol. Da mesma maneira. sentença menorista. deixando de compreender o arcabouço de significados que está por detrás dos termos menor e seus derivados.? Uma questão intrigante relacionada já ao conteúdo das decisões é o uso corriqueiro dos termos Estatuto Menorista. sabe-se que menores são aqueles adolescentes e crianças compreendidos como objetos de tutela ao invés de sujeitos de direitos. b) a necessidade de aplicação de medida protetiva e não socioeducativa.Sociologia. O segundo subitem realiza a análise crítica desse conceito a partir da criminologia crítica. o juiz da vara da infância e juventude e a decisão judicial do juiz da vara da infância e juventude. a expressão menor infrator é de uso corriqueiro. sobretudo. para designar. O objetivo da pesquisa é o de identificar o conceito de vulnerabilidade.1 Vulnerabilidade em relação a . permitem já um primeiro diagnóstico da maneira como os adolescentes são compreendidos nesse tribunal. Juízo menorista. Esse uso não é fortuito: “Esta terminologia aplica-se exclusivamente às crianças e jovens tomados. Antropologia e Cultura Jurídicas em situações nas quais o paciente entende estar passando por um constrangimento ilegal em sua liberdade de ir e vir. 2. por si sós. tendo como principais referências as obras de Alessandro Baratta. A revolução na linguagem de que falam todos os autores ligados ao direito da criança e do adolescente não se operou em uma das mais altas cortes do país. da maneira como atribuída aos acusados de serem autores de atos infracionais nas decisões do STJ. magistrado ou juiz menorista. dado que deve o Estado evitar que se transformem em uma ameaça à sociedade. de situações nas quais a internação provisória havia sido decretada pelo juízo de primeiro e segundo graus. 336 . entendida como condição social do adolescente que indica: a) a necessidade de intervenção do Estado na forma de medidas de privação da liberdade para a sua correção e ressocialização. ou quando o paciente havia sido condenado ao cumprimento de medidas socioeducativas de semiliberdade ou de internação e a decisão havia sido mantida no Tribunal de Justiça do estado de origem. PESCAROLO. 5) prática de outros atos infracionais. 7) uso de entorpecentes. Quanto à palavra vulnerabilidade. é uma questão não respondida diretamente. de ser vítima de alguma agressão ou mesmo de passar fome ou necessidades. objeto desta pesquisa. a vulnerabilidade é apresentada como um dado pertencente ao indivíduo que está sendo julgado. ao menor perigoso (RIZZINI. típica do menorismo. dependendo do caso do adolescente em questão e do que se está buscando fundamentar ao utilizar o termo vulnerabilidade. especialmente os acusados de serem autores de atos infracionais. Trata-se de uma estreita relação com o conceito de periculosidade: ao analisar a vida pregressa do indivíduo. em determinadas situações. 11) más companhias. lê-se que o adolescente está em risco por conta dessa vulnerabilidade. Não problemas quaisquer. com desvio de conduta ou autor de infração penal. faz-se uma projeção do que será o seu futuro. nota-se que ela foi empregada sempre em conjunto com a análise das condições pessoais e sociais do adolescente para determinar a medida socioeducativa ou protetiva mais adequada. 10) abandono da escola. 2) família desestruturada. Em todos os casos. porém. 35 . Essas situações costumam ser apresentadas em conjunto. Em outras situações. 8) dificuldade de cumprir normas e regras 9) identidade com a vida nas ruas. mas aqueles derivados da pobreza ou de aspectos étnico-raciais devidamente estigmatizados por intermédio de processos e dinâmicas criminalizadoras” (MORAES. nas seguintes situações: 1) condição econômica desfavorável. Risco. especialmente quando ligada ao uso de drogas. como problemas. Mas em relação a que essas pessoas são vulneráveis. o uso da vulnerabilidade está profundamente relacionado com a categoria da situação irregular.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Em algumas situações. 4) influência negativa de membros da família. Entende-se que o Estado deve agir sempre que um “menor” está em situação irregular. à prática de outros atos infracionais e às más companhias.Vol. especialmente em situação de perigo moral. aquele detentor de numerosos poderes e que. 12) pai e/ou mãe presos.Sociologia. sabe o que é para o “bem” dos adolescentes. sobretudo. A manutenção desse termo no STJ é significativa e demonstra a adoção da postura do juiz de menores. em decorrência de suas condições sociais. Assim. Antropologia e Cultura Jurídicas na prática e não nas intenções. De qualquer maneira. a vulnerabilidade parece ser entendida como propensão ao crime. as pessoas marginalizadas são vulneráveis. sem grandes explicações ou contextualizações: trata-se de uma perspectiva que entende que ontologicamente. 2012). por exemplo. a algoz dessa mesma sociedade. 3) perda do pai ou da mãe. Confirma-se aí a passagem linearmente compreendida do menor em perigo. 2008): de vítima da sociedade desigual e de pais irresponsáveis. 337 . 6) gravidez. tanto a situação de vulnerabilidade do paciente e a necessidade da aplicação das medidas de semiliberdade. Nesse caso. entendeu que a adoção da medida de semiliberdade foi [. entende-se a 338 .Vol. tem-se o entendimento de que a vulnerabilidade implica na necessidade de medida de semiliberdade. 2012f). com isso. com menção.. buscando reinserir o adolescente no convívio social. a medida socioeducativa de semiliberdade deve perdurar. tendo o magistrado relatado as condições pessoais e sociais do paciente. os conceitos e fundamentos se diferenciam. inclusive. No segundo grupo. mesmo diante do baixo valor do produto do furto. Proteger a criança vulnerando seus direitos é uma contradição nos termos”. A ideia de vulnerabilidade ao mundo do crime em decorrência da marginalização. Em um caso de furto de R$ 70. Ao se partir das condições pessoais e sociais do adolescente para definir que medida deve ser aplicada. ressaltando a condição familiar desfavorável do adolescente. No primeiro grupo – de 24 acórdãos – encontram-se os entendimentos de que a situação de vulnerabilidade indica a necessidade de maior intervenção do Estado para corrigir o adolescente. Por isso.00. sobre a qual se falou no tópico anterior. “qualquer uso do termo proteção da infância. Grifou-se). aquela mesma.] exaustivamente fundamentada. Em primeiro lugar. o alegado constrangimento ilegal (BRASIL. com a perda precoce do genitor e a influência negativa de membros da família. por fora de seus direitos é eufemístico. julga-se através do direito penal de autor. à prática de outros atos infracionais. como a semiliberdade e a internação pelo fato de que o adolescente não tem condições de se reintegrar socialmente.Sociologia. 2012f. e não do direito penal do fato. que se denota da maior parte dos entendimentos. semelhante a vários outros julgados pela mesma ministra. por ser vulnerável.. aplica-se medidas mais graves. sendo as medidas mais graves – a semiliberdade e a internação – consideradas as mais adequadas para a sua “proteção”. No primeiro grupo. 35 . assim. Quanto às situações para as quais o termo vulnerabilidade foi instrumentalizado. inexistindo. implica sempre em uma relação determinista entre pobreza e criminalidade. no qual constam dois acórdãos. p. apesar de todos os entendimentos se voltarem à vulnerabilidade como ensejadora de medidas de privação da liberdade. pois ela “tem por objetivo a reinserção do adolescente em situação de risco” (BRASIL. tradução livre). Como observa Uriarte (2006. dois grupos de resultados puderam ser encontrados nos 26 acórdãos analisados. de herança positivista. a ministra relatora entendeu que. entende-se a vulnerabilidade como situação que enseja a adoção de medidas protetivas e não socioeducativas. Antropologia e Cultura Jurídicas ainda que o fato não seja considerado grave e o adolescente não esteja reiterando em sua conduta. demonstrando. 25.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2012c). familiar e de amizades que o tornavam propenso ao crime. Mostra-se devidamente fundamentada a imposição da medida socioeducativa de semiliberdade.Vol. ECA. nos termos do art.. não se define claramente em relação a que se depreende a caracterização de vulnerabilidade. ORDEM DENEGADA. apesar das orientações familiares (. com base nas peculiaridades do caso concreto. somados.. Na ementa a seguir... Agravo regimental a que se nega provimento (BRASIL..") para o estabelecimento da medida socioeducativa de internação (BRASIL. do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL. Antropologia e Cultura Jurídicas vulnerabilidade em relação à situação de marginalização social e família desestruturada. percebe-se que a situação de vulnerabilidade é um dos principais motivos ensejadores da adoção da segunda mais gravosa medida socioeducativa: HABEAS CORPUS.. Em segundo lugar. tendo sido ressaltada a gravidade concreta do ato infracional praticado e as circunstâncias pessoais do menor infrator.. a evidenciar a sua situação de vulnerabilidade.. o qual se encontra envolvido com o tráfico de drogas e afastado dos estudos e do trabalho. sempre julgando a história de vida do autor para determinar como responder pela prática de seu ato. aparece o entendimento de que nessas situações revela-se a necessidade de um acompanhamento por parte do Estado. Mais uma vez. 35 . no HC 227406-SP a ministra relatora entendeu que “a vulnerabilidade do adolescente. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. chegando à conclusão de que há a necessidade de se interferir na formação do adolescente para que se reverta essa situação. o Tribunal de origem ressaltou as condições pessoais do paciente (o adolescente encontra-se em completo estado de vulnerabilidade. 112. Grifou-se). 2.] a determinação da medida socioeducativa de semiliberdade foi devidamente fundamentada. o HC 231928-SP: [. 2012b. demonstra que ele necessita de um acompanhamento mais efetivo” (BRASIL.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Grifou-se). 2012a). no HC 235878 a ministra relata sob qual justificativa a decisão de denegação da ordem de Habeas Corpus no Tribunal de origem 339 . MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE SEMILIBERDADE. além de considerar a reiteração de atos infracionais. notadamente a situação de vulnerabilidade do paciente. Em outra decisão aparece compreensão semelhante: Ademais. Da mesma maneira. Assim..) deixou de estudar no ano passado (. para controlar o adolescente e também garantir que ele não volte para o mesmo grupo social. Se até aqui a vulnerabilidade aparecia como característica ensejadora da medida de privação de liberdade para contenção e acompanhamento. apesar de inserido em seu núcleo familiar. elementos que. justificam a imposição de medida socioeducativa mais rigorosa. que anteriormente se envolveu reiteradamente em atos infracionais graves.Sociologia. § 1º. a partir dos 14 anos de idade começou a ser infrequente às aulas. uma vez que ". ATO INFRACIONAL EQUIPARADO A TRÁFICO DE ENTORPECENTES.. se aproximou das drogas e de pessoas com conduta duvidosa. 1.) seu meio social é caracterizado por vulnerabilidade. 2011. seja pela compreensão de que isso seria uma violência à sua liberdade. nem tampouco a ideia de ressocialização através dela. a educação é um direito da criança e do adolescente. mas a de punir seletivamente os autores de determinados tipos de ilegalidades.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . e que têm a liberdade como um de seus direitos mais fundamentais. Antropologia e Cultura Jurídicas ocorreu: “Desta forma. a medida de internação é aquela que melhor se coaduna com a necessidade de correta proteção da recorrente. O paradigma da situação irregular com a sua abordagem biopsicossocial e de características deterministas. também sem indicar em relação a que. Ao defender a privação da liberdade como meio para garantir o direito à educação do adolescente através de uma política de controle social. somente se coaduna com uma criminologia etiológica. a droga ou os crimes contra o patrimônio. cujo entendimento coincide na identificação da vulnerabilidade do adolescente. No segundo grupo de julgados constam apenas dois. 2003. Daí que não se sustenta a ideia de privação de liberdade para proteção.Sociologia. Aparece aqui claramente a perspectiva tutelar que entende a proteção como restrição de direitos determinada pelo juiz em favor do adolescente.Vol. de maneira que mesmo com todas as mudanças ele permanece substancialmente o mesmo: “a criminalização das crianças e adolescentes pobres pela única razão de serem pobres e de se encontrarem em ‘situação irregular’” (BARATTA. dado que a origem do segundo é o primeiro e o destino do primeiro é o segundo. 2012c. ao ligar a trajetória do abandono à delinquência. ao contrário de qualquer outra medida. sendo a mais eficaz para proporcionar à jovem melhor readaptação ao convívio social. compreendendo a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e não como objetos de tutela. o que se faz é utilizar uma argumentação politicamente correta para mascarar a realidade: o sistema penal não tem a finalidade de educar. facilitando o cometimento de novos atos infracionais” (BRASIL. que tornava indiferenciados o abandonado e o delinquente. Grifou-se). ou mesmo a mera situação de abandono são as situações que criam a ocasião para que o sistema recrute o jovem. que deve ser garantido através de políticas sociais. O primeiro caso é o de 340 . p. Além disso. Tem-se aí uma verdadeira e comum contradição: como pode uma medida que retira direitos ser considerada um bem ao adolescente? Isso só pode ser entendido segundo a ótica da situação irregular. 35 . seja pela sua impossibilidade. que permitirá sua permanência nas ruas. 18). Como observa Baratta. A criminologia crítica se aproxima da doutrina da proteção integral. mas como ensejadora de medida protetiva e não de privação da liberdade. Sociologia. embora a paciente tenha respondido por outro ato de mesma natureza. Depreende-se da decisão que a vulnerabilidade. 101 do ECA) (BRASIL. dando 341 . o termo periculosidade foi proscrito pela doutrina da proteção integral. demonstraria ser o adolescente vítima de um contexto social. Nessas duas decisões da mesma ministra. Para tanto. seja como proteção. e. que só poderá ser infligida inexistindo outra mais adequada e. somando 24 julgados contra dois.2 Da vulnerabilidade social à vulnerabilidade perante o sistema de controle penal Vulnerabilidade é um desses termos utilizados de maneira corriqueira que. a restrição da liberdade da proteção. Contudo. não passaram pelo crivo do questionamento sobre o que é e para que serve. Nota-se. cabendo ao Estado proteger e não punir. por outro lado. 122 do ECA. faz-se necessário observar as medidas protetivas elencadas no art. A ministra. 2012d). diferenciando. Antropologia e Cultura Jurídicas uma adolescente grávida e usuária de drogas já condenada ao cumprimento de medida socioeducativa de internação em primeiro e segundo graus. é importante verificar que a primeira categoria de julgados foi massivamente preponderante em relação à segunda. Tal quadro conduz. Por isso.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Isso demonstra que os ministros do STJ optam pela definição de vulnerabilidade como uma situação pessoal e social ligada ao indivíduo que determina a ausência de condições de viver em sociedade sem afrontar as normas. adota o seguinte entendimento: “Na espécie. quando cumpridas as condições elencadas no art. no entanto. para evitar que os adolescentes retornem às suas famílias desestruturadas ou às más companhias. de um lado. ainda. adota-se a aplicação das medidas socioeducativas de semiliberdade e de internação em um sentido mesmo de contenção. amparando-se na condição de vulnerabilidade. percebe-se uma interpretação oposta às anteriores. Com o mesmo entendimento. 2012e). 35 . 101 do aludido Estatuto” (BRASIL. à aplicação de medidas protetivas (art. a vulnerabilidade da periculosidade. 2. É interessante notar que em primeiro grau a decisão foi de que a situação de vulnerabilidade justificaria a “proteção” da adolescente através da “grave restrição de liberdade” da medida de internação. porém. no HC 231928 a ministra buscou esclarecer que Não é razoável restringir o direito de liberdade. seja como oportunidade de estudo e profissionalização do adolescente. que o sentido parece ser mais de defesa social do que qualquer outra coisa. não há reiteração. nesse caso. de outro lado. Isto porque tal situação fática não autoriza a medida de internação. No tocante à situação de vulnerabilidade social em que se encontra a adolescente (estado gravídico e uso de entorpecentes). Como observa Uriarte (2006). antes.Vol. justificam-se com o uso das ideias de prevenção especial. seja ele voltado aos adultos. assim como na esfera adulta. o que os distingue exatamente é o fato de uns terem sido rotulados como tais pelo próprio sistema de justiça juvenil e outros não. resolvida através de medidas alternativas adotadas pela família e pelo grupo social do qual o jovem faz parte.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2005. por consequência de terem sido ou não recrutados pelo sistema penal (SANTOS. Diferentemente do que se quer fazer crer cotidianamente com a criminalização de adolescentes. O foco do sistema penal nos pobres é uma consequência da relação determinista entre pobreza e criminalidade. Isso pode ser visualizado nos crimes cometidos por aqueles que são controlados pelo sistema penal. 35 . seja ele voltado aos adolescentes. nota-se que na sua maior parte os indivíduos foram privados de sua liberdade em razão de crimes contra o patrimônio e tráfico de drogas. em interação com as agências de controle social informal. as políticas tutelares dirigidas ao menor em situação irregular no último século foram sempre voltadas para aqueles provenientes de tais grupos sociais. Tratase de uma instrumentalização do medo direcionada a esse grupo social hoje encarado como classe perigosa no Brasil: “jovens que. resultado de preconceitos sociais que moveram os estudos do positivismo criminológico no século XIX. que considera mais propensos ao crime aqueles pertencentes às chamadas classes marginalizadas. A ideia de vulnerabilidade relacionada às condições socioeconômicas dos indivíduos se funda claramente no determinismo positivista. 5). 2000). a prática de atos infracionais por membros daquele grupo é a regra. Isso é explícito nos documentos da FUNABEM. Quando verificados tanto os dados de encarceramento quanto os dados de adolescentes internados. Isso significa que as expressões “adolescente infrator” ou mesmo “adolescente autor de ato infracional” não são exatas: se na prática todos ou quase todos os adolescentes praticam atos contrários à legislação penal. configurando a cifra obscura dos atos infracionais.Sociologia. p. Antropologia e Cultura Jurídicas margem ao uso excessivo dos termos vulnerabilidade e contenção para lidar com os adolescentes através de suas condições pessoais e sociais. e demonstram claramente para onde o foco do controle penal da juventude está voltado. A parcela mais significativa dos atos infracionais praticados pela juventude em geral é tolerada. O sistema penal. passam ou transitam com certa facilidade de vítimas a algozes” (MORAES. 342 . 2000). dependendo de sua classe ou raça. determina quem serão as pessoas consideradas desviantes em uma determinada sociedade. No Brasil.Vol. O fato de apenas alguns adolescentes caírem nas malhas do sistema penal redunda em uma seletividade característica de todos os sistemas penais. e não a exceção (SANTOS. a partir dos processos de criminalização primária e secundária. 2003). Esse sistema. ou está prioritariamente voltada contra alguns jovens mais do que contra outros? De fato. a grande questão: ela se dá ao acaso. pois “estreita o espaço de opções do indivíduo e aumenta sua exposição ao sistema penal” (URIARTE. então os adolescentes que praticam o tipo de ato infracional mais perseguido e pertencem ao estereótipo mais visado são efetivamente mais vulneráveis: ao sistema penal. ao contrário de produzir o efeito de redução da vulnerabilidade. 104). GUERESI. Quando se trata de ato infracional. Essa vulnerabilidade é dada pela situação pessoal do indivíduo. “que depende de sua correspondência com um estereótipo criminal”. conforme parece ser o entendimento dos ministros autores das decisões analisadas. Antropologia e Cultura Jurídicas O que determina essa seletividade torna-se. sim. e uma situação de vulnerabilidade. o que implica nas maiores chances que tem de ser recrutado pelo sistema. 25). A privação da liberdade. não tem a finalidade de reduzir a vulnerabilidade. Nas palavras de Zaffaroni (1991.Sociologia. mas sim de reproduzi-la. p. al. mas sim com uma definição estabelecida pelas agências de controle penal. “que é a posição concreta de risco criminalizante em que a pessoa se coloca” (ZAFFARONI 343 . A segunda seletividade aparece ainda mais evidentemente no Judiciário: a remissão e a aplicação de medidas alternativas à privação de liberdade ocorre prioritariamente para o grupo de adolescentes de classe média e alta. se essa escolha nada tem a ver com a gravidade do ato infracional. 35 . se em razão dessa impossibilidade o sistema penal seleciona alguns atos infracionais e algumas pessoas pertencentes a um determinado estereótipo para perseguir. mais do que pelos seus atos. Se todos os adolescentes praticam atos infracionais e o sistema penal não está estruturado para se voltar contra todos eles. o conceito de vulnerabilidade mais eficaz de se utilizar se se quer partir de uma perspectiva crítica é o de vulnerabilidade perante o sistema de controle penal. Zaffaroni et. explicam que a vulnerabilidade perante o sistema penal pode ser entendida de duas maneiras: um estado de vulnerabilidade ao poder punitivo. 2006. o número de crianças e jovens de classe baixa e não brancos que chegam ao sistema de justiça é muito maior do que os de classe média e média alta (SILVA. para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida. reservando-se a internação apenas aos pobres. então. então. Diante da absurda suposição – não desejada por ninguém – de criminalizar reiteradamente toda a população.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e. naturalmente. p. mas também por eles. Aí aparece o resultado da primeira seletividade: a da agência policial. aos setores vulneráveis.Vol. a reproduz. Daí que o entendimento sobre o termo vulnerabilidade deva ser radicalmente invertido em relação à forma como utilizada nos julgados analisados. nota-se que em todos os anos entre 2000 e 2010 as taxas de homicídio que vitimizam jovens mais que duplicam as taxas da população não-jovem. 2012). porém. 49). p.Vol. outra semelhança que se encontra entre os dois sistemas é o fato de a mesma polícia seletiva e brutal do ‘mundo dos adultos’ ser instrumentalizada para o controle das crianças e adolescentes pobres. ou seja. 49). que trata sobre os homicídios no Brasil. 2003. portanto. as taxas de assassinatos demonstram que a representação trazida pelos projetos. muitas vezes pelas mãos de funcionários públicos. 2004)2. Muito longe de polarizar vítimas e bandidos. do que a uma condição que os leva a praticarem mais atos infracionais do que outros. al. Nesses casos. aqueles que correspondem a um estereótipo e. Quando os dados gerais são cruzados com a questão da cor. Não se nega também a realidade do cometimento do ato infracional. pois é baixo seu estado de vulnerabilidade (ZAFFARONI et. dentre as quais aparece a violência institucional (BARATTA. al. al.4% são homens (WAISELFISZ. chega-se à aterradora conclusão de que morrem proporcionalmente 139% mais negros do que brancos no Brasil. 344 . acaba distorcendo a realidade: os mesmos jovens que são vistos como bandidos pelo sistema de controle penal são os que mais morrem no país. a criminalização ocorre por falta de cobertura e “servem também para encobrir ideologicamente a seletividade do sistema. que através de tais casos pode apresentar-se como igualitário” (ZAFFARONI et. 35 ... 2003). p.Sociologia. 91. De fato. os denominam criminalização por comportamento grotesco ou trágico. Antropologia e Cultura Jurídicas et. Ao contrário. quem não se enquadra em um estereótipo precisa esforçar-se muito para se posicionar em situação de risco criminalizante. é que essa situação de vulnerabilidade seja pessoalmente atribuída a esses indivíduos e valorada em seu prejuízo. ao buscar a definição maniqueísta. “Vítimas” e “bandidos” são pertencentes aos grupos sociais excluídos: Nos dados do mapa da violência de 2012. relacionados à criminalidade comum praticada por não pertencentes aos estereótipos do criminoso. os lugares onde procurar e os figurinos a 2 Além de as instituições para internação de crianças e adolescentes coincidir na precariedade da estrutura com os presídios. Assim. O que se não admite. estão em estado de vulnerabilidade significativo não precisam se esforçar muito. de risco criminalizante. Além disso. al. 2003. em especial os crimes de colarinho branco..COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Não se nega com essa abordagem que efetivamente os adolescentes estejam passando por situações de repressão de suas necessidades humanas fundamentais. Contudo. Para se colocar em situação de vulnerabilidade. de todos os mortos vítimas de assassinato. sem questionar o quanto as próprias agências de controle protagonizam a sua construção social. aqueles que sofrem a violência estrutural costumam serem os primeiros a padecerem de todas as outras formas de violência. Já nos casos em que o próprio tipo de crime é daqueles não compreendidos como tais pela sociedade. a escolha de alguns atos infracionais a perseguir. a vulnerabilidade relatada pelos ministros em suas decisões para justificar a aplicação de medidas socioeducativas mais duras é muito mais relacionada às chances que esses adolescentes tinham de serem perseguidos pelo sistema penal e efetivamente chegar ao Judiciário. Zaffaroni et. junto com todas as fantasias que utiliza para travestir-se: de proteção. são.Vol. Antropologia e Cultura Jurídicas buscar determinam. na verdade discricionárias e repressivas (GARCÍA MÉNDEZ. de que fala García Méndez (2007): se. dentro de um sistema inquisitório. da forma como utilizada no tema do ato infracional especialmente no Judiciário. Conclusão A seletividade é um atributo do sistema penal já bem conhecido daqueles que buscam compreender o seu funcionamento. Mantém-se. o uso da vulnerabilidade como estratégia discursiva para legitimar a intervenção de um sistema que se presta apenas à punição e à reprodução das desigualdades sociais se mostra arbitrário e incompatível com o paradigma da proteção integral. Aparece aqui claramente o paradigma da ambiguidade. por outro lado. 1991. A vulnerabilidade. a pretexto de serem protetivas. 2007). bem como sua seletividade. é uma construção social que legitima a adoção de posturas que. BARATTA. nada resta senão minimizar esse sistema punitivo deslegitimado (ZAFFARONI. suas já fracas chances de sair da situação de vulnerabilidade perante o sistema de controle se reduzem drasticamente. com todo o seu conteúdo lombrosiano e principalmente com a admissibilidade de um enorme poder discricionário. 2002. 35 . que se já não mais admite no sistema penal adulto. Dessa maneira. os juízes aceitam a mudança de paradigma em teoria para proclamar que os adolescentes têm direitos. que algumas pessoas possuem muito mais chances de virem a ser selecionadas do que outras.Sociologia. em especial no sistema penal – seja ele adulto ou juvenil – seu produto é aquilo que ele persegue: o delinquente. O fato de que esse sistema atue a partir da escolha de alguns crimes dentre os tantos cometidos e apenas de alguns autores costuma ser um tipo de denúncia que demonstra a sua seletividade. contudo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Dado que essa seletividade é estrutural e não meramente conjuntural. assim. A partir dessa constatação. de ressocialização. de educação. a perspectiva menorista. diretamente. ao fazer ingressar o adolescente no sistema. negando que essa constatação seja 345 . se baseia na ideia de igualdade perante a lei e de respeito às garantias. Se há algo de produtivo em todos os sistemas disciplinares. não a aceitam em suas últimas consequências. 2003). E. ANDRADE. por um lado. O discurso jurídico-penal. observa-se a necessidade de superação do paradigma etiológico em criminologia quando se trata do direito da criança e do adolescente para chegar a uma perspectiva crítica que leve em consideração a necessidade de se mitigar a vulnerabilidade do adolescente perante o sistema penal. é confirmado no discurso sob alguns eufemismos. de maneira que os jovens pertencentes ao estereótipo de autor de ato infracional possuem chances 346 . Seja em razão do clássico déficit de políticas sociais no Brasil. A figura do menor simboliza bem esse paradigma. mas aos menores. de um lado. Ao contrário. de outro lado. Assim. ou mesmo ao sistema de controle penal. 35 . portadores de desvio de conduta ou de conduta antissocial apenas aqueles que se identificam ao estereótipo do marginalizado. a imunização dos jovens não pertencentes a esse estereótipo não trazia uma contradição entre teoria e prática.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Com a mudança de paradigma na legislação brasileira. escolhida para ser o objeto de análise deste trabalho. A vulnerabilidade não existe ontologicamente. o que se vê no senso comum a respeito da criança e do adolescente é. Este trabalho buscou analisar a relação aparentemente já naturalizada entre a identificação de situações de vulnerabilidade pessoal e social e a restrição de liberdade de adolescentes no sistema de justiça da infância e juventude no Brasil. por exemplo. toda a legislação destinada ao público jovem foi ela própria seletiva: voltada não a todas as crianças e adolescentes.Vol.Sociologia. contudo. Crianças e adolescentes podem ser vulneráveis. Desde o início do século XX. como potenciais infratores da lei. seja por uma crise político-cultural (GARCÍA MÉNDEZ. da doutrina da situação irregular para a doutrina na proteção integral. Identifica-se a causa do problema do menor na marginalização social. os órgãos mantêm a perspectiva menorista. e. Antropologia e Cultura Jurídicas uma sua característica estrutural. entendendo que é ela um dado e que a intervenção do sistema penal pode servir para conter tal situação. Tal vulnerabilidade. muito se modificou em termos teóricos. Na prática. legitimando a seletividade de sempre. Por isso. incluindo-se. na área da criança e do adolescente. ao ser reconhecida pelos tribunais. a reprodução do menorismo. mas sim confirmava a teoria: as políticas de controle explicitavam essa seletividade ao proclamarem que o problema do menor era um problema de marginalização social. quando ingressou no país a perspectiva tutelar. 2006). contudo. a privação da liberdade. baseado na criminologia positivista. educação e ressocialização. a ascensão de um punitivismo exacerbado. sobretudo de proteção. partiu-se de uma análise histórica para compreender a primeira relação efetuada nesse sentido: aquela que identificava abandono e infração e dava às duas situações a mesma solução. ela existe em relação a algo. realidade e discurso jurídico parecem caminhar na mesma direção: a seletividade do sistema penal. aos adultos. voltado quase exclusivamente aos pobres e não brancos. Um exemplo é a questão da vulnerabilidade. vem sendo utilizada em seu desfavor. então. A crítica realizada neste artigo aponta para a necessidade de inversão dessa lógica: se o sistema é autodeclarado seletivo. 2003. In: ELBERT. Institui o Código de Menores.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/D17943Aimpressao. In: BATISTA. Curitiba: UFPR.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6697impressao. Ministério da Previdência e Assistência Social. Em relação a esses. Além disso. que apenas vulnera direitos e somente protege aqueles que imuniza. De vítimas a bandidos: o caráter equívoco do tratamento da infância e da adolescência nos projetos lei propostos na Câmara dos Deputados. deve-se buscar retomar a ideia de reintegração social através da diminuição da privação de liberdade e a criação de mecanismos institucionais e comunitários que possibilitem a esses adolescentes ter minimizada a sua situação de vulnerabilidade ao sistema penal. BARATTA. a minimização do sistema infracional na área da infância e juventude.gov. Disponível em: <http://www. Montevideo/Buenos Aires: B de F. Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor. Antropologia e Cultura Jurídicas elevadíssimas de serem controlados pelo sistema enquanto outros também por serem e parecerem o que são precisam se esforçar muito para serem recrutados.943-A de 12 de outubro de 1927.gov.htm> Acesso em: 24 ago. 2004. Vera Malaguti. Alessandro. de 10 de outubro de 1979. BRASIL. então é a vulnerabilidade em relação ao sistema penal que deve ser objeto de análise em casos de ato infracional.Sociologia. Lei n° 6. 2012.gov. Tradução de Dora Flaksman. BARATTA. 347 .Vol.br/ccivil_03/decreto/19101929/D17943Aimpressao. Carlos Alberto. BUDÓ. 35 . p. BRASIL. Consolida as leis de assistencia e protecção a menores. 847 de 11 de outubro de 1890.planalto. Philippe. 2012. segundo. BRASIL. In: Anais do IV Seminário Internacional de Sociologia e Política. Por la pacificación de los conflictos violentos. 1981. a busca por alavancar as políticas sociais voltadas a esse grupo social. Marília De Nardin. Criminología y sistema penal: Compilación in memorian. Disponível em: <http://www. garantindo os direitos que são diariamente desrespeitados. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal. Prefácio. Rio de Janeiro: Revan.htm> Acesso em: 24 ago. O trabalho conclui com a necessidade de efetiva redução da vulnerabilidade dos clientes preferenciais através de duas principais linhas: primeiro. Decreto nº 17.697. Difíceis ganhos fáceis: Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro.planalto. BRASIL. 334-356. Referências ARIÉS. Rio de Janeiro: MPAS.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Promulga o Codigo Penal. Decreto n. 2012.htm> Acesso em: 25 ago. 2 ed. 2012. LTC. Alessandro. O “menor-problema social” no Brasil e a ação da FUNABEM. 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Nesse contexto. and how these communications must become manifest in legal decisions. like Judiciary.Vol. with little differences. 350 . desde de que observando o que esta Sociedade comunica às organizações. this approach between sociology and law speech intends to recover a way to sociologically study law and to connect it with Theory of Law. 1 Doutoranda e Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. observar o Direito como um fato social que pode produzir modificações significativas na Sociedade. Antropologia e Cultura Jurídicas Direito e Sociedade em transição: respostas sociológicas para decisões judiciais autopoiéticas Law and Society in transition: sociological answers to autopoietic judicial decisions SUELEN DA SILVA WEBBER1 LEONEL SEVERO ROCHA2 Resumo: Este artigo tem como objetivo central realizar uma observação sistêmica do livro Direito e Sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Abstract: This paper aims to proceed an systemic observation on the book Law and society in transition: toward resposive law. 2 Doutor EHESS-França e Pós-Doutor Unilecce-Itália. before the democratic breakup here experienced. A partir da análise desta obra. From this point. a proposta foi demonstrar como a sociologia é um instrumental adequado para enfrentar a crise de legitimidade e legitimação das decisões judiciais no Brasil.Sociologia. but also with Leonel Severo Rocha and Niklas Luhmann's contributions. From the analysis of the book. e como estas comunicações devem transparecer na decisões judiciais.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . utilizando a obra de Philippe Nonet e Philip Selznick como base. diante do rompimento democrático aqui ocorrido. além das obras de Leonel Severo Rocha e Niklas Luhmann. Bolsista do Cnpq. foi possível perceber que muito da realidade da Teoria do Direito vivenciada nos anos setenta nos Estados Unidos da América é ainda hoje vivenciada no Brasil. essa aproximação da sociologia com o discurso jurídico propõe-se a recuperar uma forma de estudar sociologicamente o Direito e conectar isso com a Teoria do Direito. it is intended to show how sociology may be taken as a proper instrument in order to face the crisis of legitimacy and lagitimation of legal decisions in Brazil. A partir disto. com pequenas sutilezas. drawing brazilian social perspectives about the different theoretical models of Law and Politics presented in the work. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). como o Poder Judiciário. Professor Titular e Coordenador Executivo do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 35 . through Philippe Nonet and Philip Selznick's work. É com este cenário que se pretende desenvolver o artigo. E. Teoria dos Sistemas. depois de muito conversarem acerca da verdade da vida e não chegarem a um acordo. que mexia nas orelhas do elefante. – Este animal é idêntico a uma serpente! Mas não morde. 3. Poder. parecem paredes… . Os cegos nunca tinham tocado nesse animal e correram para a rua ao encontro dele. havia uma certa rivalidade entre eles que. Democracy. política e social.Somos cegos para que possamos ouvir e entender melhor que as outras pessoas a verdade da vida.Que palermice! – disse o segundo sábio. o direito parece penetrar e impor limites em domínios cada vez mais amplos da vida econômica. Organização. ambos os países vivem realidades de ciência social muito próximas. E assim ficaram horas debatendo. uma arma de guerra…. porque não tem dentes na boca. Organization. 2. Quando tateou os contornos do desenho. Os seus movimentos são bamboleantes. o sétimo sábio ficou tão aborrecido que resolveu ir morar sozinho numa caverna da montanha. percebeu que todos os sábios estavam certos e enganados ao mesmo tempo. tocando a pequena cauda do elefante. – Este animal não se parece com nenhum outro.Sociologia. Ouvindo a discussão. Antropologia e Cultura Jurídicas Palavras-chave: Teoria do Direito. Referências Bibliográficas.Entre Protagonismos Políticos e Protagonismos Judiciários e seus conservadorismos: Direito Autônomo. O primeiro sábio apalpou a barriga do animal e declarou: . mas todos mesmos. Sumário: Introdução.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .É assim que os homens se comportam perante a verdade. chegou à cidade um comerciante montado num enorme elefante.Ambos se enganam – retorquiu o terceiro sábio. todas as pessoas que tinham problemas recorriam à sua ajuda. Agradeceu ao menino e afirmou: . suscitando aplauso e censura. vocês ficam aí discutindo como se quisessem ganhar uma competição. percebem de maneira diversa suas funções sociais”(SELZNICK. Até que o sétimo sábio cego. NONET.A institucionalização e organização da exclusão: entre Direito Repressivo e Direito Autoritário. tocando nas presas do elefante. estão completamente errados! – irritou-se o sexto sábio. Certa noite. os seis sábios. Disse aos companheiros:. 1.Vol. Theory of Systems. pensam que é o todo. Conclusão. Sociedade. o que agora habitava a montanha. em vez de aconselhar os necessitados. 35 .Vocês estão totalmente alucinados! – gritou o quinto sábio.Trata-se de um ser gigantesco e muito forte! Posso tocar nos seus músculos e eles não se movem. respeitadas as exigência do contexto. Como os seus conselhos eram sempre excelentes. Democracia. Key-words:Theory of Law. apareceu conduzido por uma criança.Sistema (Autopoiético) Responsivo. vários comentadores. na Teoria do Direito brasileira ao longo dos anos. Não aguento mais! Voume embora. cada um atento a diferentes aspectos do direito. aos gritos. p.11). Power. mostrando como em períodos históricos espaçados. discutiam sobre qual seria o mais sábio. É uma cobra mansa e macia….Vejam só! – Todos vocês. – Este animal é pontiagudo como uma lança. que apertava a tromba do elefante. 3 Em uma cidade da Índia viviam sete sábios cegos. como se o seu corpo fosse uma enorme cortina ambulante…. No dia seguinte. Pegam apenas numa parte. Posso até pendurar-me nele. – Este animal é como uma rocha com uma corda presa no corpo. Como na parábola dos cegos e o elefante3. Society. de vez em quando. focada. pediu ao menino que desenhasse no chão a figura do elefante. Por isso. Considerações Iniciais “Ano após ano. Embora fossem amigos. 2010. e continuam tolos!” 351 . o objetivo deste artigo é realizar uma observação sistêmica da Teoria do Direito Estadunidense posta no livro de Nonet e Selznick. Embora o livro aqui analisado não faça menção a Luhmann.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . da busca de 352 .que é para onde caminha o quadro brasileiro -. sobre o controle social e a relação entre Política e Direito. No capítulo três. serão apresentadas algumas considerações básicas sobre o modelo de Direito Repressivo descrito por Selznick e Nonet. ou seja. forte e isento de corrupções. É a partir deste modelo que sistemicamente pode-se dizer que começa a existir um papel mais estabilizado e delineado das organizações. mostrar-se-á como os autores procuram conciliar o contexto social daquela época .denomina de Direito Autoritário. mas que permita atender incluídos e excluídos. reconhecendo as várias relações entre estas e a legitimidade do poder exercido pelo Estado e pelo Poder Judiciário.Sociologia. Já a segunda parte ocupar-se-á de uma releitura do modelo de Direito Autônomo. que predominou durante o período ditatorial. que certamente é o que mais se assemelha à realidade institucional jurídica (e teórica) brasileira atual. com base em uma obra de grande importância sociológicajurídica. A obra traz uma perspectiva que nega uma visão unidimensional do Direito ou da Política. o texto traz uma perspectiva interessante sobre as instituições judiciárias. Como Direito e Política vão se relacionar neste contexto plural? Para responder isso. A partir do momento em que a hipótese de trabalho é a análise da obra Direito e Sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Antropologia e Cultura Jurídicas principalmente quando muitos defendem um formalismo conservador do Direito. serão apresentados três Sistemas (ou subsistemas). Na primeira. que sofreu uma ruptura epistemológica grave. este artigo encontra-se estruturado em três grandes partes. Nessa linha.Vol. em razão da ditadura. que não são excludentes. entre elas o Poder Judiciário. hoje esta mesma leitura pode ser feita no Brasil. o ponto chave curiosamente será a ideia de Sistema.em sua obra Epistemologia Jurídica e Democracia . acrescentando ao discurso variáveis e contextos de Direito. Para realizar uma observação mais qualificada do problema suscitado. seu conteúdo pode ser facilmente associado à Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos. mas ainda dentro das noções de um Sistema completamente fechado. sem o uso da força? Para rever estas questões. o problema a ser questionado passa a ser: quais as condições para que se possa pensar em um modelo de Direito capaz de ser legítimo. é preciso ter claro que o livro parte da premissa de que a Teoria do Direito Estadunidense passou por uma crise de autoridade nos anos 70. Aqui diferentes perspectivas sobre a liberdade e Lei e Ordem serão vistas sobre o prisma do risco. como há na Teoria dos Sistemas. 35 . mesmo passados tantos anos desde as primeiras reflexões a este respeito. apenas tem capacidades estruturais de se diferenciarem e prioridades diversas. Assim. traçando um paralelo com o que Leonel Severo Rocha . Aqui há um modelo evolutivo. mas que. p. o debate referencial aqui será entre Selznick e Rocha. e que pode ser vivenciado parcialmente pelos brasileiros. o ideal é um sistema autopoiético. ligado às necessidades que ressoam em cada comunidade em determinado momento.Sociologia. tem-se um marco interessante. que começa com o modelo denominado de Direito Repressivo. discricionariedade e arbitrariedades judiciais. Tomando por base o livro de Selznick e Nonet.A institucionalização e organização da exclusão: entre Direito Repressivo e Direito Autoritário “O discurso da democracia é um discurso que se opõe ao totalitarismo. 2005. entre elas o Poder Judiciário. desde já é preciso aceitar que o Direito decorre de um processo evolutivo. um modelo de Direito Autoritário. Muito antes da discussão sobre ativismos. Para isso. Antropologia e Cultura Jurídicas efetivação de direitos já existentes e da busca por novos direitos por parte dos cidadãos. Portanto. dentro de um modelo denominado Direito Responsivo. 57). é essencial saber como ele se construiu na história de um país.Vol. em sua fase autopoiética. 2005. e nem a Política fora do Direito.121-122). pode-se examinar que uma observação mais qualificada da realidade social jurídica concluirá que as organizações judiciárias. Em termos sistêmicos. É preciso assumir altos níveis de risco e responsabilidade. e as nuances dos modelos de Política e Direito descrito pelos autores em suas obras já citadas. segundo Rocha. é necessário observar a Sociedade e o seu Direito de maneira mais ampla. Até porque. Talvez esse seja o ponto em que mais facilmente pode-se aproximar o trabalho dos sociólogos americanos a Teoria dos Sistemas Sociais. ocorrido nos anos setenta nos Estados Unidos. Como conclusão deste ensaio sobre Direito e Sociedade. não podem mais ficar de fora das decisões Políticas. do saber e do próprio poder”(ROCHA. 353 . com análise das consequências. embora ambos sejam originários do mesmo princípio de abertura social a si mesmo pela manutenção na prática democrática da indeterminação da lei.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . em uma paradoxalidade de limites funcionais. em que havia. no período da ditadura militar. se o Direito ocupa um lugar proeminente na sociedade (LUHMANN. 1. além da postura do Poder Judiciário no processo de tomada de decisão. para que se possa construir uma crítica com o mínimo de sentido e sem orfandades epistemológicas. p. É assim que o artigo se desenvolverá. com capacidade de aprendizagem. 35 . o que gera alguns conflitos. o Direito Repressivo tem como uma de suas características basilares o fato de o Direito ser transpassado pela Política. já que estas estarão cobertas por um manto de autoridade e repressão. fica claro que a noção de Estado como figura central do Poder e da tomada de decisão é predominante. Aqui. e cunhada há muitos anos por Miguel Reale (1994). que de maneira mais grosseira já havia sido pensada por juristas estrangeiros. nossa digressão adotará também três perspectivas de Direito e Política trazidas na obra americana: Repressivo.Vol. o direito como um fenômeno social. como recentemente a Corte Superior do país.efetivamente não se via no estágio da repressão. NONET. ele conterá muito mais injustiças do que justiças (e as decisões tomadas também). Para citar exemplo próximo. ou. com ele. mesmo que exista Direito e. pragmáticahermenêutica e sistêmica). aliás. considerando que ele limita e ofende a liberdade. Nessa ordem de ideias. que legitima por si só tudo e todos e. ele não ocorre apenas na ditadura mas. e não unidimensional. Não bastasse isso. e esta é aplicada apenas a determinadas classes. Autônomo e Responsivo. 2010.Sociologia. Reale não foi o primeiro e nem o único a pensar o direito nesta perspectiva tridimensional. em termos extremamente singelos. valor e norma”. nem todos têm legitimidade social para ter efetivamente direitos. 71). Por isso. a lei é o que o Estado diz que é lei. portanto. Efetivamente. Em termos normativos. Poder Judiciário ou outras organizações. 354 . “a noção de direito repressivo presume que qualquer ordem jurídica pode ser 'injustiça congelada'”(SELZNICK. o Estado se constituiu em uma figura máxima de poder que controla a tudo e a todos. Neste cenário. sem nenhuma blindagem ou escudo. a existência de Direito dentro destes moldes não garantirá que se possa falar ou ver justiça. Uma maneira interessante de se iniciar a abordagem do Direito Repressivo é dizendo que esta tripartição social de poder comumente adotada hoje em países presidencialistas Direito. de três matrizes de observação do Direito (analítica. quando uma das teorias mais conhecidas sobre a inviabilidade de se pensar o Direito como unidimensional é brasileira. mesmo quando este modelo se apresentava em sociedades presidencialistas e ditas democráticas. Na verdade. Foi justamente a Teoria Tridimensional do Direito ou do “fato. com baixíssimo risco de responsabilidade social. e ao qual filia-se. 35 . em outras palavras. mas com alto risco de ser questionado e “derrubado”. político e normativo dentro dos riscos que ele assume em cada um destes modelos. mas muitos ficam em uma situação de vulnerabilidade social. em que não serão respeitados procedimentos e 4 Causa preocupação que um dos membros da mais alta corte do Brasil afirme que o Direito é unidimensional.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . embora formalmente sim. que levou este autor a ser reconhecido em todo o mundo jurídico. ele não é um modelo a se dizer democrático. afirmou em rede nacional durante a transmissão de um dos julgamentos mais significativos para a democracia brasileira. Antropologia e Cultura Jurídicas Como em nosso entendimento o Direito é tridimensional4. com Leonel Severo Rocha (2005) construiu-se e solidificou-se a ideia de matrizes. Política e Sistema Normativo . através de um de seus membros. Isto é. p. Então. que vigorou no Brasil. Prova disto é que até mesmo a monarquia brasileira preocupou-se. quando este trabalha a ideia do Autoritarismo. há um déficit de democracia. nos últimos vinte anos. mas apoiado em algo ficticiosamente externo (já que tudo é controlado por ele). no caso específico do Direito Repressivo/Autônomo. Fazem isso a partir do Direito e de suas organizações . p. 355 . é ela que lhe salvaguarda. manifestou-se no Brasil. à liberdade. Isso porque ele não tem como operacionalizar e assimilar estas movimentações politicas. já que os Estados Unidos da América nunca passaram por um período ditatorial (que foi o momento em que este modelo se estabiliza no Brasil). Mesmo neste estágio. e pelo uso da força estatal. percebe-se em sua abordagem que ambos os pesquisadores descrevem modelos muito similares de Direito e Política.25). é no Direito Repressivo que se encontra um déficit institucional. Ou seja. conforme afirma Rocha (2005. em procurar condições políticas que legitimassem o seu regime (ROCHA. bem como nos textos em que trata do pensamento de Rui Barbosa. Embora o autor brasileiro opte pela denominação Autoritário. Antropologia e Cultura Jurídicas haverá uma grande violação de direitos (entre eles. e que. Por outro lado. tinham realidades sociais de governo político muito diversas. em períodos temporais distantes. E a legitimidade é o ingrediente indispensável para se manter no poder. embora tivesse muitas características do totalitarismo. o governante não abandona o Direito e a Lei. assim como as instituições.para países diferentes. Em outras palavras.122): O autoritarismo. que será o Direito e a Lei. e a violência passa a ser uma prática constante para a manutenção do poder. O fato de um modelo muito semelhante ter sido vivenciado em dois locais com situações tão diversas como as acima mencionadas decorre da necessidade que se viu deste tipo de recurso poder servir como um legitimador das atitudes dos governantes. não conseguindo gerenciar isso através de uma organização. porque em termos de organizações ele não está com uma democracia bem instituída. por algum tempo. No Brasil. Curiosamente. É neste sentido que se pode estabelecer o debate entre os autores de Berkeley e Rocha.Sociologia. o qual é contraditoriamente respaldado pelo Direito. suas decisões não têm aceitação. Logo. constituindo-se num regime que. há a necessidade de o governante se legitimar na Sociedade não apenas pela força (que pode gerar o efeito inverso e lhe tomar o poder da mesma forma). 35 . como as organizações não são estruturadas e se confundem com o governo e com os ideais do Estado.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . isso só pode ser visto porque viveu-se uma ditadura peculiar. claramente durante a ditadura. p. Isto é. devido a seus compromissos com a burguesia nacional e internacional. que se pretende analisar.Vol. 1996. em suas diversas formas). ele precisa constantemente se valer do uso da força para conseguir reprimir demandas e bloquear pautas. Vol. Essa necessidade de legitimação surge exatamente porque a repressão é o recurso utilizado pelos governantes que enfrentam uma pobreza de recursos para administrar. que agora passa a ser necessária. consequentemente. 2005 e CASTRO.120). e portanto. até o desesperado Ato Institucional número cinco (ROCHA. quando a liberdade. só haverá espaço para se falar em repressão. o fim das divisões sociais e. ficando congelado5. constituem um nova forma política. o seu poder (e no caso da ditadura. e o principal. p. quando o governo precisa agir de forma urgente mas não tem recursos para isso. Neste momento. 2010. As normas 5 Esse foi um dos motivos pelos quais o regime ditatorial no Brasil e seus Atos Institucionais passaram de meras “recomendações” que indicavam um fim próximo desta forma de governo. É por isso que a representação descrita pelos autores se diferencia de um totalitarismo ou de um Autoritarismo/Repressivo tradicional. é preciso fazer uma diferenciação essencial que se apresenta neste modelo de Direito. como se fosse apenas uma transição para uma “purificação”. ele deixa de ser arcaico. e então ele passa a resistir a novos compromissos e demandas. qual seja. Portanto. Antropologia e Cultura Jurídicas não pôde jamais reivindicar. a relação entre Direito e Coerção. uma legitimidade a priori de seu discurso. para ter aceitação social. 73-74). NONET. ou melhor. 2007). de tal forma que há um baixíssimo nível de complexidade e produção de sentido em suas decisões. Por isso. quando procedimentos e a integridade das pessoas for violada.29). p. Em termos de instituições. manifestação ou “deslealdade”. 2005. onde a lei. 1996. Importa destacar que é neste momento que se institucionaliza e se organiza a exclusão. Ou melhor.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . for cerceada. p. o saber e o poder se exteriorizam em relação ao Estado. o que provoca a necessidade da legitimação pela sociedade através do exercício do poder”(ROCHA. mas sim a forma como isso ocorre.Sociologia. diferente da monarquia que tinha a fonte de legitimação em si mesma. não é o simples uso da força que o torna repressivo ou autoritário. mesmo durante a ditadura no Brasil. até mesmo por um “golpe”). há outra semelhança entre os dois modelos: elas servem única e exclusivamente ao Estado. estar-se-á falando em repressão. o maior dos direitos humanos (ROCHA. começa a ser colocado à prova sua governança. podem começar a surgir movimentos sociais de protesto que coloquem em risco a posição dos governantes. na figura do rei. Vale salientar que o poder coercitivo nem sempre é repressivo (SELZNICK. sem legítima justificação. Na medida em que este autoritarismo “anteriormente unificado. e passa a ter um nível de complexidade maior (o que permite existir tanto na democracia como na ditadura). e que vem como uma das características marcantes desta forma de governo. O Estado cria as normas e conduz o Poder Judiciário de maneira a barrar e sufocar qualquer reclamação. 356 . como faz o totalitarismo. 35 . Para Rui Barbosa. 000 unidades de penicilinasalvo se declaram ser alérgicas à substância. essa é uma realidade ainda hoje enfrentada em todo o mundo.]. falará de um sistema montado intencionalmente para ser excludente. e em determinada situação você pode passar de excluído para incluído. p.Vol. não de direito”.Sociologia. narrada em nossa obra base: “Ao determinar as penas e conceder ou negar pedidos de liberdade condicional. devem ser localizados pela investigação. isso geralmente significa muitos homens e mulheres -.. ainda assim existe a binaridade excluídos/incluídos. a Autoridade não se envolve numa ação judicial. e até que a Autoridade fixe a pena dentro de limites indeterminados. BARALDI.83-84). e nunca se pede que relatem seus contatos sexuais. As mulheres são procuradas por carta ou pessoalmente em suas casas e empregos. as diferenças de níveis de estratificação perdem sua relevância. conforme definida por lei. Ali. O prisioneiro condenado legalmente não tem direito adquirido à determinação de sua pena inferior à máxima. depois que o juiz pronuncia uma condenação a pena indeterminada. (SELZNICK.. Não é exclusão que se dá por mecanismos de defesa institucional ou por omissão do Poder Judiciário como acima narrado. mas numa ação administrativa [. Rui Barbosa. para possibilitar que se faça isso. ou seja. elas contam com uma grande capacidade de discricionariedade6. Contudo. em que mesmo com outros modelos de Direito e Política mais evoluídos. 1996.]. mas utilizada para defender seus interesses e de seu grupo. mas não pontualmente determinadas pessoas. e no seu lugar entra uma estrutura da sociedade que parte do pressuposto de que todos podem em princípio participar em todas as formas de comunicação e as eventuais diferenças não são estabelecidas pela forma da diferenciação. legitimar suas ações (sejam elas quais forem) e garantir sua permanência no poder. é possível que isso ocorra8. 2010. Segundo a legislação da Califórnia. De fato. e por fim.. nem a liberdade condicional. ela não precisa mais se submeter a isso. Este é exatamente um exemplo de um sistema montado para excluir as pessoas com menos recursos.. 7 Conforme Corsi: “Con la diferenciación funcional las diferencias de rango de la estratificación pierden su relevancia primaria y en su lugar subentra una estructura de la sociedad que parte del presupuesto de que todos pueden en principio participar en todas las formas de comunicación y las eventuales diferencias no son establecidas por la forma de la diferenciación.” (CORSI. seja qual for o resultado do exame clínico. NONET. Logo. Mesmo que isso não seja tão fácil. A determinação da pena por um prazo inferior à pena máxima é uma questão de inteira discrição da Autoridade. 35 . na releitura de Rocha. p. Pode-se imaginar os conflitos familiares e até tragédias acarretadas por esse tipo de interferência na vida privada das pessoas. passando para o lado dos incluídos. Tal elemento permite que ela nunca seja aplicada contra o soberano. levadas ao posto de saúde (induzidas por motivação ou medo). NONET. Como no Brasil. [. e sim por uma estruturação mesma em que o direito não tem integridade alguma com 6 Um exemplo disso é a forma de fixação das penas na Califórnia. foi extrema. considera-se que o prisioneiro cumpra a pena máxima para o crime em questão. de forma menos saliente em alguns locais.” (SELZNICK. 357 . 125).800.” Tradução livre: “Com a diferenciação funcional. Note-se que quem pode pagar uma consulta particular com médico é poupado dos relatórios oficiais e das investigações. esta estrutura de excluídos/incluídos7 é montada em uma forma luhmanniana. ESPOSITO. 8 Veja-se a seguinte situação: “Todos os contatos sexuais de um homem durante as duas semanas anteriores à sua visita (ao posto de prevenção e controle das DST) . se a mesma pessoa vier a aumentar seus recursos financeiros. e todos os que são citados e identificados pelo desafortunado amante. não há personificação. os valores podem ser modificados. mas ela sempre persiste. intervindo drasticamente em sua liberdade.e no caso de nossos clientes. o Direito Penal será o foco e instrumento principal das instituições deste governo. Mais especificamente em termos do Direito Repressivo ocorrido nos Estados Unidos. 82). Há a intenção que alguns sejam excluídos. Antropologia e Cultura Jurídicas passam a ser aplicadas de acordo com a conveniência política e.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2010p. elas são classificadas como G90 e recebem 4. e. em determinados momentos. com a Proclamação da Republica. Rudolph Giuliani. No Brasil. ou na ditadura do Brasil. Era um regime altamente repressivo e autoritário.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Sociologia. 35 . A escravidão ocorrida na monarquia não é como hoje.Vol.(SELZNICK. totalmente além. justamente na tentativa de superar Lei e Ordem. bem como do governo contra possíveis “traidores”. p. ou de Tolerância Zero. inclusive do código incluído/excluído. A questão de Lei e Ordem levantada por Selznick é um elemento típico do regime monárquico (e mostra que as evoluções não são estanques). Nestes modelos de Direito Repressivo e Autônomo. pode-se dizer que existe um incentivo à subordinação de determinados grupos e à estruturação de defesas de um grupo contra outro. a Lei e Ordem é um problema da monarquia de privilégios no Brasil (e hoje tem-se a inclusão sobre o prisma da exclusão). em que as pessoas são excluídas e depois podem ser incluídas . Este sistema transparece na escravidão. No final do século XIX. Por isso. Não tem data fixa de início ou de fim. O mesmo retorno vivido no Brasil teve o movimento de Lei e Ordem nos Estados Unidos da América nos anos 90. a Lei e Ordem tem um retorno triunfal com a ditadura. Na escravidão estava-se completamente fora. Ao fazer isso. a Lei e Ordem tem uma transição para Ordem e Progresso. no Direito Penal e no Direito Administrativo. há uma dominação repressiva. por exemplo. 2010. implantou abertamente a Política de Lei e Ordem. Isto é. o que se procura é legitimar uma Política de classes voltada para grupos. em que há baixa capacidade de centralização Politica. do parlamentarismo. Elas ocorrem de acordo com as comunicações sociais. consolida os 358 . em alguns casos. ou ainda nos anos 70 nos Estados Unidos.justiça de classes. por ser uma característica do Direito Repressivo. evidentemente. Tal retorno aponta que estas representações não são estanques e cuidadosamente delineadas no tempo. que não tem sua coerção e exclusão confundida com isso. Historicamente. Com o modelo Repressivo apontado no livro base. quando o prefeito de New York. NONET. Esse é talvez um dos principais pontos de uma análise sobre Direito Repressivo ou Autônomo. Antropologia e Cultura Jurídicas o campo político. com total discricionariedade. as estratégias de governo e a necessidade deste de legitimidade e poder. Vale a pena retornar a isso. a primeira queda da Lei e Ordem vai se dar através do próprio Direito (Autônomo) e do modelo de governo presidencialista ou. O ideal era que a Ordem e Progresso mantivesse isso.88). a monarquia no Brasil concentrava-se. Entretanto. uma vez que a Lei e Ordem era o grande lema da monarquia. Em Estados arcaicos e totalitários há uma ênfase muito grande na política de Lei e Ordem. Aqui é preciso ver as sutis diferenças de regimes que são estruturados para perfectibilizar a exclusão e regimes que utilizam a exclusão para se blindar. Sendo assim.Entre Protagonismos Políticos e Protagonismos Judiciários e seus conservadorismos: Direito Autônomo A democracia gera uma indeterminação do social. a partir desta matriz. baseado numa tecnoburrocracia. Já o Direito Repressivo/Autoritário brasileiro. através de uma concentração de poderes jamais vista. pelos elementos trazidos até o momento. que procurou. ou.. Não existe mais a legitimidade em si. para nós. e que adentrava todas as esferas institucionais. 2. intervir em todos os setores da sociedade (ROCHA. que Brasil e Estados Unidos não tinham grandes diferenças em sua forma de Direito e Política nos anos setenta. Daí a necessidade da utilização da ideologia da segurança nacional para justificar a violência empregada e da defesa do desenvolvimento econômico para justificar a concentração do capital nas mãos das classes ricas. que se embasava na coerção e na vontade Política dos Governantes. é obrigado a utilizar-se da força. entre eles a incapacidade de lidar com o excesso de possibilidades que a Sociedade apresenta ao longo de seu processo evolutivo. parece que. para impor suas decisões. transcendente e indiscutível. o que implica um esfacelamento das instituições da sociedade civil. que sempre tem a proteção do Estado. p. 2005. até o momento. Antropologia e Cultura Jurídicas privilégios do grupo da elite. que não tem limites operacionais ou cognitivos. a partir deste próximo modelo. num permanente desrespeito aos direitos humanos. fazendo com que a perspectiva Autônoma 359 . Ambos enfrentavam um Sistema Aberto de organização social. neste contexto específico comparativo.122). as distâncias temporais começaram a ficar mais evidentes pois.já que se é aberto não é um sistema -. justa e imaculada.Sociologia. pode-se perceber claramente que o Sistema do Direito Repressivo é o que se poderia considerar como um Sistema Aberto. Contudo. A legitimidade passa a ser um direito conquistado todos os dias (ROCHA.Vol. nos mesmos moldes de Canaris (2002).120). Embora alguns teóricos entendam que não há a possibilidade de se pensar em sistema aberto . é possível definir o modelo Repressivo como um Sistema Aberto.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . o que produziu. um Estado extremamente forte.. 2005. O autoritarismo. 35 . (. pelo fato de romper com os pressupostos de legitimidade do ancien regime. os problemas advindos disto são evidentes. Encaminhado o final deste capítulo. p. O nosso fio condutor mostrou. o Brasil permanece na grande ruptura da ditadura.) caracteriza-se pelo desprezo à participação social. o que lhe obriga a recorrer à censura policial e à negação dos princípios democráticos. enquanto nos Estados Unidos a Teoria do Direito pode prosseguir sua evolução natural. é com este modelo de Direito e Política que surgirá o Estado de Direito. concretizados na realidade social brasileira. relativamente autônomas e com uma supremacia especial dentro de esferas definidas de competência (SELZNICK.Vol. alguns aparentemente contraditórios. p. Para que isso ocorra. Esse segundo modelo de Direito apresentado no livro. surgirá a separação estanque das esferas política. nesse sentido. Ele vem como uma forma de domar a repressão. por isso mesmo. 35 . conseguindo fazer uma abordagem muito diferenciada: Nesta perspectiva semiológica. Contudo. Em outras palavras. 360 . pode-se dizer que. entre eles a noção de que há uma separação completa da Política do Direito no momento da decisão.99). No Brasil. que seria um sistema institucional singular. que se volta para a manutenção da democracia. se o modelo de Direito Autônomo fosse idealizado no Brasil. já que trata de hierarquias e supostas clarezas. da mesma maneira. e. um complexo de sentidos jurídicos. desde já ressaltase que o discurso jurídico dominante no Brasil sobre Kelsen contém muitos equívocos. A própria noção da separação “das competências” é uma ideia que remete ao formalismo kelseniano. que no Brasil não tem nenhum equivalente. ver-se-á que a democracia é a base para se falar em um modelo de Direito como o Autônomo. é aqui que surge a separação dos poderes. Talvez o maior diferencial seja a ideia de precedentes. Tal interação tem possibilitado à Teoria Jurídico brasileira recusar sistematicamente à TPD como suporte de legitimidade e. Nas palavras de um pesquisador que tem abordado a Teoria kelseniana sob o prisma comparativo de linguagem e meta-linguagem. então. Temos. Historicamente. a significação jurídica dominante no social nunca é pura. tendo como principal característica a formação de instituições judiciárias especializadas. o que determina a existência de conteúdos tipicamente kelsenianos. Em termos de Teoria do Direito.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . de Legitimidade e de Democracia. 20102. tal como ingenuamente se pensa sobre o modelo de Direito Autônomo.73).Sociologia. muito valorizada e conservadoramente resistente até hoje. 2011). em que nos inserimos. legislativa e judiciária. e. p. não existe a separação teoria/práxis. NONET. ao mesmo tempo. A unidade desta complexidade é dada pelas relações desta significação jurídica com as relações de poder (econômico-militares) que co-instituem nosso imaginário social. Esta mescla é o que caracteriza a faia jurídica materializada no Brasil. ele seria um modelo puramente kelseniano (KELSEN. nos escritos de Rocha. encontra-se justamente no caminho inverso ao Direito Repressivo. 1984. diante das comunicações sociais estabelecidas. que analisa o discurso a partir de sua especificidade política. que ressoavam um sufocamento dos indivíduos e a necessidade de se fazer implementar efetivamente a democracia (americana). à qual é fortemente vinculada a ideia de Estado de Direito. Antropologia e Cultura Jurídicas seja implementada muito depois. aceitá-la como suporte metodológico (ROCHA. conjuntamente com conteúdos jurídicos positivistas e iusnaturalistas. em que o Direito irá se colocar acima da política no momento da decisão. exigindo com isso uma “fidelidade à lei”(SELZNICK. essa possibilidade de responsabilização dos governantes em razão do fortalecimento do judiciário e a “clara” separação entre vontade pessoal e julgamento dos magistrados.100). Aqui. as principais características deste modelo serão: a separação entre o Direito e a Política (ao menos de forma oficial. que advém da separação dos poderes e superioridade do Direito sobre qualquer outro sistema no momento da decisão. que leva a uma aceitação rápida dele e a se pensar que é o modelo ideal de justiça. é a possibilidade que ele apresenta de responsabilização dos governantes. ele precisará estabelecer uma forma eficaz que lhe garanta este poder e consiga afastar a pergunta que sempre circunda os governos instáveis: “com que autoridade?”. bem ao estilo kelseniano). p. começou a ter algum avanço significativo. Para que esta blindagem do Direito ocorra. ou a independência no momento de decidir. caso contrário. os elementos de legitimidade deverão ser externos ao próprio sistema. devem ser observadas de maneira mais qualificada. e está-se de acordo com ele neste ponto.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . à própria instituição. eles serão facilmente derrubados. 1996. pois Rui Barbosa já denunciava. 2010. Assim sendo. A partir do momento em que os políticos aceitam este modelo de Sistema Fechado. Logo. todos são elementos externos que balizam uns aos outros. é obrigatório aceitar-se que há uma evolução da Teoria das Organizações e o fortalecimento delas.32). NONET. Por isso. p. já indicada pelos autores. mas internamente comprometidos. a adoção de um modelo normativo que reduziria a possibilidade de qualquer discricionariedade das instituições judiciárias. diferentemente do que ocorria no modelo Repressivo ou no Autoritário. embora não o ideal. que a condição para a legitimidade da República (está) na legalidade e na reforma das instituições (ROCHA. vislumbra-se que as organizações são o caminho para a legitimidade e a legitimação que. Para que esta meta seja atendida. neste instante.Sociologia. Uma das particularidades mais sedutoras deste modelo pensando por Selznick e Nonet. Por isso. Apesar disso. pode-se dizer que o Direito Autônomo tem um grande nível de organização. e com isso lhe garanta legitimidade e legitimação. Antropologia e Cultura Jurídicas Sendo a legitimidade um dos principais objetivos deste modelo. ao romper com a fusão entre Direito e Política e dar ao Poder Judiciário um poder extremo na tomada de decisão. Esta observação mais qualificada. a legitimação dá aos julgadores o direito de dar a última palavra sobre o caso julgado. No coração disto tudo estará justamente a ideia de procedimento. em que tem seus poderes limitados à funcionalidade 361 . mostrará que isso não passa de um grande acordo entre os sistemas para que se mantenham oficialmente legitimados. 35 .Vol. Selznick dirá que isso é uma doença para o modelo. é fundamental para que se possa falar em ativismos. e. 35 . gerando separação entre reflexão e realidade social. a partir de seus estudos com Lefort. um novo centro de articulação e auto-instituição da sociedade. mas como a mise en forme de sentido e encenação social. Antropologia e Cultura Jurídicas de seu sistema.Sociologia. uma nova forma política.Vol. Constitui. deveriam ser afastados. na contemporaneidade. dão uma subordinação substantiva. quando algumas críticas intituladas Novas Teorias do Direito defendem que Direito e Política. abrindo mão oficialmente de qualquer interferência nas políticas públicas. Como se verá no modelo Responsivo. compreender esta circularidade.e elas sabem que é assim. E essa é a grande tensão existente hoje. este legalismo. enquadrar-se-ia ainda no Direito Autônomo (em razão dos 362 . decisionismos ou arbitrariedade. é a ideia de um Sistema Fechado. dentro da lógica de incluídos/excluídos. Rui Barbosa e Rocha empregam aqui. nos termos do que os autores Selznick. o que se tem no modelo Autônomo. anteriormente mencionada. A própria identidade da sociedade é política. que em tese. Portanto. Esse problema pode ser visto no Brasil. este formalismo. Compreender isso. eles já sabem que devem limitar suas possíveis responsabilizações através da lei que eles mesmos criam. Não obstante. os fatos jurídicos que as regras permitem observar acabam sendo reduzidos. repare-se que as organizações judiciárias adquirem apenas uma autonomia procedimental . dentro dos três modelos aqui analisados. que ela engendra. p. deste modo. Em troca.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . como há algum tempo Rocha (2005. na linguagem de Lefort. é essa abertura (sistêmica) que permite a estabilização da democracia em uma Sociedade como a brasileira. ao menos em nível formal. Na verdade é essa abertura que possibilita a garantia da democracia. e mais especificamente o Poder Judiciário. consequentemente. porque com o desenvolvimento rápido da sociedade. a democracia. Então. isso acaba sendo contraditório para a pregada tese de defesa da democracia. A política é que possibilita a delimitação do espaço de sua autoconstituição. Trata-se de uma forma política articulada a partir do princípio de anunciação de direitos. e isso não interfere necessariamente na democracia. a política sempre tem influência nas decisões judiciais. Assim. Dito de outro modo: direta ou indiretamente. onde o princípio maior é o direito de enunciá-los. Esta forma de sociedade é democrática devido à possibilidade sem limites da manifestação do direito de falar e ser escutado. e um menor número de injustiças. onde a política não é vista como uma instância autônoma. pois a própria identidade da Sociedade é política. inicialmente. assumindo o compromisso de não impor suas ideias sobre o conteúdo das leis.120-121) vem afirmando. 3. isso deve e só pode ser feito dentro do procedimento para adquirir legitimação e legitimidade. mesmo que o julgador queira inovar. 2010. Um modelo deste porte apenas se mantém em uma sociedade estável.119). embora seja patente que tinha conhecimento dos fatos. o mais alto representante do executivo não foi chamado a julgamento.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 14). Sendo o procedimento o coração. somos levados a analisar que a evolução de todo o sistema caminha rumo ao modelo Responsivo. demonstrando que se está em um momento de transição. p. por exemplo. Mas mais um vez não se pode negar que a evolução caminha a passos lentos. que não é mais o caso do Brasil. 2005. é que a Sociedade evolui para o 363 . mas claro. onde o autoritarismo foi o sistema dominante. a base desta estrutura. Destarte. cuja matriz é capaz de lidar com as tensões e comunicações sociais. isso só será legítimo se ocorrer dentro do procedimento.Vol. e isolado dos problemas sociais. Antropologia e Cultura Jurídicas fatores históricos antes mencionados). p. e não se preocupar com as consequências de suas decisões e dos acontecimentos (e omissões) da esfera pública. é preciso perceber que o Sistema Autônomo enfrenta graves problemas estruturais. onde foi idealizado e descrito. pelo fato de que quando se vivenciou a experiência de um Sistema Aberto (Repressivo). escondendo-se em um véu de neutralidade e de impenetrabilidade de outros sistemas. sem novas demandas e sem grandes modificações. como o fato de não se adequar mais à realidade social. Na tentativa de se encontrar um modelo de Direito capaz de ser legítimo. mas que tem decidido ativamente em questões de políticas públicas.Sistema (Autopoiético) Responsivo No Brasil.Sociologia. forte e isento de corrupções. durante os últimos vinte anos. rompendo com a ideia de “um juiz togado em seu gabinete cercado de estantes de livros”(SELZNICK. e que o compromisso permanece: neste caso. mas que permita atender incluídos e excluídos. a democracia é uma questão crucial (ROCHA. e tampouco dos Estados Unidos da América (e por isso mudou). Novamente. NONET. diversos abusos políticos foram cometidos. embora seja compreensivo que no Brasil ainda hoje se esteja fortemente em um modelo de Direito Autônomo. permitindo que a instância superior de decisão do país passe a decidir sobre questões eminentemente políticas (como a perda do mandato dos condenados no “julgamento do mensalão”). 35 . e sequer testemunhou. sem o uso da força. A dinâmica social que ressoa das comunicações não possibilita mais que a organização central do Sistema do Direito fique inerte às falhas da administração. Este está além dos paradigmas de um Sistema Fechado ou um Sistema Aberto. a contradição existente entre a necessidade de procedimentos fixos sendo elemento essencial do Direito o devido processo legal herdado do modelo Autônomo e interpretação flexível para viabilizar a dinâmica social. Luhmann adaptou esta ideia aos Sistemas. Antropologia e Cultura Jurídicas Sistema Responsivo. as análises trazem vícios adquiridos de um cenário de observação parcial que as teorias jurídicas daqui fazem. NONET. é equilibrada pela autopoiese. de maneira sucinta. os seres vivos se reproduzem de forma contínua por si próprios. Varela (2005. p. 35 . Luhmann é o referencial mais adequado para o debate. e sim trabalhando a noção de consequência. sempre que se trabalha com estes autores. tem-se uma nova racionalidade jurídica.com suas regras de conhecimento -. p. é um conceito que emergiu das pesquisas dos biólogos chilenos Humberto R. que eles se 364 .. Isso porque ambos possuem maneiras muito semelhantes de enfrentar os problemas elencados. Ou. ou Weber . Em outra perspectiva mais sofisticada.52) e consiste na autorreprodução e auto-organização dos seres vivos. Nessa senda. NONET. parece mais importante acrescentar a este diálogo mais uma matriz de cunho sociológico. Porém. 2009. neste espaço. para dizer. p. Luhmann mostra-se um autor mais relevante do que Hart . não há como negar que no Brasil. Neste terceiro Sistema. sendo a proposta desta resenha apontar como a sociologia é uma arma eficaz no combate a arbitrariedades. Ademais. conforme os autores. Dworkin . é preciso adotar um fundamento basilar da Teoria dos Sistemas Autopoiéticos: o fechamento operacional e a abertura cognitiva. e no atual estado de complexidade da Sociedade e dos problemas judiciais brasileiros.Sociologia. 2010.com sua ideia de organização vinculada a fins e meios e burocracia .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .. que visa observar os contextos sociais e os efeitos das decisões. mas capaz de permitir discricionariedade democrática. “nessa reconstrução. p.Vol. a abertura à mudança e o ativismo deviam combinar-se como temas básicos”(SELZNICK. Para estes biólogos.121122). finalmente. 2010. “ajudando a definir o interesse público e empenhando-se na concretização da justiça substantiva”(SELZNICK. a concepção de justiça formal ou procedimental começa a deixar transparecer as suas fraquezas e falhas. Para que isso possa ser realizado. lida por Selznick e Nonet (2010. Ainda.e sua moral. a competência cognitiva. Aqui.92) como comunal . independente do meio.35-58) do Direito Autônomo. “intermediando” um debate entre Philip Selznick e Niklas Luhmann. A autopoiese. Essa é uma combinação que a autopoiese faz com perfeição. aqui há um modelo de Sistema Autopoiético. para ficar apenas nestes.122). os sociólogos americanos estabelecem um debate com diversos autores. com a qual o Sistema Responsivo tem que lidar. No capítulo final do livro. p. Maturana e Francisco J. mas não mais em uma racionalidade de fins e meios weberiana (LUHMANN. 35 . debe distinguir entre decisión y acción. Enquanto no Sistema Repressivo o que se via era uma abertura completa e indiscriminada do Sistema Jurídico e de suas instituições. quando as instituições são fracas. 2010. em que a organização é constituída ou tem sua importância percebida em razão das ações que ela faz. 2010).). “La opción adoptada por Luhmann consiste en definir la organización como un sistema cuyos elementos componentes son decisiones. p. Se se usa el concepto de autopoiesis. Ele aprende observando os seus efeitos na Sociedade que pode lhe dar informações preciosas para processos de autocorreção.a agirem como quiserem. este é um mecanismo que não rompe totalmente com a integridade.tanto juízes como cidadãos . entre se manter e ainda assim ser capaz de atender aos anseios sociais. uma Teoria focada nas organizações. o Direito Responsivo. a partir da análise de políticas públicas. É preciso ver que mesmo aqui permanece a necessidade de legitimação e de legitimidade para o controle e aceitação social. Para esto. 365 . as organizações também são uma peça chave de estabilização cognitiva e normativa social. Por mais que se tenha problemas em se questionar certa legitimidade para algumas práticas decisórias. tem-se no trabalho do Selznick (e também no de Luhmann) uma teoria da aprendizagem. é pensado a partir da ideia de aprendizagem e de adaptação responsável. de movimentos sociais. 125). com rápida adaptação às vontades Políticas.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . mas sim. NONET. um dos passos mais importantes para estabilizar este sistema é o fortalecimento das organizações. Imediatamente. Entretanto. independentemente do ambiente. de forma latente. (. que levou a um fechamento e alta capacidade de ignorar os acontecimentos sociais. decisões que as organizações produzem (LUHMANN. traz aqui. e seu centro de decisão é focado em determinadas pessoas.. XXIII-XXIV).Vol. o referencial sistêmico observa quais as comunicações e. colocar em pauta mecanismos que podem oferecer novos campos de conhecimento. p. E como visto. porque ele quer. com isso. na luta entre integridade e abertura. uma noção muito forte de como o Direito aprende.(SELZNICK. podría decirse que las organizaciones son sistemas autopoiéticos de decisiones”(MANSILA. a teoria luhmanniana em relação às organizações. Por isso. Dentro da perspectiva luhmanniana..Sociologia. e no Sistema Autônomo uma reação contra este modelo. superando a noção de Sistemas Fechados e Abertos. não tem uma abordagem clássica. isso deixa margem para que qualquer instabilidade leve as pessoas . e não na organização. 2005. É por este motivo que desde o início deste trabalho vem se afirmando que Selznick (na esteira de outros escritos seus). Antropologia e Cultura Jurídicas autorreproduzem e se auto-organizam. reduzindo suas responsabilidades sobre as comunicações emanadas. mormente quando o modelo anterior era fortemente positivista. com o hiperciclo. ela é pouco analítica. será nesta perspectiva boa. que o crescimento do consequencialismo no direito torne cada vez mais difícil distinguir a análise jurídica da análise de políticas (WEBBER. esse segundo nível. surge a necessidade de se reconhecer diferentes expressões de Direito. de acoplar os sistemas necessários a serem envolvidos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Diante disto. E todo este aparato se faz necessário justamente porque não há a possibilidade de se pensar em Direito unidimensional. O Direito Responsivo é orientado para resultados. Elas são capazes de conectar. paradoxalmente. ele necessariamente necessita do instrumental da sociologia. p. pois elas são. Sendo voltado para resultados. de organização do Direito. em hierarquia de normas ou em casos/decisões isolados e princípios como uma forma de fechar a interpretação. ROCHA). outra relação não usual que se pode estabelecer. a teoria de Teubner também não trabalha com a ideia de direito unidimensional. “não nos deve surpreender. quando apontam que ali há Direito. Para encontrar-se o equilíbrio é que o fortalecimento das instituições foi necessário. na tomada de uma decisão sobre a concessão de 366 . o caminho para se gerenciar o risco e permitir que se coloque em prática a capacidade de adaptação e aprendizagem (lida como capacidade de observar e modificar-se com seus erros) do Sistema. exatamente porque ela define pouco. neste ponto específico. além da feita pelos autores com as regras de reconhecimento secundárias de Hart. esta institucionalização que a regra de reconhecimento (ou do hiperciclo trazido por nós) permite. se é possível reconhecer diferentes expressões de Direito.133). modificações. portanto. Assim. Nesse ponto. diferentes fontes de Direito e noções epistemológicas mais refinadas que apresentem um desafio intelectual aos estudiosos. por exemplo. tem capacidade de flutuação e adaptação dentro das conjunturas do Direito e da Política. pois isso leva a um aumento da insegurança e ao aumento do risco. ao mesmo tempo. justamente por dizer que. e. 2010. que ali existe Direito. é com a noção de hiperciclo delineada por Teubner (1989). No atual momento histórico.Sociologia. chegam a certos acordos ou práticas sobre quais critérios vão ser operados e comunicados para decidir o que será o Direito. como grande parte da doutrina jurídica que trabalha com a decisão judicial o faz.Vol. com baixo nível de risco e com fidelidade à integridade da lei e à posição de submissão dos julgadores. Antropologia e Cultura Jurídicas Mas de fato existe uma agitação muito grande quando se fala em abertura para o novo. flexibilidade. Por isso. Este é um dos motivos pelos quais é feita nesta releitura uma conexão com a autopoiese e. pois apenas elas são capazes de apontar resultados de maneira séria e sólida. NONET. 35 . da pesquisa empírica. isso se dá pelo fato de que todas elas. a racionalidade jurídica e outras formas de tomar decisões”(SELZNICK. a própria democracia evolui. caso seja preciso. não é estanque. porque sua abertura cognitiva e seu fechamento operacional permitem esse jogo. 367 . via Poder Judiciário. neste modelo preocupado com os resultados de suas decisões. 2010. a partir do fortalecimento das instituições. diante da pluralidade de fontes e das formas de participação popular. Como é mais focado no resultado concreto de suas decisões. deixa de ter qualquer capacidade de resposta social. dentro das disposições legais. Pois é justamente por isso que o Sistema Responsivo (e neste ponto se aproximando do Repressivo) tem forte conexão com o Sistema Político. Portanto. ou positivismo legal.27). A democracia está ligada à ideia de 'construção da sociedade'” (ROCHA.Vol. apenas temperado com uma valorização adjetivista e moralista de que é um positivismo do bem. ou.Sociologia. Aqui. neste modelo em que a retórica da democracia é fortificada. vinculação de membros por diretivas. não serão de maior relevância casos isolados. p. em detrimento de milhares de empregos (SELZNICK. sem necessitar do uso da força ou da coerção. sem problemas de legitimação. Sua operação distintiva é a produção (comunicação) de decisões (ROCHA. ou qualquer outra característica anteriormente utilizada como critério de constituição de organizações. Mais do que isso. mas uma forma política integral (cultural. seguindo o exemplo dos autores. “a democracia não é um regime político. 2012. O que irá provocar mudanças dentro deste processo de aprendizagem é a quantidade de pessoas afetadas por esta decisão. 1996. racionalidade. para esta tomada de decisão. sobre o fechamento de uma fábrica por poluição ambiental. será possível explorar meios alternativos. Ao que se pode ver. hierarquias. porque vem de um Estado Constitucional. Pelo contrário. Ao colocar isso no plano constitucional e defender uma padronização procedimental hierárquica. Tal diferença é possível. como faz o Repressivo. tornam-se secundárias frente à concepção de organização como sistema constituído por decisões. de perda de poder ou de corrupção. é isso que o fortalece. NONET. mas que se for mantido indiferente às condições e consequências sociais. ele se mostra disposto a mobilizar recursos do Sistema da Política para lhe auxiliar na modificação da situação. AZEVEDO. decisões fora do padrão sem grande relevância comunicacional (que podem ser contidas pela estrutura da organização).137). p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . no qual questões como orientação por fins. Antropologia e Cultura Jurídicas medicamentos. Diferentemente do que se espera que ocorra em um Direito (Autopoiético) Responsivo.202). econômica e social) da sociedade. está-se ainda em um discurso positivista. p. 35 . ao se observar um processo de tomada de decisão nestes moldes. que permite atender incluídos e excluídos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . e. pode-se construir uma observação com base na Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann.Vol. que se respaldado na pesquisa empírica é necessário. na verdade ocorre apenas oficialmente. ainda cabem mais algumas considerações. O engano está no fato de que a separação de poderes. não podendo o Poder Judiciário interferir em Políticas Públicas ou julgar “além da lei”. Por isso. o que se pode perceber foi um modelo de Sistema Aberto. no terceiro enfrentamento dos modelos trazidos por Selznick e Nonet. pois. visto nesta perspectiva. para não dizer falha. no sentido colocado por Leonel Severo Rocha. garante fortemente a democracia e os direitos dos cidadãos. passa a ser um importante instrumental para enfrentar a crise de legitimidade da tomada de decisão. Já a sociologia. O mais grave é que este modelo é extremamente conservador. guarda muitas relações com a autopoiese e com a possibilidade de se pensar a redução de complexidade da sociedade através da tomada de 368 . tão veementemente pregada. pode ser encontrado no Sistema Autopoiético Responsivo. democrático. Por fim. ingênua. um modelo de Direito legítimo. é uma observação muito restrita e parcial. necessitando a constante utilização da força para ter alguma forma de aceitação. No ponto um. Neste espaço final. em que o Direito é transpassado pela Política e pela vontade de qualquer governante. o Direito Autônomo parece ser uma forma ideal de Sistema (fechado). discricionariedade ou arbitrariedade judicial. sem o uso da força. forte e isento de corrupções. Como apontou-se. conservadora e equivocada. e exatamente por isso não consegue dar conta da complexidade social que lhe irrita a todo o momento. Basicamente. sendo submisso a outras instituições que não as jurídicas. mas. Antropologia e Cultura Jurídicas Portanto. mostrou-se deficitário e inadequado ao longo dos anos. pensar que apenas o legislativo pode “fazer justiça” e ser democrático hoje. de fato. porém. 35 .Sociologia. e com alto nível de responsabilidade das organizações. foi esta a noção que se pretendeu passar nos três pontos principais do texto. a obra que se escolheu analisar aqui contém um discurso sofisticado sobre o Direito e a Sociedade e aponta como a sociologia pode fornecer uma maneira de solucionar a tensão existente em torno do ativismo. Considerações Finais Como pode ser visto ao longo do artigo. em tese. Já no capítulo dois. devendo apresentar respostas certas sem inovar em suas decisões. as decisões jurídicas acabam sendo influenciadas pela política e pela vontade de governo. Isso porque o Sistema Responsivo. Na verdade. emerge a necessidade de que se denuncie que é possível promover o diferente.Vol. Isso seria incorrer em um grande engano. que vai contra a própria formulação teórica apresentada. beira ao absurdo falar-se em uma perspectiva unidimensional do Direito na contemporaneidade. do neopostivismo e da perspectiva formalista conservadora. há uma policontexturalidade. Antropologia e Cultura Jurídicas decisão a partir de organizações. porque é ela que de alguma forma tenta reconhecer claramente a possibilidade desta questão conjectural e não unidimensional do Direito. como Política e Direito se relacionam. Em termos 369 . tornandoo incapaz de reduzir e gerenciar complexidade e risco. Assim. há um modelo evolutivo. entre as relações que foram estabelecidas ao longo da releitura de Direito e Sociedade. mas não quando for um membro de uma organização que decide isoladamente afetando pessoa X. e isso só será corrupção quando violar pressupostos do Sistema.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Nessa ordem de ideias. que. quando violar expectativas de muitos cidadãos. Autônoma e Responsiva) não são excludentes.Sociologia.o que é derrubado quando o Direito é tratado de forma unidimensional. Nesta linha. é preciso decidir de maneira inovadora dentro de uma organização. em uma relação de comunicações entre Sistemas. A modificação apresenta-se no sentido de que eles apenas têm capacidades estruturais de se diferenciarem e prioridades diversas. e a abordagem sociológica tende a tratar a experiência jurídica do Direito como uma variável contextual . Mais do que isso. Pensar em Direito Unidimensional é dizer que ele possui atributos que seriam invariáveis. que aqui parece mais adequado ser denominado de Sistema Autopoiético Responsivo. é embasada na aprendizagem. cabe salientar mais uma vez que as três formas de Sociedade apresentadas (Repressiva. regressando ao positivismo exegético e ao jusnaturalismo como perspectivas de análise. De tal maneira que com ele se pode reconhecer as variáveis da relação do Direito com a Sociedade e com o próprio Direito. apenas relembrando. sem dar margem para que surja a pergunta clássica: “isso não pode levar a ativismos?”. em termos de Direito. 35 . é a noção de Sistema Responsivo. Nesse sentido. e não excludente. por exemplo. permitindo uma maior flexibilidade das observações e da tomada de decisão. aqui ficou demonstrado que ponto o chave para o enfrentamento das comunicações sociais é a ideia de Sistema. Revela registrar novamente: a sociologia é atualmente o grande inimigo do positivismo. que permite observar. que é arcaica. Portanto. de maneira a reforçar a democracia. como a Corte Superior mencionou há poucos dias em julgamento de grande importância para a democracia. desde que respeitada a legitimação. CASTRO. 2007. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. CLaudio. contraditoriamente. 2008. 1996. e quem a coloca espera uma resposta precisa e cheia de segurança. Tradução de Antônio Menezes Cordeiro.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . e que apenas por isso abre margem para a pergunta inicial (se houvesse apenas segurança.Sociologia. Sendo essa a preocupação. LUHMANN. a preocupação de quem coloca esta pergunta é se o Judiciário não pode vir a começar a decidir sobre políticas públicas. Elena. esta forma de tomada de decisão das organizações permite que a democracia seja fortalecida através de diversas articulações possíveis e necessárias entre Política e Direito (Responsivo). se há o risco de não haverem respostas corretas (ou seja. Em outras palavras. Teoria Pura do Direito. Claus-Wilhelm. 2002. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Rio de Janeiro: Lumen Juris. não haveria que se falar em ativismo). ed. dentro dos limites do Direito. 5. esta pergunta seria respondida da seguinte forma: “sempre há o risco de ativismo. e para decidir dentro de um excesso de possibilidades e riscos é preciso inovar. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. em uma sociedade que gira sob o prisma de incerteza e da insegurança.Vol. FERRAZ JUNIOR. Hans. a resposta a ser dada é que o Poder Judiciário não ficar restrito a respostas seguras e conservadoras não é ativismo. que é a base aqui adotada (e já justificada inúmeras vezes). México: Herder. São Paulo: Editora Atlas. através de suas organizações. decisão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Flávia Lages de. O papel do Direito. pois. KELSEN. Na verdade. CORSI. em um contexto inadequado. 2011. ed. México: Universidad Iberoamericana. dominação. Giancarlo. 2005. E isso acontece quando esta organização. Niklas. ESPOSITO. 6. 370 . seguras e previsíveis) para os seus casos. Antropologia e Cultura Jurídicas sociológicos. sobre questões que não estão bem esclarecidas por outros Sistemas. e. O fato é que esta pergunta é colocada de forma equivocada. Introdução ao Estudo do Direito: técnica. São Paulo: Martins Fontes. ed. existe a possibilidade de influências e corrupções”. 3. El derecho de la sociedad. observando as consequências de suas decisões. é decidir. sobretudo. Referências Bibliográficas CANARIS. assim o faz. Tercio Sampaio. e muito menos fere a democracia. de qualquer forma. História do Direito Geral e Brasil. BARALDI. 35 . Vol. Darío Rodríguez. A democracia em Rui Barbosa. México: Herder. NONET. 2009. SELZNICK. sem nenhuma poesia. Philip. Tradução de Humberto Marioti e Lia Disckin. __________. Nota a la versión en espanõl. Jean. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. ed. IN: LUHMANN. 1996. REALE. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Niklas. Petrópolis: Editora Vozes. Teoria Tridimensional do Direito. 1994. Organización y decisión. AZEVEDO.URI. __________. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Darío Rodrígue\Mansilla. Antropologia e Cultura Jurídicas __________. __________.. 2005. 2005. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Germano. Notas para uma teria da organização da decisão jurídica autopoiética. IN: A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica. Miguel. número 09. Luis Alberto. julho/dezembro. ed. Leonel Severo. IN: Revista de Estudos Constitucionais. 1989. __________. 1984. Florianópolis. Barcelona: Anthropos. MATURANA. IN: Revista Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos (Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC). acción y entendimiento comunicativo. textos didáticos. Florianópolis. Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito. 2010. número 02. __________. IN: Revista Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos (Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC). v. Um eterno retorno: a (i)legitimidade sistêmica da tipificação dos delitos de trânsito no Brasil. São Paulo: Palas Atenas. Tradução de Maria da Conceição. O sentido político da Teoria Pura do Direito. __________. volume 05. Gunther. Introdução à Teoria dos Sistemas. WEBBER. CLAM. 2012. O Direito como Sistema Autopoiético. Porto Alegre: Livraria do Advogado. ROCHA. 5. Tradução de Vera Pereira. (no prelo). TEUBNER. Suelen.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2005. VARELA. Hermenêutica e Teoria do Direito (Rechtd). Philippe. Organización y decisión. 371 . São Leopoldo: Editora Unisinos. número 32. Florianópolis: Fundação Boiteux.Sociologia. São Paulo: Saraiva. 2010. 2005. 2009 __________. SCHWARTZ. 35 . Autopoiesis. Rio de Janeiro: Editora Revan. Epistemologia Jurídica e Democracia. Diálogo e Entendimento . MANSILLA. Humberto R. 1980. WARAT. 2º ed. Francisco J. 4. Um título à moda antiga. Guilherme de. Direito e Sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. 5. volume 17. first. será realizado um breve estudo sobre o termo “paradigma” e por que a dificuldade de sua mudança pode ser considerada grave. RASCALS AND PARADIGMS: BRAZILIAN JURISDICTIONAL MODIFICATION DIFFICULTIES Maurício Seraphim Vaz RESUMO Pretende-se verificar. Posteriormente. BILONTRAS E PARADIGMAS: DIFICULDADES DE MUDANÇA JURISDICIONAL BRASILEIRA ESTABLISHED. which sociological diagnoses may be associated with the difficulty of paradigm’s change mentioned by Lenio Streck in our society: the predominance of a law designed to resolve disputes between individuals in a society filled with multi-personal conflicts. derived from the permanence of an outdated paradigm. provavelmente. To achieve these diagnoses. Por fim. derivados da permanência de um paradigma ultrapassado.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Especialista MBA em Gestão Empresarial Lato Sensu pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-RJ. Finally. Later. PALAVRAS-CHAVE: Sociologia aplicada ao Direito. quais diagnósticos sociológicos podem ser associados com a dificuldade da mudança de paradigma apontada por Lenio Streck em nossa sociedade: a predominância de um Direito elaborado para resolver disputas interindividuais numa sociedade repleta de conflitos transindividuais. there will be a brief study on the term "paradigm" and why its difficulty of change may be considered serious. serão expostos de forma exemplificativa a fim de justificar a gravidade do problema apontado por Streck. Hermenêutica ABSTRACT It is intended to verify. Para alcançar tais diagnósticos. Especialista em Direito Público Lato Sensu pela Faculdade de Direito de Vila Velha – FDVV. as the main problem of this article. Advogado. Paradigm. two compatible sociological theories which probably influence the Brazilian social behavior will be displayed in an attempt to demonstrate the reason for the maintenance of the current paradigm. duas teorias sociológicas que se compatibilizam e. alguns problemas percebidos em diferentes ramos do Direito. Antropologia e Cultura Jurídicas ESTABELECIDOS. will be exposed exemplary in order to justify the severity of the problem reported by Streck.Vol. some perceived problems in different branches of law. em primeiro lugar. Hermeneutics  Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV. como problema principal deste artigo. KEYWORDS: Sociology applied to law.Sociologia. Paradigma. 372 . influenciam o comportamento social brasileiro serão expostas na tentativa de demonstrar o porquê da manutenção do atual paradigma. 35 . permanece praticamente intocado. 1999. A hipótese norteadora da resolução deste problema será sustentada por esta segunda alternativa. tem se mostrado inadequado para resolver uma série de questões de suma importância. Mais de uma década se passou e a crítica realizada continua não apenas atualizada. 34). mas cada vez mais relevante. de caráter transindividual (STRECK. 31). Streck revela que o Direito brasileiro foi moldado sob uma perspectiva liberal-individualista que sustenta um desvio da verdadeira função que o Direito e a dogmática jurídica deveriam possuir em um Estado Democrático de Direito – a função de servir à população como um instrumento de transformação social (STRECK. doze anos depois que esta dura crítica à realidade brasileira foi exposta.Sociologia. Em 2011.Vol. Pretende-se apresentar os problemas derivados do atual paradigma para demonstrar que as críticas de Streck são reais e. porque o Direito já está funcionando como instrumento de transformação social e as questões transindividuais podem ser resolvidas sem dificuldade com as atuais ferramentas legais e processuais. existe a possibilidade de a crítica realizada ser infundada. por meio de análises fundamentalmente sociológicas. p. intitulado “O Estado Democrático de Direito e a (des)funcionalidade do Direito”. em que as críticas mencionadas acima foram realizadas. indicando que as críticas são verdadeiras e que existem fatores que obstaculizam a realização das mudanças. o paradigma não muda porque não existe a real necessidade de mudança.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A segunda possibilidade caminha em direção diametricamente oposta. 35 . Nesta tiragem. 1999. Duas possibilidades se mostram factíveis. Em outras palavras. No segundo capítulo desta obra ele faz uma forte crítica sobre como o Direito. o segundo capítulo. Diante dessa imutabilidade dogmática surge a necessidade de investigar os motivos pelos quais essas questões apontadas por Streck não conseguem ser superadas. Em primeiro lugar. 373 . Quais são os diagnósticos que podem ser associados com a dificuldade da mudança deste paradigma em nossa sociedade: a predominância de um Direito elaborado para resolver disputas interindividuais numa sociedade repleta de conflitos transindividuais. se buscará os motivos pelos quais a mudança necessária não consegue se efetivar. Antropologia e Cultura Jurídicas INTRODUÇÃO Lenio Streck lançou em 1999 a primeira edição de seu livro “Hermenêutica jurídica e(m) crise”. p. no Brasil. este livro de Streck chegou à sua décima edição. portanto.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. mas a questão chave a ser compreendida diz respeito aos saltos dados nas comunidades científicas com relação a seus paradigmas. criadoras de novos paradigmas (KUHN. apesar de se tratarem de exceções raras (KUHN. É justamente por explicitar os aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e retratá-los como certos. Todas as ciências desenvolvem-se utilizando os paradigmas como ferramental. Paradigma é uma realização científica reconhecida como universal que fornece soluções e problemas para os cientistas de uma dada comunidade (KUHN. p. Antropologia e Cultura Jurídicas 1 PARADIGMA JURISDICIONAL BRASILEIRO A PARTIR DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SUA FALTA DE CONCRETUDE Antes de se enfrentar o paradigma jurisdicional brasileiro. Porém. 35 . Os paradigmas são um conjunto de pressupostos ou preconcepções utilizados como ponto de partida para que um problema seja formulado e uma solução para este problema seja encontrada. paradigma pode ser compreendido como sinônimo de modelo ou padrão. p.Sociologia. 2007. tornando desnecessário para o cientista que examine tudo aquilo que já é tido como aceito pela comunidade científica. é importante esclarecer que nada impede que dois paradigmas coexistam pacificamente. a descoberta dos microrganismos na biologia e o princípio da conservação da matéria na química são exemplos clássicos de descobertas que romperam com aquilo que se tinha como válido e/ou exato sobre determinado assunto (paradigma antigo) e que trouxeram a necessidade de se repensar a ciência com um novo olhar (paradigma atual). 2007. como pontos de partida pré-validados para o início de uma investigação científica. 2007. 374 . os paradigmas possuem um aspecto contraproducente. para a própria compreensão da crítica realizada por Streck. os paradigmas não evoluem continuamente. um aprofundamento do significado deste termo pode ser bastante útil. A revolução copernicana na astrofísica. p. alguns esclarecimentos sobre o próprio termo paradigma são necessários. 121-123). 2000. Ao contrário do que poderia se supor. o paradigma impede que o cientista perceba soluções alternativas ao problema proposto. No entanto. As soluções são apresentadas apenas dentro da moldura oferecida pelo paradigma existente. Em outras palavras. verídicos e exatos que os paradigmas também limitam e condicionam o agir dos cientistas (CARVALHO NETTO. p. 14). Eles mudam por meio do surgimento de crises e alternativas revolucionárias (rupturas). No entanto. Essas rupturas criam novas soluções para os problemas antigos e permitem o enfrentamento de problemas que a ótica anterior não conseguia enxergar. Os paradigmas são transmitidos aos cientistas por meio acadêmico ou prático e servem. além deste aspecto positivo. Superficialmente. 476). 13). ele está justamente abordando o aspecto negativo contraproducente do paradigma jurisdicional brasileiro. entorpecedor.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . TRUBEK. 2 Campo jurídico é o conjunto dos personagens que “fazem. 2012. Antropologia e Cultura Jurídicas Joel Barker em um vídeo voltado para a administração de empresas.. p. Assim como ocorreu com os suíços no mercado mundial de fabricação de relógios. Os japoneses que.Vol. foram capazes de enxergar esta possibilidade e. 2011. Ele está demonstrando (há mais de uma década). Essa brusca mudança mercadológica foi causada pela incapacidade dos fabricantes suíços em enxergar a possibilidade de produzir um relógio eletrônico movido a quartzo e bateria. em 1968. interpretam e aplicam a lei. 43-44) menciona que o paradigma antigo. pois ele abrange os mais 1 Kuhn (2007. é de extrema preocupação e relevância. transmitem conhecimentos jurídicos e socializam jogadores que se encontram no jogo do campo” (DEZALAY. CHRISTENSEN. que os pressupostos que estão sendo transmitidos academicamente. e reproduzidos nos mais variados campos jurídicos2 estão ultrapassados. logo em seguida. por outro lado. p. 122) ajuda a compreender o exemplo dos relógios como sendo um fenômeno comum ao mencionar a alta frequência com que as revoluções paradigmáticas se dão por pessoas muito jovens ou por pessoas que estão na área de estudos cujo paradigma modificam há pouco tempo. assumir a liderança do setor (BARKER. Isso revela como o aspecto contraproducente dos paradigmas pode ser.. Ele menciona que a Suíça. era detentora de 65% do mercado mundial de relógios e de mais de 80% do lucro neste ramo de negócios.] ocorre uma desfuncionalidade do Direito e das Instituições encarregadas de aplicar a lei” (STRECK. p. não estavam presos a nenhum paradigma de produção relojoeira1. intitulado “The business of paradigms”. que “o Direito brasileiro – e a dogmática jurídica que o instrumentaliza – está assentado em um paradigma liberal-individualista que sustenta essa desfuncionalidade” (STRECK. a questão suscitada por Streck pode ser compreendida com maior exatidão. 2011.. 375 . A partir desta compreensão sobre o que é paradigma. Streck (2011. pois esse tipo de relógio fugia aos limites estabelecidos pelo paradigma de produção de relógios da época. consequentemente. 1988). p. os juristas brasileiros estão presos a um paradigma antigo e não conseguem vislumbrar uma necessidade de melhoria para adequar a estrutura jurídica brasileira ao paradigma novo do Estado Democrático de Direito que se pretende abraçar.. que vem aprisionando a forma de produção do Direito. p. Quando ele afirma que”. geração após geração. apud MOREIRA. 43) e. sob a ótica do Estado Democrático de Direito [. 31). a fatia suíça deste mercado caiu para menos de 10% e o Japão que não possuía nenhum conhecimento do ramo em 1968 passou a ser o líder mundial em fabricação de relógios. 43). não condizem com a realidade e nem tampouco com a necessidade de uma sociedade que saiu de uma ditadura militar e que abraçou o novo paradigma do Estado Democrático de Direito. Dez anos depois. 35 .Sociologia. exemplifica o lado contraproducente do paradigma com o mercado mundial de fabricação de relógios. de fato. a relação entre regulamentação e proteção e. p. o papel que os advogados representam em um campo jurídico. quando a questão envolve questões de caráter transindividual. por exemplo.Sociologia. políticos. p. ainda não completamos a quarta e quinta etapas de cidadania descritas por Neves. 35 . p. 2012. 376 . as modalidades para a articulação da doutrina majoritária e as formas com que estas ocorrem. enfatiza que não se trata simplesmente de hipóteses não previstas no ordenamento jurídico. Primeiramente existe por aqui uma maior ênfase nos direitos sociais. Streck. Em segundo lugar. O Brasil vem tentando. Marcelo Neves (2006. p. apud MOREIRA. os direitos ligados à cidadania se deram em uma ordem inversa: primeiro os direitos sociais e depois os civis e políticos (CARVALHO. a ocupação de uma fazenda por integrantes do Movimento dos Sem-Terra (MST). o modo dominante de legitimação. como. ao contrário dos países de modernidade periférica (como o Brasil) em que isso não ocorreu. 228) houve a realização adequada da autonomia sistêmica de acordo com o princípio da diferenciação funcional e a constituição de uma esfera pública fundada na generalização institucional da cidadania. 44) concluiu que no Brasil ainda existe a predominância no Direito do paradigma forjado para resolver disputas entre indivíduos. mas essa tentativa vem se chocando com uma estrutura social que não coaduna deste sentimento. segundo Neves (2006. por outro lado. p. inclusive. faltando sedimentar por aqui os direitos transindividuais e os decorrentes das discriminações inversas. 31-32). foi incorporada pelos atores sociais. cognitiva e motivadora.Vol. passando a determinar seu sentir. transindividuais (difusos e coletivos) e os decorrentes das discriminações inversas (compensações por discriminações sociais negativas). há três diferenças importantes. 2011. sociais. crimes financeiros que desfalcam quantias de diversas pessoas ao mesmo tempo. a partir da Constituição de 1988. 4 Os países de modernidade central são aqueles em que. mas de uma crise 3 Habitus é um termo desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu para designar que determinada estrutura social. assumir uma condição de Estado Democrático de Direito. Antropologia e Cultura Jurídicas diversos aspectos: a organização das profissões jurídicas. um acidente ecológico que afeta a vida de toda uma comunidade. 11-12). Com base nessas observações. por fim. a forma na qual o campo jurídico produz o habitus3. a forma com a qual os diferentes atores do campo jurídico estão localizados. violações cometidas por grandes empresas que atingem centenas de milhares de consumidores concomitantemente. Por último.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . pensar e agir (SOUZA. Por essa razão. o Direito atual não se mostra capaz de apresentar soluções para estes tipos de problemas e isso pode estar diretamente relacionado a uma questão de cidadania. 179-185) alerta que a questão da cidadania nos países de modernidade central4 passou por cinco estágios que abrangeram os direitos civis. No Brasil. Streck (2011. É justamente por não ter havido a concretização dos direitos transindividuais no Brasil e por ser nossa cidadania típica de um país de modernidade periférica. que nosso Direito vem sofrendo a atual crise de paradigma. Não é possível em um artigo acadêmico abordar de forma ampla e exaustiva todas as questões pertinentes ao tema tratado. especialmente no que diz respeito à sua dependência para com o Direito. Os problemas estruturantes são promovidos por um positivismo ainda ligado à noção de separação entre sujeito e objeto e são derivadas da formação jurídica baseada na constituição do saber como sendo estritamente dogmático. 29-80). 35 . porém. o que pode ser interpretado como 26% da população brasileira de 2000. reintegrando alguma ou outra 5 Sobre os problemas estruturantes da crise paradigmática no campo jurídico verificar o diagnóstico realizado por Moreira no primeiro capítulo de sua obra (MOREIRA. p. apenas estas últimas serão tratadas. Antropologia e Cultura Jurídicas “dominante nas práticas jurídicas de nossos tribunais.Vol. 377 . 2012. 2011. p. Falcão (2008. fundada no Código Civil napoleônico. mas este também não é capaz de solucioná-los). não de forma exaustiva. Partem de problemas estruturantes e terminam nas dificuldades sentidas pela sociedade no cotidiano. 2012. Joaquim Falcão. fóruns e na doutrina” (STRECK.Sociologia. foi inspirado no Direito Romano. p. 33). A impossibilidade física de coerção legítima contra essas multidões protege os infratores e leva o Estado a tratar do problema com uma justiça por amostragem. 46-50) demonstra que em uma estimativa do Ministério das Cidades. os indivíduos dependem do Estado para solucionar determinadas questões. p. na exegese medieval e do método sistemático do racionalismo moderno (MOREIRA.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . com base no Censo 2000. O primeiro exemplo diz respeito ao direito de moradia e foi abordado pelo professor de Direito Constitucional da FGV. 46). Por essa razão. Já as dificuldades sentidas no cotidiano dizem respeito à proibição de exercer a tutela privada somada à ineficácia estatal para a solução de conflitos (ou seja. apenas exemplificativamente a fim de que a gravidade da denúncia realizada por Streck possa ser mais bem compreendida5. que por sua vez. se for considerado uma média de quatro pessoas por família. 12 milhões de famílias vivem em habitações ilegais. 2 PROBLEMAS DERIVADOS DO PARADIGMA BRASILEIRO ULTRAPASSADO As questões complexas que se enfrentam no Brasil por conta da utilização de um paradigma jurisdicional que não coaduna com os propósitos do Estado Democrático de Direito são dos mais variados tipos e espécies. do IBGE. entre as questões estruturantes e as questões cotidianas. a qual se revela como uma característica predominante do povo brasileiro (GARCIA. p. No entanto. quando um microbem ambiental é atingido. a proteção à maternidade e à infância. p. 48) revela que este problema não diz respeito a um tipo de transgressão que não consegue ser coibido ou punido. 119). o direito de propriedade legal (adquirido de acordo com o conjunto de normas que o tornam legalmente reconhecido) não consegue ser ofertado na mesma velocidade em que é demandado pela população. Muito ao contrário. a questão do direito à moradia permanece impossibilitada de receber qualquer tipo de solução. ele pode ser tutelado tanto por uma esfera coletiva como por uma esfera individual. como o próprio direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. se trata de uma grande inadequação de nosso paradigma legal. Primeiramente. 7 Microbem ambiental é aquele restrito à esfera privada de um ou mais individuo. 378 . a alimentação. O segundo exemplo faz parte da seara do Direito Ambiental. A consequência óbvia deste descompasso é o alto volume já mencionado de moradias ilegais. usado e trocado” (SOTO. 6 Art. “mas como um consenso entre pessoas de como este ativo deve ser possuído. 2004. 2012). o trabalho. 2004. a moradia. a segurança. ele não possui uma regulação satisfatória no âmbito judicial para a atuação individual. o lazer. a ação civil pública e o mandado de segurança coletivo (GARCIA. Assim. quando se trata da tutela de um bem ambiental essencialmente difuso (macrobem ambiental). 2004. conforme o apontamento feito por Streck (2011. fundamentada no direito de vizinhança (GARCIA. a previdência social. a saúde. 111). 6º São direitos sociais a educação. Apesar de o sistema processual brasileiro possuir importantes instrumentos para a tutela jurisdicional dos bens difusos. p. Na esfera coletiva. 47) fica demonstrado claramente a confissão constitucional de que a função social prometida pelo Estado não está sendo cumprida. p. torna-se claro que as normas legais brasileiras não refletem esse consenso. Portanto. sob o atual paradigma arcaico. Em outras palavras. 48). Em outras palavras. p. na forma desta Constituição (BRASIL.Sociologia. p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A partir deste conceito. apud FALCÂO. Antropologia e Cultura Jurídicas posse aqui ou ali. apenas as três possibilidades anteriores estão disponíveis no ordenamento brasileiro. Por causa das características multidimensionais do bem ambiental. a propriedade não pode ser considerada como um ativo em si. a assistência aos desamparados. Falcão (2008. 121).Vol. os instrumentos processuais disponíveis são a ação popular. a possibilidade de ação prevista para a proteção ambiental está limitada apenas aos microbens ambientais7. 2008. Já na esfera individual. mas apenas o direito subjetivo do sujeito lesado que o legitime a ingressar em juízo. 35 . O paradigma legal do direito de propriedade não é compatível com o direito fundamental à moradia6 garantido pelo Estado Democrático de Direito. não se está atingindo à coletividade. União. percebe-se que.Sociologia. 5° da Lei 7. 2004. a única possibilidade para um indivíduo ingressar em juízo para tutelar um macrobem ambiental seria a ação popular. Municípios.Vol. Isso ocorre porque o litigante habitual tem a possibilidade de calcular o custo que terá de 8 Art. Portanto. a ação popular possui como pressuposto de cabimento um ato lesivo ao bem ambiental relacionado com as atividades do Poder Público (GARCIA.347/85 modificado pela Lei 11. 35 . 379 . poluindo o ar. Infelizmente. O indivíduo muitas vezes não tem o seu direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado respeitado e. p. fundações. Nestas hipóteses.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . p. sociedades de economia mista e associações que estejam constituídas há pelo menos um ano e inclua entre suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente8 (BRASIL. empresas públicas. se beneficiar de uma economia de escala propiciada pela litigância em vários conflitos. o rio ou o mar). Estados. No entanto. se um grande empreendimento privado estiver causando um dano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (como por exemplo. autarquias. o dano causado apenas poderá ser objeto de ação civil pública proposta pelo Ministério Público. por causa dos pressupostos processuais e condições da ação de cada uma delas. 122-123). Esse problema já havia sido identificado nos Estados Unidos por Marc Galanter (1974) (que serviu de base teórica para Cappelletti e Garth) e se resume na capacidade do litigante habitual em planejar o litígio. em poder estabelecer um relacionamento informal com os serventuários da justiça derivado de uma presença assídua nos fóruns e tribunais. se nenhum dos legitimados agir. nenhum indivíduo é parte legítima para propor ação contra ele. Defensoria Pública. O terceiro exemplo contempla o Direito do consumidor. É possível verificar que grandes corporações do setor privado preferem se situar no polo passivo das demandas (por causa dessas vantagens) após verificarem que cumprir as normas legais se tornaria mais dispendioso do que deixar de fazêlo. Uma das dificuldades abordadas por Cappelletti e Garth em sua obra “Acesso à Justiça” (1988. 25) diz respeito à disparidade processual existente entre um litigante eventual e um litigante habitual.448/07. nada pode fazer a respeito em face das normas infraconstitucionais existentes. 2007). Nota-se novamente que existe um direito fundamental estabelecido pela Constituição que não é amparado pelo paradigma jurisdicional existente. Antropologia e Cultura Jurídicas Diante destas três possibilidades. em diluir os riscos nas suas demandas e em testar diferentes estratégias dentro de um mesmo juízo ou juizado para poder verificar com qual delas se consegue obter um melhor resultado. percebe-se no Brasil a larga utilização destas vantagens processuais em face dos consumidores. no Brasil. Além disso. Antropologia e Cultura Jurídicas arcar cumprindo a legislação e. O quarto. ainda era alegada pelo polo passivo falta de previsão orçamentária para cumprir as políticas públicas previstas no mérito da ação.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. Mesmo nas hipóteses em que isso não ocorre. desistir dos seus direitos e/ou de uma indenização pífia do que enfrentar o incômodo rito processual brasileiro. ainda é preciso obter previsão orçamentária em um governo diferente daquele contra o qual a ação foi proposta9. também. que é completamente diferente de sucesso puramente formal de procedência da ação). Com base nessa ponderação puramente econômica e financeira. um assunto complicado por causa da ausência de legislação específica (não deveria. por muitas vezes. o início da execução da política pública só é autorizado pelo Poder Judiciário quando. infrações aos direitos de toda uma coletividade de consumidores que. preferem. o atual paradigma não prepara os profissionais do Direito para enfrentar os problemas que devem ser superados pelo Estado Democrático de Direito. diz respeito ao controle judicial de políticas públicas. estimar o custo judicial que terá com a falta deste cumprimento. ao menos em forma de direito positivo. uma legislação que prevê um mecanismo para impedir ou prevenir esse tipo de atitude danosa a toda uma comunidade. Este último exemplo provavelmente demonstra melhor que qualquer outro o abismo que separa o paradigma em que o Direito brasileiro atualmente está assentado das necessidades sociais existentes. em trâmite no Tribunal de Justiça de São Paulo. promotores e advogados públicos atuam dificulta em muito o sucesso nesse tipo de ação (sucesso prático. dez anos após a propositura da ação. o trânsito em julgado desta ação ocorre vários anos depois da propositura.Sociologia. torna-se comum. Como consequência. 35 . quando esta dificuldade é superada e uma ação judicial é proposta. decide como irá proceder. a realidade fática da sociedade já mudou. pelo simples transcorrer do tempo. desde o princípio. após o cumprimento desta etapa. ainda deve-se acompanhar todo um processo licitatório para que a politica pública de fato ocorra. individualmente. e último exemplo. a concretização de políticas públicas se torna. Como bem alertou Streck. Se não bastassem essas dificuldades. o paradigma jurisdicional em que os magistrados. Não existe no Brasil.155-5/0-00. Em outras palavras. a indenização punitiva (punitive damages) do direito estadunidense. movida contra a prefeitura de Ribeirão Preto. mas o paradigma positivista praticamente cega o jurista para o vislumbre de soluções não positivadas). como por exemplo. Assim. 9 No julgamento da apelação cível n° 242. foi verificado que. Sem sombra de dúvida. garantidas à sociedade pela Constituição. quando o trânsito em julgado é alcançado. 380 . por uma condução do processo realizado majoritariamente pelas partes. Nestas decisões. p. de interesse diametricamente oposto. Além disso.Sociologia. fazer ou prestar futuro pelo Estado. Quando se pensa em controle de políticas públicas.1284). Os exemplos foram propositadamente dados em diferentes áreas do Direito para demonstrar a grande abrangência da crise do Direito. Em decorrência disso. por um processo auto limitador. 1282-1283) demonstra que o paradigma tradicional de resolução de conflitos é caracterizado por um processo bipolar. condizentes com o propósito constitucional (CHAYES. 1976. gerenciando. 35 . do curso de Direito da Universidade de Harvard. 1976. na maioria dos casos. Qualquer outra área do Direito não abordada certamente possui seus próprios exemplos cabíveis neste mesmo escopo. as soluções processuais tendem a possuir um caráter mais assemelhado com um procedimento legislativo do que com um judiciário. Porém. não se pretende exaurir o tema (principalmente porque 381 . pois os interesses do Poder Judiciário e do Poder Executivo não são antagônicos. Chayes também sugere que nessas ações o juiz não ficaria limitado ao pedido exposto na petição inicial. escreveu um artigo extremamente relevante para o tema aqui abordado. ficando o magistrado limitado pela extensão do pedido da parte autora e. buscando a concretização do objetivo estatal. Antropologia e Cultura Jurídicas O professor Abram Chayes. retirando aquilo que era devido desta para satisfazer a lesão sofrida pela outra parte. p. não se busca reparar erros ocorridos dentro da lógica derivada da responsabilidade objetiva. 1302). na qual o dano ou lesão normalmente já ocorreu. esse paradigma tradicional do processo não se adapta à nova realidade. Nestes casos a solução dada ao problema não deveria ser imposta. No que diz respeito à fase executiva.Vol. não existe reparação de lesão pretérita. pois aborda justamente a questão de mudança de paradigma em face do controle judicial de políticas públicas. Chayes alerta que para esse novo modelo de litigância. há na verdade um dar. p. fiscalizando e administrando seu andamento (CHAYES. elas buscam soluções preferencialmente simples e flexíveis. conforme mencionado anteriormente. a decisão judicial final não deveria extinguir o envolvimento do magistrado no controle da política pública. pela interdependência entre a decisão judicial e o Direito estabelecido. por fim. o processo atual foi elaborado para que o Estado pudesse invadir o patrimônio de uma parte. não de pode pensar em partes opostas no processo. caracterizado por uma estrutura expansiva e amórfica. com partes antagonicamente interessadas. Chayes (1976. O escopo da ação seria flexível. Além disso. O magistrado assumiria parte da responsabilidade de sua implementação.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . pela litigância retrospectiva. são dirigidos aos objetivos constitucionais do Estado. mas negociada. Na primeira teoria sociológica. p. Não havia diferença de “classe social. seria apenas mais uma constatação de racismo ou preconceito já verificada por diversas vezes no curso da história. 35 . mas o fascinante foi ter sido verificado que não foi este o caso (ELIAS. p. 20). imutável frente às necessidades sociais. 2000. mas que acaba por retratar uma constante estrutural nas relações sociais. religiosas ou de classe. sexual entre outros de uma forma completamente diferente. chamada ficticiamente de Winston Parva. A questão talvez nunca fosse de fato a diferença de cor. José de Souza Martins e Afonso Carlos Marques dos Santos. ascendência étnica ou racial. 2000. podem explicar a força da imutabilidade do paradigma jurisdicional brasileiro. pois não havia nenhum além do fato de parte da população já estar assentada naquele espaço geográfico há algumas gerações e a outra parte ser nova naquele local. As pessoas do grupo de estabelecidos se declaravam superiores e inadvertidamente depreciavam os outsiders.Sociologia. Isso levou Elias a inclusive interpretar as questões de preconceito racial. Se houvesse diferenças raciais.Vol. sexo 382 . 24). credo religioso ou nível de instrução” (ELIAS. A segunda já trata de circunstâncias históricas específicas do Brasil. que as dificuldades apontadas por Streck podem ser encontradas em diversos segmentos jurídicos. um “tema humano universal” (ELIAS. religioso. A questão mais intrigante nesse comportamento observado diz respeito às diferenças existentes entre os dois polos de Winston Parva. criando apelidos pejorativos e atribuindo defeitos que não podiam ser empiricamente verificados (ELIAS. forasteiros ou imigrantes (os outsiders).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas os exemplos são provavelmente intermináveis). que unidas à teoria de Elias. Resta agora buscar diagnósticos que expliquem porque o paradigma jurisdicional brasileiro se mostra imutável por tanto tempo. p. 2000. Elias observou em uma comunidade da Inglaterra. p. 18-22). observadas pelos sociólogos José Murilo de Carvalho. com exemplos práticos. 2000. Pretende-se apenas demonstrar. nacionalidade. A primeira decorre das observações realizadas por Norbert Elias em sua obra “Os estabelecidos e os outsiders” sobre uma pequena comunidade da Inglaterra. 20-21). uma divisão muito clara entre o grupo de moradores antigos (os estabelecidos) desta comunidade com o grupo de recém-chegados. 3 DIFICULDADES PARA A MUDANÇA DO ATUAL PARADIGMA A PARTIR DE UM PONTO DE VISTA SOCIOLÓGICO Serão abordadas duas teorias de cunho sociológico que podem diagnosticar as razões pelas quais o paradigma jurisprudencial brasileiro se encontra estagnado. o que não é desejado pelos estabelecidos que já desenvolveram o habitus e já estão confortáveis com as posições 10 Poder nesse contexto utilizado por Elias não está diretamente ligado a uma pessoa poderosa. 2000. 2000. limitações. Essa estigmatização não ocorria por causa das qualidades individuais dos recém-chegados. Poder significa algo bem mais simples. “A peça central dessa figuração é um equilíbrio instável de poder. mas recusavam qualquer contato social com os recém-chegados e caracterizavam esses outsiders (não integrados e não coesos) como “pessoas de uma espécie inferior” (ELIAS. Os outsiders passavam a se sentir genuinamente inferiores. p. 22) e rotular outras pessoas como “inferiores” é uma das armas usadas por grupos estabelecidos para manter sua superioridade social (ELIAS.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. foi percebido que os recém-chegados. 2000. de uma figuração que ele acredita ser universal. esse estilo passa a ser regido por um conjunto de normas (padrões de condutas e comportamentos) considerado adequado entre os sujeitos que compõem essa unidade social (ELIAS. por assim dizer”. p. é capaz de transformar a estrutura estabelecida. acabavam aceitando. 2000. A comunidade de Winton Parva não era uma comunidade detentora de “poder”. p. p. Elias conclui que a raiz da questão é ligada diretamente com a manutenção de poder10 (ELIAS. Além disso. principalmente. com as tensões que lhe são inerentes” (ELIAS. em pequena escala. 2000. Essas diferenças talvez fossem utilizadas apenas como pretexto para justificar o preconceito. mesmo que esse quinhão de poder não fosse consideravelmente relevante. depois de algum tempo vivendo nessa comunidade e recebendo essa tratativa pejorativa. p. ao taxar os outsiders pejorativamente pretendiam. 2000. p. não convidado. 35 . de maneira resignada e perplexa.Sociologia. 23). a ideia de que eram parte de um grupo de menor respeitabilidade e virtude. Eles não apenas se consideravam superiores. pronto para ser testado e ampliado para unidades sociais correlatas maiores. como um político em cargo alto ou alguém capaz de influenciar uma comunidade. apesar de isso não se confirmar empiricamente (salvo a uma pequena minoria) (ELIAS. 2000. 23-24). de manter as coisas como elas estão. p. obviamente. O modelo de Elias pode ser compreendido da seguinte forma: quando um grupo social se torna estabelecido e atinge um estilo de vida. 383 . o motivo do preconceito. 20). Trata-se na verdade de status quo. Elias (2000. Mas por outro lado. porém. p. 20). a análise em uma pequena comunidade que comunga de problemas existentes em grandes sociedades “possibilita a exploração desses problemas com uma minúcia considerável – microscopicamente. de fato. Antropologia e Cultura Jurídicas ou religião. Elias construiu um modelo explicativo. O ingresso de um recémchegado. não perder o poder que possuíam. Seja qual for. Com base nessa premissa. 20-21) alerta que a pesquisa realizada em Winston Parva possui. A pesquisa em Winston Parva mostrou que os moradores antigos eram coesos e integrados. 25). 24). mas simplesmente por eles pertencerem a um grupo social diferente (ELIAS. o individuo busca sua satisfação através do reconhecimento de poder que as outras pessoas têm de si (ROSENFELD. reduz o status do estabelecido. 2001. Por isso. p. 2003. 2000. A alta eficácia deste mecanismo interno pode ser explicada pela teoria do reconhecimento12. Quando. por meio do convite de um membro estabelecido. que não coaduna com o paradigma e/ou com as condutas do grupo. um membro novo ingressa. 384 . não como um outsider. em um segundo estágio. 40). fofoca. para o sujeito se sentir realizado não basta possuir os bens que o torna poderoso. a teoria do reconhecimento estabelece dois estágios de comportamento humano na busca de uma satisfação pessoal. em outras palavras. p. mas como de fato membro do grupo11. Porém. p. a sensação atingida com a posse dos objetos se mostra apenas momentaneamente satisfatória. manter o paradigma existente imutável. por meio da contratação. Desta forma. 26). por meio do concurso público. o grupo estabelecido defende seu status quo utilizando. No estágio inicial. 12 A teoria do reconhecimento é fundamentada na fenomenologia de Hegel e na psicanálise de Lacan.). rebaixando-o na hierarquia do grupo (ELIAS. pré-julgamentos pejorativos. 11 O membro novo pode ingressar em um grupo estabelecido de diversas formas. ele precisa do reconhecimento dos outros sujeitos de que ele é poderoso. para o membro estabelecido no grupo. Antropologia e Cultura Jurídicas sociais e distribuições dos respectivos quinhões de poder. Em um grupo social religioso. Primeiramente. Em um grupo estabelecido em uma empresa. 2000. por outro lado. p. etc. como mecanismo de defesa. diversas formas de estigmatização contra o recém-chegado (preconceito. 113). Em outras palavras.Vol. em sua procura por poder. No caso de Winston Parva por meio do nascimento. Nancy Fraser e Charles Taylor. as opiniões de seus pares sobre seu comportamento estão diretamente ligadas com sua autoestima e autoimagem (ELIAS.Sociologia. Essa pressão do grupo estabelecido acarreta a submissão do recém-chegado por duas razões principais. é praticamente impossível para um membro receber o aval de seu grupo sem a submissão às suas regras comportamentais (ELIAS. 26). aquele que se destaca positivamente seguindo o paradigma estabelecido é recompensado com participação na elite do grupo e em seu carisma grupal singular. 35 . Esse mecanismo de promoção e rebaixamento dentro do grupo estabelecido é extremamente eficaz e seu propósito é justamente manter a posição privilegiada de poder estável. 2000. Foi desenvolvida com maior profundidade nas obras de Axel Honneth. apud HEINICH. Sucintamente. esse conjunto de normas consideradas ideais é transmitido e se espera que o novo membro aja de acordo com o padrão estabelecido (ELIAS. o sujeito. Ao mesmo tempo em que. 30). o indivíduo tenta satisfazer seu desejo de poder através da posse de objetos. Em um grupo estabelecido de funcionários públicos. o contato do membro do grupo estabelecido com alguém de fora (outsider). de forma aceitável pelo grupo estabelecido. Por isso. Em contrapartida.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Desde então. Os outsiders jurídicos possivelmente sentiam a mesma resignação e perplexidade sentidas pelos forasteiros de Winston Parva e provavelmente muitos deles deram um passo atrás. p. Essa sedimentação do paradigma. Antropologia e Cultura Jurídicas acaba sofrendo um processo de alienação de seus próprios conceitos e passa a ter dependência da opinião alheia. 2003. A teoria do reconhecimento aliada à teoria dos estabelecidos e outsiders certamente pode ser aplicada ao caso brasileiro para explicar porque o paradigma liberal-individualista continua influenciando a forma com que o Direito é gerado. revendo seus conceitos. cada integrante novo aceito pelos estabelecidos passou a receber as premiações por aderir o paradigma ou os rebaixamentos por não fazê-lo. a família real e outras centenas de nobres ligados à realeza abandonaram seu país natal e cruzaram o oceano rumo ao Brasil 13 No Brasil. por outro lado. Aquele que viola o paradigma é rebaixado. que utilizaram recursos muito similares aos descritos por Norbert Elias para desmoralizar e fragilizar os juristas violadores do paradigma estabelecido. Quando o paradigma do grupo estabelecido não é seguido. Afinal a autoestima depende deste tipo de reconhecimento positivo. por si só. para tentar sair da condição de outsider e tentar caminhar entre os estabelecidos. interpretado e reproduzido por aqui. em especial pelos tradicionalíssimos acadêmicos da USP. porém no Brasil há um contexto histórico que agrava ainda mais o problema. Imediatamente esse movimento sulista foi execrado pelos estabelecidos positivistas.Sociologia. ele perde poder (ROSENFELD. 35 . Nas vésperas da invasão napoleônica a Portugal. o oposto ocorre. a busca pelo reconhecimento inerente à grande maioria dos seres humanos faz com que o paradigma criado pelo grupo estabelecido se perpetue no tempo. auxiliando a permanência do paradigma. Trata-se da segunda teoria sociológica que diagnostica o caso brasileiro e cuja análise se inicia com a chegada da família real ao Brasil.Vol. Assim. perde reconhecimento e. apenas aqueles que seguem o paradigma recebem o reconhecimento do grupo e o poder correspondente a esse reconhecimento.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Quando ele perde reconhecimento. Ele só consegue se sentir realmente detentor de poder se conseguir a aprovação dos outros sujeitos nesse sentido. Em determinado momento histórico esse paradigma foi construído por um grupo brasileiro (ou português) estabelecido. sua autoestima. um grupo de juristas do Rio Grande do Sul no final dos anos 80 e início dos 90 propôs um novo paradigma para o Direito – o Direito Alternativo. já seria suficiente para explicar o porquê da manutenção deste modelo antigo. pois graças aos mecanismos internos de ascensão e rebaixamento social dos membros. 385 . cada grupo social novo que tentou propor um paradigma diferente sofreu a estigmatização negativa tal qual um outsider de Winston Parva13 e. consequentemente. 31-32). servia para desencorajar outras rebeliões. Imediatamente um fenômeno similar ao dos estabelecidos e os outsiders se iniciou no Brasil. 1992. não havia nenhuma interdependência entre príncipe e vassalo. Como não havia entre os recém-chegados e os estabelecidos no Brasil um sentimento de pertença que pudesse evitar a série de tensões ligadas ao desequilíbrio de poder que passou a ocorrer no Brasil e. uma classe social superior a qualquer outra estabelecida no Brasil. a consequência natural deste choque foi a incapacidade de se manter a paz ou de evitar o surgimento de movimentos de resistência (QUINTANEIRO. Essa forma violenta de repressão popular funcionou tão bem no Brasil que se tornou uma espécie de paradigma para os governos futuros. pois estas punições de caráter disciplinar atingiam os resultados pretendidos com bastante eficácia (SANTOS.Vol. Esta punição. O que passou a acontecer a partir do início das insurreições brasileiras é de fundamental importância para a compreensão da segunda teoria sociológica. por exemplo. Porém. mas que nunca chegou a se transformar em conjuração. p. Durante o Brasil Império e também na 386 . Ao contrário dos outsiders de Winston Parva. Por essas razões. p. p. seus integrantes representavam a aristocracia portuguesa. 1992. Por causa destes dois fatores. havia duas principais diferenças. aliadas às próprias investigações que ocorreram por lá na capital. suas famílias e patrimônio. p.Sociologia. o grupo de recémchegados ao Brasil possuía uma forte coesão entre seus integrantes e. 51). os movimentos separatistas passaram a ocorrer no Brasil. os mecanismos de defesa usados normalmente pelo grupo estabelecido para defender seu quinhão de poder eram totalmente inúteis contra este grupo estrangeiro em particular. Quando chegaram ao Brasil. abafavam por meio do medo e do terror os ideais separatistas de qualquer cidadão (SANTOS. além disso. transformada em espetáculo. 35 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . várias famílias foram desocupadas de suas habitações para que os portugueses pudessem se instalar. Antropologia e Cultura Jurídicas fugindo das forças armadas francesas. 2010. O exemplo mais famoso desta época foi da Inconfidência Mineira e de Tiradentes. 1992. indicando que parte do povo brasileiro passou a desejar a libertação de Portugal (SANTOS. também. havia no mesmo período uma insatisfação compatível com aquela que havia em Minas Gerais. esquartejado. 54). 114). No Rio de Janeiro. que foi enforcado em praça pública. As notícias que chegavam ao Rio de Janeiro sobre os horrores cometidos aos revolucionários mineiros. Os diversos movimentos que aconteceram durante o Brasil colônia foram rechaçados com extrema violência. 5457). teve seus restos salgados para retardar a decomposição e expostos ao público. . que abordou a venda de títulos falsos de nobreza por um malandro.] A política era tribofe. Ao menos era essa a conclusão de alguns historiadores e estrangeiros da época (CARVALHO. 1987. sabia que não havia caminhos de participação. p.Vol. Essa cultura formada no Brasil é a chave para se compreender porque os paradigmas oficiais. p. gozador. 158). ocorrendo de cima para baixo (HOLANDA. p. 142). 387 . o bestializado era quem levasse política a sério. 1987. 156). Essa série de repressões violentas que ocorreram durante toda história brasileira forjaram no Brasil uma cultura do medo (SANTOS. Ele era. 15 “O Bilontra” era o nome de uma revista fluminense. aparentemente. vários outros movimentos sociais ocorriam de baixo para cima. 141). Apesar de o movimento político republicano ter sido predominantemente aristocrático. No entanto. era o que se prestasse à manipulação. A conclusão que Carvalho chega é que o brasileiro da capital (Rio de Janeiro) não poderia ser taxado de bestializado. p. p.. 1995. O termo bilontra significa espertalhão. obedece quem tem juízo”. 1981. Quem apenas assistia. 140-164) descreve em seu livro “Os bestializados” que. 1992. 50-80). o samba se alastrou por todas classes sociais e o futebol elitista branco foi tomado por negros (CARVALHO. José Murilo de Carvalho (1987. mas todos sem caráter político: o controle da festa da Penha foi tomado dos brancos e portugueses pelos negros. separatistas. 1987. [. 35 . as religiões da classe baixa. Uma cultura que acabou gerando uma série de saberes populares expressados por chavões do tipo “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”. Nessa perspectiva. messiânicas ou casos de banditismo eram massacrados pelas forças oficiais (MARTINS. 1987. Antropologia e Cultura Jurídicas República14. os movimentos populares continuavam a ser violentamente reprimidos independentemente de sua natureza – lutas camponesas. “manda quem pode.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . velhaco. de 1886. alguns anos antes já havia enviado também metade do efetivo nacional para aniquilar os rebeldes da região de Canudos na Bahia. 160). Era bilontra (CARVALHO. bilontra15. na verdade. p. estava longe de ser bestializado. doutrinado pela cultura do medo. de origem africana. 1987. tribofeiro (CARVALHO. O povo. 140). passaram a ser frequentadas por pessoas da classe alta. tendem a se perpetuar ainda mais do que deveriam por aqui. esse povo inativo revelava enorme iniciativa quando as ocasiões eram outras. paradoxalmente.Sociologia. entre outras. 160). como fazia o povo do Rio por ocasião das grandes transformações realizadas a sua revelia. p. p. 14 José de Souza Martins (1981. relacionados com o governo. [que] a República não era para valer. 26) menciona em sua obra que o exército republicano chegou a enviar metade de seu contingente para abafar a Guerra do Contestado no sul do país em 1914 e. como “organizações e festas de natureza não-política” (CARVALHO. ex-escravos e boêmios. o povo brasileiro se mostrava apático diante dos movimentos republicanos. p. p. Por um lado existe a noção de que a política não é séria. o paradigma jurisdicional liberal-individualista brasileiro. não é para o povo. apesar de não se poder afirmar que o caminho da mudança é fácil. cuja cidadania se percebe plenamente institucionalizada. existe o temor da severa reprimenda na hipótese de enfrentamento desta fachada.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . pelo outro lado. em um aspecto generalizado. recentemente. o Supremo Tribunal Federal 16 O governo do Estado do Espírito Santo. Todavia. portanto. Juntos. A questão da cidadania mencionada por Marcelo Neves já está adquirindo novos aspectos no Brasil. estabelecidos e bilontras brasileiros tornam os paradigmas oficiais (regidos por normas estatais) muito mais fortes do que quaisquer outros. O brasileiro. Este é o segundo fator que. fato que não parece ser concebível em um país de modernidade central. como foi o caso dos relógios eletrônicos. 35 .Sociologia. equipado com um canhão de água para dispersar multidões. se trata apenas de uma fachada onde se lê “Estado Democrático de Direito” e. no Brasil. As normas estatais não são regidas pelas leis do mercado e a vontade da população brasileira de consumir normas adequadas não conseguirá ser suprida pelos japoneses. reforça o mecanismo relatado dos estabelecidos e outsiders e mantém. pode-se afirmar que ele já está sendo trilhado. 2012). não se mostra atuante porque foi doutrinado a não se envolver com a política. Além disso. que essa cultura do medo foi reproduzida de forma integral até muito recentemente (especialmente durante a ditadura militar) e possui nos dias atuais uma significante representatividade16. Antropologia e Cultura Jurídicas Percebe-se. ou seja. anunciou em abril de 2012 a abertura de licitação para a compra de um veículo blindado. Apesar do problema do paradigma se mostrar antigo. ele não consegue ser rompido facilmente como foi o caso da fabricação dos relógios mecânicos suíços. por exemplo. 388 . O paradigma vem se sustentando por décadas e mais décadas por meio dos mecanismos sociais de manutenção de poder regidos pelos estabelecidos e pela esperteza de não se envolver com a política dos bilontras. para ser usado em protestos e manifestações populares (FIGUEIREDO. em estado de conservação perene. Processos judiciais coletivos já não são tão raros como há dez anos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A crítica realizada por Streck desde 1999 é sem sombra de dúvida real. O paradigma jurisdicional brasileiro elaborado a partir de uma ótica individualista é uma realidade que dificulta a atuação estatal nos mais diversos campos jurídicos quando o problema não se restringe a dois polos singulares e antagônicos.Vol. 448.Vol. Disponível em: <http://www. Abram. Os bestializados. (38 minutos): dublada. FALCÃO. 2000. por unanimidade. REFERÊNCIAS BARKER. José Murilo de. São Paulo: Companhia das Letras. Bryant. pp. CARVALHO NETTO. O Rio de Janeiro e a República que não foi. ELIAS. MOREIRA. Ed. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. n 7. 2012). 2012. Mauro. Rosana. 2012. Harvard law review. Joel A. CHAYES. 2012. Constituição [da] República Federativa do Brasil.) Cultura das transgressões no Brasil: lições de história. 2. 89. A Gazeta. Fernando Henrique.. Brasília. uma reedição da “Hermenêutica jurídica e(m) crise” seja desnecessária. vol. Vitória. 1988. The business of paradigms.youtube. Estados Unidos: Chart House International Learning Corporation. color. CARVALHO. 1987. em abril de 2012.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2011. Harvard. ed. Poder Legislativo. ed. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Marcílio Marques. Ray J. Transgressões coletivizadas e justiça por amostragem. 26 abr.com/watch?v=IkKnBjfuJ-8>. son. Menelick de. The role of the judge in public law litigation. FIGUEIREDO. 14. alguns paradigmas vem sendo substituídos. In: Revista de Direito Comparado.. Lei n° 11. ______. Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Viatura da PM: nova arma contra bloqueio de ruas.globo.Sociologia.com/ _conteudo/2012/04/noticias/a_gazeta/dia_a_dia/1208216-viatura-da-pm-nova-arma-contra17 O Supremo Tribunal Federal decidiu. Joaquim. 1281-1316. Acesso em: 06 dez. CHRISTENSEN. 16 jan. 3. BRASIL. 2000. 2007. [Trad] Ellen Gracie Northfleet: Porto Alegre: Fabris. de 15 de janeiro de 2007. Disponível em: <http://gazetaonline. vol. São Paulo: Saraiva. 35 . GARTH.. DF. Acesso à justiça. CAPPELLETTI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. a constitucionalidade das cotas raciais para garantir a reserva de vagas para o acesso de afrodescendentes e índios na Universidade de Brasília – UnB (SANTOS. (coord. 389 . Belo Horizonte: Mandamentos. 1976. 1988. Talvez. BRASIL. In: CARDOSO. mai. em breve. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. São Paulo: Saraiva. A sociedade brasileira está lentamente mudando e aos poucos. 2008. Antropologia e Cultura Jurídicas admitiu a constitucionalidade de algumas normas decorrentes de discriminações inversas 17. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 03. José de Souza. Disponível em: <http://g1. Antropologia e Cultura Jurídicas bloqueio-de-ruas. 110-137. Júlio César.lawforlife. 1999. Tania.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Amherst. São Paulo. 22). Direitos e garantias constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos. ed. Portal G1. 9. 176 p. v. GALANTER. n. 26 abr. 2012. A identidade do sujeito constitucional. KUNH. Belo Horizonte: Argvmentvm. 2004. No rascunho da nação: inconfidência no Rio de Janeiro. 2003. 2010. QUINTANEIRO. MOREIRA. Marc. Marcelo. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. n. Belo Horizonte: Mandamentos. Nathalie. Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural.Sociologia.com/educacao/ noticia/2012/04/stf-decide-por-unanimidade-pela-constitucionalidade-das-cotas-raciais. SANTOS. 2011. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração. MARTINS. Lenio Luiz. Belo Horizonte: Fórum. Acesso em: 12 dez. Os camponeses e a política no Brasil.html>.pdf> Acesso em: 10 dez. (Coleção Biblioteca Carioca. 36. Rio de Janeiro. sociedade e indivíduo na teoria sociológica de Norbert Elias. Turismo e Esportes. Why the ‘Haves’ Come Out Ahead: Speculations on the limits of legal change. STF decide. A estrutura das revoluções científicas. ed. Sérgio Buarque de. São Paulo: Companhia das Letras. Michel. 390 . por unanimidade. A multidimensionalidade do bem ambiental e o processo civil coletivo brasileiro.html>. Afonso Carlos Marques dos. STRECK. São Paulo: Perspectiva. HOLANDA. pela constitucionalidade das cotas raciais. 2001. Disponível em <http://www. Porto Alegre: Livraria do Advogado. Revista de Direito Ambiental.org. Entre Themis e Leviatã: uma relação difícil. HEINICH. Débora. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. GARCIA. 35 . 1995. Processo civilizador. São Paulo: Martins Fontes. 1981. Divisão de Editoração. 2007. Acesso em: 12 dez.globo. SANTOS. Nelson Camatta. out.Vol. 2012. ROSENFELD. Raízes do Brasil. 1992. 2012.uk/data/files/whythehavescomeoutahead-33. Law and Society Review. 10. 2012. 2006. Thomas S. 26. p. ______. 1974. Porto Alegre: Livraria do Advogado. NEVES. 9. ed. Petrópolis: Vozes. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura. 2012.-dez. A sociologia de Norbert Elias. Shapiro. Por suas características serem próximas às do fenômeno jurídico. 2 – Contratos. convenções e planos sociais. 6 – Considerações finais.Sociologia. ** Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UFMG. 35 . * 391 . Since these features are closely connected to jurisprudence. mas também a proteção dos projetos individuais daqueles que serão atingidos pelos propósitos desta racionalização. 3 – Coordenação e controle da comunidade. e das objeções realizadas a algumas interpretações passadas sobre a natureza do direito. Antropologia e Cultura Jurídicas Muito além do plano: objeções à visão de direito de Scott Shapiro. 5 . Teoria do Planejamento.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . é bastante interessante associar o direito à noção de plano como meio eficaz de coordenação social. which is apt to promote the Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 4 – A autodeterminação dos indivíduos e a história das instituições. apto a promover o desenvolvimento das comunidades que seguem seus padrões com perseverança. it is interesting to associate the Law to the notion of plans as an important and efficient means for social coordination. Positivismo Jurídico.O direito além do plano. voltada a uma ação diretiva. questiona-se até que ponto não só a coordenação e a estabilização do ambiente social. estão incorporados à concepção de direito em análise. em razão da especial atenção dedicada à estrutura analítica do plano. Crítica More than plans: objections to Scott Shapiro's conception of Law Abstract Cooperation among individuals for achieving a common goal through planning is a vibrant phenomenon in complex contemporary societies. Resumo A colaboração entre os indivíduos para o alcance de objetivos comuns por meio de planos é evento vibrante nas sociedades complexas atuais. Professor Adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais. Contudo.Vol. Thomas da Rosa de Bustamante* Mirlir Cunha** Sumário:1 – Introdução: o direito como plano. Palavras-chaves: Teoria do Direito. Key words: Jurisprudence. However. Introdução: o direito como plano No dia-a-a-dia. a interação decorrente do propósito do plano e da sua normatividade é relacionada ao direito. Shapiro. are embedded in the conception of law under consideration.1 frequentemente usam os planos para se comunicarem com o seu público e difundir a razão da sua existência e sua estratégia. E essa foi a notável contribuição de Scott Shapiro à Teoria do Direito. which is bound to a prospective agency. as relações vão sendo construídas e as condutas sendo disseminadas por meio de modelos mentais que serão colocados em prática. Ao realizarem essas atividades. it is questionable how far not only social coordination and stability. in the light of the special emphasis on the analytical structure of the plaw. O planejamento é uma importante atividade que permite às pessoas se projetarem a uma situação diferente e realizarem seus objetivos de acordo com as suas expectativas. Elas se organizam para concluir a faculdade. dentre as quais o Estado. elas esclarecem ao público o interno (funcionários e servidores) e ao externo (quem irá usufruir do produto ou serviço ou se tornar possível colaborador). A legitimidade do governo junto à população gera estabilidade e permanência de determinado grupo político no poder. As organizações. Com a mesma facilidade. elas contam com a participação de outras pessoas e também das instituições. 1 Nos países democráticos os governos precisam estreitar o relacionando com a população e desenvolver serviços e medidas que promovam a qualidade do bem estar desta visando aumentar o seu capital político. as pessoas fazem planos. Com base na estratégia estabelecida no plano. viajar para um local interessante. Critical Analysis 1. qual o seu propósito e o que dela esperar. and of the objections raised by certain interpretations of the nature of law. melhorar a alimentação. Ao fazerem isso.Sociologia. Antropologia e Cultura Jurídicas development of a community that follows its own standards in community that is determined to pursue its own goals. Não se leva muito tempo para associar as realizações pessoais com as corporativas. Planning Theory. A finalidade este esforço é a racionalização do processo de trabalho em prol de objetivos com reflexos coletivos. reunir os amigos. públicas ou não.Vol. 35 . 392 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Legal positivism. but also the protection of individual projects of those affected by the plans. Nas considerações finais. A pergunta orientadora desta reflexão é se a visão coordenadora do direito como plano é capaz de garantir a proteção dos indivíduos contra as arbitrariedades e abusos de quem possui o poder para traçar as diretivas da comunidade. ele defende que o progresso da coletividade depende da capacidade de seus integrantes levarem o plano a sério. que são pontos centrais de um modelo positivista como o defendido por Shapiro. este ensaio visa confrontar a proposta de Shapiro com a história das conquistas jurídicas e pretende discutir o seu alcance na promoção dos direitos fundamentais. Antropologia e Cultura Jurídicas Ao refletir sobre os fundamentos da obra do filósofo Michael Bratman. Já o item 3 visa a refletir sobre as noções de coordenação e controle da comunidade e sobre quem as exerce. Esta investigação começa pelo estudo do desenvolvimento das estruturas jurídicas segundo as concepções inauguradas a partir do Estado Moderno. A partir do item 4 alguns apontamentos mais críticos à proposta do autor serão enfrentados ao se discutir sobre os processos de elaboração dos planos e a participação dos indivíduos neste modelo de governança.Vol. o direito pode ser compreendido como um plano. por meio do seu fechamento. serão confrontadas com as funções de coordenação e controle realçadas pela proposta do autor em discussão. ocasiona uma série de discussões que afetam o núcleo da abordagem de Shapiro. Portanto. Shapiro identifica que algumas das premissas desenvolvidas pela ideia de coordenação através de planos. Será no item 5 que outras noções importantes para a Teoria do Direito. por sua vez. ou atividades cooperativamente compartilhadas (shared cooperative activity – SCA).Sociologia. será defendida a tese de que a teoria de Shapiro não enfrenta algumas das principais questões referentes ao direito como garantidor 393 . bem como o funcionamento do seu modelo hierárquico. convenções e planos sociais e seus reflexos no pensamento jurídico.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 35 . Logo. Esta preocupação com a segurança e a eficiência do sistema. O item 2 se concentra em relacionar historicamente as concepções teóricas de contrato social. como a proteção. além de refletir sobre como esses devem ser interpretados. como prática social fortemente caracterizada pela sua capacidade diretiva e normativa. Sem discordar que os planos são importantes práticas sociais consubstanciadas nos sistemas jurídicos. são similares aos fundamentos do direito. Atenção especial será dada à questão das escolhas dos indivíduos e sua autonomia de agir contra os planos e alguns aspectos da meta-teoria defendida por Shapiro. nos moldes como visa promover a teoria da integridade de Ronald Dworkin. de modo geral considera como primordial em sua análise o valor da autonomia da pessoa e da sua capacidade de disponibilizar parcela da sua liberdade em prol de um convívio social vantajoso. Uma das características da Modernidade. foi a construção do domínio da razão. Essa força diretiva a ser respeitada. Algumas dessas teorias foram as responsáveis por fornecer os subsídios para a discussão acerca da formação e legitimidade dos Estados Nacionais. Logo no início deste período.Sociologia. que teve como marco a confiança plena do homem na sua capacidade de abstração e realização. Antropologia e Cultura Jurídicas dos direitos fundamentais na sua noção instrumental de plano. o Estado se originou de um acordo entre sujeitos em torno de elementos essenciais da existência em coletividade. 394 . como a ideia de organização por meio de um contrato social defendida por Hobbes. A proposta contratualista é importante porque busca responder duas perguntas que circundam os mais variados tipos de sociedade. indivíduos sob condições ideais de liberdade e igualdade firmam um contrato hipotético acerca de uma concepção de ordem social. apesar das diversas nuances entre as propostas dos citados autores. Daí foi criado um modelo no qual cada um aceita a decisão de viver em grupo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 35 . no seu período de formação. que é constantemente renovado. quais sejam: a) o que a moral exige de nós? b) E porque devemos obedecer a certas regras? Acerca da primeira pergunta. surgiram teorias sociais que destacavam o fato de parte do desenvolvimento humano se dever a sua habilidade de viver em estruturas compostas por vários indivíduos de forma organizada e cooperativa hábeis a proporcionar certa vantagem diante dos desafios da natureza. O início da chamada sociedade organizada no ocidente repercutiu diretamente na rapidez com a qual o homem realizou a conquista geográfica e a subordinação da natureza ao seu interesse. Locke e Rousseau. convenções e planos sociais. A teoria contratualista. e de ser por ele acolhido mediante interesse pessoal. o será em razão do compromisso social assumido por todos. Segundo esta corrente. já que sem esta condição sua vida estaria em perigo. Contratos.Vol. Assim. que é muito importante na tradição filosófica e política liberal. 2. para os contratualistas. 201). 395 . os mecanismos de controle e coordenação social. A autoridade é vista agora como uma criação dos próprios indivíduos. O mundo que habitam não lhes garante a sobrevivência sem esforço. Desde o início do Iluminismo. O uso do poder coercitivo pela autoridade. junto com certa capacidade racional de planejar. O exame do modo real de organização das sociedades humanas revela certos aspectos padronizados ou comuns que podemos inferir serem condições essenciais de sobrevivência individual e coletiva. um poderoso instinto de sobrevivência como indivíduos e também de assegurar a sobrevivência de pelo menos suas próprias famílias e associados íntimos. que não podem ser justificadas recorrendo-se a abstrações ou entidades não-humanas (GARGARELLA. São também seres sociais cuja sobrevivência depende do sucesso de sua cooperação com outros de sua própria espécie.Sociologia. de acordo com as circunstâncias fáticas e condições avaliativas. Hart. esforço cooperativo. como proposta teórica. p. antecipar e entender as sequências causais que descobrem no curso da natureza. E.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . como alguns dos elementos primários do direito. Desde as primeiras teorias políticas liberais até as mais atuais. bem como a autoridade controladora dos mecanismos de direção social.Vol. Quanto a esses que podem ser considerados. 35 . há uma extensa preocupação com as questões ligadas à autonomia e liberdade comportamental do indivíduo. que o contratualismo. como parte de sua constituição emocional. nesse sentido.128). No centro do debate contratualista se situa a preocupação com a origem do poder da autoridade – pessoa ou grupo detentor dos meios hábeis a exigir obediência a suas ordens pelo uso da força respaldado pelo poder soberano (APPIAH. já afirmava que os seres humanos têm certa constituição física e emocional. na verdade. 2006. cujos reflexos são fortemente sentidos no direito. p. p. pelo nosso conhecimento das qualidades dos seres humanos e do caráter físico do planeta que habitam (MACCORMICK. 2008. ante a segunda pergunta. é legítimo em razão do contrato aceito consensualmente pela comunidade. Não é por acaso. O que se percebe após essas breves considerações é que esses temas vão se modificando ao longo da experiência. o contratualismo afirma que a razão pela qual devemos obedecer a certas regras é porque nos comprometemos a isso. sobre o problema da autoridade. de acordo com esta corrente. seguindo a tradição de Hobbes e Hume. na medida em que as comunidades vão se tornando cada vez mais complexas.14). Antropologia e Cultura Jurídicas o contratualismo responde: a moral exige que cumpramos aquelas obrigações que nos comprometemos a cumprir. tenha surgido e se tornado popular depois de uma época em que perguntas como as mencionadas só encontravam respostas por meio da religião. dentre outros. Eles têm. o contratualismo apresentou-se como a forma mais atraente de “preencher o vazio” deixado pelas explicações religiosas sobre as questões morais. 2010. são nítidas as referências às relações do indivíduo com o meioambiente. interpretar e selecionar padrões referentes às estruturas de cooperação e organização mais eficientes e (3) pela sua necessidade imperiosa de superar as adversidades decorrentes da sua própria fragilidade. as concepções contratualistas sofrem duras críticas e muitas reformulações. pois essas duas concepções já estão bem consolidadas no ideário social. 396 . Antropologia e Cultura Jurídicas Logo. reconhecer. além das que têm lugar entre grupos e entre grupos e meio-ambiente. Do mesmo modo. Com essa análise. O foco hoje se concentra na questão da legitimação. por meio da cooperação e da competição. observa-se que as noções anteriormente valorizadas e presentes nas teorias políticas e jurídicas. vão sendo substituídas por outras cada vez mais complexas. 35 .Sociologia. altera-se o foco das necessidades humanas. desigualdade e ambição. mais lógica e próxima da origem das práticas políticas e jurídicas do que da proposta que prega um acordo universal entre indivíduos em igualdade na natureza. percebe-se que os conceitos de Estado e de Soberania já não são encarados como antes. a concentração e a hierarquia de poder. como o processo. a justificação e pluralismo participativo (inclusão) nas decisões referentes às práticas sociais.Vol. o pano de fundo que se discute aqui é constituído (1) pelo o próprio sucesso da humanidade em se agrupar em associações direcionadas à realização de trabalhos capazes de superar as suas limitações e as adversidades da natureza. (2) pela sua capacidade inata de gerar. outros indivíduos. A noção de contrato tal qual primeiramente cogitada foi abandonada pela ideia de convenção. Com isso. Portanto.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . grupos. o mundo real se afasta do mundo físico e se torna cada vez mais simbólico. tais como a força. como retratado neste texto até agora. cada vez mais abstratas e complexas que dependem de maior aperfeiçoamento e sofisticação dos processos característicos de realização. de modo que o desenvolvimento ou destaque de uma de suas habilidades permite uma melhor compreensão ou enfrentamento do fenômeno urgente. Na medida em que as adversidades naturais vão sendo superadas. Os problemas concretos vão se tornando questões conjunturais referentes à atividade humana. Primeiramente. com a mudança das demandas sociais. São as características da própria espécie humana que influenciam as várias áreas do conhecimento e fazem o estudo dos ramos da sociologia e da sociologia aplicada serem tão interessantes. a noção de autoridade no estado contemporâneo é demanda estabilizada. Do início do século XX até o final da sua primeira metade. em razão da superação dos problemas de controle da política e do progresso econômico. as questões morais foram tratadas como externas ao direito. Antropologia e Cultura Jurídicas Desde então. discute-se sobre as expectativas comportamentais esperadas nas prováveis e improváveis circunstâncias e sobre a capacidade dos indivíduos de planejar modelos de atuação aptos a alcançar o desenvolvimento social e a satisfazer a realização de projetos pelo próprio indivíduo. mas apresentam uma continuidade na medida em que se ajustam às novas demandas e percepções sociais. Pode-se perceber nesta leitura a compreensão indutiva de que os modelos liberais não são contraditórios entre si. Como o foco neste momento era a segurança. p.Sociologia. não por meio de um único ato pressuposto . 2 Segundo Shapiro. 397 .54). o problema central passa a ser como preservar o legado institucional que é herdado por cada comunidade e utilizá-lo na reação às contingencias atuais. Com essa nova orientação. A ideia de contratos sociais justificadores da existência do Estado hierarquicamente superior é absorvida pela proposta de direitos como padrões decorrentes de práticas sociais capazes de orientar os indivíduos da sociedade. no qual os projetos de vida das pessoas passam a assumir certa relevância para as propostas jurídicas e políticas2. 60). nem garantir segurança às pessoas por meio da participação na produção dos padrões de conduta social utilizados para controlar. tem a sua posição de importância elevada a um novo conceito. p. 2009.Vol. 2011.a aceitação de um acordo -. porém. estão fundadas em uma regra última de reconhecimento que é uma convenção adotada pelos oficiais que aplicam o direito sobre os critérios de validade em um determinado sistema. as quais. observa-se uma redução da distância entre o Estado e os indivíduos e um aperfeiçoamento da ideia de autogoverno. A respeito desta preocupação. A continuidade da leitura linear da teoria política liberal permite reconhecer que não bastou apenas institucionalizar a associação humana através do Estado. o valor do direito está em dizer às pessoas que delas será exigido fazer algo apenas se quiserem realizar certo fim (SHAPIRO. 35 . por sua vez. a proposta de Hart objeta a visão de normas como comandos que dizem às pessoas o que elas devem ou não fazer. O Estado. uma proposta que busque impor maior coordenação à atividade coletiva precisa ser inaugurada. que deveria ser visto como um sistema fechado capaz de ofertar a previsibilidade necessária ao desenvolvimento das atividades humanas. Mas ao homem não basta apenas estabilizar. Isso ocorre porque elas serão inseridas no processo de governo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . além de ser visto como resultado da ação coletiva das pessoas. orientar e planejar a vida (HART. E esse movimento deve ser realizado de forma eficiente e otimizado. para ele é importante também progredir. Por isso. mas devido à capacidade que detêm de interferir criticamente na produção da convenção e no reconhecimento dos padrões jurídicos de conduta (regras) que lhes serão impostos. Por meio da sua proposta de descrever a validade das regras jurídicas como derivadas de outras “regras que conferem poderes” (power-conferring rules). a vontade governante e. cuja ideia de direito como plano será discutida nas próximas seções deste trabalho. a visão de direito como ordem estatal dotada de coerção se desenvolveu em várias matrizes do pensamento liberal. logo depois. Como resultado dessa mudança de postura. ocorreu o abandono paulatino da formatação inicial das ideias sobre o contrato social. a leitura linear das teorias políticas liberais é um esforço construtivista dedicado a enxergar as contribuições de cada trabalho e.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 3. a vontade do legislador (mens legis). tomando como início as demandas que eles contornaram. até este ponto.Sociologia. sem a necessidade de justificação. Coordenação e controle da comunidade Como já alertado no item anterior. 35 . Primeiramente porque. a princípio. demonstrar contra quais pressupostos suas premissas se insurgiram. que permitia à autoridade arbitrariamente adotar quaisquer decisões. antes de tudo. se se pretende repassar o mínimo de informações possíveis sobre uma dada proposta. partir para o enfrentamento de outras tensões no sistema político e jurídico. Esta nova proposta começou recentemente a ser discutida após a publicação da obra Legality. deixando-as alheias às proposições públicas. A noção de direito como ato de constrição foi destacada devido à necessidade de se impor ao grupo as diretrizes Estatais. Como historicamente foi privilegiada. Esta posição. nenhuma crítica foi levantada em desfavor de qualquer teoria apontada. Este entendimento prevaleceu até enfrentar grave crise e ocasionar alternativas às reivindicações de estabelecimento de um Estado onde os comandos de coordenação social passassem a ser justificados e a fundamentação para as decisões (as leis) fosse construída com base em um sistema jurídico que seria construído por todos os interessados. a ideia de autodeterminação foi preservada e 398 . principalmente por se concentrar nos poderes das autoridades estatais orientadas por interesses pessoais ou de certos grupos da elite. Shapiro. Antropologia e Cultura Jurídicas Busca-se dar maior relevância à funcionalidade da capacidade de organização social por meio do direito. ou seja. é plano responsável pela eficiência social. não reconhecia as demandas sociais como legítimas e sobre elas não demonstrava preocupação. primeiramente. registra-se que muitos foram os questionamentos em desfavor daquelas interpretações da prática política e jurídica que favoreciam a posição soberana do Estado.Vol. no entanto. Acredita-se que foi possível observar que. no entanto. Desse modo. agora visto como dotado de função que vai além da proteção aos projetos de vida. tende a mudar de agora em diante. de Scott J. Esta postura. deve-se. VERMEULE. menos sujeito ao escrutínio e à intervenção dos interessados do que o processo legislativo3. Assim. passaram a ser considerados como importantes fontes da atuação estatal e reconhecidos como expressão jurídica da autoridade do Estado. A desconcentração do poder. sob o prisma do ponto de vista interno (de quem lida com as reivindicações sociais e conhece o sistema jurídico). Sunstein e Adrian Vermeule sustentam que os órgãos da administração (administrative agencies) devem. Além das dúvidas quanto ao benefício da ampliação da participação política por meio de novas instâncias decisórias. de acordo com o texto constitucional.950).Vol. para que este. recentemente. deveria adotar uma postura minimalista (VERMEULE. a 3 Jeremy Waldron argumenta que a revisão judicial da legislação não é geralmente apropriada como um modo final de decisão em uma sociedade livre e democrática. teoria do direito se depara com a demanda por aperfeiçoamento das ações públicas na gestão do interesse de todos e do que é público4. VERMEULE. pois eles estão em melhor posição para saber se um resultado particular.Sociologia. 35 . O judiciário.1406). a falta de previsibilidade dos julgamentos passaria a ser tão inapropriada quanto a arbitrariedade do governante ou do legislador. ao contrário do judiciário. é ou não sensato (SUSTEIN. p. inclusive o estatal. Antropologia e Cultura Jurídicas aperfeiçoada ao ganhar conotação política mais abrangente. embora apresente aspectos positivos. o ganho de eficiência do Estado. especialmente dos que atuam junto ao poder judiciário (advogados. p. 2006. O desenvolvimento tecnológico e das técnicas de gestão da iniciativa privada resultaram na concentração de um conhecimento técnico altamente especializado que exerce pressão sobre o desempenho produtivo. e não representa necessariamente maior proteção ou segurança em razão das especificidades do processo judicial. Cass R. Isso porque esses órgãos bastante especializados detém o conhecimento técnico mais adequado para avaliar as situações complexas referentes a sua área de atuação (SUSTEIN. por carecer de conhecimento técnico adequado e ter dificuldade de lidar com dados empíricos. 2009). No entanto. promotores. 4 Nesse sentido. 2003. Logo. diz-se que o Estado passou por gerações: a patrimonialista.889). não agrada a todos porque desconsidera a perda de esforços que o debate nas instâncias políticas ocasiona ao se adiar a obtenção de uma definição conclusiva. 2003. e magistrados). E esses atores. nestas circunstâncias. mesmo não visando ao lucro. pois os membros desta discordam seriamente sobre qual é o direito e. Essa conduta enfraquece. pois ameaçava a sistematização do modelo e a sua estabilidade. deixaram de ser apenas a “boca da lei” para se tornarem agentes aptos a identificar os padrões convencionados que devem ser preservados e aqueles que estão em conflito com a necessidade social atual. 399 . venha promover os seus serviços com a melhor relação custo benefício e com a maior eficácia possível. como o legislativo (WALDRON. segundo esses descontentes. Os atos dos oficiais.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . devem prevalecer as decisões que resultaram dos procedimentos que ouviram a voz da maioria das pessoas. a partir da segunda metade do século XX. os atos e manifestações adotados ou rejeitados pelos indivíduos passaram a ter conotação política e importância jurídica quando encarados como comportamentos criticamente aceitos. p. possuir certa flexibilidade e discricionariedade. planos. Os estados capitalistas. 35 . também desenvolveram suas estratégias de atuação e desenvolvimento5. 400 . Boa parte dessa tendência a planificar e aperfeiçoar a atuação pública é decorrente dos esforços em demonstrar qual modelo político possui as melhores condições de se desenvolver e demonstrar sua força. de telecomunicações. energética. não menos competitivos. Logo. bem definidos e compartilhados. é traduzido em números e estatísticas capazes de apresentar tendências que possam vir a ser controladas e verificar os resultados do plano. teve-se no Brasil a ação por meio de diretrizes motivadoras da iniciativa do Estado consolidadas em planos nos quais eram importantes participantes as Empresas e Instituições de públicas voltadas para o estímulo do desenvolvimento econômico de determinados setores estratégicos. por exemplo. consequentemente. e a mensuração de índices e indicadores passa a ser constantemente considerada por meio de séries históricas como um aspecto da vida humana. percebe-se que os planos por eles elaborados não eram dotados das condições necessárias ao seu sucesso (SHAPIRO. as noções de projetos. como a indústria siderúrgica. mas em processos que representam ganhos de resultados hábeis a melhorar a qualidade da gestão da coisa e do interesse públicos e. Também nos anos de 1990. Ao longo do século XX. Os planos soviéticos de desenvolvimento em ciclos. dentre elas a possibilidade de alinhar condutas dos indivíduos em prol de objetos claros.Vol. a gerencial (CHIAVENATO. habitacional e outros. o sistema financeiro. Fato é que os planos são instrumentos bastante efetivos de desenvolvimento coletivo e possuem muitas vantagens estratégicas. inclusive. por exemplo. agora. p. como o Brasil. Com isso. 2011. Pelo curso histórico. de modo estável durante o seu período de realização. o plano representa a resposta de uma racionalidade instrumental aos desafios enfrentados pela comunidade política em seu 5 Citando Hayek. 1970 e 2000.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2006. a partir de agora. Em muitos países. o aumento do capital político dos grupos que estão no controle do poder público. o foco não é mais em ações.155). Atualmente. Shapiro afirma que o socialismo não foi o único modelo político que defendeu o comprometimento com planejamento social.Sociologia.120). sistemas e outras ferramentas da gestão são adaptadas à realidade pública. cujo resultado afetou todo o ciclo produtivo do país naquele período. é comum a estruturação de planos de desenvolvimento econômico e social da nação. houve o desenvolvimento de planos caracterizados pela redução da atuação estatal por meio das privatizações e de um rígido plano de controle de austeridade que foi sugerido pelas principais Instituições Financeiras Internacionais (FMI e Banco Mundial). p. Tudo. são famosos e representaram o primeiro esforço em prol da sistematização e eficiência da administração estatal. Antropologia e Cultura Jurídicas burocrática e. nas décadas de 1930. 1950. após a morte de seu fundador e CEO. inaugura esta visão do direito e foi muito bem recepcionada pela doutrina positivista. 401 . ao serem implementadas. os sistemas jurídicos são instituições de planejamento social. Como acima discutido. que se pretende atingir diante desse contexto. por ele denominado de “plan positivism”. há a racionalização do trabalho. a própria história demonstra que as novas demandas requerem meios mais sofisticados de organização social. Há algum tempo as práticas sociais recorrem à noção de planos para o desenvolvimento econômico. para as empresas não é importante apenas ter boas vendas e produtos de qualidade. Isso porque. não é de se estranhar a associação entre direito e planos. O direito busca superar as deficiências das formas alternativas de planejamento. por exemplo. Assim. tem discutida a sua capacidade de inovar e continuar na liderança tecnológica do desenvolvimento de produtos de alto interesse comercial. permitam que a visão de futuro seja atingida. atualmente. A teoria do direito como planejamento. ela lança luzes sobre aspectos importantes a respeito da capacidade de coordenação do direito e do papel da autoridade (WALDRON. visando ao alcance de objetivos políticos6. estes indivíduos comprometidos serão também capazes de executar as correções devidas no processo a tempo. Desse modo.Sociologia. De fato. apesar de ser uma das empresas de maior valor do mercado mundial e campeã de vendas em todo o planeta.Vol. pela empresa norte-americana de tecnologia Apple que. dentre as quais se situam os outros sistemas de controle de comportamento. Portanto. por ser 6 Mesmo no mercado. tendo em vista a capacidade normativa destes últimos na promoção de padrões e definição de comportamentos.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . social e gerencial. 35 . 2011. cujas atribuições são comungadas por meio das expectativas sobre a atuação de cada um no desenvolvimento dos ciclos do plano. Segundo Shapiro. como o moral por exemplo. desenvolvida por Scott Shapiro. Este é vivenciado. o trabalho analítico descreve as medidas e distribui atribuições que. otimiza-se a atuação das pessoas e o emprego dos recursos através de previsões desenvolvidas previamente e do compartilhamento dos papéis a serem desempenhados. Steven Jobs. Mesmo nos casos de circunstâncias adversas. Elas precisam demonstrar aos seus acionistas que são competitivas e capazes de gerar lucro a estes por muito tempo. preservando o bom funcionamento do planejamento. pode-se dizer que o objetivo do plano também é político e não voltado apenas para resultados produtivos. Antropologia e Cultura Jurídicas ambiente natural. Além de motivados. 891). Esta racionalidade pretende identificar qual é o cenário atual em que a comunidade está inserida e qual é o cenário mais favorável. Essa socialização dos papéis e resultados faz com que os responsáveis pelas atividades se sintam envolvidos e executem as suas tarefas com a precisão prevista pelo padrão traçado pelo plano. mas também de seu poder de coordenação do comportamento dos participantes’ (SHAPIRO. o direito desempenha um papel divisor na resolução dos problemas de coordenação porque seu caráter autoritativo (authoritative) tem um valor especial. p. conforme explica Dworkin. 7 O autor sustenta.8 Shapiro inaugura sua visão sobre o direito partindo da premissa de que os seres humanos são criaturas que planejam. 9 Em razão desta postura.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . este é o âmbito do plano (SHAPIRO. visando obtê-los.885). p. p. expressada em limites impostos pelos planejadores sociais à atividade de alguém. Antropologia e Cultura Jurídicas entendido como o último estágio da decisão. Desse modo. 2011. 35 . 276). nos contextos em que se fazem necessárias decisões e pautas para a coordenação social que não podem ser derivadas diretamente da moral – são tão altos que nenhuma sociedade estável ou legítima é capaz de sustentar eles. De acordo com a Tese do Objetivo Moral. 119). Dworkin refuta este argumento dizendo que trabalhar em prol de algo não significa estar seguindo convenções. 402 .Sociologia. 2011. submetendo-o a estrita e inflexível variação do plano e regulação (BUSTAMANTE. a Tese do Objetivo Moral do Direito (Moral Aim Thesis). 501). é dizer. Com base na teoria sobre planos de Michael Bratman. 2012-a. 134). p. Logo. Coleman argumenta que essas formas coletivas de realização são convenções. mas sustenta uma identidade de características essenciais desses dois conceitos. mas apenas desenvolver atividades interpessoais. em razão do crédito que a função a ser desempenhada deve gozar. 2011.Vol. De acordo com Shapiro. 2011. 171)7. também busca fundamentar sua opção pelo positivismo na teoria de Bratman. Essa premissa é por ele denominada de “economia da confiança”. como coloca o próprio Bratman (DWORKIN. Ao contrário de Shapiro. ele acredita que há outros domínios nos quais a norma jurídica pode ser encontrada que não no da moral. p. e significa a distribuição de poder a uma pessoa ou grupo permitindo-lhe agir com maior nível de discricionariedade. Para o autor. 2010. pois as condições de existência dos planos (aqui não vistos como apenas meras intenções) e do direito são as mesmas porque as normas fundamentais do sistema jurídico são planos (SHAPIRO. o qual deriva ‘não apenas da sua habilidade de diminuir o custo da deliberação e compensar a capacidade cognitiva. p. por compreender as normas e a atividade regulamentada pelo direito como uma forma de atividade cooperativamente compartilhada (SCA). 119)9. o direito é entendido como um conjunto de planos adotados pela comunidade e a atividade jurídica é uma atividade de planejamento na qual as instituições sociais dizem para os integrantes da comunidade o que eles podem ou não podem fazer com base na estrutura do planejamento elaborado pelos dotados de autoridade discricionária (WALDRON. que significa que o objetivo fundamental da atividade jurídica é o de corrigir as deficiências morais das denominadas "circunstâncias de juridicidade". nesse contexto. Os custos e riscos associados com qualquer forma de deliberação não-jurídica nas denominadas “circunstâncias de legalidade” – é dizer. São as autoridades dotadas de legitimidade jurídica que provêm as definições em casos de conflitos (SHAPIRO. sendo dotados de capacidade de realizar objetivos em coletividade e organizar seu comportamento para além do necessário. dos contextos de complexidade das relações sociais que reclamam uma regulação efetiva da conduta humana e uma cooperação e coordenação entre os seus membros para uma finalidade comum. entretanto. 8 Coleman. Shapiro não propõe uma mera analogia entre regras jurídicas e planos. planos são sofisticados mecanismos de gestão da confiança e desconfiança ao distribuem credibilidade (por meio da autoridade) a alguns agentes para compensar a ausência dessa mesma credibilidade em outros. ou um baixo nível de confiança. 2011. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Os planos podem ser individuais ou coletivos.Sociologia. sob a coordenação do plano (inside the box) terão a sua conduta influenciada e controlada. 1983. A habilidade de fixar planos habilita. Esse sistema de 403 . Os objetivos do plano são estimulantes. pois tendem a ser materializados por meio de resultados do empenho de todos (BRATMAN. Os envolvidos no plano tendem a ser proativos por comungar dos valores eleitos pelo grupo e consolidados pelo plano. com o qual é possível associar compromissos pessoais com os das outras pessoas. da mesma forma como os ajustamentos e correções de condutas vão acontecendo para que os comportamentos sejam adequados à proposta do plano. Ele deve reconhecer o seu papel no grupo e exercê-lo com eficiência. p. 273). 1983. a promoção pessoal e coletiva que dificilmente seria alcançada de outra forma (BRATMAN. Quando uma pessoa planeja a atividade para si mesma. A atuação em conjunto se dá de modo em que há uma influência recíproca por meio dos vínculos estabelecidos em decorrência da relação. em evidentes casos de entrelaçamentos decorrentes de interesses comuns. podem ser vistos como um interessante meio de coordenação de várias atividades. portanto. Antropologia e Cultura Jurídicas Esta proposta é uma leitura sobre o poder de organização que os homens têm e destaca a grande capacidade dos indivíduos de convergir os papéis sociais que desempenham e suas competências a um ideal colaborativo em prol de algo que lhes é superior. p. ela acompanha a parte do plano dedicada às demais (BRATMAN. Logo. p. p. 271). 1983.887). O comportamento de cada pessoa deve ser guiado pela parte do subplano que a ela é atribuído. prezar pela estabilidade. ao mesmo tempo em que uma pessoa monitora cada uma das suas partes do plano.Vol. diferentemente dos desejos e crenças. ser coerente com o passado. Os que estão. 1983. assim como o que cada componente aguarda (WALDRON. exercitar uma postura flexível e persistente e ser capaz de influenciar pessoas quando em uma atividade coletiva. Logo. continua. devem ser compreendidos como um enunciado da mente (state of mind) e estão na mesma categoria que os pensamentos (razões que emergem). Esta previsibilidade é o que cada componente exige. 2011. ela distribui esta iniciativa em partes que podem ser vistas como encaixadas por meio de uma ordem que é preciso perseguir. humildade e respeito. 886). Aquele que adota essa postura possui o hábito de se preparar para o futuro. Como destaca Bratman. a noção de plano que defende é aquela que figura em uma concepção plausível de racionalidade prática (BRATMAN. mesmo diante das possíveis contingências e complicações próprias desses empreendimentos (WALDRON. Normalmente. 272). 273). ao mesmo tempo. p. 35 . 2011. o plano tende a motivar as pessoas a agir como o previsto devido ao seu papel motivacional. Os planos. o autor em discussão apresenta uma análise que permite entender o direito como o resultado de uma atitude interpretativa coletiva. A discussão preparada por Shapiro se dá em um cerrado plano de divisão horizontal e vertical de trabalho (WALDRON. p. Por isso.887).Vol. onde se dão os processos complexos. E ainda hoje. onde ocorrem as interações construídas pelas práticas das pessoas (seus subplanos). O controle dos abusos praticados pelos poderes sociais ou econômicos por meio das ações políticas e jurídicas não se deu de forma espontânea ou natural. foram obtidas através de muitas lutas e sacrifícios. exceto em “situações problemáticas” (BRATMAN. capaz de se articular para superar as complexidades e dificuldades antes que elas se tornem casos graves. representado pelo entrelaçamento entre planos pessoais e coletivos. Shapiro ressalta a dificuldade em se manter o propósito comum entre milhões de opiniões pessoais que influenciam o comportamento das demais. Antropologia e Cultura Jurídicas influências e controles ajuda a apoiar as expectativas necessárias para a coordenação entre pessoas por ser dotado de estabilidade. 35 . cujo ponto de encontro se revela como uma tendência comum (SHAPIRO. p. cujas populações reivindicaram maior autonomia política. apesar dos esforços para enfrentá-los. Também ele desenvolve uma noção muito interessante de fluxo de influências dentro sistema jurídico. inclusive nesses países coletivamente mais organizados e preparados para coibir estes abusos. A respeito dessas ocorrências excepcionais. é uma visão bastante interessante do aspecto político da juridicidade voltada para realização de ações públicas e do papel do direito como estabilizador social.125).Sociologia. 4. e pressões de baixo para cima (bottom-up planning). especialmente nos países que hoje adotam a forma do Estado Democrático de Direito. no qual há pressões exercidas de cima para baixo (top-down planning). uma fração menor de ofensa ao direito pode ser observada. Sem dúvida. ele aponta a existência de uma “atuação massivamente compartilhada” (massively shared agency). 2011. 273-4). uma estrutura hierarquizada voltada à coordenação de milhões de pessoas com o foco na organização de atividades. 1983. O modelo de normas como planos de Shapiro. 404 . ou seja. como o legislativo. 2011.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . dotados de preocupação metodológica e momentos de participação das partes e das instituições. p. A autodeterminação dos indivíduos e a história das instituições As conquistas históricas consolidadas nos sistemas jurídicos. dando origem. acredita-se que a interpretação adotada no parágrafo acima seria provavelmente rejeitada pelo autor. Em sua crítica a Hart. Antropologia e Cultura Jurídicas Foi ao longo deste movimento progressivo de reivindicação dos direitos fundamentais que a liberdade discricionária do soberano foi sendo limitada na medida em que o controle político exercido pelas comunidades foi se ampliando. para o autor estudado. 2011.81). uma não poderia ser reduzida à outra (SHAPIRO. comportamento regular (behavioral regularity). assim. engajada e capaz de pressionar publicamente as instituições a mudarem o seu comportamento e instituir padrões de conduta social mais adequados. Não é possível que um sistema vocacionado para solucionar problemas que outros sistemas menos 405 . poder-se-ia dizer que ocorreu uma expansão do fluxo político (planejamento) de baixo para cima. Isso significa que a coletividade é capaz de influenciar na elaboração da diretriz a ser adotada pela autoridade. Esta afirmação é associada ao surgimento de uma coletividade organizada. 93). um dos pontos que para ele reduz o valor da teoria do importante professor de Oxford se dá pelo questionamento da ideia de regra de obrigação (duty-imposing rule) e de como esta surge na sociedade. p. tudo o que foi discutido soa bastante hartiano já que. a identificação das regras sociais com práticas sociais não é apenas incorreta.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . enfraquece o sistema jurídico o fato de regras sociais decorrerem do entendimento de conceitos não jurídicos encontrados da prática social. diante do fato. à convenção reguladora. Contudo. Ao tentar representar este fenômeno por meio da mesma linguagem utilizada por Shapiro. Esse poder de participação é muito importante e foi fomentado pelos teóricos que defendem a coordenação por convenção. 2011.Sociologia. como os quatro conceitos básicos intrínsecos à regra de reconhecimento que ocorrem fora do sistema – quais sejam: grupo (group). pois regras e práticas ocupariam diferentes domínios metafísicos e. Há uma crítica de Shapiro especialmente direcionada ao ponto de vista interno da teoria hartiana. Essa postura ecumênica de Hart é contrária à visão de Shapiro sobre o papel exercido pelo direito na estrutura social. tendo em vista que neste modelo a sociedade. Por isso. Hart argumenta que grupos são hábeis a criar regras sociais ao se comprometerem com a prática social. 35 . como afirma Shapiro. obrigação (duty) e ponto de vista interno (internal point of view) – (SHAPIRO. Até agora. mas confusa. p. Para ele.Vol. portanto. Shapiro demonstra não estar satisfeito com proposta de Hart. se confronta até que um padrão seja estabelecido e estabilizado. Isso porque. “As instituições jurídicas são estruturadas pelos planos compartilhados que são desenvolvidos por funcionários. por parte dos agentes oficiais (SHAPIRO. pois ele quer dizer que a atividade jurídica é melhor entendida como um planejamento social. e na sua liberdade para detalhar o funcionamento do sistema. há algo que não está bem sistematizado na teoria de Shapiro. Ela está concentrada na expansão e coordenação social realizada por aqueles que planejam a ação das organizações. p. Defende Shapiro que a delegação de poderes à autoridade pode solucionar o problema da proximidade entre moral e direito. A proposta de Shapiro não tem como foco a autonomia dos indivíduos. p. atribuindo aos menos articulados tarefas fechadas e limitadas. 35 .Sociologia.888). Ao tratar dos que estão alienados do plano. A exata estrutura do seu pensamento não é sempre clara. muito do discurso de Shapiro está centrado no papel da autoridade. Sobre a primeira questão. e de seu distanciamento do ponto de vista interno do direito.176).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2011. algumas ressalvas podem ser feitas à teoria do mencionado autor. como a atividade de legislar e o desenvolvimento de doutrinas (WALDRON. Ele não demonstra preocupação com a capacidade que eles detêm de realizar seus próprios projetos. 2011. 176). as autoridades definem o plano a ser implementado para contornar as dificuldades não resolvidas pela moral. Suas atividades. Como enuncia Waldron. devem receber instruções detalhadas do plano e de como deve ser o seu funcionamento para que não escapem do seu papel e venham a desempenhá-lo adequadamente. em razão da desconfiança que sofrem dos autores do “plano mestre” previsto na constituição. 2011. o direito é dotado de planos jurídicos que estabelecem prerrogativas para um ulterior planejamento da coordenação social (Law plans for planning). de modo a capacitá-los a trabalhar em conjunto a fim de planejar a comunidade”. p. no entanto. Antropologia e Cultura Jurídicas eficientes – como a moral – não conseguem resolver seja tão permeado por estes de forma que compartilhem da mesma insegurança. Em razão desse seu excesso de confiança no papel e na importância da autoridade. estarão submetidas a hierarquias aptas à resolução dos problemas e ao monitoramento da performance por meio de supervisores autorizados a exigir a obediência do grupo através da 406 . ele os encara como sendo os que não têm sucesso por não revelar suficiente comprometimento com a integração social e. portanto. Por serem dotadas de autorização para determinar quais são os termos jurídicos. Segundo o autor. diz ele (SHAPIRO. como coordenador e supervisor. e ele a ensina.Vol. onde há a concepção do funcionamento. motivadoras e corretivas (que revelam controle) voltadas a realização do objetivo desejado pelo plano de modo a garantir o crescimento das pessoas e das 407 . e a outra executiva. Ela é desenvolvida pelas instituições em duas fases: uma cognitiva. como um plano. ele pensa como um positivista arraigado às noções preditivas. Ele não aparece como um conhecimento das reivindicações ou do conhecimento agregado que foi se desenvolvendo ao longo de vários processos.Vol. os planos são poderosas ferramentas de gerenciamento da desconfiança e da alienação (SHAPIRO. já que tem um estreito apego à diretriz. como receptores da norma. Acredita-se que sua obra seria mais arrojada e contemporânea se articulasse seus argumentos em torno da capacidade dos que são afetados pelo plano de se autoinfluenciarem por meio de atitudes proativas.150). apenas conformam suas expectativas à engrenagem. Quando Shapiro analisa o potencial do plano para influenciar e controlar. Esta postura da teoria de Shapiro é algo que causa um certo desconforto para os defensores de um liberalismo igualitário. pois aqui o esforço é para planificar. Não se verifica na sua abordagem uma sensibilização quanto à construção histórica dos padrões.Sociologia. porque a construção do plano é descrita como uma atividade contextualizada apenas pela demanda reconhecida e regulamentada pelos funcionários das organizações. Antropologia e Cultura Jurídicas imposição de sanções. p. Por isso. há a necessidade constante de uma racionalidade diretiva que planeja como deve ser o funcionamento do sistema e o desenvolve com a proposta de solucionar um problema. Esta racionalidade é voltada para gerar previsibilidade de condutas e realizar expectativas. Não há como ampliar a participação. a participação dos sujeitos nessa proposta é muito limitada. dos modelos e das orientações. 35 . Ele não demonstra entusiasmo com a autoinfluência e autocontrole que as pessoas podem vir a exercer sobre elas mesmas e sobre as outras quando envolvidas na execução de uma atividade. É fácil associar o papel ativo das organizações nestas fases. 2011. por exemplo. Entende-se esta atitude como decorrente de uma interpretação negativa dos efeitos do plano. já que esta lhes proporciona certa conveniência. onde ocorre a sua implementação e monitoramento. Desta forma verticalizada. Sua concepção ignora o papel e a importância dos indivíduos na construção do plano e no reconhecimento da conduta social adequada. o que também significa limitar o surgimento de padrões já que esses podem conflitar com os já estabelecidos pelo plano.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Do modo como Shapiro propõe. Primeiro. Os indivíduos. Caso contrário. Como ele destaca.10 O tempo todo. como práticas sociais ou jurídicas que são. a teoria de Dworkin se atém aos atos e justificativas na história coletiva que busquem a preservação da liberdade e da igualdade dos indivíduos por meio dos procedimentos baseados na imparcialidade. O homem é um ser capaz de reconhecer padrões e de 10 Mas não na neutralidade. Esta posição quanto à noção de plano é mais congruente com as sociedades competitivas. Dworkin defende um comprometimento com os princípios que são realizados por meio do ato interpretativo diante dos casos concretos. Ele não desconsidera a autoridade ou a correspondência entre a normatividade e planos. Antropologia e Cultura Jurídicas comunidades de forma estável. Como Dworkin mantém e aprimora o aspecto interno inaugurado por Hart. de Ronald Dworkin. como as democráticas e liberais na contemporaneidade. Contudo. tende a confrontá-las diante das situações com as quais se depara no seu dia-a-dia. Estas são preservadas na medida em que a interpretação leva a entender que elas ainda atendem às necessidades sociais. Já que defende um ideal democrático de comunidade. 35 . deverão ser modificadas em razão de novas exigências. inclusive os filósofos do direito. não se dedica a essas questões pois.Sociologia. O trabalho de Dworkin. Nesta teoria o direito é compreendido como um esforço coletivo representado peles práticas sociais selecionadas como as mais adequadas à comunidade. Contudo. Muito menos ignora o papel de coordenação que a política exerce sobre a comunidade. mas no momento mais importante relacionado a estes: o ato da decisão que é anterior ao uso. voltadas à realização de um objetivo. ele se concentra não na crítica epistemológica a estes conceitos. toda a comunidade.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . o homem se vê imerso nas suas pré-compreensões que lhes servem de guia. Este tipo de leitura é compatível com a proposta de pessoas engajadas e organizadas em torno de propósitos comuns. o que é espontâneo. não ignora a importância das convenções ou rejeita um projeto de eficiência. elas estão inseridas e consolidadas no uso pelos que se encontram no aspecto interno.Vol. a se comportar em favor da autonomia e liberdade de escolha quanto aos assuntos que são particulares aos sujeitos. Então. Um modelo que responde muito bem à questão sobre o papel que cada um desenvolve no empreendimento coletivo é do direito como integridade. 408 . e a própria comunidade. vê-se em seu texto que há um grande respeito à história das instituições e à autonomia do indivíduo que age criticamente para pressionar o Estado. ao defender o direito como ato interpretativo. vista como algo improvável de ser atingido por aqueles que estão sob o ponto de vista interno. ou seja. 35 . nos moldes como ele estabelece. concedendo-lhes oportunidade de se envolver no processo de aprimoramento do projeto coletivo. Esta releitura do conceito de Shapiro. Logo.Vol. Isso significa que a teoria de Shapiro. fica aquém da proposta de seu marco teórico ao ignorar o ponto de vista interno como prática social. como resultado concreto. não passa de mera construção de hierarquias e de ampla concessão de discricionariedade. valorizaria todas as posições sociais. Essa postura não é congruente com a visão do planejamento como uma racionalidade prática e coletiva. pois é um ser inerentemente interpretativo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . os que seguem a noção interpretativa defendida por Dworkin estão em melhores condições para compreender o fenômeno jurídico e realizarem o ato de decidir. A superação deste impasse deveria ser a interpretação da economia da confiança como a capacidade das pessoas de aderirem ao propósito comum e de se autoinfluenciarem na realização do objetivo compartilhado. 409 . A economia da confiança proposta pelo autor. Não há como desassociar o ato de planejar do ato de interpretar. introduzido através das reflexões de Bratman.Sociologia. nesta leitura. Antropologia e Cultura Jurídicas planejar. 2012-b. É essa sua habilidade que lhe permite avaliar o que está ou não de acordo com o seu propósito. 249). Uma postura interpretativa dotada de integridade permite o desenvolvimento de um planejamento estável e o julgamento adequado dos padrões importantes à dissipação das tensões sociais. como acima indicou ser a proposta de Bratman e cujas ideias são amplamente discutidas por Shapiro. Eles são concomitantes. que defende o distanciamento do filósofo do direito ao vê-lo como um observador externo hábil a revelar uma verdade filosófica a ser descrita por uma teoria do direito do tipo meramente conceitual (BUSTAMANTE. Enquanto esta releitura de Shapiro não for realizada. Com base na tese substantiva defendida por Dworkin. e por isso é ineficiente na solução os casos referentes à ofensa à confiança depositada. critica-se a postura metateórica de Shapiro. a adoção da teoria de Shapiro coloca aqueles que são responsáveis pela tomada da decisão nas mesmas dificuldades que as demais teorias positivistas por não esclarecer como deve ser orientada a decisão com base no plano. p. o econômico e o moral. Ao contrário. apesar de sua relevância. Ao texto constitucional. São apenas uma encenação política. inserido pela vontade política consolidada pela ordem jurídica. p. As legislações que disciplinam as atividades econômicas e administrativas absorvem bem este conceito. 12 “No caso da constitucionalização simbólica. precisam estar de acordo com as necessidades morais da comunidade. de forma que o sistema pressionado não consegue gerenciar as respostas por meio de seus próprios códigos.Sociologia. descreve este fenômeno como um acoplamento estrutural (NEVES. não enfrentam o mérito sobre a noção do direito como plano e as questões envoltas na prática jurídica e relacionadas à coordenação social. Antropologia e Cultura Jurídicas 5. ele também apresenta forte influência no direito. ‘consenso’ suposto na 410 . uma proporção muito elevada.67). econômicas e políticas e. Marcelo Neves na sua obra A Constitucionalização Simbólica é claro ao anunciar que muitas leis são meros engodos legislativos por serem precárias na concretização das necessidades políticas de toda comunidade.Vol. O equilíbrio entre esses sistemas reflete o elevado nível de amadurecimento social e o bom funcionamento da comunidade. não correspondem expectativas normativas congruentemente generalizadas e. Esta situação indica que há uma séria falha na comunidade que irá afetar sistemicamente todo o corpo social.12 11 Marcelo Neves. a politização disfenciante do sistema jurídico não resulta do conteúdo dos próprios dispositivos constitucionais. É no ponto de interseção entre eles que ocorre o intercâmbio e a influência voltados para o aprendizado e aperfeiçoamento. utilizando a nomenclatura da Teoria dos Sistemas. Como já apresentado na introdução deste ensaio. por conseguinte. ele o faz por meio de medidas. Assim. dentre as quais se situa a regulamentação jurídica para que o padrão social seja implementado e respeitado. tais como o político. O direito além do plano Todas as considerações até agora apontadas. Mas no sentido em que se orientam a atividade constituinte e a concretização do texto constitucional resulta o bloqueio político da reprodução operacionalmente autônoma do sistema jurídico. Os planos políticos apresentados pelos governos. A esse respeito.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . de Luhmann. o social. o direito é um sistema que está em integração com outros. os interesses econômicos. O código do “plano” é bastante utilizado pelas práticas sociais. 35 . 2007. o texto constitucional proclama um modelojurídico no qual estaria assegurada a autonomia operacional do direito. sua tradição política e sua exigência jurídica. quando o código político incorpora 11 o comando moral de proibição à tortura no seu plano para promover a dignidade humana. Ocorre que apenas a constituição de planos políticos e a regulamentação jurídica não são capazes de mudar padrões de condutas. por isso. desse modo. Já o desequilíbrio é representado pela corrupção de um sistema pelo outro. Desumanos ou Degradantes da ONU. deve-se tomar cuidado com a transposição dela para a esfera jurídica. 2011. entendidos como a eficiência ou a segurança na Teoria do Direito.pdf 411 . Apesar de toda a sofisticação em torno da organização e concepção do plano. A mera preservação da concepção de algum plano. Ele é dotado de um código próprio que não pode ser subvertido pelo do plano em nome da coordenação ou do objetivo traçado neste. abandonado e mudado (WALDRON. classicamente. direitos são “trunfos” a serem promovidos visando o crescimento das pessoas e de uma coletividade respectiva sociedade. mesmo que não venha a ser alcançado o resultado esperado. Quanto ao direito. A partir da sua emissão não se desenvolve uma Constituição como instância reflexiva do sistema jurídico” (NEVES. p. informa que a impunidade por atos de tortura está disseminada e se evidencia pelo fracasso generalizado em levar-se os criminosos responsáveis pela prática da tortura no Brasil à justiça. 13 O item 52 do Relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis. http://www. pois o direito possui como característica essencial e marcante o seu caráter de proteção (DWORKIN. Contudo. necessariamente.Sociologia. especialmente na pública. 2010. principalmente. é um indicador de que o plano fracassou? Se essa prática não é oficial. 35 . novo plano é traçado. o direito é perene e possui como foco não só a coordenação ou a estabilização. quais sejam: a proteção das pessoas e de seus projetos de vida.br/img/2012/07/relatorio_SPT_2012. a sua execução pode resultar em fracasso e frustração. p. Neste caso. representa a adoção de uma postura imprudente que compactua com abusos e graves ofensas às conquistas históricas protegidas pelo código jurídico. deve ser mudado. que pode estar equivocado e. 2007.278). Sabese que em muitos países onde é defesa a prática da tortura. Enquanto planos são intermitentes e acompanham dadas circunstâncias contingenciais e situacionais (por isso seus objetivos devem ser acompanhados.149-50).13 A crítica a esta visão funcional do direito é providencial neste momento: o direito não é como a gestão de uma grande empresa. como argumenta Dworkin. onde os interesses são gerais e. convergentes a uma direção clara do que se deve realizar. esta é amplamente praticada.Vol. pensa-se que não.org. pelas autoridades públicas. Nas empresas o plano pode ser desvirtuado.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . pergunta-se se ele pode ser interpretado como um fracasso? A prática da tortura em desacordo com o plano. mas é institucional. Antropologia e Cultura Jurídicas A partir dessa crítica de Neves. por isso. O direito está muito além dos planos.899). p. A teoria de Bratman.onu. avaliados e constantemente reformulados). Como bem ensina Dworkin. bem como pela persistência de uma cultura que aceita os abusos cometidos pelos funcionários públicos. dois pontos devem ser levados em consideração: o comprometimento dos oficiais em construir o plano e a sua capacidade em executá-lo. é uma boa visão prática que pode ser empregada em várias ocasiões da vida em coletividade. ela deveria ser aceita? Categoricamente. normas ou planos contam apenas como direito se. Mesmo que Shapiro rejeite essa associação. E é em prol deles que as pessoas se mobilizam para pressionar organizações. A teoria de Shapiro peca por não abordar a legitimidade do direito. exposto e aberto à atuação política e crítica. governos e sujeitos a agirem de modo diferente. mas todo o aparato da juridicidade e o legado de nosso pensamento sobre as especificidades das formas jurídicas. o direito está longe de ser alguma relação de autoridades com poderes sobre nossas vidas. (WALDRON. Ela não abarca toda a complexidade do fenômeno jurídico na atualidade. mesmo que esses sejam apresentados como sendo os da maioria. Considerações finais. como os terroristas.189). 896) argumenta que comandos. é muito restrita.897). que é identificada com a noção de planejamento. não promover o seu papel civilizador e deixar de demonstrar a sua importância democrática. p.899. 2010. O único remédio possível à proteção de minorias e de seus direitos – mesmo os dos que adotam comportamento que ameaçam a sociedade. 2011. 2011. 2011. Como no último parágrafo do seu livro “O império do direito” alerta Dworkin.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . tradução nossa).Sociologia. “juridicidade” (legality). Neste sentido Lon Fuller (apud WALDRON. 6. A noção de direito como plano. Antropologia e Cultura Jurídicas justa e democrática (DWORKIN. 412 . estupradores e homicidas – é o reconhecimento e o acesso de todas as pessoas aos procedimentos de um direito civilizado. dos procedimentos jurídicos e dos compromissos jurídicos – para frisar a separação entre as formas de decisão e valores nos quais a separação é baseada. 35 . A questão é que usamos a palavra direito – e não apenas a palavra direito. como defende Shapiro. p.Vol. pois muitas pessoas consideram o planejamento social como mais ou menos o oposto do valor da “juridicidade” (WALDRON. p. na sua forma e no procedimento que lhe é associado há o respeito à dignidade e à liberdade daqueles a quem o direito será aplicado. e – não obstante o profundo e poderoso argumento de Shapiro – eu acredito que não se possa reduzi-lo a um simples conceito de plano. Este é um aparato e legado complexo. Há certa ironia no título da obra de Shapiro. As distopias escritas no início do século passado são todas muito descrentes na capacidade de governos e instituições de não se corromperem e agirem em prol de interesses. p. não há como não refletir sobre a ideia de plano sem pensar nas críticas desenvolvidas ao modelo socialista ou qualquer outro que venha a definir uma estrutura social que seja tão dependente da confiança naqueles que controlam as grandes instituições. Ela repete alguns dos erros apontados às teorias contratualistas e convencionalistas ao defender uma preocupação restrita aos fatos e ao demonstrar forte apego à autoridade. A teoria de Shapiro que defende a visão do direito como plano persiste em promover a distinção entre o público e o privado. Em um grave equivoco. e por isso é bastante limitada. interpretativa e autorreflexiva. o teórico e o prático. pois a teoria ora estudada é destituída da preocupação e dos procedimentos capazes de gerar a estabilização típica dos regimes democráticos. Fica claro que a escolha de Shapiro pela otimização da coordenação social coloca em segundo plano a característica protetiva que marca o fenômeno jurídico. A sua proposta é interessante.Sociologia. ele é definido pela atitude contestadora. voltada a realização de certos valores políticos. em detrimento da capacidade de autodeterminação das pessoas. mesmo quando dividido pelos projetos. p. 2007. Ela fica alheia à necessidade deste ser o resultado do ato contestador adotado pelo cidadão consciente comprometido com os compromissos públicos de sua sociedade em dada circunstância. Como demonstrado ao longo deste texto. interesses e convicções com os demais sujeitos (DWORKIN. em razão das objeções contraintuitivas que lhes são decorrentes. 35 . respondendo à pergunta orientadora desta reflexão – se a visão coordenadora do direito como plano é capaz de garantir a proteção dos indivíduos contra as arbitrariedades e abusos de quem possui o poder para traçar as diretivas da comunidade – verificou-se que a resposta deve ser negativa. seu sistema de coordenação se demonstrou ser ineficiente já que não há freios capazes de inibir a corrupção do sistema jurídico pelos interesses políticos ou econômicos. bem como afasta a questão moral da discussão jurídica. Em casos onde ocorre ofensa à confiança depositada. por não promover a capacidade de autodeterminação dos indivíduos. Assim. A sua noção de economia da confiança se baseia na construção de hierarquias e de ampla concessão de discricionariedade.Vol.492). A noção de direito promovida por Shapiro não abarca toda a complexidade do fenômeno jurídico na atualidade. Antropologia e Cultura Jurídicas Antes. contudo. fica a sensação de que Shapiro apresenta uma ótima percepção sobre o 413 . ela rejeita o conhecimento acumulado ao longo da evolução histórica das práticas sociais.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Ao término da análise. ela não dispõe de mecanismos procedimentais hábeis a desenvolver a participação ativa dos indivíduos e a gerar a proteção dos direitos dos indivíduos. Taking plans seriously. Referências Bibliográficas APPIAH. vol 101. Disponível em http://www. Antônio de Oliveira SetteCâmara. Planning for legality. SHAPIRO. n. mas que carece de desenvolvimento quanto às questões referentes ao ponto de vista interno. 2006. Idalberto. Social Theory and Practice. HART. 2003. 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Trad. 2010. vol. Michigan Law Review. 2009.Vol. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política.onu. vol 101. pp. apresentado por Fortes (2009). precipuamente no tocante aos aspectos familiares e jurídicos. O desfecho trágico da peça levanta questões acerca de tal época. Quando partimos da Europa Ocidental do século XVI e chegamos ao Estado Democrático de Direito no Brasil. ABSTRACT 1 Mestranda em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. caminham junto ao desenvolvimento do Direito.Vol. tais como o consumismo. por consequência. pretende-se investigar as causas que provocaram tamanha diferenciação entre os séculos XVI e XXI no tocante aos relacionamentos amorosos dos jovens nestas épocas. Antropologia e Cultura Jurídicas DE ROMEU E JULIETA AO AMOR LÍQUIDO: O DESAFIO DAS DIMENSÕES TEMPORAIS SINCE ROMEO AND JULIET UNTIL LOVE LIQUID: THE CHALLENGE OF TEMPORAL DIMENSIONS Carolina Diamantino Esser1 RESUMO “Romeu e Julieta”. Segundo o sociólogo Bauman (2004). segundo Gadamer (2006). verificamos como o sistema jurídico influencia diretamente no comportamento dos indivíduos. diferentemente. 415 . o Direito e a tradição. Amor Líquido. por exemplo. não há como concebermos outra dimensão temporal sem estarmos arraigados à nossa tradição e aos nossos preconceitos. Por isso. o passado. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos. estendendo-nos ainda a uma análise em conjunto com a teoria de Freud (1973). diante da impossibilidade de suas famílias anuírem com o seu casamento.br. por si. A presente investigação de tais dimensões temporais servirá para concluirmos como a História. vivemos a “era da modernidade líquida”. as tradições. E-mail: caroldesser@yahoo. interfere diretamente no Direito. de William Shakespeare. em que a busca pela perenidade dos relacionamentos cede espaço ao tratamento do outro como objeto e dos relacionamentos como momentos fluidos. De outro lado. como. a História. este uma instituição absolutamente sagrada. já que estamos inseridos no século XXI e.com. Trataremos ainda de outras causas. as influências familiares ou religiosas deixam de ser fatores decisivos para os relacionamentos amorosos dos jovens. foi escrita em 1593. Referido sociólogo traz algumas causas para o fenômeno do “amor líquido”. que constroem a sua tradição e momento histórico. Será analisado o amor no século XVI e no século XXI. o hedonismo pós-moderno. no contexto do Estado Absolutista na Europa Ocidental.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . sendo que no último o embasamento partirá da teoria de Bauman (2004). presente e futuro. passageiros e descartáveis. Século XXI.Sociologia. Palavras-Chave: Século XVI. No atual século XXI. O paralelo entre os séculos XVI e XXI envolve. vez que Romeu e Julieta optam por morrer. 35 . The present investigation of such temporal dimensions serves to conclude how the history. Twenty-first century. the law and tradition. According to the sociologist Bauman (2004). an institution that absolutely sacred. passenger and disposable moments. we live in the "age of liquid modernity" in which the quest for continuity of relationships gives way to treat the other as an object and relationships as fluid.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Said sociologist brings some causes for the phenomenon of "liquid love" such as consumerism. we see how the legal system directly influences the behavior of individuals who build their tradition and historical moment. therefore. according to Gadamer (2006). The tragic outcome of the piece raises questions about such time as Romeo and Juliet choose to die. Qe also will treat other causes. When we left Western Europe in the sixteenth century and reached the Democratic State of Law in Brazil. there is no way we conceive another temporal dimension without being rooted in our tradition and our prejudices. such as. for example. directly interferes in the law. by itself. in the context of the Absolutist State in Western Europe. the traditions and the past walk along the development of law. Antropologia e Cultura Jurídicas "Romeo and Juliet" by William Shakespeare. Therefore.Vol. The love will be analyzed in the sixteenth century and the twenty-first century. hedonism postmodern shown by Fortes (2009) extending in a further analysis together with Freud's theory (1973). and the last to leave the basement theory Bauman (2004). history. given the impossibility of their families agree with your marriage. was written in 1593.Sociologia. we intend to investigate the causes that differentiation between the sixteenth and twenty-first in regard to romantic relationships of young people in these times. In the current century. Keywords: Sixteenth century. Liquid Love. unlike the religious or family influences cease to be decisive factors for the romantic relationships of young people. The parallel between the sixteenth and twenty-first involves. 416 . present and future. primarily with regard to family and legal aspects. 35 . as we entered the twentyfirst century and. On the other hand. 124) relata que a peça “Romeu e Julieta” possivelmente é originada de um poema do autor Arthur Brooke. Antropologia e Cultura Jurídicas 1. as influências familiares raríssimas vezes incidem. que a proíbe de relacionar-se com Romeu. Heliodora (2006. que se conheceu há tão pouco tempo. nos propomos a interpretar os relacionamentos amorosos neste século e no século XVI. sobre os relacionamentos dos jovens. diante da impossibilidade de suas famílias anuírem com o seu casamento. OS TRAÇOS DE CADA SÉCULO A partir da análise da obra “Romeu e Julieta” bem como de outras obras que tratam de referida época. de se trocar experiências. em que não há tempo de se conversar. questionando-se quais as causas que provocaram tamanha diferenciação entre os séculos XVI e XXI no tocante aos relacionamentos amorosos dos jovens nestas épocas. o qual propõe que a interpretação nada mais é que o processo de reflexão sobre nossas tradições. temos que a religião e o patriarcalismo são características presentes para grande parte dos autores. 2. O diálogo em família tem cedido espaço ao ritmo acelerado das grandes metrópoles. superficial e de curta duração. 35 . está totalmente disposto a lutar pelo seu amor. No atual século XXI. líquida. Diante de referido paralelo entre os séculos XVI e XXI. O casal. segundo o sociólogo Bauman (2004). ao contrário.Sociologia. tomando todas as medidas que estavam ao seu alcance em prol da permanência e longevidade de seu relacionamento. precipuamente no tocante aos aspectos familiares e jurídicos. Consequentemente. em que se misturam o Direito e a tradição. A referida obra retrata uma história de submissão de Julieta à sua família. vez que Romeu e Julieta optam por morrer. os relacionamentos amorosos vividos pelos jovens seguem um processo. de fragilidade.Vol. invocamos Gadamer (2006). com tanta força. dentre os demais aspectos que permeiam aquela e a presente sociedade.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Nesse espectro. sendo contemporâneos do século XXI. acontecendo de maneira cada vez mais fluida. sendo este uma instituição absolutamente sagrada. p. O desfecho trágico da peça levanta questões acerca de tal época. que o hermeneuta é aquele mediador entre o objeto estudado e a tradição que constrói os seus preconceitos atuais. INTRODUÇÃO “Romeu e Julieta” é uma peça escrita por William Shakespeare no século XVI. o qual é carregado de traços patriarcais nas 417 . Para tal bom fim servem todos os maus começos. na postura de Shakespeare em relação aos seus protagonistas.. e ensina o homem a abster-se de cair de cabeça na perdição da desonestidade. Em lugar da moralizante condenação da juventude por não obedecer a seus pais e por ouvir alcoviteiras e frades. fruto da escolha e determinação familiar dos nubentes. era sempre incapaz.. que perturba a ordem da comunidade. não se submeteu. a par de contar uma história de amor. Romeu e Julieta. para descrever para ti um casal de amantes infelizes. 2006..) e diz: ‘O glorioso triunfo do homem que se contém quanto aos prazeres da luxúria da carne..15) coaduna com a referência ao patriarcalismo. Antropologia e Cultura Jurídicas relações familiares. aos valores apregoados em sua época: A transformação que Shakespeare opera ao compor sua tragédia é tão mais notável por não implicar qualquer maior alteração para a trama (.Sociologia. e de que não se podia livrar numa sociedade individualista 418 .. 35 . por um “Adress to the Reader” que expressa seus sentimentos e as intenções do poeta ao elaborar o seu Romeo and Juliet (. saía de sob a potestas do pai. dedicou sua mais profunda preocupação ao bem-estar da comunidade. de um ódio cuja origem jamais foi identificada.. que foi escravizado pelo desejo desonesto.. todavia. sendo os relacionamentos amorosos. o exemplo do homem bom chama os homens a serem bons. p. O texto de Brooke é precedido.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A diferença está no ponto de vista autoral.. e a maldade do homem mau adverte os homens a não serem maus. (HELIODORA. E para tal fim (bom leitor) é escrita esta matéria trágica. e ingressava in domo mariti ali se prolongando a sua condição subalterna. alieni iuris.. sem independência. só com a morte dos filhos terminado’ fala bem alto ao poeta que. por sua vez.).) Como filha. e ‘A triste história desse amor marcado e de seus pais o ódio permanente. Shakespeare. como fica bem claro desde o soneto introdutório: as duas casas põem ‘guerra civil em mão sangrenta’ e o par de amantes ‘com sua morte enterra a luta de antes’.). e desrespeitando o honrado nome do casamento legal (. por vias diversas. em sua primeira edição. mas por serem vítimas da sangrenta luta entre suas duas famílias. (. usando a confissão auricular (chave para toda prostituição e traição) para propiciar seus objetivos. prolongando-se por toda a vida a capitis deminutio que a marcava. desrespeitando a autoridade e o conselho de pais e amigos. Com o mesmo efeito. a ênfase da tragédia shakesperiana vai para o conflito entre as duas famílias. o Romeu e Julieta do segundo transforma tudo em doloroso conflito entre o ódio e o amor. que experimentam todas as aventuras do perigo para atingir sua desejada luxúria. A condição jurídica da mulher é um dos mais ricos capítulos da história evolutiva do Direito. produto da paz e do bom governo. e os dois jovens amantes morrem não por desobedecerem aos seus pais. porém a ação mostra muito claramente que essa má estrela é o ódio entre Capuletos e Montéquios. pois que entrava in loco filiae e desta sorte perpetuava-se a sua inferioridade. os finais vergonhosos e desgraçados daqueles que escravizaram sua liberdade aos desejos sórdidos. Casada. constituindo seus principais conselheiros alcoviteiras bêbadas e frades supersticiosos (os instrumentos próprios da falta de castidade). 125) Pereira (2011. em sua maioria. Os amantes nascem ‘como má estrela’..Vol.) em lugar do míope moralismo do primeiro. sem pecúlio próprio. como lhe é peculiar. encoraja os homens a evitar as afeições loucas. p. Foi onde se processou a maior transformação no Direito de Família. ao realizar a releitura do poema do Brooke. é transformada também em magistral sermão contra os males da guerra civil. ao longo de toda a sua carreira. (. Julieta.151).Sociologia. Por exemplo. 35 . (SHAKESPEARE apud HELIODORA. quer dizer. p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . respondendo. para exemplificar. sentidos? JULIETA Ai. jurídicos e religiosos. num povo que dava a maior importância às duas atividades que fizeram crescer o Império e tornar-se poderoso: a guerra e o comércio. inteiramente estática. 2006. JULIETA Bom peregrino.8). conforme bem explanado por Berman (2006. 2006. 419 . com uma fala eivada de submissão: “Porém mais longe eu nunca hei de ir. Podemos citar. a mão do fiel e a mão do santo Palma com palma se terão beijado. Pagarei docemente o meu pecado: Meus lábios. Os símbolos da tradição da comunidade ocidental têm sido. contudo. pela primeira vez a religião passou a ser largamente um problema de foro íntimo enquanto o Direito tornou-se uma questão em que predominam os interesses práticos. Naquela sociedade. Juntas. peregrinos temerários. no século XX. já que. Só mais tarde. a situação modificou-se. por toda a Idade Média e boa parte da Idade Moderna. no século XVI.. Estática. o momento em que a mãe de Julieta vem lhe informar sobre o interesse do jovem Páris na menina.159) Malheiros (1999. O expiarão com um beijo delicado. no baile em que se conheceram. (. expandindo as fronteiras por todo o mundo conhecido e assegurando as fortunas que faziam a riqueza de Urbs. não havia para a mulher outras virtudes que as reconhecidas às suas matronae: ‘Ser casta e fiar lã’. p. ROMEU Se a minha mão profana esse sacrário. Antropologia e Cultura Jurídicas ao extremo. A religião também era um dos alicerces do Direito àquela época. mãos. têm lábios apenas para a reza. inferiorizada.) a condição da mulher permaneceu. No século XX. que o vôo que a senhora consentir” (SHAKESPEARE apud HELIODORA..Vol. o diálogo de Romeu e Julieta é carregado por metáforas religiosas. 65) nos ensina que a tomada de espaço pela mulher ao longo dos séculos influenciou na modificação do apelo à religião e na forma de se estabelecerem os relacionamentos. a mão que acusas tanto Revela-me um respeito delicado. ROMEU Os santos não têm lábios. p. o sistema jurídico baseava-se nos costumes e na religião como fontes principais. p. sobretudo. desprezando a construção de relacionamentos duradouros que possam culminar em um casamento.Vol. Sem verdadeiramente questionar o casamento como forma de sustentar o vínculo sexual e a origem da família. antigamente. 233). O mundo que lhe pertencia era o mundo do lar. com o foco na teoria traçada por Bauman (2004). p. filhos. o atual Código Civil de 2002. através do seu processo de emancipação. p. No todo.. ainda que sem entusiasmo.Sociologia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . iniciando assim um processo de evolução. ‘a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher’. mas também indiretamente. fomentado pelos princípios constitucionais de 1988. com compensações. no âmbito do Direito brasileiro. e só isso: um lar com um marido que a protegesse e por ela decidisse e pensasse e. o que aprendem é que o compromisso. Vejam os senhores. hipertrofiando-a. que somente a psicanálise pode explicar claramente. e em particular o compromisso a longo prazo. houve um histórico enriquecimento da contribuição feminina. Bauman (2004. é a maior armadilha a ser evitada no esforço por ‘relacionar-se’. O que acontecia no mundo de fora de sua casa não lhe interessava.69) trata. Mas não foi somente na regulamentação das relações interpessoais entre os cônjuges que o esquema de submissão esteve presente. a mulher passou a ter sua independência financeira considerada. (. a quem competia ‘a representação legal da família’. Em seguida. Esse mundo era exclusivamente de seu marido. O caráter subalterno estendia-se praticamente a todos os estamentos da regulação do casamento.. através de disposições que acentuavam as prerrogativas masculinas. do Código Civil de 1916. o tecido social vem convertendo o velho modelo em uma fórmula mais adequada aos anseios das pessoas do mundo de hoje. o que contribuiu para a evolução do Direito de Família. Tal fenômeno pode ser entendido como um sentimento vivenciado por grande parte da juventude contemporânea. possibilitou a igualdade entre homens e mulheres. que preza por relacionamentos de curta duração e alta intensidade. por exemplo.10) esclarece. que devia obediência ao marido. Um especialista informa aos leitores: ‘Ao se comprometerem. Antropologia e Cultura Jurídicas Ninguém mais duvida que a verdadeira metamorfose que vem sofrendo o casamento dá-se em função do espaço que a mulher passou a reivindicar e ocupar.. o ideal da mulher residia na segurança. tanto o direito canônico como a legislação civil acentuaram a subalternidade da mulher. Era esse o grande destino sonhado pela mulher – e assim ela era feliz. em 1962. (.. temos que a sociedade contemporânea vive a denominada “era da modernidade líquida”. colocando-a na condição de simples companheira. tantos quantos Deus mandasse. Malheiros (1999. Caminhando para o atual século XXI. 35 ... lembrem-se de que possivelmente estarão fechando a porta a outras possibilidades 420 . (. e ‘o direito de fixar e mudar o domicílio da família’ e o ‘direito de autorizar a profissão da mulher’ (art..) Tendo em vista que a sociedade patriarcal sempre enfatizou a presença masculina.) de acordo com o texto original do Código o marido era o ‘chefe da sociedade conjugal’.. Com o advento do Estatuto da Mulher Casada. refletindo-se tanto diretamente. em autoridade e importância.) Desde cedo. . e isso é algo para uma cabeça fria. (. que o próximo amor será uma experiência ainda mais estimulante do que a que estamos vivendo atualmente. pelos jovens. Como resultado. Em vez de haver mais pessoas atingindo mais vezes os elevados padrões de amor. mantenha distância. elas alternam períodos de alta e baixa’. Bauman (2004.Sociologia. Nada de apaixonar-se.. e acima de tudo não deixe que lhe arranquem das mãos a calculadora. A súbita abundância e a evidente disponibilidade das ‘experiências amorosas’ podem alimentar (e de fato alimentam) a convicção de que amar (apaixonar-se. interessantes fragmentos de publicações ou periódicos..) a definição romântica do amor como ‘até que a morte nos separe’ está decididamente fora de moda. os quais estimulam que se evitem relações duradouras.. se você deseja ‘relacionar-se’. 35 . Mas o desaparecimento dessa noção significa.36).Vol.. (.19).. embora não tão emocionante ou excitante quanto a que virá depois. p. Lembre-se: nada de ‘amor à primeira vista’ aqui. Nesse sentido. Pode-se até acreditar (e frequentemente se acredita) que as habilidades do fazer amor tendem a crescer com o acúmulo de experiências. inevitavelmente. A publicação britânica continua.. Antropologia e Cultura Jurídicas românticas talvez mais satisfatórias e completas’. Deixe as portas sempre abertas. Outro mostra-se ainda mais insensível: ‘A longo prazo.. 36) cita Catherine Jarvie. Bauman completa (2004..) Não se deixe dominar ou arrebatar.. Nada daquela súbita torrente de emoções que nos deixa sem fôlego e com o coração aos pulos. E assim. devendo os parceiros tratar seus relacionamentos de maneira fria e calculada. Bauman (2004. da variedade de seus relacionamentos. (. e que o domínio dessa habilidade aumenta com a prática e a assiduidade do exercício. De acordo com Bauman (2004. que comentou artigo denominado “Guia Matrimonial de Londres” contido no Guardian Weekend. Como outros investimentos. Uma ‘relação de bolso’ é a encarnação da instantaneidade e da disponibilidade. O sociólogo cita.) Primeira condição: deve-se entrar no relacionamento plenamente consciente e totalmente sóbrio. na obra em análise. tendo deixado para trás seu tempo de vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais se costumava servir e de onde se extraía seu vigor e sua valorização. p. esses padrões foram baixados. se quer usufruir do convívio. não assuma nem exija compromissos. não para um coração quente (muitos menos 421 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .) A conveniência é a única coisa que conta. p. Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome de ‘fazer amor’. 19) trata da atual busca.. (. as promessas de compromisso são irrelevantes. evitando estarem presos a somente uma relação. o conjunto de experiências às quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se muito.. p. a sociedade em geral estimula nos jovens a liquidez de suas relações. instigar o amor) é uma habilidade que se pode adquirir. a facilitação dos testes pelos quais uma experiência deve passar para ser chamada de ‘amor’. em abril de 2002. ALGUMAS CAUSAS PARA O AMOR LÍQUIDO DO SÉCULO XXI De acordo com Bauman (2004). Cancelar ou adiar outras sedutoras alegrias consumistas de uma atração ainda não experimentada.. Numa civilização em que a consciência coletiva é comandada pelo progresso da ciência. que cria nos indivíduos a ideia de que tudo deve ser trocado em curto prazo. enganosa.) A depressão e as crises conjugais pós-parto parecem enfermidades específicas de nossa ‘modernidade líquida’. p. (BAUMAN. 60). que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade. Quanto menor a hipoteca. Gadamer (2006. ‘Formar uma família’ é como pular de cabeça em águas inexploradas e de profundidade insondável.. a ser adquirido e usufruído instantaneamente (Bauman. menos inseguro você vai se sentir quando for exposto às flutuações do mercado imobiliário futuro. sempre haverá um bem superior e mais moderno. Antropologia e Cultura Jurídicas superaquecido). que traz mais fugacidade aos adventos. Bauman diz mais. o consumismo. Segunda condição: (. 2004. 2004. 35 . Sem humildade e coragem não há amor. receitas testadas. a crença na riqueza e o ideal de lucro – e talvez também marcada pelos presságios de que esse sonho chega ao fim -. menos inseguro vai se sentir quando for exposto à flutuações de suas emoções futuras. E assim numa cultura consumista como a nossa. (BAUMAN. 422 . p. como pessoas submetidas à avaliação de seu desempenho profissional olham de soslaio em busca de algum sinal de lealdade dividida. resultados que não exijam esforços prolongados.) Mantenha o bolso livre e preparado. p.21). há algumas causas para o “amor líquido”.. mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a ‘experiência amorosa’ à semelhança de outras mercadorias. p. o prazer passageiro. garantias de seguro total e devolução do dinheiro..) Lembre-se de que não é preciso muito tempo para que a conveniência se converta no seu oposto. (..Sociologia. despertando nas pessoas a necessidade de estar sempre “na moda”. desconhecida e imprevisível – em si mesmo um sacrifício assustador que se choca fortemente com os hábitos do consumidor prudente – não é a única consequência provável. quanto menos investir no relacionamento.. o aperfeiçoamento da tecnologia. esforço sem suor e resultados sem esforço. (. a satisfação instantânea.Vol. (..15) já se pronunciou nesse sentido.. que favorece o produto pronto para uso imediato. Imediatamente relacionado ao consumismo. a novidade e a inovação encontram-se precisamente em uma situação crítica.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . a bulimia e incontáveis variedades de alergia. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa.) Ter filhos pode significar a necessidade de diminuir as ambições pessoais. temos ainda o avanço tecnológico. da mesma forma que a anorexia. 2004. pois o antigo já não oferece mais verdadeiras resistências nem encontra defensor. Primeiramente. 37) 3. ‘sacrificar uma carreira’. Nosso dever é ser feliz e a felicidade implica o consumo. uma relação predatória do outro. (. Como vemos.. afirmando-se aqui o utilitarismo nas relações interpessoais. do mundo externo. repentina) de necessidades represadas em alto grau. (. que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas. todas as normas do universo são-lhe contrárias (. conduzindo ao recrudescimento do gozo solitário. embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes. acesso em 29 de setembro de 2012). e. Ora. 423 . e muito pouco de um determinado estado de coisas.) Com efeito. 141).Sociologia. (. a cultura do hedonismo está intrinsecamente associada à sociedade do consumo..). 9. relaciona-se também com o “amor líquido”.Vol. De acordo com Fortes (A psicanálise face ao hedonismo contemporâneo. e o sofredor não se encaixa nos moldes atuais de exaltação do eu e exibicionismo. Assim. Fortes (2009) trata de outro fenômeno denominado “hedonismo pós-moderno”. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. possível apenas como uma manifestação episódica. servindo assim como mero instrumento para o prazer egóico do sujeito.) Não há possibilidade alguma de ele ser executado.org/scielo. como meio para alimentar o eu. de nossos relacionamentos com os outros homens. sendo. Há. Neste contexto. e não como relação de alteridade.. assim. 35 . que prega que o outro pode ser reduzido a mero objeto de troca.. O que se apresenta ao sujeito no campo da alteridade é limitado e empobrecido. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito. A partir da constatação da diminuição do campo da alteridade pode ser analisada a fragilidade dos laços sociais na contemporaneidade. nº 4. nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. finalmente. p. pois mesmo outro ser humano pode tornar-se objeto de consumo. Revista Mal-Estar e Subjetividade.. Disponível em <http://pepsic. na medida em que é fonte de prazer para o eu.. Como um objeto de consumo qualquer. o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer.bvsalud. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo. por sua natureza. o outro só existe enquanto reforçar a autoexaltação narcísica do sujeito. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste. há uma redução absoluta da figura da alteridade. condenado à decadência e à dissolução. a nosso ver...php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482009000400004>. (.) o sujeito atual organiza-se a partir do eixo individualista-hedonista. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga. Freud vem nos dizer que o amor é uma das fontes do sofrimento do Homem (1978. vol.. O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência. o qual. e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência. Vemo-nos acossados pela obrigação de ser feliz. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Fortaleza: 2009. o outro da relação pode ser também rapidamente descartável.) Nesta lógica. Antropologia e Cultura Jurídicas Saindo de Bauman (2004).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que só existe de forma "útil". ela produz tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue.. Por essa razão.) a contestação é maior. Antropologia e Cultura Jurídicas Logo. como instituição jurídica e religiosa. VISÃO JURÍDICA Partindo do cenário traçado. torna-se interessante evitar o amor ou qualquer tipo de relacionamento que possa sujeitar o indivíduo a um futuro sofrimento. ele não perdeu seu atrativo para grande número de pessoas.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ao meu sentir. afrouxou inúmeras amarras às experiências amorosas dos jovens. contudo. de uma forma muito perigosa. deve ter-lhe sugerido que continuasse a buscar a satisfação da felicidade em sua vida seguindo o caminho das relações sexuais e que tornasse o erotismo genital o ponto central dessa mesma vida. 4.. A família e o casamento estão mesmo é em processo de adaptação. despido da carapaça da fortaleza e auto-suficiência. partindo de tal análise realizada por Freud. mas não queremos aqui concordar com a ideia de que o “amor líquido” é algo unânime e generalizado. expondo-se a um sofrimento extremo... estabelecendo uniões sem vínculo legal. assim como algo exclusivamente ruim para os indivíduos. o protótipo de toda felicidade. a posição masculina também melhorou ao permitir que o homem se inserisse mais nas atividades familiares. o que lhes trouxe desvantagens.) Tanto a família como o casamento têm passado por várias provações sem. apesar disso. relacionamentos tumultuados e mesmo dolorosas separações... insatisfações. que privilegia uns em detrimento de outros. em comparação ao século XVI. e usufruísse melhor dos prazerosos momentos em companhia da mulher e filhos. 1978. Por outro lado. a nosso ver. O mencionado sociólogo. Conforme Malheiros (1999. A nosso ver.158). O repúdio. 75). caso fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através da infidelidade ou da morte. os sábios de todas as épocas nos advertiram enfaticamente contra tal modo de vida. de uma parte do mundo externo. isto é. Nessa linha. (.. tratando do amor (Freud.) Dada a diversidade de formas das relações humanas em um 424 . refletida principalmente pelo grande número de jovens casais que deixam de lado o casamento formal. 35 . de relação homem/mulher. fornecendo-lhe. Esta base autoritária. com base nos estudos do sociólogo Bauman.. p. (. fazendo assim. retrata uma realidade em grande parte vivenciada. não é ao casamento em seu sentido ‘lato’.Sociologia. (. ele se tornou dependente. E Freud continua. de seu objeto amoroso escolhido. No casamento (. (. mas ao matrimônio no sentido ‘stricto’. Prosseguimos dizendo que.) o poder marital era – e de certa forma ainda é – fruto de uma estrutura autoritária dentro da família. mas também benefícios. correrem risco de extinção... na realidade.. negado pelos praticantes do “amor líquido”. não há dúvidas de que a realidade do século XXI. gera tensões.Vol. os relacionamentos entre os Homens representam uma das fontes do seu sofrimento.) a descoberta feita pelo homem de que o amor sexual (genital) lhe proporcionava as mais intensas experiências de satisfação. nossas conclusões poderiam não ser as melhores. p. Antropologia e Cultura Jurídicas período de desregulamentação e informalização dos vínculos afetivos. desvinculando-o de tantas formalidades e solenidades. a prática sexual depois dos cinquenta ou sessenta anos. foram paulatinamente perdendo o grande peso pecaminoso e imoral. a religião. grande parte das vezes sem a influência religiosa.. p. devidamente delimitado. Nos dias atuais. As posturas ‘ilegítimas’ que foram condenadas pelo moralismo sexual do anterior século. no Brasil. hoje em dia temos a vigência do Código Civil de 2002.). não é um dos principais fatores determinantes das escolhas amorosas dos indivíduos. mas para escolherem suas preferências e procurarem. vimos que a religião. Nessa linha. entendemos que o livre arbítrio e a autonomia da vontade dos indivíduos lhes garante optar 425 . estando o Direito de Família. a evolução da Lei para várias situações que envolvem o seio familiar. por sua vez. a opção pelo amor livre e a prática homossexual (entre outras formas de afetividade). o Código Civil de 2002 e a atual jurisprudência dos tribunais têm contribuído para grandes mudanças no cenário jurídico brasileiro. inclusive aos casais homossexuais foi estendido o regime da união estável.. fragilizando a fortaleza moralizadora dos séculos precedentes (. vive sob a égide de um sistema jurídico ramificado. instituto que garante aos indivíduos realizarem suas escolhas com vistas a projetos pessoais e particularizados. talvez a solução mais razoável seja aumentar a liberdade de contratar no casamento.58). Nesse contexto. como o excesso de relações e passatempos amorosos. realizar os seus projetos pessoais de felicidade. Isso demonstra. sob o prisma do Direito. o que. em comparação como século XVI. naquele século. a nosso ver. A nosso ver. Enquanto naquele século o Direito não era sistematizado e sequer unificado. a felação. concomitantemente à pressão familiar. Hironaka (2008. bem como a Constituição Federal de 1988 tratando das relações familiares e amorosas. a masturbação (mormente a recíproca). E aqui não estamos nos referindo somente aos “casados” sob a égide do Direito Civil.Vol. representa um imenso avanço na jurisprudência brasileira. A pós-modernidade traz a novidade da valorização do prazer e o desassocia da noção de dever. 35 . Não podemos deixar de mencionar que hoje. a sociedade atual. Quando realizamos um salto do século XVI para o atual século XXI. atualmente. Entendemos que o Poder Judiciário.Sociologia. tendo cedido espaço à autonomia da vontade. o direito ao orgasmo. garantindo a uma diversidade de núcleos amorosos a proteção jurídica.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . libertando as pessoas não para o acesso livre e indiscriminado ao prazer. a nosso ver. na maior parte das vezes ligada a uma concepção patriarcalista e que via a mulher como ser subordinado e inferior. sem essas amarras externas (e cruéis no mais das vezes). mas também àqueles unidos pela união estável. influenciava bastante nas decisões amorosas dos jovens. portanto. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ainda proclamava a incapacidade relativa da mulher casada. foi uma das responsáveis pelo grande avanço na posição da mulher no Direito de Família. ou ao menos pelos que compõem o que se convencionou denominar como a ‘civilização ocidental’. a evolução tecnológica. uma visão de conjunto sobre o direito brasileiro reflete essa tendência e consagra essas transformações. O ambiente. p. como expressão da atualidade de nosso direito.16) afirma que a Lei nº 4. de cooperação. momento em que os companheiros dispensam a formalização de sua parceria por meio do casamento civil ou religioso. na hora de proceder na vida civil e na vida doméstica..121. como já caracterizado neste trabalho. a mulher aparecia inferiorizada: ‘relativamente incapaz’. o mencionado doutrinador outorga à igualdade conquistada pela mulher na sua relação com o homem um dos principais motivadores da evolução do Direito de Família brasileiro e da consolidação da estrutura jurídica atual. entendemos que tal instituto ao longo do tempo vem cedendo espaço a outras configurações amorosas.16) Todavia. bem veríamos que os escritores em obra sistemática e em trabalhos monográficos descrevem a concepção autonomista da mulher.Vol. parecendo volver-se para um passado já superado e retrogradando para dois mil anos. que o diploma de 62 aboliu. Especificamente no tocante ao casamento.121. vem contribuindo para tal diversificação de relações. Antropologia e Cultura Jurídicas pelas suas relações. (PEREIRA. (. p. É certo que nos lares bem formados o clima dominante era o da igualdade. As relações.Sociologia..16) bem trata de tal evolução em sua obra. O Código Civil de 1916. (PEREIRA.) por todos os sistemas jurídicos. e é com razão cognominada de ‘Estatuto da mulher casada’. A nosso ver. primordialmente. de 27 de agosto de 1962. Se nos detivéssemos no plano doutrinário. permitindo à mulher colaborar nesta empreitada. quando Pereira (2011. a mencionada Lei pretendeu abolir as ideias patriarcais típicas do Código Civil de 1916. Mas. deixando a religião e a opinião familiar de ser os principais guias dos casais contemporâneos. p. algumas delas que caracterizam a união estável. Começou por abolir aquele romanismo que se incrustara em nosso direito como uma excrescência inqualificável e injustificável. O grande passo foi dado pela Lei nº 4. 2011. Nesse espectro. que dispôs sobre a situação jurídica da mulher casada. 2011. 35 . de 27 de agosto de 1961. Isso porque. Trata-se do denominado Estatuto da Mulher Casada.16) Pereira (2011. é de se notar que o Estatuto da Mulher Casada ainda nomeava ao homem a posição de chefe da família. inclusive no âmbito do casamento. conforme alterada. de harmonia. passando a viver juntos. A plena 426 . em especial a internet. p. tratando do Decreto nº 4. p. p. que não o atual. (PEREIRA. 17). foi o Estatuto da mulher casada que lhe facultou o direito de ‘velar pela direção material e moral da família’. acrescentando que esta é uma função exercida com a colaboração da mulher. em nova redação do art. eis que “Foi desta lei que lhe adveio a participação na patria potestas. p. A mesma Lei nº 4.Vol. ainda quando convolava novas núpcias e excluiu da comunhão os ‘bens reservados’ que acumule com o fruto do trabalho. porém. Conforme Pereira (2011. p. de casos de violação ocorridos internamente no Brasil.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que abateu estas muralhas. Ademais. 240 do Código Civil de 1916 declarava que a mulher assume com o casamento a condição de sua consorte e companheira. porém. 17). Merece indicação especial a ratificação pelo Brasil. um incentivo à independência financeira da mulher casada. p. 35 . Chegamos à estruturação jurídica atual. conforme Pereira (2011.121. a igualdade jurídica entre o homem e mulher. Estas modificações no regime jurídico da mulher já se integraram no nosso direito positivo” (Pereira. A ratificação desta Convenção autoriza a denúncia em âmbito internacional. que veremos mais à frente.Sociologia. ainda. diante das desigualdades sociais nas mais diversas regiões do país onde a mulher ainda tem espaços significativos a conquistar. 427 . 246 do Código Civil de 1916.121. 2011. a Lei nº 4. Antropologia e Cultura Jurídicas igualdade da mulher só foi definitivamente alcançada com a Constituição Federal em 1988. através do Decreto nº 4. o Estatuto em tela representou uma grande evolução especialmente no tocante à criação dos filhos pelo casal. Esclareça-se que o Código Civil de 2002 incorporou. 2011. fosse garantido para eventuais filhos decorrentes de outros relacionamentos.17) O Estatuto da Mulher Casada representou.377/2002. deu à mulher casada que exerce profissão fora do lar autonomia econômica e lhe franqueou constituir reserva patrimonial de livre administração e disposição. a cavaleiro das dívidas contraídas pelo marido. mantendo no marido a chefia. passou-se a admitir que o dinheiro obtido pela mulher. com seu próprio trabalho. no interesse comum do casal e dos filhos. Esta mesma lei deu o pátrio poder sobre os filhos do leito anterior. E mais. que exerce em colaboração com o marido. Se o art. de 27 de agosto de 1962. definitivamente.18) vai além. Foi. Pereira (2011.17). momento em que o Brasil está sob a égide do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal. bem como os frutos civis deste. Caio Mário sempre considerou precipitada a revogação do instituto do ‘bem reservado’ da mulher.377/2002 da ‘Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação da Mulher’. reafirmando direitos declarados na Constituição Federal de 1988. 227.. p. adulterinos. incestuosos. Precisamos de uma Ciência Jurídica que integra 428 . a função religiosa. ainda se discriminavam as relações extraconjugais. de toda a história jurídica com a história jurídica nacional.. em que o senhor de engenho era ao mesmo tempo um chefe econômico. valorizando esta convivência na família natural ou na família substituta e representando para eles a melhor medida para sua proteção e desenvolvimento. nessa visão de futuro. Ainda que os dizeres da carta constitucional não sejam plenamente eficazes. 18). a função de procriação. o planejamento familiar (art. ou uma Ciência do Direito somente histórica e socioeconômica (“Escola Histórica”. Neste momento não poderíamos deixar de citar Berman (2006. Até hoje. 227. §8º) e a absoluta igualdade de todos os filhos. Procurou ressaltar a importância da vida em família como ambiente natural para o desenvolvimento daqueles que ainda não atingiram a vida adulta. (. p. 226. a função política. E se distinguiam filhos legítimos. como Gilberto Freire. 2011. §5º). Precisamos superar a visão reducionista do Direito. um chefe religioso e um chefe político. Todas essas classificações desapareceram em face de disposição constitucional que equiparou todos os filhos. por sua vez. 252) compartilha de tal visão. já que o nosso Direito necessita de inúmeros melhoramentos – e sobre isso não nos aprofundaremos devido ao escopo do presente trabalho . p.) A família.Vol. proibindo designações discriminatórias. a saber.) A Carta de 1988 reconheceu a convivência familiar e comunitária como Direito Fundamental constitucional (art. (. E Pereira (2011. “Análise Econômica do Direito”). Destaque-se como relevantes mudanças introduzidas pela Constituição Federal de 1988: a equiparação dos cônjuges em direitos e deveres (art.. o ato jurídico da adoção.18) conclui. p. culminou grandes avanços. E teve coragem de. como sabemos. nenhuma constituição dos demais países do mundo regulou com tanta precisão. a função econômica.temos um diploma que se preocupou com a evolução do Direito de Família. abolindo qualquer designações discriminatórias (art. a identificação de todo o Direito com o nosso Direito nacional. 226.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 35 . Precisamos superar a separação do Direito e da História. (PEREIRA.. ilegítimos. perdeu historicamente as suas funções tradicionais. 226 §7º) e a assistência à família (Art. as falácias de uma Ciência do Direito exclusivamente política ou analítica (“Positivismo”) ou uma Ciência do Direito exclusivamente moral e filosófica (“Teoria do Direito Natural”).8). quando trata da evolução do Direito frente às mudanças vivenciadas pelos indivíduos. Lôbo (2008. CF).Sociologia. enfrentar problemas extremamente controvertidos. E o exemplo marcante na história brasileira até o advento do século XX é o da família rural. Antropologia e Cultura Jurídicas A Constituição Federal de 1988. que o vê como um amontoado de regras técnicas para resolver problemas. com tanta visão de futuro a família quanto a Constituição brasileira. CF). §6º. bem retratada pelos nossos estudiosos da alma brasileira. Num passado recente. Nos dias atuais. Segundo Bauman (2004). em que temos a clara vigência do Direito de Família.Sociologia. ao longo dos anos. garante a eles optar pelas suas relações. não sendo um cânone sistematizado como nos dias atuais. vá além delas. deixando a religião e a opinião familiar de serem os principais guias dos casais contemporâneos. 35 . no contexto do Estado Absolutista. Isso se torna mais justificado na medida em que. no âmbito do casamento. O casamento. portanto. A mulher era tida como ser submisso ao homem. profissional e socialmente. a atual cultura consumista influencia os casais.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . tornou-se real. ordenações do reino e costumes. no século XXI. 5. direito canônico. bem como de a mulher passar a ser dominada pelo seu marido. percebe-se que o casamento na formação da família era um instituto quase sempre presente. fato este bem retratado por Guiddens (1993). não era bem delimitado pelo Direito. Para o referido sociólogo. Com o Código Civil de 2002. o Direito se concebia dentro de quatro planos: direito romano. no século XVI a religião pode ser entendida também como causa para a formação dos relacionamentos entre os jovens de maneira sólida e perene. desde a Constituição Federal de 1988. foi um fator de grande modificação na formação dos relacionamentos amorosos. 429 . o que se justificava numa sociedade estabelecida sob o patriarcalismo. mas que. entendemos que o livre arbítrio e a autonomia da vontade dos indivíduos. o que se estende inclusive na escolha de se ter ou não filhos. o fato de a mulher. com destaque para o casamento. mas também emoção. sob pena deste não funcionar. garantidos pelo sistema jurídico hoje bem delimitado. Assim. a formação dos relacionamentos. era uma maneira de as famílias exercerem o domínio sobre seus filhos. esta se tornou uma alternativa avaliada econômica e materialmente. Em primeiro lugar. a relação de igualdade entre ambos. Além disso. intuição e fé.Vol. passar a ser igual ao homem. àquela época. Com o decorrer dos séculos. Tal Ciência do Direito teria que enfatizar que é necessário acreditar no Direito. ao mesmo tempo. que irá “fazê-la feliz”. Antropologia e Cultura Jurídicas as três análises tradicionais. No Brasil. DISPOSIÇÕES FINAIS No que tange ao século XVI. a mulher e o homem tiveram a garantia dos mesmos direitos. já que o casamento era uma instituição sagrada e indissolúvel. vive-se o fenômeno do “amor líquido” em virtude de fatores adicionais. Logo. em que a família de Julieta pretende entregá-la a um “bom marido”. desaparece a noção do casamento como instituição divina e indissolúvel. ela envolve só razão. estudando o século XVI.Sociologia. criando nos indivíduos uma noção de que nunca o que se tem é suficiente.Vol. dos denominados “preconceitos seculares” que envolvem o Homem. fatalmente é uma das consequências do amor. estudando a nossa própria geração e seus comportamentos amorosos. o século XVI e o século XXI. a evolução tecnológica. felizes. Ao mesmo tempo. Entendemos ainda que. Nesse sentido Gadamer (2006) nos reforça. Antropologia e Cultura Jurídicas Além do consumismo. caminha junto ao desenvolvimento do Direito. nos colocamos em perspectivas de épocas e conceitos próprios. sendo tudo descartável em função de algo melhor que estaria por vir. Apesar de Bauman (2004) não tratar deste fator. a nosso ver. Nesse contexto. de imediato podemos sentir a efetividade de referida teoria. o contexto histórico influencia diretamente no Direito. portanto. partindo da Europa Ocidental do século XVI e chegando ao Estado Democrático de Direito no Brasil. estamos. inexistente no século XVI. os praticantes do “amor líquido” buscam evitar a sensação de sofrimento ou tristeza. nos limites já determinados – e da tradição a ele arraigada. a nosso ver podemos considerar outra causa do “amor líquido”: o hedonismo pós-moderno. estamos interpretando a partir de nossas tradições presentes. fica latente a teoria proposta por Gadamer (2006). Quando pesquisamos. Nesse sentido. ao analisar nossas tradições presentes. Quando comparamos dois séculos. verificamos como o sistema jurídico influencia diretamente no comportamento dos indivíduos. Essa diversidade de dimensões temporais. pode ser definido como a obrigação de sermos. ou seja. A partir de referida comparação. percebemos como o Direito possibilita mudanças e quebra de paradigmas. de dentro do século XXI.no nosso caso. segundo Fortes (2009). Em um curto espaço de tempo os meios tecnológicos evoluem significativamente. 35 . Os institutos jurídicos acompanham as transições históricas. 430 . na medida em que sua teoria conclui que todo intérprete é mediador do objeto estudado . e sobre elas traçam limites e possibilidades. na medida em que temos consciência de que.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . elas mesmas contribuem para a sua própria definição. a todo tempo e a qualquer custo. pela teoria freudiana (1973). Ora. na busca de causas para o comportamento amoroso dos indivíduos. O referido fenômeno. ao olhar para trás. o desenvolvimento do Direito no tocante aos relacionamentos amorosos. de dentro do século XXI. também é considerada um dos fatores para o “amor líquido”. ao realizar o paralelo entre os séculos. As relações tornam-se objetos. E. Da mesma forma. construtores de sua tradição e momento histórico. que. Antropologia e Cultura Jurídicas Afora a relação entre o Direito e a História. em que se pretende evitar qualquer atividade que culmine no sofrimento. poderíamos dizer que a autonomia da vontade tem cedido espaço aos comportamentos “de multidão”. a fundo. trocando-o pelo modelo mais atual. para que se fuja da dor que ele poderá causar. da mesma forma em que entram em um shopping e compram o mais novo modelo de celular. dos relacionamentos numerosos. Ou seja. por exemplo. quais seriam os outros fatores originadores deste fenômeno. pela cultura do consumo desenfreado. traz como foco aquela juventude guiada pelos modismos. 431 . o fato de estarmos inseridos na chamada “era da modernidade líquida”. sendo que no próximo mês estarão ali novamente. Sem pensarem sobre isso. e o relacionamento com o outro deixa de se justificar devido à identificação entre os parceiros. o comportamento dos indivíduos. sem sequer questioná-los.Sociologia. tais como o “consumismo”. Dessa maneira. Nossa crítica. simultaneamente. eivados de liberdade e diversidade. Em Bauman (2004). de como o Direito evoluirá neste século XXI. temos conceitos. e passa a representar um momento efêmero de diversão que. nos desperta amplo interesse em discutir as causas por este autor levantadas. sendo que o mesmo. defender a exigência de se ter uma religião. fazendo com que os jovens entrem em um ciclo de relacionamentos frouxos e líquidos. tratando o seu parceiro como tratam uma página na internet: abrindo e fechando o seu conteúdo. a partir do conhecimento das causas. 35 . quiçá. É de se salientar que o presente artigo não pretende concluir-se com uma visão supostamente puritana. em que se pretenda pregar o casamento como instituição irretocável. devido ao amor entre eles. bem tratados por Freud. na primeira dificuldade. das noites de excesso. mais ainda. na realidade. traçar críticas sobre aqueles que compartilham relacionamentos não exclusivos. na realidade. sempre tendo consciência dos nossos próprios preconceitos. Ou. As parcerias muitas vezes têm se tornado um objeto. bem como por pesquisar. como melhor lhe convier. sem se darem conta de que está ausente a reflexão individual de cada um. Tal atitude traduz uma ausência de consciência individual. Além disso. diretamente relacionados ao amor.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . poderá ser rapidamente substituído. é algo inato e necessário aos indivíduos.Vol. de sentirmos de perto os fenômenos bem descritos por Bauman (2004). entendemos que há ainda outras dimensões que influenciam. podemos chegar a um cenário do presente e. William. Harold. Contardo. SHAKESPEARE. Fortaleza: 2009. São Paulo: UNESP. GUIDDENS. O Laço Conjugal. Paulo Luiz Netto. Rio de Janeiro: FGV. William Shakespeare: Tragédias e Comédias Sombrias. Giselda Maria Fernandes Novaes.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Anthony. 2006.org/scielo. Fernando. 17ª Ed. Shakespeare: a invenção do humano. Revista Mal-Estar e Subjetividade. 432 . Caio Mário da Silva. A Transformação da Intimidade. Hans-George. 2004.Vol. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. FREUD. BAUMAN. Tradução de Barbara Heliodora. 1999. 2008. 2006. Sigmund. A psicanálise face ao hedonismo contemporâneo. CALLIGARIS. Vol. Rio de Janeiro: Objetiva. DIAS. et al. Porto Alegre: Artes e Ofícios. Coleção “Os Pensadores”. Eliene Ferreira. São Paulo: Abril Cultural.5. Maria Berenice.bvsalud. Harold J. 1978. nº 4. São Leopoldo: Unisinos. A Família além dos Mitos. acesso em: 29 de setembro de 2012. I. 35 . Zygmunt. HIRONAKA. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Forense. Antropologia e Cultura Jurídicas REFERÊNCIAS BASTOS. 2006. BERMAN. 1993. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2001. Isabel. et al. Direito e Revolução: A formação da tradição jurídica ocidental. 2011. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. BLOOM.Sociologia. LÔBO. FORTES. O Mal Estar na Civilização. Instituições de Direito Civil. MALHEIROS.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482009000400004>. GADAMER. Belo Horizonte: Del Rey. PEREIRA. volume 9. Disponível em <http://pepsic. V. membro da comunidade. A mediação surge como uma forma de construção de um espaço público democrático. an impartial third as well as a member of the community. Agir Comunicativo – Habermas. tendo como pressuposto a formação de uma relação entre sujeitos baseada no diálogo. Desse modo. como uma forma alternativa de resolução de conflitos sob o enfoque da Teoria do Agir Comunicativo de Habermas. friendship and brotherhood. na linha de pesquisa: Acesso à Justiça e Efetividade do Processo .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . como um instrumento eficaz para construção de uma democracia participativa fundamentada na razão comunicativa. as an effective instrument for founding a democracy based on communicative rationality.Especialista em Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá – UNESA/RJ . KEYWORDS: Community Mediation. will promote the other citizens’ feeling of belonging and empowerment through dialog – a key instrument which.Sociologia. terceiro imparcial. which presupposes the development of relationship between individuals based on debate. levará para os demais moradores o sentimento de pertencimento e empoderamento. PALAVRAS CHAVE: Mediação comunitária. de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.Vol. to a true Democratic State under the Rule of Law. 35 . by both restoring the closed communication channels and reconstructing the broken social ties. Thus. aproximará a comunidade periférica da justiça. tendo o diálogo como instrumento para tal promoção.Professora de Prática Simulada e Mediação de Conflitos (on line) na UNESA/RJ RJ Professora contratada da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. 1 O presente trabalho foi elaborado a partir das conclusões parciais acerca das pesquisas realizadas pela autora para sua dissertação de mestrado. Conflict resolution. Antropologia e Cultura Jurídicas A APLICAÇÃO DO AGIR COMUNICATIVO DE HABERMAS NA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA: O DIÁLOGO COMO INSTRUMENTO TRANSFORMADOR1 THE IMPLEMENTATION OF HABERMAS’S COMMUNICATIVE ACTION IN COMMUNITY MEDIATION: THE DIALOG AS A TRANSFORMING INSTRUMENT Ana Paula Bustamante2 RESUMO O presente artigo tem por objetivo analisar a mediação comunitária. Resolução de conflitos. o mediador. the mediator. ABSTRACT This article aims to analyze the community mediation as an alternative means of conflict resolution. will bring the peripheral community closer to justice. Communicative Action – Habermas. o qual restabelecendo os canais de comunicação interrompidos e reconstruindo laços sociais destruídos. na amizade e na fraternidade. The mediation arises as a way of building a democratic public sphere. under the approach of Habermas’s Theory of Communicative Action. 433 . 2 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá – UNESA/RJ. hábitos e crenças que as partes envolvidas. propiciando uma mudança no paradigma de ganhar x perder. Habermas e a teoria do agir comunicativo. com um acordo de entendimentos. portanto. Introdução. 6. a mediação surge. o que constituirá em uma convivência harmoniosa e geradora de decisões obtidas consensualmente. mais precisamente na mediação comunitária. permite que os sujeitos se reconheçam reciprocamente em seus direitos e deveres. Referências. 2. que sejam capazes de pacificar o conflito e facilitar uma melhor compreensão sobre os fatos que desencadearam a disputa. O presente trabalho tem por escopo tecer considerações sobre como a teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas pode ser aplicada na mediação. 434 . A utilização do diálogo representa o uso de uma nova forma de se observar e resolver o conflito.Vol. Significa dizer que os conflitos que diariamente surgem em comunidades que envolvam pessoas de baixa renda. Introdução A explosão da litigiosidade dos dias atuais aliada à ineficácia dos meios tradicionais de resolução das demandas. A comunicação é capaz de permitir que os indivíduos possam construir decisões justas e legítimas. serão mediados por uma terceira pessoa independente. 35 . 1. para o do ganhar x ganhar. pois a facilitação do diálogo. tendo o diálogo como a grande ferramenta transformadora. Conclusão. A comunidade e seu agir comunicativo: o diálogo como ferramenta de transformação social. prevenindo e solucionando seus próprios conflitos. conciliação e arbitragem). permite cada vez mais a busca pelos meios alternativos de solução dos conflitos (mediação. 4. 3. como uma ferramenta para a transformação social. A mediação comunitária propicia uma forma de tratamento dos conflitos por um terceiro imparcial que possui os mesmos valores. que de forma mais célere e menos onerosa. 5. trabalhando com o diálogo e a participação das partes na formação de um consenso que atenderá aos envolvidos. promovem a paz social. A mediação como tratamento do conflito sob a ótica da teoria habermasiana. que permitirá aos indivíduos criar ou recriar laços de forma a se auto-organizarem. Antropologia e Cultura Jurídicas SUMÁRIO: 1.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A mediação surge como uma nova forma de olhar o conflito. com pequeno ou nenhum acesso à justiça e carentes de todo e qualquer serviço público essencial.Sociologia. Sociologia. um “agir racional com direção a fins”. Atua-se sobre o outro e não com o outro. será analisado o conflito e sua resolução por um dos mecanismos alternativos. servindo não só.. como uma forma de resolução alternativa do conflito. colaborando para a inclusão social e pacificação social.Vol. Em meio a esse cenário. É na esteira deste raciocínio. meramente estratégico. dificultam a formação de unidades axiológicas e impedem a emancipação do homem.. as interações comunicativas são aquelas em que: [. Para Habermas (1989. que possibilita o empoderamento e a responsabilização das partes envolvidas. No caso de processos de entendimento mútuo linguísticos. isto é. os atores erguem com seus atos de fala. fortalecendo a participação dos membros daquela comunidade na vida social.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . apresentando suas características e especificidades e sua importância como um instrumento do Estado Democrático de Direito que promove a reconstrução dos canais de comunicação e dos laços sociais destruídos. será abordada a teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas e a importância do diálogo como uma forma de transformação social. como uma promoção do direito fundamental de acesso à justiça. restabelecendo laços. complexas. 2. E. espelhados através de cálculos de vantagens e decisões arbitrárias. a mediação.79). 35 . fortalecendo os vínculos e promovendo a pacificação social. fundamentado na razão comunicativa. pósconvencionais. os indivíduos dirigem suas ações por critérios de racionalidade meramente instrumentais. ao 435 . que o presente trabalho pretende demonstrar como a teoria habermasiana aplicada na mediação comunitária se apresenta como um instrumento importante para construção de um espaço público democrático. Na sequencia. as sociedades atuais. mas também como um importante instrumento de efetivação da cidadania. Antropologia e Cultura Jurídicas mas que pertence à mesma comunidade que as partes. portanto. voltados à busca de interesses próprios. arranjos que potencializam os conflitos. o acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez. p. estão estruturadas em condições precárias de integração social. finalmente a análise da mediação comunitária. Habermas e a Teoria do Agir comunicativo Para o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas.] as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação. conhecedora dos conflitos que surgem naquela localidade. Para tanto. num primeiro momento. ” 436 . utilizam-se da ação instrumental. que com ela se confunde. pretensões de verdade. pela comunicação. tendo em vista. apresentando a ética discursiva como sendo parte da ação comunicativa. no agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro para uma ação e adesão – e isso em virtude do efeito ilocucionário de comprometimento que a oferta de um ato de fala suscita. a que propiciará a unidade na interdisciplinaridade. afirma que: A Teoria da Ação Comunicativa. A ação comunicativa prevalece em esferas da sociedade onde existe a inferação linguisticamente mediada. procura um conceito comunicativo de razão e um novo entendimento da sociedade. de Jürgen Habermas (Theorie des Kommunikativen Handels). buscando através da linguagem as melhores decisões para os indivíduos e para a sociedade. o dinheiro e o poder. ensejando-lhes a responsabilidade por suas decisões. A ação comunicativa. analisando esta teoria habermasiana. sociológica e psicológica. de mundo vivo ou mundo da vida (Lebenswelt). determinantes na ação instrumental. ou seja. No sistema político. ou seja. tomadas pelo dinheiro e pelo poder. Sales (2004.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . pretensões de correção e pretensões de sinceridade. a ética discursiva tem a linguagem como o instrumento que possibilitará as interações necessárias entre os três caminhos acima identificados (filosofia. A teoria da ação comunicativa e ética discursiva. Não agem. Na ação comunicativa.171). p. Enquanto que no agir estratégico um atua sobre o outro para ensejar a continuação desejada de uma interação. sociedade na qual os indivíduos participam ativamente das decisões individuais e coletivas conscientemente. conforme se refiram a algo no mundo objetivo (enquanto totalidade dos estados de coisas existentes). sociologia e psicologia). a linguagem (diálogo) tem sido substituída pela ação técnica. no sistema econômico. ou a algo no mundo social comum (enquanto totalidade das relações interpessoais legitimamente reguladas de um grupo social) ou a algo no mundo subjetivo próprio (enquanto totalidade das vivências a que têm acesso privilegiado). 35 . As sociedades modernas. pretensões de validez. quando os fins justificam os meios.Sociologia. p. que Habermas identifica como: ação instrumental e ação comunicativa. Para o filósofo. mais precisamente. Nesses sistemas não há espaço para ação comunicativa. por sua vez. Antropologia e Cultura Jurídicas se entenderem uns com os outros sobre algo. ou seja.Vol. por exemplo. A perspectiva sociológica da teoria da ação comunicativa diz respeito a dois tipos de ação.3 As sociedades que possuem locais onde há a prevalência da ação instrumental. são substituídos pela linguagem. as normas e sanções apresentadas pelo ordenamento jurídico do país. A interação por meio do diálogo busca o entendimento e o bem estar de cada um. mecanicamente. 173) discorre sobre estas ações. de Habermas. O espaço da sociedade em que ainda existe a ação comunicativa é o chamado por Jürgen Habermas. são identificadas pelo 3 Sales (2004. busca entender a moralidade sob a visão filosófica. representa o diálogo entre as partes. Essa teoria entende o indivíduo como ente participativo que antes de agir avalia as possíveis consequências. afirmando que: “A ação instrumental representa a ação técnica. o poder substitui a linguagem e. na qual são aplicados os meios para a obtenção dos fins. comunicação entre os membros da sociedade voltada para o entendimento e harmonia entre seus membros. portanto. frente aos seus padrões valorativos. (CITTADINO. o mundo da ação comunicativa é. contextualizando Habermas. 1999. sino también de la fuerza de comportarse reflexivamente frente a su propia subjetividad y penetrar las coacciones irracionales a que pueden estar sistemáticamente sometidas sus manifestaciones cognitivas. como mundo sistêmico e aquelas nas quais a prevalência é da ação comunicativa.4 Portanto. ou seja. com mais consciência.108). Habermas. Assim. de la racionalidad de un sujeto moralmente lúcido y digno de confianza en asuntos práctico-morales. enquanto que existem pessoas que conseguem ter uma atitude reflexiva sobre sua subjetividade e através da autorreflexão tem condições de se liberarem de suas ilusões e fantasias que foram adquiridas com a própria vivência..]”. afirma que “a ação comunicativa. p... pois acabam se enganando no seu autoconhecimento.. o mundo vivido ou o mundo da vida”. “[. A ação comunicativa “[. tem a capacidade de adotar uma atitude reflexiva e. crítica [.. p. irá avaliar as consequências de suas ações. 2004..108). 41). Habermas (1999. O indivíduo. 437 . p.Vol. no solamente dispone de la racionalidade de un agente capaz de juzgar y de actuar racionalmente con arreglo a fines. p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . para a teoria do agir comunicativo é possuidor de capacidade de autoreflexão e crítica. Citadino (2004. pois antes que inicie o seu agir. o que possibilitará uma modificação do mundo. fica clara a necessidade de se ultrapassar o processo comunicativo característico do mundo da vida para se ingressar no processo de racionalidade reflexiva e crítica. 41). a argumentação. permitindo a organização social. por facilitar o diálogo acaba por trazer uma melhor decisão para os indivíduos e diferentemente do mundo sistêmico. pero quien es capaz de dejarse ilustrar sobre su irracionalidad. portanto. 4 “Quien sistemáticamente se engaña sobre sí mismo se está comportando irracionalmente. Antropologia e Cultura Jurídicas filósofo. de la racionalidad de un sujeto sensible en sus valoraciones y esteticamente capaz.] amplia o conceito de racionalidade e designa como racionais os indivíduos que. (HABERMAS. portanto. possibilitando maior compreensão do individual.]” (SALES. fazendo uma ponte com a psicanálise e a atuação do terapeuta (visão freudiana). 2004.. 175). acredita que tem pessoas que se comportam irracionalmente. e do coletivo e do bem estar social. Com isso. 35 .] modifica a relação entre os indivíduos. p. sus manifestaciones prácticomorales y sus manifestaciones práctico-estéticas”. a identificação é de mundo vivido ou mundo da vida. transformando o subjetivo em intersubjetivo. atuando.Sociologia. a elaboração e a validação de normas [.. p. propiciará aos sujeitos a possibilidade de promoverem mudanças sobre algumas de suas convicções e com isso encontrarem razões para seus atos. 176). Neste caso. trazendo problemas. desta modificação. Temos. a formação discursiva da vontade que permite a interação comunicativa com a utilização do melhor argumento. (SALES. p. As pessoas se valem da argumentação para buscar o entendimento e justamente. há um despertar para o indivíduo quanto suas responsabilidades como membros da sociedade.Sociologia. falando. esta argumentação racional. apresentando novas declarações e tudo sempre nas mesmas condições de igualdade e com liberdade de comunicação. formando aquilo que Habermas designa por intersubjetividade”.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . fazendo afirmações.. cooperação e solidariedade permitindo. (CITTADINO. o que acaba possibilitando o entendimento. O entendimento entre as pessoas depende da argumentação entre elas. Antropologia e Cultura Jurídicas Neste sentido. que se processa através de estruturas linguísticas. intervindo. a construção de relações sociais apoiadas no princípio da reciprocidade. portanto. o que somente é possível quando há comunhão de valores. propiciando uma melhor percepção dos sentimentos entre os envolvidos.. os quais 438 . Com isso. agindo. Nesta perspectiva de interação. temos todos os interessados atuando ativamente. Os processos se legitimam quando há o entendimento dos cidadãos acerca das regras de sua convivência.91). Assim. 2004. portanto. Portanto. sendo esta o direcionamento para o qual se volta a ética discursiva. através das quais há uma garantia intersubjetiva de compartilhamento de um contexto comum. e como decorrência deste despertar. os sujeitos têm capacidade de linguagem e ação e podem estabelecer práticas argumentativas. surge uma compreensão não só das manifestações individuais.] há desta forma. “[. uma compreensão maior dos fenômenos individuais. tem o condão de fazer com que as partes possam se convencer mutuamente da veracidade das afirmações e declarações mútuas. condições estas totalmente favoráveis ao diálogo e que Habermas identificou como sendo uma ética discursiva. os próprios sujeitos orientarão suas ações alcançando a “situação ideal de fala” proposta por Habermas.Vol. mas também daquelas ocorridas no mundo à volta. Como já afirmado. uma inter-relação entre sujeito e sociedade. 35 . 2004. que tem no agir comunicativo o principal mecanismo de realização de entendimentos entre sujeitos. Habermas propõe uma teoria crítica da sociedade. de um “mundo da vida”. uma vez que consiste na tentativa de predominância de uma posição sobre a outra. o filósofo italiano Eligio Resta. familiar. 2012. em primeiro lugar. com igual respeito por cada um dos integrantes do corpo social e consideração dos interesses de todos. como forma de solução. dois grupos ou duas nações dentro de um mesmo contexto social (MORAIS. principal teórico sobre o tema fraternidade. que as forças confrontantes sejam dinâmicas 5 Neste sentido. Há uma incompatibilidade entre atos que originam ou não da vontade dos envolvidos. tentam impor os seus argumentos. 35 . político.] que abandona a fronteira fechada da cidadania e olha em direção à nova forma de cosmopolitismo que não é representada pelos mercados. que tem como pilares a amizade e a solidariedade. com o uso de argumentos sobre o qual se constrói uma razão comunicativa nos moldes proposto por Habermas. religioso e etc. o ponto de partida é a existência do conflito e a forma de sua interpretação e administração na sociedade. gerando um ciclo vicioso..COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que pode ocorrer com o uso da violência (direta ou indireta) ou da ameaça (física ou psicológica). Com isso. SPENGLER. 45). desde que o reconhecimento do compartilhamento se libere da rivalidade destrutiva típica do modelo dos ‘irmãos inimigos’. Assim. com a construção de um tempo mais justo. ainda assim. permitindo que as partes possam decidir suas próprias lides. pode-se afirmar que o embasamento teórico da mediação é uma proposta fraterna. entretanto.. mas pela necessidade universalista de respeito aos direitos humanos que vai se impondo ao egoísmo dos ‘lobos artificiais’ ou dos poderes que à sua sombra governam e decidem. entretanto.. Assim. menos violento.. p14). para que haja conflito é preciso.] o direito fraterno pode ser a forma mediante a qual pode crescer um processo de auto-responsabilização.]. “Por isso.5 3.”(2004.15-16)..Sociologia. o sentido que será adotado é o de conflitos sociais enquanto desequilíbrio de uma relação harmônica entre duas pessoas. orientados pela ideia de reciprocidade. promovendo o diálogo e a cooperação entre si. Antropologia e Cultura Jurídicas formam uma consciência moral dirigida por princípios de justiça. formam-se consensos com base nesses ideais de justiça e solidariedade social. “[. 439 . p.[. sendo certo que cada uma das partes tem o conhecimento da incompatibilidade das posições.Vol. pois este pode ser social. Afirma o filósofo que “[.. tem como fundamento a existência de uma sociedade fraterna. O conflito ocorrerá sempre que houver resistência do outro.. A mediação como tratamento do conflito sob a ótica da teoria habermasiana Várias são as acepções para o conceito de conflito. Esta forma de restabelecer o consenso. em sua obra “O Direito Fraterno” aborda a amizade como um cimento social que possibilita um tratamento adequado ao conflito. (p. desta forma. SPENGLER. é o detentor do monopólio da aplicação do direito (jurisdição) e. O conflito quer seja ele coletivo ou individual. “resulta-se muitas vezes. o que acaba gerando uma anulação na percepção da vontade de um dos envolvidos e consequentemente uma sobreposição da vontade de um sobre o outro. 109). o juiz. p. o conflito também pode ser analisado sob outro enfoque.Vol. 440 . o positivo. (SPENGLER. Não há como evitá-los. é com a aplicação do direito. através do Poder Judiciário. na esteira deste raciocínio. “é um fator de amadurecimento das relações humanas. uma vez que dele pode-se deflagrar um processo de autoconhecimento. 2009. mas também no próprio grupo. Entretanto. mas também nas relações com o outro. por gerar vivências e experiências valiosas para o indivíduo em seu ciclo de vida” (TARTUCE. é de que deverá ser controlado. 33). Estas consequências são “desfiguradoras e purificadoras. reagindo umas sobre as outras”. pode-se afirmar que o conflito acaba por promover uma integração social. Assim. [s/p]).273).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . verifica-se que o conflito acaba por transformar os indivíduos não só nas suas relações interpessoais. Desta sobreposição de vontades. p. E. gerando mudanças e adaptações interiores que interferem não somente nos envolvidos. a solução encontrada e que perdurou durante muito tempo (e que ainda perdura). 35 . proporcionando um crescimento dos envolvidos” (OLIVEIRA. 2012. Diante dos conflitos que permeiam a sociedade moderna. 2008. sendo “salutar para o crescimento e desenvolvimento da personalidade. é normalmente oriundo das complexidades das relações sociais. enfraquecedoras ou fortalecedoras” (MORAIS. O Estado detém a legitimidade exclusiva para decidir.Sociologia. 54). uma vez que ocorrem onde há discordância de interesses e rompimento da comunicação. que representado por um terceiro imparcial. envolvendo pessoas que geram os acontecimentos. Antropologia e Cultura Jurídicas contendo em si mesmas o sentido da ação. de modo que se pode individuar um ganhador (aquele que se sobrepõe) e um perdedor (aquele cujos desejos são sublimados pelo outro)”. 2012. a submissão de um aos desejos do outro. p. removido/exterminado da sociedade. suas regras e princípios que será instaurada a ordem social. é nítido que no conflito há um aspecto negativo que conduz a uma interpretação como um fator de desagregação e obstáculo e que diante da possibilidade de acarretar perdas. E. conforme afirmado por Spengler (2012. p. Morais e Spengler (2012. A terceira onda renovatória. a jurisconstrução: 441 . cria a figura de um ganhador e um perdedor. uma vez que por ser imposta. pode não se aproximar do que seria melhor para as partes. pois somente as partes envolvidas é que irão construir o melhor resultado. Com isso aquela figura da relação triangular da jurisdição (autor. p. sendo necessários novos mecanismos procedimentais que possibilitem a efetividade dos direitos envolvidos. desta forma o juiz ao decidir amparado no que a lei determina. com a prolação de uma sentença pelo juiz que impõe a decisão para as partes. Estes novos mecanismos consensuais proporcionam às partes a possibilidade de gerirem os conflitos. Neste sentido. já não se apresenta mais como a mais adequada para determinados conflitos. da rapidez. 35 . não é uma solução democrática. negociação e redução ou ausência de custos. mas sim uma análise processual. Antropologia e Cultura Jurídicas irá decidir os conflitos da sociedade.Sociologia. uma vez que. a resolução de alguns conflitos de forma judicial.. não é mais possível resolver os problemas somente com atuação de advogados. 100). 2012.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . p. réu e juiz) acaba dando espaço à uma relação dual.Vol. acena para utilização dos meios alternativos de resolução de conflitos. apresentam a ideia de um direito construído em conjunto. Com isso. sendo necessário um olhar diferenciado acerca da justiça. pois resolver um conflito nem sempre significa acabar com ele. sem ouvir/sentir as partes” (MORAIS. identificada por Mauro Cappelletti e Bryant Garth. 116) afirma que “[. E. A adjudicação judicial.. não se mostra mais como adequada. como já afirmado. SPENGLER. o que inevitavelmente. o que acaba por gerar um resultado contraditório. na obra “Acesso à Justiça”. p. “sem sentir os outros do conflito. encaixando-o num modelo normativo. propondo a identificação e implantação de reformas no sentido de melhor atender às necessidades dos indivíduos.. 2004. uma vez o magistrado decide litígios alheios. 121-122)..74). p. Portanto. “não desenvolve a tarefa de cimento social que compete a outros mais preparados fazer” (RESTA.] a tarefa do juiz é a de assumir decisões com base em decisões e de permitir decisões com base nas mesmas decisões [. na busca de garantir e restaurar a paz e a harmonia social.]”. aproximando-as através da oralidade. Resta (2004. A decisão do conflito que é monopolizada pelo Estado. 442 . in Revista de Processo. vol. vol 17. p.Sociologia.Vol.. é importante a leitura de PINHO. A mediação nos ensinamentos de Sales (2004. De um lado. p. Desta forma. 23-24) é: [.] um procedimento em que através do qual uma terceira pessoa age no sentido de encorajar e facilitar a resolução de uma disputa.] que atravessaria o campo social. como um instrumento de transformação. facilitando o diálogo e alcançando uma decisão equilibrada.. conciliação e arbitragem. p.. 1999. em decorrência da complexidade de alguns litígios. de outro. apontam que a solução é a utilização de meios que resolvam o conflito “de forma consensual.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 82/97 e COLOIÁCOVO. 14). Mecanismos de Solução Alternativa de Conflitos: algumas considerações introdutórias. Mediação e Arbitragem. 09/14. pp. portanto.S. São Paulo: Oliveira Rocha. Antropologia e Cultura Jurídicas [.. A partir da análise dos meios alternativos de resolução dos conflitos (arbitragem. 2004. e que se apresenta como a mais adequada para determinados conflitos. Mauro [s/ indicação de tradutor]. 35 . in Revista Dialética de Direito Processual. Negociação. exigindo conceber um julgamento jurídico como um modelo reflexivo. como um instrumento capaz de restaurar uma identidade harmoniosa “[. pacífica e harmônica. faz-se necessário identificar qual será o processo de resolução que melhor atenderá aos resultados esperados pelas partes.122).C. promove a “pacificação do conflito por meio de um mecanismo de diálogo e compreensão” (PINHO.. a mediação. Ghisleni e Spengler (2010. o dizer o direito próprio do Estado. Forense: Rio de Janeiro. conciliação e mediação)6. evitando 6 O presente artigo destina-se tão somente a tratar de um dos métodos alternativos de solução dos conflitos (M. Juan Luis e Cynthia Alexandra. SPENGLER. a justiça consensual ou a judicial. 2012. 74. da explosão da litigiosidade e consequentemente da crise do Judiciário. Humberto Dalla Bernardina de. verifica-se a possibilidade de utilizar a mediação (espécie de justiça consensual). solidária e fraterna”. o elaborar/concertar/pactar/construir a resposta para o conflito em que reúne as partes. Na esteira deste raciocínio. pp. no sentido de trazer uma aproximação entre as partes.A. Para um estudo aprofundado dos demais. p.. e que esta venha a ser a alternativa encontrada para se obter uma transformação do paradigma do litígio para o do consenso. Os Métodos Alternativos de Solução de Conflitos no Quadro do Movimento Universal de Acesso à Justiça. CAPPELLETTI.] na medida em que esta nomenclatura permite supor uma distinção fundamental entre os dois grandes métodos. DURÇO. A mediação. 253). uma vez instaurado o conflito. São Paulo: Revista dos Tribunais.). que caracteriza a jurisdição como poder/função estatal e. 1994. e não mais sob o modelo silogístico de uma fórmula determinante” (MORAIS. Neste sentido. permitir a estas confrontar seus pontos de vista e procurar. a mediação é: Um processo frequentemente formal pelo qual um terceiro neutro tenta. SPENGLER.Vol. e que seja detentor de sua confiança” (PINHO. Este terceiro. 131).. tendo como fundamento a prática discursiva e a inserção do diálogo. 129-131). A mediação. porém sem prescrever a solução. da conscientização do outro. 35 .Sociologia. contudo.] Segundo Bonafé-Schmitt (apud MORAIS.. o mediador. Para Resta (2004.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . fundamentos utilizados pelo filósofo Jürgen Habermas. através da organização de trocas entre as partes.] não deve concluir nem decidir nada. com sua ajuda. Desta forma. 14). (OLIVEIRA. deve somente fazer com que as partes conflitantes estejam em condições de recomeçar a comunicação. portanto. [s/p]. uma terceira pessoa imparcial (que é detentora da confiança das partes) na condução desta nova concepção de resolver o conflito. ao desenvolver sua teoria do agir comunicativo. 2012. respeitar e escutar o outro. fazendo com que os envolvidos produzam o tratamento do conflito”. a mediação pode ser definida “como o instrumento de solução de um conflito por meio do qual os litigantes buscam o auxílio de um terceiro imparcial. que será analisada no próximo tópico deste capítulo. se alcança uma solução para o conflito. à ele não cabe a decisão do conflito e sim auxiliá-las no sentido de reconhecer. surge como um processo de superação dos conflitos centrada no diálogo e na autonomia dos envolvidos no problema.” Assim. tem como função facilitar o diálogo entre as partes. a mediação “[.. O restabelecimento deste vínculo comunicativo que foi rompido é fundamental para o sucesso da mediação. pode-se afirmar que a mediação é pautada em uma prática discursiva. atuando como um facilitador do processo.). As partes são as responsáveis pela decisão que atribuirá fim ao conflito [. 2002. sem. que tem na pessoa do mediador. p.. uma solução para o conflito que os opõe. p. DURÇO. p. 443 . O processo comunicativo funciona como base para a resolução do conflito. fazer uso da força coercitiva. na qual através do diálogo. Antropologia e Cultura Jurídicas antagonismos. a mediação se apresenta como uma proposta inovadora que “potencializa a capacidade de compreensão dos problemas. apresentando-se a mediação. todos participam na busca de um acordo. como um instrumento que reestrutura o diálogo e a prática do consenso. familiares. seus resultados e cabimento. vizinhos e colegas de trabalho. na verdade é um conjunto de mágoas que se somam ao longo do convívio e envolvem profundas emoções. duradoura.Vol. Portanto. propiciam o aumento da organização e aplicação de regras criadas pelo próprio cidadão objetivando o tratamento de seus conflitos. e é aqui que temos a mediação como um instrumento de restabelecimento do diálogo e da comunicação de forma a preservar e restabelecer o vínculo entre as partes através do agir comunicativo. 2009. A mediação é o método de solução de controvérsias ideal para as relações duradouras. 215). na falta de atenção do Estado para com os direitos fundamentais do cidadão”.Sociologia. à crise do Judiciário. “possibilitando a transformação do tratamento do conflito e não o seu engessamento” (OLIVEIRA. que não consegue desempenhar seu papel com eficiência. [s/p]). ainda que ausentes de oficialidade. p. (SPENGLER. portanto. rapidez e efetividade. como é o caso de cônjuges. em uma relação continuada. permite o reconhecimento do outro enquanto diferente. 35 . 4. Antropologia e Cultura Jurídicas Ao expressar-se sobre a mediação. Esta ausência ou presença mínima do Estado aliada não só.” (SPENGLER. 279). p. o conflito não surge somente por uma razão. acabam por gerar cada vez mais a “proliferação de direitos ditos inoficiais que tem berço quase sempre.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . principalmente no sentido de entender os conflitos rotineiros de uma comunidade.favelas e bairros periféricos) a pouca ou nenhuma presença do Estado aliada à falta de diálogo e compreensão do mundo moderno. p. na forma como indica a teoria do agir comunicativo de Habermas. muitas vezes os indivíduos aplicam suas próprias regras. prevalecendo o melhor argumento. Pinho (2005. 2012. entre outros. 2012. Desta forma. “cansados de esperar. que será abordada a seguir. 444 . presente na mediação. bem como a dificuldade dos moradores ao acesso à justiça. Este diálogo. no qual todos tem acesso. pacificando o conflito. A comunidade e seu agir comunicativo: o diálogo como ferramenta de transformação social Nos espaços sociais (comunidades carentes . 13) afirma: As partes compreendem que o vínculo que as une é mais importante que um problema circunstancial e talvez temporário. 135). cobrindo uma interacção jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal (o direito do asfalto.. p. a mediação comunitária se apresenta como uma ferramenta perfeita. conforme indicado por SPENGLER (2009. 2004. 445 .. e diferentes lógicas normativas”. 219. Rio de Janeiro.. BAUMAN. Portanto. vale lembrar que Boaventura de Souza Santos (1988..” (SALES.] esbarra no contraponto do direito oficial no qual o Estado tem o monopólio da violência legítima e do direito. 338-339).. de forma que responsabilize o cidadão por suas escolhas. potencializam a problematização das relações entre os cidadãos. Desta forma. a cidadania é atribuída a indivíduos pelo estado de que são nacionais. Antropologia e Cultura Jurídicas Neste sentido. este direito inoficial: [. p. com diferentes centros de poder a sustenta-las. não possui o monopólio da produção do direito. p. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. p. 277-278). Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. 35 . criando alternativas à justiça estatal. a mediação comunitária é aquela que é realizada dentro dos bairros periféricos em algumas cidades brasileiras.])”. 2004. pois extrai a sua força legitimadora ao viabilizar o entendimento entre os cidadãos das comunidades sobre as regras de sua convivência.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 2004. visando “oferecer àqueles que vivem em condições menos afortunadas possibilidades de conscientização de direitos. como lhe chamam os moradores das favelas [. pois em que pese ter o monopólio da aplicação do direito. 277-278) analisar a importância da cidadania e sua vinculação entre os homens em BAUMAN.]7 E. apud. verifica-se que diante do cenário de ineficiência e de ilegitimidade estatal os moradores acabam buscando outras formas de resolução dos conflitos. centralizada e centralizadora. Conforme afirmado por Spengler (2009. 14) fazendo uma alusão a uma favela do Rio de Janeiro (Pasárgada) menciona que nesta comunidade vigora um “direito paralelo não oficial. com isso. Zahar. (SPENGLER. aprofundando os conflitos. p. resolução e prevenção de conflitos em busca da paz social.Sociologia. pelo que em princípio não há cidadania sem nacionalidade e vice-versa [. Zigmunt. 2012. 7 Nesse sentido. o que consequentemente faz surgir na sociedade “uma pluralidade de ordens jurídicas. Na esteira deste raciocínio. e tendo como base estas comunidades. Ed.. que por suas características e especificidades. p.Vol. constata-se a própria crise do Judiciário. dispondo de organização burocrática de larga escala. criando mecanismos mais adequados para o tratamento do conflito daquela localidade. Desta forma. ou seja. o que se tem é uma abordagem do conflito por um individuo igual. mas também como um meio para o exercício da cidadania e para independência da comunidade”. p. crenças. possibilitar o diálogo entre as partes. 446 . servindo. “A mediação comunitária trabalha com a lógica de um terceiro independente.” (SPENGLER. possuindo uma “legitimidade que não é atribuída pelo Estado e sim pelas próprias partes. pois as relações são contínuas e duradouras e a resolução do impasse com a adjudicação judicial. membro desta mesma comunidade e este terceiro pretende levar aos demais moradores o sentimento de inclusão social” (SPENGLER. é um dos moradores do próprio meio (geralmente líderes comunitários). à consciência de que o cidadão pode solucionar seu conflito de forma amigável. p. da sua condutado seu código de ética e de moral. possuindo valores. desenvolve-se na comunidade. Na mediação comunitária. fazendo com que estas enxerguem os obstáculos ao acordo e possam removê-los de forma consciente. neste sentido. que pertence a mesma comunidade. o mediador fala a mesma linguagem que os conflitantes. 2009. Com isso. o mediador não irá solucionar o conflito de forma a dizer quem é o vencedor. ao mediador. a manutenção dos vínculos é algo primordial. 135). 280).COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Sociologia.Vol. 273). não só como um “instrumento de pacificação social. como afirmado por Sales (2004. 35 . é o estímulo ao diálogo. Nos conflitos que surgem nas comunidades. como verdadeira manifestação de sua vontade e de sua intenção de compor o litígio como alternativa ao embate. “conhecimentos. quem tem mais direito. como afirmado por Vedana (2003. em função de suas características. que não tem a missão de decidir e sim de auxiliar as partes na obtenção de uma solução consensual. 2009. Antropologia e Cultura Jurídicas Neste tipo de mediação comunitária. o que se pretende com a mediação comunitária. a comunidade não espera do mediador o que a jurisdição tradicional espera do juiz. É uma forma emancipadora de acesso à justiça. hábitos e crenças que são comuns aos conflitantes. o mediador (terceiro imparcial). atitudes e comportamentos conducentes ao fortalecimento de uma cultura político-democrática e uma cultura de paz”. não é a melhor saída. Portanto.264). cabe sim. p. p. sem a necessidade da intervenção do Estado-Juiz. tão distante da sua realidade. ] faça a sua parte. nem sempre a sua posição é imparcial.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . a institucionalizada é aquela “que cumpre um trabalho especifico a serviço. O fato de o mediador comunitário ser um integrante da própria comunidade. Antropologia e Cultura Jurídicas A ideia de que os próprios moradores da comunidade terão a possibilidade e capacidade de resolver seus conflitos sozinhos. propicia uma união interna. por relações de parentesco. 8 447 . a noção de empoderamento dos membros de uma comunidade está ligada à ideia de diminuição da dependência destes em medidas assistencialistas (estatais ou de outras entidades). por exemplo. 111): [. quando o mediador é escolhido a partir de membros da própria comunidade. A mediação comunitária possui todas as características gerais da mediação. p. são irrelevantes no âmbito comunitário. pela promoção de medidas que permitam o exercício direto dos direitos e deveres dos cidadãos com um consequente ganho qualitativo. seja no interesse por dialogar e resolver a pendência.. uma institucionalizada e outra autônoma. sua atuação é considerada por todos como justa. ao mesmo tempo. pois a própria comunidade reconhece o mediador como uma figura neutra. contudo.. na humildade em reconhecer suas falhas ou na prestatividade ao ceder (de forma positiva que não venha a prejudicar nenhuma das partes envolvidas). seja na paciência e educação para ouvir o que o outro tem a dizer. o que pode ocasionar certa parcialidade. p. o que propicia também. sugerir (soluções. portanto. Enquanto que a autônoma. esta característica não pode ser excessiva de forma a prejudicar a mediação. a comunitária. é necessário que cada um dos participantes.Vol. assim. como já afirmado. faz uma seleção dos litígios. para que tenha um resultado positivo. Nas palavras de Vedana (2003. em maior ou menor grau a parcialidade do mediador. o mediador tem um contato anterior com as partes. p. de vizinhança ou de convívio social. diferenciada pelo local onde é realizada e pela figura do mediador. Isso ocorre de forma mais acentuada nos programas em que a própria comunidade escolhe o mediador ou legitima sua escolha. promovendo o empoderamento8 dos habitantes daquela localidade. Essas relações apesar de afetarem. a pacificação social. 35 . p. 271): Em regra. ser imparcial e mesmo tendo uma proximidade com as partes envolvidas no conflito. acordos. Ocorre que. como já Conforme afirmado por VEDANA (2003. por estar inserido na rede social. É aquela em que a própria justiça. 264). no intuito de desafogar o Judiciário. 281). sem qualquer interferência do Poder Judiciário. segundo Spengler (2009.Sociologia. etc) e aceitar formas de resolver o litígio. como afirmado por Ferreira (2012. Também é importante mencionar que existem dois tipos de mediação. não afasta a necessidade de sua capacitação para tal atuação. de sua instituição e clientes desta”. Deve. mas o importante. mas estimulam a liberdade. como todas as artes. é que sendo ou não a associação. por meio de uma simples característica do cidadão. p. a compreensão mútua. O fato de os mediadores comunitários serem pessoas da comunidade. oferece aos cidadãos o sentimento de inclusão social. primeiramente. Eles não resolvem conflitos: encontram pessoas que estão dentro de uma situação de conflito. a prevenção de conflitos.” (SPENGLER. Assim. eles são pessoas comuns. (SALES. que muitas das vezes é a própria sede da associação de moradores. a voz . p. apud SPENGLER. 2009. 35 . O acesso à justiça ocorre na medida em que seus participantes têm a oportunidade de resolver pacificamente seus conflitos de acordo com seus próprios interesses. Estes mediadores cidadãos destinam-se a encontrar pessoas. a utilização do diálogo como forma de compreensão. A mediação comunitária é um processo democrático de solução de conflitos. para que atuem como agentes de transformação social na comunidade.o poder do diálogo. a estrutura e organização destes núcleos devem ser de tal forma. A atuação destes mediadores comunitários ocorre nos núcleos de mediação comunitária. estabelecendo. não termina jamais de refinar-se (SIX. a inclusão social e a paz social. pois os mediadores não são fabricados pelo Judiciário. Os mediadores cidadãos não vem trazer uma solução externa. capacitando-os. tem origem diferente. é inegável que a mediação comunitária objetiva não só a solução de conflitos. 2009.Vol. 34-35. 2004. 153-154). representa a um só tempo educar. a coragem. A inclusão social confere autonomia aos mediados que passam a se encarar como responsáveis pela solução de seus próprios problemas. que possibilite uma formação de mediadores. 2001. 281).Sociologia. não quer dizer que o Estado/Judiciário não está presente na comunidade. Neste sentido cabe fazer o paralelo com Habermas e sua teoria do agir comunicativo. a vontade própria. uma ordem justa. informar e favorecer a tomada de decisão pelos próprios interessados. Ser mediador cidadão é uma arte que.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Além de possibilitar essa resolução. na medida em que possibilita o acesso à Justiça (resolução dos conflitos) por partes dos hipossuficientes. deste modo. Antropologia e Cultura Jurídicas ventilado. mas também o acesso à justiça. mas sim que é uma forma inoficial e auto compositiva de resolução de conflitos. p. que. A base do processo de mediação é o princípio da solidariedade social. 282-283). 448 . que cresceram na comunidade e que “não tem mais do que autoridade moral. p. A busca de soluções adequadas para casos pelas próprias partes incentiva a conscientização delas para a necessidade da convivência em paz. que passam a ser desafiados e convocados a pensar e discutir os rumos de sua comunidade e ii) o estímulo ao exercício da cidadania por meio da conscientização e concretização de direitos e deveres garantidos. “com base no diálogo. p. 449 . Não se pode esquecer que os cidadãos mais pobres tendem a conhecer menos os seus direitos e assim ter mais dificuldades em reconhecer os problemas que os afetam enquanto questões passíveis de soluções no âmbito jurídico. Maurice. a paz social será atingida e ainda como consequência de todo este processo. Spengler (2012. afirma ser a mediação comunitária “um grande passo para devolver à comunidade o tratamento de seus conflitos. Antropologia e Cultura Jurídicas A prevenção dos conflitos se apresenta “na medida em que as partes se tornam responsáveis por suas decisões. Podem. Neste sentido. sendo o diálogo o grande instrumento transformador. os moradores da comunidade se fortalecem e tem seus direitos humanos promovidos.Vol. principalmente como aquilo que Blanchot denominou de Lei da Amizade9”. trabalhando. 9 Para um estudo mais aprofundado sobre a Lei da Amizade é importante a leitura de BLANCHOT. p. porque são decisões discutidas e acordadas com base na solidariedade entre as partes” e quando se percebe que a solução dos conflitos. com a pacificação imediata dos conflitos de várias ordens e com o atuar no momento correto. 239). 1996. até ignorar os direitos em jogo ou a possibilidade de reparação judicial. a mediação também proporciona: i) a coesão e inclusão social de indivíduos socialmente marginalizados. 2004. Com a implementação da mediação na resolução dos conflitos e consequentemente a possibilidade de exercer a capacidade comunicacional em sua plenitude.Sociologia. Paris: Fourbis. 169). transforma o conflito e possibilita novos vínculos entre as partes” (SALLES. com isso se descobrem enquanto sujeito de direitos e dotados de dignidade. Muitas destas comunidades têm sido palcos de conflitos permanentes da luta de todos contra todos. Neste sentido.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . àqueles cidadãos socialmente excluídos. e a implementação da mediação comunitária contribui para a resolução dos conflitos que surgem. retornando aos tempos de Hobbes. 35 . Pour l’amitié. do homem como lobo do homem. passam a ter o conhecimento dos seus direitos e deveres no contexto do Estado Democrático de Direito. e principalmente. a tolerância. facilitando o encontro dos cidadãos com seu projeto de valores. a comunidade é tomada pela consciência de que conflitos internos podem ser prevenidos ou solucionados internamente. 5. Conclusão A inserção da ação comunicativa de Habermas com a facilitação do diálogo. A mediação comunitária é a ponte que permite aos sujeitos passarem do estado de conflito permanente denunciado por Hobbes para o da cooperação. Antropologia e Cultura Jurídicas A aposta na amizade na mediação comunitária surge no sentido de “garantir à comunidade autonomia e responsabilidade para tratar seus conflitos com o auxílio de um terceiro. Assim. não institucionais. fatores estes necessários para a convivência dos mediados. igual. os sujeitos se reconhecem reciprocamente em seus direitos e deveres e esse reconhecimento é constitutivo de uma convivência harmoniosa. legitimado por suas características morais e por seus vínculos. Neste contexto. percebe-se o quanto a teoria do agir comunicativo de Jünger Habermas serve como fundamento para a mediação comunitária. 240). a mediação comunitária apresenta-se como um importante instrumento que possibilita uma mudança de paradigma com a criação de um diálogo transformativo que irá prevenir o surgimento de novos conflitos na medida em que o cidadão 450 . a comunicação. (SPENGLER. p.Sociologia. 35 . como instrumentos perfeitos para consolidação dos direitos fundamentais. A ética discursiva na mediação comunitária promove o respeito.Vol. promovendo um acordo de entendimentos nas comunidades carentes contribui para a formação de uma unidade axiológica no seio destas. Neste sentido. da participação social e da democracia. a compreensão e a paz.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ao aderir à prática da mediação. contribuindo para formação de uma consciência moral erigida por princípios. mas de amizade”. Neste sentido. com o uso de técnicas de interação e promoção do diálogo que funcionarão junto com a comunicação e sua ação comunicativa. 2012. as formações de consensos com base em grandes princípios morais de justiça e solidariedade social possibilitam que as normas de convivência se tornem reflexivas e impõem orientações acerca dos valores universais compartilhados. orientando o agir dos indivíduos singulares pela ideia de entendimento. Mauro. Gisele. CITTADINO. p. CAPPELLETTI. GHISLENI. 3. 1. Acesso em setembro de 2012. 2012. Acesso 12 de setembro de 2012. 2000. GHISLENI. Porto Alegre: Editora Fabris. GRINOVER. 1989. Teoria de la Accion Comunicativa. Tradução de Guido A. 6. José Luis Bolzan de. rev.). Consciência moral e agir comunicativo. O princípio da solidariedade e a mediação comunitária como efetivadores da garantia fundamental do acesso à justiça. Madrid. Ada Pellegrini. Paulo Cezar Pinheiro. Tamires Becker. Referências CARNEIRO. Rogerio Gesta e COSTA. 2. Santa Cruz do Sul. reimpressão 2002.ed.pdf. GARTH. direito e justiça distributiva. Edunisc. Fabiana Marion. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 2010. Acesso à justiça. As políticas públicas no constitucionalismo contemporâneo. 2004. Edunisc. Ana Carolina. LEAL. Tomo 2. Revista Brasileira de Direito Constitucional–RBDC n. EDUNISC. Acesso à Justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública. Disponível em: http://www. de Almeida. Jorge Renato. 3 ed. ______________. e atual. 2011. 2007.Sociologia. SPENGLER. Marli Marlene Moraes da (org. Resolução 125/2010 do CNJ. In: SPENGLER. Rio de Janeiro: Forense. 1998. 13. Theobaldo (Org. 2012. 1. 451 . com Projeto de Lei do novo CPC brasileiro (PL 166/2010. Tomo I.ed. In: REIS. 1999. Bryant. 35 .br/portal/upload/com_editora_livro/mediacao. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris.. Mediação enquanto política publica: o conflito. Santa Cruz do Sul. MORAIS.). A Mediação como forma autônoma e consensuada na resolução de conflitos. 10. Fabiana Marion.. Fabiana Marion. Fabiana Marion.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas passa a ter consciência de que é de sua responsabilidade deliberar sobre seus problemas e encontrar a solução que melhor se adeque a seu caso. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. v. FERREIRA. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado. Texto eletrônico. Pluralismo.Vol. SPENGLER NETO. Ana Carolina. SPENGLER. ed. A inafastabilidade do controle jurisdicional e uma nova modalidade de autotutela. Jürgen. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.unisc. a crise da jurisdição e as práticas mediativas [recurso eletrônico]. Taurus Ediciones. Ed. SPENGLER. Mediação de conflitos a partir do direito fraterno. Santa Cruz do Sul. HABERMAS. TARTUCE. Mediação nos conflitos civis. 2008. 2012.pdf>. Justiça e mediação de conflitos. v.). São Paulo. Vilson Marcelo Malchow.humbertodalla. 2004. 2. Fundamentos políticos da mediação comunitária.unisc. Garantia de acesso à justiça e o uso da mediação na resolução dos conflitos submetidos ao poder Judiciário. O Direito Fraterno.br/arquivos/a_mediacao_e_a_solucao_de_conflitos_no_estado _democratico. O “Juiz Hermes” e a Nova Dimensão da Função Jurisdicional. Fernanda. Boaventura de Sousa.pdf>. Estudos em arbitragem. 452 . ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. 1988. 35 . disponível em: < http://www.it. Karol. 2010.pro. Santa Cruz do Sul: Edunisc. fevereiro de 2012. SPENGLER. disponível em <http://www. VEDANA.pro. Eligio. a prática e o projeto de lei. Humberto Dalla Bernardina de Pinho.2 p. n. RESTA. ______________. Acesso em setembro 2011 ______________. 2003.com.unb. Santa Cruz do Sul.br/portal/pt/editora/e-books/95/mediacao-enquanto-politica-publica-ateoria-a-pratica-e-o-projeto-de-lei-. SALES. v./dez. Luthyana Demarchi de. Acesso em fevereiro de 2013. PAUMGARTTEN. Mediação enquanto política pública: a teoria.humbertodalla.Vol. disponível em: http://www. 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Antropologia e Cultura Jurídicas ARMINIANISMO E HUGO GRÓCIO: O CAMINHO PARA O JUS-HUMANISMO PELA TRILHA DO LIVRE-ARBÍTRIO E O RACIONALISMO DA GUERRA COMO PRESSUPOSTO DE UMA PAZ INATA ARMINIANISM AND HUGO GROTIUS: THE WAY TO THE JUS-HUMANISM BY TRACK OF FREE WILL AND THE WAR RATIONALISM AS AN ASSUMPTION OF INNATE PEACE Terezinha de Oliveira Domingos (http://lattes. ao tratar do chamado jus gentium. forneceu a Hugo Grócio os elementos que fundaram seu pensamento jurídico. O presente artigo estuda a origem e a base do pensamento de Hugo Grócio.Vol.UNINOVE.cnpq. 453 .Sociologia. O ponto de partida do trabalho é o arminianismo.PUC/SP.PUC/SP.br/3160819810702125)*2 RESUMO O direito natural ainda é objeto de inúmeras pesquisas. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo .cnpq. historicamente. todavia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que. é conhecido como o pai do direito internacional. Coordenadora e Professora de Graduação e de Pós-Graduação da Universidade Nove de Julho – UNINOVE. que.br/5059375283346826)*1 Jean Eduardo Aguiar Caristina (http://lattes. 1 Terezinha de Oliveira Domingos*. para evitar interpretações menos dissonantes. 35 . bem como encontrar as razões que o levaram a edificar uma das mais percucientes doutrinas sobre o tema. Coordenador do Curso de Direito da Universidade Nove de Julho . Pesquisadora Científica. A importância deste esforço histórico é fornecer dados para uma melhor compreensão do aspecto subjetivo do positivismo vigente dos últimos dois séculos. Doutorando em Direito Econômico na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo . 2 Jean Eduardo Aguiar Caristina**. especialmente quando se mostra necessária uma compreensão mais eficiente do intratexto normativo. Interessa-nos. mais do que simples doutrina teológica. perquirir o caminho por trilhado pelo autor holandês na construção do pensamento acerca dos direitos naturais. que é considerado o marco dos direitos naturais. Antropologia e Cultura Jurídicas PALAVRAS-CHAVES: Hugo Grócio . referem-se ao indivíduo em toda sua essência e. configuram princípio universal de reconhecimento e efetivação da dignidade humana com a sustentação do direito de guerra. which. a viabilidade de se tratar direitos naturais que. Our interests. sustentando o direito 454 . more than a simple theological doctrine. 35 . Grócio faz esta ponderação com maestria. já que foi neste tratado que construiu toda a doutrina relativa ao direito internacional (jus gentium). as well find the reasons that led him to build one of the most insightful doctrine about it. Porém.Sociologia.Direito Natural . because of his studies about jus gentium. ABSTRACT Natural rights still be the subject of numerous research. This article studies the origin and basis of Hugo Grotius‟s thought. especially when a better understanding of the regulatory intratext is needed to avoid dissonant interpretations. chama a atenção.jus gentium.Natural Law . De início. I. however. The starting point of the work is the arminianism. especificamente. tipicamente. e se põe até em dúvida. KEYWORDS: Hugo Grócio . O Direito da Guerra e da Paz.Vol. which historically is known as the father of international law. por isso mesmo. provided the elements that Hugo Grotius founded his legal thinking. INTRODUÇÃO O presente artigo visa estudar a obra de Hugo Grócio. is follow the path trodden by the Dutch author in the construction of thought about natural rights. The historical importance of this effort is to provide data for a better understanding of the subjective aspect of the prevailing positivism of the past two centuries.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .jus gentium. tornando seu trabalho ainda mais interessante. HUGO GRÓCIO Huig de Groot ou. tem o pensamento Moderno introduzido em boa parte de sua obra. inserto em período de intensas mudanças no cenário político europeu. somada à sua ampla capacidade de enfrentar com absoluta sobriedade questões tormentosas que na época representavam dogmas culturais e políticos.Sociologia. simplesmente. nasceu em 10 de abril de 1583 na cidade holandesa de Delft. não porque o homem viva em estado selvagem. ao longo de sua obra. acompanhava o advogado e primeiroministro dos Países Baixos. título concedido pela Universidade de Orléans. ainda. da propriedade e de outros bens que a reta razão entenda por inatos. Por fim. Com apenas quinze anos obteve o doutoramento. A juventude de Grócio. Aos onze anos de idade ingressou na Universidade de Leiden para estudar Matemática.Vol. é tratado como absolutista. o que. já que a vida em sociedade é em decorrência da opção pelo bem estar e vida digna e dotada de proteção. por supostamente atribuir ao soberano uma autoridade capaz de subjugar os demais indivíduos. demonstra o pensamento do autor holandês em relação à soberania. seja porque ainda preso às raízes absolutistas que dominavam boa parte da Europa e à forte influência religiosa 455 . Hugo Grócio. II. mas justamente porque o homem é dotado de direitos subjetivos inatos. atribuído por Henrique IV. a uma missão diplomática na França. que há traços contratualistas na obra de Grócio. Antropologia e Cultura Jurídicas da guerra como algo inerente à própria natureza humana. é superado com a demonstração da sociabilidade humana. o rei da França. Johan van Oldenbarnevelt. os quais se manifestariam anos depois com Hobbes.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . O jovem holandês. embora resquício intelectual da Idade Média. da vida. Filosofia e Direito. 35 . Locke e Rousseau. que lhe outorgam o direito de proteção da integridade física. lhe valeram o título de “milagre da Holanda”. Este contratualismo é a base da comprovação de existência de um direito natural inerente aos indivíduos. Demonstra-se. cujo posicionamento. Neste período. COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Grócio fugiu para Amsterdam e. Ajudado por sua esposa. Grócio. dentre os quais primeiro-fiscal público dos tribunais da Holanda. mais uma vez. Maria van Reigersberch. À época. a quem declarou apoio para o parlamento holandês em oposição a Maurício de Nassau. foi encarregado de escrever a história dos Países Baixos em latim.Sociologia. a se exilar em Paris. seja porque resgata a cultura inaugurada entre os estóicos. em que defendia a liberdade internacional das águas oceânicas. que. que deixou a prisão num baú de livros. obrigandoo. retrocedeu em razão da subsunção filosófica determinada pela política de castração das liberdades individuais. Hugo Grócio. Maurício de Nassau. a Holanda sofreu o chamado golpe de Estado calvinista. e que lhe valeu o título de fundador do direito público e do direito internacional moderno: De Jure Belli ac Pacis (Direito da Guerra e da Paz). aceitando o convite do 456 . sagrou-se vitorioso. Em 1606 publicou Mare Liberum. Em 1618. Tal obra foi intitulada De Antiquitate Reipublicae Batavicae. Em 1625. por considerar que tal ofício retirava tempo precioso de estudos. de lá. já que a Europa vivia em estado de atenção por conta da discordância da Inglaterra que defendia a soberania britânica das águas ao redor da ilha. de modo a justificar para a população a independência daquela nação. para a cidade de Paris. o autor holandês lançou a grande obra de sua vida. embora não gostasse da ideia de advogar. o Tribunal condenou Oldenbarnevelt à pena de morte. 35 . A obra foi originariamente publicada de forma anônima. Em 1619. Após adquirir experiência como jurista na cidade de Haia. e Grócio à prisão perpétua no castelo de Loevestein. além de jurista e conselheiro real. foi preso juntamente com Johan van Oldenbarnevelt. onde permaneceu até 1631. Em 1634. exerceu alguns cargos políticos. Zelândia e Frísia do Oeste (1607) e Governador de Rotterdam (1613). tornou-se conselheiro do príncipe de Orange. que no período considerado “idade das trevas”. um de seus mais corajosos e valorosos trabalhos. Dentre outras funções. Antropologia e Cultura Jurídicas no mundo medievo. por fim. A fuga não poderia ser mais adequada para o “milagre da Holanda”. apoiador do partido arminiano.Vol. A tentativa de retornar para a Holanda em 1631 foi frustrada. o que lhe valeu o tratamento como “Grotius”. e se baseia na ideia de sinergismo. o espiritual e o intelectual. Arminius apenas divergia do monergismo calvinista no tocante à teoria da eleição incondicional de Deus. tem origem anterior com Erasmo de Roterdã (1466-1536) e Philipp Melanchthon (1497-1560). 35 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . ocasião em que foi convocado a retornar à Suécia. crença de que a salvação humana depende da cooperação entre Deus e o homem. na expiação limitada e na graça irresistível. decidiu deixar o país. que é o criador. vindo a falecer nove dias depois. a doutrina calvinista propugnava por um Deus onipresente. onde viveu até 1645.Vol. O ARMINIANISMO O arminianismo. Ao sair da Suécia em 17 de agosto de 1645. quando então. tornou-se embaixador da Suécia na França. na cidade de Rostock. Deus escolheu apenas alguns homens caídos para salvação da pecaminosidade. Théodore de Bèze. na Alemanha. entre eles o físico. Segundo a teoria da predestinação. que apenas o redimiria dos pecados. A convivência entre calvinistas. Antropologia e Cultura Jurídicas chanceler sueco Axel Oxenstierna. sem a necessária salvação do espírito. pouco importando o livre arbítrio ou a devoção do indivíduo. que formavam a base teológica da doutrina calvinista.Sociologia. III. por desentendimentos com a Rainha Cristina. e a teoria do sinergismo sempre foi pacífica. e que se opõe parcialmente ao monergismo. da qual faz parte o calvinismo. A vida de Hugo Grócio sempre foi tendente à aventura. embora sua sistematização se deva a Jacobus Arminius (1560-1609). o navio que transportava Grócio naufragou em meio a uma tempestade. e pela convicção de que Sua ação estaria vinculada a todos os domínios da existência. países ou soberanos. cuja doutrina foi continuada pelo discípulo de João Calvino. Qualquer elemento da Terra faria parte do plano de Deus. já que o dom da fé é de Deus e não das obras humanas. que crê numa salvação inteiramente determinada por Deus sem a incidência do livre-arbítrio humano. posto ocupado até 1644. Vale dizer. A doutrina de Arminius se opôs a este primado da vontade soberana e 457 . Seu espírito e ideias libertárias não se prendiam facilmente a cargos. mantenedor e administrador de todas as coisas. O arminianismo foi perseguido na Holanda mais porque significava uma ruptura da pureza protestante. o arminianismo recebera pesadas críticas do alemão Franciscus Gomarus (1563-1641). que deseja que todos se salvem. a exemplo da antiga Boêmia (atual República Checa). A expiação é destinada a todos. que contribuiu para o convencimento do Príncipe Maurício de Nassau de que a filosofia calvinista representava proteção mais segura contra a influência do catolicismo espanhol que se expandia pela Europa. o arminianismo amplia a margem de responsabilidade do homem na formação de um livre-arbítrio capaz de afastá-lo da expiação pela fé e devoção. vive em estado de depravação.Vol. já que seu livre arbítrio o levou para longe de Deus. de influência católica e que dominou boa parte do território europeu durante séculos.Sociologia.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Para o arminianismo clássico o homem que. de John Wesley. Antropologia e Cultura Jurídicas central de Deus. por isso mesmo. e wesleyana. e declarados hereges os apoiadores da doutrina do sinergismo. Os adeptos do arminianismo foram todos destituídos por Maurício de Nassau dos cargos políticos que ocupavam. com o apoio de tropas e financiamento espanhol. e todos 458 . (iii) se o mal é preexistente ao homem. A consequência desta ruptura seria a perda de adeptos na luta contra os católicos. cujo trono foi sucedido por Fernando II de Habsgurg. poderia gerar fraqueza ao protestantismo que se formava em torno da Alemanha. em razão do enfraquecimento de seu governo frente a dominação da Espanha católica. Na sua essência. (ii) retira o direito ao livre arbítrio e a fé pelo desejo subjetivo dos homens. seria de se impingir a Deus também a causa dos pecados. Seus bens foram expropriados e o arminianismo considerado traição ao soberano. Isto porque. A doutrina arminiana se divide em clássica. cuja dinastia teve sobre seus auspícios o Sacro Império Romano-Germânico. Por ser apoiador da doutrina cristã-protestante arminiana. pois: (i) seria incompatível com o Deus bom e amoroso. destruindo a ideia de um Deus bom. 35 . fulcrada na doutrina calvinista e que. baseado na fé. não esteja animado pela graça divina. de Jacobus Arminius. especialmente contra os Habsburg. Hugo Grócio foi preso por ordem do príncipe Maurício de Nassau. para nós. que reconhece o homem como filho Dele. de modo que todos são tocados pela mesma fraternidade. não se dá pela escolha unilateral Dele. O movimento remonstrante elaborou os chamados “Cinco Artigos da Remonstrância”. em 1617. no entanto. como forma de demonstrar a possibilidade de reconciliação do homem com a fé e o perdão de Deus. ao fazê-lo. Com a morte de Jacobus Arminius em 1610. porém. ou seja. porém. caridade e respeito ao outro. da salvação alcançar também o pecador. responsável por perpetuar a doutrina cristã-protestante. podem negá-la a partir de seu livre arbítrio. Por fim. os quais. o que gerou o contra-ataque de Maurício de Nassau. 4) Esta graça. não está realizando a justiça. Antropologia e Cultura Jurídicas têm a chance de se salvar pela fé e devoção. é por intermédio do arminianismo que Hugo Grócio identificará a bondade inata e a possibilidade de o homem buscar sempre a via do bem. Já o arminianismo wesleyano traz elementos do arminianismo clássico de que fazer o bem e evitar o mal é obra de Deus. mas somente o crente o recebe.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que lhe afasta da expiação e o torna apto a ser glorificado por Deus. frequentar os 459 . e que ao Seu lado retornará caso. Assim. mas pela justificação daqueles que creem em Jesus. a saber: 1) Deus elegeu os que creriam. síntese de bondade.Vol.Sociologia. 35 . Prevê. o início de uma filosofia do direito natural. A graça é resistível. a possibilidade de apostasia. 3) A fé é um dom da graça de Deus. denominado Irmandade Remonstrante. que sintetizam as leis do arminianismo. que resolveu. O movimento remonstrante recebia crescente apoio. sustenta que a eleição condicional é aquela que considera o amor de Deus onipresente. É. 2) O sacrifício de Cristo é para todos. o que significa que foi desenhada por Deus para salvação dos homens. pode ser rejeitada. ainda. Hugo Grócio e Simon Episcopius (1583-1643) foram seus maiores representantes. a eleição. ao contrário dos calvinistas. 5) Também crentes podem se perder por culpa própria. e que professam a cultura desta que se transformou em próprio dogma. e que o homem. mas se reconciliando com a criação. ao contrário de se pensar que o pecado é também Sua criação. se conduza para a fé e a devoção. seus seguidores deram vida a um novo movimento. no exercício de seu livre-arbítrio. a sua contribuição imorredoura. p. A legitimidade do Direito Positivo: Direito Natural. mas decorrente do arbítrio errado do homem de viver em pecado. na verdade. que sejam bons e evitem o mal. 103 MARTINS FILHO. e pontificando que a maldade não é inata à criação. que o considera fundador do direito natural: “Quando se fala em Direito Natural. A importância de se conhecer o sinergismo e os cinco artigos do movimento remonstrante é identificar em Hugo Grócio o jusnaturalismo. sendo do homem. e é sob este aspecto que vamos apreciar os seus trabalhos. O JUSNATURALISMO EM GRÓCIO A obra que marcou Hugo Grócio na história é O Direito da Guerra e da Paz (“De Jure Belli ac Pacis”). 35 . logo se associa a essa 3 4 REALE. 56. idealizada por Franciscus Gomarus) junto com sua corte. Democracia e Jurisprudência. 460 . Miguel. a partir de seu livre-arbítrio. onde sistematiza o jus gentium e organiza o direito da guerra. p. Outro ponto fundamental na doutrina apoiada por Grócio é a lei do amor. receberam de Miguel Reale a seguinte observação: “Ele é.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . que considera Deus a síntese da bondade e faculta aos homens. pois é a partir de sua obra se conclui que o homem recebeu de Deus a atribuição de exercer direitos e cumprir deveres. ambos vocacionados à codificação daquilo que hoje se compreende como direito internacional. o primeiro autor da Filosofia do Direito moderno.Vol. Horizontes do Direito e da História. A isto se pode denominar fazer o bem ou cometer o pecado. à semelhança de Cristo. IV. A importância da obra e do autor. Antes dele não se poderia falar em Filosofia do Direito em sentido próprio. Antropologia e Cultura Jurídicas cultos da igreja gomarista (protestante. a opção de seguir em Cristo ou cair naquilo que o arminianismo denomina de depravação. para melhor dizer. o primeiro tratado autônomo de Filosofia do Direito.”3 Semelhante importância é reconhecida por Ives Gandra Martins. desejando ao próximo o que deseja para si mesmo. Ives Gandra da Silva. pois é com o seu livro De Jure Belli ac Pacis que se apresenta o primeiro tratado de Direito Natural ou.Sociologia. que. THOMAS HOBBES. CHRISTIAN WOLFF e JEAN-JACQUES ROUSSEAU. p. seu papel foi de incontestável importância. que se manifestariam com mais contundência anos depois em Hobbes (15881679). Antropologia e Cultura Jurídicas idéia a escola a jusnaturalista do século XVIII. da filosofia e do direito. 461 . O HOMEM E A SOCIEDADE Identificam-se na obra de Hugo Grócio evidentes traços contratualistas. e.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. portanto. Seu contratualismo. para explicar os motivos que levaram o homem a viver em sociedade. Locke (1632-1704) e Rousseau (1712-1778). que considerava o homem um animal político. não tem nada de individualista. pois a sistematização daquilo que os antigos defendiam de forma menos específica e organizada se deve a este autor que.”4 A autoria do conceito ou da sistematização do Direito Natural não é de Hugo Grócio. já que ele acredita que os homens se associam voluntariamente. desenvolveu-se posteriormente com JOHN LOCKE. A legitimidade do Direito Positivo: Direito Natural. e aquele incapaz de se sociabilizar é um bruto ou uma divindade. do Direito Internacional e. na medida em que obtém sua realização somente no âmbito da polis. V. tendo suas origens em HUGO GROTIUS. inspirou outras personalidades que revolucionaram a história da política. pois a partir dele é que se criou todo um método de estudo do Direito Internacional (o jus gentium). o Direito Positivo (Direito Civil) e o Direito Divino (imutável e ditado pela vontade de Deus nos corações humanos). Dá-se com Hugo Grócio. 56. Democracia e Jurisprudência. 35 . Contudo. um salto no estudo do Direito Público. A justificativa desta relação de obrigatoriedade está no fato de que a sociedade precede ao indivíduo. da Filosofia do Direito. uma vez que 4 MARTINS FILHO. Há uma notória semelhança com o pensamento de Aristóteles.Sociologia. por sua vez. assim como o Direito Natural (inato e subjetivo aos homens). motivados por uma necessidade mútua de se transferirem direitos e deveres provenientes de seu próprio estado natural. Ives Gandra da Silva. no entanto. principalmente. e portanto. o indivíduo tende a desenvolver outras potencialidades que não apenas aquelas que dizem respeito às suas necessidades imediatas. Antropologia e Cultura Jurídicas passe a viver em sociedade.. mesmo quando não nos faltasse absolutamente nada.Sociologia. Além da comunicação. Tradução: Ciro Mioranza. A base da vida em sociedade é o próprio Direito Natural. p. nós sejamos fracos e que careçamos de muitas coisas 5 6 7 ARAÚJO. Se o Homem não é o sujeito. De acordo com Vandyck Nóbrega de Araújo “[. 37. o homem interage compulsoriamente com a sociedade não apenas por ser “um animal. seria ele. 35 . de fato.Vol. Fundamentos aristotélicos do Direito Natural. como ocorre após Descartes.) A ideia de um justo natural impõe-se ao espírito humano porque irrompe da sua própria essencialidade que é de animal racional e político. fundamentada na justiça. ou seja.” 5 Percebe-se que o contratualismo de Grócio tem maior aptidão à sociabilidade.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .] é necessário interpretar o pensamento grego quanto ao posicionamento do Homem como sujeito para que se possa entender o significado aristotélico do Physikin Dikaion. ou seja. o homem. p. na concepção grega as coisas não são o objeto à sua disposição. O Direito da Guerra e da Paz. 38. o único dotado da faculdade de conhecer e agir... Vandyck Nóbrega. pelo menos. que são atributos inerentes à essência do homem. Esta qualidade superior reside no fato de que o homem é o único capaz de se comunicar. Nas palavras de Hugo Grócio “A natureza do homem que nos impele a buscar o comércio recíproco com nossos semelhantes. p. mas na Episteme grega. 462 . (. Neste sentido é que se pode alcançar o significado de Agathon que tanto Platão quanto Aristóteles consideram como o ponto para o qual converge toda a trama existencial do Homem. Ibidem. mas um animal de uma natureza superior e que se distancia muito mais de todas as demais espécies de seres animados que possam entre eles se distanciar” 6. GROTIUS. é ela própria a mãe do direito natural [. todo o existente. no sentido integral e absoluto. como hoje acontece no campo científico. 31..] O autor da natureza quis. o que Grócio denomina de “pendor dominante que o leva ao social”7. que tomados um por um.. que move o homem a se inter-relacionar com outros homens. a cosmia universal obedece a leis que sujeitam o próprio homem. e o faz por meio de um instrumento exclusivo: a linguagem. que é a causa capaz de assegurar a associação entre os Homens. Hugo.. Vol. p. sendo todos iguais e independentes. Para ele: “Fala-se do bem e do mal das coisas. e que é de todo conforme o entendimento humano. 36. a de reparar o dano causado por própria culpa e a aplicação dos castigos merecidos entre os homens. porque há proporção entre estas e as suas ações. Tradução: Ciro Mioranza. de restituir aquilo que. o que revela uma visão altruísta de Grócio: “Este cuidado pela vida social. que é essa lei. que obriga a todos: e a razão. Assim umas possuem o ser de modo relativo. mesmo que em detrimento do próprio proveito do indivíduo. John. de modo que o mal deve ser racionalmente evitado e o bem preferido em quaisquer circunstâncias. p. Só Deus porém tem toda a plenitude do ser. ninguém deve prejudicar a vida. Hugo.Sociologia.” 10 Na mesma linha. como já se disse na primeira parte. a fim de que sejamos impelidos mais ainda a cultivar a vida social. 10 GROTIUS. Tradução: Anoar Aiex e Jacy Monteiro. está em nossas mãos ou o lucro que disso tiramos. que não terá senão que consultála. pois somente a partir de suas renúncias em favor do todo é que as sociedades se constroem pacífica e harmoniosamente.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . a obrigação de cumprir as promessas. a liberdade ou os bens de outrem. por causa da sua unidade e simplicidade. Tradução: Ciro Mioranza. 43. ao qual se referem o dever de se abster do bem de outrem. de que falamos de modo muito superficial. Hugo. é o fundamento do direito propriamente dito. cada coisa é boa na mesma medida em que é.” 9 Não é demasiado frisar que o arminianismo tem como objetivo permitir aos indivíduos exercer o livre-arbítrio. Segundo Tratado sobre o Governo. O Direito da Guerra e da Paz. O Direito da Guerra e da Paz.” 8 É consequência desta proposta de sociedade que o homem viva para fazer o bem. pois o bem e o ser se convertem. sem ser nosso. é possível encontrar em São Tomás de Aquino alusão de que o mal inexiste por si próprio. sendo apenas consequência da escolha do homem em não querer fazer o bem. ao passo que as criaturas possuem a plenitude do ser que lhes convém. que. 35 . de modo múltiplo. e 8 GROTIUS. 39. LOCKE. conforme demonstra John Locke: “O estado de natureza possui uma lei da natureza para governá-lo. ensina a toda a humanidade. p. Antropologia e Cultura Jurídicas necessárias para viver comodamente. a saúde. Ora. 9 463 . Viver em favor do coletivo é.2011.usp. que considera que o homem tem por interesse respeitar regras coletivas e a permanecer unido ao corpo social. Se porém não tivesse nenhum ser ou nenhuma bondade. Como porém da essência do bem é a plenitude do ser. mas relativamente. ex.] o homem guiado apenas pelo interesse egoísta deve aceitar certas regras válidas universalmente para conviver em sociedade e efetivar seus próprios interesses. e na medida em que lhe faltar algo da plenitude do seu ser. absoluta. a obrigação de respeitar os direitos alheios.br/df/cefp/Cefp15/barnabe. os homens se unem pela necessidade. Acesso em: 9. 35 . Gabriel Ribeiro. implica a composição de alma e corpo.fflch. que os homens apenas decidem se guiar por uma regra comum em função da realização de um auto-interesse. estar privado da vista.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . assim. p. Assim. Contudo. Nesta perspectiva. poderá contudo ser considerado ser. portanto. não poderia considerar-se mau nem bom. Hugo Grotius e as relações internacionais: entre o direito e a guerra. nessa mesma lhe faltará a bondade e será considerado mau.”12 Trata-se.. com todas as potências e instrumentos do conhecimento e do movimento. A plenitude do ser humano. a quem faltar um desses elementos. com a finalidade exclusiva de se beneficiar. faltar-lhe-á algo da plenitude do seu ser. Pois quanto tiver de ser tanto terá de bondade. Disponível em: <http://www..2011 12 BARNABÉ.11.Sociologia. O arminianismo remonstrante considera Deus bondade e assegura que os homens foram criados à Sua semelhança. o que impõe amar ao próximo como a si mesmo. pode ser entendida em termos de auto-interesse.br/drupal/node/1092>. enquanto ser. não parece ser este o objetivo de Grócio. de uma perspectiva individualista e utilitarista. p.11. Acesso em: 10. por onde.permanencia. conforme se disse na primeira parte. relativamente. Disponível em: <http://www. não será considerado bom. Antropologia e Cultura Jurídicas contudo falta-lhes algo à plenitude devida. pois apenas “[. São Tomás. regra mínima requerida para a vida em sociedade. 464 . o ente a que faltar a plenitude que lhe é devida.Vol. formando comunidades 11 AQUINO. para um cego é bem o viver e mal. inerente à própria existência e pressuposto de consagração do pontificado cristão. absolutamente. sem dúvida. isto é.org.. 35.” 11 Gabriel Ribeiro Barnabé entende que não há em Grócio uma preocupação do indivíduo em ajudar os outros. e respeitar a Deus acima de qualquer outra coisa. e não ser. Suma Teológica.pdf>. e não apenas um esforço de manutenção do todo. sendo ele oriundo de uma natureza comum de todos os homens. então pode afirmar-se na razão que ela é tão indiscutível como o enunciado segundo o qual o calor dilata os corpos metálicos ou o enunciado segundo o qual duas vezes dois são quatro. portanto. em Ética a Nicômaco. Antropologia e Cultura Jurídicas nas quais poderão exercer os direitos que lhes são assegurados pela natureza. dentre as quais aquelas que o afastarão da expiação. se numa norma moral. da sua vontade. enorme proximidade com o pensamento de Aristóteles. defluem da razão e não de uma faculdade do homem distinta da razão. O que pretende Grócio com a sua afirmação de que as 465 . Nota-se. pontificou que “Se as normas que constituem os valores morais.Sociologia. pois por mais grandioso que seja. CONCEPÇÕES SOBRE O DIREITO Direito Natural e Direito Voluntário Direito natural é aquele ditado pela reta razão. e especialmente o valor justiça. perderiam o sentido que Ele próprio. consequentemente. qualquer distinção entre uma lei física ou matemática e uma lei moral. que. há coisas que nem mesmo Ele poderia interferir sem alterar a própria natureza das coisas que. a não ser que em decorrência de uma deformidade moral do próprio homem. essa ligação se não opera através de um acto da vontade humana e. – neste sentido – não é arbitrária mas é tão independente da vontade humana como a ligação entre causa e efeito na lei natural.Vol. quis dar. cresce e passa a permitir aos indivíduos o desenvolvimento de todas as suas potencialidades. também neste ponto. analisando o pensamento racionalista de Grócio. A essência do direito natural impede até mesmo que seja mudado por Deus. jamais podendo ser classificadas como injustas. Deus. que liga a um determinado pressuposto uma determinada conduta como devida (devendo ser). sob este aspecto. Para Grócio a sociedade se forma. Hans Kelsen. VI. 35 . Não se trata de um contratualismo individualista que enxerga na vida social apenas uma forma de beneficiamento do próprio indivíduo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . classifica o direito natural como sendo aquele que em todo lugar e a qualquer tempo possui a potência e virtude para induzir ao bem e afastar do mal. É a própria natureza racional dos homens que extravasa as leis. então não existe. quando se tem.usp. pela confirmação na história da humanidade e nas palavras dos sábios. Hans. Todos os homens podem conhecê-lo a priori.” 14 O direito voluntário se divide em humano ou divino. Hugo Grotius e as relações internacionais: entre o direito e a guerra. Acesso em: 10. 35 . Os direitos naturais se comprovam a priori quando demonstrada a conveniência ou a inconveniência necessária de uma coisa com a natureza racional e social. Gabriel Ribeiro. o poder civil. uma vez que são dotados de razão. a proteção ao direito inato à propriedade dos bens oferecidos pela natureza. são tão indiscutíveis como os enunciados da matemática [.. direito menos amplo ou mais restrito e direito das gentes. efectivamente não pode ser dito – que Deus não existe. O humano pode ser encontrado em três esferas: Direito Civil.br/df/cefp/Cefp15/barnabe. Antropologia e Cultura Jurídicas normas do direito natural seriam válidas ainda que se pudesse dizer – o que. ou. BARNABÉ. que passa a existir em razão da prática de atos da vontade humana. Este é o que conhecemos como direito positivo. Tradução: João Baptista Machado. uma certeza incontestável de que algo pertence ao homem por sua própria existência. derrogar direitos que por natureza pertençam aos 13 KELSEN. como. por exemplo.fflch.Sociologia. é o resultante da união perfeita dos homens livres que se associaram para gozar da proteção que a própria lei lhes garante. A Justiça e o Direito Natural.].11. que é aquele que transcende a própria existência do homem (inatos) e consequente. é que a validade destas normas é tão objectiva. isto é. O direito consequente de proteção só existe em função do exercício antecedente de um direito natural. de acordo com Gabriel Ribeiro Barnabé “O direito natural é imanente à própria natureza social e racional do homem e por isso vincula toda a humanidade. à unanimidade. em outros termos.Vol. 14 466 . 123. p.pdf>. sem que possa. Disponível em: <http://www.2011.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . portanto.” 13 Há uma divisão do direito natural em antecedente. O Direito Civil emana do poder civil. e também a posteriori. Neste sentido. Em outras palavras. que essas normas escapam tanto a toda a arbitrariedade e. 30.. Já a comprovação a posteriori é uma presunção de que uma coisa será tida de Direito Natural porque reconhecida pelas nações ou por parte daquelas consideradas civilizadas. p. Pode ser universal (dados a todos) ou específico a um só povo.11. é a comunidade internacional que põe o jus gentium. Carlos E. A Justiça e o Direito Natural.Vol. p. imutáveis e fundadas diretamente na própria existência humana 16. enquanto direito posto pelo chefe da comunidade familiar). então o que vale na norma do direito positivo é apenas o direito natural.2011.br/df/cefp/Cefp15/sahd. Rodrigues. 5-6) 16 SAHD. então uma norma do direito positivo que o contradiga não pode ser considerada válida.. 15 Hans Kelsen. superior ao Estado. Antropologia e Cultura Jurídicas homens15. entendido não no sentido (que vimos anteriormente) de direito comum a todas as pessoas.” (KELSEN. 21. Tradução e notas: Márcio Pugliesi. Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva. direito 17 que regula as relações entre os povos ou os Estados).Sociologia. ao passo em que os direitos naturais tiram sua autoridade da razão e constituem obrigação distinta. mas no sentido de jus inter gentes (isto é. Hans. 184. Para Norberto Bobbio: “[. Edson Bini. E se a norma de um direito positivo apenas vale na medida em que corresponda ao direito natural. Esta espécie de ordenamento pode ser emanada. O Positivismo Jurídico: lições de Filosofia do Direito. o direito das gentes ou jus gentium. É esta efetivamente a consequência da doutrina jusnaturalista que. que enseja o direito familiar ou paterno (também Aristóteles falava do „dispotikón díkaion‟. ao lado ou por cima do direito positivo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . O direito menos amplo ou mais restrito também é. afirma a validade de um direito natural e. a outra instituição.usp. p. de um mestre a seus aprendizes etc. ensina que: “É sobretudo do ponto de vista da doutrina do direito natural.pdf>. inferior ao Estado. que é mais amplo que os demais. a família. a primeira. Sòmente podem valer as normas de direito positivo conformes ao direito natural. A grande diferença entre o direito civil e o direito natural é que o primeiro não tem força de obrigação. é a também pertencente à classe do direito voluntário.fflch. Compiladas por Nello Morra.. pois estatui normas de observância obrigatória a quem a ele se submete. explicando a doutrina jusnaturalista.] segundo Grócio o Estado é apenas uma das três instituições que podem pôr o „direito voluntário‟. das ordens de um pai a um filho. Disponível em: <http://www. por ter recebido sua força obrigatória da vontade de todas as nações ou da maior parte delas.” O divino. as outras duas são. Norberto. vê neste direito natural o fundamento de validade do direito positivo. na concepção de Grócio. que se poderia traduzir como „direito patronal‟. Se pressupormos um tal direito natural. exceto se imposto seu cumprimento por ordem do poder soberano do Estado (poder implícito de sanção). p. por sua vez. que se opera um juízo de apreciação do direito positivo como justo ou injusto. 467 . 35 . por força da qual o direito positivo apenas é válido quando corresponda ao direito natural constitutivo de um valor de justiça absoluto. Hugo Grotius: direito natural e dignidade. Acesso em: 10. por exemplo. ao proceder assim. entendido como direito. Por fim. 17 BOBBIO. Antropologia e Cultura Jurídicas Este direito encontra supedâneo na vontade de Deus. num sentido mais negativo do que afirmativo.Vol. Por fim.”18 É visível. quando da renovação da espécie humana após o dilúvio.] primeiramente. a partir do momento em que delas tenham tomado conhecimento de modo suficiente. Outras concepções sobre o Direito É importante também frisar que Grócio reconheceu três sentidos da palavra direito. Isto. Hugo. lei é a terceira acepção de direito. pp. bem como a eles devidos em razão da produção artificial do que hoje chamamos como direito positivo.Sociologia. um direito inato aos homens. Esses três tipos de leis divinas obrigam.. por incumbência da própria natureza. direito é tratado como sinônimo de justo. após a criação do homem. Tradução: Ciro Mioranza. a todos os homens. No primeiro. Tradução: Ciro Mioranza. Este direito está ligado à pessoa. além da influência divina. que é diferente do conceito amplo de justiça e se prende mais à pessoa. uma segunda vez. 35 . mesmo que às vezes siga a coisa. Para ele “o direito é uma qualidade moral ligada ao indivíduo para possuir ou fazer de modo justo alguma coisa. Ibidem. 74. p. 89. que o deu ao gênero humano em três momentos. comparados com outros direitos puramente pessoais” 20. 20 GROTIUS. p. de modo que o direito transparece como aquilo que não é injusto” 19. O segundo sentido é de moral. segundo o qual “indica uma 18 GROTIUS. Entende o filósofo que “A palavra direito nada significa mais aqui do que aquilo que é justo. como ocorre com a posse de imóveis que são chamados direitos reais. O Direito da Guerra e da Paz. O Direito da Guerra e da Paz. sem dúvida alguma.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Hugo. em último lugar. no momento da mais grandiosa reparação que foi realizada por Cristo. portanto. 19 468 . a contribuição do autor holandês para a formação de uma Ciência do Direito mais complexa.. admitindo. De acordo com Grócio: “[. 72-73. democracia e jurisprudência. e o contato com as culturas primitivas tanto americanas como polinésias. pelo menos. seria conseguida a perenidade dos princípios éticos que asseguram a convivência dos Polites no seio da Polis. p. 22 469 .COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . não mais com as peculiaridades dos períodos Antigo. Como bem observa Vandyck Nóbrega de Araújo “Quando Sócrates penetra na Agora sua preocupação é educar o povo e conduzi-lo a caminhar em direção ao Bem (Agathon). 56.” 22 Os estóicos pontificavam a existência de uma plêiade de direitos subjetivos inatos que se harmonizavam com a razão. Antropologia e Cultura Jurídicas regra das ações morais que obrigam a quem é honesto” 21.Sociologia. 78. O DIREITO NATURAL EM HUGO GRÓCIO A importância de Hugo Grócio para reflexão acerca dos direitos naturais é incontestável. na acepção grega – a Pheonesis – (prudência) pudesse orientá-los e levá-los à concordância imprescindível – à obtenção da Eudaimonia (o estar dentro de si mesmo. 35 . Medieval e Moderno.. meta que o homem só pode atingir sendo guiado pela Virtude (Arete) e pela coragem (Andreia) – no verdadeiro sentido – a coragem moral.. Ives Gandra da Silva. o saber governar-se) – e com isto está ao alcance apenas de pouquíssimos. encontrada na obra de ROUSSEAU. Fundamentos Aristotélicos do Direito Natural.). ordenando a vida humana conforme a natureza (o logos)23. A legitimidade do Direito Positivo: direito natural. p. p. Está convicto de que com a razão alcançaria os princípios éticos capazes de harmonizar os homens. anterior ao contrato social com o qual se inicia a vida em sociedade. Ives Gandra pondera que “A escola racionalista do Direito Natural partiu da concepção de um estado de natureza do homem. ARAÚJO. ou melhor. Vandyck Nóbrega.” O jusnaturalismo é até hoje tema em discussão. surgia a idéia de que tais indígenas seriam dotados de uma bondade natural. VII. muito embora tenha sido na Antiguidade que o tema recebeu seus primeiros contornos. 57 23 MARTINS FILHO. apenas corrompida pelo contato com o elemento europeu. mas a essência – o 21 Ibidem. Para que isto pudesse acontecer incitava o interlocutor a raciocinar por meio de processo cognitivo por ele inventado (Maieutica) que obrigava o indivíduo a pensar e a procurar as possibilidades de adequar as premissas à uma conclusão satisfatória (. partia da idealização do bom selvagem: com a descoberta e expansão colonial nas Américas. e ensinar-lhes a domar o egoísmo a fim de que o equilíbrio psíquico.Vol. Tal concepção. A sociedade surge no homem como o resultado da sua estrutura natural – a pessoa humana está naturalmente relacionada com o outro e da conjuntura social dos fins naturais do homem.Vol. 35 .. pois está inscrito no princípio da sociabilidade (. em maior grau. Crítica Introdutória ao Direito Natural.. em todas as partes. congregar todos os homens..] a sociedade humana rege-se pela lei natural. valor supremo à dignidade da pessoa humana. fundamentalmente. lves José de Miranda.Sociologia. não na sua totalidade. assim. 135. 470 .2012. Crítica Introdutória ao Direito Natural. de todos os níveis da existência do homem individual.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . 182.br/df/cefp/Cefp15/sahd. até ao do mundo em sua plenitude. Dá. os quais.” 24 No mesmo sentido. ou que a sociedade tem a sua origem na tendência natural para a associação e. Objetiva. desde a adoção da filosofia arminiana até 24 GUIMARÃES. a reconhecer como próprio do seu semelhante tudo aquilo – coisas ou faculdades – que estejam em relação necessária com a satisfação adequada das exigências essenciais da sua natureza. Hugo Grotius: direito natural e dignidade.26 A essência da obra de Grócio.. mas sim em medida considerável. Javier.. os preceitos e as regras de moral que a reta razão deduz da „natureza racional e sociável‟ do homem”.. p. 140.fflch. Acesso em: 17. em uma unidade que reflita o que é comum a todos os seres humanos enquanto seres humanos. Antropologia e Cultura Jurídicas bem estar. a dignidade da pessoa humana e a preservação do planeta – persiste no debate atual. 25 HERVADA.]". Disponível em <http://www.. lves José de Miranda Guimarães assevera que “Cuida o Direito Natural de precisar tudo o que é devido ao homem para a sua plenitude pessoal e cuja obtenção esteja de algum modo sujeita a outro.. 26 SAHD.pdf>. para a comunidade politica. que tem uma clara dimenslão social: basta er em conta que aquelas a que temos chamado linhas de força da natural constituem as leis básicas da sociedade humana e do seu progresso. A este respeito. p.usp. Javier Hervada defende que “[. 25 Nesta esteira de raciocínio. O Direito Natural nos dá as bases para a defesa dos valores humanos. p.] o direito natural é um direito comum a todos os homens e pode ser conhecido pelas luzes da reta razão. Tradução: Joana Ferreira das Silva.1.) As máximas do direito natural são desse modo as obrigações. Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva. se obtêm por meio da união com os outros [. sustenta Luiz Felipe Sahd que “[. e consequentemente. 182. Nas palavras de Locke: “Deus. de haver necessariamente meio de apropriá-los de certa maneira antes de serem utilizados ou de se tornarem de qualquer modo benéficos a qualquer indivíduo em particular. para quem a ideia de liberdade cristã em Grócio considerava que seja pela lei humana. Tradução: Anoar Aiex e Jacy Monteiro. Acesso eletrônico em http://www. contudo.Sociologia. Concedeu-se a terra e tudo quanto ela contém ao homem para sustento e conforto da existência. anos mais tarde.. defendeu o direito natural como inerente ao homem. Hugo Grotius: direito natural e dignidade.] A única atividade que Jesus ensinou. por palavras e atos. 1992. pp. Hannah. Publicado em Cadernos de Ética e Filosofia Política. conforme produzidos pela mão espontânea da natureza. seja pela natural. Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva. John Locke.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA .Vol. está toda balizada na bondade27 como elemento constitutivo do homem. 35 . A condição humana. p. em contraposição à utilidade ou excelência na antiguidade greco-romana. 59. reconhece. foi a atividade da bondade. 45. Embora todos os frutos que ela produz naturalmente e todos os animais que alimenta pertençam à Humanidade em comum.pdf. sob pena de se profanar a imagem do Deus bondoso. por via de consequência. destinando-se ao uso dos homens. John.” (ARENDT. 471 . Segundo Tratado sobre o Governo. “ninguém poderia ser forçado a aceitar o que sua consciência rejeitava”29.usp. 137-138) 28 LOCKE. mas que as ações pecaminosas são contrárias à natureza. já que ao não aceitar o pecado natural como inerente ao ser humano. que racionalmente deveria fazer uso dos bens em benefício individual sem afastar-se da obrigação de beneficiar a todos. 30 A legitimidade do Direito Positivo: direito natural.fflch.br/df/cefp/Cefp15/sahd... também lhes deu a razão para que o utilizassem para maior proveito da vida e da própria conveniência. enquanto o jusnaturalismo tomista 27 De acordo com Hannah Arendt “[. que aos homens é assegurado o livre arbítrio. democracia e jurisprudência. sendo esta posição individualista típica manifestação da corrente iluminista. Edição nº 15. p. que deu o mundo aos homens em comum. 29 SAHD. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária. Ives Gandra Martins 30 lembra que o jusnaturalismo iluminista pretendia deduzir toda a lei natural por meio da razão..] a bondade num sentido absoluto. p. 181-191. Antropologia e Cultura Jurídicas a criação de um tratado sobre a paz e a guerra. tornou-se conhecida em nossa civilização somente com o advento do cristianismo [. pp.” 28 Semelhante interpretação é a de Luiz Felipe Sahd. do filósofo e político Marcus Tullius Cicero. dada a natureza universal do homem. dá coices e o filhote de cachorro tenta morder com seus dentes que ainda não têm firmeza‟. Antropologia e Cultura Jurídicas faz uso da indução como método mais apropriado para se conhecer a lei natural. mas possui mãos aptas para prepará-las e manuseá-las. o touro com os chifre. Grócio demonstra que há princípios naturais primitivos e secundários. porque tudo pode agarrar e segurar com a mão”.Vol..COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . p. O Direito da Guerra e da Paz. de qualquer tipo de arma. cabe ao Estado apenas reconhecer”. Em seu trabalho. Horário havia dito: „O lobo ataca com os dentes.Sociologia. que ainda não tem os cascos firmes. Aristóteles (.. GROTIUS. Não está munido de armas naturais. 472 . e que. Vemos que. O bezerro ameaça com sua cabeça. as normas naturais de conduta são reduzidíssimas: apenas aquelas essenciais ao convívio social. Tradução: Ciro Mioranza. O bezerro sente seus chifres antes que tenham surgido em sua testa. encolerizado bate com eles e se lança para frente quando irritado‟. Hugo. O motivo de mais relevante crítica ao pensamento de Hugo Grócio é a sustentação que faz de que a guerra não se opõe aos direitos naturais. as crianças se servem de suas mãos à guisa de armas. espada. Quem lhes ensinou isso. demonstra a íntima relação da guerra com os direitos naturais. A propósito.) diz que a mão do homem lhe serve de maça. 35 . diz ainda Galeno ( De usu partium. senão o instinto?‟ Lucrécio vai mais longe: „Todo animal tem um pressentimento dos meios de combate dos quais pode se servir. Num fragmento de Halieutica se pode ler: „Todos os animais pressentem seu inimigo e os recursos de que dispõem para resistir. entende-se que os animais são instintivamente levados a conservar a si mesmo a amar o seu estado desde o momento de seu nascimento31. aceitando o que é conforme a natureza e repudiando as coisas contrárias. 101/2. Eles conhecem a força e a maneira de se servir das armas de que estão munidos‟. O homem. é um animal nascido para a paz e para a guerra. sendo ela (a guerra) inerente à própria condição humana de resistir a ameaças ou à subjugação. o que significa que têm o dever mútuo de conservação no estado em que a natureza colocou. Nos primitivos. Justifica o autor que “conforme a concepção tomista do Direito Natural. portanto. mesmo que os chifres não tenham ainda crescido. Já os princípios secundários se socorrem da conveniência das coisas 31 “Xenofonte diz: „Todas as espécies de animais conhecem algum modo de combater que aprenderam da própria natureza‟. Referindo-se a obra De Finibus. o potro. que se encontram em todas as sociedades de todos os tempos. O mesmo pensamento é expresso por Galeno: „Vemos todo animal usar o que tem de mais forte para se defender. I). o Capítulo II de seu De Jure Belli ac Pacis tem exatamente este título: “Prova-se por diversas razões que o direito de natureza não é contrário à guerra”. de modo espontâneo e sem ter aprendido de ninguém. se cada um de nós se apoderasse do bem dos outros e tirasse de cada um o que poderia resultar em proveito próprio. isso se tornou bem mais fácil de entender. É fácil entender que não seria assim. Contudo.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Antropologia e Cultura Jurídicas com a razão. porém. o objetivo da sociedade é que cada um se mantenha naquilo que lhe pertence. A atualidade do pensamento Hugo Grócio pode ser constada na seguinte passagem: “De fato. que a propriedade recebeu da lei ou de um costume uma existência própria e distinta. pois a vida. se faça proteger o direito natural do outro. a sociedade dos homens. 35 . nossas riquezas. sendo seu propósito considerar bom o que é honesto e justo. três tipos de guerras. uma vez que a natureza não se opõe a isso. nosso patrimônio. e que deve ser preferido até mesmo em detrimento do desejo do direito natural. Eu expressaria essa ideia servindo-me das palavras de Cícero: „Assim.Sociologia. todo o corpo se enfraqueceria e necessariamente pereceria. a violência a um direito natural obriga que. de modo que se restabeleça o equilíbrio natural e o corpo social volte a funcionar sem que alguns se consagrem em detrimento do despojamento e da miséria de outros. ela não pode tolerar é que aumentemos nossos meios de vida. 103. a vida em comum necessariamente se subverteriam. do que vê-las serem adquiridas por outros. Há. de natureza particular. assim como a defesa da honra. Tradução: Ciro Mioranza. pela razão. é a prerrogativa inerente a cada um dos homens de proteger os direitos naturais quando violados.Vol. O que. a liberdade teriam sido sempre bens próprios de cada um. Assim é que o primeiro ocupante teria tido o direito de se servir das coisas comuns no limite de suas necessidades e aquele que o tivesse despojado desse direito se teria tornado culpado de injustiça com relação a ele. da vida e da integridade física ou dos bens. mesmo que o direito que ora chamamos „propriedade‟ não tivesse sido criado. Hoje. como efeito de um concurso comum e da reunião das forças de todos. XXII. 1 e 2. porém. o corpo.”32 O sentido dado à guerra por Grócio não é estrito. que é exemplo de defesa do direito subjetivo de propriedade: “Se um ladrão for surpreendido arrombando uma casa e for 32 GROTIUS. contra os quais não poderia atentar sem injustiça. O Direito da Guerra e da Paz. se cada um de nossos membros tivesse a faculdade de pensar. Assim também. se ele julgasse estar agindo corretamente ao tirar a saúde do membro vizinho. 473 . A primeira. É certamente permitido aspirar em ter para si mesmo as coisas que se relacionam com o entretenimento da vida. p. para ele. Hugo. cita passagem de Êxodo. despojando delas os outros‟. Sociologia. 33 Ética a Nicômaco. Portanto. 151.Vol. garante que “A justiça política é um parte natural. é um homem virtuoso -. individualmente. quando realizada sem observâncias às formalidades da guerra. entende haver um tipo de guerra mista. É a concepção do direito de resistir a qualquer ameaça que tenha como objetivo cercear os direitos naturais à vida. O ESTADO E SUA JUSTIFICAÇÃO O poder soberano de governar é denominado por Grócio de poder civil34. Ainda calcado na filosofia cristã. não individual mas coletivamente. a harmonização destes princípios naturais com a guerra estaria justamente no direito de conservação da vida e do corpo. em todo tempo e em qualquer lugar. integridade. assim como das coisas úteis à existência. VIII. Mais do que isso. quando movidas contra particulares ou quando declaradas por quaisquer magistrados. que propugnava que “a marioria. 35 . não o melhor. onde o melhor for minoria. ou seja. pois composta por dois elementos que lhe garantem autoridade. expressar ao mundo que o direito natural afeta a todos. são declaradas por quem está investido do soberano poder em sua nação e são respeitadas as formalidades da guerra. ou seja. A pública. Pois é possível que a maioria – da qual ninguém.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Uma regra de justiça natural é aquela que apresenta idêntica validade em todos os lugares e não depende de nossa aceitação ou inaceitação”. ao justificar a existência dos direitos naturais por intermédio da confirmação do direito de guerra. liberdade e propriedade. quando é pública de um lado e privada do outro. Por fim. haverá vingança de sangue”. Antropologia e Cultura Jurídicas mortalmente ferido. em Ética a Nicômaco. ou não solene. deve ter a supremacia. O sistema de representação civil é semelhante à proposta de Aristóteles. que pode ser solene ou também denominada justa. p. em parte convencional. ser melhor do que a minoria. do mesmo modo 34 474 . que mistura os elementos dos outros dois tipos. pretendeu. Tradução: Torrieri Guimarães. parte da premissa de que a máxima que nos impõe amar o próximo como a nós mesmos é a mesma que nos permite cuidar de nossa salvação mais do que a do outro. possa. tomando como premissa o pensamento de Aristóteles 33 que. não haverá por ele vingança de sangue. Mas se for em plena luz do dia. reunida. e. Política. p. tendo seu pensamento.Sociologia. inclusive. viveria em guerra e movido por paixões desenfreadas. além de muitas mentes. na ausência de algum temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas.org. Hugo. as quais “[. sem força para dar qualquer segurança a ninguém”36. quando elas se unem. E os pactos sem a espada não passam de palavras. 59. de modo a poderem ser anulados a bel-prazer de uma vontade humana estranha”35. Há uma sensível diferença entre estes teóricos. em seu estado natural.pdf>. é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida satisfeita. Também é adepto da posição de que o absolutismo universal seria o melhor para toda a gente.dhnet. são contrárias as nossas paixões naturais. é praticamente inexistente o interesse comum primário na constituição do Estado e outorga do poder ao soberano. pois neste caso haveria a possibilidade de um perfeito estabelecimento do jus gentium. Disponível em: <http://www. no entanto.. Coleção Os Pensadores. Antropologia e Cultura Jurídicas Na sua concepção. na concepção hobbesiana. a vingança e coisas semelhantes. por assim dizer. a formação de um Estado.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . pois o homem. Já Hugo Grócio entende que a outorga de poderes ao Estado provém de seus como uma festa para a qual todos contribuem é melhor do que aquela feita às expensas de um único homem.] por si mesmas. soberano é aquele cujos atos “não dependem da disposição de outrem. para alguns. o motivo da vida em sociedade e. p. Porque. A soberania. o orgulho. Acesso em: 11/10/2011. p. expressão do absolutismo típico da Idade Média. Tradução: Ciro Mioranza. Hobbes parte do pressuposto que o homem em seu estado natural é incapaz de viver pacificamente e escolhe subjugar-se ao soberano em razão de uma virtude cívica por excelência: o medo.” (Aristóteles. O legado de Hugo Grócio é. Para este último. Tradução: João Paulo Monteiro Maria Beatriz Nizza da Silva. inspirado nomes expressivos como o de Thomas Hobbes.Vol. 475 . 230) 35 GROTIUS. Assim.. O Direito da Guerra e da Paz. 35 . sem discrepâncias entre os povos legislados.br/direitos/anthist/marcos/hdh_thomas_hobbes_leviatan. cada qual tem alguma cota de virtud e e inteligência. tornam-se algo parecido a um homem com muitos pares de pés e mãos. quando há muitas pessoas. as quais nos fazem tender para a parcialidade. consequentemente. é decorrência lógica da falibilidade das leis naturais. 174 36 Leviatã. Tradução: Terezinha Monteiro Deutsch e Baby Abrão. ] os direitos individuais só podem florescer numa sociedade bem ordenada. sociáveis por natureza. nas mãos da sociedade. Tradução: Anoar Aiex e Jacy Monteiro.Sociologia. alguém pode supor-se que troque a sua condição para pior –. Segundo Brian Tierney. 35 . Tradução: Ciro Mioranza. escravizado. Hugo Grócio e o Direito: O Jurista da Guerra e da Paz.”40 É de ver.. mas com os de seus companheiros e de toda a comunidade. porém. uma sociedade só poderia florescer se os membros individuais se importassem não somente com o seu próprio bem-estar. sem reserva alguma?”. mas da ideia de legitimidade de direitos antecedentes às leis positivas e à própria formação do Estado. não seria permitido a um povo submeter -se. Por que. se não admitirmos que o direito de governar está sempre submisso ao julgamento e à vontade daqueles que são governados”. fazendo-o cada um apenas com a intenção de melhor se preservar a si próprio. que ao mesmo tempo em que preserva a escolha pelo convencimento do que é melhor aos indivíduos – posição tipicamente arminiana.Vol. à sua liberdade e propriedade – eis que criatura racional. é também consequência da natureza 37 “Tudo o que se acaba de dizer deve ser necessariamente abolido. até mesmo. mas pessoas humanas. Grócio não nos apresenta indivíduos isolados em face de um Estado onipotente. unidas por laços de amizade e apoio mútuo. pois. a liberdade e o poder executivo que tinham no estado de natureza. (GROTIUS..] e romana. o poder da sociedade ou o legislativo por ela constituído não se pode nunca supor se estenda mais além do que o bem comum. embora os homens quando entram em sociedade abandonem a igualdade. dando ainda mais ênfase aos direitos naturais 38.” (Segundo Tratado sobre o Governo. A união dos indivíduos em prol da formação do Estado é a abdicação do bem individual em favor do bem comum. entretanto. Mas. justificável pela teoria do livre arbítrio – sustenta que o direito de ser governando ou. cada qual ciente do dever de respeitar o direito dos demais. de modo a lhe entregar totalmente o direito de governá -lo. 83) 40 MACEDO. 177). ao que parece. O Direito da Guerra e da Paz. p. no entanto. (GROTIUS. por própria iniciativa. Paulo Emílio Vauthier Borges de. para que disponha deles por meio do poder legislativo conforme o exigir o bem dela mesmo. p. Hugo. 39 “Todavia. jamais poderiam conferir um direito se já não o possuíssem anteriormente 37. 38 De acordo com Grócio “É permitido a todo homem reduzir-se à escravidão privada em proveito próprio e por lhe parecer conveniente. p. Hugo. 82-83. O Direito da Guerra e da Paz. apud Paulo Emílio Vaulthier Borges de Macedo “[. 182). Antropologia e Cultura Jurídicas membros individualmente. 476 .. p.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . a um só indivíduo ou a vários. Grócio edificou sua filosofia contratualista sem partir do medo como pressuposto de união dos homens. assim como o fizeram Locke39 e Rousseau.. como resulta na própria lei hebraica [. ou seja. Tradução: Ciro Mioranza. 43 Ibidem. de que falaremos mais adiante. 71. sua proposição seria verdadeira e conforme a aprovação de todos os homens de bem. Grócio refuta o direito de resistência ao soberano. Se um povo tivesse o propósito de compartilhar com o rei a autoridade soberana.Sociologia.” Ainda. se tornaria dependente de seu povo. mas que. mas isso não encerra nenhum direito de coação ou de superioridade. deveria certamente fixar os limites dessas respectivas jurisdições. pode dar à obra do autor de Delft uma conotação absolutista. o que. p. de acordo com o autor holandês. Se essas pessoas dissessem que não se deve cumprir porque o rei ordenou um ato manifestamente injusto. de pessoas ou de assuntos. John. se assim não fosse. de maneira a poder facilmente discerni-las. “a assertiva que aquele que estabelece é superior ao que é estabelecido não é verdadeira senão a propósito de uma instituição em que o efeito depende sem interrupção da vontade de seu autor”43. Tradução: Ciro Mioranza. pelo que ele juntamente com outros se incorpora a uma sociedade. Tradução: Anoar Aiex e Jacy Monteiro. p. 185. 35 . anos mais tarde.Vol. O Direito da Guerra e da Paz. deixando de ser um pacto. de maneira que esses últimos deveriam obedecer a seu rei enquanto governasse bem. Antropologia e Cultura Jurídicas de certos homens. o que também não quer dizer que ao soberano seja facultado decidir mesmo 41 LOCK. percebe-se um alinhamento de Grócio com o que. 188. segundo a diferença de 42 local. assume a obrigação para com todos os membros dessa sociedade de submeter-se à resolução da maioria conforme a assentar. nada significaria. 42 GROTIUS. esse pacto inicial.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . p. restando claro que é pressuposto da vida em sociedade a abdicação de parte dos direitos individuais: “E assim todo homem. 477 . a princípio. se o rei viesse a governar mal. viria John Locke pontificar. a soberania não poderá ser destituída. Contudo. Para o autor: “Há outras pessoas que acreditam que há uma espécie de dependência recíproca entre um rei e seus súditos. Segundo Tratado sobre o Governo. concordando com outros em formar um corpo político sob um governo. Em contraposição a John Locke. se aquele indivíduo ficasse libre e sob nenhum outro vínculo senão aquele em que se achava o estado de natureza”41 Por outro lado. Hugo. É forçoso considerar Grócio pontífice do absolutismo. a todo tempo. tais como a proteção inata à essência humana. Tradução: Ciro Mioranza. Hugo. a necessidade da vida em sociedade como mecanismo de fraternidade e proteção coletiva dos indivíduos. democracia e o respeito político às instituições soberanas. como não o é para uma tutela ou para o exercício de curador. já que seu conceito de soberania não partia. que a convenção feita pelo mestre de uma sociedade pode não somente ser útil à sociedade. O Direito da Guerra e da Paz. mas também pode lhe ser prejudicial.Sociologia. 44 GROTIUS. MACEDO. Juliano diz: “O tutor é considerado como ocupando o lugar do mestre. O soberano. Seria perigoso para o próprio Estado reduzir aquele que governa a coisa pública a esses limites. CONCLUSÃO Hugo Grócio definitivamente foi um homem além de seu tempo. Hugo Grócio e o Direito: O Jurista da Guerra e da Paz.” Nesse sentido é que se deve entender também o que disse Ulpiano. Muito embora tenha vivido in fine à Idade Média. 35 . 45 478 . de fato. Antropologia e Cultura Jurídicas que contra a vontade ou interesse do povo 44: “Um poder infinito de se obrigar não é necessário. mas é limitado porque a natureza dessa função exige. 641-642. O que foi respondido pelos imperadores romanos. de modo que o ato não deva ser ratificado a não ser que tenha sido realizado de uma maneira proveitosa. quando administra a fortuna do pupilo e não quando o despoja. Não se deve contudo. guardando-se toda proporção devida”. da outorga de poderes ao soberano em razão do medo da vida em estado de isolamento. pp. IX. a mesma resposta deve e pode ser aplicada a nossa questão com relação à totalidade de um povo. do direito civil e do jus gentium45. julgar que essa regra seja restrita à natureza da gestão dos negócios. que a transação feita pelos magistrados em matéria de coisa duvidosa era válida e que não era caso portanto da remessa feita por eles de uma dívida indubitavelmente devida. Paulo Emílio Vauthier Borges de. Na verdade. para bem exercer a soberania. na causa de uma cidade. 83.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . Por isso é que o povo não deve ser considerado como tendo essa intenção.Vol. é obrigado a observar as prescrições do direito natural. como em Hobbes. muitas de suas ideias se adéquam à perfeição ao iluminismo. como alguns pensam. quando deferiu o poder. cujo sistema foi preordenado para justamente proteger o povo em seu estado social. p. Embora tenha rompido parcialmente com a doutrina teológica.br/drupal/node/1092> Acesso em: 9/11/2011. Disponível em: <http://www.org. e a bondade lhe é inerente. alguém que se avoca de poderes para comandar a seu bel-prazer. V. Antropologia e Cultura Jurídicas aliando-se muito mais às posições de São Tomás de Aquino e Locke. A formação das sociedades. como pai do direito internacional que é. o cristianismo é a base da doutrina de Grócio. Fundamentos aristotélicos do Direito 479 . 1º. que. sempre pontificou que ao homem deve ser garantido o livre-arbítrio. embora lhe oportunizado fazer o bem.COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA . A defesa da soberania e do estado regente dos homens tem. O soberano é. não se justificando o soberano que age em contrário aos interesses de seu povo. quando necessário. II Parte. sendo seu o arbítrio de cometer ou não o pecado. para Grócio. adepto ao arminianismo.Vol. Questão 18. norma de direito posto direcionada justamente à garantia universal dos direitos naturais do homem. Vandyck Nóbrega de Araújo. BIBLIOGRAFIA AQUINO. para Grócio. seria mais efetiva a aplicação do jus gentium. representante legítimo do povo. Suma Teológica. O soberano não é.Sociologia. fazer cumprir os preceitos de igualdade por via do direito posto (direito civil). declaração esta de evidente teor liberalista e expressão máxima de que o homem é criado à imagem e à perfeição de Deus. ARAÚJO. já que só há formação da cidade no sentido de garantir proteção e bem estar aos indivíduos. 35 . São Tomás de. mas verdadeiros irmãos. para ele. que une os homens mais do que meros conviventes. é a maior prova de que os homens são bons e assim devem ser seus representantes. mas alguém que detém uma capacidade ampla de conhecer os direitos naturais e. art.permanencia. portanto. o condão de sustentar sua ideia de que se todas as nações tivessem um mesmo modelo de soberania. em favor do qual devem ser empregados todos os esforço para garantir segurança e bemestar. Grócio tinha como pressuposto da vida em sociedade a lei do amor. Rio de Janeiro: Forense Universitária. São Paulo: Ícone. Ética a Nicômaco. Acesso em: 11/10/2011. São Paulo: Editora Nova Cultural. Hans. 2008. Crítica Introdutória ao Direito Natural. Fabbris. Volumes I e II. O Direito da Guerra e da Paz. A condição humana. São Paulo: Martin Claret. Tradução: Ciro Mioranza. Coleção Os Pensadores. Ylves José de Miranda. 1991. Hugo Grotius e as relações internacionais: entre o direito e a guerra. HOBBES. 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