Sociolinguísticano Brasil uma contri b ui ção dos e s tudos s ob r e l í n g ua s e m/ d e c ontato homenagem ao professor J ür gen Heye { Organização de Mônica Maria Guimarães Savedra Barretto Ana Claudia Peters Salgado Sociolinguística no Brasil uma contri b ui ção dos e s tudos s ob r e l í n g ua s e m/ d e c ontato homenagem ao professor J ür gen Heye { Organização de Mônica Maria Guimarães Savedra Barretto Ana Claudia Peters Salgado sumário Apresentação I encontro internacional do gt de sociolinguística 5 Mônica Maria Guimarães Savedra Barretto & Jürgen Walter Bernd Heye Línguas em contato – um panorama da pesquisa no Brasil 6 Paulino Vandresen gt de sociolinguística da Anpoll: passado, presente e futuro 17 Suzana Alice Marcelino Cardoso O /s/ em coda silábica: análise de dados do projeto Alib 21 Jacyra Andrade Mota Sobre o /s/ em coda silábica no Rio de Janeiro: falas culta e popular 27 Dinah Callou & Silvia Figueiredo Brandão A fricativa em posição de coda: análise fonológica 35 Cláudia Regina Brescancini & Valéria Neto de Oliveira Monaretto Rumos que seguem as fricativas coronais no português brasileiro 46 Dermeval da Hora & Juliene Lopes R. Pedrosa A questão do “encaixamento” da mudança e o parâmetro do sujeito nulo 54 Maria Eugenia Lamoglia Duarte Nheengatu e português regional: línguas em contato na Amazônia na literatura oral do século xIx 60 José Ribamar Bessa Freire Fenômenos de usos linguísticos: alternância de código 68 Clarice Nadir von Borstel A história das modalidades escritas: um caso de contato linguístico? 80 Pierre Guisan Sociolinguística e geolinguística: uma perspectiva histórica 88 Silvia Figueiredo Brandão Sociolinguística e geolinguística no Brasil: caminhos e encontros 93 Jacyra Andrade Mota A geolinguística pluridimensional no Brasil: histórico, metodologias e estágio atual 99 Vanderci de Andrade Aguilera Refexão sobre exercícios de ortografa em eJA 111 Maria Cecilia de Magalhães Mollica & Fernando Cardoso Loureiro O peso das línguas 116 Louis-Jean Calvet O Dicionário de Variantes do Alemão: coleta de dados sistemática 127 da variação nacional e regional do alemão padrão Ulrich Ammon Mudança social radical e seu refexo sociolinguístico nos registros e 134 estilos de berlinenses do leste e do oeste depois da reunifcação alemã Norbert Dittmar 5 apresentação i encontro internacional do gt de sociolinguística O I Encontro Internacional de Sociolinguística realizado pelo GT de Socio- linguística da ANPOLL teve como objetivo apresentar e discutir a temática atual da área em âmbito nacional e internacional. este evento foi pensado a partir de projetos de pesquisa de cooperação internacional coordenados por membro do gt e vigentes no biênio 2006-2008. este encontro, reali- zado em agosto de 2007 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, contou com o fomento da Faperj, Capes, do DAAD e do Consulado geral da França no Rio de Janeiro. Os textos aqui reuni- dos foram apresentados e debatidos nas sessões temáticas do encontro. Mônica Maria Guimarães Savedra Barretto Jürgen Walter Bernd Heye 6 línguas em contato – um panorama da pesquisa no brasil Paulino Vandresen é doutor em linguística ela PUC- RS (1971). É professor titular aposentado da UFSC e, atualmente, é professor efetivo do Programa de Pós-gra- duação em Letras da Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Sua área principal de atuação é a “sociolinguís- tica” de “análise linguística e linguística aplicada”. e-mail:
[email protected] resumo Nesta comunicação apresentamos as principais contribuições dos membros do gt de Sociolinguística da ANPOLL, nas pesquisas da subárea da “língua em contato”. Demos especial ênfase às pesquisas relacionadas às línguas minoritárias dos imigrantes e ao contato do português com o francês e espa- nhol em áreas fronteiriças. Apresentamos, também, resultados parciais de numa pesquisa em uma comunidade bilíngue, na região de Pelotas, procurando descrever as funções das línguas em contato e os fatores sociais que determinam os padrões de escolha entre o Pomerano (dialeto alemão) e o Português nas interações comunicativas. Apresentamos, também, as pers- pectivas de desenvolvimento desta subárea do gt de socio- linguística, tendo em vista a proposição de projetos a serem desenvolvidos nos próximos anos. abstract In this paper we present an evaluation of the last fve years academic work developped by members of ANPOLL’s socio- linguistics research group. A special attention was given to research deloted to minority immigrant languages and to language contact between Portuguese and Spanish or French at border areas. We also present a description of a language contact situation at Arroio do Padre, a bilingual community settled by german immigrants, speakers of the Pomeranian dialect. the aims of this study are the description of langua- ges functions and of the social factors that are responsible for the choice of Portuguese or Pomeranian in communicative interactions. We also present a perspective of future develop- ment of the language contact area, in consequence of research projects hat are being proposed by different members of our Sociolinguistics working group. 1. introdução: um panorama das pesquisas 1.1. É difícil fazer uma estimativa sobre o número de línguas faladas neste início do século xxI. As difculdades perpassam pelo estudo e descri- ção insufcientes das línguas de muitas regiões do mundo e pelos critérios linguísticos ou polí- ticos para distinguir línguas e dialetos. Assim, o Pomerano falado no Brasil oferece difculdades de intercompreensão com o alemão padrão, mas por critérios mais políticos que linguísticos é conside- rado um dialeto do alemão, sem status de língua. As estimativas sobre o número de línguas faladas (nos aproximadamente 200 países do pla- neta terra) piram em torno de 6.0000 (Crystal, 1987). Isto daria uma média de 30 línguas por país, levando a população a inevitáveis contatos linguísticos. em época de globalização temos ainda o fenô- meno do deslocamento de populações em busca de emprego em regiões industrializadas. Assim. temos grandes comunidades de falantes de Portu- guês (brasileiros e portugueses) nos eUA, Canadá, Japão e vários países europeus. Por outro lado, o Brasil também recebe imigrantes, falantes de dife- rentes línguas. Com a globalização temos mino- rias linguísticas mesmo em países antes conside- rados “monolíngue”, como Portugal, Holanda, Alemanha etc. Como resultado, temos pessoas aprendendo novas línguas, com novas situações de bilinguismo, empréstimos, mudanças linguís- ticas, e mesmo a morte de línguas minoritárias (Wolfram, 2002). 7 pauli no vandresen | lí nguas em contato maternas dos imigrantes, a partir da ditadura getulista, estabelecendo uma política linguística de uso exclusivo do Português em todo o terri- tório brasileiro. A descontinuidade no ensino das línguas de imigrantes (mesmo na grade curricular de línguas estrangeiras) criou um vácuo de refe- rência e falta de atualização lexical para os dialetos alemães, italianos etc., que foram empobrecendo seu léxico com empréstimos do português e prá- ticas mais frequentes de alternância de código. A perda de funções e o empobrecimento na com- petência linguística vem causando avaliações de baixo prestígio e estigmatização dos dialetos pelos próprios falantes, uma das causas para seu gradual desaparecimento ou morte (Wolfram, 2002). Dois estudos recentes sobre o impacto da política linguística de Vargas e sobre a repressão às línguas minoritárias (de Faveri, 2005 e Campos, 2006) lançam uma nova luz sobre as causas do desaparecimento gradual dessas línguas. 1.4. As perspectivas para o desenvolvimento da subárea de línguas em contato do gt de socio- linguística da ANPOLL são positivas, em face da existência desta linha de pesquisa em inúmeros programas de pós-graduação. Além disso, estão em curso projetos interinstitucionais (com envol- vimento de universidades estrangeiras) e com perspectivas de fnanciamento, como o Projeto “ALMA” (Atlas Linguístico-Contatual das Mino- rias Alemãs da Bacia do Prata: Hunsrükisch), que está sendo desenvolvido sob a coordenação dos professores Dr. Cleo V. Altenhofen (UFRgS) e do Dr. Harald thun (Univ. Kiel, Alemanha). O projeto já está em desenvolvimento com organização de questionários, sistema de escrita para o Hunsrükisch e a participação de três mestrandos e quatro doutorandos. está abrangendo também o estudo dos dialetos Westfaliano (Rosane Werkhau- sen Luersen) e o Plautdietch ou Menonita (elvine Siemens Dück), falados nos estados do Sul. No estudo do Pomerano falado no espírito Santo, temos a contribuição do Prof. Ismael tress- mann, que acaba de publicar um dicionário Pome- rano-Português, juntamente com uma proposta ortográfca para a grafa deste dialeto alemão. O dialeto pomerano conta também com fa- lantes em uma vasta área geográfca na região de 1.2. No Brasil, os projetos de pesquisa dos mem- bros do gt de sociolinguística na área de línguas em contato têm priorizado estudos sobre as lín- guas minoritárias de imigrantes e mais recente- mente estudos sobre o contato do português com o espanhol e o francês nas áreas fronteiriças. Com relação às línguas indígenas, abre-se um vasto campo de estudos sobre o contato com o Portu- guês, mas cerca de 3.000 escolas indígenas bilíngues com aproximadamente 120.000 alunos. em São gabriel da Cachoeira – AM – três línguas indíge- nas – o tukano, o baniwa e o nhengatu – foram declaradas línguas ofciais por terem grande vitali- dade e importância naquele município. Por outro lado, algumas línguas indígenas estão em alto risco de desaparecimento, pois a geração jovem já não aprende e fala as línguas de seu grupo étnico. Com relação às línguas africanas tem mere- cido destaque o estudo de línguas crioulas de base portuguesa e a infuência das línguas africanas na formação do léxico do português brasileiro. 1.3. Os resultados das pesquisas dos membros do gt de sociolinguística nos últimos anos estão pre- sentes em publicações (revistas e coletâneas) em dissertações e teses produzidas em cursos de pós- graduação fliados à ANPOLL. Dentre as publica- ções, destacamos o volume temático sobre línguas em contato, da revista Palavra, 2003, n.11, orga- nizada pelos sociolinguistas Jürgen Heye e Mônica Savedra. Outro volume, resultante de um encon- tro do gt de sociolinguística, foi organizado por Romcarati e Abraçado (2003), sob o título: Portu- guês Brasileiro: contato linguístico, heterogeneidade e história. Além disso, tivemos a publicação das coletâneas de Zilles (2005), Cardoso et al. (2006), Vandresen (2006) e gorski e Coelho (2006). Devemos realçar ainda as pesquisas em forma de dissertações e teses na área de contato linguístico entre português e línguas de imigrantes em vários programas de pós-graduação, indicados em nossas referências bibliográfcas. Apesar dos resultados positivos alcançados é necessário ressaltar a urgên- cia de mais pesquisas em comunidades bilíngues, em face da perda gradual das línguas minoritárias, especialmente nas faixas etárias mais jovens. As causas dessas perdas estão ligadas a fatos históricos que criminalizaram o uso das línguas 8 pauli no vandresen | lí nguas em contato 2.2. Com forte tradição escolar, os imigrantes pomeranos criaram escolas étnicas, que ensinavam em alemão padrão até a época da Segunda guerra Mundial. Criou-se aí uma situação de diglossia no sentido clássico de Ferguson (1959), em que o alemão padrão era usado nas situações formais (no culto e na escola), e o dialeto pomerano no lar e nas situações informais. Até 1937, início da Campanha de Nacionali- zação do ensino no governo de getúlio Vargas, as comunidades pomeranas se mantiveram rela- tivamente isoladas geografcamente, com poucos contatos com falantes do Português. esta situação fez com que muitas delas (como Arroio do Padre) permanecessem monolíngues por motivos cultu- rais e religiosos. Os imigrantes pomeranos eram majoritariamente protestantes. esta situação os isolava das comunidades lusofalantes católicas, difcultando contatos linguísticos e casamentos interétnicos. A partir da segunda metade do século xx, com o fechamento das escolas étnicas, o domínio do alemão padrão vai desaparecendo e, devido à escola em língua portuguesa, o português assume o papel de língua escolhida para as situações for- mais, continuando o Pomerano como a língua do registro informal, especialmente como língua do lar. em entrevistas com professores em esco- las do município de Arroio do Padre confrmou- se que o Pomerano é, efetivamente, a língua usada no contexto familiar, de tal forma que ainda exis- tem crianças que iniciam a escolarização sem falar o Português. Por outro lado, o Português falado pelos alunos das séries iniciais tem forte interfe- rência da Língua Materna, especialmente na dis- tinção entre consoantes surdas e sonoras, vibrante simples e múltipla e as vogais e ditongos nasais. 2.3. Neste estudo do bilinguismo Pomerano/ Português não adotamos a defnição clássica de Bloomfeld (1933, p.56): “Nativelike control of two languages” (controle como falante nativo de duas línguas) por ser muito excludente. Sabemos hoje que o domínio que muitos falantes têm de duas ou mais línguas pode variar quanto às habi- lidades (entender, falar, ler e escrever), bem como quanto ao uso e competência linguística ao longo da vida, criando assim o conceito de bilinguali- Pelotas-RS, que foi objeto de estudo recente na Universidade Católica de Pelotas (UCPel), cujos resultados apresentamos a seguir. 2. o bilinguismo pomerano- português em arroio do padre 2.1. Nesta secção apresentamos uma descrição do bilinguismo Pomerano-Português em Arroio do Padre, uma comunidade de colonização alemã, na Região de Pelotas. O objetivo desta descrição é discutir o processo de manutenção e/ou desloca- mento das funções das línguas em contato nesta comunidade: o Pomerano, dialeto alemão dos imigrantes, e o Português. Além disso, pretende-se também identifcar os fatores sociais que estão favorecendo o des- locamento de funções ou mesmo a substituição do dialeto pomerano. O início da colonização alemã nesta região se deu em 1858, a partir de São Lourenço do Sul. Feita predominantemente por emigrantes Pomeranos, foi resultado de um empreendimento idealizado e coordenado por Jacob Rheingantz, em área comprada do então governo imperial na Serra dos tapes. O compro- misso do colonizador com o governo imperial era introduzir no mínimo 1.400 imigrantes europeus na região adquirida, então parte do município de Pelotas. No fnal do século xIx, com a che- gada de novos colonos e a procura de terras pelos flhos das primeiras levas de imigrantes, a colô- nia pomerana foi-se estendendo para Arroio do Padre (1887) e Morro Redondo (1892) (Kolling, 2000, p.12). Arroio do Padre é um dos mais novos municípios do Rio grande do Sul, originário do 10 o Distrito do município de Pelotas. Conta com uma população de 2.563 habitantes, em sua grande maioria agricultores, distribuídos em 588 pequenas propriedades, a maioria (87,38%) com menos de 25 ha. O município está dividido em pequenas comunidades, servidas por igreja, escola e pequeno comércio. Mesmo a sede do município não apresenta um grande conglo- merado de casas, podendo-se afrmar que toda a região do município tem um predomínio de características rurais. 9 pauli no vandresen | lí nguas em contato 2.4. Um dos aspectos pesquisados nas duas comu- nidades foi o conhecimento e uso de línguas assu- midos pelos informantes. Verifcou-se que todos os 150 informantes falam o português e que tive- ram esta língua como meio e objeto de instrução na escola. O Pomerano é falado e entendido por todos os informantes entrevistados. No questio- nário incluímos pergunta sobre o conhecimento do alemão padrão, tendo em vista o histórico de seu ensino nas escolas da região e seu eventual uso no culto e leitura da bíblia. Com referência ao alemão padrão, dos 150 informantes, apenas 6% declararam entender e falar esta língua, aprendida no contexto religioso evangélico-luterano. estes falantes se concentram na faixa etária de mais de 51 anos. 2.5. A manutenção do dialeto pomerano está ligada, particularmente, ao seu uso com os pais no ambiente familiar. em Arroio do Padre (que carac- terizamos como área isolada e rural) o pomerano é a língua mais usada nas relações familiares. Como podemos constatar na tabela 1, 92,6% dos 150 informantes usam “quase sempre” o Pomerano nas relações comunicativas com os pais. Somente na faixa etária mais jovem há alternância de uso entre Pomerano e Português neste contexto. dade, variação da competência linguística ao longo da vida do indivíduo (Heye, 2003, p. 37). Por esse motivo consideramos bilíngue tam- bém o indivíduo que tenha conhecimento passivo de uma das línguas em contato e possa dessa forma interagir com outros bilíngues em situações reais de comunicação. Com o intuito de alcançar os objetivos pro- postos para a descrição das funções das línguas em contato e as atitudes linguísticas dos falantes, entrevistamos uma amostra de 150 informantes em Arroio do Padre, abrangendo várias comuni- dades escolares do município. A amostra foi estra- tifcada em grupos etários de até 24 anos, de 25 a 50 e mais de 51 anos. em cada grupo etário, foi entrevistado igual número de representantes para o sexo masculino e feminino. Na aplicação dos questionários participaram três bolsistas de iniciação científca da UCPel, todos bilingues. O fato de alguns pesquisadores falarem o Pomerano e serem reconhecidos como membros da comunidade linguística e religiosa facilitou o acesso aos informantes e a obtenção dos dados para este trabalho. Além disso, entrevistamos professoras de séries iniciais, autoridades educacionais e religiosas e grupos familiares para avaliar a escolha das lín- guas nas redes de comunicação. Tabela 1 – Uso do Pomerano no lar, em Arroio do Padre Uso do Pomerano com Familiares Faixa etária Até 24 anos (%) 25 a 50 anos (%) Mais de 50 anos (%) Total (%) Com os pais Quase sempre 84 98 96 92,6 Às vezes 16 2 4 7,4 Nunca 0 0 0 0 Com os irmãos/ parentes Quase sempre 72 86 96 84,7 Às vezes 28 14 4 15,2 Nunca 0 0 0 0 Com esposo(a) Quase sempre - 88 98 93 Às vezes - 12 2 7 Nunca - 0 0 0 Com flhos(as) Quase sempre - 80 90 85 Às vezes - 20 10 15 Nunca - 0 0 0 1 0 pauli no vandresen | lí nguas em contato que 50% dos jovens nunca usam o Pomerano nes- tas funções. Gráfco 2 – Funções internas no uso do Pomerano (rezar, cantar, sonhar, fazer contas, xingar...) Analisando os outros dados da tabela 1 (esposo(a) e flhos(as)), verifca-se que em Arroio do Padre, em nenhuma situação o Pomerano está excluído e aparece com percentuais elevados de 93% com esposo(a) e 85% com flhos(as). É preciso observar que os informantes até 24 anos foram selecionados em grupos de jovens (sol- teiros), não havendo por isso informações sobre interação com esposos(as) e flhos(as), neste grupo. 2.6. Uso do Pomerano na comunidade. Neste contexto, o uso do Pomerano ou Português mos- tra uma diferença mais acentuada entre as faixas etárias. Observando os dados do gráfco 1 vemos que o Pomerano é quase sempre usado por 74% dos informantes acima de 51 anos, nas interações fora do lar. Gráfco 1 – Uso do Pomerano na comunidade (amigos, vizinhos, comércio, ...) 0% 10% 20% 30% 40% 50% Até 24 anos 25 a 50 anos Mais de 50 anos ARROIO DO PADRE Quase sempre Às vezes Nunca 0% 20% 40% 60% 80% Até 24 anos 25 a 50 anos Mais de 50 anos ARROIO DO PADRE Quase sempre Às vezes Nunca 0% 20% 40% 60% 80% Até 24 anos 25 a 50 anos Mais de 50 anos ARROIO DO PADRE Quase sempre Às vezes Nunca Na faixa etária de 25 a 50 anos, a situação é bastante semelhante aos mais idosos, com pequena queda percentual no uso do Pomerano. No grupo mais jovem (até 24 anos), há uma clara diminuição no uso do Pomerano: 8% declaram nunca usar o Pomerano neste contexto e 44% só o usam às vezes. Isto signifca que mais de 50% dos jovens se comunica habitualmente em Português. 2.7. Funções internas. Fazer contas, rezar, sonhar, xingar... são classicadas por Mackey (2000 p. 36) como funções internas, pelas quais também com- petem as línguas em contato, numa situação de bilinguismo. Conforme mostra o gráfco 2, em Arroio do Padre o uso do Pomerano é dominante apenas na faixa etária acima dos 51 anos. Nas sub- sequentes, seu uso diminui gradualmente, sendo 0% 10% 20% 30% 40% 50% Até 24 anos 25 a 50 anos Mais de 50 anos ARROIO DO PADRE Quase sempre Às vezes Nunca 2.8. Atitude Linguística. Os dados apurados nos questionários e também nas entrevistas livres mos- traram uma atitude favorável ao uso e manutenção do Pomerano em Arroio do Padre. Verifcou-se a existência de regras tácitas para uso do pomerano no lar, com pessoas mais velhas e mesmo com crianças em idade pré-escolar, “pois, elas precisam aprender o Pomerano em casa”. Mas, encontramos também algumas manifestações contrárias sob a alegação de que o uso do Pomerano no lar prejudicaria a aprendizagem do português na escola ou de que era “um dialeto que nem os alemães entendem”. Mas os resultados dos questionários mostram que 81% dos informantes insistem ou insistirão no uso do Pomerano como mostra o gráfco 3. Gráfco 3 – Insiste no uso do Pomerano em casa (Atitude Linguística) 81% 19% Sim Não 2.9. A expectativa sobre as chances de o Pomerano continuar a ser falado é positiva, em Arroio do Padre. A maioria dos informantes (93%) acredita 1 1 pauli no vandresen | lí nguas em contato guística favorável a sua manutenção. esta atitude ou lealdade linguística ao Pomerano tem garantido sua manutenção, graças à localização da comuni- dade dentro de uma ilha linguística Pomerana, em que praticamente todas as pessoas são bilíngues e, por exercerem atividades agrícolas, suas redes de comunicação são fechadas e densas, favorecendo a resistência a forças inovadoras, como a troca pelo português. Como vimos nos dados, mesmo na faixa de 25 aos 50 anos, prevalece o uso do dialeto pomerano no lar, apesar de esta geração e a mais velha (mais de 51 anos) terem frequentado escolas em língua portuguesa. Desta forma, o isolamento geográfco explica, em parte, os padrões de escolha das línguas, em função dos interlocutores. Para melhor determi- nar o uso do Pomerano e do Português em Arroio do Padre defnimos doze tipos de interlocutores e solicitamos a oito falantes bilíngues de cada faixa etária para defnirem seus padrões de escolha. Além disso, adotamos uma fórmula estatística usada por gal (1979, p.159) para calcularmos o índice de uso do dialeto Pomerano em Arroio do Padre. Usamos “A” (de Alemão) para Pomerano (que é um dialeto alemão) e “P” (para Português). A fórmula para cal- cular o índice A (Dialeto Pomerano) é : A + AP índice A = ___________ A + AP + P Utilizando a fórmula de gal, foi calculada a proporção de uso potencial do Pomerano (índice A) em cada um dos 24 informantes, em cada uma das 12 situações interacionais. Dessa forma, pode- mos ordenar nossos informantes conforme seu índice A – Dialeto Pomerano. Da mesma forma, calculamos o índice esperado, pelos padrões da escolha, para cada tipo de interlocutor. O resul- tado é uma matriz que leva em conta a forma dife- renciada de cada informante fazer suas escolhas linguísticas habituais. A tabela 2 dá informações importantes sobre o uso das línguas em contato. Na tabela percebe- se, por exemplo, que o Pomerano se mantém no contexto familiar. Os primeiros cinco interlocu- tores potenciais – avós e sua geração, pais e sua geração, esposo(a), flhos e irmãos – apresentam índice A de uso do dialeto Pomerano muito que o Pomerano continuará a ser falado na comu- nidade, conforme mostra o gráfco 4. Gráfco 4 – O Pomerano continuará a ser falado na comunidade? 2.10. Como já informamos anteriormente, pro- curou-se verifcar quais as línguas faladas por cada informante e a preferência de seu uso na fala. Pode-se inferir que a língua preferida é aquela em que o informante se autoatribui maior com- petência linguística. Os resultados mostrados no gráfco 5 mostram preferência pelo Alemão em um pequeno percentual de informantes (6%). Conforme informações colhidas junto a lideran- ças religiosas esta competência em alemão padrão pode ter sido adquirida com pais que frequenta- ram escola alemã ou na escola dominical evangé- lico-luterana. Quanto aos dados sobre Pomerano e Português verifcou-se, novamente, uma clara preferência pelo Pomerano (81%). Gráfco 5 – Preferência de uso na fala (Atitude Linguística) 93% 7% Sim Não ! ! ! 2.11. O papel dos fatores sociais e das redes de comunicação. O uso do Pomerano no lar e na comunidade é predominante e há uma atitude lin- 1 2 pauli no vandresen | lí nguas em contato uso Pomerano/Português entre os 6 primeiros e os 6 últimos interlocutores potenciais: Pomerano com índices A de 1.00 a .83. Mas nos seis primei- ros é de apenas .50 e .10 nos seis últimos. elevado. “Amigos e vizinhos” também têm índi- ces elevados. Mas os interlocutores potenciais (de 7 a 12) apresentam índices relativamente baixos. A tabela mostra, portanto, uma clara oposição de Tabela 2 – Padrões de escolha da língua em Arroio do Padre Interlocutores Potenciais Inf. Idade 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 Índice A 1 15 A AP - - AP AP P P P P P - .44 2 24 A A - - AP AP AP AP P AP AP P .80 3 11 A AP - - P P P P P P P - .22 4 13 A AP - - P P P P P P P - .22 5 19 A AP - - AP AP AP AP P P P - .66 6 24 A A - - AP AP AP P P AP AP P .70 7 16 A AP - - P AP AP P P P P - .44 8 17 A AP - - P AP AP P P P P P .40 9 49 A A AP AP AP AP AP AP P AP AP AP .91 10 34 A A A AP AP AP P P P P P P .50 11 39 A A A AP AP AP P P P P P P .50 12 40 A A A AP AP AP P P P P P P .50 13 42 A A AP AP AP AP AP AP P P AP P .75 14 41 A A AP AP AP AP AP AP P P P P .66 15 33 A A A AP AP AP P P P P P P .50 16 47 A A AP A A AP AP P AP AP AP AP .91 17 71 A A A A A AP AP A AP AP A AP 1.00 18 62 A A A AP AP AP P P AP P AP P .66 19 64 A A A AP AP AP P P P AP A P .66 20 64 A A A A AP AP P P P AP AP P .66 21 59 A A AP AP AP AP P P P AP P P .58 22 73 A A A A A AP AP A AP A A AP 1.00 23 58 A A AP AP AP AP P P P P P P .50 24 62 A A A A AP AP AP P P AP A P .75 ÍNDICe A 1.00 1.00 1.00 1.00 .83 .91 .50 .29 .10 .41 .45 ..21 Interlocutores potenciais: 1. Avós e sua geração 2. Pais e sua geração (tios) 3. esposo(a) 4. Filhos e sobrinhos 5. Irmãos e primos. 6. Amigos, vizinhos da mesma geração (ex-colegas de escola). 7. Vendedores (lojas, venda, supermercados), cai- xas de banco etc. 8. Professor(a) (agora ou quando esteve na escola, colégio). 9. Médico, enfermeira, agente de saúde. 10. Pastor (informantes são todos protestantes). 11. Deus (orações). 12. Autoridades (prefeitura, estado...). 1 3 pauli no vandresen | lí nguas em contato tenção do Pomerano, que é visto, ainda, como forte elemento de herança étnica e cultural nesta comunidade. O Português leva vantagem na inte- rações fora do lar, principalmente com interlo- cutores que representam a sociedade dominante, como professores, médicos, fscais, delegados etc. É notável, também, o avanço do Português no fator diageracional. A oscilação do Índice A (dia- leto Pomerano) de .84 no grupo mais idoso para .48 no grupo jovem mostra a força do Português tentando deslocar o Pomerano, ajudado pela força da escolarização e dos meios de comunicação. 3. línguas em contato em regiões fronteiriças 3.1. Um novo foco de pesquisas na subárea de línguas em contato está surgindo em áreas fron- teiriças. O Brasil tem 12.864 quilômetros de fron- teira com países que têm o espanhol como língua ofcial. Boa parte desta fronteira tem baixa den- sidade demográfca, intermediada, muitas vezes, por área indígenas, como é o caso das fronteiras com a Venezuela, Colômbia, Peru e boa parte da Bolívia. Na fronteira centro-oeste e sul há maior contato, mas por séculos as relações entre o colo- nizador espanhol e português foram marcadas por confitos pela posse de territórios. Hoje temos inúmeras cidades fronteiriças, umas separadas por rios, outras não. Na fron- teira com a Bolívia as mais antigas são Cáceres/ San Matias e Corumbá e Puerto Suarez; com o Paraguai: Foz do Iguaçu e Ciudad del Leste e com a Argentina; Dionísio Cerqueira/Bernardo da Ini- goren, São Borja/San tomé e Uruguaiana/Paso de los Libres; e, fnalmente, com o Uruguai temos uma vasta fronteira seca, destacando-se as cida- des de Livramento/Rivera, Jaguarão/Rio Branco e Chuí/Chuy, como as de maior contato linguís- tico. A situação fronteiriça enseja relações comer- ciais e sociais que levam ao contato linguístico e ao bilinguismo. No caso das cidades de Livra- mento e Rivera temos um estudo clássico sobre o bilinguismo espanhol/português feito por Hensey (1972). Um fato novo em relação a algumas dessas cidades fronteiriças é a possibilidade de aprender o Português ou o espanhol em escolas bilíngues de Outra informação interessante da tabela 2 é mostrar as diferenças linguísticas entre as três fai- xas etárias. O índice médio de escolha do Pome- rano é .84 para os mais velhos, .54 para a faixa etá- ria de 25 a 50 anos e de .48 para os mais jovens. Como nos gráfcos anteriores, vê-se que o Pomerano perde funções para o Português nas gerações mais jovens que contam com crescente escolarização e maior exposição aos meios de comunicação, que favoreçam o uso do Português. A tabela 2 apresenta, também, informações sobre o grau de competência no Pomerano e Por- tuguês (já comentado anteriormente), que mos- tra um decréscimo generacional, principalmente entre os mais velhos e as faixas etárias de 25 a 50 e até 24 anos. Os índices mais baixos de escolha do Pome- rano na geração mais jovem podem estar ligados à crescente escolarização. Mesmo os flhos de agri- cultores estão tendo condições de frequentar o ensino básico até a 8 a série, graças ao transporte escolar, em uma escola atendida por professores vindos de Pelotas. também já foi criado, formal- mente, um curso de ensino médio no município. Com o aumento do grau de escolaridade e com os meios de comunicação em língua portuguesa passa a ocorrer uma nova pressão pela escolha do Português, associada a assuntos ou tópicos da con- versação para a qual os bilíngues não conhecem o léxico em Pomerano. 2.12. Conclusões. Através da descrição apresen- tada sobre a situação do bilinguismo Pomerano- Português,verifcamos que o dialeto Pomerano apre- senta índices elevados de manutenção em Arroio do Padre. esta situação deve-se, segundo nossa aná- lise, ao fato de ser uma comunidade homogênea em que quase todos são bilíngues e têm uma ati- tude linguística favorável ao uso quase exclusivo do Pomerano nas interações familiares. esta lealdade linguística ao Pomerano cria as condições mínimas para que as novas gerações adquiram o Pomerano como língua materna. Mesmo fora do lar, o falante pode optar na escolha entre as duas línguas, com ou sem alternância de código, pois estão situados em uma ilha linguística Pomerana. estas redes de comunicação familiares e comu- nitárias são responsáveis pela transmissão e manu- 1 4 pauli no vandresen | lí nguas em contato concretos. Declarações de autoridades uruguaias mostram a preocupação com o problema linguís- tico, como esta do Cel. Latorre ...hay pueblos orientales como Cerro Largo, Tacua- rembó, Maldonado, Rivera y Salto, em donde los niños no saben hablar el idioma nacional y en donde los maestros enseñan en portugués” (Declaração do Coro- nel Latorre, apud echenique, 1977, p. 45). este tipo de preocupação aparece também na Câmara de Deputados em Montevidéu: en esta localidad (el norte del Rio Negro) tan importante de la República, puede decirse que ya no hay Estado Oriental: los usos, costumbres, el idioma, el modo de ser, todo es brasilero; puede decirse, como continuación del Rio Grande del Sur” (Câmara dos Deputados de Montevidéu, 1860, apud Carbajal, 1948, p. 85). Como consequência, em 1877 é aprovado um “Reglamento de Instrucción Pública”, esta- belecendo escolarização obrigatória em espanhol. Baseados em Behares (2004) podemos resumir da seguinte forma a situação de bilinguismo espa- nhol/português no Uruguai: a) Século xIx – Bilin- guismo sem diglossia (espanhol e Português usados em instância ofciais e particulares); b) A partir de 1877 – diglossia no sentido de Fishman (1967), espanhol ensinado na escola como variedade alta e DPU (Dialetos Portugueses do Uruguai) como variedades baixas; c) A ditadura militar (décadas de 70 e 80) combate explicitamente o uso do por- tuguês como uma forma de “penetración idiomá- tica a través de la televisión brasileña” (Behares, 2004, p.13); d) Mercosul – ensino bilíngue em alguns departamentos. Para estudar esta interessante situação de contato linguístico estão sendo desenvolvidos vários proje- tos interinstitucionais. O BDS–Pampa (Banco de Dados Sociolinguístico da Fronteira e do Pampa gaúcho) está coletando dados em cidades gaúchas na faixa de fronteira com o Uruguai e Argentina. A coleta de dados está sendo feita por pesquisadores da UFPel e UCPel. Para complementar os dados neste continuum linguístico o “Projeto DPU” coleta dados com falantes uruguaios dos Dialetos Portugueses do Uruguai, sob a responsabilidade da UCPel e Universidad de la República. Final- fronteira, em projeto desenvolvido pelos governos do Brasil e Argentina, numa experiência de per- mita de professores. O convênio foi frmado, no contexto da política linguística e educacional do Mercosul, entre os ministros da educação Daniel Firmos (Argentina) e tarso genro (Brasil), em 9 de junho de 2004. No ano seguinte, em 4 de março de 2005, já era implementada a experiência em escolas de Dionísio Cerqueira (SC) e Bernardo de Irigoien (Missiones). A observação dos resulta- dos na aquisição/aprendizagem do espanhol/por- tuguês é sem dúvida uma tarefa interessante para os sociolinguistas. 3.2. Mas o contato espanhol/português não se limita a relações esporádicas na fronteira. eles vão para além da fronteira, com a imigração de colonos brasileiros (plantadores de soja e milho) para o interior do Paraguai e mais recentemente para a Bolívia. O comportamento linguístico dos “Brasiguaios” em seu contato com o espanhol e guarani já foi objeto de várias pesquisas sociolin- guistas como a de Martins (1996) e tantos outras. Recentemente, muitos flhos de “Brasiguaios” estão retornando ao Brasil, enfrentando novas experiências linguísticas como as descritas por teis (2005). 3.3. Mas, provavelmente, a situação mais inte- ressante de contato linguístico entre espanhol e Português é a vivida pela população do Norte do Uruguai, objeto de disputa entre as coroas por- tuguesa e espanhola por muitas décadas. Portu- gal fundou a cidade de Colônia do Sacramento, em 1680. A espanha revidou com a fundação de Montevidéu em 1724. guerras e tratados muda- ram frequentemente a jurisdição sobre a chamada “Banda Oriental”. O fato relevante é que o povoamento do ter- ritório uruguaio se fez com falantes de espanhol e de português. Com a criação do estado uruguaio e a escolha do espanhol como língua ofcial, começa uma política de expansão do espanhol por todo o território nacional. Inicialmente, de 1830 a 1862, o governo desenvolve uma política de fundação de povoados com falantes de espanhol para frear o avanço do português. As autoridades notam, entretanto, que esta política não dá resultados 1 5 pauli no vandresen | lí nguas em contato BReUNIg, Carmen grellmann. A alternância de código como pedagogia culturalmente sensível nos eventos de letramento em um contexto bilíngue. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, UFRgS, 2005, 175p. CAMPOS, Cynthia Machado. A política da língua na era Vargas. Campinas: editora da Unicamp, 2006. CRYStAL, David. 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O congresso da Alfal em Montevidéu em 2008 deverá ser um ponto de referência para a apresentação de resultados de pesquisa nesta área. 3.4. Outra área que está despertando interesse para a pesquisa sociolinguística é a fronteira do Brasil com a guiana Francesa, no estado do Amapá. Uma equipe do Programa de Pós-graduação em Linguística da PUC-RJ está desenvolvendo pes- quisas sobre o contato Português/Francês, acom- panhando, também, as políticas linguísticas acor- dadas entre o estado do Amapá e a guiana. Do lado francês também há pesquisas, como a de Léglise (2004), voltada principalmente para as práticas pedagógicas e atitudes de crianças escola- rizadas em zonas fronteiriças. referências bibliográficas AULeR, Maria Luisa e. O code switching no discurso bilíngue em Ivoti, RS. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo (RS). UNISINOS, 2002, 104p. BAtIStI, elisa et al. Dicionário de italianismo. Caxias do Sul: eDUCS, 2006. BeHAReS, Luis ernesto. 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Indeed, we will trace its history in order to refect on what we were, what we are, where we will go and where we intend to get to, as a work group. We will start by considering ANPOLL’s conception of work group, plus i) a refection on what the Sociolinguistics work group has been, ii) how one can understand its functioning, and iii) what perspectives there are for the continuity of its work. We will use the concept of work group according to ANPOLL’s statute to conclude that our work group, in the course of its history, has obeyed all statutory determinations: it gathers researchers of the variation line linked to graduate programs, has promoted debates, and, consequently, the evaluation of projects in this area and, in a certain way, has contributed to the defnition of thematic lines that spread in the academic feld, thus appearing as a large work group, just as the theme that motivates it – language variation – is. gt de sociolinguística da anpoll: passado, presente e futuro Suzana Alice Marcelino Cardoso é Professora Associada da Universidade Federal da Bahia e Pesquisa- dora CNPq, Doutora em Língua Portuguesa, com atuação nos campos da Dialectologia e Sociolinguística, especif- camente do português. Dirige o Projeto Atlas Linguístico do Brasil e é autora do Atlas Linguístico de Sergipe-II. e-mail:
[email protected]. resumo Com o título panorâmico “gt de Sociolinguística da ANPOLL: passado, presente e futuro” não se vai tratar deti- damente de cada uma dessas três etapas, mas tomar delas o fo da história e com isso fazer uma refexão sobre o que fomos, o que somos e para onde vamos ou onde queremos chegar, enquanto grupo de trabalho. As considerações se iniciam a partir da concepção de gt pela ANPOLL a que se seguirão (i) uma refexão sobre o que tem sido o gt de Sociolinguís- tica, (ii) como entender o seu funcionamento e (iii) que pers- pectivas podem ser vislumbradas para continuidade do seu trabalho. Para isso, parte-se do conceito de gt, segundo o estatuto da ANPOLL, para concluir-se que o nosso gt, no curso da sua história, tem-se comportado em perfeita harmo- nia com as determinações estatutárias: reúne pesquisadores da linha da variação vinculados aos Programas de Pós-gradua- ção, tem promovido o debate e, consequentemente, a avalia- ção dos projetos da área e, de certo modo, contribuído para a defnição de linhas temáticas que se difundem no meio aca- dêmico, apresentando-se como um grupo de trabalho amplo, como a própria temática que o motiva – a variação linguística – o é por essência. Inicialmente, quero congratular a atual Coordenação do nosso gt de Sociolinguística da ANPOLL pela iniciativa deste encontro Internacional e agradecer o convite para parti- cipar desta mesa-redonda voltada para a nossa história, oferecendo-me a sempre gratifcante oportunidade de me reunir com os colegas Pau- lino Vandresen e Cláudia Roncarati, com os quais, em diversos momentos, já me ocupei, particularmente, das trilhas seguidas pelo nosso grupo de trabalho. Dei a esta participação um título panorâmico – passado, presente e futuro –, e, obviamente, não vou me ocupar detidamente de cada uma dessas três etapas, mas quero apenas tomar delas o fo da história e com isso fazer uma refexão sobre o que fomos, o que somos e para onde vamos ou onde queremos chegar, pelo menos na visão que posso apresentar. A história do nosso gt, a cada momento em que se faz necessário, vem sendo contada de forma minudente. e nesse sentido reporto-me a um dos 1 8 suzana ali ce marceli no cardoso | gt de soci oli nguí sti ca da anpoll essência. e em que tem consistido este elastério do seu entendimento? exatamente no tipo de pesquisa que agrega, nas linhas, ou sublinhas da variação que reúne e na impossibilidade, no meu entender, de ser de outra maneira. No gt de Sociolinguís- tica estão contidos os estudos variacionistas foca- dos sob diferentes bases teóricas, estudos dialetais e mais especifcamente geolinguísticos e todo o vasto campo dos estudos sociolinguísticos. Disso decorre o caráter de “associação” que afora em suas ativida- des, como por exemplo, nos encontros nacionais, os quais tivemos a responsabilidade de iniciar, em 1993, e agora celebramos este primeiro de caráter internacional. e retomo esses aspectos aqui levanta- dos, a começar do último apresentado. somos uma espécie de “associação” O sentido estrito de grupo de trabalho que man- tém sob controle pesquisas desenvolvidas no âmbito da sua linha não se vê concretizado em nosso gt. Nem poderia. A variação é, permitam- me o pleonasmo, extremamente “variada”: seja nas áreas em que se registra, seja nos níveis de aborda- gem da língua em que é focalizada, seja, ainda, na perspectiva das teorias em que se embasa. e, acima de tudo, instigante nessa sua versatilidade de possibilidades de ação e de enfoques. Com uma pluralidade de formas de exame, com a multiface- tada língua portuguesa com a qual nos debatemos no Brasil, torna-se quase impossível tentar carrear interesses para um polo único ou para um restrito conjunto de focalizações. Com isso quero dizer que o “defnir linhas temáticas para o desenvol- vimento de pesquisas”, como consta do estatuto da ANPOLL, não poderá ser entendido como restritivo ou como delimitador de um conjunto de possibilidade. A variação em nosso gt deve ser entendida como ampla, geral, irrestrita, como, aliás, o tem revelado a nossa tradição de trabalho em grupo. Isso não quer dizer que se estabeleça um caos acadêmico nem uma desordem no trata- mento de dados na perspectiva científca. Quero, no entanto, chamar a atenção para o fato de que esse aspecto de amplitude que assinala o nosso gt fnda por lhe atribuir, ipso facto, um cará- ter meio de associação que vem a nu nos encontros mais recentes e completos relatos feitos, o que foi apresentado pelo nosso colega Paulino Vandresen, publicado em Português Brasileiro.Contato Linguís- tico, heterogeneidade e história, cuja organização se deve às nossas colegas Cláudia Roncarati e Jussara Abraçado, a que se somam as duas apresentações que, hoje, me precederam. Inicio, assim, as minhas considerações, a par- tir da concepção de gt pela ANPOLL a que se seguirão (i) uma refexão sobre o que tem sido o nosso gt, (ii) como entender o seu funciona- mento e (iii) que perspectivas podem ser vislum- bradas para continuidade do seu trabalho. o gt na concepção da anpoll O estatuto da ANPOLL, nos Arts. 15 e 16 com seus parágrafos, defne o que é um grupo de traba- lho e apresenta as suas atribuições. Destaco, para essas considerações, os seguintes aspectos assinala- dos no texto legal: A natureza da sua criação; “criados para a con- secução dos objetivos relacionados à pesquisa” (Art. 15). A sua composição: “Serão integrados por pes- quisadores vinculados a instituições de pós-gradu- ação stricto sensu e de pesquisa” (Art. 15). três dos objetivos a que se propõe: (i) “selecionar e defnir linhas temáticas para o desenvolvimento de pesquisas, no campo das Letras e da Linguística”; (ii) “promover o debate e a avaliação dos projetos de pesquisa em andamento”; (iii) “decidir sobre a continuidade, alteração ou extinção de suas atividades” (Art. 16). O nosso gt, no curso da sua história, tem-se comportado em perfeita harmonia com as deter- minações estatutárias: reúne pesquisadores da linha da variação vinculados aos Programas de Pós-gra- duação, tem promovido o debate e, consequente- mente, a avaliação dos projetos da área e, de certo modo, contribuído para a defnição de linhas temá- ticas que se difundem no meio acadêmico. tem-se comportado, no âmbito da ANPOLL, como um grupo de trabalho amplo, como a própria temá- tica que o motiva – a variação linguística – o é por 1 9 suzana ali ce marceli no cardoso | gt de soci oli nguí sti ca da anpoll rentes níveis faz com que o nosso gt encontre áreas de intersecção com outros gts e que pro- cure, muitas vezes, as interfaces dessa relação. e isso é fácil de se verifcar nas próprias progra- mações da ANPOLL, como se vê com esses dois exemplos que trago para ilustração: membro do gt de Sociolinguística fazer-se presente em mesa do gt de Fonétca para falar da variação fonética na perspectiva diatópica ou de pesquisador do gt de Lexicologia vir tratar da variação lexical em mesa de organização sob nossa responsabilidade. Se a separação entre gts que propõem o enfo- que específco de um determinado nível da lín- gua nem sempre é tão radical, difícil para mim se torna imaginar uma separação Dialectologia/ Sociolinguística em dois grupos de trabalho dis- sociados, como em alguns momentos já se levan- tou essa possibilidade. Se nos momentos em que essa questão foi levantada fui sempre contra a sua concretização, hoje, com mais clareza reafrmo a posição. e justifco o porquê. Primeiramente, o “casamento” Dialectologia/ Sociolinguística é bem mais antigo do que se pode imaginar. Formalizada por primeiro como um dos ramos dos estudos linguísticos voltados para a variação, a Dialectologia desde os seus primórdios esteve atenta às variáveis sociais. A preocupação com a idade dos informantes, por exemplo, já aparece no Abée Rousselot que, em 1891, chamava a atenção para o fato de que “O conhecimento da idade dos falantes observa- dos é indispensável para que se possam comparar as divergências existentes entre o falar dos jovens e aquele dos idosos, e determinar o seu ponto de origem” (apud POP, 1950, p. 43) 1 . Preocupação na mesma linha é manifestada pouco tempo depois, 1910, por Millardet, que elege informantes de várias idades para “registrar ao vivo, no mesmo país, na mesma família, dife- rentes etapas de uma transformação linguística” (apud POP, 1950, p. 325) 2 . 1 “La connaissance de l’âge des sujets observés est indispensable afn de pouvoir comparer les divergences existant entre le parler des jeunes et celui des vieillards, et déterminer leur point de départ.” 2 “Saisir sur le vif, dans le même pays, la même famille, diffé- rentes étapes d’une transformation linguistique.” nacionais e nesse primeiro encontro internacional, como forma de dar vazão a toda refexão que não encontra lugar, nem poderia com tais dimensões, no âmbito estrito das reuniões nacionais da ANPOLL. e não vejo nisso nem um desrespeito ao estatuto da entidade, nem uma fuga dos seus princípios. Os encontros, esses encontros, se tornam, assim, locais de divulgação dos mais diferentes trabalhos na área, momentos de discussão de ações mais gerais. e isso é importante e deve, no meu entender, ser atributo de gt com as especifcidades do nosso, sem dúvida, sobretudo porque em tais momentos se pode encontrar caminhos de congregar projetos e propiciar a circulação da pesquisa produzida. um grupo de trabalho amplo Se acabo de nos comparar a uma espécie de “asso- ciação”, quero, a partir de agora, destacar as pos- turas teóricas que se evidenciam no caminhar do nosso gt. Refro-me às duas linhas temáticas que têm convivido no seu interior: a Dialectologia e a Sociolinguística. Se tentarmos fazer uma repre- sentação gráfca da organização da ANPOLL, para salientar a presença do gt de Sociolinguística, poderíamos, assim, concebê-la: anpoll grupos de trabalho gt de sociolinguística objeto: a variação SOCIOLINGUISTICA DIALECTOLOGIA PROJETOS-DIVULGAÇÃO Como se percebe dessa singela formalização, estou assumindo a posição de que Dialectologia e Sociolinguística devem ser indissociáveis em nosso gt. e passo a argumentar em favor dessa minha posição, que não me é exclusiva. em primeiro lugar, tomo uma questão bem mais geral. A abordagem da língua nos seus dife- 20 suzana ali ce marceli no cardoso | gt de soci oli nguí sti ca da anpoll Não há, para esse caso, uma referência direta ao grau de instrução, mas a menção a classes sociais distintas, às quais se relacionam usos diferencia- dos da língua, deixa ver que a variação diastrática se fazia reconhecida e considerada. Por que faço esta breve viagem no tempo? exatamente para argumentar em favor da minha posição: o “casamento” Dialectologia/Sociolin- guística é bem mais antigo, e não afora apenas agora com a preocupação pluridimensional que vem afetando a metodologia dialetal na atuali- dade, precede, como os exemplos da história aqui rememorados demonstram, à própria construção da Sociolinguística como ramo dos estudos da lin- guagem. para concluir Com isso, e já me proponho concluir, quero dizer que do fo da história a que de início me referi e que me propunha retomar, acho que posso fsgar duas breves conclusões: • OnossoGTéumgrupodetrabalhoespecial pela sua abrangência, e nem por isso deixa de ser um gt nos moldes estatutários da ANPOLL. • Embora se confgurem na sua individuali- dade em dois ramos distintos e perfeitamente delimitáveis, Dialectologia e Sociolinguística pelas imbricações e interfaces que entre elas se estabelecem, não devem constituir-se em gts distintos, mas continuarem num “casa- mento” duradouro, e até onde vislumbro, indissolúvel. referências POP, Sever. 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Inter- pretação do signifcado do gênero faz gauchat, já em 1905, ao proceder à comparação entre a pronúncia dos homens e a das mulheres, levando-o a admitir, a propósito de casos de inovação registrados na lingua- gem feminina, conforme comentários de Pop, que Uma vez que a mulher aceitou a inovação, é do seu uso que passará à linguagem da juventude, porque as crian- ças seguem, principalmente, o exemplo das mulheres que passam muito mais tempo em casa, em sociedade, a cozinhar, a lavar, e que falam mais do que os homens, envolvidos com o trabalho do campo, no meio dos quais se apresentam taciturnos e muitas vezes isolados durante toda a jornada. (POP, 1950, p. 194) 3 O Abbé Rousselot, em 1891, já atribuía impor- tância à condição social por reconhecer poderem existir, em um mesmo lugar, dois usos diferencia- dos “celui du peuple et celui des messieurs” (apud POP, 1950, p. 43), assim se expressando: É preciso ter cuidado para não os confundir. O “patois” dos senhores dá explicação para certas anomalias que se encontram na linguagem do povo, mostra, também, de que lado vêm as infuências estrangeiras que atuam sobre os “patois”. Mas ele não é o “patois” do país. 4 3 “Une fois que la femme a accepté l’innovation, c’est de son langage que celle-ci passera dans le langage de la jeunesse, parce que les enfants suivent plutôt l’exemple des femmes, qui pas- sent beaucoup plus de temps à la maison, en société, à cuisiner, à laver et qui parlent plus que les hommes, pris par les travaux de la campagne, au milieu desquels on les voit taciturnes, et souvent isolés toute la journée.” 4 “Il faut bien se garder de les confondre. Le patois des mes- sieurs donne l’explications de certains anomalies qui se rencon- trent dans le langage du peuple; il montre aussi de quel côté viennent les infuences étrangères qui agissent sur les patrois. Mais il n’est pas le patois du pays.” 21 abstract Considering that the alveolar or palatal actualization of the coronal fricatives (/s, z/), in syllabic coda, in words such as pasta, mesmo, três, is one of the features that characterize some Brazilian dialectal areas, as it has been pointed out by various researchers, this work is intended to present data collected by the corpus of Projeto ALiB, recorded in fve capitals: Salvador and Aracaju – that, according to Nascentes (1953) form the so-called falar baiano (Bahian spoken language)– and Recife, Maceió and João Pessoa, which represent the falar nordestino (northeastern spoken language). the Project ALiB, carried out since 1996, resumes the achie- vement of a Brazilian linguistic atlas, in what concerns the Portuguese language. the occurrences of /S/ in syllabic coda were analyzed in isola- tion before a consonant (reuniting the middle and fnal posi- tion of the word) and before a pause. the occurrences were undergone the package of VARBRUL Programs for a statistic analysis. the most important factors for the palatal actualization of /S/ in syllabic coda were the subsequent context and the diatopic variation. In relation to the subsequent context, as it has been observed in previous works, the presence of the dental-alveolar occlu- sive /t/, especially when actualized as a palatal affricate, stron- gly enhances the occurrence of the palatalized variant. As for the diatopic variation, Recife and Salvador prefer the palatal variants. In Aracaju, Maceió and João Pessoa the alve- olar fricatives prevail. the data show that the palatal variants are assigned different values in each of the cities, and they are considered or not as variants of prestige. o /s/ em coda silábica: análise de dados do projeto alib Jacyra Andrade Mota é doutora em Língua Por- tuguesa. Professora Associada. Pesquisadora CNPq. Ins- tituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. Área de pesquisa: Sociolinguística e Dialectologia. Coautora do Atlas Linguístico de Sergipe (1997). Participou, desde a sua implantação (1969), do Projeto NURC. Diretora executiva do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (Projeto ALiB, 1996). e-mail:
[email protected]. Site do ALiB: www.alib.ufba.br. resumo Considerando que a realização alveolar ou palatal das frica- tivas coronais (/s, z/), em coda silábica, em vocábulos como pasta, mesmo, três, é um dos fatos caracterizadores de subáreas dialetais brasileiras, como tem sido observado por diversos pesquisadores, apresentam-se, nesta comunicação, dados do corpus do Projeto ALiB, registrados em cinco capitais: Salva- dor, Aracaju, Recife, Maceió e João Pessoa. O Projeto ALiB, em desenvolvimento desde 1996, retoma um antigo desejo dos pesquisadores brasileiros ligados à área dos estudos dialectológicos: a realização de um atlas linguís- tico do Brasil, no tocante à língua portuguesa. Foram analisadas, separadamente, as ocorrências do /S/ em coda silábica diante de consoante (reunindo-se a posição medial e a fnal de vocábulo) e diante de pausa. As ocorrên- cias foram submetidas ao pacote de Programas VARBRUL para análise estatística. Os fatores que se revelaram mais importantes para a realização palatal do /S/ em coda silábica foram o contexto subsequente e a variação diatópica. Com relação ao contexto subsequente, como já observado em trabalhos anteriores, a presença da oclusiva dentoalveolar /t/, especialmente quando realizada como africada palatal, favo- rece fortemente a ocorrência da variante palatalizada. Quanto à variação diatópica, Recife e Salvador destacam-se na preferência pelas variantes palatais. em Aracaju, Maceió e João Pessoa predominam as alveolares. Os dados analisados mostram também que se atribuem valo- res diferentes às variantes palatais, em cada uma dessas cida- des, considerando-as, ou não, como variantes de prestígio. 1. introdução O Projeto ALiB, iniciado em 1996, na Univer- sidade Federal da Bahia, durante o Seminário Nacional Caminhos e Perspectivas para a geo- linguística no Brasil, retoma um antigo desejo dos pesquisadores brasileiros ligados à área dos estudos dialectológicos: a realização de um atlas 22 j acyra andrade mota | o / s/ em coda si lábi ca – duas faixas etárias, uma mais jovem, de 18 a 30 anos, outra mais velha, de 50 a 65 anos – e à escolari- dade – quatro informantes com o curso fundamen- tal incompleto e quatro com nível universitário. 2. análise dos dados Para a análise dos dados, consideraram-se, separa- damente, as ocorrências do /S/ em coda silábica diante de consoante (reunindo-se a posição medial e a fnal de vocábulo), como, por exemplo, em estrada, mês de São João, e diante de pausa, como em arroz, colegas. A reunião dos dois contextos diante de consoante foi necessária em virtude do reduzido número de ocorrências em fnal de vocá- bulo, devido à estrutura do QFF e do QSL, uma vez que não foram incluídos os dados da parte em que o informante é levado a falar mais livre- mente e durante mais tempo sobre um tema que lhe é proposto (um fato marcante de sua vida, o seu trabalho, um programa de televisão, um fato ocorrido com uma outra pessoa). As ocorrências foram codifcadas e submetidas ao pacote de Programas VARBRUL para análise estatística dos dados, fase que contou com a parti- cipação das bolsistas de Iniciação Científca, Dja- nice de Almeida Bessa e Cláudia Santos de Jesus. 2.1. Fatores favorecedores Destacam-se como favorecedores o contexto sub- sequente, no caso das ocorrências diante de con- soante, e a variação diatópica. Com relação ao contexto subsequente, como já observado em trabalhos anteriores, a presença da oclusiva dentoalveolar /t/ favorece fortemente a ocorrência da variante palatalizada, especial- mente quando realizada como africada palatal, registrando-se, nesse contexto, o percentual de 87% e o peso relativo de 0,94. Diante da reali- zação oclusiva dentoalveolar, registram-se 75% e 0,83 de peso relativo. A correspondente sonora (/d/), no entanto, favorece a ocorrência das alveolares, registrando- se a variante palatal em, apenas, 33% dos casos, com o peso relativo de 0,41, independentemente de sua realização como oclusiva ou como africada, como se observa na tabela, a seguir: linguístico do Brasil, no tocante à língua portu- guesa. No momento atual, o Projeto ALiB se encon- tra com mais da metade do seu corpus constituído (130 das 250 localidades que integram a sua rede de pontos, o que equivale a 52% do total pre- visto), incluindo-se nesse percentual todas as capi- tais de estado (à exceção de Brasília e de Palmas, no tocantins 1 ) que deverão fornecer os dados para a elaboração do 1º. volume de cartas. Ao lado do trabalho de campo, necessário à constituição do corpus, iniciam-se também as pri- meiras análises, tendo em vista o objetivo de se apresentar um atlas linguístico não só com o mape- amento dos dados, mas também com estudos de fatos representativos das diferenças geossociolin- guísticas observadas no português do Brasil, como os atlas hoje identifcados como “de 2ª. geração”. entre os fatos caracterizadores de subáreas dia- letais brasileiras encontra-se a realização alveolar ou palatal do /S/ em coda silábica, em vocábulos como pasta, mesmo, três, observada por diversos pesquisadores, como, entre outros, Callou e Mar- ques (1975), Mota e Rollemberg (1986, 1994, 1995), Canovas (1991), Callou e Moraes (1995, 1996), Brandão (1997), Hora (1999), Scherre e Macedo (2000), gryner e Macedo (2000), Carva- lho (2000), Mota (2002, 2006). Apresentam-se, nesta comunicação, os resulta- dos obtidos com a análise do /S/ em coda silábica em dados de cinco capitais do Nordeste brasileiro: Sal- vador e Aracaju – que, segundo Nascentes (1953), integram o chamado falar baiano – e Recife, Maceió e João Pessoa, representantes do falar nordestino. As variantes glotais e o zero fonético não foram aqui considerados, tendo em vista o número redu- zido de ocorrências e o seu caráter marcadamente diafásico e diastrático. Deixa-se de considerar tam- bém o zero morfêmico em sintagmas no plural, de baixa ocorrência, em face dos tipos de questioná- rio utilizados: o questionário fonético-fonológico (QFF) e o questionário semântico-lexical (QSL). O corpus aqui analisado é constituído por 40 inquéritos, oito em cada uma das cinco capitais. Os informantes, de acordo com a metodologia do Pro- jeto ALiB, são estratifcados quanto ao sexo, à idade 1 Por serem capitais de fundação mais recente, Brasília e Palmas não foram incluídas na rede de pontos do ALiB. 23 j acyra andrade mota | o / s/ em coda si lábi ca Tabela 3: Variantes palatais diante de pausa: variação diatópica Localidades Variantes palatais diante de pausa Nº. / Total % Peso Relativo Salvador 100/254 39 0,81 Recife 83/253 33 0,76 Aracaju 13/202 06 0,29 Maceió 13/195 07 0,31 João Pessoa 9/229 04 0,19 (Signifcância: 0,005) 2.2. Variação geossociolinguística tendo em vista a diferença entre as localidades consi- deradas, optou-se pelo cruzamento entre o grupo de fatores geolinguísticos e os de fatores sociolinguísti- cos (sexo, faixa etária e escolaridade do informante), obtendo-se os resultados apresentados a seguir. 2.2.1. Variação diatópica e diagenérica O confronto entre a diatopia e o gênero do infor- mante revelou diferença signifcativa entre o com- portamento linguístico de homens e mulheres em Salvador, principalmente diante de consoante subsequente (em posição medial ou fnal de vocá- bulo), contexto em que os homens apresentaram elevados índices percentuais (0,70) e de peso rela- tivo (0,82), enquanto as mulheres alcançaram apenas 31% e 0,37 de peso relativo. em fnal diante de pausa, os maiores índices de variantes palatais se encontram na fala dos infor- mantes masculinos, em todas as localidades, tanto naquelas em que os índices de peso relativo situam- se acima de 0,50, como Recife (0,85 para os homens e 0,72, para as mulheres) e Salvador (0,93, para os homens e 0,65, para as mulheres), como naquelas em que os índices são baixos, como Aracaju (0,52, para os homens e 0,17, para as mulheres), Maceió (0,54, para os homens e 0,19, para as mulheres) e João Pessoa (0,41, para os homens e 0,06, para as mulheres) – localidade em que, em um total de 228 ocorrências em fnal de vocábulo diante de pausa, se registram apenas nove casos da variante palatal, oito na fala dos informantes masculinos e um na dos femininos, como se observa na tabela/gráfco 4. A maior presença das variantes palatais na fala de informantes masculinos foi também obser- Tabela 1: Variantes palatais segundo a consoante subsequente Consoantes subsequentes Variantes palatais N°/ Total % Peso Relativo / t / realizado como africada palatal 90/103 87 0,94 / t / realizado como oclusiva dento- alveolar 473/629 75 0,83 /d/ 10/30 33 0,41 / k / 147/544 27 0,30 / g / 09/64 14 0,12 / p / 31/174 18 0,21 / f / 06/39 15 0,17 /v / 02/44 5 0,04 / x / 01/02 50 0,56 / m / 13/91 14 0,12 / n / 6/44 14 0,17 (Signifcância= 0,007) Do ponto de vista da variação diatópica, Recife e Salvador se destacam na preferência pelas variantes palatais, tanto diante de consoante sub- sequente, quanto diante de pausa. No primeiro contexto, Recife apresenta 65% de ocorrências e peso relativo de 0,80, e Salvador, 54% e 0,65 de peso relativo (Cf. tabela 2). No segundo, regis- tram-se os pesos relativos de 0,81 para Salvador e 0,76 para Recife (Cf. tabela 3). em Aracaju, Maceió e João Pessoa, predomi- nam as alveolares, tendo se registrado um número insignifcante de ocorrências palatais. Tabela 2: Variantes palatais diante de consoante: variação diatópica Localidades Variantes palatais diante de consoante Nº. / Total % Peso Relativo Recife 253/392 65 0,80 Salvador 217/405 54 0,65 Aracaju 139/381 36 0,42 Maceió 132/381 35 0,38 João Pessoa 51/300 17 0,17 (Signifcância: 0,007) 24 j acyra andrade mota | o / s/ em coda si lábi ca rios do Projeto NURC, registrados nas décadas de 1970 e de 1990. vada em Salvador em análise anterior (cf. MOtA, 2002), baseada na fala de informantes universitá- Tabela 4: Variação diatópica e diagenérica (Signifcância: 0,038 para “diante de consoante”; 0,010 para “diante de pausa”) Localidades Sexo Variantes palatais Diante de consoante Diante de pausa Nº/total % p. r. Nº/tot. % p. r. Salvador Masculino 165/236 70 0,82 74/124 60 0,93 Feminino 52/169 31 0,37 26/131 20 0,65 Recife Masculino 140/234 60 0,76 49/123 40 0,85 Feminino 113/158 72 0,87 32/128 25 0,72 Aracaju Masculino 60/155 39 0,47 10/86 12 0,52 Feminino 79/226 35 0,37 3/116 03 0,17 Maceió Masculino 56/153 37 0,43 10/79 13 0,54 Feminino 76/228 33 0,33 3/116 03 0,19 João Pessoa Masculino 27/155 17 0,15 8/97 08 0,41 Feminino 24/145 17 0,18 1/131 01 0,06 2.2.2 Variação diatópica e diageracional Diante de consoante subsequente, não se obser- vam diferenças signifcativas entre as duas faixas etárias. em fnal de vocábulo diante de pausa, destaca- se Recife com maior índice de peso relativo na faixa I (0,85), o que pode ser um indício da vitali- dade ou do prestígio das variantes palatais naquela cidade. em Salvador e em Maceió, são os infor- mantes de faixa II que apresentam índices mais elevados de peso relativo nesse contexto (0,90 e 0,54, respectivamente). Nas outras localidades, os índices são pouco signifcativos, observando-se também reduzido número de ocorrências. Os dados de Salvador da década de 1990, ante- riormente referidos, também mostram presença menos signifcativa das palatais entre os informan- tes mais jovens, fato interpretado por Mota (2002) como indicador de mudança em curso, em direção às variantes alveolares, cujo prestígio, em Salvador, se atribuiu à infuência da mídia e às mudanças socioeconômicas-culturais porque passou essa capi- tal entre os anos 70 e 90 do século passado. Tabela 5: Variação diatópica e diageracional (Signifcância: 0,006 para “diante de consoante”; 0, 005 para “diante de pausa”) Localidades Faixa etária Variantes palatais Diante de consoante Diante de pausa Nº./total % p. r. Nº./total % p. r. Salvador I 80/171 47 0,63 20/90 22 0,65 II 137/234 59 0,67 80/165 48 0,90 Recife I 138/207 67 0,80 42/106 40 0,85 II 115/185 62 0,80 39/145 27 0,73 Aracaju I 69/172 40 0,51 3/93 03 0,18 II 70/209 33 0,36 10/109 09 0,43 Maceió I 59/188 31 0,32 1/108 01 0,06 II 73/193 38 0,44 12/87 14 0,54 João Pessoa I 22/148 15 0,12 2/88 02 0,12 II 29/152 19 0,21 7/140 05 0,28 25 j acyra andrade mota | o / s/ em coda si lábi ca de nível universitário e os de nível fundamental: em Salvador, os informantes de nível fundamen- tal apresentam peso relativo bem mais elevado do que os universitários; em Recife, ao contrário, são os de nível universitário que apresentam peso rela- tivo mais elevado (0,84) do que os de escolaridade fundamental (0,64), o que parece mostrar que a variante palatal tem valores diferentes em cada uma dessas capitais. em João Pessoa, são também os informantes de nível fundamental que apresentam índice mais elevado, embora pouco signifcativo (0,32). Cf. tabela 6. 2.2.3. Variação diatópica e diastrática Diante de consoante, destacam-se Recife e Maceió, com índices de pesos relativos mais elevados entre os universitários do que entre os indivíduos de nível fundamental: 0,91, em Recife; e 0,54, em Maceió. Isso se verifca também em João Pes- soa, embora o índice aí seja pouco signifcativo (0,21). em Aracaju, são os informantes de nível fundamental que apresentam índice de peso rela- tivo mais elevado, também pouco signifcativo (0,51). em fnal diante de pausa, observa-se, em Salva- dor e Recife, grande diferença entre os informantes Tabela 6: Variação diatópica e diastrática (Signifcância: 0,012 para “diante de consoante”; 0,017 para “diante de pausa”). Localidades Escolaridade Variantes palatais Diante de consoante Diante de pausa Nº/tot. % p. r. Nº/tot. % p. r. Salvador Universitária 106/206 51 0,65 61/183 33 0,77 Fundamental 111/199 56 0,64 39/72 54 0,91 Recife Universitária 137/175 78 0,91 50/132 38 0,84 Fundamental 116/217 53 0,66 31/119 26 0,64 Aracaju Universitária 70/218 32 0,37 9/139 6 0,31 Fundamental 69/163 42 0,51 4/63 6 0,28 Maceió Universitária 82/198 41 0,54 10/120 8 0,38 Fundamental 50/183 27 0,22 3/75 4 0,23 João Pessoa Universitária 34/165 21 0,21 2/114 2 0,08 Fundamental 17/135 13 0,12 7/114 6 0,32 3. considerações finais A ocorrência de variantes palatais em coda silá- bica é, como vimos, bastante reduzida em Ara- caju, Maceió e, principalmente, em João Pessoa, registrando-se, nessas capitais, principalmente (ou quase exclusivamente) diante do contexto favo- recedor representado pela oclusiva dentoalveolar surda /t/, que, nessas áreas, em geral, conserva a articulação dental, não se palatalizando diante da vogal /i/. Salvador e Recife afastam-se, portanto, das demais capitais do Nordeste, apresentando índi- ces signifcativos de palatais, destacando-se Recife, com 0,80 de peso relativo. Desse modo, as fricativas coronais em coda silábica não confrmam, com os dados atuais, a divisão proposta em 1950 por Nascentes, uma vez que os dados de Salvador não coincidem com os de Aracaju e os de Recife diferem também dos de Maceió e João Pessoa. Uma outra observação relaciona-se ao fato de, em Recife, as variantes palatais apresentarem, no registro dos falantes de nível universitário, os elevados pesos de 0,91, para o contexto pré-con- sonântico, e 0,84, para as ocorrências diante de pausa, enquanto os índices referentes aos indiví- duos de nível fundamental se situam entre 0,66 e 0,64, respectivamente, nos dois contextos, o que parece mostrar o prestígio dessa variante, em 26 j acyra andrade mota | o / s/ em coda si lábi ca gRYNeR, Helena; MACeDO, Alzira t. de. “A pronún- cia do s pós-vocálico na região de Cordeiro – RJ”. In: MOLLICA, Maria Cecília; MARteLOttA, Mário eduardo (Orgs.). Análises linguísticas: a contribuição de Alzira Macedo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 26-51. HORA, Dermeval. “Processo de Palatalização das fricati- vas na Língua Portuguesa”. Revista do GELNE, Forta- leza, 14. Ano 1, n. 2, p. 34-36, 1999. MOtA, Jacyra Andrade. “Áreas dialetais brasileiras”. 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Considerando o reduzido número de dados até então analisados, espera-se que o prosseguimento da pesquisa com vistas à elaboração do Atlas Linguístico do Brasil venha a trazer novos dados sobre a diver- sidade dialetal do português no Brasil, delineando, com maior precisão, as áreas dialetais brasileiras. referências bibliográficas BRANDÃO, Sílvia Figueiredo. “Aspectos sociolinguís- ticos de um dialeto rural”. In: HORA, Dermeval da (Org.). Diversidade linguística no Brasil. João Pessoa: Ideia, 1997, p. 61-69. CALLOU, Dinah Maria Isensee; MARQUeS, Maria Helena Duarte. “O -s implosivo na linguagem do Rio de Janeiro”. Littera, Rio de Janeiro, n. 14, p. 9-137, 1975. CALLOU, Dinah; LeIte, Yonne; MORAeS, João. “Variação Dialetal no Português do Brasil: Aspectos fonéticos e morfossintáticos”. Revista Internacional de Língua Portuguesa, Lisboa, v. 14, p. 106-118, 1995. CALLOU, Dinah; MORAeS, João Antonio de. “A norma de pronúncia do S e R pós-vocálicos: Distri- buição por áreas regionais”. 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Marroquim (1934) refere-se a essa pronúncia palatal em Alagoas e Pernambuco e Silva Neto (1950) estende-a ao Ceará, em con- textos fônicos específcos: diante de /t/ e /d/: e[S] te, de[Z]de. A hipótese de a palatalização do /S/ constituir uma mudança de cima para baixo apoia-se em evi- dências fracas, porquanto o processo de expansão da regra não esteja atestado historicamente. De resumo Neste texto, focaliza-se o /S/ em coda silábica nas falas culta e popular do Rio de Janeiro, bem como a ditongação diante desse segmento. Apresentam-se resultados de pesquisas rea- lizadas nas perspectivas da Sociolinguística Variacionista e da geolinguística, de modo a mostrar não só a frequência das variantes alveolar e palatalizada em diferentes áreas do estado, mas também os fatores que determinam sua imple- mentação. sobre o /s/ em coda silábica no rio de janeiro: falas culta e popular Dinah Callou é Professora titular de Língua Portu- guesa da UFRJ e Pesquisadora I-A do CNPq, com pós- doutorado em Linguística pela UCSB/eUA. Coordena, atualmente, no Rio de Janeiro, o Projeto Para uma histó- ria do português brasileiro: 500 anos de língua portuguesa. trabalha nas áreas da Sociolinguística e da Linguística Histórica, nos campos da fonética/fonologia e da mor- fossintaxe. e-mail:
[email protected] Silvia Figueiredo Brandão é Professora Associada de Língua Portuguesa da UFRJ, atuando na graduação e no Programa de Pós-graduação em Letras Vernácu- las. Desenvolve pesquisas nas áreas da Sociolinguística e da Dialectologia, em especial nos campos da Fonética- Fonologia e da Morfossintaxe. e-mail:
[email protected] abstract In this paper, we focus on /S/ in coda position in standard and substandard varieties of the speech of Rio de Janeiro, as well as the diphtongation before this segment. We present results from researches developed under the perspective of the Linguistic Variation theory and under the perspective of geolinguistics, in order to show not only the frequency of the alveolar and palatalized variants in different areas of the State but also the constraints that regulate their implementation. Segundo Verney (1746), a palatalização do /S/ em coda silábica deve ter tido início, em língua portu- guesa, no fnal do século xVI e começo do xVII. No Brasil, é emblemática da fala carioca. Silva Neto (1956) afrma que a pronúncia não era aceita pelas normas da “boa pronúncia” do canto erudito, por ter seu uso restrito a uma única área dialetal. Na linguagem do teatro, segundo Révah (1958), não seria mais estigmatizada, talvez por corresponder ao português europeu padrão. No português do Brasil, é ainda Silva Neto (op. cit.) que diz ser difícil saber se essa pronúncia constitui um fenômeno relacionado ao dialeto- padrão de Lisboa ou representa um processo local independente. O fato social e histórico a ser levado em conta é a chegada da Família Real ao Rio de Janeiro, no começo do século xIx, que levantaria 28 di nah callou & si lvi a fi guei redo brandão | sobre o / s/ em coda si lábi ca no ri o de j anei ro Figura 1 – Palatalização do S no Rio de Janeiro, em tempo real de curta duração. Outro processo atuante no dialeto carioca é o da ditongação da vogal seguida de /S/, tendên- cia bastante forte, principalmente quando ocorre palatalização (mê[y]s], rapa[j]z), embora a imple- mentação do glide possa ocorrer com qualquer das variantes (tabela 2). Tabela 2 – Ditongação da vogal de acordo com o tipo de realização fônica do arquifonema [s] [S] [h] [Ø] Década 70 23% 75% 2% 4% Década 90 15% 80% 1% 3% Bisol (1994), dentro da perspectiva da fono- logia autossegmental, propõe, na formalização do arquifonema, que o nódulo vocálico pode ou não estar presente, sendo consequentemente possí- vel haver variantes ditongadas e não ditongadas, independentemente de o arquifonema realizar- se como palatal. em se tratando de um processo variável, a formação do ditongo deve ser conside- rada um processo fonético, não sendo como tal representado na transcrição fonêmica, uma vez que se trata de um falso ditongo e não de ditongo verdadeiro. Révah (1958), ao tratar da evolução da pro- núncia em Portugal e no Brasil, afrma que esse processo se limita à posição fnal acentuada e constituiria um traço de oposição entre o portu- guês brasileiro e o português europeu. Segundo o autor, a pronúncia era estigmatizada, devendo ser evitada na fala culta. Sousa da Silveira (1964) e Silva Neto (1956) res- saltam que essa realização ocorreria mais frequente- mente no dialeto não padrão e poderia ser decorrente todo modo, a realização alveolar mantém-se em área extensa do país, embora a pronúncia palatal se difunda em zonas consideradas ciciantes. fala culta estudos na linha da sociolinguística quantitativa laboviana (Labov 1994), em tempo aparente e em tempo real (tendência), a partir de dados do pro- jeto NURC, das décadas de 70 e 90, mostraram que, no Rio de Janeiro, na fala culta, o processo de palatalização está quase completo, em coda silábica interna – ga[S]to – mais que na externa – lapi[S], como se pode ver na tabela 1, adaptada de Callou et alii (2000). Tabela 1 – Realização do S no Rio de Janeiro, em tempo real, por contexto. Década 70 Década 90 RJ Interno Final Interno Final palatal 85% 72% 91% 76% alveolar 3% 23% 4%% 19% aspirada 3% 1% 1% 1% apagamento 9% 3% 3% 4% No trabalho pioneiro de Callou & Marques (1975) foram analisadas 2.579 ocorrências em indivíduos de três níveis de escolaridade, homens e mulheres, moradores de seis áreas da cidade do Rio de Janeiro. O percentual geral de palatalização era de 85%, mas podia variar em função de alguns condicionamentos: nível de escolaridade, gênero e local de residência do falante. No nível médio, registrou-se maior variabilidade, com percentual mais baixo de palatalização (76%). A realização não palatal (alveolar) é mais frequente na fala das mulheres (12%) que na dos homens (6%) e na Zona Sul, área em que é mais acentuada a interação sociocultural e espacial, há maior grau de oscilação, confrmando a necessidade de estudar a infuência da fala de indivíduos procedentes de outras regiões do país sobre a linguagem do Rio de Janeiro; Quando se comparam os dados das décadas de 70 e 90, apenas de fala culta, por faixa etária, pode-se observar que há uma variação estável nas duas décadas (Figura 1). 67% 83% 79% 76% 82% 74% 0% 20% 40% 60% 80% 100% 1 2 3 70 90 29 di nah callou & si lvi a fi guei redo brandão | sobre o / s/ em coda si lábi ca no ri o de j anei ro ! À semelhança de muitos outros fenômenos, parece estar atuando também o princípio da saliência fônica: a inserção do [j] ocorre priori- tariamente em vocábulos monossilábicos: pa[j]z, fa[j]z, tra[j]z, pá[j]s. Tabela 4 – Ditongação no Rio de Janeiro, em 70 e 90, e dimensão do vocábulo sílabas 70 90 uma 65% .63 62% .70 duas 48% .45 27% .41 três ou mais 41% .39 19% .32 fala popular Fora da capital do estado, no âmbito da fala popu- lar, o /S/ foi focalizado em algumas poucas loca- lidades. Na perspectiva geolinguística, em quatro municípios da Região Metropolitana; sob o enfo- que sociolinguístico variacionista, em treze comu- nidades das Regiões Norte e Noroeste (Brandão, 1997; Rodrigues, 2001) e em Cordeiro (gryner & Macedo, 2000) na Região Serrana. No mapa a seguir, em azul, indicam-se as 13 comunidades do Norte e do Noroeste; em ver- melho, a localidade de Cordeiro; em amarelo, os quatro municípios da Região Metropolitana e, na mesma cor, em tamanho maior, a capital do estado. da palatalização do S no Rio de Janeiro. O processo de ditongação é atestado até mesmo na poesia, em rimas do tipo: azuis / luz / jamais / voraz. A criação desse ditongo acarreta uma neutrali- zação entre os contrastes que se registram na língua escrita, como mas (conjunção) e mais (advérbio), pôs (3 a pessoa do verbo pôr) e pois (conjunção). embora a ditongação possa ocorrer em posi- ção medial de palavra, essa ocorrência é rara. Nos nossos dados, isso se dá apenas em oito vocábulos, sempre com o S palatalizado: me[Z]mo, de[Z]de, tran[S]formado, re[S]ponsável, re[S]trita, entusia[Z] mado. Observe-se que apenas no último exemplo a inserção não ocorre em sílaba inicial de vocá- bulo, sílabas que, em português, recebem prefe- rencialmente o acento secundário. Apenas em dois casos registrados (mesmo e desde) o processo se dá na sílaba que recebe o acento. A tabela 3 mostra que (i) as sílabas tônicas e também as não tônicas apresentam um peso relativo mais alto de aplicação da regra de ditongação quando recebem o acento frasal e (ii) o peso relativo é baixo quando não incidem sobre ela os acentos lexical e frasal. Tabela 3 – Inserção de [j], levando em conta o acento lexical e frasal. +tôn +ac 82% .72 +tôn -ac 75% .64 -tôn +ac 77% .67 -tôn -ac 43% .30 Mapa 1 – Áreas do estado do Rio de Janeiro já focalizadas do ponto de vista linguístico 30 di nah callou & si lvi a fi guei redo brandão | sobre o / s/ em coda si lábi ca no ri o de j anei ro na Região Metropolitana. Nessas áreas, em que foram registradas as variantes [s z S Z h] e o cance- lamento, predominam as realizações palatais, em um total 1212 ocorrências, 633 referentes ao con- texto interno e 579 ao externo (369 [-mórfco] e 210 [+mórfco]), conforme a Figura 1, a seguir. região metropolitana No AFeBg (Lima, 2006), pode-se observar, com base em 58 cartas fonéticas (31 referentes à coda interna e 27, à externa), o que ocorre na fala de Magé, Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Itaboraí, Tabela 5 – Com base na tabela 14 de Lima (2006) Variante Contexto Interno Contexto Externo [- mórfco] [+ mórfco] [s z] [S Z] [h] [ø] [s z] [S Z] [h] [ø] [s z] [S Z] [h] [ø] Oco 63 523 47 0 49 299 05 16 12 99 0 99 Perc. 10% 82.6% 7.4% 0% 13.2% 81% 1.3% 4.4% 6% 47% 0% 47% O percentual de palatais é praticamente o mesmo em contexto interno e externo (sem valor mórfco), respectivamente 82% e 81%, só bai- xando drasticamente quando o –S é marca de número, situação em que essas variantes ocorrem com o mesmo índice que o cancelamento (47%), não presente em contexto interno. Como, no AFeBg, levaram-se em conta as variáveis gênero e faixa etária, torna-se possível verifcar a produtividade das variantes não só do ponto de vista diatópico, mas também diastrá- tico. No contexto interno e no externo sem valor mórfco (cf. Figuras 2 e 3), nos dois municípios mais próximos da capital (Nova Iguaçu, 31 km; e Duque de Caxias,18 km), o índice de variantes alveolares é maior do que em Magé (57 km) e Ita- boraí (46 km), talvez por serem os que, na atuali- dade, apresentam os mais signifcativos índices de migrantes de outras áreas do país, entre as quais, Paraíba e Minas gerais. Figura 2 – Dados do AFeBg (Lima: 2006) Distribuição percentual das variantes de -S em contexto interno por localidade Figura 3 – Dados do AFeBg (Lima: 2006) Distribuição percentual das variantes de -S [mórfco] em contexto externo por localidade No que toca às variáveis gênero e faixa etária, aqui consideradas em conjunto, verifca-se que, em con- texto interno, os indivíduos mais jovens do gênero masculino só concretizaram o –S como palatalizado (88%) ou glotal. As mulheres dessa faixa etária são, por sua vez, as que apresentam maior percentual de alveolares (21%), embora o percentual referente à fricativa glotal seja igual ao dos homens (12%). A frequência de palatalizadas é idêntica (88%) entre os homens mais jovens e mais velhos, enquanto, entre as mulheres, o menor índice de palatalizadas se encontra na primeira faixa etária. Nas faixas 2 e 3, os índices são bastante próximos, respectivamente, 83% e 81%. Figura 4 – Dados do AFeBg (Lima: 2006) Distribuição percentual da variante palatizada de -S por contexto e gênero/faixa etária ! ! 31 di nah callou & si lvi a fi guei redo brandão | sobre o / s/ em coda si lábi ca no ri o de j anei ro Figura 6 – Dados do AFeBg (Lima: 2006) Regiões Norte e Noroeste Distribuição percentual das variantes de -S [+ mórfco] por gênero/faixa etária Rodrigues (2001) focalizou o –S em treze comunidades dos municípios de São Francisco do Itabapoana, São João da Barra, Campos, Macaé, Itaocara, Cambuci, São Fidélis e Itaperuna, com base na fala de indivíduos do sexo masculino, analfabetos ou escolarizados até a quarta série do Nível Fundamental, distribuídos por três faixas etárias, tendo registrado os índices percentuais expostos na Figura 7. Figura 7 – Dados de Rodrigues (2001) Variantes de -S em coda silábica medial e fnal de vocábulo Quando se confontam apenas as variantes alveolares e pós-alveolares, a palatalização em contexto medial é mais produtiva (30%) do que em contexto fnal (18%), mas, em ambos os casos, entre as variáveis que se mostraram mais salien- tes para a implementação da regra, destacam-se o modo e ponto de articulação do segmento subsequente e a área geográfca. Quando o -S constitui marca de plural, o qua- dro é diferente. em todas as localidades, as fricativas pós-alveolares e o cancelamento são as variantes em concorrência, com índices aproximados. Há também um comportamento diferenciado de Nova Iguaçu e Duque de Caxias em relação a Magé e Itaboraí. Nas duas primeiras localidades, predomina a concretiza- ção do –S, enquanto, nas últimas, seu cancelamento. Não há registro de variante aspirada, diferentemente do que ocorreu em relação a –S sem valor mórfco, em que se computaram cinco ocorrências dessa variante. Figura 5 – Dados do AFeBg (Lima: 2006) Distribuição percentual das variantes de -S [+ mórfco] por localidade A Figura 6 mostra que, na faixa 1, as variantes palatalizadas e o cancelamento estão em concorrência tanto na fala dos homens (50%) quanto na das mulhe- res (39%), que, por sua vez, exibem o maior índice de alveolares. Na faixa 2, o comportamento por gênero é bem diferenciado: os homens (56%) cancelam o segmento bem mais do que as mulheres (28%), que, neste caso, superam o gênero masculino em termos de palatalização. Na faixa 3, o comportamento de ambos os gêneros é bem parecido: 55% de cancelamento entre os homens e 57%, entre as mulheres, índices, por sinal, semelhantes aos registrads na fala dos indiví- duos mais jovens. Logo, pode-se formular a hipótese de que o cancelamento de –S, marca de plural, é está- vel, considerando-se as quatro comunidades. ! Tabela 6 – Dados de Rodrigues (2001) Palatalização de –S em coda silábica Contexto Medial Final Percentual 30% 18% Input da regra .24 .21 Variáveis condicionadoras Contexto subsequente Área geográfca Contexto antecedente Faixa etária Contexto subsequente Área geográfca Nível de instrução tonicidade da sílaba 32 di nah callou & si lvi a fi guei redo brandão | sobre o / s/ em coda si lábi ca no ri o de j anei ro (p. r. 55) –, a sílaba tônica e vocábulos de três ou mais sílabas são os fatores mais salientes para a se implemente a palatalização. Tabela 7 – Outros fatores condicionantes da palatalização de /S/, segundo Rodrigues (2001) Posição medial Posição fnal Contexto antecedente [i] e [u]: p.r. .62 [a]: p.r. 61 Nível de instrução escolarizados: p.r. 55 Faixa etária Cf. gráfco 9 tonicidade da sílaba tônica: p. r. .56 Dimensão do vocábulo três ou mais sílabas: p.r. 64 embora apenas selecionada para a posição fnal, a atuação da variável faixa etária (cf. Figura 10) é muito semelhante em ambos os contextos, sugerindo um discreto quadro de mudança no sentido da posteriorização do segmento, tendência comum, na fala da região, também a /R/ e /L/ em coda silábica (Brandão, 1995; Quandt, 2004). Figura 10 – Dados de Rodrigues (2001) Difusão da variante palatal de -S na fala das diferentes gerações segundo a posição do vocábulo Com base nos resultados concernentes a faixa etária e área geográfca, pode-se afrmar que, no que toca à posição medial de vocábulo, as varian- tes alveolares e palatalizadas estão polarizadas, uma vez que as primeiras são mais frequentes na fala dos indivíduos mais velhos das comunidades de perfl rural, enquanto as últimas, na dos mais jovens em comunidades de feição mais urbanizada. No mapa 2, procura-se representar tal quadro por meio de duas linhas, uma representativa das variantes alveolares (em verde), outra das pala- talizadas (em vermelho). em ambos os casos, o tipo de traço refere-se a um maior (contínuo) ou menor (descontínuo) índice percentual de ocor- rência. Nos dois contextos, sobressaem como condi- cionadoras da palatalização as africadas e as oclu- sivas dentais, embora, na posição fnal, também as oclusivas velares e a lateral alveolar se tenham mostrado relevantes. Figura 8 – Dados de Rodrigues (2001) Infuência da variável contexto subsequente para a implementação da variante palatizada Quanto à área geográfca, é nas comunidades mais urbanizadas – aquelas com traço [- rural], quer interioranas, quer litorâneas – que mais se observa o processo, talvez devido ao fato de, nes- sas localidades, os indivíduos terem mais oportu- nidade de travar contato com falantes provenien- tes sobretudo da cidade do Rio de Janeiro, em que a palatal constitui norma. Figura 9 – Dados de Rodrigues (2001) Difusão da variante palatal de -S por área e posição no vocábulo Como se verifca pela tabela a seguir, em posi- ção medial, mostraram-se relevantes a faixa etária, e, no que se refere ao contexto subsequente, as vogais articulatoriamente mais distantes – as altas e a central baixa – com pesos relativos pratica- mente idênticos. em posição fnal, além do nível de instrução – em que se destacam, com p.r. pró- ximo à neutralidade, os indivíduos escolarizados ! ! ! 33 di nah callou & si lvi a fi guei redo brandão | sobre o / s/ em coda si lábi ca no ri o de j anei ro tabela 4); e (ii) em que atua o princípio de saliência fônica: quanto menor a dimensão da palavra, maior a possibilidade de haver o pro- cesso de ditongação. (b) Na Região Metropolitana, o índice de pala- talização observado na fala popular é muito semelhante ao que se registra na fala da cidade do Rio de Janeiro, onde o processo é geral em ambas as variedades. (c) no Norte e no Noroeste do estado, à seme- lhança do que ocorre na Região Serrana, predomina a realização alveolar, estando a variante palatalizada restrita àqueles contextos marcados, referidos neste trabalho e em estu- dos tradicionais sobre o Português do Brasil. (d) continua em aberto a questão sobre a imple- mentação da pronúncia palatal e a sua origem (mudança de cima para baixo?). Para fnalizar, à guisa de comparação da fala do Rio de Janeiro com outros falares do país, apre- senta-se, no mapa 3, a distribuição das variantes palatalizada e alveolar de /S/ em diferentes regiões do país. Mapa 3 – Distribuição das variantes alveolar e palatalizada no Português do Brasil. Assim, a linha verde, que simboliza a concreti- zação alveolar, reúne as comunidades litorâneas de Barra do Itabapoana (BIt), guaxindiba (gUA), gargaú (gAR), Atafona (AtA), Farol de São tomé (FSt) e se interioriza na direção de Ponta grossa dos Fidalgos (PgF), passando por São Benedito (SBe) até chegar a Cambuci (CAM), nas duas últimas apresentando a variante menores índices de frequência do que nas demais. A linha vermelha, que representa a realização palatalizada, congrega São João da Barra (SJB), Macaé (MAC), Itaocara (ItO), São Fidélis (SFI) e Itaperuna (ItA), as três últimas com menores índices de ocorrência dessa variante. Mapa 2 – Isófonas das variantes alveolar e palatalizada de –S pós-vocálico considerações finais (a) Na cidade do Rio de Janeiro, é geral a palata- lização de –S em coda silábica independente- mente do nível de escolaridade, gênero e faixa etária; na fala culta, a inserção do [j] diante de –S é um fenômeno (i) que ocorre no nível da palavra, embora deva ser levado em conta o acento frasal, dada a escalaridade na conjuga- ção dos fatores acento frasal e acento lexical: +ac +tôn > +ac -tôn > -ac +tôn > -ac -tôn (Cf. ! ! 34 di nah callou & si lvi a fi guei redo brandão | sobre o / s/ em coda si lábi ca no ri o de j anei ro MARROQUIM, M. A língua do Nordeste (Alagoas e Per- nambuco). São Paulo: Companhia editora Nacional, 1934. LIMA, L. g. de. Atlas Fonético do entorno da Baía de Guanabara-AFeBG. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2006. 2 v. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. RÉVAH, I. 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Inicialmente, apresentaremos resultados da análise variacionista referentes ao português de infuência açoriana falado em Florianópolis (SC) (Brescan- cini, 2002). em seguida, abordaremos propostas de represen- tação lexical desses segmentos à luz da Fonologia Não Linear, mais especifcamente da geometria de traços (Clements e Hume, 1995), e discutiremos propostas de análise realizadas pela teoria da Otimidade. a fricativa em posição de coda: análise fonológica Cláudia Regina Brescancini é Professora do Pro- grama de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Univer- sidade Católica do Rio grande do Sul. Membro do Pro- jeto VARSUL (Variação Linguística Urbana na Região Sul), atualmente desenvolve pesquisa sobre variação fonético-fonológica no português falado na região Sul do Brasil. e-mail:
[email protected] Valéria Neto de Oliveira Monaretto é Pro- fessora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio grande do Sul. Coordena- dora do Projeto VARSUL/UFRgS (Variação Linguística Urbana na Região Sul), atualmente desenvolve pesquisa sobre variação fonético-fonológica no português escrito antigo no RS e na fala na região Sul do Brasil. e-mail:
[email protected] abstract this work aims at relating variation results concerning the fricative in coda position in Brazilian Portuguese with pho- nological theory. Firstly we will present variationist analysis results about the Azorean Portuguese spoken in Florianó- polis, Santa Catarina (Brescancini, 2002). Secondly, we will talk about Non-Linear Phonology proposals about lexical representations of these segments, specifcally those under Feature geometry (Clements and Hume, 1995) and then we will approach the analyses conducted under Optimality theory. 1. a fricativa palatoalveolar na região Sul do Brasil A fricativa palatoalveolar se faz presente como variante de /S/ em posição de coda no litoral do estado de Santa Catarina, em região denominada por Furlan (1989, p.104) como o falar do centro do estado, que inclui Florianópolis, Itajaí, São José, Paulo Lopes e enseada do Brito. A imigração açoriana iniciada em 1748, e que perdurou até 1753, é comumente apontada como um dos principais elementos que justifcam a pre- sença da variante na região catarinense. Soma-se a esse fato, o longo contato entre Florianópolis, através do Porto de Desterro, e outros centros irradiadores de pronúncia palato alveolar, a saber Lisboa, Rio de Janeiro e Recife. embora a produção palatalizada de /S/ apro- xime o falar do litoral catarinense dos falares carioca e nordestino, diferencia-se das variantes produzidas em mesma posição nos estados vizi- nhos do Rio grande do Sul e do Paraná e de regiões do interior do próprio estado de Santa Catarina. Com relação especifcamente ao Rio grande do Sul, a transferência de açorianos de Santa Catarina para esse estado, entre 1752 e 1754 (cf. Wiederspahn, 1979) parece não ter propiciado a difusão da variante entre os gaúchos 1 . 1 Segundo Callou e Moraes (1996), a produção palatoalveolar em Porto Alegre, Rio grande do Sul, é de 3% em posição fnal e 23% em posição medial (dados NURC/Brasil). 36 cláudia regina brescancini & valéria neto de oliveira monaretto | a fricativa em posição de coda em contexto seguinte, a variante palatoalveolar tende a ser mais favorecida por contextos dorsal e coronal [- anterior] (apenas 3% dos dados, como em es[tS]ica). Ao considerar tal resultado junta- mente ao obtido para a variável Contexto Prece- dente, constatamos que os contextos circundantes indutores à palatoalveolar são os que promovem a retração do corpo da língua e o levantamento desse articulador (ver gráfco 3). À luz da pro- posta teórica da geometria de traços (Clements e Hume, 1995), tal fato constitui um argumento a mais para a presença do nó dorsal na representa- ção das consoantes palatoalveolares, fato que dis- cutiremos em 2.1. Gráfco 3 – Contexto Seguinte 2. análise fonológica 2.1. Fonologia não linear – Geometria de traços A representação da atividade articulatória por meio de constrições do trato oral, responsáveis pela determinação da forma do sinal acústico e, consequentemente, pela percepção do som, é a base da proposta de Clements e Hume (1995) para a geometria de traços, basicamente o último estágio na extensão dos princípios da Fonologia Autossegmental. Por essa organização hierárquica de traços, da cavidade oral extrai-se o nó Ponto-C, que se desmembra em traço de consoante e em um nó-vocálico, possibilitando representar proces- sos fonológicos como alternâncias fonéticas entre sons consonantais e vocálicos, dentre outros. Com base em tal modelo, a fricativa palatoal- veolar recebeu basicamente duas interpretações, a saber, com uma geometria de consoante complexa, apresentando tanto o nó de Ponto-C quanto o de embora a fricativa palatoalveolar seja a produção predominante em Florianópolis (83% de aplica- ção), conforme apontam os resultados apresentados por Brescancini (2002) (ver gráfco 1), são registra- das ainda na região a fricativa alveolar (12%), frica- tiva laríngea (1%) e o apagamento (2%). Gráfco 1 – Frequência global: variantes de /S/ Como principais condicionadores linguísticos da variante palatoalveolar são apontados o contexto seguinte [-voz], as sílabas pretônicas e tônicas e a posição medial. Observa-se que a fricativa palato- alveolar se mostra favorecida quando /S/ assimila o traço[-voz], ambiente do ponto de vista estatístico altamente indutor, de um contexto forte seguinte, o que signifca serem as sílabas pretônicas sempre mais indutoras ao processo do que as tônicas. Quando ao contexto circundante à fricativa palatoalveolar, tem-se que, em contexto prece- dente, conforme mostra o gráfco 2 a seguir, a vogal dorsal /a/ e as vogais labiais surgem como as estatisticamente mais relevantes. Os contextos vocálicos coronais, tradicionalmente considera- dos como os maiores indutores do fenômeno de palatalização, apresentam-se pouco favorecedores, quer estejam na estrutura subjacente (como em conf[i]scar, min[i]stro), quer sejam originados por processos de neutralização ([i]stado), harmo- nização vocálica ([i]stica), epêntese (sub[i]stituto) ou ditongação (rap[aj]s). Gráfco 2 – Contexto Vocálico Precedente ! ! ! ! 37 cláudia regina brescancini & valéria neto de oliveira monaretto | a fricativa em posição de coda nância, como em mu[‘le], se justifca pela manu- tenção na representação de Ponto-C e pelo desliga- mento do articulador [coronal] em Ponto-V. As consoantes palatoalveolares, no entanto, não apresentam tais tipos de simplifcações, já que não há registros de casos como so[j]a ou so[s]a para soja ou a[j]o ou a[z]o para acho, qualquer que seja a posição na palavra considerada. O tipo de alternância entre [Z] e [j], verifcado em dados como [j]anela para janela, ou entre [S] e [s], em [s]ave para chave, conforme Hernadorena (1994), parece fazer parte apenas da fase anterior à aquisição plena de [S, Z], desaparecendo por completo na fala adulta, variedade popular ou coloquial. Possivelmente, constitui um fenômeno restrito à aquisição, sem refexos fonológicos. Diacronicamente, observa-se ainda que, embora /´, ø/ e /S, Z/ constituam inovações origi- nadas na passagem do sistema consonantal latino para o sistema da língua portuguesa, as soantes palatais são mais seguramente derivadas por um processo de palatalização sofrido pela consoante nasal alveolar e pela lateral alveolar em ambiente de [i] ou [j] do que as palatoalveoalares. Com rela- ção inclusive aos clusters gn e gl, kl, apontados tam- bém como fonte da lateral palatal em língua por- tuguesa, preveem-se estágios intermediários com a presença do glide frontal, como em ocu&lum > oylo > olho, em uma referência clara a sua infuên- cia na constituição fnal de /´/. As palatoalveolares, embora originadas a par- tir de processos de palatalização disparados pela vogal ou glide frontal (s latino diante de [i]), do mesmo modo verifcado para as palatais nasal e lateral, envolvem também confusões de pronún- cia, como a verifcada na sequência –ss- seguida por /i/, como em uessi#cam > bexiga, causada pela estreita similaridade entre o /s/ cacuminal dialetal e [S] (Williams, 1961, p. 85), pelo apagamento do oclusiva em [tS], proveniente das sequências con- sonantais cl, pl e f e pela sequência s latino e [k]. Vê-se, portanto, que os fatos históricos corro- boram a análise de /´, ø/ como segmentos com- plexos com uma articulação secundária vocálica de [i], mas deixam dúvidas com relação à mesma interpretação para as palatoalveolares. Outra evidência contra a admissão de palato- alveolares como consoantes complexas com nó vocálico e seus dependentes está na existência de Ponto-V, como defende Hernadorena (1994) a par- tir de dados de aquisição da língua portuguesa, e com uma geometria de consoante simples , defnida pelo traço coronal e seu dependente [- anterior]. Consideramos que a inadequação da represen- tação de [S, Z] no primeiro caso está justamente na caracterização da articulação secundária como [i] ou [j]. Os argumentos contrários recebem suporte tanto da descrição articulatória dessas consoantes quanto de dados empíricos. Do ponto de vista fonético, a articulação de [S, Z] envolve uma confguração do trato oral de certo modo partida, em que a constrição se realiza entre a lâmina da língua e a região pós-alveolar e, por trás dela, o corpo da língua assume um formato abo- badado, considerado por Ladefoged e Maddieson (1996) como indicativo de certo grau de palatali- zação. Diferem, pois, nesse sentido, das consoantes palatais, produzidas com uma constrição longa e pra- ticamente ininterrupta de toda parte laminal e pré- dorsal da língua, muito mais parecidas com vogais frontais “consonantais”, já que a língua mantém o formato observado na produção da vogal [i] 2 . Além disso, com relação ao sistema do portu- guês, se admitíssemos que o traço de palatalização para palatoalveolares fosse equivalente à vogal [i] ou ao glide frontal [j], automaticamente inseri- ríamos tais consoantes no grupo das consoantes complexas palatais lateral [´] e nasal [ø]. tal fato, no entanto, não recebe suporte empírico. A reunião de /´/ e /ø/ no grupo das consoan- tes complexas com articulação secundária vocá- lica é justifcada por uma série de alternâncias. No português coloquial, a nasal palatal /ø/ é realizada como [jâ ], como em ba[ø]a ~ ba[jâ]a, para banha, e cami[ø]o ~ cami[jâ]o, para caminho . essa simplif- cação se explica pelo desligamento de [coronal] sob Ponto-C . Na fala popular se observa muitas vezes a realização de /´/ como [j] ou, menos comumente, como [l], como em f[´]o ~ f[j]o, para flho, e mu[´] er ~ mu[je] ~ mu[le], para mulher. A segunda alter- 2 A divisão classifcatória entre palatoalveolares e palatais é con- frmada ainda por Cagliari (1974) com base na análise de pala- togramas. Mostra o autor que, apesar da semelhança perceptual entre essas consoantes devido à formação de uma cavidade res- soadora anterior, a regularidade obtida nos resultados evidencia que a constrição principal em palatoalveolares ocorre quase que exclusivamente na linha divisória entre as regiões alveolar e pré- palatal, diferentemente, portanto, das palatais. 38 cláudia regina brescancini & valéria neto de oliveira monaretto | a fricativa em posição de coda trução não envolve o corpo da língua, [+ anterior] é utilizado. tal equivalência entre correlatos con- sonantais e vocálicos de traços é considerada por Sagey (1990, p. 108, nota 17) apenas como uma interpretação prática do traço [anterior] e, nesse sentido, deixa de refetir adequadamente o fato de que nas palatoalveolares, se tidas apenas como [- anterior], o dorso da língua está atuando conjun- tamente com o levantamento de sua lâmina. De modo análogo, no modelo baseado na constrição (Clements e Hume,1995), regras que espraiam [- posterior] são reinterpretadas como envolvendo [coronal] e seu dependente [- ante- rior] e regras que espraiam [+ posterior], como envolvendo [dorsal]. Outro aspecto refere-se ao fato de que a iden- tifcação de [+ P] como [- anterior] não se adequa à representação de consoantes retrofexas [§, 1 / 2 ], também coronais [- anterior], mas não palataliza- das (Hall, 1997, p. 82-83). Por trás da constrição coronal, o corpo da língua pode não desempenhar papel ativo na produção desses sons retrofexos, como o verifcado em lardil (falado em Queens- land, Austrália) (cf. Hall, 1997, p. 49). Quando se nota envolvimento do corpo da língua, o formato de língua que se confgura assume um caráter claramente velarizado, fato comprovado fonolo- gicamente em línguas dravidianas, em que certas vogais, [i] e [e], por exemplo, se retraem para [m] e [F], respectivamente, antes de consontes retro- fexas (Hall, 1997, p. 48), e em várias línguas do leste australiano, onde uma oclusiva retrofexa está em distribuição complementar com a oclu- siva alveolar, de tal forma que [ÿ] se superfcializa apenas após [u], mas como [t] nos demais casos (cf. HALL, 1997, p. 48). Brescancini (2002) propõe, desse modo, que a fricativa palatoalveolar seja interpretada como uma consoante complexa, representada pelo traço [coronal] sob Ponto-C e pelo traço [dorsal] sob Ponto-V, conforme apresenta a Figura 1 a seguir. A motivação articulatória para o traço vocálico [dorsal] está na localização mais recuada do for- mato cupulado assumido pelo corpo da língua por trás da constrição entre lâmina da língua e borda da arcada alveolar. A motivação fonológica está na afnidade entre [S, Z] e o traço [dorsal] em várias línguas. Weijer (1994, p. 111), em concordância com essa proposta, propõe que essas consoantes contraste lexical entre /sj / e /Sj /, observado em moksha mordviniano (HALL, 1997, p. 65) e entre /S/ e /Sj/ e /Z/ e /Zj/ em ter lapp (língua fnno-ugric) (p. 75). Na linha de Clements e Hume (1995), não é possível representar uma consoante com dois nós vocálicos e seus dependentes. A inadequação desse tipo de representação é comprovada pela ausência de contrastes do tipo /ø/ e /øj/ ou /´/ e /´j/ nas lín- guas do mundo. De acordo com Hall (1997, p. 73), essa impossibilidade articulatória é atestada fonolo- gicamente até mesmo em línguas em que todas as consoantes, ou pelo menos um subconjunto pre- visível, possuem equivalentes palatalizados, já que nenhuma língua com esse sistema foi encontrada pelo autor em que a uma consoante plana corres- pondesse uma palatal palatalizada. Desse modo, o suporte empírico aliado aos fatos de história da língua e aos fatos articulató- rios, fundamentais em um modelo teórico que visa a aproximar aspectos da anatomia do trato vocal e representações fonológicas, fornece evi- dências para a não adoção do traço de palatali- zação (doravante [+ P]) como equivalente ao nó vocálico e seus dependentes Ponto-V [coronal] e abertura ([- aberto1, - aberto2, - aberto 3]) para as palatoalveolares. A segunda interpretação, na qual palatoal- veolares são entendidas como representadas com uma geometria de consoante simples, defnida pelo traço [coronal] e seu dependente [- anterior] (Sagey, 1986, 1990; Lahiri e evers, 1991; Mester e Itô, 1989; Clements e Hume, 1995; Jacobs e Weijer, 1992), também recebe críticas. É ques- tionável tomar como verdadeira a afrmação de que [-anterior] implique sempre o envolvimento do corpo da língua na articulação. A equivalência entre [-anterior] e [+corpo da língua] não é con- frmada, por exemplo, pelas consoantes retrofe- xas, pois, embora sejam [- anterior], podem não envolver o corpo da língua em sua articulação e, nos casos em que o envolvem, o dorso da língua se aproxima do palato mole, em um indício claro de velarização. O valor negativo do traço [anterior] é inter- pretado como defnidor da mesma classe de con- soantes formadas por uma obstrução realizada pelo corpo da língua, defnida no sistema de tra- ços do SPe pelo traço [ posterior]. Quando a obs- 39 cláudia regina brescancini & valéria neto de oliveira monaretto | a fricativa em posição de coda A identifcação de um ambiente palatalizante como [u] e o traço [dorsal] está para Pulleyblank (1989, p. 180) no fato de que essa vogal combina protusão dos lábios e levantamento do corpo da lín- gua em direção ao palato-mole, e desse modo, deve combinar os traços do articulador [labial] e [dorsal]. Conclui-se, portanto, que as palatoalveolares, assim como as palatais (como [´, ø]), incluem-se no fenômeno geral de palatalização a partir da compreensão de que não só um formato de língua frontal alto, equivalente à vogal [i], constitui um indicativo do fenômeno, mas também um formato de língua cupulado que se localiza por trás da cons- trição coronal. Sob essa perspectiva, a palatalização é vista como um “termo rótulo” (Lahiri e evers, 1991) para uma série de processos com caracterís- ticas diferenciadas, cujo denominador comum é o movimento de aproximação do corpo da língua em direção à área correspondente ao palato-duro. A partir dessa perspectiva, diz-se que em língua portuguesa, as fricativas palatoalveolares /S5ÛÛ, Z/ só existem subjacentemente em posição de ataque. em posição de coda, surgem apenas no componente pós-lexical, como consequência de uma regra opcio- nal de palatalização. A aplicação se dá no modo de preenchimento de traço, através da operação ele- mentar de inserção: o traço de palatalização equi- valente ao Nó Vocálico e seu dependente Ponto-V [dorsal] passa a compor uma consoante identifcada como [coronal] sob Ponto-C, mas subespecifcada para o traço [anterior] (cf. Figura 2). Figura 2 – Operação de Inserção do traço [+ P] e assimilação de [voz] /S/ [S, Z] exibam em sua representação uma espécie de mis- tura, denominada por ele “mistura de cor”, envol- vendo os elementos designadores de ponto de articulação I e A, interpretados, respectivamente, como coronal e dorsal. Figura 1 – Representação da Fricativa Palatoalveolar como consoante coronodorsal embora a palatoalveolar [S] origine-se prin- cipalmente a partir de processos envolvendo a fricativa coronal /s/, foram também constatadas palatoalveolares originadas a partir de processos envolvendo as velares /x/, como no eslovaco (Cle- ments; Hume, 1995) e no polonês (Weijer, 1994), e /k/, como no norueguês (Bhat, 1978). Com relação ao ambiente indutor, verifca- se em diversas línguas que nem só uma vogal coronal constitui um ambiente propício para a formação de [S, Z], como se observa no coreano (Neeld, 1973), onde /s/ se torna [S] diante de [i] e [e]. O movimento de posteriorização do corpo da língua verifcado na produção dessas conso- antes é atestado também como um ambiente indutor na passagem de /s/ a /S/ em báltico e indo-ariano (cf. Hall, 1997), onde se registra que a regra opera quando /s/ precede /u/, /k/ e /r/ (uma consoante [+ alta]). Bhat (1978, p. 76) cita ainda o paiute do sul, em que /S/ ocorre em con- texto de vogal posterior e /c/, por outro lado, em contexto de vogal frontal, e o processo em que /s/ se torna /S/ diante de /i/ e /u/, igualmente verifcado no proto-iraniano (p. 55), gola (p. 66) e macuxi (p. 66). ! ! 40 cláudia regina brescancini & valéria neto de oliveira monaretto | a fricativa em posição de coda ao utilizar restrições no lugar de princípios, regras e fltros, além de oferecer uniformidade de análise. As restrições são violáveis e de sua organização depende a gramática de uma língua, que as mapeia em uma hierarquia a fm de se chegar a um can- didato ótimo. A escolha de um output ocorre pelo ranqueamento dessas restrições que atuam em conjunto, comparando candidatos e selecionando a forma que vence os outros candidatos, por violar restrições menos importantes em uma hierarquia. A variação, contudo, parece ser um problema para a teoria Clássica da Otimidade, pois varian- tes de uma só forma podem ser consideradas candidatos ótimos, ou seja, um dado input pode escolher duas ou mais formas fonéticas, criando- se candidatos com o mesmo grau de otimização. Além disso, há, pela análise de regra variável labo- viana, outputs que dependem estatisticamente de condicionadores sociais e/ou linguísticos, com papéis que podem variar conforme a comunidade linguística. Como um modelo formal poderia dar conta desses aspectos? Diferentes propostas sobre o tratamento da variação pela tO têm sido utilizadas na tentativa de explicar a variação linguística através de descri- ções formais, que vão desde interpretações sobre o enfoque das análises até a função do mecanismo de avaliação eVAL. O fenômeno variável também é explicado na literatura por competição entre gramáticas, através da seleção de um determi- nado ranqueamento, conforme postula Kiparsky (1994). estudos como o de Zubristskaya (1995), Anttila (1997) e Nagy e Reynolds (1997), entre outros, tratam a variação pelo ranqueamento vari- ável de restrições. Por essas propostas, a variação é tratada respectivamente pela análise de outputs, com ordenamento parcial entre as restrições, em que o domínio entre duas restrições adjacentes não é ordenado e, sob outro ponto de vista, como o resultado de restrições futuantes, sem posição defnida em relação a outras. Já, para Coetzee (2006), eVAL faz mais do que simplesmente selecionar o melhor candidato. esse componente faz distinções entre candidatos como mais ou menos bem-formados. entre um conjunto de perdedores impõe um reordenamento para um conjunto potencial de candidatos, forne- A produção alveolar, predominante no PB e também presente nos dialetos que palatalizam, é representada na presente proposta pela inserção do traço [+ anterior] sob o nó [coronal], conforme apresenta a Figura 3 a seguir. Figura 3 – Operação de Inserção do traço [+ anterior] e assimilação de [voz] /S/ [s, z] Independentemente de ser a realização da con- soante na coda alveolar ou palatoalveolar, a con- soante /S/, subespecifcada também para o traço [voz], toma-o por assimilação da consoante seguinte (com em me[zm]o e me[Zm]o ou na[s k]asas e na[S k]asas). Caso não haja contexto seguinte, o traço [-voz], universalmente não marcado para as obstruintes, é inserido por regra default. Passemos à descrição da relação de competição entre as variantes de /S/ à luz da teoria da Oti- midade. 2.2. Teoria da Otimidade Outras propostas para a compreensão de aspectos variáveis no âmbito da teoria fonológica têm sur- gido nos últimos anos, com a perspectiva da teoria da Otimidade, que tem como ponto básico tra- balhar com restrições universais que avaliam for- mas de output a partir de um determinado input (cf. Prince e Smolensky, 1993). Diferentemente da abordagem não linear, a tO é um modelo formal mais vantajoso no sentido de ser mais econômico, ! 41 cláudia regina brescancini & valéria neto de oliveira monaretto | a fricativa em posição de coda a. o lugar da variação – por que a variação ocorre em alguns ambientes e não em outros? b. os graus de variação – por que algumas alter- nâncias fonológicas são obrigatórias, mas em outras, são opcionais? c. a marcação – por que se escolhe uma variante menos marcada? d. interface – como explicar casos de variação que demonstram padrões fonológicos em diferen- tes classes de palavras ou empregos em alguns itens lexicais? e. fatores externos – como se dá a interação entre fatores externos e internos dentro da gramática? f. mudança linguística – por que alguns casos de variação persistem por séculos sem mudarem, enquanto outros movem-se em direção a uma resolução categórica? Para Antilla (op. cit.), é necessário encontrar uma estrutura formal que seja capaz, no mínimo de descrever o fenômeno variável em seus aspectos quantitativos. As propostas de análise fonológica com variação podem ser avaliadas na adequação descritiva. em suas palavras: O próximo passo é avaliá-las em termos de sua restri- tividade, isto é, se elas excluem alguma coisa e, se elas o fazem, se excluem tipos estranhos linguisticamente e formas sistematicamente não atestadas; se permi- tem formas plausíveis linguisticamente e, em parti- cular, formas verdadeiramente atestadas de variação (Antilla, 1997, p. 213) 3 O enfoque deste trabalho não é esboçar deta- lhadamente as propostas da tO sobre a variação ou de discuti-las, mas de retomar alguns aspectos problemáticos que, às vezes, são esquecidos ou propositadamente deixados de lado quando teoria e dados são contemplados. especifcamente com relação às propostas teó- ricas de tO relacionadas a consoantes fricativas no português brasileiro, há, dentre outros, os trabalhos de Lee (2002) e o de Barbosa (2005) sobre a osci- lação de comportamento das fricativas coronais /s/ 3 the next step is to evaluate them in terms of their restric- tiveness, i.e. whether they exclude anything, and if they do, whether they exclude the linguistically bizarre and hence syste- matically unattested type of variation and allow the linguisti- cally plausible and, in particular, the actually attested types of variation. (Antilla, 1997, p. 213) cendo assim informação sobre a relação entre os perdedores. Nessa proposta, o conjunto de restri- ções está dividido em dois estratos: um estrato que reúne restrições para a escolha do melhor output na percepção da tO clássica, excluindo candida- tos não gramaticais, e outro estrato que traz restri- ções sobre candidatos possíveis, ou seja, sobre for- mas variantes de output, que são gramaticais. Os dois estratos são separados por uma função cut-off, que indica a posição de restrições altamente ran- queadas (as que estão acima do cut-off, ou seja, à esquerda em um tableau) e as que estão abaixo (à direita da linha cut-off). Há, em contrapartida às propostas esboçadas anteriormente, entendimentos de que efeitos de percepção e de reinterpretação do ouvinte sejam cruciais na otimização da gramática. Nesta linha, encontramos os trabalhos de Holt (1997), de Oli- veira e Lee (2006) e Boersma (2006), entre outros, que propõem um modelo em que a produção e percepção estariam juntas para a descrição de fatos da variação. Conforme Oliveira e Lee (op. cit., p.13), o falante domina uma série de princí- pios gerais. Alguns desses princípios são refratá- rios à ação de outros princípios enquanto outros estão sujeitos a princípios secundários. No que se refere à produção, os princípios menores defnem a forma fonética adotada pelo falante e a sua ação está sujeita à aplicação individual e lexical. Como se pode observar, as diferentes propostas de tratamento da variação sob perspectiva da tO revelam preocupação na representação formal da sistematicidade da variação, já que fatores internos podem condicionar a regra variável. Por outro lado, as diferentes interpretações e tratamentos diferenciados podem não modifcar pressupostos da tO standard, mas, algumas abordagens apresentam problemas conceituais e empíricos que as enfraquecem como propostas formais gerais e econômicas. Questões dos estudos variação, como a natureza da gramática; a distinção entre escolhas intradialetais; interpretação quantitativa, previsibilidade de padrões atestados, etc, são abordadas sob diferentes perspectivas que divergem conforme o enfoque da análise. Apesar das tentativas de aproximar estudos de variação com a tO emergirem cada vez mais diversifcadas, há uma série de questões que care- cem de uma teoria Fonológica de Variação. Antilla (1997, p. 210) traz alguns assuntos, tais como: 42 cláudia regina brescancini & valéria neto de oliveira monaretto | a fricativa em posição de coda Na tabela 1, o cut-off é indicado por uma linha vertical grossa, e os candidatos bem-formados são indexados por numerais subescritos. esses índi- ces representam o ranqueamento harmônico que eVAL impõe sobre o conjunto de candidatos a partir da frequência observada para as variantes. Observamos que o candidato 1 é o melhor output formado, e o candidato 2, o segundo bem-for- mado. Interpretando este tableau, os candidatos 1 e 2 violam as restrições R3 e R4, respectivamente. Como essas violações estão abaixo do cut-off , esses candidatos não são eliminados, confgu- rando-se, pois, como otputs possíveis. O candi- dato 1, por violar R4, a mais baixa no ranking, é a forma preferida, ou seja, a com maior frequência nos dados, e o candidato 2, por violar R3, é o segundo preferido. Já os candidatos 3 e 4 violam restrições acima de cut-off, o que os torna agrama- ticais e, por isso, nunca realizáveis como output de uma língua. Pedroza e Hora (2007) utilizam-se deste modelo teórico para analisar a fala paraibana, na região nordestina do Brasil. Os resultados desta pesquisa mostram que a frequência de emprego das variantes da fricativa coronal /s/ é determi- nada pela posição interna e externa da consoante na palavra. em coda medial, a variante coronal alveolar e a fricativa palatoalveolar apresentam maior frequência, e em coda fnal, a variante zero ocorre em segundo lugar. essa frequência de uso determinará a hierarquia entre restrições. Para dar conta do papel da sílaba na variação da fricativa, Pedroza e Hora utilizam a restrição universal NoCoda, que proíbe coda na sílaba com especifcações de traços que identifcam segmento. Assumem também que sílabas com coda são mar- cadas em relação às sílabas sem coda. Desse modo, assumem que: NOCODA [+cont., +cor., +ant.] " evitar coda [s,z] NOCODA [+cont., +cor., –ant.] " evitar coda [S, 3] NOCODA [+cont., -cor., -ant.] " evitar coda [h] Restrições de fdelidade são usadas para a manutenção no output de propriedades presentes no input: e /z/ intervocálicas na borda direita de morfema, como em /des+temidu/ e /dez+usado/. Para esses autores, restrições de marcação e de fdelidade dão conta das diferentes realizações desta fricativa em fnal de morfema no output, entendida subjacente- mente como vozeada /z/. entre os estudos de variação de fricativas na coda, há o de Hora (2002), que analisa o fenô- meno variável da fricativa coronal /s/ no português brasileiro, baseado na ideia de restrições futuantes de Reynolds (1994, apud Hora, 2002). em 2007, Pedrosa e Hora analisam o comportamento variá- vel do /s/ no falar paraibano, sob ponto de vista de outra proposta de Coetzee (2006). Pedrosa e Hora (2007) descrevem as variantes da fricativa coronal /s/ – alveolar, palatoalveolar, aspirada e zero, como, por exemplo, em me[z]mo ~me[Z]mo ~me[h]mo ~ me[0]mo –, por meio da proposta de Coetzee (2006), que estabelece hie- rarquia entre os candidatos não ótimos por nova avaliação de eVAL, advinda de um ranqueamento de restrições pela frequência de aplicação de uma variante. Quanto mais alta a posição que um candi- dato (variante) ocupar na ordem de ranqueamento, mais provável será escolhido pelo falante. Os candi- datos, ordenados harmonicamente, são entendidos como variantes mais bem-formadas de uma variá- vel, e sua ordem na tabela determina a frequência relativa observada como variante output. A gramática na proposta de Coetzee (2006) é formada por dois estratos, representados por uma linha de corte (cut-off), que divide a tabela em duas partes. À esquerda, encontram-se restri- ções na linha da tO clássica, a qual seleciona, a partir de um conjunto de restrições, um único candidato ótimo e exclui os demais como agra- maticais. À direita, há restrições que, diferen- temente das restrições à esquerda, não excluem candidatos, pois estes, apesar de não ótimos, são outputs possíveis. Por esta proposta, é possível tratar inputs que apresentam duas ou mais for- mas possíveis de outputs. Tableau 1 – A Variação na proposta de Coetzee (2006) R1 R2 R3 R4 F i.cand 1 * F ii.cand 2 * iii.cand 3 * ! iv.cand 4 * ! 43 cláudia regina brescancini & valéria neto de oliveira monaretto | a fricativa em posição de coda IDeNts " identidade entre o número de sílabas do input e do output. MAx (codamedial) " não apagar a coda medial. MAx (codafnal) " não apagar a coda fnal. Vejamos as análises de Pedroza e Dermeval (op.cit.) pelas tabelas 2 e 3, para a coda medial e para coda fnal, respectivamente: Ident-IO: segmentos/traços do output têm corres- pondentes idênticos no input Max-IO (de Maximality): segmentos/traços do input têm correspondentes idênticos no output especifcamente, em relação ao candidato categórico e aos candidatos variantes, são neces- sárias as restrições: Tabela 2 – /S/ em Coda Medial /mesmo/ Ident s Max (codamedial) NoCoda [+cont., +cor., –ant.] NoCoda [+cont., +cor., +ant.] NoCoda [+cont., -cor., -ant.] 1 [‘mez.mu] * 2 [‘me3.mu] * 3 [‘meh.mu] * 4 [‘meØ.mu] * [‘me.si.mu] *! Tabela 3 – /S/ em Coda Final /onibus/ Ident s NoCoda [+cont., +cor., –ant.] NoCoda [+cont., -cor., –ant.] Max (codafnal) NoCoda [+cont., +cor., +ant.] 1 [‘õ.ni.bus] * 2[‘õ.ni.buØ] * 3[‘õ.ni.buh] * 4 [‘õ.ni.bu∫] * [õ.ni.´bu.si] *! Pelas tabelas 2 e 3 pode-se observar que as formas mesmo e ônibus são realizadas, na fala de Paraíba, preferencialmente como [mezmu] e [‘õni.bus] com fricativa coronal [+anterior]. As variantes possíveis são quatro realizações, ordena- das conforme o ranqueamento das restrições, que é diferente na coda medial e na coda fnal. em relação à fala do Sul do Brasil, mais espe- cifcamente na comunidade de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, os resul- tados de análise da regra variável revelam, con- forme apresentado em 2.1, que a variante pre- dominante, diferentemente de João Pessoa, é a palatoalveolar, em primeiro lugar, com 83% das ocorrências. Além da posição na sílaba, a fricativa palatoalveolar é condicionada pelo contexto pre- cedente vogal dorsal e vogais labiais. O contexto seguinte [-voz], [dorsal] e o acento mostram-se também relevantes. Assim a palavra casca, por exemplo, é realizada como [‘kaSka] na maioria dos casos. Como aliar esses condicionadores em uma representação formal? A teoria da Otimidade, como modelo teórico da Fonologia, busca uma forma apropriada de representação. Não restam dúvidas de que a tO é vantajosa para a variação, pois, em um só tableau, podemos discutir questões como: • condicionadores, representados por restrições (tO clássica); • papéisinibidoresdecondicionadores,pormeio de violações (propostas para a variação); • preferências por certos outputs, pelo orde- namento harmônico de candidatos não óti- mos pela frequência de restrições(Coetzee, 2006); • análise de candidatos possíveis, mas não óti- mos, pela função cutt-off (Coetze, 2007). 44 cláudia regina brescancini & valéria neto de oliveira monaretto | a fricativa em posição de coda A palatalização da fricativa coronal é comu- mente apontada na literatura sobre o assunto como uma regra de fortalecimento e a aspiração, de enfraquecimento. em contexto seguido por segmento desvozeado o apagamento é pouco favo- recido, ao contrário da aspiração, que é favorecida pelo vozeamento do contexto seguinte. Uma análise preliminar, pela tO, da fricativa medial, encontrada na fala de informantes de Flo- rianópolis, na região do sul do Brasil, deve: • estabeleceroordenamentodecandidatos,con- forme análises estatísticas; • defnir restrições de fdelidade e de marcação conforme os condicionadores linguísticos; • expressar, por meio de representação formal, a explicação para a escolha de um candidato sobre outro, tendo em vista uma hierarquia de restrições. Concluindo, a teoria e análise fonológica po- dem expressar e representar formalmente o com- portamento variável da fricativa no português brasileiro. Resta apenas verifcar que modelo pode ser mais apropriado para dar conta dos aspectos variáveis de língua. referências bibliográficas ANtILLA, A. “Deriving variation from grammar”. In: HINSKeNS, Frans; HOUt, Roeland van; Wet- ZeLS, Leo (eds.). Variation, change and phonological theory. Amsterdam: John Benjamins, 1997. BARBOSA, P. 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Deter- nos-emos na coda medial, como ponto inicial, já que é o ambiente mais condicionante. Assumimos que a fricativa é representada como /s/ no input. Retomemos alguns dados e resultados. A fri- cativa medial realiza-se preferencialmente em Flo- rianópolis como coronal vozeada com contexto seguinte coronal vozeado, como, em desde [dezdi], seguido por [‘deZdi], por exemplo, e como palato- alveolar desvozeada, como em casca [‘kaSka], pre- dominantemente, seguida pela realização [‘kaska]. A realização da fricativa depende, pois, entre outros aspectos, do traço [dorsal] da consoante seguinte, principalmente. Se a consoante seguinte for [coronal], a fricativa será coronal também. As formas estica e casca, por exemplo, apresentam a seguinte ordem por frequência de realização: (1) Realizações de Fricativas Desvozeadas Mediais conforme o contexto seguinte dorsal x coronal: /estika/ /kaska/ 1. estika 4 1. kaSka 2. eStika 2. kaska 3. ehtika 3. kahka *e0tika *ka0ka Como ilustra (1), a fricativa desvozeada é condicionada pela consoante seguinte, e o apaga- mento não ocorre com a desvozeada, no caso dos exemplos selecionados. Uma hierarquia pode ser estabelecida pelo valor de peso relativo atribuído para cada realização. (2) Realizações de Fricativas Vozeadas Mediais conforme o contexto seguinte dorsal x coronal /vesgo/ /desde/ 1. veZgu 1.deZdi 2. vezgu 2. dezdi 3. vehgu 3. dehdi * ve0gu 4. dejdi * de0de 4 Na variedade forianopolitana, /t/ é predominantemente produ- zido como oclusiva dental, conforme Brescancini (2002, p. 248). 45 cláudia regina brescancini & valéria neto de oliveira monaretto | a fricativa em posição de coda MeSteR, R. 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So, we could treat a variable process according to a formal perspective and perform a detailed and important study to the Paraíba community speech. rumos que seguem as fricativas coronais no português brasileiro Dermeval da Hora é doutor em Linguística Aplicada pela PUC-RS e Pós-Doutor pela Universidade Livre de Amsterdam. Professor da Universidade Federal da Paraíba, coordenador do Programa de Pós-graduação em Linguís- tica e pesquisador do CNPq. Atua na área de Linguística (Língua Portuguesa), nos temas: fonologia, sociolinguís- tica variacionista e aquisição da linguagem. Presidente da ABRALIN e delegado da ALFAL no Brasil. e-mail:
[email protected] Juliene Lopes R. Pedrosa é mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Professora titular da Uni- versidade estadual da Paraíba. tem experiência na área de Letras , com ênfase em Língua Portuguesa. Atuando principalmente nos seguintes temas: teoria Fonológica, Variação. e-mail:
[email protected] resumo A teoria da Otimalidade Clássica (PRINCe; SMOLeNSKY, 1993; McCARtHY; PRINCe, 1993) estabelece distinção entre o candidato ótimo e os demais. A proposta de Coetzee (2004), contudo, propõe um ordenamento harmônico para o conjunto completo dos candidatos, de forma que os perdedo- res também sejam ordenados entre si, permitindo considerar fenômenos não categóricos. De posse dessa perspectiva, objeti- vamos estabelecer uma provável hierarquia para a realização da fricativa coronal em coda medial e fnal em uma língua parti- cular, a comunidade paraibana. Indicaremos, dessa forma, não só o candidato ótimo, mas também a ordenação dos demais candidatos, ou seja, daqueles que são variantes. Para a realização desse trabalho, utilizamos resultados da coda medial (HORA, 2003) e fnal (RIBeIRO, 2006), extraídos do corpus do Projeto Variação Linguística no estado da Paraíba – VALPB (HORA; PeDROSA, 2001), que foi coletado à luz da metodologia labo- viana. Proporemos, assim, o tratamento de um processo variá- vel sob uma perspectiva formal, contribuindo para um repensar da proposta teórica, além de efetivar um estudo detalhado e de inquestionável importância para a comunidade paraibana. introdução As discussões sobre a variação linguística a partir de uma teoria formal têm sido bem mais profícuas. Desde a década de 60, com o avanço da teoria gera- tiva, essencialmente voltada para a competência dos falantes, a necessidade de se entender e destinar um lugar para a variação tornou-se ainda maior. A teoria da Otimalidade (Ot), contudo, em sua versão clássica (PRINCe e SMOLeNSKY, 1993; McCARtHY e PRINCe, 1993), não traba- lha com a variação intradialetal. Nessa perspectiva, o avaliador (eVAL) distingue o candidato ótimo dos candidatos perdedores, mas tal distinção não se dá entre os candidatos perdedores, colocando em um mesmo parâmetro candidatos possíveis de 47 dermeval da hora & juliene lopes r. pedrosa | rumos que seguem as fricativas coronais no português No caso da proposta de Selkirk (1982), a estrutura da sílaba é organizada em dois níveis. No primeiro, estão o ataque e a rima; e, no segundo, a rima está subdividida em núcleo e coda, como podemos visualizar no esquema a seguir: (2) s (= sílaba) Ataque Rima Núcleo Coda Por essa estrutura, fca explícito que a relação entre o núcleo e a coda é mais intrínseca do que entre o ataque e o núcleo. As posições de ataque e núcleo não precisam estar sempre preenchidas, enquanto a de núcleo é considerada o coração da sílaba, não podendo, pois, fcar vazia. Acredi- tamos, assim, que essa proposta demonstra com mais propriedade a relação entre os constituintes silábicos, por isso a tomaremos como base para a nossa discussão. Passando ao preenchimento dos constituintes silábicos, observamos que, no Português Brasi- leiro (PB), todas as consoantes podem fgurar na primeira posição do ataque, a segunda posição, contudo, só pode ser preenchida pelas consoan- tes /r/ e /l/ para formar os grupos consonantais, a exemplo de [pr], [bl], [f], [vr]. No caso do núcleo, as vogais são as responsá- veis pelo seu preenchimento. Bisol (1989) afrma, no entanto, que os ditongos leves ou falsos 1 são ligados a um único elemento V, ou seja, vogais e semivogais estão ligadas ao núcleo, mas unica- mente nesse caso. Na posição de coda, apenas as consoantes /r, l, n, s/ e as semivogais podem aparecer, estas for- mando o ditongo verdadeiro. Outro ponto que pode ser depreendido a partir da proposta de Selkirk(1982) é o fato de que a coda é a posição mais débil da estrutura silábica, por isso, é bas- tante suscetível à variação em qualquer que seja a sua posição dentro da palavra, acentuando-se ainda mais na posição fnal. 1 Para Bisol (1989), ditongos leves ou falsos surgem diante de con- soante palatal, podendo apresentar variação com monotongos. se realizarem (variantes) e candidatos impossíveis de se realizarem na língua analisada (non-sense). A proposta de Coetzee (2004) defende que o eVAL proceda de forma diferente, que estabeleça um ordenamento harmônico das formas hierar- quizadas para o conjunto completo dos candida- tos, de forma que os perdedores sejam também ordenados entre si. Assim, este modelo permite considerarmos fenômenos não categóricos, a exemplo dos relacionados à variação. Para a realização desse trabalho, utilizamos o corpus do Projeto Variação Linguística no estado da Paraíba – VALPB (HORA; PeDROSA, 2001), coletado à luz da metodologia laboviana e tratado estatisticamente através do gOLDVARB. Nosso objetivo é estabelecer uma provável hie- rarquia para a realização do /S/ na coda medial e fnal do falar pessoense, a exemplo de: doi[s] : doi[∫] : doi[z] : doi[3] : doi[h] : doi[Ø], me[z]mo : me[3] mo : me[h]mo : me[Ø]mo, pa[s]ta : pa[∫]ta; indi- cando não só o candidato ótimo, mas também a ordenação dos demais candidatos entre si. Com isso, efetivaremos o casamento entre a Sociolinguística e a Otimalidade, contribuindo para um estudo detalhado de um fenômeno de inquestionável importância para a comunidade paraibana, e que também oferece contribuições para um repensar da proposta teórica de forma mais geral. discutindo a sílaba Os trabalhos de Hooper (1976) e Kahn (1976) propiciaram aceitar a sílaba como unidade fonoló- gica e, consequentemente, como objeto de estudo para o entendimento da fonologia das línguas. em linhas gerais, duas propostas foram lança- das para dar conta da estrutura interna da sílaba, a de Kahn (1976) e a de Selkirk (1982). A proposta de Kahn(1976) propõe que os segmentos, independentes entre si, estão ligados diretamente ao nó da sílaba. Assim, teríamos a seguinte estrutura: (1) s (= sílaba) m a s 48 dermeval da hora & juliene lopes r. pedrosa | rumos que seguem as fricativas coronais no português Passemos primeiramente ao comportamento da coda medial. Segundo Hora (2003), o /s/ em coda medial apresenta maior uso da fricativa coronal alveolar (6164/9517), seguida da frica- tiva coronal palatal (2661/9517). A fricativa glo- tal apresenta pouca produtividade (583/9517), estando restrita aos itens mesmo ~ me[h]mo e desde ~ de[h]de. O apagamento também é pouco produtivo (109/9517) e limita-se ao item mesmo ~ me[Ø]mo. Para melhor visualizarmos as frequên- cias de uso de cada variante, vejamos o gráfco 1. Gráfco 1: Resultados do /S/ em Coda Medial É importante salientar que a variante palatal, em coda medial, está restrita ao contexto seguinte /t,d/. Nos demais contextos seguintes, é a coda alveolar que aparece, como mostram os exemplos em 2: (2) pa[∫]ta ca[s]ca *ma[3]da ra[z]go alpi[∫]te e[s]fera de[3]de re[z]vela de[3]dém a[z]ma ca[∫]to a[z]no Passemos, então, ao comportamento da coda fnal. O /S/ nessa posição também apresenta as variantes alveolar, palatal, glotal e o apagamento. Mas, diferente da coda medial, as variantes mais produtivas são a alveolar (4462/7034) e a variante zero (1718/7034). As variantes glotal (434/7034) e palatal (420/7034) são pouco produtivas. No caso da coda fnal observamos que a oposição se dá efetivamente entre a frequência de uso da alve- olar e a variante zero, como o gráfco 2 explicita: Gráfco 2: Resultado do /S/ em Coda Final Reforçamos, dessa forma, que os padrões silábicos do PB se encaixam na estrutura (C) V(C), sendo o ataque e a coda não obrigatórios. É consenso na literatura sobre a sílaba a tendên- cia universal das línguas ao padrão CV, sendo confrmada pelo apagamento das consoantes em posição de coda, a exemplo da fricativa coro- nal /S/, como veremos a seguir na descrição dos dados. descrição do /s/ em coda: falar paraibano Como vimos, a coda silábica é bastante propícia à variação dialetal, principalmente por ser a posi- ção mais débil da estrutura silábica, não diferindo quando do seu preenchimento pelo /S/. No falar paraibano, observamos que nos vários contextos, se coda medial ou fnal, como em 1, o /S/ se apresenta variável, ora como alveolar, ora como palatal, como glotal e, até mesmo, sofrendo apagamento. Há, no entanto, que ressaltar que o comportamento das variantes se modifca a depen- der da posição da sílaba na palavra. (1) Coda Coda Coda medial fnal medial e fnal pas.ta mais mas.truz des.de lápis cus.cuz as.ma arroz as.no ônibus es.fera talvez ras.go paz cus.pe vez res.vala giz cas.ca depois Para descrevermos detalhadamente essa coda, utilizaremos os trabalhos sociolinguísticos de Hora (2003) e Ribeiro (2006) sobre a coda medial e a fnal, respectivamente. Os dados utilizados foram extraídos do corpus do Projeto Variação Linguística no estado da Para- íba – VALPB (HORA; PeDROSA, 2001), consti- tuído de 60 informantes estratifcados socialmente em sexo, faixa etária e anos de escolarização. (1) CODA CODA CODA MEDIAL FINAL MEDIAL E FINAL pas.ta mais mas.truz des.de lápis cus.cuz as.ma arroz as.no ônibus es.fera talvez ras.go paz cus.pe vez res.vala giz cas.ca depois Para descrevermos detalhadamente essa coda, utilizaremos os trabalhos sociolingüísticos de Hora (2003) e Ribeiro (2006) sobre a coda medial e a final, respectivamente. Os dados utilizados foram extraídos do corpus do Projeto Variação Lingüística no Estado da Paraíba – VALPB (HORA; PEDROSA, 2001), constituído de 60 informantes estratificados socialmente em sexo, faixa etária e anos de escolarização. Passemos primeiramente ao comportamento da coda medial. Segundo Hora (2003), o /s/ em coda medial apresenta maior uso da fricativa coronal alveolar (6164/9517), seguida da fricativa coronal palatal (2661/9517). A fricativa glotal apresenta pouca produtividade (583/9517), estando restrita aos itens mesmo ~ me[h]mo e desde ~ de[h]de. O apagamento também é pouco produtivo (109/9517) e limita-se ao item mesmo ~ me[Ø]mo. Para melhor visualizarmos as freqüências de uso de cada variante, vejamos o gráfico 1. Gráfico 1: Resultados do /S/ em Coda Medial É importante salientar que a variante palatal, em coda medial, está restrita ao contexto seguinte /t,d/. Nos demais contextos seguintes, é a coda alveolar que aparece, como mostram os exemplos em 2: (2) pa[ȉ]ta ca[s]ca 1% 65% 28% 6% me0mo Alveolar Palatal mehmo/dehde (1) CODA CODA CODA MEDIAL FINAL MEDIAL E FINAL pas.ta mais mas.truz des.de lápis cus.cuz as.ma arroz as.no ônibus es.fera talvez ras.go paz cus.pe vez res.vala giz cas.ca depois Para descrevermos detalhadamente essa coda, utilizaremos os trabalhos sociolingüísticos de Hora (2003) e Ribeiro (2006) sobre a coda medial e a final, respectivamente. Os dados utilizados foram extraídos do corpus do Projeto Variação Lingüística no Estado da Paraíba – VALPB (HORA; PEDROSA, 2001), constituído de 60 informantes estratificados socialmente em sexo, faixa etária e anos de escolarização. Passemos primeiramente ao comportamento da coda medial. Segundo Hora (2003), o /s/ em coda medial apresenta maior uso da fricativa coronal alveolar (6164/9517), seguida da fricativa coronal palatal (2661/9517). A fricativa glotal apresenta pouca produtividade (583/9517), estando restrita aos itens mesmo ~ me[h]mo e desde ~ de[h]de. O apagamento também é pouco produtivo (109/9517) e limita-se ao item mesmo ~ me[Ø]mo. Para melhor visualizarmos as freqüências de uso de cada variante, vejamos o gráfico 1. Gráfico 1: Resultados do /S/ em Coda Medial É importante salientar que a variante palatal, em coda medial, está restrita ao contexto seguinte /t,d/. Nos demais contextos seguintes, é a coda alveolar que aparece, como mostram os exemplos em 2: (2) pa[ȉ]ta ca[s]ca 1% 65% 28% 6% me0mo Alveolar Palatal mehmo/dehde *ma[߯]da ra[z]go alpi[ȉ]te e[s]fera de[߯]de re[z]vela de[߯]dém a[z]ma ca[ȉ]to a[z]no Passemos, então, ao comportamento da coda final. O /S/ nessa posição também apresenta as variantes alveolar, palatal, glotal e o apagamento. Mas, diferente da coda medial, as variantes mais produtivas são a alveolar (4462/7034) e a variante zero (1718/7034). As variantes glotal (434/7034) e palatal (420/7034) são pouco produtivas. No caso da coda final observamos que a oposição se dá efetivamente entre a freqüência de uso da alveolar e a variante zero, como o gráfico 2 explicita: Gráfico 2: Resultado do /S/ em Coda Final É interessante observar que a variante glotal teve a mesma freqüência em posição medial e final (6%), mostrando pouca produtividade nas duas posições. A freqüência da variante alveolar (65%) também é a mesma nas duas posições, além de manter-se, independente da posição, com a mesma média de distância em relação à segunda variante: 28% para a variante zero e 24% para variante palatal. Indicando, dessa forma, a predominância da fricativa coronal alveolar na coda silábica. Outro fato interessante é que as variantes palatal e zero têm comportamento inverso a depender da posição da coda. Em coda medial, a variante palatal é a segunda mais freqüente (28%), tornando-se a menos produtiva quando a coda é final (5%). A variante zero, por sua vez, é muito pouco produtiva na posição medial (1%), tornando-se a segunda mais produtiva na posição final (24%). 3. Teoria da Otimalidade e Variação As concepções teóricas que antecederam a Teoria da Otimalidade (TO) buscavam propor e formular regras para dar conta dos processos fonológicos existentes nas línguas. O trabalho de Chomsky e Hale (1968) tornou-se um dos 24% 65% 5% 6% Apagamento Alveolar Palatal Glotal *ma[߯]da ra[z]go alpi[ȉ]te e[s]fera de[߯]de re[z]vela de[߯]dém a[z]ma ca[ȉ]to a[z]no Passemos, então, ao comportamento da coda final. O /S/ nessa posição também apresenta as variantes alveolar, palatal, glotal e o apagamento. Mas, diferente da coda medial, as variantes mais produtivas são a alveolar (4462/7034) e a variante zero (1718/7034). As variantes glotal (434/7034) e palatal (420/7034) são pouco produtivas. No caso da coda final observamos que a oposição se dá efetivamente entre a freqüência de uso da alveolar e a variante zero, como o gráfico 2 explicita: Gráfico 2: Resultado do /S/ em Coda Final É interessante observar que a variante glotal teve a mesma freqüência em posição medial e final (6%), mostrando pouca produtividade nas duas posições. A freqüência da variante alveolar (65%) também é a mesma nas duas posições, além de manter-se, independente da posição, com a mesma média de distância em relação à segunda variante: 28% para a variante zero e 24% para variante palatal. Indicando, dessa forma, a predominância da fricativa coronal alveolar na coda silábica. Outro fato interessante é que as variantes palatal e zero têm comportamento inverso a depender da posição da coda. Em coda medial, a variante palatal é a segunda mais freqüente (28%), tornando-se a menos produtiva quando a coda é final (5%). A variante zero, por sua vez, é muito pouco produtiva na posição medial (1%), tornando-se a segunda mais produtiva na posição final (24%). 3. Teoria da Otimalidade e Variação As concepções teóricas que antecederam a Teoria da Otimalidade (TO) buscavam propor e formular regras para dar conta dos processos fonológicos existentes nas línguas. O trabalho de Chomsky e Hale (1968) tornou-se um dos 24% 65% 5% 6% Apagamento Alveolar Palatal Glotal 49 dermeval da hora & juliene lopes r. pedrosa | rumos que seguem as fricativas coronais no português das restrições-chave. A fonologia, então, poderia ser caracterizada como um conjunto universal de restrições hierarquicamente dispostas com base em língua específca, ou seja, a depender do orde- namento das restrições, será obtida a estrutura fonológica de uma língua em particular. A relação entre o input e o output é submetida a três componentes: geN, que gera os outputs possíveis para cada input, CON, que possui o conjunto universal de restrições não ordenadas e AVAL, que avalia qual é o output ótimo dentre os possíveis, observando a hierarquia das restrições. Assim, todos os outputs possíveis são gerados e avaliados de acordo com o ranking de restrições da língua até se encontrar o output ótimo. A gramática consiste, então, de um conjunto de restrições de boa-formação. essas restrições, que são violáveis, se aplicam simultaneamente a representações de estruturas. Além disso, as res- trições são potencialmente confitantes, inclusive devido à sua natureza de fdelidade e de marcação, e esse conjunto de restrições é compartilhado por todas as línguas, formando parte da gramática Universal. As línguas específcas, como mencionado, classifcam essas restrições universais de maneira diferente, de forma que as restrições que ocupam a posição mais alta no ranking têm domínio total sobre aquelas que ocupam posição mais baixa. Os outputs gerados para cada forma subjacente são avaliados por meio do ordenamento das restrições e o que melhor satisfaz as restrições mais altas é o candidato ótimo e será a forma realizada. É importante salientar que todos os candida- tos violam alguma restrição, o que propicia a esco- lha do AVAL é justamente o fato de o candidato violar as restrições mais baixas no ordenamento para aquela língua, sendo, portanto, o escolhido como ótimo. Os relevantes princípios da tO são a universa- lidade (as restrições são universais); a violabilidade (as restrições são violáveis) e o ordenamento (as restrições são ordenadas hierarquicamente com base em língua específca e a violação é defnida com base nesse fato), portanto, uma gramática de uma língua é um ordenamento do CON. A tO consegue dar conta da variação entre as línguas de forma bastante simples. Isso se modi- É interessante observar que a variante glotal teve a mesma frequência em posição medial e fnal (6%), mostrando pouca produtividade nas duas posições. A frequência da variante alveolar (65%) também é a mesma nas duas posições, além de manter-se, independente da posição, com a mesma média de distância em relação à segunda variante: 28% para a variante zero e 24% para variante palatal, indicando, dessa forma, a predominância da fricativa coronal alveolar na coda silábica. Outro fato interessante é que as variantes pala- tal e zero têm comportamento inverso a depender da posição da coda. em coda medial, a variante palatal é a segunda mais frequente (28%), tor- nando-se a menos produtiva quando a coda é fnal (5%). A variante zero, por sua vez, é muito pouco produtiva na posição medial (1%), tornando-se a segunda mais produtiva na posição fnal (24%). teoria da otimalidade e variação As concepções teóricas que antecederam a teoria da Otimalidade (tO) buscavam propor e formu- lar regras para dar conta dos processos fonológicos existentes nas línguas. O trabalho de Chomsky e Hale (1968) tornou-se um dos mais profícuos, servindo de base para outras teorias baseadas em regras, a exemplo da teoria Autossegmental (gOL- DSMItH,1976), a teoria da Sílaba (HOOPeR, 1976; KAHN, 1976; SeLKIRK, 1982), dentre outras. A tO, desenvolvida por Alan Prince, Paul Smolensky e John McCarthy (PRINCe; SMO- LeNSKY,1991 e MCCARtHY; PRINCe, 1993), torna-se a primeira abordagem não derivacional. A partir dessa abordagem surgiu a convic- ção de que as formas de superfície são geradas de acordo com certas restrições universais de boa- formação. A sua ideia central é que a língua é um sistema de forças confitantes, expressas através de restrições de fdelidade e marcação que fazem exi- gência sobre algum aspecto das formas dos outputs gramaticais. Para a tO, as línguas diferem não em inventá- rio de restrições, mas no ordenamento de tais res- trições. Assim, a variação entre línguas é explicada, de forma simples, pelo ordenamento diferenciado 50 dermeval da hora & juliene lopes r. pedrosa | rumos que seguem as fricativas coronais no português Antes, porém, de adentrarmos na análise em si, a fm de melhor esclarecermos as diferenças entre as propostas da tO Clássica (PRINCe; SMOLeNSKY, 1993 e MCCARtHY ; PRINCe, 1993) e a de Coetzee (2004), exporemos alguns pontos cruciais que fundamentam as duas: proposta 1: a. prince e p. smolensky, 1993; j. mccarthy e a. prince, 1993 "Há hierarquia para as restrições "Não há hierarquia para os candidatos (só seleciona o candidato ótimo) proposta 2: a. w. coetzee, 2004 "Há hierarquia para as restrições "Há hierarquia para os candidatos (exceto para os nonsense) Como podemos depreender do exposto, no modelo clássico, os inputs são avaliados de acordo com o ranking das restrições daquela gramática, separando o output ótimo dos demais, ou seja, os outros candidatos estariam em um mesmo nível. Coetzee (2004), por outro lado, propõe que o AVAL volte e estabeleça dentre os candidatos descartados o melhor candidato e assim proces- saria até hierarquizar todas as variantes. essa hie- rarquia também seria estabelecida de acordo com o ranking das restrições. Um ponto que merece ressalva é o fato de que a frequência de uso seria utilizada para especifcar a probabilidade de aceita- ção daquele candidato pelo falante, relacionando o desempenho à competência linguística. e isso distinguiria os inputs que se caracterizam como variantes daqueles que são possíveis, mas nunca prováveis de acontecer. analisando a coda Antes de passarmos à análise das codas medial e fnal, consideramos relevante discutir um pouco sobre as restrições que utilizaremos: IDeNt-IO, MAx-IO e NOCODA. fca, contudo, quando a variação é intradialetal. A vertente clássica da tO trata as duas variações da mesma maneira, atribuindo uma gramática para cada forma variante, o que seria pouco eco- nômico, ou ainda, que algumas restrições não sejam classifcadas entre si, abrindo espaço para a ideia de que a variação é um caso de opcionali- dade aleatória em um sistema estático. Uma proposta com base na tO que tem se apresentado consistente para o tratamento da variação intradialetal é a de Coetzee (2004). Por essa perspectiva, uma gramática apresenta as restri- ções hierarquizadas para que o avaliador selecione não só o output ótimo, mas também os candidatos que são variantes, ordenando-os entre si. Segundo Coetzee (2004), existe uma linha de corte, adquirida na comunidade de fala, que divide as restrições que dão conta dos candidatos non sense das que ordenam os candidatos que são variantes. O ordenamento das variantes é obtido através da frequência de uso na comunidade de fala, propiciando a correlação do social com a variação linguística. O interessante nessa perspectiva é o fato de que ela não vai de encontro ao princípio de riqueza de base defendido pela tO Clássica, que propõe que o geN gera um número infnito de outputs, de onde será selecionado pelo AVAL o candidato ótimo, ou ainda, as variantes. O modelo teórico é preservado, não havendo distinção entre as con- cepções básicas defendidas pela tO Clássica, o que a torna uma teoria forte. Outro ponto a favor do proposto por Coet- zee(2004) é o fato de que é uma proposta bastante econômica, já que não pressupõe uma gramática para cada variação, resolvendo a questão da aqui- sição da língua e da variação intradialetal. aplicando a teoria à coda A nossa análise sobre o /S/ em posição de coda terá por base os dados reais de fala descritos na seção anterior. Como trataremos de variação intradialetal, utilizaremos a tO, sob a perspectiva de Coetzee (2004), como suporte teórico, já que acreditamos que ela propicia uma análise fonoló- gica bastante efcaz em relação à variação. 51 dermeval da hora & juliene lopes r. pedrosa | rumos que seguem as fricativas coronais no português mos observar, em dado momento, as codas medial e fnal na mesma tabela: IDeNts " identidade entre o número de sílabas do input e do output. MAx (codamedial) " não apagar a coda medial. MAx (codafnal) " não apagar a coda fnal. NOCODA [+cont., +cor., +ant.] " evitar coda [s,z] NOCODA [+cont., +cor., –ant.] " evitar coda [∫, 3] NOCODA [+cont., -cor., -ant.] " evitar coda [h] Acreditamos, dessa forma, que as contextua- lizações atribuídas por nós às restrições IDeNt, MAx e NOCODA consigam dar conta do pro- cesso em análise. Coda Medial Retomando os dados da seção 2, observamos a seguinte ordem de frequência de uso para a frica- tiva em posição de coda medial: 65% para [s,z], 28% para [∫,3], 6% para [h] e 1% para [Ø]. Isso nos daria a seguinte ordem de restrições para o /S/ em coda medial: max (codamedial) (1%)>> nocoda [+cont., -cor., -ant.] (6%) >> nocoda [+cont., +cor., –ant.] (28%) >> nocoda [+cont., +cor., +ant.] (65%). Segundo Archangeli (1997), as restrições de fdelidade prezam pela relação fel entre o input e o output, buscando, assim, mostrar a corres- pondência intrínseca entre a forma subjacente e a forma ótima que será produzida. São restrições de fdelidade: IDeNt-IO " que prevê que os segmentos do output sejam correspondentes aos do input, ou seja, o input e o output precisam ser iguais. MAx-IO " que prevê que todo elemento do input tenha um correspondente no output, ou seja, evita o apagamento de segmentos no output. Já as restrições de marcação, elas lidam com a questão do que é universal (menos marcado) e o que é particular (mais marcado) nas línguas (ARCHANgeLI, 1997). Por isso, a restrição NOCODA estaria aqui inclusa, já que prevê a tendência a não existirem codas nas línguas, sendo a sua violação uma questão de língua particular, ou seja, uma forma mais marcada. É importante salientar que as restrições, mui- tas vezes, são especifcadas quanto ao contexto, a fm de melhor darem conta dos processos. Aqui, faremos uso dessas especifcações, já que precisare- Tabela 1: /S/ em Coda Medial /mesmo/ Idents Max (codamedial) NoCoda [+cont., -cor., -ant.] NoCoda [+cont., +cor., –ant.] NoCoda [+cont., +cor., ant.] ?[‘mez.mu] * ?[‘me3.mu] * ?[‘meh.mu] * ?[‘meØ.mu] * [‘me.si.mu] *! Observamos na tabela 1 que o candidato [´me. si.mu] viola fatalmente, já que a restrição está antes da linha de corte, que separa os outputs non sense dos candidatos variantes. Os demais candidatos, por serem variantes, estarão ordenados quanto à frequência de uso. Apesar de ‘mesmo’ ser o único item lexical a apagar em coda medial, entendemos que a linha de corte estará antes de MAx (codamedial) porque acre- ditamos haver uma tendência ao aumento da fre- quência de uso com esse item, abrangendo, inclu- sive, outros itens, como [deyØde], já observado na comunidade de fala em estudo em situações informais. Coda Final Ainda, segundo os dados da seção 2, o comporta- mento da fricativa em posição coda fnal apresenta a seguinte frequência de uso: 65% para [s,z], 24% para [Ø], 6% para [h] e 5% de [∫,3], o que nos remeteria ao seguinte ordenamento das restrições: nocoda [+cont., +cor., –ant.] (5%) >> nocoda [+cont., -cor., –ant.] (6%) >> max (codafnal) (24%) >> nocoda [+cont., +cor., +ant.] (65%). 52 dermeval da hora & juliene lopes r. pedrosa | rumos que seguem as fricativas coronais no português Tabela 2: /S/ em Coda Final /onibus/ Idents NoCoda [+cont.,+cor., -ant.] NoCoda [+cont.,-cor.,-ant.] Max (codafnal) NoCoda [+cont.,cor.,+ant.] ?[‘õ.ni.bus] * ?[‘õ.ni.buØ] * ?[‘õ.ni.buh] * ?[‘õ.ni.bu∫] * [õ.ni.´bu.si] *! Como visualizamos na tabela 2, o candidato [õ.ni.´bu.si] viola fatalmente a restrição Ident s que está antes da linha de corte, sendo, portanto, o candidato non sense; já os demais candidatos são ordenados segundo as restrições após a linha de corte. Codas Medial e Final Passemos, agora, à análise de um item que apresenta tanto coda medial quanto fnal, para buscarmos uma ordenação única das restri- ções, baseada na frequência de uso de cada uma delas. Segundo os resultados das codas em separado, as variantes [s,z] e [h] apresentam a mesma fre- quência independendo da posição medial ou fnal, 65% e 6%, respectivamente. Já as variantes [∫,3] e [Ø] têm frequência inversa, dependendo da posi- ção medial ou fnal: 28% e 5% para [∫,3] e 1% e 24% para [Ø], respectivamente. essas frequências nos dariam a seguinte ordem de restrições: max (codamedial) (1%) >> nocoda (fnal)[+cont., +cor., -ant.] (5%) >> nocoda [+cont., -cor., -ant.] (6%) >> max (codafnal) (24%) >> nocoda [+cont., +cor., -ant.] (28%) >> nocoda [+cont., +cor., +ant.] (65%). Tabela 3: /S/ em Coda Medial e Final /kuskus/ Idents NoCoda (fnal) [+cont.,+cor.,-ant.] NoCoda [+cont.,-cor.,-ant.] Max (codafnal) NoCoda [+cont.,+cor.,-ant.] NoCoda [+cont.,+cor.,+ant] ?[kus.‘kuys] ** ?[ku∫.‘kuys] * * ?[kus.‘kuyØ] * * ?[kuh.‘kuys] * * ?[kus.‘kuyh] * * ?[kus.‘kuy∫] * * * [ku. si..‘kuys] *! * Observamos na tabela 3 que o item [ku. si.‘kuys] viola fatalmente a restrição IDeNts. Os outros candidatos são ordenados de acordo com a frequência de uso, garantida pela ordem das res- trições. Por questões de melhor visualização, não colo- camos a restrição MAx (codamedial) , mas salientamos que esta restrição seria a primeira depois da linha de corte, sendo violada por qualquer candidato que apague a coda medial (cu[Ø]cuz), devido à sua baixa frequência de uso. 53 dermeval da hora & juliene lopes r. pedrosa | rumos que seguem as fricativas coronais no português referências bibliográficas ARCHANgeLLI, Diana. “Optimality theory: an intro- duction to linguistics in the 1990s”. 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Apresenta como elemento dife- rencial a distinção entre os candidatos non sense daqueles que são variantes, tornando possível um ordenamento entre as variantes com base na sua frequência de uso. Os trabalhos sobre a fricativa coronal em coda medial (HORA, 2003) e fnal (RIBeIRO, 2006) confrmaram um processo em variação, em que a coda pode assumir as formas alveolar, palatal, glotal e zero nas duas posições. Constatamos que, independentemente da posição que a coda ocupe, a variante alveolar é a mais frequente e a glotal, pouco produtiva. As variantes palatal e zero têm comportamento inverso em relação à posição medial ou fnal. A coda palatal é a segunda mais frequente na posi- ção medial, tornando a menos produtiva na posi- ção fnal, e a variante zero apresenta-se de forma inversa. A perspectiva de Coetzee (2004) ratifcou que a frequência de uso auxilia no tratamento do /S/ em coda, propiciando, a partir disso, o ordenamento das restrições e das variantes: max (codamedial) (1% - coda medial zero) >> nocoda (fnal)[+cont., +cor., -ant.] (5% - coda fnal palatal) >> nocoda [+cont., -cor., -ant.] (6% - codas medial e fnal glotal) >> max (codafnal) (24% - coda fnal zero) >> nocoda [+cont., +cor., -ant.] (28% - coda fnal palatal) >> nocoda [+cont., +cor., +ant.] (65% - codas medial e fnal alveolar). Há, ainda, muito a ser proposto para o tra- tamento da fricativa coronal em coda silábica, mas entendemos que as considerações suscitadas aqui são de extrema relevância para tal, servindo como ponto de partida para discussões mais aprofundadas. 54 a questão do “encaixamento” da mudança e o parâmetro do sujeito nulo * Maria Eugenia Lamoglia Duarte é Professora Associada da Faculdade de Letras da UFRJ. Atua na área de Sociolinguística, com especial interesse em mudanças sintáticas relacionadas ao sistema pronominal, que per- mitem caracterizar o português brasileiro como uma lin- gua parcialmente orientada para o discurso. e-mail:
[email protected] resumo O texto investiga o encaixamento da mudança relativa à remarcação do Parâmetro do Sujeito Nulo no português bra- sileiro, ou seja, busca mostrar que outros fenômenos variáveis notados no PB não são casuais, mas sim subprodutos estreita- mente ligados a essa mudança mais ampla no sistema. abstract the article investigates the embedding of the change related to the re-setting of the Null Subject Parameter in Brazilian Portuguese, that is, it shows that other variable phenomena observed in BP are not due to chance, but are deeply embed- ded in a wider change in the system. 1. introdução Weinreich, Labov & Herzog (1968 [2006:110]), ao apresentarem o problema do “encaixamento” da mudança, do inglês “embedding”, afrmam que “os linguistas naturalmente desconfam de qual- quer explicação da mudança que deixe de mostrar a infuência do ambiente estrutural sobre o traço em questão: é razoável presumir que esse traço esteja encaixado numa matriz linguística que muda com ele” 1 . em outras palavras, todo estudo de um processo de mudança deveria tentar responder a seguinte questão: “Que outras mudanças estão associadas a uma determinada mudança de um modo que não pode ser atribuído ao acaso?” (W, L & H. 2006: 36) 2 . * Os resultados aqui resumidos são fruto do desenvolvimento de dois projetos realizados com o apoio de bolsa de produtivi- dade CNPq (Proc. 350731/99-3). Uma versão preliminar se encontra publicada em Duarte (2004). 1 Do original “linguists are naturally suspicious of any account of change which fails to show the infuence of the structural environ- ment upon the feature in question” (W, L & H 1968:172). 2 Do original “what other changes are associated with a given change in a manner which cannot be attributed to chance?” (W, L & H 1968:101) este artigo examina o encaixamento da mudança na marcação do Parâmetro do Sujeito Nulo, bus- cando identifcar os possíveis “efeitos colaterais” resultantes desse processo em direção aos sujeitos pronominais expressos no português brasileiro (PB). Na seção seguinte apresentamos brevemente alguns resultados que atestam a preferência por sujeitos referenciais (defnidos e arbitrários) expres- sos, bem como o aparecimento de estruturas com sujeitos deslocados à esquerda (De), uma cons- trução incompatível com línguas de sujeito nulo, como o italiano, o espanhol e o português euro- peu (Pe), a primeira evidência do encaixamento da mudança. A seção 3 trata da representação dos sujeitos não referenciais ou expletivos, focalizando estratégias que permitem evitar um sujeito exple- tivo nulo, mais um efeito colateral da mudança. Finalmente, em 4, tecemos algumas considerações sobre as vantagens de associar pressupostos teóricos da teoria de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981) à análise da mudança desenvolvida nos mol- des do modelo teórico proposta em Weinreich, Labov & Herzog (1968 [2006]) e com a metodo- logia da Sociolinguística Quantitativa, uma vez que a primeira pode guiar o levantamento de hipóte- ses, o estabelececimento de fatores estruturais na 55 maria eugenia lamoglia duarte | a questão do “encaixamento” da mudança e o parâmetro do sujeito arbitrária (os indeterminados) tendem igualmente a ser foneticamente realizados, através do uso de formas pronominais nominativas, preferencial- mente você e a gente, como em (3,4): (1) De repente ela sabe que ela quando criança fcava meio triste por isso. (2) A casa virou um flme quando ela teve de ir abaixo. (3) Você quando você viaja, você passa a ser turista. então você passa a fazer coisas que você nunca faria no Brasil. (4) Hoje em dia, quando a gente levanta as coi- sas, é que a gente vê tudo o que aconteceu. Mas na época a gente não podia acreditar. A gente não acreditava nisso, primeiro porque a gente era novo. Uma comparação entre o PB e o Pe mostra resultados opostos tanto em relação aos sujeitos referenciais defnidos quanto arbitrários. Vejam-se os resultadps encontrados por Duarte (2000) para a fala culta nas duas variedades: Figura 1. Sujeitos preenchidos de referência defnida em Pe e PB Figura 2. Sujeitos de referência arbitrária em Pe e PB Os resultados percentuais não deixam dúvida quanto ao comportamento oposto nas duas varie- busca e a identifcação de estratégias decorrentes da mudança, ajudando a responder à pergunta apre- sentada no parágrafo anterior. 2. mudança paramétrica em progresso 2.1. Os sujeitos referenciais Os resultados diacrônicos de Duarte (1993), com base em peças de teatro de caráter popular, escri- tas nos séculos xIx e xx, mostram um processo de mudança em direção a sujeitos pronominais de referência defnida expressos, o que signifca dizer que houve uma remarcação no valor do Parâmetro do Sujeito Nulo em PB – de língua positivamente para língua negativamente marcada em relação a ele. essa mudança, segundo a análise de Duarte, acompanhou a mudança no nosso sistema prono- minal, que levou a uma crescente simplifcação no quadro fexional verbal. De um sistema com seis formas distintivas, passamos a quatro, quando você é preferido a tu ou ambos os pronomes são usados com a mesma forma verbal com morfema zero para número e pessoa. A entrada de a gente, para referência à primeira pessoa do plural, que também se combina com a forma verbal não mar- cada, leva a uma redução ainda maior. Podemos dizer que o paradigma fexional do PB apresenta três formas fexionais distintivas, que podem passar a duas se o falante não utilizar a marca de concordância para a segunda e terceira pessoas do plural. Os resultados para a última sincronia analisada por Duarte (1993) foram confrmados em análises da fala espontânea carioca em suas variedades culta (Duarte, 1995) e popular (Duarte, 2003a). De um modo geral, os índices de sujeitos expressos fcam entre 70% e 80%, ou seja, índices incompatíveis com línguas positivamente marcadas em relação ao PSN. Um primeiro aspecto a ser notado neste processo é o fato de a mudança, que começa pelos referentes com o traço [+a animado], como ilustra (1), atingir também, embora mais lentamente, os sujeitos com o traço [-animado], como se vê em (2), uma característica de línguas [-sujeito nulo], como o inglês e o francês. Além disso, não só os sujeitos de referência defnida mas os de referência ! 56 maria eugenia lamoglia duarte | a questão do “encaixamento” da mudança e o parâmetro do sujeito (11) Você, [no Canadá, você pode ser o que você quiser. em decorrência da crescente substituição de nós por a gente, e o consequente desuso da fe- xão <-mos>, os sujeitos compostos com elemen- tos na primeira pessoa do singular desencadeiam uma construção de De, particularmente na fala de gerações mais jovens (abaixo de 35 na nossa amostra), como se vê em (12-13): (12) Eu e a Paula, a gente fcava dizendo: “Hero- des tinha razão!” (13) Eu e o Mário a gente vai casar logo. 3. e os sujeitos não referenciais? Se levarmos em conta o encaixamento da mudança em curso, devemos a este ponto nos perguntar: se o PB se encaminha para sujeitos referenciais expres- sos não deveria igualmente preencher a posição dos sujeitos não referenciais ou expletivos? Vance (1989) nos conta que o francês antigo admitia o sujeito nulo não referencial (pro expl pleut / pro expl semble que...), mas desenvolveu um expletivo lexi- cal ao se tornar uma língua [-sujeito nulo] (il pleut / il semble que...). Não seria então natural esperar que, como consequência da mudança na marca- ção do Parâmetro do Sujeito Nulo no PB, surgisse no sistema um expletivo lexical ele, como parece estar ocorrendo no espanhol da República Domi- nicana? Segundo toribio (1996:418-422), essa variedade do espanhol passou a preencher não só os sujeitos referenciais mas desenvolveu um exple- tivo ello para preencher a posição dos sujeitos não referenciais com predicados impessoais (14a,b,c) e inacusativos (d,e): (14) a. Ello hay muchos mangos este año. b. Ello quiere llover. c. Ello parece que no hay azúcar. d. Ello se vende arroz. e. Ello llegan guagas hasta allá. A investigação de estruturas com sujeitos expletivos, no entanto, revela que o PB de fato começa a evitar o expletivo nulo, mas lança mão de soluções diferentes: uma delas diz respeito à dades: enquanto o Pe se comporta como uma lín- gua em que a forma não marcada é o sujeito nulo, no PB o resultado é o inverso. 2.2. Os sujeitos deslocados à esquerda Uma outra consequência da mudança aqui focali- zada é o aparecimento das construções com o sujeito deslocado à esquerda (De). De fato tais estruturas, primeiramente notadas por Pontes (1987) e Decat (1989), e apontadas como um dos tipos de cons- truções a denunciar a orientação do PB para o dis- curso, são frequentes no francês oral (Barnes, 1986 e Blanche-Benveniste, 1993), língua [-sujeito nulo]. Por outro lado, são incompatíveis com as línguas românicas [+sujeito nulo], como o italiano (Duranti & Ochs, 1979), o espanhol (Rivero, 1980) e o por- tuguês europeu (I. Duarte, 1987). Uma construção de De nessas línguas só ocorre sem adjacência sintá- tica e com valor de foco. Um exame de ocorrências do PB, entretanto, revela que tais construções não sofrem qualquer restrição, podendo aparecer sem ou com pausa, sem ou com elemento interveniente entre o elemento deslocado e a sentença comentário (5-6), em raízes ou encaixadas (7); o elemento des- locado pode ser defnido ou indefnido (8), quan- tifcado (9) ou mesmo um pronome de referência defnida ou arbitrária (10-11): 3 (5) A Clarinha ela cozinha que é uma maravilha. (6) A minha flha [quando era pequena], ela sempre desceu, sempre brincou lá. (7) eu acho [que o povo brasileiro ele tem uma grave doença]. (8) eu acho que um trabalho sério i ele i teria que começar por aí. (9) Qualquer pessoa i que vai praticar um esporte ela i tem que se preparar... (10) Eu [às vezes eu peço a ele pra ir comprar o jornal pra mim... 3 Com base em tais evidências, Kato (1999) propôs que, assim como o francês e o inglês, o PB desenvolveu um sistema com duas séries de pronomes, uma forte, que ocupa uma posição externa à sentença, e uma fraca, que substitui o pronome nulo sujeito, sem dúvida um subproduto da mudança em curso. Diferentemente do inglês ou francês, entretanto, os pronomes fortes do PB têm a forma nominativa (Me, I don´’t like beans/ eu, eu não gosto de feijão). 57 maria eugenia lamoglia duarte | a questão do “encaixamento” da mudança e o parâmetro do sujeito pletiva reduzida, o alçamento-padrão é quase categórico na fala: (18) a. pro expl Demorou pra ela decidir pra casar com ele. b. Ela i demorou pra t i decidir casar com ele. Quanto aos verbos inacusativos que selecio- nam um argumento interno representado por um SN, o PB apresenta ao lado da construção com um expletivo nulo, o alçamento do SN ou de parte dele, ou ainda de um locativo, ocupando a posi- ção do sujeito, estratégias primeiramente notadas por Pontes (1987) e Decat (1989): (19) pro expl Nasceu o flho da Maria [O flho da Maria] i nasceu t i (20) pro expl estão nascendo [os dentinhos dos gêmeos]. Os gêmeos i estão nascendo [os dentinhos t i ] (21) pro expl Não ocorreram acidentes [nessas loca- lidades]. Essas localidades não ocorreram acidentes t i . Outros verbos impessoais apresentam igual- mente a movimento visto acima ou a inserção de um demonstrativo, o que permite evitar o exple- tivo nulo: (22) a. Vê se pro expl ‘tá chovendo [por aquelas janelas]. b. Vê se aquelas janelas i tão chovendo t i . (23) a. pro expl Chove muito [em Petrópolis]. b. Petrópolis i chove muito t i (24) a. pro expl era em torno de dez pessoas. b. Isso era em torno de dez pessoas. (25) a. pro expl Fazia uns dois graus. b. Aquilo fazia uns dois graus. Como explicar essa preferência por elementos referenciais no PB? Uma consulta ao clássico texto de Li & thompson (1976) esclarece ainda mais o quadro que acabamos de desenhar em linhas gerais: o PB, sendo uma língua orientada, ainda que par- cialmente, para o discurso, não pode lançar mão de elementos expletivos lexicais. esta é uma das pro- priedades das línguas de orientação para o discurso, tendência de pessoalizar as orações existenciais, uma solução facilitada pela preferência de ter sobre haver. Duarte (2003b) mostra que as sentenças existenciais em (a) a seguir estão em variação com (b), sendo o pronome você o preferido para reali- zar foneticamente o sujeito expletivo: (15) a. Não é como no Rio de Janeiro, que em cada esquina, pro expl tem um bar pra você lan- char. b. Não é como no Rio de Janeiro, que você em cada esquina, você tem um bar pra você lanchar. (16) a. Hoje pro expl tem um grupo, uma parte da igreja, que está comprometida. b. Hoje a gente tem um grupo, uma parte da igreja, que está comprometida. Uma segunda solução se refere ao alçamento de constituintes para a posição do expletivo, evi- tando, mais uma vez, a posição de sujeito vazia. entre essas estruturas, vejamos as construções com verbos de alçamento, que selecionam ape- nas um argumento interno sob a forma de ora- ção, tendo disponível uma posição à esquerda, já que não selecionam argumento externo. em (17) vemos três estruturas com parecer, a primeira sem alçamento, a segunda com o alçamento-padrão (o movimento do sujeito da encaixada para a posi- ção disponível de sujeito da matriz) e a terceira, tratada como construção de hiperalçamento (cf. Martins & Nunes 2005 e no prelo): (17) a. pro expl Parece que eu vou explodir de raiva. b. eu i pareço explodir t i de raiva. c. Eu pareço que eu vou vou explodir de raiva. Hoje o PB oral apresenta uma concorrên- cia entre a estrutura em (a) e a estrutura em (c), com o verbo da oração encaixada fexionado e seu sujeito igualmente expresso (Duarte, 2007a), uma construção que tem seu crescimento ates- tado no estudo diacrônico de Henriques (2008). A construção em (b), praticamente extinta na fala, está em variação com (a) na escrita (cf. Duarte, 2007b), em índices bastante expressivos. Com os demais verbos de alçamento, como demorar, custar, levar, que selecionam uma com- 58 maria eugenia lamoglia duarte | a questão do “encaixamento” da mudança e o parâmetro do sujeito A entrada de estratégias apontadas para a fala vai se dando muito lentamente nos gêneros menos formais, como as crônicas (cf. Duarte 2007b). A investigação do percurso da mudança tem prosseguido, através do refnamento das análises na tentativa de descrever as etapas desse processo que consiste no desenvolvimento de estratégias para evitar o verbo em posição inicial (cf. 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Daí o PB lançar mão de operações de alçamento ou inserção de elementos referenciais para a posição de sujeito ou preferir sentenças existenciais pessoais (entre outras estraté- gias) para evitar uma posição de sujeito vazia Assim, a resposta parece estar na orientação do PB para o discurso, uma tendência levantada por Pontes (1987), investigada empiricamente em Decat (1989), Orsini & Vasco (2007), e teo- ricamente em estudos como os de galves (1987; 1998; 2001), Kato (1989, 1998), Negrão e Viotti (2000) entre outros. 4. considerações finais Com este breve resumo do percurso da mudança empreendida pelo PB, esperamos ter mostrado que o quadro teórico que norteia as análises permite mostrar que o conjunto de fenômenos observados no sistema não é casual; ao contrário, eles estão profundamente “encaixados” numa matriz de con- comitantes linguísticos. e o que nos permite rela- cioná-los é justamente o fato de associar ao estudo da mudança nos moldes de Weinreich, Labov & Herzog (1968 [2006]) alguns pressupostos da teoria de Princípios e Parâmetros, seguindo a tri- lha aberta por tarallo & Kato (1989 [2007]). essa associação tem orientado o estudo da mudança sintática, permitido levantar hipóteses para análi- ses quantitativas e qualitativas que ajudam não só a entender o traço que muda mas interpretar sua cor- relação com outros traços no sistema linguístico. A escrita ainda apresenta um quadro bem dis- tinto do observado na fala, seja pelo fato de a gra- mática normativa se espelhar na norma lusitana seja pela natural resistência da escrita à imple- mentação da gramática da língua oral. Já se nota, entretanto, a implementação do sujeito referencial defnido de terceira pessoa em entrevistas transcri- tas em revistas (Barbosa, Duarte & Kato 2005) e em artigos de opinião veiculados em jornais cario- cas. Os sujeitos de referência indeterminada e os não referenciais apresentam comportamento abso- lutamente oposto, com preferência pelo clítico indefnido se e expletivos nulos, respectivamente. 59 maria eugenia lamoglia duarte | a questão do “encaixamento” da mudança e o parâmetro do sujeito _______; DUARte, M. e. L (Micro)parametric variation between european (eP) and Brazilian Portuguese (BP): similarities and differences rela- ted to ongoing changes in Latin American Spanish. XIV Congresso Internacional da ALFAL, Monterrey, México. 2005. 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L. “Semantic and phonolo- gical constraints on the distribution of null subjects in Brazilian Portuguese.” Comunicação apresentada no NWAV32, Philadelphia, USA. 2003. 60 profundo, realizando pelo menos dez grandes via- gens, quando aprendeu a Língua geral. Sua obra mais conhecida – O Selvagem, com algumas edi- ções em português (1876, 1913, 1975) – foi tra- duzida e editada em várias línguas: francês, inglês, alemão e italiano. Reúne três ensaios: um estudo etnográfco sobre as etnias do Brasil central, que já havia sido publicado separadamente dois anos antes; um curso de tupi-língua geral e um con- junto denominado pelo autor de lendas tupis coletadas durante suas viagens (MAgALHÃeS, 1876b, pp. 64 e 90-81). 2. Charles Frederick Hartt (1840-1878), geólogo e geógrafo canadense, aluno do naturalista Louis Agassiz, com quem veio ao Brasil pela primeira vez (1865) na missão que estudou a fauna ictio- lógica da bacia amazônica. Voltou várias vezes ao país, quando foi nomeado chefe da Comissão geológica do Império (1875). Dirigiu o Museu Nacional (1876). Aprendeu o Nheengatu e, em suas viagens, coletou os mitos amazônicos sobre a tartaruga. Morreu no Rio de Janeiro (HARtt 1885 e 1938). 3. João Barbosa Rodrigues (1842-1909), flho de um comerciante português de Minas gerais. estu- dou no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, de nheengatu e português regional: línguas em contato na amazônia na literatura oral do século xix José Ribamar Bessa Freire é professor da Pós- graduação em Memória Social da Universidade Federal do estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio) e professor da UeRJ, onde coordena o Programa de estudos dos Povos Indígenas da Faculdade de educação. Ministra cursos de formação de professores indígenas em diferentes regiões do Brasil. Desenvolve pesquisas na área de História, com ênfase em História Social da linguagem, atuando princi- palmente nos seguintes temas: memória, literatura oral, patrimônio, fontes históricas, história indígena, Amazô- nia, línguas indígenas. Acutipuru ipurú nerupecê Cimitanga-miri uquerê uaruma No momento em que o romantismo nativista come- çava a dar sinais visíveis de esgotamento, podemos destacar pelo menos cinco estudiosos que se pre- ocuparam em coletar e transcrever manifestações de literatura oral – denominada atualmente por alguns autores como etnoliteratura – que circula- vam em Língua geral na Amazônia: 1. José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), nascido em Diamantina (Mg), numa fazenda de gado de seu avô, foi embalado em sua infância – como ele lembra muito bem – por “lendas tocan- tes e poéticas, metade cristãs, metade indígenas”. Cursou direito em São Paulo e, uma vez formado, foi nomeado presidente de várias províncias: goiás (1862-63), Pará (1864-65), Mato grosso (1866-1868), e fnalmente, São Paulo (1888). Depois de procurar “as cores do país” em arquivos e bibliotecas, foi buscá-las nos grotões do Brasil 1 Canção de ninar em Língua geral, cantada pelas mulheres tapuias e caboclas da Amazônia, conforme registro do cônego Francisco Bernardino de Souza, responsável pela tradução ao português: “Acutipuru, me empresta o teu sono, para minha criança também dormir” (SOUZA 1873, p.213). O acutipuru é um mamífero roedor de cauda comprida e enfeitada, que dorme o dia todo, depois de passar a noite em plena atividade. Vários grupos do rio Negro acreditam que é sob a forma de acutipuru que a alma das pessoas sobe ao céu, logo que o corpo acaba de apodrecer (StRADeLLI 1929, p. 362). 61 josé ribamar bessa freire | nheengatu e português regional Foi uma revelação. eu não havia lido nada mais deli- cioso. era um idioma novo. A linguagem tinha, às vezes, uma grandiosidade bíblica. No seu mundo, as árvores falavam. O sol andava de um lado para outro. Os flhos do trovão levavam, de vez em quando, o verão para o outro lado do rio. a literatura oral: couto de magalhães Te mandei um passarinho, / Patuá miri pupé Pintadinho de amarelo, / Iporanga ne iaué. 2 A literatura oral registrada por esses estudiosos revela, de um lado, a permanência vigorosa de narrativas indígenas em Língua geral, que con- tinuavam circulando oralmente no século xIx em algumas áreas como a bacia do rio Negro e do alto Solimões, e de outro, em cidades como Belém e Manaus, uma situação de bilinguismo Língua geral-português, bastante generalizada, porém ignorada pelos historiadores da região. Dos cinco coletores de narrativas indígenas, Couto de Magalhães – seguramente o mais avan- çado de todos, do ponto de vista epistemológico – merece um tratamento à parte. Interessa, aqui, destacar suas observações empíricas sobre a traje- tória tanto do português como da Língua geral na região, em sua dimensão literária. A viagem de estudos por ele realizada em 1873-74 pelos rios da Amazônia, com o objetivo de pesquisar demo- grafa e línguas indígenas, permitiu-lhe coletar no Pará um rico material de literatura oral, explo- rando os dados linguísticos nele contidos. A partir desse corpus, realizou um conjunto de observações agudas para recortar uma realidade sociolinguís- tica daquilo que ele próprio já denominava como “língua posta em contato com outra”, que só muito mais tarde, na década de 1950-60, seria objeto de estudo da linguística contemporânea. Preocupado com as modifcações sofridas pelas línguas em onde foi também professor. Viajou para Manaus em 1872, onde residiu e dirigiu o Museu Botânico. explorou alguns rios, incluindo a área dos índios conhecidos na época como Jauaperi, hoje Waimiri- Atroari. Aprendeu o Nheeengatu e coletou narrati- vas orais, contos e cantigas nessa língua, publicadas no Poranduba Amazonense. Com a proclamação da República, foi demitido do Museu em Manaus e assumiu a direção do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro (RODRIgUeS 1888, 1890 e 1905). 4. Conde ermano Stradelli (1852-1926). Nasceu na Itália, de família nobre. Veio para o Brasil em meados de 1879. No ano seguinte, viajou pelo rio Purus e depois pelo Rio Negro e muitos outros rios da região. trabalhou inicialmente como auxiliar de Barbosa Rodrigues. Viveu durante 47 anos no Amazonas, onde aprendeu o Nheengatu e coletou mitos indígenas. Morreu em Manaus. existe uma biografa dele, feita por Câmara Cas- cudo. Depois de sua morte, o IHgB publicou o dicionário de sua autoria Nheengatu-Português e Português-Nheengatu, com uma versão do mito do Jurupari (StRADeLLI 1929). 5. Antônio Brandão de Amorim (1865-1926) nasceu em Manaus, flho de um rico comerciante português radicado no Amazonas, criador da empresa que fez a navegação direta de Liverpool a Manaus. estudou o curso secundário no Porto e o universitário em Coimbra. Foi secretário de Bar- bosa Rodrigues, no Museu Botânico de Manaus. Dono de seringal, coletou tradição oral no Rio Negro, publicando 35 relatos em edição bilíngue. Morreu em Belém do Pará (AMORIM 1987). A importância desses autores na história da literatura brasileira ainda não foi devidamente ava- liada, apesar de existirem algumas evidências sobre o papel desempenhado por eles como inspiradores do movimento modernista, não só para a lingua- gem, como também para a trama de suas obras pioneiras. Mário de Andrade, com Macunaíma, e Raul Bopp, com Cobra Norato, talvez tenham sido os escritores que mais dívidas contraíram com eles, conforme o deslumbramento manifestado por Bopp, quando descobriu os mitos amazônicos coletados por Brandão Amorim (1987, p. 9): 2 De uma canção recolhida no Pará por Couto de Magalhães em 1874, quando ainda era cantada com muita frequência. trata- se de um texto bilíngue português-nheengatu, onde ambas línguas conviviam em situação de bilinguismo coordenado, sem que houvesse predomínio de uma ou outra (Magalhães 1876:89). Signifca: “Te mandei um passarinho, dentro de uma gaiolinha, pintadinho de amarelo, e bonito como você.” 62 josé ribamar bessa freire | nheengatu e português regional padrões fonológicos e sintáticos. O autor iden- tifcou algumas quadras de poesia popular, onde “os vocábulos da língua absorvida desaparecem na língua absorvente”, permanecendo, no entanto, alguns vestígios da primeira: “O estilo, as compa- rações, algumas formas gramaticais e algumas alte- rações de sons.” exemplifca com uma toada, cuja letra está em português, porém a música, cantada pelos índios há quinhentos anos, “quase não sofreu alteração”. Cita ainda uma versão, recolhida por ele em 1861, em Ouro Preto (Mg), que contém um sistema similar de imagens ao da quadra reco- lhida no Pará (MAgALHÃeS 1876b, p. 90): Vamos dar a despedida, / Como deu a pintassilva; Adeus, coração de prata, / Perdição da minha vida! Vamos dar a despedida, /Como deu a saracura, Foi andando, foi dizendo: / Mal de amores não tem cura. esta periodização feita por Couto de Maga- lhães é produto de um diálogo que ele manteve com as ciências naturais e com as ciências sociais nascentes. A sua abordagem da língua, da orali- dade e dos mitos se aproxima bastante dos proce- dimentos que foram adotados posteriormente pela linguística e pela antropologia. ele retomou, por exemplo, as representações de língua do roman- tismo alemão, em especial de Humboldt (1767- 1835), que considera cada língua como dotada de uma estrutura própria, refexo do pensamento e da cultura de cada povo e, portanto, um elemento crucial de identidade coletiva. Sua originalidade, porém, consistiu no fato de que ele estendeu essa representação para as línguas indígenas, o que per- mitiu observar as situações históricas de línguas em contato até então ignoradas, e possibilitou abordar o bilinguismo como forma de identi- dade regional, tomando um certo distanciamento da concepção de língua nacional, hegemônica na época. Desta forma, independentemente dos pressupostos românticos, os dados que ele coletou nos permitem fazer outra leitura da questão. A periodização por ele estabelecida foi fruto da observação das diversas comunidades que foi encontrando ao longo do rio Amazonas. A reivindi- cação de um status literário para a produção dessas versões bilíngues é o reconhecimento de que estas falas mistas não são produzidas por “semilíngues”, contato, ele estabeleceu três períodos marcantes das relações entre o português e a Língua geral, que ele denomina nheengatu: 1. O período de justaposição, ao qual pertence a letra da canção em epígrafe, cantada pelas populações mestiças do interior do Pará. O autor recolheu outras canções como essa, todas elas caracterizadas por “versos compostos simultaneamente nas duas lín- guas”, ou seja, com textos bilíngues – alternando simetricamente português e Língua geral – em que a métrica e a rima fazem parte constitutiva da uni- dade textual. Concluiu que elas foram produzidas numa época em que ambas as línguas eram “popu- lares” e conviviam em situação de bilinguismo, pois “as duas línguas entram na composição, com seus vocábulos puros, sem que estes sofram modifcação”. (MAgALHÃeS 1876b, pp.89-90). 2. O segundo período é caracterizado pela pro- dução de vários textos bilíngues de inspiração popular, ainda na perspectiva do autor, nos quais desaparece a simetria entre as duas línguas, como na seguinte quadra, recolhida também no Pará: Vamos dar a despedida, mandu sarará Como deu o passarinho, mandu sarará Bateu asa, foi-se embora, mandu sarará Deixou a pena no ninho, mandu sarará 3 Neste caso, o desenvolvimento temático do poema está em português, permanecendo em Lín- gua geral apenas o estribilho. Couto de Maga- lhães observa aí uma tendência, onde pouco a pouco uma língua predomina e só fcam da outra algumas palavras que, ou não têm correspon- dente na língua que tende a absorver a outra, ou são mais suaves para o sistema auditivo da raça que vai sobrevivendo (MAgALHÃeS 1876b, p. 90). 3. No terceiro período, o texto é monolíngue, em português, mas está impregnado de marcas da lín- gua que desapareceu, incluindo empréstimos de 3 teodoro Sampaio registra mandu como sendo uma ave pequena, da família das Bucconinae; sarará como uma espécie de mariposa e também como um pássaro (SAMPAIO 1955, pp. 278-313). 63 josé ribamar bessa freire | nheengatu e português regional “Que o índio nenhuma tradição nos legou é fato sabido e não carece de prova”, escreveu, contun- dente, um dos críticos, citado por Sílvio Romero, acionando preconceitos da sociedade nacional, ao negar qualquer contribuição indígena à cul- tura brasileira (ROMeRO 1888, p. 59). O dis- curso colonialista havia desqualifcado a poesia e os mitos indígenas, considerando-os como uma manifestação “menor, grosseira e extravagante, fruto da superstição” e recusando-se a enquadrá- los no campo da literatura, por se tratar de uma elaboração em línguas ágrafas, “rudimentares e incompletas”, faladas por povos “atrasados”. Couto de Magalhães contra-argumenta. ele até admite que a falta de refnamento pode existir tanto nas “crenças selvagens como nas superstições cristãs”, mas sugere que, em ambos os casos, para avaliar as qualidades estéticas de uma obra, o estudioso deve examiná-la com rigor, o que requer inape- lavelmente o conhecimento da língua em que ela foi produzida. No caso das narrativas indígenas, ele adverte que o pesquisador pode se surpreen- der, ao descobrir “a notável e profunda flosofa e poesia que elas encerram”. Lembra que embora o seu trabalho seja o de um simples colecionador de narrativas indígenas, prestava um grande serviço à Filologia e à Antropologia ao publicar os mitos numa língua tupi (MAgALHÃeS 1975, p.108). esse vai ser um dos primeiros princípios metodo- lógicos que norteou o seu trabalho de coleta da literatura oral: o conhecimento da língua, sem o qual qualquer juízo crítico está invalidado. A etnografa moderna só começa a existir no início do século xx, a partir do momento em que o pesquisador troca seu gabinete de trabalho pelo lugar onde vai efetuar sua própria pesquisa, através da observação direta. Para obter rigor e precisão na coleta e descrição dos fatos observados, o traba- lho de campo exige que o etnólogo tenha domínio da língua da cultura que ele estuda. Franz Boas (1858-1942), um dos fundadores da etnografa moderna, foi o primeiro a mostrar que a tradi- ção oral devia ser recolhida pelo próprio etnólogo na língua de seus interlocutores (LAPLANtINe 1987, pp. 75 e 78). Décadas antes de Boas, Couto de Magalhães teve a intuição sobre a importância do conheci- mento da língua, a partir de uma necessidade sen- sem competência plena em nenhuma das duas lín- guas, mas constituem “um modo legítimo de comu- nicação” (ROMAINe 1995, p. 6). Neste sentido, o autor se distancia do ‘senso comum’ e das políticas de línguas, que consideram estas formas de organi- zação social e a própria diversidade como um perigo para a hegemonia da língua do poder, na expressão adotada por Anderson (1983). As observações de Couto de Magalhães são importantes porque forne- cem algumas pistas para a história social das línguas no Brasil, cujas trajetórias até hoje não foram suf- cientemente estudadas, criando um grande silêncio sobre o processo histórico do contato entre elas. Couto de Magalhães debateu com os críticos que “chasquearam a propósito de meus estudos de línguas e antiguidades indígenas”, colocando em dúvida a utilidade que podiam ter. Numa carta dirigida a Joaquim Serra, apresenta três fortes razões que justifcavam suas pesquisas: 1º Qualquer estudo feito com seriedade faz avan- çar o conhecimento e, por mais abstrato que pareça, cedo ou tarde, traz seus frutos práti- cos; 2º Se “até a mais miserável planta de nossos cam- pos” e “o mais rude e pobre mineral de nossos montes” merecem ser estudados, descritos e classifcados, “muito mais nobre e útil é estudar, descrever e classifcar o homem americano”; 3º O conhecimento das sociedades nativas pode ajudar a integrar um milhão de índios à eco- nomia brasileira, com um custo muito abaixo do que se gastava com a imigração de colonos europeus (MAgALHÃeS 1975, p.137). ele completa: eis aí a razão pela qual me dediquei e continuarei a dedicar-me ao estudo das línguas selvagens e ao de assuntos relativos aos índios. Há brasileiros que conhecem e estudam entre nós o hebreu, o árabe e o sânscrito. É, pois, natural, que haja alguns que se dedi- quem ao estudo das curiosas e ricas línguas dos selva- gens, de sua terra, estudo a que se prende, como mos- trei, a solução de um problema importante (p.140). Justifcada a relevância do tema, o debate podia, enfm, entrar no mérito da questão: a ima- gem construída por Couto de Magalhães sobre o índio e o legado de suas manifestações literárias. 64 josé ribamar bessa freire | nheengatu e português regional auto de batismo do neto de D. Pedro II, feita em Nheengatu pelo próprio Couto de Magalhães. ele traduziu a palavra ‘imperador’ pelo vocábulo ‘muruxáua reté’ – grande chefe, e ‘batismo’ pela expressão tupi ‘cerúcaçáua’ – cerimônia de imposi- ção do nome ao recém-nascido, da mesma forma que ‘conselheiros de estado’, ‘deputados’, ‘senado- res’ e ‘corpo diplomático’ passaram a fgurar em Nheengatu como ‘homens de governo da nossa pátria’ e ‘homens de governo de outras pátrias’. Ao recusar a tradução literal, ele pondera: “Tra- duzindo em uma língua viva não me era lícito o uso de expressões que nela não são inteligíveis” (MAgA- LHÃeS 1975, pp. 134-137). Sua preocupação última era, em realidade, com as manifestações literárias. A língua lhe inte- ressava como instrumento de coleta, de registro e de compreensão da tradição oral. Na medida em que não era viável para isso o uso de intér- pretes e de tradutores, a aprendizagem da língua se fazia indispensável. É quando Couto de Maga- lhães organiza uma viagem ao Pará com o objetivo específco de aprender Nheengatu. Adquiriu tanta habilidade em seu uso, que chegou a ser conside- rado “o mais perfeito conhecedor do nhihingatu no Brasil” pelo bispo do Amazonas, D. José Lou- renço, autor de um catecismo cristão escrito nessa língua (MAgALHÃeS 1975, p.17). Num depoimento sobre sua competência em línguas indígenas, Couto de Magalhães (1975) fez a seguinte autoavaliação: eu só conheço bem uma língua na qual falo e escrevo, que é o tupi ou Nheengatu, que se falava em quase todo o estado de São Paulo ao tempo de Anchieta, e em quase todo o Brasil; conheço mal o guarani, que aprendi com os prisioneiros paraguaios que fzemos quando comandei as forças de Mato grosso, e isso só para ler; não falo nem escrevo; conheço algumas frases do Caiapó e carajá e nada mais (p.145). O interesse pelo conhecimento do Nheen- gatu não se limitou ao seu uso na fala e na escrita, havendo dedicado estudos específcos, que culmi- naram na publicação de uma gramática descritiva, elogiada por uns e criticada por outros. Silvio Romero, por exemplo, que não falava a língua, considerou-a como sendo de “pequeno alcance tida na própria pele, em dois episódios cruciais narrados por ele. O primeiro aconteceu durante a guerra do Paraguai. ele viajava uma noite pelo rio, a bordo de um vapor, descansando no passa- diço, debaixo do qual um grupo de marinheiros se distraía conversando. Ouviu, então, um deles, apelidado “Para-tudo”, flho de índios Kadiweu, contar uma série de histórias em que o jabuti era o personagem principal. “Foi esta a primeira vez que minha atenção foi despertada para os mitos nacionais”, comenta. No entanto, ele não conse- guiu entender parte da narrativa, porque apesar de feita em português, era intercalada, de vez em quando, com expressões em Língua geral, intra- duzíveis. Nesse momento, percebeu que, sem o acesso à língua, não era possível entender os mitos (MAgALHÃeS 1975, p. 107). Uma alternativa podia ser recorrer ao tradutor, como ocorreu no outro episódio que ele viven- ciou, em 1865, durante uma estadia de quatro meses nas cachoeiras da Itaboca, no tocantins, onde havia naufragado. Uma noite, o tuxaua dos índios Anambé narrou-lhe a lenda de Ceiuci, “infelizmente no tempo em que eu não falava ainda a língua e em que, portanto, para entender o que ele dizia, necessitava de servir-me de um intérprete”. Couto de Magalhães desconfou da versão traduzida. Insatisfeito, publicou-a assim mesmo, apresentando Ceiuci como uma espécie de “fada indígena”, uma velha gulosa, que vivia perseguida por eterna fome. Mas decidiu apren- der a língua para, de forma mais fdedigna, “reco- lher uma tradição melhor do que esta que coligi em 1865, quando apenas começara meus estudos desta matéria” (MAgALHÃeS 1975, p. 131). Depois desses dois episódios, Couto de Maga- lhães começa a aprender a Língua geral ou Nhe- engatu, falada por índios e mestiços da Amazô- nia, para assim apropriar-se da literatura oral que circulava nessa língua. O conhecimento dela lhe permite, entre outras coisas, criticar textos tra- duzidos no passado pelos jesuítas, como algumas orações, que ele condena por serem traduções lite- rais, sem sentido algum para os índios, quando o que os missionários deveriam ter feito era “con- servar o sentido felmente e traduzi-lo de modo que o selvagem entenda esse pensamento”. Um exemplo de sua proposta pode ser encontrado na versão do 65 josé ribamar bessa freire | nheengatu e português regional usa adjetivos como “atrasadas”, “rudes”, “rudi- mentares”, “selvagens”, até mesmo para legitimar seu discurso, enquadrando-o na ciência de seu tempo; no entanto, quando se refere a determina- das etnias com as quais conviveu e que podem ser identifcadas no tempo e no espaço, os adjetivos são outros: “A bela língua tupi, suas admiráveis ins- tituições familiares”, etc. (MAgALHÃeS 1975, pp 69 e 136). O atraso, neste caso, não implica mais inferioridade e passa até mesmo a ser virtude. ele próprio revela o impacto que sofreu ao descobrir no início da coleta a sofsticação dos mitos indíge- nas (MAgALHÃeS 1975): eu estava muito longe de supor que existisse nos sel- vagens do Brasil, que atingiram tão pequeno grau de cultura intelectual, um sistema mitológico idêntico em substância ao sistema dos vedas (p.107). O Selvagem, considerado pelo seu autor como “o monumento mais autêntico e curioso que se tem até hoje publicado” sobre a produção intelec- tual indígena, contém histórias originais e belas, que falam por si mesmas de uma herança literá- ria milenar, baseada no cotidiano, nas crenças e vivências dos índios, colocando-nos em contato com um mundo onde a transmissão oral é um canal importante de aprendizagem da vida social e religiosa, que assegura e reproduz as formas de vida. Maravilhado com a coleção de nove “len- das da raposa” que ele recolheu – “verdadeiro colar de pedras fnas, tanto pelo espírito e animação do enredo, como pelo laconismo, sobriedade das cenas e clareza” – não hesita em situá-las no quadro da literatura universal, afrmando que elas “sofreriam, sem desmerecer, o confronto com as fábulas de Esopo, Fedro e Lafontaine”. em outra passagem, Couto de Magalhães compara os mitos coletados com “os poemas de Homero, os Niedelugen, os poemas de Ossian”, sustentando que os primeiros, debaixo do ponto de vista antropológico são mais importantes, por serem os vestígios da literatura espontânea de um povo antes que qualquer gênero de convenção, interesse ou espírito de seita e partido hou- vesse modifcado as produções espontâneas do espírito humano (MAgALHÃeS 1975, pp. 105, 126-128). Couto de Magalhães percebe o sentido sim- bólico dos mitos, mas confessa que lhe faltam científco” (ROMeRO 1888, p.140). O certo é que a partir dessa descrição, Couto de Magalhães organizou um curso de Língua geral, segundo o método de Ollendorf, “método que os modernos flólogos europeus hão inventado para vulgarização das línguas vivas (VII). Os exercícios gramaticais que ele propõe para o seu ensino, na opinião do bispo do Amazonas, “estavam tão de acordo com a língua tupi, que qualquer índio da vasta região do Rio Negro e Alto Solimões os entendia facilmente” (MAgALHÃeS 1975, p.17). O discurso etnocêntrico colonialista que consi- derava as línguas indígenas como “línguas pobres, desarticuladas, ininteligíveis, incapazes de expressar poesia” é refutado com poderosa argumentação por Couto de Magalhães, para quem as línguas indí- genas enriquecem o patrimônio nacional. A língua era para ele, pesquisador, um instrumento do tra- balho de campo que lhe permitia pensar e sentir as emoções das manifestações literárias indígenas, da riqueza da tradição oral, conforme confessa, num texto que Franz Boas ou Malinowski certamente assinariam embaixo (MAgALHÃeS 1975): Como houvesse empregado quase todo o ano de 1873 em estudar a forma amazônica da língua tupi, com a qual consegui familiarizar-me, achei-me preparado com o principal e mais indispensável instrumento para observação (...) daquilo que cada povo tem de mais íntimo, e escapa quase completamente à observação dos viajantes, enquanto não puderem falar a língua do selvagem. Pude assim conseguir parte da preciosa mitologia zoológica da família tupi (p.105). Couto de Magalhães, para estudar os mitos, foi se deixando aprisionar, no processo de coleta da tradição oral, pela originalidade e beleza das narrativas indígenas. talvez não seja exagerado afrmar que a simpatia dele pelos índios veio através das manifestações literárias. Apaixonou- se pelos índios, porque conheceu e rendeu-se aos encantos de suas criações literárias. Aí, então, ele fcou dividido entre o atraso dos índios defendido pelas teorias dominantes de sua época e a beleza da literatura oral indígena, que ele ia recolhendo. toda a sua obra está marcada por essa contra- dição: cada vez que se refere genericamente às sociedades indígenas, num plano mais teórico, 66 josé ribamar bessa freire | nheengatu e português regional mais que amamentavam; e como não tinham e nem podiam ter um código de leis para a caça, tinham um preceito religioso. esse conto, assim como todos os outros, encerra uma profunda lição de moral (p. 84). Couto de Magalhães propõe um modelo de crítica para as manifestações de literatura oral, par- tindo de características das línguas ágrafas, “muito mais lacônicas e muito menos analíticas” do que as línguas escritas, substituindo com muita frequência um longo raciocínio por imagens aparentemente desconexas para um observador menos atento (MAgALHÃeS 1975). A poesia de nossos selvagens é assim: o mais notável é que o nosso povo, servindo-se aliás do português, modifcou a sua poesia tradicional pela dos índios. Aqueles que têm ouvido no interior de nossas pro- víncias essas danças cantadas, que, com os nomes de cateretê, cururu, dança de minuanos e outras, vieram dos tupis incorporar-se tão intimamente aos hábitos nacionais, notarão que de ordinário parece não haver nexo algum entre os membros de uma quadra (p. 65). Segundo ele, só é possível perceber o nexo das ideias entre imagens aparentemente desconexas, se for levado em consideração o princípio de que, para os índios, a palavra falada é mais um meio de auxiliar a memória do que um meio de traduzir as impressões. ele diz que aplicou esse princípio de crítica à poesia popular, sobretudo aos cantos das populações mestiças, profundamente marcados pela herança indígena, e obteve resultados surpre- endentes. Descobriu que suprindo-se por palavras o nexo que falta às imagens expressadas por eles em formas lacônicas, se revela um pensamento enérgico às vezes de uma poesia pro- funda e de inimitável beleza, apesar do tosco laco- nismo da frase (MAgALHÃeS 1975, pp. 64-65). Sílvio Romero, que decididamente não sim- patiza com o autor de O Selvagem, admite, no entanto, que ele adquiriu um importante lugar na literatura brasileira apenas pela parte de seu livro “que contém as lendas selvagens e que é preciosíssima” (ROMeRO 1888, p.140). em conferência para o tricentenário de An- chieta, publicada em folheto em 1897 – um de seus elementos de comparação para poder dirigir seus estudos nessa direção. O que então passa a lhe interessar é a função educativa, bastante clara, da tradição oral. exemplifca com os dez episó- dios que coletou, relacionados ao jabuti, todos eles imaginados com o objetivo “de fazer entrar no pensamento do selvagem a crença na supremacia da inteligência sobre a força física” (MAgALHÃeS 1975): Cada vez que refito na singularidade do poeta indí- gena de escolher o prudente e tardo jabuti para ven- cer os mais adiantados animais de nossa fauna, fca- me evidente que o fm dessas lendas era altamente civilizador, embora a moral nelas ensinada divirja em muitos pontos da moral cristã (p. 110). ele vai tirar algumas conclusões originais. Se o que distingue um povo bárbaro é a crença de que a força física vale mais do que a força intelectual, então, ensinar o contrário “equivale a infundir- lhe o desejo de cultivar e aumentar sua inteligên- cia” (MAgALHÃeS 1975, p.110). Neste caso, o povo que criou essas narrativas demonstra um alto grau de civilização, estágio atingido pelos índios através de suas manifestações literárias. Mas isso nem sempre foi percebido desta forma. Noutro capítulo relativo às divindades, Couto de Maga- lhães comenta uma das narrativas orais que cole- tou: a história de um índio que fechou uma veada recém-parida, que ainda amamentava. Quando foi apanhar sua presa, descobriu que havia sido vítima de uma ilusão do Anhanga: a veada que ele perseguia era sua própria mãe que jazia morta no chão. Os missionários interpretaram a ação de Anhanga como sendo produto de uma entidade maléfca com poderes de fazer o mal contra os homens. Couto de Magalhães, discordando dos missionários, defende que “por muito rude e bár- bara que, à primeira vista, pareça uma instituição qualquer de um povo, ela deve ser estudada com res- peito” (MAgALHÃeS 1975): eis aí uma ação demoníaca, dirão. Não, digo eu, esta ação não repugna a uma divindade. É necessário estu- dar estas coisas debaixo do mesmo ponto de vista de quem as imaginou; os índios tinham na caça o seu sustento; o instinto lhes indicara que destruiriam facil- mente esse sustento se não poupassem a vida dos ani- 67 josé ribamar bessa freire | nheengatu e português regional simpático à população indígena e mestiça, buscando valorizá-la enquanto verdadeira e mais fel repre- sentante da nacionalidade brasileira (MACHADO 1998, p. 13). Quando se discutia ainda o indianismo como instrumento de construção da identidade nacio- nal, Couto de Magalhães recolocou a temática indígena em bases mais objetivas, retirando-a do terreno do folclore, “do pitoresco, do plano sim- plesmente sentimental a que o romance de Alencar e a poesia de Gonçalves Dias, sem dúvida respei- táveis, o haviam conduzido (MOReIRA 1975, p. 10). Com paixão, mas sobretudo com método, ele implodiu a etnografa fantasiada vigente, que reduzia os índios aos padrões dos romances de cavalaria e propôs um novo caminho, que aca- bou alimentando o movimento modernista. últimos trabalhos – Couto de Magalhães lamenta que haja sobrado muito pouco da literatura original dos índios, mas que ainda era tempo de coligi-las entre as tribos que sobreviveram. Postula que parte da poesia popular em língua portuguesa é continu- ação da poesia indígena, sendo necessário também continuar o trabalho de Sílvio Romero de coleta, transcrição e publicação desse material dotando “a nossa pátria de tesouro, com valor superior aos arre- medos da literatura europeia, com que enchem nossa imprensa (MAgALHÃeS 1975, p. 156). A historiadora Maria Helena Machado, que recentemente descobriu e publicou o Diário Íntimo de Couto de Magalhães afrma com muita propriedade que apesar do pano de fundo evolucionista, próprio a seu tempo, ‘O Selvagem’ é inquestionavelmente 68 abstract the objective of this text is to discuss about the usage of lin- guistic phenomena, the code switching, used in statements of (i)migrants speakers of the Brasildeutsch, talian, Portuguese/ Polish speech and of the portunhol/guarani-japorá in communi- cative interactions in interethnic communities, the west region of Paraná state, the Brazil/Paraguay border and the verge with Mato grosso do Sul state. the analysis and interpretation of these statements have, as support, the Language Base System Model and the Myers-Scotton Introduced Language Model (1992; 1993; 1997). Results point out that the choice of the usage of the code switching depends on the relations of friendships and/or solidarity between the interlocutors and it depends on linguistic knowledge shared by them, showing its expression of loyalty with its cultural and ethnical identity. fenômenos de usos linguísticos: alternância de código Clarice Nadir von Borstel é Doutora em Lin- guística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professora Associada de Linguística da Universidade estadual do Oeste do Paraná resumo A proposta deste texto é discutir os fenômenos de usos lin- guísticos, a alternância de código, utilizado em enunciados por falantes (i)migrantes do Brasildeutsch, do talian, do falar polaco e do portunhol/guarani-japorá em interações comunica- tivas em comunidades interétnicas, na região oeste do Paraná, fronteira Brasil/Paraguai e da divisa com o estado do Mato grosso do Sul. A análise e interpretação destes enunciados tem como suporte o Modelo de Sistema de Língua Base e o Modelo de Língua Introduzida de Myers-Scotton (1992; 1993; 1997). Resultados indicam que a escolha do uso da alternância de código depende das relações de amizades e/ou solidariedade entre os interlocutores e de conhecimentos lin- guísticos compartilhados pelos mesmos, demonstrando a sua expressão de lealdade com sua identidade étnica/cultural. introdução este estudo tem como objetivo refetir sobre a alternância de código (code switching) em comu- nidades interétnicas na região do oeste parana- ense, a partir dos dados pesquisados no mestrado, no doutorado e em projetos institucionais após o doutorado em sociolinguística/pragmática. Passado mais de uma década da apresentação da dissertação (sob a orientação de Paulino Vandre- sen, na UFSC) e mais de oito anos da defesa da tese (sob a orientação de Jürgen Heye, na UFRJ). Ambas com referências às pesquisas sobre alter- nância de código em comunidades interétnicas de línguas em contato, a oportunidade de revisitar e interpretar dados antigos e novos, estes trouxeram algumas certezas e outras tantas perguntas que gostaria de compartilhar e refetir ao lançar este texto à rotação que é própria à linguagem, ou seja, às leituras que possibilitam variados ângulos e tra- jetórias a respeito da Sociolinguística sob o ponto de vista da Pragmática. Algumas vezes me perguntei o que estava fazendo em meio a estudos linguísticos tão mar- ginalizados pelos gramáticos, rastreando uma teo- ria da linguagem que fosse capaz de mostrar um aquém ou além das perspectivas da Linguística sobre a linguagem em seus usos e limites, onde se fala um sistema não linguístico (o agramatical) ou onde a língua se torna real/virtual no ato de falar, ou em muitos atos de fala ainda por vir. Percebe-se que esta busca de estudos da hibridização linguís- tica se dá pela e na diferença da linguagem nas práticas cotidianas (o uso da língua) do usuário inserido em comunidades de várias culturas e lín- guas híbridas. 69 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos nesta região da Costa Oeste Paranaense é eviden- ciada por grupos que quando aqui se enraizaram tinham pouca escolarização, ou seja, em torno de quatro anos de escola básica, assim tendo por métodos de trabalho que não apresentavam uma formação profssional e de urbanização (Bors- tel, 1992; 1999; 2003; 2005). De um ponto de vista objetivo percebeu-se, nestes entrevistados, uma tradição, ou tradução, cultural agrícola. Para Bhabha (2001), o termo tradição vem a ser uma tradução cultural/étnica, pois tudo que se trans- mite de geração a geração não é de forma passiva e igual, e sim por uma nova maneira de transmissão criativa e/ou por meio de confitos interétnicos, dado que estes grupos étnicos imigrantes e seus descendentes se achavam fortemente identifca- dos e estigmatizados pela sociedade urbana, ou pelos próprios grupos interétnicos europeus. Isso signifca, em primeiro lugar, a perpetuação do sentimento positivo em relação ao fato de ser da área rural de geração em geração: “A nossa famí- lia desde que veio morar aqui, sempre morou na colônia.” em minhas pesquisas, este enunciado foi dado tanto na comunidade de Marechal Cân- dido Rondon como na de Palotina (Borstel, 1992; 2003; 2005). Nesta região, de comunidades pluriétnicas, há uma tradição cultural agrícola e/ou rural com a qual estes imigrantes e seus descendentes sentem- se fortemente identifcados, o que signifca, em primeiro lugar, o sentimento de ser da área rural, ou como se diz nesta região “da colônia”. Por um lado, o imigrante e seus descendentes foram, fre- quentemente, indivíduos menosprezados. A pala- vra “colono” teve, e ainda tem, um sentido pejora- tivo, isto é, alguém ingênuo dedicado ao trabalho braçal e em cujas interações comunicativas há um forte hibridismo cultural e linguístico. Ser da área rural, por conseguinte, não é tanto estar sujeito a uma tarefa específca, mas sim participar, isto é fundamental, de uma cultura popular e rural, na qual predominam valores de identifcação, essen- ciais, que girem, principalmente, em torno de “práticas sociais e, ou de solidariedade” (Certeau, 2001, p. 81). Por outro, a cultura rural tem por fundamento uma prática de relações familiares, de vizinhanças e de amizades muito fortes, na região. Além disso, destaca-se também o fato de os par- O termo hibridização, utilizado por mim neste trabalho e nos últimos artigos sobre línguas em e de contato sob a concepção de Heye (2003) publi- cados em periódicos, refere-se ao conceito dado por Bakhtin, a “uma hibridização involuntária e inconsciente [...] uma modalidade mais impor- tante da existência histórica e das transformações das linguagens” (1998, p. 156). Portanto, nesta região de comunidades de falas interétnicas, as línguas se transformam histórica e culturalmente na memória dos usuários de imigrantes e de seus descendentes por meio de uma hibridização de misturas de línguas, transferências gramaticais e lexicais e da alternância de código de diversas línguas, sendo que estas coexistem no cenário de variações linguísticas de uma mesma língua nacio- nal com outras línguas étnicas. Neste momento gostaria apenas de trazer, para esta refexão de avaliação mais ampla deste estudo sobre o uso da alternância de código entre os usuários em comunidades interétnicas, a força indagadora destas mutações que se processam nas enunciações sígnicas contemporâneas que têm exigido das teorias linguísticas, literárias e semióti- cas de modo geral uma reformulação de suas estra- tégias e de referenciais teóricos. Percebe-se, nas colocações de Almeida (2003), que a intervenção proposta por Deleuze e guat- tari no campo das Ciências Humanas tem sido convocada neste esforço que se vê, em vários cam- pos do pensamento (nas ciências, na flosofa, na linguística e nas artes), de repensar sobre a hibridi- zação linguística e cultural, a partir da qual nosso mundo contemporâneo faz uso dos signos, reali- dade e subjetividade, entre visíveis e enunciáveis nos processos que estão na base da produção de práticas cotidianas do uso de línguas sob a visão da sociolinguística e da pragmática, de fatores socioculturais e interlinguísticos. a etnografia da comunicação: interlinguística e sociocultural A descrição etnográfca social deste estudo de comunidades urbanas de base rural de grupos étnicos de imigração e de migração estabelecidos desde a década de cinquenta do século passado 70 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos código, entre outras inferências de usos linguís- ticos. A análise desses processos repousa sobre a noção de contextualização: os usos da língua, por locutores/ouvintes, signos verbais/não-verbais que interagem com o conhecimento de mundo no tempo e espaço dos usuários em uma determinada comunidade de fala. A etnografa da comunicação se propõe aos estudos empíricos que apresentam interações comunicativas discursivas em um cenário de cren- ças, de ações e de normas, constitutivo de uma realidade social e cultural. e é nessa articulação, do linguístico e do sociocultural que se esfor- çam em descrever, de modo minucioso, os estu- dos produzidos na interação comunicativa entre os usuários neste trabalho de pesquisa de campo nesta região. Os estudos metodológicos, utilizados em minhas pesquisas, tiveram um caráter empírico, ou seja, fez-se um diagnóstico da vivência real de indivíduos organizados em grupos étnicos. Assim como me fundamentei nos estudos de gumperz, utilizei também o modelo de análise, proposto por Labov (1983; 1986), que aborda a relação língua/ sociedade, no aspecto virtual e real de sistematizar as variantes linguísticas, existentes em determi- nadas comunidades de fala. Desenvolvi pesqui- sas etnográfcas, na área da Sociolinguística e da Pragmática, em que duas técnicas são básicas para a coleta de dados: a observação participante que tem raízes no trabalho de gumperz (1964), que a utilizou para obter amostras gravadas de interação de grupos; e um roteiro de entrevistas com base em Labov (1986), pois foi ele quem combinou estas duas técnicas de trabalho nos estudos sobre a variação e mudança. A partir desta associação, é possível correlacio- nar fatos linguísticos e socioculturais, para então obter um quadro mais nítido da diferenciação dialetal e/ou variacional em comunidades de falas interétnicas. comunidades de fala de língua em e de contato O termo comunidade de fala, originalmente utili- zado por Hymes (1967) como speech community, ticipantes destas pesquisas terem um baixo índice de escolaridade. Isto pode ser observado nas inter- locuções destes usuários de imigrantes e de seus descendentes, quando da hibridização linguística interétnica e multicultural rurbana, da migração da área rural para urbana, ocorrendo variações linguísticas no interior de um enunciado, isto é, o reencontro, na arena deste enunciado, de duas consciências linguísticas e culturais, uma, a nacio- nal e a outra, de minorias étnicas de base rural. Porém, antes de descrever o enraizamento nas comunidades destes grupos étnicos, apresento os aportes teóricos que fundamentaram as minhas pesquisas etnográfcas de campo desde 1990, sobre a etnografa da comunicação, a qual se caracteriza por seus fundamentos antropológicos que lhe determinam um domínio de pesquisa mais ampla sobre o estudo comparativo e/ou contrastivo dos comportamentos de interação comunicativa em comunidades de falas em constituir a comuni- cação em sistema cultural tal qual o parentesco, sob uma abordagem interdisciplinar constituída pela etnologia, pela Linguística e pela Sociologia quando se trata da metodologia de campo, a qual é fundamentada na observação participativa das práticas comunicativas do cotidiano entre os usu- ários de grupos étnicos. A observação participante tem como objetivo descrever os variados usos dos atos de fala em distintos tipos de atividades em diferentes grupos sociais – esta metodologia foi concebida na década de sessenta, do século xx, por gumperz (1964; 1978; 1982) e Hymes (1967; 1972). As pesquisas sobre as relações interétnicas em comunidades urbanas originaram-se nos estudos de gumperz, sob a perspectiva de uma socio- linguística interacional. essas abordagens das “estratégias discursivas” da sociolinguística inte- racional se baseiam em pesquisas de campo que interpretam os dados empíricos analisados ideolo- gicamente (econômica, histórica, cultural, étnica, religiosa, entre outros interdiscursos) juntamente com os fatores internos e externos da língua de determinadas comunidades de fala, na medida em que enfatiza os processos de compreensão real e virtual pelos participantes no decorrer da intera- ção comunicativa pelos interlocutores, na ento- nação, na mudança de ritmo, na alternância de 71 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos caracterizando todas as formas de infuência inter- linguística de interferência e/ou transferência lin- guística. Se, para este, a transferência foi estudada mais em âmbito intralinguístico, para os outros, há necessidade de considerar, também, os aspectos interlinguísticos. Assim, as alternâncias podem ocorrer inconscientemente pelo falante bilíngue, por fatores emocionais e situacionais que podem infuenciar, em todos os campos do sistema de uma língua: fonológico, morfológico, sintático, lexi- cal, semântico e pragmático. estes fenômenos de alternâncias constatam-se mais no falar de jovens e adultos do que na população infantil, nesta última se dá mais a mistura de línguas (grosjean, 1982; Hoffmann, 1991; Borstel, 1999). Nas considerações de Haugen (1973) sobre os empréstimos linguísticos e de Hymes (1972) sobre a competência linguística em comunidades interétnicas, quando dos estudos de línguas em contato, o fenômeno de transferências linguís- ticas de uma língua para outra é mais relevante do que a interpretação do efeito do processo de alternância morfológica e/ou fonética. Porém Diebold (1964, p. 97-112) diz que a mudança, resultante do processo de bilingualization, é cha- mada de transferência ou empréstimo linguístico, enquanto para os antropólogos, este processo de aprendizagem é aculturação, e o resultado disto vem a ser o empréstimo. Há, portanto, segundo esta abordagem, dois aspectos a considerar: o pro- cesso de aprendizagem (bilinguismo, aculturação e o efeito deste processo) e o de transferências lin- guísticas e empréstimo, tanto ao nível da língua quanto ao da cultura. Considerando a diversidade linguística de uma determinada língua ou em comunidades de fala que fazem o uso situacional de uma mesma língua e/ou de dois códigos linguísticos, as interre- lações entre língua, cultura, história e sociedade são muito complexas e, na maioria das vezes, estar frente-a-frente com uma covariação de fenôme- nos de usos linguísticos sociais e/ou multicultu- rais, faz com que esses fenômenos linguísticos de desgramaticalização não sejam aceitos tão facil- mente pela sociedade como um todo. esses usos de língua tiveram maior aceitação pelos estudiosos somente a partir dos estudos que se preocupam com a língua e a cultura sob implicações sociais. quando do uso de linguagem, é conceituado como formas externas de regulamentação da comunica- ção verbal, e estes eventos de fala são considerados no funcionamento de sistema de língua quando da interação comunicativa entre os usuários de um determinado grupo sociolinguístico e cultural sob o viés da solidariedade e da pragmática. Na comunidade de Marechal Cândido Ron- don, com falantes do Brasildeutsch (a hibridiza- ção linguística de vários dialetos alemães trazidos para o Brasil, mais o alemão institucionalizado e o português brasileiro com suas variáveis no sul do país); na comunidade de Palotina, com o talian (o falar italiano brasileiro em situações de poliglossia com traços dialetais do italiano normativo em um processo de hibridização com o português brasi- leiro); em Vila Margarida, distrito de Marechal Cândido Rondon, com o falar polaco (traços dia- letais do falar polonês brasileiro com o português brasileiro) e na comunidade de guaíra, com o falar portunhol/guarani-japorá (traços do léxico do guarani paraguaio “el guarani japorá 1 ”, do caste- lhano/espanhol e o português brasileiro), em um cenário sociolinguístico/pragmático real, de fatos interculturais e interlinguísticos, nesta região de divisa entre estados do Paraná e Mato grosso do Sul e fronteiras entre o Brasil e Paraguai. As línguas em e de contato apresentam-se como uma linguagem intercultural e dinâmica, interativa e interdiscursiva, caracterizando a hete- rogeneidade linguística em sociedades nas quais coexistem culturas distintas. O precursor de estu- dos sociolinguísticos em situação de contato entre línguas foi Weinreich. Para o autor, bilinguismo é o uso de empregar duas línguas alternadamente pelo mesmo falante (1953, p. 01). Seus estudos carac- terizaram todas as formas de infuência interlin- guística de interferência e/ou transferência. Na literatura sobre os estudos de Heye (1983), Silva- Corvalán (1989) e Hoffmann (1991) prosse- guem, em parte, os estudos de Weinreich (1953), 1 Nos estudos de Meliá (1992, p. 35), o falar japorá apresenta características de um verdadeiro dialeto do guarani paraguaio, em várias regiões do Paraguai. Ainda, nas colocações do autor, em realidad los “españoles”del Paraguay presentan cuatro orígenes diferentes: europeos, criollos, mestizos e indígenas; pero en todos ellos lo que prevalece es su carácter político, social y econômico, y mucho menos el racial (op.cit. p. 61). 72 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos distintos do bilinguismo, pelos quais os indivíduos, portadores da condição de bilíngue, passam na sua trajetória de vida. Os estágios são vistos como pro- cessos situacionalmente fuídos e defnem, de forma dinâmica a bicompetência linguística, comunicativa e cultural nas diferentes épocas e situações de vida (Heye, 2003, p. 233-234, grifo do autor). A bilingualidade, como foi abordada acima, é defnida como os diferentes estágios de bilinguismo pelo autor e por Savedra (1994), ou, segundo Baetens Beardsmore (1981; apud titone, 1998, p. 6), como um estado psicológico, que pode ser defnido como um estado do indivíduo em que o falante tenha acesso ao uso de mais de um sis- tema linguístico. A essa acessibilidade inclui-se um grande número de fatores não linguísticos, bem como o grau de acesso a cada código linguís- tico, que pode variar entre indivíduos bilíngues. Segundo titone (1998, p. 7), o indivíduo bilín- gue tem habilidade de expressar os estados ego- dinâmicos (atividade da própria personalidade do indivíduo: experiência pessoal, mentalidade, estado afetivo e emocional), através de estratégias de codifcar mais de uma língua. Ou, segundo Savedra (1994), o falante domina dois ou mais códigos linguísticos distintos e os utiliza, funcio- nalmente, em determinadas comunidades de fala e em diferentes ambientes comunicativos. Mas, para isso, é necessário que o indivíduo bilíngue tenha consciência de processar ou usar duas ou mais línguas, de ser identifcado em duas ou mais culturas, ser capaz de produzir mensagens em dois ou mais códigos, com traços fonético/ fonológicos aceitáveis e com domínio das respec- tivas línguas, bem como ser capaz de pensar em duas ou mais línguas diferentes, de mensagens relatadas, controladas e programadas em códigos e situações diferentes. estes aspectos mostram que o falante bilíngue interage, continuamente, com o meio ambiente em todos os seus componentes (físico, emocional, social, cultural) e, assim, constrói uma estrutura de vida estável e caracteriza-se com um comporta- mento distinto e único. esta interação é essencial na aquisição linguística da primeira língua e no aprendizado da segunda língua. Isso explica por que uma das características básicas do indivíduo Assim, interpretam-se estudos de fenômenos de usos de língua e não de sistema de língua, sob a abordagem de alternância de código. Como já citado, anteriormente, esses fenômenos linguísti- cos devem ser analisados sob o enfoque da cultura e de aspectos interlinguísticos em comunidades de fala multilíngues. Para o estudioso sociolinguístico, o objeto de investigação é a língua e os fatores sociocultu- rais, no tempo histórico e no espaço geográfco que condicionam a competência comunicativa dos usuários. Daí, então, ser impossível negar a diversidade de variáveis que o português brasileiro pressupõe, dadas as características de formação pluricultural e multilinguística no Brasil, tanto no passado quanto no presente da população brasi- leira em várias regiões do país. Deste modo, os usos de línguas envolvem, contudo, aspectos ideológicos e o estigma que ainda existe em relação a determinadas variedades, principalmente a determinadas comunidades de (i)migrantes de fronteiras e grupos remanescentes de nativos (povos indígenas). Para alguns estudiosos da linguagem, como Brown, língua e cultura “estão intrinsecamente interligados, de modo que uma não pode se sepa- rar da outra sem a perda do signifcado da língua ou da cultura” (1994, p. 165). De maneira que, quando se dá a interação comunicativa entre os usuários, sempre ocorrerá um processo, chamado por Brown de aculturação entre comunidades e grupos interlinguísticos de fala. As línguas, cujos povos têm sistemas políticos, culturais e econômicos mais globalizados, sofrem fenômenos de transferências linguísticas, emprésti- mos, alternâncias gramaticais e lexicais, misturas de línguas e alternância de código nos níveis interssen- tencial, intrassentencial linguístico e sociocultural, bem mais acentuados, como pode ser observado na população brasileira. No nosso país apresentam-se situações das mais variadas, sobre o termo bilin- guismo, em comunidade interétnicas, Por “bilinguismo” entende-se a situação em que coe- xistem duas línguas como meio de comunicação num determinado espaço social, ou seja, um estado situ- acionalmente compartimentalizado de uso de duas línguas. Por “bilingualidade” os diferentes estágios 73 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos cia de código (nos estudos Myers-Scotton, 1997, ocorre um processo de sistema de língua base e um sistema de língua marcada no campo grama- tical de duas línguas), os dois últimos fenômenos de usos linguísticos parecem que são menos invo- luntários. De acordo com grosjean, um falante bilíngue, quando fala a um monolíngue, utiliza os fenôme- nos de usos: a alternância de código e emprésti- mos para poder se comunicar e, por isso, desvia-se das formas linguísticas normatizadas e/ou institu- cionais. dados revisitados e novos sobre alternância de código na costa oeste paranaense Nesta análise sociolinguística interpretativa, apre- sentam-se casos específcos de alternância de código do Brasildeutsch, do talian, do falar polaco, e por- tunhol/guarani-japorá e do português brasileiro ao nível intrassentencial, sob uma perspectiva grama- tical e sociopragmática. As pesquisas abordadas neste estudo, sobre o fenômeno de alternância de código, vêm a ser uma forma totalmente normal e muito comum em interações comunicativas de falantes multi- língues na região. este fenômeno requer a com- petência comunicativa do falante, com relação ao uso das línguas em conversações, isto é, num grau maior ou menor de competência e/ou profciência linguística da aquisição da língua materna verná- cula étnica (do imigrante e, ou seu descendente); no uso de duas línguas ao mesmo tempo. Por isso, é necessário ter em conta as noções gramaticais relevantes da alternância de código. estas noções podem ser usadas nas duas línguas, para caracte- rizar os casos do falar específco de fenômenos de usos de alternância intrassentencial e relatar os vários aspectos sociopragmáticos utilizados. Neste sentido, observam-se os aspectos grama- ticais relevantes nas comunidades de falas interlin- guísticas investigadas como a de Marechal Cândido Rondon com o Brasildeutsch, em Palotina, com o talian, na Vila Margarida, distrito de Marechal Cân- dido Rondon, com o falar dos polacos e em guaíra, com o portunhol/guarani-japorá: (1) a que extensão bilíngue é a identidade cultural com todas as suas escoras sociais. Hoffmann (1991, p. 95), em seus estudos sobre línguas em contato, trata distintamente os traços de fala bilíngue, no que diz respeito às alternân- cias gramaticais e lexicais, empréstimos, misturas de língua e alternância de códigos. entretanto, no campo da linguística, não há cortes claros de distin- ção ou abordagens de comum acordo, para analisar ou descrever as defnições, pois alguns traços gra- maticais e lexicais podem se cruzar em tempos, ou parecer contraditórios, assim como, em separar os termos lexicais do fenômeno de mistura de línguas (code mixing), no caso, a forma plural do alemão: die Ohrens (die Ohren – ‘as orelhas’), da alternân- cia de código (Die Ohrens do papai sind groβ – ‘As orelhas de papai são grandes’), essa classifcação não é tão fácil quanto parece ser. Para o autor, há tra- ços totalmente notáveis na fala de falantes bilíngues jovens e adultos, quando as situações enunciativas são direcionadas de um para outro falante, tanto em relação aos traços de transferências como de empréstimos, misturas de línguas (os traços são mais notáveis em crianças, como no enunciado de um entrevistado do gênero masculino de oito anos de idade, descendente de italiano “... no sítio eu ajudo meu pai a plantar fasoi e a tratar os animais... ah!... e o meu cavalim manhar ... come um bocado de capim...” (fasoi > feijão e cavalim manhar > cavalo come) em Borstel e Dotto (2002) e alternância de códigos. também, nas colocações de Mackey (1968), assim como para grosjean, existe uma defnição neutra de transferência linguística: a infuên- cia involuntária de uma língua para outra (1982, p. 299), isso pode ser constatado em comunida- des de fala de línguas em e de contato, quando a alternância fônica se dá de uma forma espontânea de uma língua para outra, pelo usuário com seu interlocutor, com trocas de traços de oposições quanto à sonoridade, quanto ao modo e luga- res de articulação das consoantes e das variações das vogais altas para as média-baixas, ou mais ou menos arredondadas, ou vice-versa, na oralidade do indivíduo, que as distingue dos fenômenos de empréstimo (nos estudos de Clegg, 2000, o uso mais frequente de palavras emprestadas são os substantivos, adjetivos e os verbos) e alternân- 74 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos O código português ou alemão pode ter um item indexado, a partir dos “Direitos” e “Deve- res”, aguardado com expectativa na interação comunicativa destes falantes; na comunidade de fala de Marechal Cândido Rondon, as redes de comunicação familiar ainda são fortes e mantêm o Brasildeutsch através das gerações mais velhas e das igrejas. Atualmente, o aprendizado da língua alemã é difundido nas escolas e na Universidade. em Borstel (1992; 1999), sobre o uso deste falar da língua alemã quanto à variável gênero, a análise quantitativa indicou uma ligeira dife- rença entre o comportamento das mulheres nas duas comunidades de fala. O gênero masculino, geralmente, frequenta os contextos públicos, usam menos a língua materna vernácula (o Bra- sildeutsch), e o gênero feminino na faixa etária de 50 a 70 anos restringe sua vida, basicamente, aos afazeres domésticos, mostrando-se, assim, mais conservadoras em relação ao Brasildeutsch e, mui- tas vezes, as avós são as babás dos netos durante o dia, para que as flhas possam ir ao trabalho. Muitas crianças em seu input linguístico intera- gem (ouvindo e compreendendo) com a língua materna vernácula alemã. No talian, nas interlocuções comunicativas do gênero masculino, também é possível obser- var este fenômeno de alternância de código com maior ênfase. Na comunidade de fala italiana, de Palotina, ocorreu uma situação inversa, quanto ao gênero. Borstel e Dotto (2002) analisaram o desempenho linguístico do falar italiano em que há, aproximadamente, o mesmo índice para o desempenho linguístico dos pais e das mães sobre o entender e falar italiano, porém nas habilidades de ler e escrever, apesar de serem bem reduzidas, o gênero masculino tem um melhor desempenho linguístico. Nas interações comunicativas, os participan- tes do gênero masculino disseram que, todos os sábados, se encontravam com um grupo de ami- gos para jogar boccia, na Linha Salete, Palotina, e, em suas interlocuções usavam somente o dialeto materno (o talian), levando os flhos homens para aprenderem a jogar boccia, justifcando por que o gênero masculino tem um domínio melhor da língua materna vernácula na comunidade (Bors- tel, 2004). os fenômenos sentenciais e lexicais são vistos numa mesma perspectiva? Isto é, será que se pode ver a que extensão os padrões da sentença derivam da interação entre os dois sistemas lexicais?; (2) a que extensão os elementos lexicais de duas línguas estão envolvidos, qual o seu papel e como poderiam ser caracterizados no Modelo de Língua Introduzida e no Modelo de Sistema da Língua Base? a análise do fenômeno de alternância de código segundo o modelo de língua introduzida e o modelo do sistema de língua base Nas enunciações comunicativas abaixo, consta- tou-se que os entrevistados usaram a alternância de código como ferramenta, para indexar suas próprias percepções, assim como as percepções de seus interlocutores, em suas interações, ao usar o código marcado e/ou introduzido (o português brasileiro e/ou a língua dos imigrantes e seus des- cendentes). Uma das premissas do Modelo de Língua Marcado e/ou Introduzido é que as pessoas estão, naturalmente, predispostas a usar e explorar suas escolhas linguísticas como ferramentas, para inde- xar suas próprias percepções, assim como, respeitar as suas próprias e as dos outros (MYeRS-SCOt- tON, 1992, p. 479). Os participantes de uma conversa podem contar com seus companheiros e/ou interlocutores, para cooperar em estruturar suas enunciações sobre o Princípio de Cooperação de grice (1975). A outra premissa do Modelo Introduzido é que os falantes de uma interação comunicativa pres- tam atenção aos marcadores e indexadores rela- tivos às escolhas de código de uma determinada comunidade de fala e/ou de seu interlocutor. Isto é, todo falante tem uma teoria natural ou inata de marcadores e indexadores de sua comunidade de fala. Os falantes de Marechal Cândido Rondon fazem uso da alternância de código, somente com o Brasildeutsch, isto é, com a língua em uso nesta comunidade de fala bilíngue. Por isso, os falan- tes desenvolvem uma percepção na qual o código português brasileiro é mais despercebido na inte- ração do Brasildeutsch. 75 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos da LB do português brasileiro (PB). A primeira frase verbal está na ordem de LI com o adjunto adverbial de lugar no (B), ocorrendo no (PB) a troca da pre- posição em por a. No enunciado de “B” a primeira frase em (B) a segunda em (PB); a terceira em (B) com a expressão retórica em (PB); a quarta frase em (B) e, a última com um elemento enfático em (PB). Os modifcadores de (B) acompanham a ordem do modifcador de (B), nas frases verbais (1), com os elementos sentenciais do quantifcador do (PB), com advérbios de intensidade; e, na frase verbal (3), com a expressão retórica no Brasildeutsch e um cons- tituinte enfático no português (du weiss wie schen ist das... já du weiss wie das ist schen... né Ingrid. ). Nas frases, os elementos não regenciados, como os advérbios e a expressão retórica, podem ser livremente alternados, pois não houve rompi- mento na cadeia de regência em que o elemento principal (verbo) determina a língua base, ou seja, o Brasildeutsch. Os traços de falantes bilín- gues adultos são mais caracterizados do que os das crianças com relação à acentuação, ritmo, entonação e sons da fala de sua primeira língua, o que infuencia na segunda. em geral, é mais fácil predizer os tipos de transferência fonológica, pois são as mais prováveis de ocorrer em dados de um grupo de falantes bilíngues, visto que os elementos transferidos são semelhantes aos da outra língua, ou estão ausentes, ou são diferentes. Assim como ocorre com o falar do Brasil- deutsch com a entrevistada “A”, quando da trans- ferência do traço fonológico, no caso do não arre- dondamento de vogais arredondadas anteriores, na fala desta descendente de alemães, sob infuên- cia do português: /∫ön > ∫en/ do adjetivo bonito, este mesmo exemplo foi dado por Heye (1983, p. 13). também o uso destas oposições fonológicas das consoantes / s / e / z / > /∫ / e /ʒ / foi dado por Vandresen (1968, p. 3), em seus estudos sobre comunidades de fala de língua alemã em Santa Catarina. (02) “ ...Là in casa se parleia (parlàre:fala) tuti (tutto: tudo) in italiano, o brasileiro só na escola. Parlar bra- siliam, le dizia la nònna. Nós aqui em nòstra região qua (qui), quenede (como) tuti fosti (todos fossem) da Itália, né. E iora (agora) muitos vão passear na Itália, i vem di volta, i parlar...um tal di parlar... si parla una todavia, com o falar polaco na comunidade de Vila Margarida e o portunhol/guarani-japorá em guaíra, a profciência na língua materna verná- cula é menor nas interlocuções enunciativas entre os falantes. O Modelo de Língua Introduzida de alternân- cia de código (nos fragmentos de 1 a 04) ocorreu em várias faixas etárias, nos mais variados níveis de escolaridade, tanto no falar do gênero mascu- lino como no feminino. e, ainda, nas interações comunicativas em contexto familiar é bem mais forte do que no social, nas comunidades de fala de Marechal Cândido Rondon, Palotina, Margarida e guaíra, conforme a observação participante da pesquisadora. No modelo do Sistema de Língua Base, o “constituinte” é usado para referir-se a qualquer grupo de morfemas, mostrando as relações hierár- quicas. Para este estudo, analisam-se as situações enun- ciativas do Brasildeutsch, do talian, do falar polaco/ português e do portunhol/guarani-japorá, nos frag- mentos a seguir: (01) – “A: Você não quis ir no Matinê dançante heute nach mittag lá nos Idosos? B: Nein, ich kann nicht mal gehn so tanzen se é prá fcar lá só sentada ...ja... das gefallt mich nicht..., ja... und das kost noch...und ich hab kein Geld... é muito bonito ver os outros dançar... und das ist ser gut wann zu tun hab... du weiss wie schen ist das.. já du weiss wie das ist .schen...né Ingrid.. A: Já, das Weiss ich...porque o que nós ganhamos é pouco pra ir sempre... lá no Clube” (OP-MCR, em janeiro/2007). No fragmento (01) observa-se a interlocução de duas senhoras na faixa etária em torno de 50 a 55 anos de idade, oito anos de escolaridade, des- cendentes de alemães, residentes na área urbana, em Marechal Cândido Rondon. Na interação comunicativa do Brasildeutsch entre “A” e “B”, sobre o Matinê Dançante no Clube de Idosos, constata-se que B tem uma profciência linguís- tica maior sobre a sua língua materna vernácula: o Brasildeutsch (B). Verifca-se que na enunciação de “A” a LB + constituinte LI consistem de ocorrências de mor- femas LI, introduzidos na estrutura de constituinte 76 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos de língua, que denominaram intimate (tipo íntimo) e emblematic type (tipo emblemático). O uso de alternância de intimate type distingue-se por mudanças frequentes dentro de frases, onde a estratégia do smooth code switching e equivalence sites são os sinais característicos de alternância de código. Ao contrário, no emblematic code swi- tching, são introduzidas, na sua maioria, as expres- sões retóricas, idiomáticas ou nomes isolados, representados, porém, por tag-switching, como pode ser observado na interlocução deste falante português/italiano. também existe o perigo de prejudicar as regras gramaticais, pelo menos em uma das duas línguas referidas, em que o falar italiano só é maior no intimate code switching. Um falante, na verdade, pode usar os dois tipos, mas, neste caso, o uso da alternância de código admite questionamento sobre a profciência comunicativa bilíngue do res- pectivo falante, quando utiliza os verbos parlàre> parleia e, ou parla, assim como também no verbo elucidàre > elu; e com o advérbio de lugar qui > qua, ocorrendo uma transferência dos traços fono- lógicos do português brasileiro para o italiano. (03) “Hoje, no almoço, i hjá fz czarnina i pirógi pra mój syn i maridu.. muitas vezes mój Kuzyn qui meszka (mieska) du ladu da moja colônia...sabe aqui do lado...tam... na divisa com moja colônia...” (Bors- tel, 2005, p.7). No fragmento (03) tem-se a situação enuncia- tiva de uma senhora de 54 anos de idade, descen- dente de polonês, moradora desde 1970, na Linha Campos Sales, na comunidade de Vila Margarida distrito de Marechal Cândido Rondon, nascida em Horizontina – Santa Rosa, RS, com quatro anos de escolaridade em língua portuguesa, agri- cultora. Os pais da entrevistada nasceram em gua- rani das Missões, RS, onde tiveram quatro anos de escolaridade na língua polonesa e na portuguesa; os seus avós foram imigrantes vindos de Varsóvia, Polônia. A sua profciência linguística da língua materna vernácula se dá através da habilidade lin- guística de falar, entender e ler, que lhe foi ensi- nada pelos pais e avós. A entrevistada iniciou a sua fala com a 1ª frase na LB + constituintes LI. A LI consiste de ocor- parola i altri não entende... una parola ma una còsa elu (elucidàre: explicar), non. Le còsa non dá nem pra acreditá, non....pois qua si parleia o talian.... sabe i so uno talian...” (Borstel e Dotto, 2002). No fragmento (02) tem-se a interação comu- nicativa de um falante do gênero masculino de 78 anos, descendente de italiano, agricultor, migrante de Severiano de Almeida, RS, com quatro anos de escolaridade, é um dos participantes de sába- dos à tarde, do jogo de boccia na Linha Salete, Palotina. em sua conversação demonstra orgulho e solidariedade com sua língua materna verná- cula quando utiliza a LI (talian). Silva-Corvalán (1989), em seus estudos, cita que no discurso direto de um falante que faz uso da alternância de código, em situações enunciativas, utiliza-se de várias repetições, assim como o usuário tem um estilo pessoal subjetivo e retórico. Isto pode ser observado no fragmento deste entrevistado quando utiliza vários termos repetidos em sua língua materna vernácula. todos os constituintes de alternância de código ocorridas no interior das frases foram enunciados através da própria função sintática e das categorias dos segmentos anteriores e posteriores a elas quando da LI (talian) e da LB (português brasileiro). O uso da alternância de código pode ocor- rer, principalmente, entre Sujeito-NP e VP, V e Objeto-NP, preposição e NP, dentro da NP, da PP e em conjunções (POPLACK & SANKOFF, 1988). Nas considerações de Romaine (1995), sobre o uso de alternância de código, é basica- mente uma produção de tempo real, um fenô- meno gramaticalmente restrito pela estrutura do constituinte da LB. O estudo dos pesquisadores acima citados, sobre a alternância de código, é baseado em semelhanças tipológicas que permi- tem supor resultados comparáveis, como no caso de línguas românicas: português/italiano, como os traços linguísticos que são marcados por um smooth code switching (alternância de código sua- vizada) e equivalence sites (posição de equivalên- cia) dentro das frases, como pode ser observado na situação enunciativa do talian, por este entre- vistado da comunidade de fala de Palotina. Assim, também, Poplack (1980, 1988) diferen- ciava dois modos de comportamento de mudança 77 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos em (04), a entrevistada em sua fala fez uso na 1ª frase na LB + constituintes LI, de elementos lexicais, consistem de ocorrências de morfemas. Os constituintes na LB, ou seja, os constituintes de morfemas verbos foram empregados no portu- guês brasileiro (pegar, querer e tomar); nesta frase o constituinte de morfema Sujeito-PN foi empre- gado no espanhol, o constituinte de morfema substantivo-Objeto em guarani/paraguai como LI. A LI na estrutura de morfemas de LB: a 1ª frase está na ordem do espanhol, português bra- sileiro e guarani/paraguaio (pojã: remédio); na 2ª frase em (PB) com traços fonéticos em espanhol; na 3ª frase em espanhol com traços fonéticos em (PB). Na última, com a expressão retórica e um constituinte enfático (...é a idade...é a idade..né...) em português brasileiro. No relato de sua narrativa histórica, a entre- vistada usou muitas vezes em sua fala constituin- tes lexicais substantivos (pojã: remédio; angá: expressão de tristeza; karaí tuya: homem idoso). De acordo com grosjean (1982), um falante mul- tilíngue, quando fala a um monolíngue, utiliza a alternância de código e empréstimos de sua língua materna étnica ao se comunicar. conclusões O resultado do uso do fenômeno de alternância de código no contexto social e familiar destas comunidades de fala multilíngues mostra que a escolha da língua depende, principalmente, das relações existentes entre os interlocutores e dos conhecimentos comuns compartilhados por eles, ou seja, os fragmentos analisados destes falantes demonstram a sua expressão de lealdade com sua identidade étnica/cultural. O uso intrassentencial do fenômeno de alter- nância de código é uma situação consciente de marcar a sua enunciação de acordo com a sua exi- gência interior de expressar ideias e pensamentos de maneira mais signifcativa e relevante. Observou-se que nos fragmentos de 01 a 04 há muita ênfase no uso de termos repetidos. A ênfase da repetição, dada pelos falantes, serve de suporte natural para o processo de compreensão da alter- nância de código. O falante usa elementos retóri- rências de morfemas (advérbios e substantivos) do falar polaco. Na 2ª frase, a LB está na ordem do falar polaco quando usa o verbo morar (mieska), ocorrendo a omissão e/ou juntura de um traço fonético na enunciação desta palavra por [mεska]. Na fala da entrevistada ocorreram os traços fônicos no falar polaco, assim como também, houve ocor- rências fônicas no português brasileiro. Na 2ª frase, não houve rompimento na cadeia de regência, no grupo verbal que determina a língua base do falar polaco, já na 1ª frase este rompimento ocorreu. O uso do falar polaco no grupo acontece quando os falantes têm um perfl cultural do grupo, associa- dos a esta identidade, com o uso da alternância de código português/polonês procuram marcar a cul- tura e a língua étnica, mesmo ocorrendo uma forte hibridização linguística étnica. (04) “ Mi hijo y a pegou mi pojã, quieru tomá... si y vá tomá todo dia… a minha pressão (arterial) sobe muito... non so ma y miesma di uns tiempos prá cá... é a idade...é a idade..né...” (Aguazo e Borstel, 2006, p. 9). Na enunciação (04), de uma senhora de 92 anos de idade, moradora na Vila Velha em guaíra, imigrante do Paraguai, enraizada na comunidade há muito tempo (desde a colonização da cidade pela empresa Colonizadora Mate Laranjeira). A entrevistada e seu marido imigraram com 20 anos de idade, de Assunção para Ponta Porã, MS e de lá vieram trabalhar na década de trinta, na empresa Mate Laranjeira. A Companhia Mate Laranjeira, a qual atuava também no Mato grosso do Sul, foi a responsável pelo emprego especiali- zado e barato da mão de obra paraguaia, assim como foi incentivadora do povoamento destes em terra brasileira (Arruda, 1993). A entrevistada teve oito anos de escolarização em Assunção, Paraguai, a sua língua materna vernácula: o guarani para- guaio e o espanhol. Na entrevista disse que aprecia as músicas de origens (diz que as letras na língua guarani/paraguaia são mais bonitas, mais poéticas e românticas), assim como as crendices, as lendas, as manifestações religiosas na Igreja da Virgem de Caacupê (festa que dura dois dias: no início do mês de dezembro) e folclóricas, resgatando a cultura identitária e linguística étnica paraguaia (AgUAZO e BORSteL, 2006). 78 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos íra, Paraná. Relatório de Iniciação à Pesquisa do PIBIC/ CNPq/Unioeste/2006, p. 01-15, 2006. ALMeIDA, J. Estudos deleuzeanos da linguagem. Campi- nas, SP: ed. da Unicamp, 2003. ARRUDA, g. O trabalho paraguaio na Matte Laran- jeira. Arca – Revista de Divulgação do Arquivo Histó- rico de Campo Grande. n.4, Campo grande, dezem- bro/1993. BHABHA, H. K. O local da cultura. tradução de Myriam Ávila, eliana L. de Lima Reis; gláucia R. gonçalves. Belo Horizonte: ed. UFMg, 2001. BAKHtIN, M. 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O uso destes termos repetidos não se trata de um problema de acesso limitado ao acervo lexical, disponível na memória, mas de uma marcação de sua identidade étnica e cultural. Na maioria das frases verbais, vários advérbios são usados como constituintes lexicais de LI. Segundo Myers-Scotton (1993), os elementos não regen- ciados, como no caso, as expressões retóricas, os constituintes enfáticos e a maioria dos advérbios, podem ser livremente alternados. Cabe, por fm, ressaltar na análise deste fenô- meno de alternância de código dos fragmentos acima, que a alternância de código é baseada em semelhanças tipológicas as quais permitem supor resultados comparáveis, como no caso de línguas românicas: português/italiano e português/espa- nhol, os traços linguísticos são marcados por um smooth code switching (alternância de código sua- vizada) e equivalence sites (posição de equivalên- cia) dentro das frases como pode ser observado na situação enunciativa do talian na comunidade de fala de Palotina, no portunhol/guarani/paraguaio na de guairá. Porém, na comunidade de fala de Marechal Cândido Rondon, pôde-se verifcar que não houve rompimento da cadeia de regência nas frases ver- bais que determinam a língua base, quando do uso do falar alemão. O Brasildeutsch e o alemão- padrão são basicamente idênticos em suas estrutu- ras na forma lógica, isto é, sugerem que as regras de estrutura sintagmática são as mesmas, mas as regras transformacionais e fonológicas alteram as frases, dando origem a diferenças na forma foné- tica. Mas quando se dá a alternância de código do português brasileiro e o Brasildeutsch na mesma frase, pode ocorrer o rompimento da cadeia de regência e os elementos são regenciados como tags (expressões idiomáticas e ou retóricas). Isso tam- bém pode ser observado no falar polaco de Vila Margarida. referências bibliográficas AgUAZO, C. e.; von BORSteL, C. N. estudos socio- linguísticos da comunidade de fala de Vila Velha, gua- 79 clarice nadir von borstel | fenômenos de usos linguísticos MeLIÁ, B. La lengua guarani del Paraguay: história, socie- dad y literatura. Madrid: ed. MAPFRe, 1992 MYeRS-SCOttON, C. Constructing the frame in intrasentential codeswitching. Multilingual. 11:101- 127, 1992. _______. 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Pesquisou a questão do papel dos processos de crioulização na formação das línguas. Participante do grupo de tra- balho da ANPOLL de Sociolinguística, desenvolvendo e dirigindo trabalhos de iniciação científca, de mestrado e de doutorado sobre a relação entre língua e identidade, as questões das fronteiras linguísticas, dos contatos e dos con- tinua, assim como a emergência da norma e das relação entre língua e escrita. Pós-doutorado no Instituto de Pes- quisas sobre o Mundo Árabo-Muçulmano (Iremam) em Aix-en-Provence (França) entre setembro de 2007 e março de 2008, com o tema da interdependência dos mitos que constroem a língua e religião. abstract Considering the fact that written and oral languages are not simply twomodalities of the same reality, but instead of it constitute two essentiallydifferent systems, our pro- posal is to investigate the relationship of thosesystems on the basis of the model as it was constructed along the linguisticcontacts studies. therefore, we shall examinate the historical steps of thebuilt link between the systems, and mutual effects for their evolution andtransformation, which is related as well to their formal changes as to their image or representation. representações e preconceitos geralmente os estudiosos falam das duas modali- dades da língua: a oral e a escrita, e, naturalmente, consideram que cada modalidade pode se realizar dentro de diferentes variantes, estilos, registros, e assim por diante. Portanto, parece existir um leque de realizações distintas, formando, entretanto, um continuum, contido neste conceito mais amplo chamado de língua. Observamos por sinal que o próprio conceito de língua reveste contornos não muito defnidos, embora seja objeto de um con- senso social indiscutível. Porém há, sem dúvida, matéria para importante discussão, quando se envolvem questões como línguas e território, con- tatos linguísticos, fronteiras linguísticas, variação, mudança e empréstimos. Pretendemos aqui examinar em particular, de forma crítica, o conceito de modalidade, na medida em que parece que se atribui uma caracte- rística que o distingue das outras formas de varian- tes habitualmente consideradas. Durante vários séculos, as refexões sobre a língua se realizaram através das produções escritas, o que é, com cer- teza, compreensível, já que o material, pelo qual se podia fxar para fm de exame as manifestações da linguagem, dispunha deste suporte, isto é, a trans- crição no papel. Mas este recurso à transcrição para descrever fatos de linguagem ocultava na realidade a complexidade da relação real entre fala e escrita. Assim desenvolveu-se a tradição flológica ao longo dos séculos passados, mas também uns equívocos a respeito da língua real falada, que tiveram que espe- rar por Saussure para serem desfeitos 1 . 1 era, por exemplo, comum dizer – ou escrever, nas obras mais sérias – que a língua portuguesa (ou francesa) possuía cinco vogais, enquanto o árabe ou o hebraico eram línguas reputadas desprovidas de vogais. 81 pierre guisan | a história das modalidades escritas esfera oca por uma tabuleta gravada, inaugurando- se, assim, a etapa tabula bidimensional da escrita. Para os detalhes dos dados arqueológicos e a sua interpretação, remeto ao livro bastante esclarece- dor de Louis-Jean Calvet, Histoire de l’Écriture. O que importa observar aqui é a ausência de vínculo entre essas primeiras formas de grafas e a língua propriamente dita, de modo que podemos afrmar que se tratam, pelo menos naquela etapa da escrita, de sistemas absolutamente separados, sem que se possa nem vislumbrar uma relação homológica, por exemplo. Faltam-nos dados no que diz respeito às repre- sentações icônicas mágico-narrativas, que pode- riam, muito eventualmente, apresentar alguns traços de homologia entre a língua – o discurso, no caso – e as grafas, como pinturas ou gravu- ras rupestres encontradas em diversas partes do mundo. 3. a revolução fonogramática Não se sabe exatamente como surgiu a ideia de representar os sons da língua em vez dos próprios objetos, conceitos e ideias. evidentemente, a meta da escrita continuava sendo a mesma: a de repre- sentar ideias e objetos, porém com uma invenção que visava à economia do acervo dos caracteres convencionais: em vez de ideogramas ou picto- gramas, extremamente numerosos, portanto de difícil e longa aprendizagem, seriam usados um número bem menor de caracteres, representando as unidades mínimas da língua, as sílabas, numa primeira etapa. Ideia genial, que testemunha de uma refexão aprofundada sobre a natureza e a estrutura da língua. Apenas não se sabe quem nem como se chegou a esta invenção, mas, ao que parece, podemos agora localizar e datar em vários lugares e em várias épocas esta revolução que cha- maremos de fonogramática, com o abandono do princípio ideogramática. Com efeito, a mesma revolução se deu na Mesopotâmia, com os caracteres cuneiformes dos sumerianos e dos acadianos, no egito, com outro acervo hieroglífco, ou ainda na Fenícia, com a criação de um silabário que viria um dia a se transformar nos nossos alfabetos grego, cirílico Retomando as palavras do linguista, a língua é um sistema, e todos nós sabemos disso. O que queremos mostrar é que a escrita também é um sistema, só que outro. Numa certa medida, os dois sistemas podem apresentar homologias, o que pos- sibilita aproximações, interferências e representa- ções recíprocas, que podem gerar as identifcações e confusões às quais aludimos. entretanto, são fundamentalmente sistemas de natureza diversa, e tentaremos demonstrá-lo. 2. escrita e língua: um vínculo construído É difícil dizer quais eram as funções das grafas nos primórdios, se narrativa, se mágicas (corres- pondendo, logo, à função ilocutória da fala), ou outras, quando se consideram as pinturas rupes- tres. No caso da Mesopotâmia, foi possível retra- çar as mudanças e invenções que conduziram a uma escrita cuja função era principalmente de ordem contábil. Mas em todos esses casos, é pos- sível observar a característica motivada e icônica dos desenhos traçados. Parece que, geralmente, foram motivações religiosas e / ou de contabilidade que originaram os primeiros sistemas de escritas, sejam eles icônicos ou não, como mostram os exemplos das civilizações tanto da Mesopotâmia como, mais recentemente, da gália céltica ou da germânia antiga. De qualquer modo, observamos que as escritas antigas preencheram funções relati- vamente limitadas, quando comparadas às formas modernas da escrita, e, sobretudo às funções da língua oral. Os dados arqueológicos disponíveis são bas- tante contundentes no que diz respeito à evolução do modo de arquivar e de comunicar informações na Mesopotâmia antiga. Parece que contratos podiam ser estabelecidos na trocas de simulacros, ou seja de símbolos, no seu verdadeiro sentido etimológico, representando a mercadoria que era objeto da transação. esses simulacros podiam fcar contidos numa esfera oca de barro, na superfície da qual era gravada a sua própria representação. A quebra da esfera podia resultar no rompimento do contrato, por exemplo. evidentemente, o passo seguinte poderia ter consistido na substituição da 82 pierre guisan | a história das modalidades escritas nem soletrado da esquerda para a direita. O que signifca assim que, ao fnal dom processo de aquisição da sua competência, o leitor se capacita para o reconhecimento instantâneo de um grupo grafado, seja este composto de letras ou de ideo- gramas. Logo, a diferença entre os dois tipos de escrita reside principalmente na relativa facilidade de acesso para o leitor iniciante à memorização de poucas dezenas de letras, em face de milhares de caracteres da escrita chinesa, tornando assim, em princípio, a abordagem do primeiro sistema mais democrática do que no segundo. Convém talvez aqui lembrar que a difusão do livro como mercadoria e bem individual contri- buiu para fnalizar de vez o processo que fazia da leitura uma atividade silenciosa, solitária, e não necessariamente linear. enquanto o leitor “nor- mal”, na Antiguidade e em grande parte da Idade Média, lia em voz alta, linearmente, geralmente para um público, com um ritmo relativamente lento... o que explica que pouco incomodava a ausência de separação entre o que convenhamos de chamar de palavras. 4. a revolução da gramatização A segunda revolução considerada aqui é aquela chamada de gramatização por Sylvain Auroux. O que nos interessa aqui neste processo é a cria- ção, nas sociedades europeias do século xVI, ou seja do Renascimento, de uma koiné escrita, em língua vulgar, que vem a substituir o que era a língua “internacional” dos intelectuais da Cris- tandade, ou seja, o latim. Motivações econômicas tiveram um papel decisivo no sucesso do empre- endimento, pois com a invenção da imprensa e da tipografa surgia o livro barateado, como bem individual e mercadoria. Assim sendo, autores, editores e livreiros criam um dos primeiros mer- cados capitalistas modernos, com as suas neces- sidades próprias de expansão. Ora, o veículo da escrita adotado até então, ou seja, o latim, se reve- lava relativamente estreito, com poucos leitores latinistas e sem possibilidade de ampliação. Na Idade Média: ao lado de uma escrita em lín- gua vulgar, transcrição de uma “oratura”, existe uma outra tradição discursiva, a do conhecimento, da ou latino. É interessante notar que, nesta região do Crescente Fértil, nasceram vários sistemas de escritas ideogramáticas, que evoluiriam todas para sistemas fonogramáticos, que, com a exceção dos cuneiformes, têm representantes modernos, que acabamos de citar, aos quais se deve acrescentar as escritas hebraicas, árabes, coptas, entre outras. A revolução fonogramática se espalhou atra- vés do Velho Mundo, na Pérsia, na Índia e no extremo Oriente, com a família das escritas deri- vadas do mesmo antepassado usado para o sâns- crito, na Birmânia, em Java, no Sião, ou tailândia, no Cambodge, por exemplo. entretanto, perma- nece o mistério da China, que não adotou a nova invenção cujo destino parecia ser universal. Para o mistério da impermeabilidade do Impé- rio do Meio a qualquer escrita baseada nos sons da língua podemos arriscar aqui algumas explicações. em primeiro lugar, devemos fcar atentos ao que signifca exatamente a existência de uma escrita em determinada cultura. Com efeito, a escrita pode ser relativamente amplamente difundida, quando preenche um papel comercial, por exemplo; ou, ao contrário, ser reservada a uma elite político- religiosa, como era o caso no egito antigo, por exemplo, onde podiam até ser punidos de morte os súditos que ousavam se apropriar a escrita hie- roglífca sem devida autorização. Logo, a existência de uma escrita numa cultura não signifcava que a sociedade podia ser considerada como “letrada”. A China tradicional, com a rigidez do seu sistema de castas hierarquizada, certamente não constituía uma cultura favorável à difusão de uma escrita democratizada, e a difculdade de se memorizar milhares de signos era um obstáculo conveniente para manter as barreiras entre as classes sociais. entretanto, convém aqui relativizar a distin- ção feita entre escritas ideogramáticas e fonogra- máticas. Com efeito, do ponto de vista do leitor, em particular do leitor competente, de um texto redigido pelo meio de um alfabeto, de fato não há mais soletramento nem silabização, já que a leitura global reconhece palavras e grupos de pala- vra de um olhar só; de modo que se reconhecem ideograma, como por exemplo numa placa de sinalização indicando RIO DE JANEIRO, onde as três palavras constituem um grafema reconhe- cido instantaneamente, e certamente não lido 83 pierre guisan | a história das modalidades escritas na constituição dos estados nacionais modernos e da sua mitologia. em segundo lugar, acompanhando a consoli- dação de uma língua comum, que viria a ser cha- mada de língua nacional, se constroem as fronteiras linguísticas, substituindo o estado anterior “natu- ral” de continua. Assim sendo, a noção de fronteira linguística, geralmente pouco questionada, apa- rece como sendo o resultado da promoção de uma variante que surgiu a partir de uma koiné escrita construída e, consequentemente, paralelamente à construção dos estados nacionais modernos. enfm, em terceiro lugar, a própria noção de língua se torna relativa, e merece ser reexaminada num contexto onde os mapas linguísticos não poderiam mostrar territórios claramente delimi- tados, com cores diferentes assim como os mapas políticos, mas em vez disso, manchas que se inter- penetram com matizes confusos e, sobretudo, constantemente em mudança, de uma forma impressionista dinâmica. A língua, no seu sentido comum e moderno, aparece como sendo o resultado da apropriação de um território por uma koiné construída, que vai se infltrar em todos os interstícios do espaço deli- mitado pelas fronteiras inventadas, a ponto de se identifcar com uma nação e se confundir com ela, através da “literização” deste território, recoberto, nos tempos modernos de indicações de localidades, de letreiros comerciais, de painéis publicitários; a escrita, que reescreve o território, que instaura as fronteiras, que se autolegitima, geralmente em detrimento das variantes históricas, e que apaga o velho quadro dos continua das línguas faladas que historicamente se sobrepunham e se mesclavam em limites indefnidas. O mapa linguístico com as fron- teiras desenhadas com precisão estática substituía o velho quadro impressionista dos falares que se fun- diam, se misturavam sem território bem defnido, na sua instabilidade crônica. De agora em diante, a língua seria a expressão da nação, o seu mito fun- dador e o gênio de um povo 3 . tal é a grande ilusão 3 Remeto aqui ao trabalho de Henri Meschonnic, De la langue française: essai sur une clarté obscure, publicado em Paris pela edi- tora Hachette em 1997, assim como ao livro organizado pelo mesmo autor, Et le génie des langues?, publicado em Saint-Denis pela editora Presses Universitaires de Vincennes, no ano 2000. pesquisa e da refexão, científca, ou flosófca, em latim, língua articulada segundo as regras da gra- mática, que refete um modo operatório de refexão lógica, com orações principais e subordinadas, e assim por diante. enquanto na “oratura” em língua vulgar, o modo operatório é outro. A introdução de uma “nova” língua vulgar escrita, koiné das elites, vai oferecer, a partir de modelo latino, um discurso articulado novo tendo como suporte a língua vul- gar – ou melhor, a nova koiné. Logo, a ideia de publicar em língua vulgar foi se impondo, apesar das inúmeras variantes diale- tais que a compunha. Por este motivo se elaborou uma variante média, língua materna de ninguém, porém compreensível e legível por um grande número de falantes de dialetos diversos. tal construção de uma koiné escrita foi uma realização constante, como testemunham relatos e diários de escritores da época. elaborou-se atra- vés de processos idênticos tanto na espanha como na Itália, na França, na Alemanha e na Inglaterra. essa língua escrita não demorou a se realizar numa modalidade oral, entre locutores cultos de regiões diferentes, como disso testemunha Montaigne 2 , na França, que, durante uma viagem em Paris, observa que tem grande difculdade em enten- der os parisienses, embora as suas obras já fossem sucessos de livraria. esta língua escrita, portanto, se torna língua oral das elites, língua “da Corte”, mas tarde língua das escolas, enfm língua “stan- dard”. Assim é que até hoje falantes de regiões diferentes da Alemanha, da Áustria ou da Suíça podem resolver falar a língua comum que não é língua materna de ninguém, o hochdeutsch ou o schriftdeutsch, ou seja, falar em alemão “escrito”. As consequências da emergência desta variante escrita que se tornaria língua comum são imen- sas. em primeiro lugar a área de difusão editorial das obras publicadas na koiné escrita acabou def- nindo um espaço que viria a ser, grosso modo, um espaço nacional. Podemos, portanto, dizer que a defnição de tal espaço foi uma premissa essencial 2 Montaigne, como antes dele autores de romance como Rabe- lais, ou poetas como Du Bellay, autor de uma Defesa e Ilustra- ção da Língua Francesa, foram escritores que contribuíram, de modo voluntarista e consciente, para criar uma koiné escrita francesa. 84 pierre guisan | a história das modalidades escritas afetam os dois sistemas no seu contato cotidiano, sistemas agora batizados de “modalidades”. Visto sob este ângulo, é natural se pensar nas interferências entre os dois sistemas como um caso particular de contato linguístico e, consequente- mente, aplicar os métodos e procedimentos que demonstraram a sua efcácia nesta área. Acima de tudo, ao se desmistifcar noções como correção da língua, pureza, modelo, erro, correção, e ao substi- tuí-las pelos conceitos desenvolvidos pelas pesqui- sas sobre línguas em contato, como empréstimos lexicais e morfossintáticos, difusão, representações linguísticas, transmissão prosódica, abrem-se pers- pectivas novas que nos parecem muito interessan- tes no que diz respeito, por exemplo, ao ensino e à alfabetização. Como em todas as áreas de línguas em con- tato, um modelo conveniente parece ser o de um continuum com polaridades, modelo desenvolvido em particular nos estudos das línguas crioulas. A comparação nos parece adequada, já que as línguas crioulas sofreram também uma desconsi- deração em face do prestígio da sua língua-base, ou seja, fonte principal do seu léxico. Quando, pelo menos na área da linguística, foi reconhecido à categoria das línguas crioulas o status de língua plena, com um sistema em ruptura com a lín- gua-base, foi dado um forte impulso aos estudos crioulos, que resultaram em contribuições teóricas importantes para os estudos linguísticos em geral, como precisamente os modelos de continuum das variantes e a coexistência das mesmas no mesmo território. Assim sendo, pensamos que seria interessante considerar também o que se chama habitualmente de modalidades da língua como dois sistemas dife- rentes, porém em contato permanente, no mesmo território, e que deste contato se origina um conti- nuum, porém polarizado. 6. a contribuição das escritas na representação e nas mudanças das línguas O processo que descrevemos revela assim uma transformação essencial na paisagem linguística, que consistia num conjunto de variantes e línguas gerada pelos últimos desenvolvimentos da revolu- ção da gramatização. O processo que descrevemos, e que apre- senta os nacionalismos e as fronteiras nacionais antes como consequências, e não como causas, da gramatização e da invenção da língua nacional, teve uns episódios recentes e relativamente bem- sucedidos, como no caso da Indonésia, arquipé- lago de centenas de línguas, com graus variáveis de parentesco. Uns intelectuais dos anos 30, lutando pela independência em face do colonia- lismo holandês (o arquipélago se chamava então de Índias neerlandesas, com capital Batávia, que viria a ser Jacarta dos dias de hoje), admitiram que não se podia criar uma nação moderna sem uma língua unifcadora. Daí este trabalho consi- derável de se criar uma koiné, o bahasa indonesia, reunindo principalmente elementos das diversas línguas da família malaia, incorporando entre- tanto um léxico neerlandês e... português, já que havia bastante empréstimos datando dos empre- endimentos comerciais lusos entre os séculos xVI e xIx. Língua que não era língua materna de nin- guém, koiné escrita, cujo sucesso foi surpreenden- temente rápido, a ponto de suplantar hoje em dia em grande parte as línguas regionais como línguas maternas. O mesmo esforço se deu no continente, na península da Malásia, ex-colônia britânica, sem, entretanto, culminar com a fusão dos dois países, a Malásia e a Indonésia. 5. um modelo para a coexistência de dois sistemas A partir dessas observações, podemos considerar que hoje em dia, num território defnido, coexis- tem no mínimo dois grandes sistemas linguísticos: uma língua resultando da mudança “natural” habi- tualmente descrita das variantes faladas, e outra lín- gua emergindo de um processo de adoção de um koiné escrita, adotada progressivamente pelas elites e batizada de língua “correta”, “pura”, “standard”, servindo de modelo e adotada nas escolas. A partir desta situação, as interferências entre os dois sistemas são evidentemente constantes, e as mudanças – apesar do ideal de estabilidade alme- jada pelos defensores da “pureza” da linguagem – 85 pierre guisan | a história das modalidades escritas vergência e um apagamento progressivo das dife- renças. Deste modo, realiza-se uma homogeneiza- ção progressiva dentro do território cujas fronteiras haviam sido defnidas como a área de difusão da escrita eleita como norma. enquanto, num movi- mento oposto, cria-se, nas áreas fronteiriças, um distanciamento cada vez maior entre regiões vizi- nhas, outrora linguisticamente próximas. este novo modelo de línguas geografcamente delimitadas e estabilizadas teve um efeito impor- tante nos próprios estudos das línguas, possibili- tando e evidenciando diferenças e convergências entre os sistemas linguísticos. Queria citar aqui um precursor, geralmente ignorado, no que diz respeito aos estudos comparativistas cuja pater- nidade é geralmente atribuída ao ofcial inglês William Jones; trata-se do frei João de Souza, que, no seu livro Vestígios de língua arábica em portu- guês, publicado em 1788, nota em particular as grandes semelhanças estruturais – e lexicais – entre a língua persa e a língua inglesa. O frei, deve-se dizer, era de origem indiana, porém nascido em Damasco, na Síria, e recolhido após um naufrágio pelos portugueses quando ainda adolescente. O próprio Jean-Jacques Rousseau, sempre a partir da escrita, elaborou no seu Essai sur l´origine des langues; où il est parlé de la mélodie et de l´imitation musicale uma teoria sobre as três ida- des da humanidade, que se refetem através de três etapas na história das línguas. Refexões interes- santes até hoje... mas na medida em que se substi- tui a palavra “língua” por “sistema de escrita”. É apenas um exemplo de como podiam se multiplicar os estudos flológicos comparativistas a partir desta visão pela qual a língua é percebida através da sua variante normatizada e normati- zante, estabelecendo graus de parentesco e cons- truindo assim o modelo genético classifcatório das línguas. 7. o mundo novo da hegemonia da escrita A partir dos tempos modernos, isto é, no fnal do século xV, a língua escrita se impõe como sendo hegemônica, normativa, invadindo todos os aspec- tos da vida. Antigamente, a escrita atuava princi- que não cessavam de interagir, de se sobrepor, sem que houvesse limites claramente estabelecidos, em territórios onde se passava gradualmente de um falar para outro, atravessando continua que torna- vam relativamente insensíveis as mudanças entre áreas vizinhas. A nova paisagem vai resultar de uma cristalização de variantes em torno de uma variante de prestígio, que vai se identifcar com o território. Desde então vão se tornar sensíveis passagens de fronteiras, que agora consistem em limites que separam áreas de duas koinés escritas diferentes. Assistimos, portanto, a uma divisão discreta dos territórios. A promoção de uma variante de prestígio, uni- fcadora de um território – que será geralmente chamada de nação – ao mesmo tempo divide regiões vizinhas, que outrora usavam variantes próximas, mas que agora são regiões fronteiriças, com legitimidades diferentes de cada lado desta linha ideal, a fronteira de estado. Assim é que as variantes tramontanas do Norte de Portugal são etiquetadas como falares portugueses, enquanto na outra margem do rio Minho, o galego adota uma ortografa que visualmente o distingue cla- ramente do português. Sem falar do servo-croata que adota – afnal como única marca distintiva – o alfabeto latino ou o cirílico, de acordo com o lado da fronteira política. evidentemente, a existência de uma norma prestigiosa em face das variantes tradicionais vai ser um fator decisivo, inibindo em parte a deriva, ou seja, a mudança destas mesmas variantes faladas. A partir daí, se desenvolve até uma metáfora biológica do contato linguística, pela qual os fenômenos de empréstimos são qualifcados de “contaminação”, por exemplo. Os empréstimos são estigmatizados, na medida em que cada “língua” é vista como uma entidade que deve se defender contra contamina- ções e manter-se incólume, sob pena de perder o seu “caráter”, o seu “gênio”. Os contatos são vistos de um ponto de vista higienista, é uma questão de saúde, pois os micróbios e vírus estão na espreita. Assim sendo, as variantes, constantemente sub- metidas à comparação com a variante de prestígio – ou seja, a norma –, têm a sua força de deriva ini- bida, e o contato permanente com a língua escrita que preenche um papel de censura e de legitimação exerce tamanha pressão que assistimos a uma con- 86 pierre guisan | a história das modalidades escritas Seria o caso de observar aqui, apenas para men- ção, que a função da escrita como transcrição da língua oral continua, e parece até ser revalorizada, tanto na literatura – mas é um caso complexo de mimesis artística – quanto, sobretudo, pelo viés dos novos meios de comunicação, como os chats na Internet. conclusão todas as considerações que foram feitas levam à conclusão segundo a qual seria pertinente propor novas abordagens nos estudos das relações entre as assim chamadas modalidades da língua. Obser- vamos que a variante escrita originou a variante considerada como “correta”, isto é, socialmente valorizante e devendo ser adquirida através da ins- tituição escolar que tem por papel, entre outros, selecionar os indivíduos. Assim sendo, convém reavaliar a relação que a instituição estabelece entre os dois conjuntos de variantes, para que primeira- mente a língua materna do indivíduo não sofra um desprestígio que o desencoraje na aquisição da variante prestigiada como a única legítima. É nesse sentido que se poderia sugerir que se reorientassem tanto as pesquisas sobre as relações entre línguas escrita e oral como as aplicações em particular no ensino, no sentido de lançar mão dos modelos dos estudos sobre línguas em con- tato, das fronteiras e dos continua linguísticos. Na verdade, as ditas “modalidades” da língua não se diferenciam tanto pelo suporte – o papel e o som –, mas constituem duas variantes ou línguas que interagem de forma permanente. palmente como mera transcrição da língua oral, mesmo se geralmente apenas a variante nobre, ou seja, ou registro tenso, era objeto de transcrição. Daí a notável biunivocidade dos silabários ou alfa- betos usados, como no caso de latim. As difculdades ortográfcas surgiram evi- dentemente com a inadequação dos alfabetos tradicionalmente usados com as novas formas fonéticas das línguas transcritas. Não é o caso apenas das línguas neolatinas; os mesmos obs- táculos se encontram, por exemplo, nas diversas variantes do árabe moderno, cujo quadro foné- tico difere bastante daquele do árabe clássico ou corânico. e é interessante constatar que as obras da península ibérica escritas em português ou em espanhol que usavam os caracteres árabes afnal não encontraram difculdades ortográfcas intransponíveis. Quando a gramatização se tornou efetiva, e que uma koiné escrita veio a substituir o latim como língua erudita e culta, a difculdade orto- gráfca foi incorporada à cultura, e os indivíduos passaram a ser julgados em função da sua com- petência na ortografa, que passou a ter um papel seletivo. O processo é particularmente evidente nos países de língua francesa ou inglesa, onde a ortografa veio até a ser considerada como um dos esportes nacionais, em jogos na televisão, ou em jogos de sociedade. Neste confronto desigual entre as línguas fala- das e a norma ou koiné escrita, o desprestígio das primeiras se torna progressivamente maior, e a nova língua – chamada de nacional ou de “stan- dard” vai ter o papel, através em particular da escola, de poderoso instrumento de seleção para atender às novas necessidades de hierarquização dos indivíduos no quadro das classes sociais das sociedades modernas. Agora é inimaginável con- ceber um chefe de estado analfabeto como o eram Carlos Magno – dizem! – ou Pedro 1º de Aragon, que mal sabia assinar... e só em árabe, conforme se pode verifcar na ilustração que segue 4 ! 4 Fac-simile extraído do livro da autoria de gUeRNIeR eugène, La Berbérie, l’Islam et la France, Paris: editions de l’Union Française, 1950. O autor era ofcial das forças armadas francesas durante a época colonial. ! 87 pierre guisan | a história das modalidades escritas gAUVIN, Lise. La fabrique de la langue. Paris: Seuil, 2004. HAVeLOCK, eric A. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e terra e editora da Unesp, 1996. título original: The Literate Revolution in Greece and its Cultural Con- sequences. Princeton University Press, 1982. MARCHAND, Valérie-Marie. Les alphabets de l’oubli. Paris: editions Alternatives, 2002. OLSON, David. 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São novas perspec- tivas que as pesquisas deveriam abrir ao aplicar as aquisições dos estudos sobre línguas em contato na área das inter-relações entre modalidades escri- tas e línguas orais. bibliografia AUROUx, Sylvain, A revolução tecnológica da gramatiza- ção. Campinas: editora da Unicamp, 1992. BONFANIe, Larissa, & alii. Reading the Past. Ancient Writing from Cuneiform to the Alphabet. London: British Museum Publications, 1990. CALVet, Louis Jean. Histoire de l’Écriture. Paris: Plon, 1996. CHARtIeR, Roger. Culture écrite et société, l’ordre des livres XIVe-XVIIIe siécle). Paris: Albin Michel, 1996. 88 os homens de extremadura são diferentes dos d’entre Douro e Minho porque assim como os tem- pos, assim tambem as terras criam diversas condi- ções e conceitos [...] e o velho como tem o entender mais frme [...] tambem suas falas são de peso e as do mancebo mais leves (p.79-80) O estudo sistemático das variações, sobre- tudo as de natureza geográfca, no entanto, só veio a surgir como consequência do interesse pelo estabelecimento de correspondências entre línguas diferentes mas correlacionadas. em fnais do século xVIII (1786), o trabalho de William Jones, que mostrava as afnidades entre o sânscrito, o grego, o latim e as línguas ger- mânicas, acabaria por defnir o perfl do século xIx, no que toca às investigações sobre a lin- guagem, norteadas pelo método histórico-com- parativo. Para dar conta da tarefa de determinar as famílias linguísticas, que acabou por desenhar a árvore genealógica do indo-europeu, era neces- sário recorrer não só a documentos de línguas não mais faladas, mas também a dados, os mais resumo Neste texto, faz-se um breve histórico sobre as primeiras pes- quisas de cunho geolinguístico e sociolinguístico e comenta- se a produtividade dessas duas correntes, no intuito de ressal- tar sua complementaridade no que se refere ao conhecimento dos processos de variação e mudança linguísticas. sociolinguística e geolinguística: uma perspectiva histórica Silvia Figueiredo Brandão é Professora Associada de Língua Portuguesa da UFRJ, atuando na graduação e no Programa de Pós-graduação em Letras Vernácu- las. Desenvolve pesquisas nas áreas da Sociolinguística e da Dialectologia, em especial nos campos da Fonética- Fonologia e da Morfossintaxe. e-mail:
[email protected] abstract In this paper, we make a brief history of the frst researches made under the geolinguistic and sociolinguistic perspectives and we comment on the productivity of those two trends in order to show and reinforce their complementarity as regards the knowledge of linguistic variation and change. A consciência de que as línguas variam no espaço geográfco e social não é recente. Na grécia, de onde proveio a noção de dialeto, distinguiam-se variedades regionais, entre as quais a ática, que, a partir do século IV a.C., serviu de base à koiné dialektós, ou “língua comum”, como meio de intercomunicação. também os romanos distin- guiam, na linguagem corrente, variedades sociais como o sermo urbanus, o sermo plebeius e o sermo rusticus. Documentos mais remotos como o Appendix Probi ou mais recentes, como as pri- meiras gramáticas do Português, não só regis- tram a preocupação com a fxação de normas, mas também denotam a variação inerente aos sistemas linguísticos, como se verifca nas duas passagens da Gramática da linguagem portuguesa, de Fernão de Oliveira: e mui poucas são as coisas que duram por todas ou muitas idades em um estado, quanto mais as falas, que sempre se conformam com os conceitos ou entenderes, juízos e tratos dos homens; e esses homens entendem, julgam e tratam por diversas vias e muitas, às vezes segundo quer a necessidade e às vezes segundo pedem as inclinações naturais (p.95.) 89 silvia figueiredo brandão | sociolinguística e geolinguística ginalmente fora sugerido”. Wenker, que, de início, pretendia focalizar apenas uma área em torno de Düsseldorf, foi estendendo os limites de sua pes- quisa até abarcar, três anos depois, em 1879, todo o império alemão. também na França, a dialectologia ganhava vulto, como demonstra o fato de, a partir de 1881, ela fazer parte do currículo regular da École Pra- tique des Hautes Études, de Paris, impulsionada pela valorização das manifestações populares, e, sobretudo, pelo já mencionado interesse pela evolução das formas linguísticas. Jules gilliéron, que ali ministrava essa disciplina desde 1883 e que até já publicara, em 1880, o Petit Atlas Pho- nétique du Valais Roman, com 30 mapas, incen- tivado por gaston Paris, devotou-se, a partir de 1897, à elaboração do Atlas Linguistique de la France (ALF), que, no dizer de Coseriu, “havia de inaugurar uma nova etapa da história da lin- guística” (1982:87). O empreendimento – que tinha, entre outras motivações, guardar para a posteridade a riqueza e variedade das falas locais, ameaçadas pela difu- são acelerada da língua comum e organizar uma coleção, o mais homogênea possível, de materiais representativos de todos os dialetos, de modo a fundamentar, em bases sólidas, estudos compara- tivos (Coseriu, 1982:87) – teve caráter revolucio- nário por basear-se em pesquisa de campo, ou, nas palavras do próprio gilliéron, na recolha de materiais registrados por um homem que não fosse nem flólogo, nem linguista, e cuja orelha nos desse todas as garantias desejáveis (Apud Pop & Pop, 1959:72). Com base em Coseriu (1982:87-88), Petyt (1980:44-45) e Chambers & trudgill (1980:18- 20), formulou-se um quadro em que se com- param os projetos do Sprachatlas des Deutschen Reichs e do Atlas Linguistique de la France, como inicialmente concebidos de modo a tornar mais evidentes as razões pelas quais, embora ambos tenham sido inovadores para a época, o ALF é considerado o marco fundador da geografa lin- guística. “puros” possíveis, das línguas vivas. Segundo Petyt (1980:37), os flólogos imaginaram que tal pureza poderia ser encontrada nos dialetos, que “frequentemente preservam formas mais antigas e mais regulares do que a variedade stan- dard”. Segundo Chambers & trudgill (1980), até a última metade do século xIx, as caracterizações de áreas dialetais eram intuitivas e casuais. Só então, tornou-se claro que tais carac- terizações eram inadequadas diante dos notáveis avanços na flologia e em outros estudos linguísti- cos que estavam conduzindo à moderna disciplina, a Linguística (p.16). entre tais avanços, conta-se a busca por mecanismos gerais de mudança linguística, oriunda dos estudos desenvolvidos pelos neo- gramáticos que formularam o princípio de que as alterações fonéticas obedeceriam a leis rígidas que, à semelhança das leis naturais, não teriam exceções. Para sustentar tal hipótese, evidências advindas dos dialetos seriam relevantes, o que redundou no desenvolvimento da geografa dia- letal (p.17). De acordo com Petyt (1980:38), o prová- vel primeiro miniatlas linguístico de que se tem conhecimento faria parte da também pri- meira gramática que tentou tratar não apenas de um dialeto, mas de todos os dialetos de uma área. Os dialetos da Baviera – obra realizada por Johann Andréas Schmeller e publicada em 1821 – fazia uma apresentação histórico-geográfco-gramatical da língua alemã nesse espaço geográfco e incluía um pequeno mapa em que se classifcavam os dialetos bávaros. tradicionalmente, no entanto, atribui-se a georg Wenker o primeiro estudo na linha geo- linguística. Para Chambers & trudgill (1980:37), seu trabalho sobre os dialetos alemães, motivado, em parte, pela ideia de que a mudança sonora seria regular, mostrou, não obstante, que a situação “era, na realidade, bem mais complexa do que ori- 90 silvia figueiredo brandão | sociolinguística e geolinguística da de Dieus. também não coincidem pays, pis, plus e prix. O mesmo se pode verifcar nas palavras cujo –s tem um valor morfológico, isto é, quando serve para marcar o plural dos substantivos, adjetivos, etc. (cf. arbres e autres contidos no Atlas) e a 2ª. pessoa do singular do presente (cf. tu as e tu vas) A metodologia proposta por gilliéron teve inúmeros méritos, entre os quais o de dar mar- gem a inferências de natureza histórico-social, de chamar a atenção para questões relativas a limites dialetais, a processos de mudança, à difusão de formas e sons, de inaugurar a prática de pesquisa de campo, de organização de corpora, de observa- ção da língua em sua dinâmica. O método foi-se multiplicando pela europa e tem ainda notável vitalidade, como o comprovam os inúmeros projetos concluídos e em andamento em diferentes partes do mundo, notando-se, hoje, duas tendências básicas: uma, de caráter arqueo- lógico, histórico-comparativo, que é, em geral, o perfl dos atlas europeus (e aqui serviriam de exem- OBRA Sprachatlas des Deutschen Reichs Atlas Linguistique de la France Autor Georg Wenker (1852-1911) Jules Gilliéron (1845-1925) Princípios metodológicos Início do Projeto 1876 1896 Informantes Cerca de 50.000 professores (Deveriam apontar a pronúncia que consideravam típica do local) 700 1 (Relativa homogeneidade: apenas 60 mulheres e 200 escolarizados) Questionário 40 frases (a serem “traduzidas”para o dialeto local) 1.400 perguntas (posteriormente, 1920) Recolha de dados Indireto (questionário aplicado por correspondência) Direto (questionário aplicado por pesquisador de campo: edmond edmont) Duração da recolha 10 anos (1877-1887 e mais tarde teve continuidade) 4 anos (1897-1901) Registro dos dados transcrição por meio da adaptação da ortografa à pronúncia. Alfabeto fonética (Registro da primeira resposta do informante, espontânea) Pontos de inquérito 30.000 comunidades (praticamente total) 639 (um por 830km²) em 550 pontos: um informante; em 87: de dois a três; em 2: quatro Interpretação dos dados extremamente difícil Relativamente fácil Publicação dos resultados 1881 (fascículo com 6 mapas fonéticos) 1926 (após a morte de Wenker-1911), um volume organizado por Ferdinand Wrede 1902-1910 (36 fascículos: 1920 mapas) 1912: índice 1914-1915: Suplemento sobre a Córsega: 799 mapas 1920: materiais recolhidos por edmont fora do questionário, não mapeados Quando Wenker morreu, fazia 35 anos que havia iniciado seu projeto inacabado. em 14 anos, gilliéron publicou o ALF e, ainda, inúmeros estu- dos que vieram demonstrar que os princípios neo- gramáticos eram insufcientes para a compreensão da complexidade dos dialetos e acabou por cunhar um novo axioma, o de que cada palavra tem sua própria história, que difere da de qualquer outra. e apenas para rememorar um tema discutido em outra mesa, cabe apresentar uma observação de Iorgu Iordan (1982:229): Um exemplo interessante que apoia esta ideia é-nos oferecido pelo destino do –s fnal, que prova de forma convincente que nos encontramos muitas vezes perante “mirages phonétiques” quando recor- remos exclusivamente às chamadas leis fonéticas. De facto a geografa linguística prova-nos sem sombra de dúvidas que a área de expansão de Jacques, por ex., não coincide com a de diables e ambas se distinguem 1 Coseriu (1982:89) menciona 720. 91 silvia figueiredo brandão | sociolinguística e geolinguística Segundo esses autores, o novo campo é o lugar Onde vão se encontrar os herdeiros das tradições antigas como a da antropologia linguística – caso de Hymes – ou da dialectologia social – como Labov – e de especialistas da experimentação ou da intervenção social: psicólogos, sociólogos, e mesmo planifcadores. Na nova área, abrigaram-se diferentes correntes, entre as quais, como salienta Alkmin (2006:43): – a Sociologia da Linguagem, representada por J. Fishman; – a Sociologia Interacional, ligada ao nome de J. gumperz; – a Dialectologia Social, associada ao trabalho de estudiosos como R. Shuy e P. trudgill; – a etnografa da Comunicação, inseparável do nome de D. Hymes [...]. Caberia, também, uma referência, nesta vertente, aos trabalhos de R. Bauman e J. Sher- zer, voltados, particularmente, para a questão da arte verbal e da poética dos gêneros de fala. Outra de suas vertentes, a Sociolinguística Variacionista, que parte do princípio de que a variação é inerente aos sistemas linguísticos e as variantes são linguística e socialmente condi- cionadas, começou a delinear-se a partir de dois estudos de William Labov, hoje considerados clás- sicos: “the social history of a sound change on the Island of Martha´s Vineyard, Massachussets” (1962) e “the social stratifcation of english in New York City” (1966), respectivamente sua dis- sertação de Mestrado e sua tese de Doutorado. Na esteira do variacionismo. Fatores vinculados a faixa etária, gênero, nível de instrução, nível socioeconômico, etnia, entre outras variáveis que determinam a heterogenei- dade dos grupos sociais, passaram a ser analisados em conjunto com fatores de cunho estrutural, de modo a determinar as restrições que presidem à implementação de variantes e que podem condu- zir a processos de mudança linguística. Por outro lado, novos métodos de coleta de dados – entre os quais entrevistas minimamente monitoradas, a fm de neutralizar o efeito negativo da presença do documentador e garantir a natura- lidade da situação comunicativa, bem como a sele- ção aleatória de informantes estratifcados segundo variáveis extralinguísticas como as acima indicadas plo projetos como o Atlas Linguarum Europae – ALe, o Atlas Linguistique Roman – ALiR e o pró- prio ALePg), outra, de caráter pluridimensional, também voltada para a diversidade social (como o LANE e, entre os mais recentes, o ADDU – Atlas Linguístico Diatópico y Diastrático del Uruguay), próprios de áreas de língua transplantada. Retornando, ainda, ao passado, verifca-se, que, à época em que Wenker e gilliéron desenvolviam seus projetos, ocorria, também, uma “revolução no campo da investigação dialetal” (Iordan (1962:5). Na França, o Abade Rousselot demonstrava, por meio de seu estudo Modifcations phonétiques du langage étudiés dans le patois d’ une famille de Cellefrouin, de 1891, que a fala não apresenta uni- formidade nem mesmo no âmbito de uma família, devido a diferenças de gênero, idade e ocupação. Na Suíça, gauchat, em 1905, publica L’únité phonétique dans le patois d’une commune, e faz não só a mesma verifcação que Rousselot, mas tam- bém observa a variação signifcativa na fala dos habitantes de uma aldeia, atribuindo-a a fatores ligados às variáveis gênero, ocupação, faixa etária, posição social e gênero.Usando também um ques- tionário, conclui, entre outras coisas, que não há unidade entre um grupo de falantes (numa aldeia, por exemplo), mas pode haver em indivíduos per- tencentes a uma mesma geração. tais estudos podem ser vistos como precur- sores da Sociolinguística 2 , corrente que, embora tenha tido como marco inicial o artigo “Social infuences on the choice of a linguistic variant”, de John Fisher, publicado na Revista Word em 1958, veio a consagrar-se como um ramo da Lin- guística em 1964 em um congresso organizado por William Bright na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Alkimin, 2006:28), defnindo- se como uma área que tem por escopo a interrela- ção entre língua, sociedade e cultura. Dentre os linguistas presentes ao evento, destaca-se aqui William Labov, talvez hoje, sua fgura mais repre- sentativa. Como bem observou Alkmin, citando Bach- mann et al. (2006:29): 2 De acordo com Chambers (1995: xix), o termo foi cunhado com o sentido que aqui interessa em 1952, num artigo (“Pro- jection of socio-linguistics”), de Haver Currie. 92 silvia figueiredo brandão | sociolinguística e geolinguística As entrevistas, com duração de 30 a 45 minu- tos, foram realizadas com base na aplicação de diferentes técnicas: (i) fala espontânea; (ii) dife- rencial semântico (questões sobre diferença de sentido entre duas palavras); (iii) palavras elicia- das, isto é, sequências de palavras que não reque- rem leitura (como dias da semana, peças de ves- tuário, contagem); (iv) pares mínimos e (v) lista de palavras, enviadas por correio aos informantes que eram, mais tarde, recontactados por telefone para realizarem a leitura. Ao que tudo indica, a geografa linguística, método inaugurado no século xIx e renovado ao longo do século xx, mostra-se, no início do século xxI, ainda um importante instrumento para o estudo da variação e mudança linguísticas. referências bibliográficas ALKMIM, t. M. “Sociolinguística: parte I.” In: MUS- SALIM, F.; BeNteS, A. C. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 21-47. CHAMBeRS, J. K.; tRUDgILL, P. Dialectology. Cam- bridge: Cambridge University Press, 1980. COSeRIU, e. “A geografa linguística”. In: ___. O homem e a sua linguagem. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1982. p. 79-116. IORDAN, I. Introdução à linguística românica. 2. ed. Lis- boa: Fundação Calouste gulbenkian, [1982] LABOV, W. “Les motivations sociales d´un changement phonétique”. In: ___. Sociolinguistique. Paris: Les Édi- tions de Minuit, 1976. p. 9-93. OLIVeIRA, F. 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Pode-se, assim, dizer que a Sociolinguística – que enseja conhecer em profundidade um deter- minado fenômeno variável – e a geolinguística – que permite detectar, simultaneamente, vários fenômenos variáveis e observar a difusão de variantes pelas diferentes áreas de um território pré-defnido – são intercomplementares, como bem demonstra Labov (1976:48), que, em seu trabalho pioneiro sobre Martha´s Vineyard, já destacava a importância de ter contado com os dados do Atlas Linguístico da Nova-Inglaterra como ponto de partida sólido e apoio fundamen- tal para a frmeza de suas conclusões. Reforça o caráter complementar das duas ver- tentes da Linguística também o fato de Labov ter- se dedicado, juntamente com Sharon Ash e Char- les Boberg, à elaboração de The Atlas of North American English: Phonetics. Phonology and Sound Change – ANAE, publicado em 2006 3 . Como se pode verifcar pelas informações contidas na web (cf. nota 3), as recolhas tive- ram início em 1992, tendo sido realizados 762 inquéritos por telefone, correspondentes a 297 comunidades urbanas de língua inglesa nos esta- dos Unidos e no Canadá. Um dos critérios para a escolha dos informantes, que deveriam ser nativos de seu atual local de residência e que foram sele- cionados com base em listas telefônicas, era o de terem ascendência, por exemplo, alemã, inglesa, irlandesa, escandinava, polonesa, de acordo com os grupos predominantes nas diferentes regiões abarcadas. 3 Cf., na web, a página de Labov (www.ling.upenn.edu/~labov) e da Mouton de gruyter, que publicou a obra (www.mouton- online.com). 93 sociolinguística e geolinguística no brasil: caminhos e encontros Jacyra Andrade Mota é Doutora em Língua Por- tuguesa. Professora Associada. Pesquisadora CNPq. Ins- tituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. Área de pesquisa: Sociolinguística e Dialectologia. Coautora do Atlas Linguístico de Sergipe (1997). Participante, desde a sua implantação (1969), do Projeto NURC. Diretora executiva do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (Projeto ALiB, 1996). e-mail:
[email protected] Site do ALiB: www.alib.ufba.br resumo O artigo tem como objetivo traçar um breve perfl do desen- volvimento das áreas de Sociolinguística e Dialectologia no Brasil, ressaltando alguns marcos dessa trajetória, assim como os pontos convergentes e divergentes das duas perspectivas no estudo da realidade linguística brasileira. Considerando que, no Brasil, como na história dos estudos da diversidade linguística, as pesquisas de natureza dialecto- lógica precedem as de ordem sociolinguística, é essa a ordem também aqui seguida. No capítulo sobre a dialectologia, destacam-se: os primeiros estu- dos descritivos de uma área brasileira, como o Dialeto Caipira de Amadeu Amaral, em 1920; o Decreto 30.643 do governo bra- sileiro, em 20 de março de 1952, que determinava a elaboração do atlas linguístico do Brasil; a publicação, em 1963, do Atlas Prévio dos Falares Baianos, primeiro atlas linguístico brasileiro; a retomada do Projeto Atlas Linguístico do Brasil, em 1996, e a sua infuência no surgimento de outros atlas regionais e no desenvolvimento da área de estudos dialectológicos. Na linha sociolinguística, citam-se o Projeto de estudo da Norma Lin- guística Culta no Brasil (Projeto NURC), iniciado em 1969, e os trabalhos de natureza geossociolinguística a que deu origem, ao lado de outros projetos de levantamento de dados empíricos surgidos a partir da década de 1970, com o objetivo de ampliar o conhecimento sobre o português do Brasil. Ressalta-se, na conclusão, o papel exercido pelo gt de Socio- linguística da ANPOLL no desenvolvimento das duas linhas de pesquisa – a Dialectologia e a Sociolinguística. abstract this article is intended to trace the development of Sociolin- guistics and Dialectology in Brazil, pointing out some marks in its path as well as the converging and diverging points of the two perspectives in the study of the Brazilian linguistic reality. Considering that, both in Brazil and in the history of the studies on linguistic diversity, the dialectological researches precede those of the Sociolinguistics, this order will also be followed here. In the chapter about dialectology are presented: the frst des- criptive studies of a Brazilian area, such as the Dialeto Caipira by Amadeu Amaral, in 1920; the decree 30.643 of the Brazi- lian government, of March 20 th , 1952, which determined the elaboration of the Brazilian linguistic atlas; the publication, in 1963, of the Atlas Prévio dos Falares Baianos, the frst Brazilian linguistic atlas; the resumption of the Project Atlas Linguís- tico do Brasil, in 1996, and its infuence on the appearance of other regional atlases and on the development of the dialecto- logical studies. In the sociolinguistic area are mentioned: the Projeto de Estudo da Norma Linguística Culta no Brasil (Projeto NURC), which started in 1969, and the works of geosociolin- guistic nature, besides other projects that collect empiric data, which have created since 1970, all of them aimed at enlarging the knowledge of Brazilian Portuguese. emphasis is also placed on the role played by the Sociolin- guistics Work group of ANPOLL, since its creation in 1985, for the development of Dialectology and Sociolinguistics. 1. a dialectologia no brasil Considerando inicialmente a perspectiva dialec- tológica stricto sensu, surgem, a partir da década de 1920, os primeiros trabalhos descritivos de uma área brasileira que ultrapassam o interesse apenas pela variação lexical, como os que vigo- raram no século xIx, e abordam outros níveis de estudo da língua, podendo-se considerar O Dialeto Caipira, de Amadeu Amaral, publi- cado em 1920, como marco inicial dessa 2ª. fase da história da Dialectologia no Brasil, como o fazem Nascentes, em 1922, e Cardoso e Ferreira (1994). 94 jacyra andrade mota | sociolinguística e geolinguística no brasil volume das Bases para a elaboração do Atlas Lin- guístico do Brasil: embora seja de tôda vantagem um atlas feito ao mesmo tempo para todo o país, para que o fm não fque muito distanciado do princípio, os estados Unidos, país vasto e rico e com excelentes estradas, entregou-se à elaboração de atlas regionais, para mais tarde juntá-los no atlas geral. Assim também devemos fazer em nosso país, que é também vasto e, ainda mais, pobre e sem fáceis vias de comunicação. (Nascentes, 1958, 7) A publicação por Silva Neto do Guia para estu- dos dialectológicos no Brasil, em 1957, assim como os congressos que se realizaram entre 1957 e 1959, principalmente o Primeiro Congresso Brasileiro de Dialectologia e etnografa, em Porto Alegre, em 1958, forneceram os subsídios necessários ao surgimento do 1º. atlas linguístico brasileiro, o Atlas Prévio dos Falares Baianos (APFB), iniciado em 1957 e publicado em 1963. O APFB dá início aos projetos de natureza geolinguística, voltados para o levantamento sistematizado e abrangente de dados empíricos em diferentes áreas do País, com interesse, sobretudo, na variação diatópica. Ao APFB seguem, por ordem de publicação: o 1º. volume do Esboço para um atlas linguístico de Minas Gerais (EALMG), em 1977; o Atlas Linguís- tico da Paraíba, em 1984; o Atlas Linguístico de Ser- gipe, em 1987; o Atlas Linguístico do Paraná, em 1994; o Atlas linguístico-etnográfco da região sul do Brasil (ALERS), vols. I e II, em 2002, o primeiro atlas a abranger mais de um estado; o Atlas Linguís- tico Sonoro do Pará (ALISPA), em CD, em 2004; o Atlas Linguístico de Sergipe II (ALS II), em 2004. em 1996, a retomada do projeto de um atlas linguístico do Brasil, no tocante à língua portu- guesa, desperta a atenção de vários grupos de pes- quisa para a área dialectológica, implementam-se novos projetos de atlas linguísticos 1 , alguns sob a 1 São eles: Atlas Linguístico do Maranhão (ALIMA), Atlas Lin- guístico do Mato grosso (ALMt), Atlas Linguístico do Ama- zonas (ALAM, tese de Doutorado defendida em 2004) e Atlas Linguístico do espírito Santo (ALeS), que vêm se somar aos já se encontravam em andamento – Atlas Linguístico do estado de São Paulo (ALeSP), Atlas Linguístico do Ceará, Atlas etno- linguístico do Acre (ALAL), Atlas geossociolinguístico do Pará (ALIPA), Atlas Linguístico de Mato grosso do Sul (ALMS). Ao dedicar O linguajar carioca em 1922 a Amaral, diz Nascentes (1953, p. 3): “A Amadeu Amaral, que no DIALetO CAIPIRA mostrou a verdadeira diretriz dos estudos dialectológicos no Brasil.” As observações de Amaral, postas na “Introdu- ção” à sua obra, mostram um pouco dessa “verda- deira diretriz” referida por Nascentes. Diz Amaral (1976, 43-44): Fala-se muito num “dialeto brasileiro”, expressão já consagrada até por autores notáveis de além-mar; entretanto, até hoje não se sabe ao certo em que consiste semelhante dialetação, cuja existência é por assim dizer evidente, mas cujos caracteres ainda não foram discriminados. Nem se poderão discriminar, enquanto não se fzerem estudos sérios, positivos, minuciosos, limitados a determinadas regiões. (...) Seria de se desejar que muitos observadores impar- ciais, pacientes e metódicos se dedicassem a recolher elementos em cada uma dessas regiões, limitando-se estritamente ao terreno conhecido e banindo por com- pleto tudo quanto fosse hipotético, incerto, não verif- cado pessoalmente. (...) Só então se saberia com segurança quais os caracteres gerais do dialeto brasileiro, ou dos dialetos brasileiros, quantos e quais os subdialetos, o grau de vitalidade, as ramifcações, o domínio geográfco de cada um. Obras publicadas por essa época refetem a preo- cupação com a realidade linguística brasileira, como mostram títulos como: A língua do Nordeste, de Mário Marroquim, em 1934; O falar mineiro, em 1938, e A linguagem de Goiás, em 1944, de José Apa- recido teixeira; A infuência africana no português do Brasil, em 1933, e O português do Brasil, em 1937, de Renato Mendonça; A linguagem popular da Bahia, em 1951, de Édison Carneiro, entre outros. Uma 3ª. fase inicia-se, segundo Cardoso e Fer- reira (1994), com o Decreto 30.643 do governo brasileiro, datado de 20 de março de 1952, que determinava, como uma das fnalidades da Comis- são de Filologia da Casa de Rui Barbosa, a elabo- ração do atlas linguístico do Brasil. Constatadas as difculdades de realizar-se, àquela época, o atlas linguístico do Brasil, foi deci- dida a elaboração de atlas linguísticos regionais, posição que Nascentes explicita, em 1958, no 1º 95 jacyra andrade mota | sociolinguística e geolinguística no brasil descartado, em razão de difculdades advindas da situação política do País àquela época. Implementa-se, assim, no Brasil, o interesse pela variedade de língua falada em grandes urbes por indivíduos situados nos níveis mais elevados da pirâmide social, no que se refere à escolaridade, pretensamente detentores de uma norma pró- xima ao ideal linguístico que se considera “norma culta”; e a preocupação com outros tipos de varia- ção, além da diatópica. Sobre as relações entre a dialectologia e a socio- linguística, após deslocamento do foco dos estudos da diversidade linguística do rural para o urbano e a inclusão sistemática de outros parâmetros, além (ou ao lado) do diatópico, comenta Lope Blanch (1978), 40), dialectólogo-sociolinguista, idealiza- dor do Projeto de estudo da Fala Culta nas Prin- cipais Cidades Hispano-americanas: De igual manera que la dialectología ha atendido a las realizaciones rústica o rurales de las más apartadas poblaciones de un país, debe también atender – y ya está atendiendo – a las más elevadas manifestaciones de las hablas urbanas. Pude haber, pues, una dialecto- logía del habla culta o inclusive una dialectología del habla académica 3 (Lope Blanch, 1978, 36). e, mais adiante: el hecho de que la dialectología haya dedicado, hasta no hace mucho tiempo, lo mejor de su esfuerzo al estudio de las hablas regionales, especialmente rura- les, no puede interpretarse como hecho defnitorio, sino como circunstancia transitoria. Hoy amplia su radio de acción atendiendo a las hablas urbanas y a los dialectos verticales, sin por ello dejar de ser dia- lectología pura” 4 (Lope Blanch, 1978, 40). 3 Assim como a Dialectologia ocupou-se das realizações popu- lares ou rurais das mais distantes populações de um país, deve também ocupar-se – o que já está fazendo – das mais elevadas manifestações das falas urbanas. Pode haver, portanto, uma dia- lectologia da fala culta e, inclusive, uma dialectologia da fala acadêmica. (tradução minha). 4 O fato de a Dialectologia haver-se dedicado com afnco, até há pouco tempo, ao estudo das falas regionais, especialmente rurais, não pode ser interpretado como fato defnitório da sua natureza, mas como circunstância transitória. (tradução minha.) forma de trabalhos de pós-graduação, caracteri- zando o que Cardoso e Mota (2006) consideram uma 4ª. fase na história da Dialectologia no Brasil. Do ponto de vista metodológico, a Dialecto- logia, ou, mais precisamente, a geolinguística, a partir da década de 1960, começa a abandonar o interesse quase exclusivo pela variação diató- pica, passando a incorporar sistematicamente os parâmetros variacionistas adotados pela Sociolin- guística, isto é, passa de monodimensional a bidi- mensional e, posteriormente a pluridimensional. Como exemplos de atlas bidimensionais citam-se o Atlas Linguístico de Sergipe I (ALS I), o Atlas Lin- guístico de Sergipe II (ALS II) e o Atlas Linguístico do Paraná (ALPR). O Projeto ALiB opta pela consideração de três parâmetros variacionais, além da diatopia – o gênero, a faixa etária e, nas capitais de estado, também a escolaridade do informante –, levando, a partir de então, outros projetos geolinguísticos à opção pela pluridimensionalidade. A propósito da “incorporação dos conceitos sociolinguísticos aos estudos dialectológicos” vale lembrar a inclusão dessa discussão, em 2000, no âmbito do gt de Sociolinguística da ANPOLL, na sessão de Dialectologia 2 , conforme observa Vandresen (2003, p. 23). 2. a sociolinguística no brasil em 1969, a introdução do Projeto de estudo da Norma Linguística Urbana Culta no Brasil (NURC) congrega pesquisadores de cinco univer- sidades brasileiras em torno do interesse comum de estudar o português do Brasil a partir do desem- penho de falantes urbanos de nível universitário, estratifcados quanto ao gênero e à faixa etária, registrados em quatro diferentes tipos de texto: diálogo entre informante e documentador (DID), diálogo entre dois informantes (D2), elocuções formais (eF) e gravações sem o conhecimento prévio do entrevistado (gS), esse último tipo logo 2 A sessão de Dialectologia contou com a participação de Der- cir Pedro de Oliveira (UFMS), Hilda gomes Vieira (UFSC) e emílio Milton giústi (Universidade Lumière, Lyon 2), repre- sentado por João da Rocha Neto (UFMS). 96 jacyra andrade mota | sociolinguística e geolinguística no brasil Por outro lado, pode-se admitir que o Projeto NURC tenha inspirado o surgimento de alguns projetos voltados para o levantamento e a análise de dados empíricos, elaborados com o objetivo de complementar os dados já obtidos, quer com o registro de outros corpora, diferentes do ponto de vista estrático ou geracional, quer com a inclusão de outras áreas que não integraram o Projeto NURC por não preencherem os requisitos quanto à popu- lação ou à época de fundação por ele requeridos. Com relação ao registro de outros corpora, cito a observação de Scherre, ao comentar a introdu- ção do Projeto Censo da Variação Linguística no estado do Rio de Janeiro, em 1980, posterior- mente identifcado como Programa de estudos sobre o Uso da Língua (PeUL), concebido, ini- cialmente, para aplicar-se nas cinco capitais brasi- leiras integrantes do Projeto NURC, com o regis- tro de 120 horas de gravação em cada uma delas. Diz Scherre (1996, p. 31): O principal objetivo deste grupo de pesquisa era a busca da norma não culta do português falado no Brasil, uma vez que, antes mesmo de sua existência, já estava em funcionamento o grupo de pesquisa NURC, cujo objetivo principal era a busca da norma urbana culta. Desta forma, seria possível traçar um quadro mais completo da realidade linguística urbana brasileira. estendem a investigação a outras áreas, por exemplo, o Projeto de estudo da Variação Linguística Urbana na região Sul (VARSUL), que inclui os três estados da Região Sul – Paraná, Santa Catarina e Rio grande do Sul; o estudo do Português de Fortaleza (PORtFOR), criado com o objetivo de registrar falantes naturais dessa capital, estratifcados, como os informantes do NURC, quanto a gênero, faixa etária e escolaridade; o Projeto de estudo da Variação Lin- guística no estado da Paraíba (VALPB), que regis- trou os falantes de João Pessoa, sob a coordenação de Dermeval da Hora. esses projetos ampliam também as variáveis, admitindo outras faixas etárias, além das três previstas pelo Projeto NURC – por exemplo, indivíduos com menos de 25 anos – e outros graus de escolaridade – nenhuma escolarização, 4, 8 ou 11 anos de escolarização. Com relação ao VARSUL é interessante obser- var o seu foco nas duas vertentes – a sociolinguís- tendo sido também um dialectólogo, autor do 1º. atlas linguístico brasileiro, o introdutor do Projeto NURC no Brasil, o estudo da norma lin- guística urbana culta adquiriu, aqui, também uma feição dialectológica, não se restringindo, como nos países da América Latina, apenas à capital do País – que, no caso do Brasil, por se tratar de Brasília, capital recém-fundada àquela época, não apresen- tava condições para representá-lo linguisticamente ou a uma das suas cidades mais importantes – que seria o Rio de Janeiro, antiga capital. Diz Rossi, em 1968, em sua proposta de inclu- são do Brasil no Proyecto de estudio coordinado de la norma linguística culta de las principales ciudades de Ibero América y de la Península Ibérica: Ora, considerando que Belo Horizonte (...) ainda não preenche por sua juventude como urbs os requisitos de sedimentação e consolidação mencionados, a ponto de ser difícil encontrar informantes que atendam às exi- gências estabelecidas na reunião de Madrid e possam fornecer uma amostra válida de um falar médio que talvez ainda não se tenha defnido, quer-me parecer que no Brasil devem ser estudadas as normas cultas de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e Sal- vador. Com essa decisão, teríamos uma amostra rela- tiva a uma população urbana estimada em 1967 para doze milhões e meio de habitantes aproximadamente, o que equivale a cerca de um sétimo da população atual do país, concentrada em quatro cidades funda- das no século xVI e uma – Pôrto Alegre – no século xVIII, distribuídas estas harmoniosamente por nossa extensão territorial mais densamente povoada: duas na região Centro-Sul (Rio de Janeiro e São Paulo), duas no grande Nordeste (Recife e Salvador) e uma na região Sul (Porto Alegre)” (Rossi, 1968, 51). Desse modo, atendendo à variação diatópica, ao lado da diagenérica, diageracional e diafásica, o Projeto NURC dá margem a inúmeras análises geossociolinguísticas a respeito do português do Bra- sil, como, por exemplo, as que se desenvolvem no âmbito do Projeto “gramática do Português Falado”, iniciado em 1988, sob a coordenação de Ataliba de Castilho 5 , assim como teses, dissertações e artigos. 5 A proposta inicial, de autoria de Castilho, deu-se em 1987, no II encontro Nacional da ANPOLL, realizado na UFRJ. Os resultados estão publicados na série Gramática do Português Falado, da qual se publicaram vários volumes, organizados por diferentes pesquisadores. 97 jacyra andrade mota | sociolinguística e geolinguística no brasil AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. 2. ed. São Paulo: Huicitec; Secretaria de Ciência e tecnologia, 1976. CARDOSO, Suzana. Atlas Linguístico de Sergipe – II. Salvador: eDUFBA, 2005. CARDOSO, Suzana; FeRReIRA, Carlota. A dialectolo- gia no Brasil. 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Atlas Linguístico do Paraná. Curitiba: Imprensa Ofcial do estado, 1996. 98 jacyra andrade mota | sociolinguística e geolinguística no brasil teIxeIRA, José Aparecido. O falar mineiro. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, São Paulo, n. 45, 1938. VANDReSeN. Paulino. “Variedades fonológicas do português do sul do Brasil”. In: Actas do 6º. Encontro da Associação Portuguesa de Linguística, Porto: Colibri, 1991. p. 307-316. VANDReSeN. Paulino. “A trajetória do gt de Socio- linguística da ANPOLL – 1985-2001”. In: ROCA- RAttI, Cláudia; ABRAÇADO, Jussara. Português brasileiro. Contato linguístico, heterogeneidade e his- tória. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003, p. 13-29. SCHeRRe, Maria Marta Pereira. “Breve histórico do Programa de estudos sobre o uso da língua”. In: SCHeRRe, Maria Marta Pereira; SILVA, giselle Machline de Oliveira e. Padrões Sociolinguísticos. Rio de Janeiro: tempo Brasileiro: UFRJ, 1996. p. 27-36. SILVA NetO, Serafm da. Guia para estudos dialecto- lógicos. 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For the present analysis, some of the maps from the Atlas Linguístico Diatópico e Diastrático – ADDU [Diatopic and Diastratic Linguistic Atlas] and from the Atlas Linguístico Guarani Românico – ALgR [Roman guarani Lin- guistic Atlas], both supervised by Harald thun, and made by teams of graduate students and fellow researchers, are discus- sed. Finally, some atlases made and or published in Brazil, as well as more recent research inspired by the pluridimensiona- lity concept have been selected. a geolinguística pluridimensional no brasil: histórico, metodologias e estágio atual Vanderci de Andrade Aguilera (UeL/CNPq/ CAPeS) é docente da Universidade estadual de Lon- drina-PR desde 1982, atuando nas áreas de Linguística Histórica, Dialetologia, geolinguística e Sociolinguística. tem doutorado em Linguística e Filologia pela UNeSP – Assis e pós-doutorado na Universidade de Alcalá de Henares, espanha. Autora do Atlas Linguístico do Paraná e Diretora Científca do Atlas Linguístico do Brasil. e-mail:
[email protected] resumo este artigo tem como propósito apresentar uma visão pano- râmica dos estudos geolinguísticos na perspectiva da geolin- guística pluridimensional, metodologia criada e desenvolvida por Harald thun, da Universidade de Kiel, na Alemanha. Inicialmente expomos os princípios básicos que norteiam o novo método, seguindo-se, numa proposta de visão histórico- comparativa, outros trabalhos desenvolvidos anteriormente, no Brasil e no Chile, que ora denominamos atlas monodi- mensionais e bidimensionais. Selecionamos para análise alguns mapas do Atlas Linguístico Diatópico e Diastrático – ADDU – e do Atlas Linguístico guarani Românico – ALgR, ambos orientados por Harald thun e executados por equi- pes de orientandos e parceiros. encerramos com alguns atlas concluídos e ou publicados no Brasil, além de estudos mais recentes que se desenvolveram sob a inspiração da pluridi- mensionalidade. Mestre: Que cousa he Dialecto? Discípulo: He o modo diverso de fallar a mesma língua. (...) Mestre: E quantas castas ha de Dialectos? Discípulo: Dialectos locaes, e Dialectos de tempo, e Dialectos de profssão. (...) Mestre: Ha mais alg˜u Dialecto, de que trateis? Discípulo: Ha hum modo de fallar a lingua Portugueza mao, e viciado, ao qual podemos chamar Dialecto rustico, e delle se usa a gente ignorante, rustica, e incivil, e della he necessa- rio desviar aos meninos bem criados”. (Regras, Jerônimo Contador de Argote, 1725. In: SILVA NetO, Serafm: 1970, p. 561-564) introdução Contador de Argote, na verdade, não foi o pri- meiro ‘linguista’ a perceber e a descrever a natureza dinâmica, mutável, diversifcada e multifacetada da língua. Mas é interessante observar que os dialetos portugueses já assim se apresentavam aos olhos e aos ouvidos dos estudiosos setecentistas, espelhando as diferenças diatópicas, ou locaes, das quais iriam se ocupar profundamente os dialetólogos a partir do fnal do século xIx até nossos dias; as diferenças diacrônicas, ou de tempo, que iriam instigar a ima- ginação e o raciocínio dos histórico-comparatistas e neogramáticos novecentistas; as diferenças de estilo, ou de profssão, de que também se ocupariam os sociolinguistas, da segunda metade do século xx 1 00 vanderci de andrade aguilera | a geolinguística pluridimensional no brasil jetos, como observam Chambers e trudgill (1988), é o perfl do informante selecionado. Considera-se como informante ideal o habitante da zona rural, de sexo masculino, mais velho, que não tenha saído de sua região. É o que Chambers e trudgill (1988:33) resu- mem na sugestiva sigla, em inglês, NORMs – “non- mobile, older, rural males”. em português, a sigla cor- respondente seria HARAS – H: homem, A: adulto, R: rurícola, A: analfabeto, S: sedentário (Zágari:1999). Neste particular, podemos afrmar que o pri- meiro atlas estritamente monodimensional publi- cado no Brasil é o esboço de um Atlas Linguístico de Minas gerais (Ribeiro et al.: 1977) – segundo atlas estadual pela ordem cronológica de publica- ção. A monodimensionalidade está na metodolo- gia adotada: apenas um informante por localidade, no caso, preferencialmente do sexo masculino, pois, conforme consta da Introdução da obra, nos primeiros 50 pontos, dentre os 83 informantes, apenas quatro são mulheres. também não inclui outras variáveis que não seja a diatópica, pois os informantes são analfabetos ou de baixa escolari- dade e estão na faixa etária dos 30 aos 50 anos. Ilustramos com a carta 27 – Cambalhota, adaptada de Ribeiro et alii (1977) A carta 27, por exemplo, apresenta a distri- buição espacial das variantes para a brincadeira infantil que consiste em ‘girar o corpo sobre a cabeça e acabar sentado’. As formas mais frequen- tes mapeadas: cambota, cambalhota, salto mortal, carambota, pirueta e escambota, além de marcar áreas léxicas, oferecem material para refexão sobre até a atualidade; e, fnalmente, as diferenças sociais, os dialetos maos e os verdadeyros, opondo falantes escolarizados a não escolarizados, rurais a urbanos, como procedem os sociolinguistas variacionistas. A Dialetologia, como bem foi descrita e ana- lisada por Brandão, nesta mesa, inicia o grande movimento de descrição das línguas, represen- tando as semelhanças e diferenças em mapas lin- guístico-geográfcos já no fnal do século xIx com Wenker e gilliéron e irradia-se pelos principais centros de estudos do globo. A Sociolinguística, como foi exemplarmente discutida por Mota, neste evento, teve seu início em 1964, nos estados Unidos e alastra-se, igualmente, por todos os can- tos. A geolinguística, ganhando pouco a pouco sua autonomia, busca nos princípios da Socio- linguística a ampliação de seu campo de estudos. Nasce a geolinguística pluridimensional. Neste artigo, com o objetivo de apresentar uma visão panorâmica da geolinguística pluridimensional, discutimos alguns aspectos históricos e metodoló- gicos que este ramo da Dialetologia desenvolveu no Brasil, graças aos esforços de thun e seus cola- boradores nas pesquisas no Uruguai e Paraguai. 1. geolinguística e representação cartográfica A geolinguística no Brasil tem início na década de 50 com as publicações de Silva Neto (1957) e Nascen- tes (1958 e 1961), de fundo teórico-metodológico, abrindo caminhos para a discussão sobre o atlas lin- guístico do Brasil e a elaboração dos primeiros atlas estaduais. Seguindo a linha europeia de investigação geolinguística, os pesquisadores brasileiros iniciam com atlas monodimensionais, caminham para os bidimensionais e hoje preferem os pluridimensio- nais, como procuramos demonstrar a seguir. 1.1. Atlas monodimensionais entendemos por atlas monodimensionais os que registram a variação diatópica dos fenômenos lin- guísticos sem a preocupação com outras variáveis. Segundo Castro (2008: inédito): a tradição da geografa linguística, uma das mais notó- rias características compartilhadas pelos principais pro- ! 1 01 vanderci de andrade aguilera | a geolinguística pluridimensional no brasil O atlas compreende 240 cartas distribuídas em duas partes: do léxico geral, com 61 cartas, e do léxico urbano, com 179 cartas. A primeira trata do campo semântico do homem, apresen- tando as variantes léxicas e fonéticas das partes do corpo humano, dos sentimentos, da vida social e religiosa; a segunda trata do léxico das profssões (ferreiro, carpinteiro, sapateiro), casas comerciais, brincadeiras, entre outras. Quanto à apresentação das cartas, temos as analíticas (com a representa- ção fonética pontual, por informante) e as mis- tas (com legenda e formas geométricas para cada variante). A carta abaixo, na modalidade mista, traz como tema as formas de tratamento para o cura ou sacerdote. A barra inclinada que aparece no ponto Ca 10 indica que a variante em questão foi registrada na fala do informante secundário. Atlas linguístico-etnográfco del sur de Chile a língua portuguesa no Brasil associada à forma- ção sociohistórica e aos movimentos de ocupação do espaço geográfco (Aguilera: 2007). Além do eALMg, outros atlas monodimen- sionais brasileiros foram elaborados, como o Atlas linguístico da Paraíba – ALPB (Aragão & Menezes: 1984), Atlas linguístico e etnográfco da Região Sul – ALeRS (Koch et al.: 2002) e o Atlas linguístico do Mato grosso do Sul – ALMS, orga- nizado por Oliveira (2007). Da América do Sul, selecionamos o Atlas lin- guístico-etnográfco del sur de Chile – ALeSUCH – projeto com uma história bastante diferente da do Atlas linguístico e etnográfco da Colômbia 1 , pois, naquele país, desde a década de 40, houve várias tentativas, embora sem êxito, de elaborar um atlas nacional, tais como a de gastón Carrillo Herrera que, em 1969, segundo Montes giraldo (1987, p. 79), descreve um projeto de atlas chileno, que não veio à luz. em 1973, um grupo de pesquisadores – ARAYA, g., WAgNeR, C., CONtReRAS, C. y BeRNALeS, M. – publica o ALeSUCH e, a partir de 1997, tem início um ambicioso proyecto que, geográfcamente, involucra al país entero: me refero al levantamiento de un Atlas linguístico. ter- cer intento, si contamos el de Rodolfo Oroz a comien- zos de la década del 40 y el de gastón Carrillo en 1967, investigadores que lamentablemente ya no nos acom- pañan. Y pensamos que este intento sí debería tener éxito, dado que ha quedado resuelto el principal escollo para una empresa de esta envergadura: el fnancia- miento, al menos el correspondiente a la primera etapa, que ha sido proporcionado por Conicyt. (Wagner, C. estudios Filológicos, N° 33, 1998, pp. 119-129) O ALeSUCH (Araya et al.: 1973) é também um exemplo de atlas monodimensional, elaborado nos moldes dos atlas tradicionais: único infor- mante, adulto, masculino, rural e sedentário. Nas páginas introdutórias referentes aos signos auxilia- res para o registro de respostas, consta a forma de representação da fala dos informantes secundários masculino e feminino. Consultando, todavia, mais detalhadamente cerca de cem cartas, não encontra- mos nenhuma variante da fala feminina. 1 O Atlas Linguístico-etnográfco de Colômbia (ALeC), dirigido por Luis Flórez, era o único atlas geral de um país publicado até a década de 80. este grande projeto contou com o apoio fnan- ceiro do Instituto Caro y Cuervo em todas as suas etapas. ! 1 02 vanderci de andrade aguilera | a geolinguística pluridimensional no brasil o material coletado e não cartografado por seus primeiros autores, explora a bidimensionalidade, representando a fala masculina por um quadrado e a feminina por um círculo. esse atlas inclui gráfcos de frequência e, no interior do mapa, traz informa- ções sobre as redes fuvial, ferroviária e rodoviária, além da escala de distâncias. Ilustramos com a carta Nº 8 do ALSe II: 1.2. Atlas bidimensionais 2 Atlas bidimensionais são aqueles que, além da vari- ável diatópica, incluem uma outra variável. No caso dos atlas produzidos no Brasil, a bidimensio- nalidade se concretiza com a inclusão sistemática de dois informantes por localidade, um homem e uma mulher. esse método começa a se esboçar com o Atlas Prévio dos Falares Baianos (Rossi et al.: 1963), e se frma com os Atlas Linguísticos de Sergipe-ALSe (Ferreira et al.: 1987), Sergipe II – ALSe II (Cardoso: 2005), do Paraná-ALPR (Agui- lera: 1994) e Paraná II-ALPR II (Altino: 2007). 1.2.1. APFB – prenúncios da bidimensionalidade Pode-se considerar o Atlas Prévio dos Falares Baia- nos (Rossi: 1963) como o precursor dos atlas bidi- mensionais uma vez que, embora ainda de forma assistemática, incluiu a mulher como informante em quase todos os pontos linguísticos investiga- dos. Nas cartas desse atlas, os informantes estão identifcados por letras (A e B, em sua maioria) que não representam respectivamente o homem ou a mulher, tornando-se, necessário, pois, recor- rer à lista dos informantes, para essa identifcação. Dessa forma, dos cem informantes, 53 são mulhe- res, com a seguinte distribuição: em 37 localidades foram entrevistados um homem e uma mulher; em seis, duas mulheres em cada um dos pontos; em uma localidade, uma única informante; no ponto 5, três mulheres e, nas localidades de número 45 a 49, temos apenas um homem em cada ponto. 1.2.2. Sergipe e Paraná: atlas bidimensionais O ALSe (Ferreira et al.: 1987) é o primeiro atlas estadual brasileiro a incluir sistematicamente um homem e uma mulher como informantes em cada um dos pontos investigados, identifcando-os pelas letras A (mulher) e B (homem). Não contempla outras variáveis sociais, uma vez que os informantes são em sua maioria analfabetos ou com baixa esco- laridade e, a maioria, na faixa dos 30 a 65 anos. No ALSe II (Cardoso: 2005), a autora, aproveitando 2 Ao compararmos as várias modalidades de atlas: monodimen- sionais, bidimensionais e pluridimensionais não signifca que estamos emitindo um juízo de valor sobre um em detrimento de outros. Nosso propósito é não só mostrar a importância de cada um para a história da variação e da mudança linguística mas também os avanços metodológicos da geolinguística. A inclusão dessas informações tornam a locali- zação dos pontos mais precisa e aproxima cada vez mais a geolinguística da geografa física e humana. Outro atlas a explorar a bidimensionalidade, ligada à variável sexo, é o Atlas Linguístico do Paraná – ALPR (Aguilera: 1994), no qual os informantes são identifcados pelos símbolos: C (mulher) e ? (homem). Quando o símbolo está ausente, signifca que a forma é comum a ambos os informantes. O ALPR – II (Altino: 2007) seguiu a mesma metodologia de cartografação dos dados do ALPR (Aguilera: 1994). 1 03 vanderci de andrade aguilera | a geolinguística pluridimensional no brasil que se iniciou em 1989. esta concepção moderna diz respeito ao seguinte pressuposto: a variação lin- guística se manifesta pelo menos em três dimensões: a diatópica, a diastrática e a diafásica, as quais, de acordo com Coseriu (1987), podem se subdividir em subtipos variacionais. Como exemplo, cita que as variações creditadas às gerações ou às diferenças de sexo podem se agregar às três variações básicas ou subordinar-se à variação diastrática ou diafásica. Dessa forma, amplia-se o objeto de estudo da geo- linguística monodimensional, que buscava a variação diatópica, e passa a se aproximar do objeto de estudo da Sociolinguística, ou seja, a variação social. thun (2005) distingue, na pluridimensionali- dade, as seguintes dimensões e parâmetros: Ilustramos com a carta 8 do ALPR: A inclusão da dimensão diagenérica permite realizar estudos sobre a infuência da variável sexo sobre a variação da linguagem, isto é, aproveitando dados geolinguísticos podem-se levantar hipóteses de natureza sociolinguística. 2. geolinguística pluridimensional: objetos e métodos Relata thun (1989) que, no ano de 1981 dos pri- meiros contatos com Adolfo elizaincín, da Uni- versidad de la República de Montevideo, nasceu a ideia de confeccionar um atlas linguístico da Repú- blica Oriental del Uruguay, de concepção moderna, 1 04 vanderci de andrade aguilera | a geolinguística pluridimensional no brasil O tomo I do ADDU (2000) trata exclu- sivamente do consonantismo e do vocalismo do espanhol no Uruguai e o fascículo A. 1, que consultamos, refere-se à lateral palatal (/´/, <ll>) e à fricativa mediopalatal (/j/, <y>): Lleísmo, yeísmo, Zeísmo y Seísmo en el español uruguayo. Os autores incluem vários tipos de cartas: o fenotípico – monodimensional ou pluridimensional; o monofásico, o plurifásico e o poligonal. O mapa fenotípico diz respeito à cartografa- ção de um fenômeno linguístico registrado sob o critério de “documentado” ou “não documen- tado”. Nas palavras dos autores: La manifestación fenotípica corresponde al sim- ples hecho de presentarse un determinado fenó- meno linguistico. el mapa fenotípico reproduce, más o menos, aquel mapa geolinguístico tradicio- nal que documenta la ocurrencia o ausencia de un fenómeno en el espacio variacional limitado a la dimensión diatópica. Se trata, pues, de una representación dicotómica de valores binarizados. el mapa fenotípico constituye el plano más abs- tracto de nuestra presentación de los hechos y es inicio de la sucesión de niveles analíticos. Se baja, en la série temática, del nivel fenotípico hasta la forma linguística producida por un individuo en un estilo determinado, pasando por todos los pla- nos cuyo registro permite nuestro programa plu- ridimensional y que despiertan interés empírico o metodológico. (thun, Harald & elizaicín, Adolfo: 2000, p. 5). O tomo I traz inicialmente nove mapas feno- típicos sobre as variantes da lateral palatal e da fri- cativa mediopalatal. Na sequência vêm os mapas monofásicos, isto é, os que focalizam a variação desses fenômenos a partir de cada uma das for- mas de coleta de dados, ou estilos: leitura (L), res- postas (R) e conversação (C). A partir dos mapas monofásicos são construídos os plurifásicos, como a carta 42 abaixo: Quadro 1: Dimensões e Parâmetros segundo thun (2005) Dimensão Parâmetro 1 Dialingual espanhol Português 2 Diatópica topostático < A /N 3 Diatópico-cinética topostático topodinâmico 4 Diastrático Classe alta Classe baixa 5 Diageracional geração II geração I 6 Diassexual Mulheres Homens 7 Diafásica R/C/L 8 Diarreferencial Fala ‘objetiva’ Fala metalinguística As dimensões e parâmetros de n° s 1 a 6 dizem respeito ao perfl dos informantes e as de nº 7 e 8 referem-se à natureza do instrumento de coleta de dados. Segundo thun (1989), essas dimensões e parâmetros acima apresentados podem ser expandidos a critério do pesquisador conforme seu objeto de estudo. A conjugação de todos eles, ou de boa parte deles, difcultaria, sobremaneira, a coleta dos dados, pelo alto custo da pesquisa – por exigir um elevado número de informantes por ponto e uma equipe numerosa e muito bem preparada de investigadores. One- raria, também, a cartografação, pelo volume de dados, que exigiria um número muito grande de cartas para cada fenômeno linguístico inves- tigado. (Veja-se, por exemplo, o tomo I do ADDU, descrito a seguir). Dois atlas concretizam a ideia do atlas pluri- dimensional e marcam o início dessa nova meto- dologia: o Atlas linguístico diatópico-diastrático do Uruguai – ADDU, coordenado por thun e elizai- cín (2000) e o Atlas linguístico guarani-românico sociologia – ALGR-S, elaborado por thun e cola- boradores (2002). 1 05 vanderci de andrade aguilera | a geolinguística pluridimensional no brasil fenômenos fonéticos cartografados, baseada em cada uma das dimensões estabele cidas. O Atlas linguístico guarani- Românico (ALGR), por sua vez, segue o modelo do ADDU e se distingue dos demais atlas por incluir, pela pri- meira vez, o estudo de uma língua indígena sul-americana, o guarani. Nas palavras de Dietrich (2008), “trata-se efetivamente do contato entre o guarani e o espanhol tal como se apresenta no Paraguai e em partes limítrofes da Argentina assim como entre o guarani e o português em partes limítrofes do Brasil”. Do ALGR (thun e colaborado- res: 2002), analisamos o tomo II, cujo subtítulo é sociologia (ALGR- S). O objeto de estudo deste tomo são as crenças e atitudes linguísti- cas dos falantes guaranis em rela- ção à língua materna e à espanhola. A rede de pontos compreende 49 localidades paraguaias. em cada ponto foram interrogados pelo menos quatro informantes distintos segundo o sexo (homens e mulhe- res), a idade (jovens, entre 18 e 36 anos e idosos, com mais de cin- quenta anos) e o grau de instrução (a classe baixa com até 4 anos de primário, e a classe alta com escolaridade média e até a for- mação profssional ou universitária). O tomo II compõe-se de 300 cartas que documentam o que pensam esses falantes sobre: (i) o ensino bilíngue, (ii) as línguas (guarani e espanhol), (iii) o falante e suas línguas, (iv) o falante e seus interlocutores, e (v) o idioma guarani na vida pública. As car- tas são de dois tipos: fenotípicas e poligonais. As primeiras trazem sistematicamente o gráfco das frequências obtidas para aquela questão especí- fca, mas, diferentemente do ADDU, o ALgR-S não analisa os fatos cartografados. Ilustramos com a carta 103, na modalidade fenotípica: Atlas linguístico diatópico y diastrático del Uruguay thun e elizaicín (2000, p. 78) esclarecem que os mapas plurifásicos em relação aos monofásicos têm a vantagem de permitir uma visualização mais clara das confgurações areais e da relevância das dimensões não diatópicas. Os mapas poligonais, por sua vez, são mapas de síntese ou interpretativos, em que os dados são colocados a partir da análise feita com o material coletado. trata-se do método dialecto- métrico que tem como objetivo “a medição das diferenças dialetais, diferenças linguísticas cuja distribuição é determinada preliminarmente pela geografa” (thun: 2007). Outra novidade inserida no ADDU diz respeito à análise dos 1 06 vanderci de andrade aguilera | a geolinguística pluridimensional no brasil elaboração de um atlas linguístico, o Comitê Nacional (1996) redigiu um Projeto que contempla, além da dimensão diatópica, as dimen- sões diageracional e diassexual para as localidades do interior. Para as capitais acrescenta a dimensão dias- trática, prevendo a coleta de dados junto a informantes de dois níveis de escolaridade: fundamental e superior. A rede de pontos envolve 250 locali- dades, das quais 25 são capitais e 225 são do interior, distribuídas pelos vinte e seis estados de acordo com a densidade demográfca de cada um. Concluída a coleta e as transcrições grafemática e fonética dos dados das capitais, a equipe coordenadora está empenhada na revisão da transcrição fonética e na preparação das cartas para comporem os primeiros volu- mes do ALiB. 3.1. A Geolinguística pluridimensio- nal no Brasil – atlas estaduais todo estudioso da linguagem no Brasil reconhece o grande impulso que o Projeto ALiB trouxe para as pesquisas geolinguísticas brasileiras, haja vista o signifcativo número de projetos de atlas estaduais e locais que se desenvol- veram (e se desenvolvem) com o seu lançamento no Seminário Caminhos e perspectivas para a geolinguística no Brasil, em novembro de 1996, na Universidade Federal da Bahia. Por associar os princípios da geolinguística tradicional aos da Sociolinguística, vêm fazendo inúmeros seguido- res da metodologia pluridimensional. Dentre eles, destacamos: Atlas Linguístico e Sonoro do Pará – ALiSPA (Razky: 2004), Atlas Linguístico do Amazonas – ALAM – resultado da tese de Cruz (2004) e o Atlas Linguístico do Mato grosso do Sul – ALMS – organizado por Oliveira (2007), já publicados. Para o ALiSPA, o autor estabeleceu dez locali- dades, em cada uma das quais foram entrevistados quatro informantes, com escolaridade fundamen- Atlas linguístico Guarani-Románico. Sociologia As inovações neste atlas em relação aos demais, em particular aos atlas estaduais brasileiros publi- cados até o fnal do século xx, dizem respeito às seguintes inclusões: (i) é o primeiro atlas sul-ame- ricano a mapear as crenças e atitudes linguísticas dos informantes entrevistados; (ii) a carta traz a per- gunta tal qual foi formulada em espanhol e guarani; (iii) traz gráfcos de frequência, em percentuais, por grupo de informantes, segundo a classe social e a faixa etária, além de informações sobre a rede fuvial. 3. geolinguística pluridimensional no brasil – o alib As ideias de thun revolucionaram a geolinguís- tica no Brasil de tal sorte que, ao se decidir pela 1 07 vanderci de andrade aguilera | a geolinguística pluridimensional no brasil A primeira diz respeito ao município de Cândido de Abreu, situado no centro-paranaense, com 60 cartas, contemplando sete pontos rurais e um urbano, em cada um dos quais foram entrevista- dos quatro informantes. A segunda, desenvolvida no município de Adrianópolis, situado no Vale do rio Ribeira, na divisa com São Paulo, selecionou cinco pontos rurais e um urbano, em cada um dos quais foram entrevistados quatro informan- tes: dois homens e duas mulheres pertencentes a duas faixas etárias. Selecionamos a carta 101 para ilustração: Ainda na UeL registramos a tese de guima- rães (2008) sobre o Atlas linguístico de São Fran- cisco do Sul, no litoral catarinense. estão em anda- mento uma dissertação e uma tese: a primeira sobre quatro pontos do oeste paulista Atlas Linguístico topodinâmico do Oeste de São Paulo) e a segunda sobre cinco pontos do oeste paranaense (Atlas Lin- guístico-etnográfco da Região Oeste do Paraná / ALeRO). Ambas incluíram em suas pesquisas as dimensões: diatópico-cinética, distrática, diagera- cional, diassexual, diafásica e diarreferencial. Na Universidade de São Paulo, sob a orientação da Dra. Irenilde Pereira dos Santos, merecem des- taque as teses: Estudo semântico-lexical com vistas ao Atlas Linguístico da mesorregião do Marajó-Pará, de Cardoso da Silva (2002); o estudo semântico- lexical com vistas ao Atlas Linguístico do Litoral Paulista, de Imaguire (2004); Atlas semântico- lexical da Região do Grande ABC, de Cristianini tal, sendo dois homens e duas mulheres, distribu- ídos por duas faixas: entre 18 e 30 anos e entre 40 e 70 anos. O autor esclarece que a pesquisa se ateve ao estudo da variação fonética. Inicialmente buscaram-se informações de acordo com os parâ- metros da pesquisa geossociolinguística, a partir de uma fcha de informantes da qual constam aspectos sociais de 42 informantes, estratifcados socialmente para a entrevista sociolinguística. Isso resultou numa fonoteca composta de 420 arquivos sonoros da fala paraense. Uma mostra de 40 informantes dessa fonoteca serviu para a confecção do Atlas Linguístico Sonoro do Pará. (Razky: 2005, p. 212-213) Quanto ao ALAM (Cruz: 2004), a autora investigou 54 informantes distribuídos por nove pontos linguísticos e selecionados pelas variáveis sexo e idade, incluindo, pela primeira vez na his- tória da geolinguística brasileira, a faixa etária intermediária. O ALMS (2007) consta de 217 cartas: 57 fonéticas, 152 lexicais e 7 morfossintáticas e a rede de pontos compreende trinta e duas localidades em cada uma das quais foram entrevistados qua- tro informantes selecionados pelas variáveis sexo e faixa etária. Na cartografação, os informantes são identifcados por cores: verde (homem jovem), branco (mulher jovem), azul (homem idoso) e amarelo (mulher idosa). Dentre os atlas em andamento, o do Mara- nhão, Rio grande do Norte e Rondônia inclu- íram em seus projetos duas ou mais dimensões, a maioria optando pela inclusão de informantes de ambos os sexos e de duas faixas etárias, pelo menos. 3.2. Geolinguística pluridimensional no Brasil – atlas municipais ou de pequenos domínios Mais recentemente, nas universidades brasileiras que contam com docentes dedicados à geolinguís- tica, vêm-se desenvolvendo dissertações e teses baseadas na geolinguística pluridimensional con- templando atlas de pequeno domínio. Na Universidade estadual de Londrina – UeL – por exemplo, sob a minha orientação, foram concluídas duas dissertações – Lino (2000) e Altino (2001 e 2007) sobre atlas municipais. ! 1 08 vanderci de andrade aguilera | a geolinguística pluridimensional no brasil igualmente de ambos os sexos e três faixas etárias. Ainda na UFRJ, Pereira (2007) defendeu a tese Atlas geolinguístico do litoral potiguar – ALiPTG, sob a orientação da Drª Dinah Callou. A autora selecionou cinco pontos onde foram entrevistados 20 informantes de ambos os sexos e duas faixas etárias. Finalmente, na Universidade Federal do Mato grosso do Sul, sob a orientação da Drª Aparecida Negri Isquerdo, Reis (2006) defende a dissertação Atlas linguístico do município de Ponta-Porã-MS: um registro das línguas em contato na fronteira do Brasil com o Paraguai. Além da dimensão dia- tópica (oito pontos), contemplou a dimensão dia- lingual, ao entrevistar por localidade dois falantes do português, mas também profcientes em espa- nhol e/ou guarani. Ilustramos com a carta 010 (à esquerda): conclusões Neste estudo, por meio de uma visão panorâmica dos estudos geolinguísticos no Brasil, sobretudo os de natureza geossociolinguística ou pluridi- mensional, procuramos demonstrar três pontos principais: (i) o salto quantitativo dado pela geo- linguística no Brasil, sobretudo se lembrarmos que no espaço de trinta e um anos – de 1963 a 1994 – foram publicados apenas cinco atlas estaduais e, em apenas seis anos – de 2002-2007 –, tivemos outros cinco estaduais: ALiSPA, ALAM, ALSe II, ALPR II, ALMS, além de um atlas regional – ALeRS , a maioria deles atlas pluridimensionais; (ii) as iniciativas que contemplam, sob a forma de teses e dissertações, os atlas pluridimensionais de pequeno domínio, chegam hoje a mais de uma dezena: Micro AFeRJ, AFeBg, ALiPtg, de Adrianópolis, de Cândido de Abreu, do litoral de Santa Catarina, do litoral sul paulista, da Região do ABC – SP, do município de Ilhabela, da Ilha de Marajó e o ALiPP; (iii) verifcamos, a partir do presente século, a crescente descentralização dos estudos geolinguísticos e a sua implantação em Instituições de ensino Superior que não tinham tradição em pesquisas dessa natureza, como o Mato grosso, Maranhão, Rio grande do Norte, espírito Santo e Rondônia. (2006). Ressaltamos também as dissertações: de Imaguire (1999), Estudo com vistas a um Atlas Linguístico da Ilha de Santa Catarina. Abordagem de aspectos semânticos lexicais, orientada pelo Dr. edgard Casaes e Estudo geolinguístico de aspectos semântico-lexicais nas comunidades tradicionais do município de Ilhabela, de encarnação (2006), orientada pela Dr.ª Irenilde Pwereira dos Santos. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação da Dr.ª Sílvia Figueiredo Bran- dão, destacamos: (i) o Microatlas Fonético do Estado do Rio de Janeiro (Micro AFERJ): uma contribuição para o conhecimento dos falares fuminenses, de Almeida (2008), envolvendo nove pontos linguísticos nos quais foram entre- vistados 54 informantes, de ambos os sexos e de três faixas etárias; (ii) Atlas Fonético do entorno da Baía da Guanabara (AFeBg), de Lima (2006), desenvolvida em quatro pontos e 24 informantes, 1 09 vanderci de andrade aguilera | a geolinguística pluridimensional no brasil CRIStIANINI, Adriana Cristina. Atlas semântico-lexi- cal da Região do grande ABC. tese. São Paulo: Uni- versidade de São Paulo, 2006. CRUZ, Maria Luiza. Atlas Linguístico do Amazonas – ALAM. tese. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004. DIetRICH, Wolf. 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Belém: CNPq / Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 2. ed.; 1957. 1 1 1 abstract this text discuss some exercices to the process of qualifca- tion of professors for working classes. It argues that theoreti- cal principals of Sociolinguistics are very relevant to literacy, especially for teaching adults of below social class who are in the periphery of big cities. reflexão sobre exercícios de ortografia em eja Maria Cecilia de Magalhães Mollica é Dou- tora em Linguística (UFRJ), Professora titular de Lin- guística da Faculdade de Letras/UFRJ, do Programa de Alfabetização da UFRJ para Jovens e Adultos de espaços Populares (PR-5/UFRJ) e Pesquisadora I do CNPq. Fernando Cardoso Loureiro é Doutor em Lin- guística (UFRJ) e Professor do Programa de Alfabetiza- ção da UFRJ para Jovens e Adultos de espaços Populares (PR-5/UFRJ). resumo este artigo tem como objetivo mostrar, através de bases teó- ricas e de exemplos de exercício de ortografa, modos pelos quais a área da Sociolinguística pode ser útil no letramento de jovens e adultos de espaços populares. objetivos Neste artigo, temos como objetivo mostrar que a Linguística reúne um arsenal importante de conhecimentos já consolidados, indispensáveis na formação e qualifcação do professor alfabetiza- dor. Não é tarefa fácil preparar o professor para estimular os alunos a submeter-se ao processo de apropriação de leitura e escrita, razão pela qual temos que lançar mão das contribuições que a Ciência da Linguagem possui neste campo, den- tre tantas outras de áreas diversas. É fato que o falante nativo de sua língua possui a competência gramatical e comunicativa antes de se alfabetizar. No entanto, o estágio de alfabetiza- ção vai lhe exigir uma aprendizagem específca do código escrito em sua língua materna, qualquer que seja seu perfl sociolinguístico (cf. Bortoni- Ricardo, 2004). Segundo Soares (2003), a etapa da alfabetização constitui a apropriação de uma tecnologia, que exige dos docentes conhecimen- tos específcos de Linguística. Ademais, há que se distinguir, segundo a autora, alfabetização de letramento, cujo conceito acha-se discutido com propriedade no texto em referência. O professor iniciante necessita de bases teóri- cas e de orientação específca para trabalhar com as primeiras produções textuais, muitas delas em desacordo com a norma-padrão. ele deve iniciar os alunos no processo de apropriação de leitura e escrita (e de escrita matemática), respeitando o per- fl sociolinguístico das diferentes comunidades de fala de cada classe. A formação adequada é um pré- requisito para um bom começo na fase inicial de aprendizagem de registros escritos em linguagens. A Sociolinguística tem um papel importante no processo de qualifcação de professores alfabe- tizadores em eJA (educação de Jovens e Adultos), uma vez que desmistifca a ideia de que os fenô- menos variáveis, enquanto inerentes aos sistemas das línguas naturais, legitimam todas as formas variantes, standard ou não não standard, assim como a tradição dicotômica certo/errado (cf. Labov, 1972). este artigo busca, portanto, sistematizar algu- mas difculdades dos aprendizes iniciantes em fase de alfabetização, isto é, na etapa de aprendiza- gem do código ortográfco do Português. Focaliza especialmente a formação de professores alfabeti- zadores de jovens e adultos, com base em nossa 1 1 2 maria cecilia de magalhães mollica & fernando cardoso loureiro | refexão sobre exercícios de ortografa em eja de identidades sociais no discurso, com base em subsídios para lidar melhor com as eventuais dis- criminações entre os alunos da classe. análise de propostas pedagógicas Resultados de pesquisas acadêmicas são úteis ao alfabetizador para entender difculdades recorren- tes e monitorar tanto quanto possível o uso, por parte dos alunos, de formas de prestígio na fala e na escrita. Mollica (2003) dá uma contribuição quanto aos modos de operar os fatos variáveis de natureza fono-ortográfcas e morfogramaticais. A intervenção em contextos de maior incidência de variantes não-standard, se aplicada adequada- mente, segundo os parâmetros dos estudos socio- linguísticos já existentes no Brasil, traz ótimos resultados pedagógicos. eis por que consideramos de efcácia relativa alguns exercícios oferecidos pelo MeC em suas apostilas dirigidas à educação de jovens e adultos (cf. Vóvio, 1998), pois não trabalham de forma ideal os resultados das pesquisas linguísticas de que já dispomos sobre o Português falado no Bra- sil. As propostas pedagógicas ofciais, ainda que bem estruturadas, apresentam um certo grau de aleatoriedade, pois não estão focadas nos itens e nos contextos de maior incidência de difculda- des comprovadas em estudos recentes (cf. Mollica, 2003; Bortoni-Ricardo, 2004). Na formação do alfabetizador, deveria haver um cuidado especial em disponibilizar tais infor- mações, com o objetivo de fornecer subsídios à aplicação de material didático-pedagógico ade- quado e direcionado aos problemas mais frequen- tes na produção textual dos alfabetizandos. Além de conhecer o perfl sociolinguístico dos alunos (cf. Labov, 2007), defendemos, então, que a sele- ção dos exercícios por parte do alfabetizador deve ser controlada e direcionada ao locus gramatical de maior chance de erro. Observem-se alguns exercícios sobre a rela- ção fonema/grafema, com base no uso da letra S, retirados das apostilas do 1º segmento da coleção “Viver e Aprender: educação de Jovens e Adultos”, editadas pelo MeC (Vóvio, 1998:209-211): experiência como membros atuantes do Programa de Alfabetização da UFRJ para Jovens e Adultos de espaços Populares, vinculado à Pró-Reitoria de extensão. conceitos indispensáveis Inicialmente, é importante destacar que o alfabe- tizador em eJA lida com o conceito de analfabeto funcional (cf. Scliar-Cabral, 2006). Necessita, então, saber que o sistema silábico-alfabético do português não é biunívoco, posto que a relação grafema-fonema não se aplica em todos os casos. ele deve conhecer bem tanto as similaridades do sistema, os casos ortográfcos regidos por regras, quanto aqueles cuja convenção é totalmente ale- atória. Para isso, deve obter uma base consistente em Fonética, Fonologia e Morfologia. Sua formação também não pode dispensar o conhecimento acerca dos princípios da hete- rogeneidade inerente das línguas naturais, que lhe permite identifcar as variedades dos alunos, respeitando-as como legítimas, bem como iden- tifcar os vestígios da fala na escrita. Nesse caso, é preciso aprofundar a noção de “erro”, seja decor- rente do desconhecimento do uso adequado de letras correspondendo a grafema, seja proveniente de processos de variação na fala. Para analisar as difculdades dos alunos, portanto, o alfabetizador deve passar a relativizar a dicotomia certo/errado, proveniente da tradição normativa, e lançar mão de outras explicações (cf. Mollica, 2000). A existência da variação e da mudança na lín- gua falada, que pode ter repercussões na escrita, constitui assim noção crucial para o alfabetizador trabalhar criteriosamente os obstáculos comuns aos aprendizes iniciantes da escrita. É indispen- sável apropriar-se do conceito de que a variação consiste na coexistência de duas ou mais formas que correspondem ao mesmo signifcado, que se manifestam por força de características regionais e sociais das comunidades de fala (cf. Labov, 1972). Consequentemente, no processo inevitável de ava- liação positiva ou negativa de formas linguísticas, o alfabetizador deve estar preparado para respeitar as variantes regionais e sociais, ampliando expli- cações sobre a existência de marcas estilísticas e 1 1 3 maria cecilia de magalhães mollica & fernando cardoso loureiro | refexão sobre exercícios de ortografa em eja Sabia que o sabiá sabia assobiar? 1. Observe as palavras que estão escritas com a letra S. Compare o som da letra S no início das palavras e no meio delas. 2. Agora observe os nomes de animais que apare- cem no quadro abaixo: pássaro-preto sucuri sabiá sapo assum siriema sanhaçu saicanga socó ganso 3. Separe-os em três grupos e complete a lista com outras palavras. Palavras que começam com a letra S ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ Palavras que têm SS ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ Palavras que têm a letra S logo depois de uma con- soante ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ 4. O que você conclui sobre o uso da letra S no meio das palavras? ______________________________________ 5. Pesquise em revistas e jornais palavras escritas com dois SS, leia-as e cole-as em seu caderno. Ortografa: S ou Z 1. Leia as palavras que estão no quadro em voz alta. asa caseiro camisinha casulo azarado azedo cozinha azul A letra S pode enganar. Quando a letra S está no meio de duas vogais, ela tem o mesmo som da letra Z. 2. Descubra a regra e complete: casa " casamento " casado cozinha "__________ "__________ azar "__________ "__________ camisa "__________ "__________ abuso "__________ "__________ 3. Pesquise outras palavras que se escrevem com a letra S no meio de duas vogais e escreva-as em seu caderno. É importante notar nesses exercícios que, além das propostas que estimulam o aluno a pensar em palavras que podem ser escritas com as mesmas letras s ou z, como o s intervocálico, parece-nos mais útil operações de comutação de letras, baseadas na dicotomia saussureana sintagma/paradigma. O jogo de trava-língua a seguir é um bom exercício lúdico que pode ser usado para esse fm, quando o objetivo é adequar as variáveis linguísti- cas tanto individuais quanto regionais. O exercí- cio sobre a utilização de s ou ss tem o propósito de fxar o sistema ortográfco da língua portuguesa, chamando a atenção para os contextos de uso e para possível trabalho de comutação que se possa propor subsequentemente. O ponto a observar, entretanto, é que a proposta não inclui os fenô- menos de fala que migram para a escrita: Ortografa: S ou SS trava-língua: fale rápido sem enrolar a língua. 1 1 4 maria cecilia de magalhães mollica & fernando cardoso loureiro | refexão sobre exercícios de ortografa em eja besteira respeito biscate estudante pais poste áspero sopa esperança estado sapato casco susto semana sereno 2. Leia as palavras abaixo e observe o som do S no início e no fnal das sílabas. sa - po se - lo si - no so - no su - jo as - ma es - tu - do is - ca os - car cas - ca tes - ta - men - to bis - ca - te pos - to cus - to 3. Observe a letra S no fm de algumas palavras e complete a lista. Uma mesa Duas mesas Uma pitada Duas pitadas Um copo ___________ Uma xícara ___________ Uma colher Duas colheres Uma lata ___________ Um prato ___________ Uma tigela ___________ 4. Complete de acordo com o modelo: O menino ganhou sapato novo. Os meninos ganharam sapatos novos . A cozinheira aprendeu uma nova receita. ___ aprenderam . É importante observar a necessidade de se trabalhar, na formação do plural em Português, a questão dos alomorfes (plural regular -s e irregular -es, -ões, ...), que traz uma difculdade a mais para o alfabetizando e para o próprio alfabetizador, que precisa explicar a aplicação de regras especí- fcas conforme a terminação da palavra (cf. Alves, 2008). Neste caso, o grupo de palavras selecio- nadas pelo alfabetizador para o exercício se torna fundamental, considerando a necessidade de uma progressão nos exercícios: do plural de uso mais frequente (regular) para o menos frequente (irre- gular). A próxima proposta reporta-se à heterogenei- dade da língua. Inicialmente, cumpre-nos obser- var que a variação nos itens lexicais de uma região do país, por exemplo o Nordeste, pode não ser a ideal para determinada comunidade de fala no Sudeste, ou para outras regiões, mesmo conside- rando os fuxos migratórios regionais: 6. Leia as palavras e depois responda. assobio sucata massagem sino sopa passado assassino salada ensaboado ganso assado assoalho sossego sussurro massa massacre bolsa pensamento sabonete personagem pessoa sereno pulso cansado passarinho suar subida só sorte bússola nossa sim 7. Há palavras que começam com a letra S? Copie-as. ______________________________________ 8. Há palavras escritas com SS? Copie-as. ______________________________________ 9. Quais são as palavras em que a letra S aparece logo a seguir das letras L, R e N? ______________________________________ Para maior efcácia dessa proposta pedagó- gica, na qual se trabalha os níveis fono-ortográ- fco, faz-se necessário que o alfabetizador possua instrumental teórico que o capacite a identif- car as palavras e as expressões que caracterizam a variedade dialetal da comunidade de fala dos seus alunos. Ainda nos exercícios de ortografa com a letra S (cf. Vóvio, 1998:156), observa-se uma sequência em que não se defne claramente os níveis foné- tico-fonológico, morfossintático e semântico- textual, para que o alfabetizando compreenda a diferença entre o s quando fonema ou morfema de plural: Ortografa: a letra S 1. Sublinhe a letra S nas palavras e observe sua posição. 1 1 5 maria cecilia de magalhães mollica & fernando cardoso loureiro | refexão sobre exercícios de ortografa em eja com vistas a promover sua inclusão social plena enquanto cidadãos. referências bibliográficas ALVeS, M. R. N. Educação de Jovens e Adultos. São Paulo: Parábola editorial, 2008, pp. 46-51. BORtONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística em sala de aula. São Paulo: Parábola editorial, 2004. LABOV, W. Sociolinguistics patterns. Philadelphia: Uni- versity of Pennsylvannia Press, 1972. LABOV, W. Spotlight on Reading. Philadelphia: Univer- sity of Pennsylvannia, 2007. MOLLICA, M. C. Infuência da fala na alfabetização. Rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 2000. _______. Da linguagem coloquial à escrita padrão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003. _______. Fala, Letramento e Inclusão Social. São Paulo: Contexto, 2007. MOLLICA, M. C.; BRAgA, M. L. Introdução à Socio- linguística: o tratamento da variação. 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São Paulo: Ação educativa; Brasília: MeC, 1998. considerações finais As atividades de letramento em sala de aula devem ser específcas, considerando as restrições aos fenômenos de variação e de mudança. As lacunas encontradas nos exercícios aqui comentados dei- xam escapar a existência dos subsistemas linguís- ticos. Há que se trabalhar distintamente os níveis fonético-fonológico, morfossintático e semântico- textual, ainda que as interfaces entre os níveis de uma língua devam necessariamente ser considera- das. As orientações gerais dadas aos alfabetizadores para a aplicação dos exercícios, embora esclare- cedoras, acabam não sendo sufcientes para lidar com a dinâmica das turmas de eJA que, somente no processo de formação continuada, pode ser tra- balhada adequadamente (cf. Scliar-Cabral, 2006). A ludicidade, por exemplo, é recurso atraente para devolver a consciência de cidadania a indivíduos com pouca escolarização, desestimulados a retornar ao sistema formal de ensino, realizando importante ação inclusiva. Os livros jogos que vimos desenvol- vendo e aplicando nas turmas do Programa de Alfa- betização da UFRJ, como o Campeonato de Letras e Números, da série Brinca-Palavra (cf. Mollica & Leal, 2006), são exemplos de trabalho com registros escri- tos de linguagens em que Português e Matemática não se dissociam. O objetivo principal é testar a lei- tura, a escrita e a capacidade de contagem no âmbito do letramento escolar. Como observa Mollica (2007), torna-se fun- damental para o alfabetizador, que desenvolve um trabalho com linguagem coloquial e com a escrita-padrão, ser capaz de compreender as mar- cas regionais e sociais da comunidade de fala com que trabalha. Com base no material por ele mesmo elaborado, o alfabetizador esclarece seus alunos acerca da diversidade linguística, de modo a estimulá-los à prática de estilos monitorados, 1 1 6 o peso das línguas 1 Louis-Jean Calvet é Professor de Sociolinguística da Université de Provence (Aix-Marseille 1), expert da Agence Intergouvernementale de la Francophonie (AUF) e autor de As Políticas Linguísticas, Le marché aux langues, Linguistique et colonialisme, Pour une écologie des langues du monde, Histoire de l’écriture, entre outros livros, tradu- zidos em várias línguas. e-mail:
[email protected] 1 este trabalho está sendo realizado em parceria com Alain Cal- vet, responsável por toda a parte relacionada à estatística do projeto. Isto explica o “nós” frequentemente utilizado nestas páginas, representando não um nós científco mas realmente plural. este texto foi traduzido e compilado por telma Cristina de Almeida Silva Pereira, a partir do texto-base Le POIDS DeS LANgUeS Vers un « index des langues du monde » (em fran- cês), apresentado pelo Professor Calvet no I encontro Interna- cional do gt de Sociolinguística da ANPOLL, ocorrido na PUC-Rio entre 31 de julho de 2007 e 3 de agosto de 2007. resumo Como medir a importância relativa das línguas faladas no mundo? Quais são os critérios de classifcação? este traba- lho apresenta um projeto de criação de um observatório das línguas do mundo através da criação de um índex baseado em diferentes fatores que determinam o peso das línguas, de modo a contribuir nas decisões em matéria de políticas lin- guísticas. em 1532, com Pantagruel, Rabelais nos mos- tra seu programa de educação no trecho em que o personagem gargantuá escreve uma carta ao flho que tinha ido estudar em Paris. em relação às línguas, encontramos na mesma as seguintes propostas: J’entens et veulx que tu aprenes les langues par- faictement. Premierement la grecque, comme le veult Quintilian, secondement la latine; et puis l’hebraïcque pour les saintes lettres, et la chaldaïcque et arabicque pareillement; et que tu formes ton style quant a la grecque, a l’imitation de Platon; quant a la latine, de Ciceron… grego, latim, hebraico, caldaico, árabe.... esse programa que hoje em dia poderia provocar risos ou parecer ultrapassado é, no entanto, um testemunho das línguas que tinham importância naquela época, das línguas que pareciam mais úteis, ou seja, que tinham peso. Hoje elas pesa- riam pouco aos olhos de um pai no momento da escolha das línguas estrangeiras que seu flho deveria estudar, pois, entre 1532 e 2008, a ava- liação da importância das línguas mudou radi- calmente. Como medir atualmente a importância rela- tiva das línguas? Quando refetimos sobre esta questão pensamos, sobretudo, no número de falantes: quantas pessoas falam esta ou aquela língua? Ora, o cálculo do número de falantes de uma língua não é uma ciência exata, as avaliações variam consideravelmente. encontramos a seguir três avaliações (tabela 1) que datam do mesmo ano (2003) e que oferecem resultados bastante diferentes: 1 1 7 louis-jean calvet | o peso das línguas 3. Aqueles que poderiam, eventualmente, permitir que tenhamos uma ideia da evolução desta situa- ção. Por exemplo, o crescimento demográfco de um país terá evidentemente uma incidência sobre o número de falantes da língua desse país. Deste modo, podemos observar a ligação desse projeto de um index das línguas do mundo com a política linguística: comparando o compor- tamento das línguas diante dos diferentes fatores que asseguram sua classifcação pode-se tentar modifcar a posição de uma determinada língua intervindo sobre um ou mais fatores. Abaixo apresentamos uma lista não exaustiva desses diferentes fatores: • Númerodefalantescomo“línguamaterna”. • Númerodefalantescomo“segundalíngua”. • Númerodefalantescomo“línguaestrangeira”. • Númerodefalantesnosquaisalínguaéofcial ou coofcial. • Númerodepaísesnosquaisépossívelestudar essas línguas no ensino médio. • Númerodepaísesnosquaisépossívelestudar essas línguas no ensino superior. • Traduçãoapartirdaslínguas(línguas-fontes) • Traduçãoparaaslínguas(língua-alvo) • PresençadaslínguasnaInternet. • PossibilidadedeconsultanaslínguasnoGoogle ou no Yahoo. • PossibilidadedeconsultarWikipedianaslínguas. • Existênciadecorretoresortográfcosnaslínguas. • ÍndicedeDesenvolvimentoHumanodospaí- ses nos quais essas línguas são faladas. • Crescimentodemográfcodospaísesnosquais essas línguas são faladas. • Pesoeconômicodospaísesnosquaisessaslín- guas são faladas. • Produção/exportação de livros escritos nas diversas línguas. • PrêmiosNobeldeliteraturaobtidosporautores que escreveram em uma determinada língua. • Fluxodeturistas • Línguasderelaçõeseconômicas(OMC) • Entropia etc... A maioria desses fatores não necessita de comentários nem de explicações. Outros, no Tabela 1: três classifcações por número de falantes. Quid Linguasphere Ethnologue Mandarim Mandarim Mandarim Inglês Inglês espanhol Hindi Hindi Inglês espanhol espanhol Bengali Russo Russo Hindi Árabe Árabe Russo Bengali Bengali Português Português Português Japonês Malaio Malaio Alemão Francês Japonês Francês Alemão Francês Japonês Alemão Mas se pudéssemos saber em tempo real o número exato de falante das diferentes línguas do mundo, ainda assim teríamos apenas um fator de avaliação de sua importância. O chinês, por exemplo, é provavelmente a língua mais falada no mundo, mas ele é falado apenas em alguns paí- ses, e raro são aqueles em que ele é língua ofcial. Daí a ideia de se criar um instrumento de medida e de comparação da importância das línguas, ou seja, uma classifcação a partir do maior número de fatores discriminantes possíveis para os quais, certamente, será necessário testar sua pertinência. os fatores possíveis estes fatores nos permitirão efetuar uma classif- cação que será analisada posteriormente em deta- lhes através de métodos estatísticos. eles podem ser divididos teoricamente em três categorias: 1. Aqueles que constituem uma fotografa da situ- ação atual, que constatem um estado de conhe- cimento. tais fatores são, de longe, os mais numerosos. 2. Aqueles que poderiam constituir, eventu- almente, uma explicação desta situação, que seriam as causas cujos efeitos seriam mostrados pelos fatores precedentes. Por enquanto temos em relação a eles alguns questionamentos. Por exemplo, o poder econômico de um país tem relação direta com o peso de sua língua? 1 1 8 louis-jean calvet | o peso das línguas Tabela 2: entropia de algumas línguas. Língua Entropia Japonês 0.000 Marati 0.003 Amárico 0.019 Hindi 0.036 Armênio 1.766 Árabe 2.403 espanhol 2.508 Romani 2.650 O fator “prêmio Nobel” também pode ser questionado. Com efeito, ele pode ser conside- rado apenas um olhar ocidental sobre a literatura mundial, como mostra a porção reservada às lín- guas árabe ou chinesa. Mas ele também é o teste- munho da seguinte realidade: as literaturas árabe ou chinesa ainda não são muito acessíveis aos lei- tores ocidentais (o fator “tradução língua-fonte” também comprova este fato) e nos vemos então diante de um índice a ser seguido pois, no futuro, ele poderá refetir as evoluções ocorridas. Finalmente o fator “produção/exportação de flmes” em diversas línguas, extremamente impor- tante nestes tempos dominados pela mídia, não é fácil de ser trabalhado. Por exemplo, a Índia é o primeiro produtor de flmes do mundo, mas se os seguintes produtores na classifcação podem ser facilmente relacionados a uma língua (inglês, japonês, francês, espanhol, nesta ordem), ainda não sabemos qual é a parte do hindi, do bhojpuri, do bengali, etc. na produção deste país e então, por enquanto, vamos descartar este fator. Apresentamos aqui apenas alguns exemplos, e não insistiremos mais sobre as difculdades em coletar esses diferentes dados: eles apresentam problemas técnicos e fnanceiros, porém poucos problemas científcos. o tratamento dos dados Na etapa seguinte, nos vemos diante do problema do tratamento desses dados. Nossa análise será multifatorial: o conjunto dos fatores nos permi- entanto, podem apresentar problemas ou deman- dam certas precisões. É o caso da entropia. A entropia é uma função que permite quantifcar a “desordem”. ela foi uti- lizada originalmente em termodinâmica, depois aplicada à teoria da informação e, mais recente- mente, foi utilizada na linguística. Matematica- mente ela é expressa através da seguinte fórmula: entropia: ∑(p i *Log(p i )) Onde p i corresponde à probabilidade de um sistema de se encontrar em um determinado estado, e Log(p i ) é o logarítimo natural desta pro- babilidade. O valor mínimo desta função é zero, e não há um valor máximo defnido. Nós a utili- zamos neste trabalho para diferenciar uma língua falada em um único país de uma língua falada em vários países, e assim p i será para nós a proporção de falantes de uma dada língua, que vivem em um determinado país, e serão levados em considera- ção todos os países do mundo nos quais esta lín- gua é falada. Consideremos uma língua falada majorita- riamente (98%) em um país cujo alguns falantes moram em um outro país, a entropia será: (0.98*Log0.98 +0.02*Log0.02) = 0.098 Uma língua falada em três países demogra- fcamente equivalentes terá uma entropia de -(0.33*Log0.33 + 0.33*Log0.33 + 0.34*Log0.34) = 1.099. Vejamos agora alguns exemplos reais (tabela 2). O japonês quase não é falado fora do Japão, então sua entropia é zero. O hindi, apesar do grande número de falantes na Índia, não é pra- ticado no exterior, seu grau de entropia é muito baixo. O árabe e o espanhol são falados em vários países demografcamente equivalentes, possuem graus de entropia elevados; o armênio e o romani, ainda que tenham um pequeno número de falan- tes, possuem uma entropia bastante elevada devido à importância relativa de suas diásporas. Portanto, a entropia não tem nenhuma relação com o número global de falantes de uma língua, mas sim com a forma pela qual esses falantes estão divididos na área ou nas áreas nas quais esta língua é falada. 1 1 9 louis-jean calvet | o peso das línguas A seguir, as classifcações resultantes de alguns fatores; na qual cada fator oferece uma classifca- ção diferente. As tabelas 4, 5, 6 7 e 8 indicam, respectivamente, as classifcações pelo número de falantes, pelo número de países nos quais a língua tem um status ofcial, o lugar da língua na Inter- net, o número de prêmios Nobel de literatura, atribuídos a uma obra escrita nessa língua, e o fuxo de tradução na mesma. Tabela 4: As vinte primeiras línguas segundo o número de locutores. Posição Língua Posição Língua 1 Mandarim 11 Panjabi 2 Hindi 12 Javanês 3 Inglês 13 Wu 4 espanhol 14 Vietnamita 5 Árabe 25 tagalo 6 Português 16 tâmil 7 Bengali 17 Min 8 Russo 18 Coreano 9 Japonês 19 Francês 10 Alemão 20 Marati A classifcação obtida a partir do número de falantes (tabela 4) muda consideravelmente se considerarmos o número de países nas quais essas línguas são ofciais ou coofciais (tabela 5). O francês, por exemplo, passa da 19ª posição para a segunda posição; o mandarim da primeira para a décima posição. Tabela 5: As vinte primeiras línguas de acordo com o número de países nos quais a língua tem um status ofcial (a partir do 10º lugar todas essas línguas são ofciais em três países). Posição Língua Posição Língua 1 Inglês 10 Húngaro* 2 Francês 10 Mandarim* 3 Árabe 10 Romeno* 4 espanhol 10 Farsi* 5 Português 10 Croata* 6 Alemão 10 esloveno* 7 Italiano 10 Albanês* 8 Russo 10 tâmill* 9 Bahasa 10 Swahili* 10 Neerlandês* 10 Bambara* tirá a caracterização e a classifcação de uma lín- gua; um fator isolado tem pouca signifcação. evi- dentemente cada um dos fatores permitiria que fzéssemos uma classifcação das línguas: teríamos assim um número tão grande de classifcações quanto de fatores, e em cada uma línguas classif- cadas de 1 a 7000, se considerarmos que hoje em dia há 7000 línguas faladas no mundo. Porém, esses diferentes fatores não nos dão o mesmo tipo de informação. Por exemplo, a taxa de desenvolvimento humano varia entre 0 e 1, enquanto que o número de falantes varia de 1 a cerca de 800.000.000 milhões. então, para cada fator, estipulamos o valor mínimo em 0, o valor máximo em 1 e aplicamos para os valores inter- mediários uma transformação linear, o que nos permite atribuir uma importância “igual” para cada um dos critérios. Vejamos, a título de exem- plo (tabela 3), duas classifcações para doze lín- guas que, com exceção da primeira (mandarim, a língua mais falada) e da última (islandês, a língua menos falada) foram escolhidas ao acaso. elas estão classifcadas de acordo com seu valor absoluto (o número de falantes) e de acordo com seu valor normalizado. É preciso salientar que quando pas- samos da posição 1 à posição 2 a diferença sobre o valor normalizado é de 0,76, enquanto que da posição 4 à posição 5, para a mesma diferença de 1 posição, a diferença dos valores normalizados é quase zero: 0.0003. Tabela 3: Normalização dos valores. Língua Posição Valor absoluto Valeur normalizado Mandarim 1 725.5 1 Português 2 174.5 0.2403 Hauçá 3 45 0.0617 xiang 4 36 0.0493 Malayalam 5 35.8 0.0490 Bahasa 6 30.3 0.0415 Visaiano/ Cebuanono 7 20 0.0273 Nepali 8 17.2 0.0234 Húngaro 9 13.1 0.0177 eslovaco 10 8 0.0107 Norueguês 11 4.5 0.0059 1 20 louis-jean calvet | o peso das línguas Constatamos que enquanto algumas línguas (inglês, mandarim, espanhol, francês...) estão pre- sentes na maioria das classifcações, outras aparecem apenas em uma única classifcação, por exemplo, no fator “prêmio Nobel” (polonês, provençal, iídi- che, bengali), ou, como vimos acima, para o fator “entropia” (armênio, romani, curdo, bielo-russo). e nos deparamos com o problema de como cruzar esses dados. Vamos exemplifcar apresentando duas classifcações baseadas em dez fatores. esses fatores foram escolhidos por duas razões principais: por um lado, porque uma técnica (as “falsas línguas”), que apresentaremos mais adiante, demonstra sua pertinência e, por outro lado, de maneira mais empírica, porque conseguimos obter para todos os dados contabilizados seu correspondente. Apresentamos a seguir (tabela 9) a lista dos fatores escolhidos e as fontes dos dados utilizadas. Tabela 9: Os fatores utilizados e as fontes de dados. Fator Fonte Número de falantes http://www.ethnologue.com/web.asp Número de países nos quais a língua tem um status ofcial http://www.ethnologue.com/web.asp Número de artigos na Wikipedia http://en.wikipedia.org/wiki/ Wikipedia:Multilingual_statistics Número de prêmios Nobel de literatura http://nobelprize.org/ entropia Calculada a partir dos dados demográfcos taxa de fecundidade http://www.prb.org/FrenchContent.aspx Índice de desenvolvimento humano (IDH) http://www.undp.org/french/ taxas de entrada na Internet http://www.internetworldstats.com/stats.htm Número de traduções, língua-alvo http://databases.unesco.org/xtrans/stat/ xtransStat.html Número de traduções, língua-fonte http://databases.unesco.org/xtrans/stat/ xtransStat.html Duas classifcações possíveis são apresentadas na tabela 10. A primeira está baseada na soma dos valores normalizados, e a segunda na soma das posições. Se considerarmos agora o lugar das línguas na Internet, obteremos uma nova classifcação, apre- sentada na tabela 6. Tabela 6: As vinte primeiras línguas de acordo com seu lugar na Internet. Posição Língua Posição Língua 1 Inglês 11 Neerlandês 2 Mandarim 12 Árabe 3 espanhol 13 Polonês 4 Japonês 14 Sueco 5 Alemão 25 thaï 6 Francês 16 turco 7 Coreano 17 Russo 8 Italiano 18 Vietnamita 9 Português 19 Farsi 10 Malaio 20 Romeno O mesmo acontece em relação ao prêmio Nobel de literatura (tabela 7) ou em relação ao fuxo de traduções línguas-fontes (tabela 8). Tabela 7: As vinte primeiras línguas de acordo com o número de prêmios Nobel de literatura. Posição Língua Posição Língua 1 Inglês 9 Dinamarquês, 2 Francês 12 ex-aequo, 1 prêmio: Mandarim, Finlandês, tcheco, Islandês, Árabe, Provençal Iídiche, Português, Bengali, Hebraico, Húngaro, turco, Servo-croata 3 Alemão 4 espanholl 5 Russo 5 Italiano 7 Sueco 7 Polonês 9 grego 9 Japonês 24 As outras, 0 prêmio Tabela 8: As vinte primeiras línguas segundo o fuxo de tradução (língua-fonte). Posição Língua Posição Língua 1 Inglês 11 Polonês 2 Francês 12 Japonês 3 Alemão 13 Húngaro 4 Russo 14 Árabe 5 Italiano 25 Norueguês 6 espanholl 16 Português 7 Sueco 17 Hebraico 8 Dinamarquês 18 Mandarim 9 tcheco 19 Finlandês 10 Neerlandês 20 Bahasa 1 21 louis-jean calvet | o peso das línguas primeiras línguas, divididas em 7 “clusters” que podem ser observados na parte extrema esquerda da fgura, através de um sinal distintivo e pelo número do “cluster”. este tipo de representação denominada dendrograma (ou árvore de agrupa- mento) permite a visualização em duas dimensões em algo que ocorre em um espaço de dez dimen- sões. O algoritmo calcula as distâncias entre todos os grupo-pares de língua possíveis no espaço dos fatores normalizados e reagrupa as duas mais pró- ximas (no caso, o dinamarquês e o fnlandês) em um primeiro “cluster” que substitui as duas lín- guas individuais. O processo é repetido e reagrupa então o esloveno e estoniano em um novo clus- ter; em seguida, o norueguês é reagrupado com o conjunto dinamarquês/fnlandês. Nos deslocamos assim da esquerda para a direita até que todas as línguas tenham sido levadas em conta. então, faz- se necessário decidir um número razoável de “clus- ters” (7 no caso apresentado aqui) e o algoritmo os defne tendo por base sua homogeneidade. Figura 1: Análise em “clusters” de 25 línguas Tabela 10: Duas classifcações das 20 primeiras línguas. Soma dos valores normalizados Soma das posições Inglês Islandês Inglês Japonês (-6) Francês Finlandês Francês Polonês (+3) espanhol Romani espanhol Dinamarquês (-3) Alemão Russo Alemão Húngaro (+8) Japonês Polonês Neerlandês (+1) Coreano (+8) Neerlandês Português Russo (+8) turco (+10) Árabe Norueguês Português (+9) Finlandês (-5) Sueco Mandarim Italiano (+1) tcheco (+2) Italiano Hebraico Árabe (-2) Hebraico Dinamarquês tcheco Sueco (-2) Serbo (+22) Podemos observar que essas classifcações são diferentes, e que depois do quarto lugar algumas línguas obtêm uma classifcação mais favorável (neerlandês, russo, português...) enquanto que outras se deslocam em sentido inverso (árabe, sueco, japonês...). Isto ocorre porque os valores normalizados e a posição não estão ligados por uma relação linear. Assim, se nos reportarmos à tabela 3 (mais acima) observaremos que quando passa- mos do mandarim para o português o incremento de classifcação é de 1 e em valor normalizado é de 0.76, já entre o xiang e o malayalam essa diferença é de 0.0003 em valor normalizado e uma mesma diferença de 1 em classifcação. O mesmo fenô- meno pode ocorrer em um grau mais ou menos importante em todos os fatores. Por outro lado, o fato de que alguns fatores apresentam natural- mente inúmeros ex-aequo agrava o fenômeno de não linearidade entre as classifcações baseadas em um fator. Deste modo, escolhemos a classifcação baseada nos valores normalizados, pois eles permi- tem uma precisão maior de análise. Porém há um modo de testar os fatores: a análise em “clusters”. O conjunto dos dez crité- rios escolhidos defne um espaço de 10 dimensões no qual as línguas se dividem. A questão agora é saber se elas se dividem de maneira regular ou se elas se agrupam em nuvens mais ou menos homo- gêneas (os “clusters”) de acordo com seu com- portamento diante dos diferentes fatores. Duas línguas que pertencem a um mesmo cluster estão mais próximas uma da outra, no espaço conside- rado, que de qualquer outra língua que pertença a um “cluster” diferente. A Figura 1 representa o resultado de uma análise dessa natureza para as 25 ! Observamos que algumas línguas constituem “singletons” (inglês, espanhol. árabe, mandarim), outras constituem (francês/alemão) e que a maio- ria cai numa espécie de lugar “comum”. Podemos então introduzir o quadro das “fal- sas” línguas, modifcando ligeiramente suas carac- 1 22 louis-jean calvet | o peso das línguas desaparecimento de um “cluster” (o singleton do madarim) provoca o aparecimento de um outro: o alemão e o francês se separam. Figura 3: Análise em “cluster” das 23 línguas e duas “falsas línguas”. essa abordagem nos leva a comentários e aná- lises: por que essas línguas se reagrupam dessa ou daquela maneira? Qual é a importância ou a uti- lidade de um determinado fator? etc. Salientamos mais acima o fato de que a análise que estávamos propondo era multifatorial. entre os dez fatores escolhidos aqui alguns são parcialmente redun- dantes, e é possível, por exemplo, que uma língua bem-classifcada através do fator prêmio Nobel de literatura também seja bem classifcada através do fator língua-fonte de tradução. tais fatores são considerados correlatos, e isto pode ser conside- rado até certo ponto como verdadeiro para todos os agrupamentos possíveis. A consequência é que introduzimos informação demais em uma clas- sifcação de dez fatores. em matemática há um método para simplifcar um problema desse tipo e reduzir o número de fatores no qual se perde um mínimo de informações: a análise em componen- tes principais. esta análise consiste em reorganizar os fatores originais em um número igual de fatores terísticas. Por exemplo, “inventando” um espanhol que seria ofcial apenas em um único país, e um mandarim que teria apenas 50 milhões de falantes. Reproduzimos então a análise para obter o resul- tado representado na Figura 2. Constatamos que o “falso” espanhol se comporta como o verdadeiro, as duas línguas se reagrupam no mesmo “clus- ter”, isto porque inúmeros outros fatores (prêmio Nobel, número de falantes, lugar na Internet...) garantem sua classifcação, já o “falso” manda- rim se separa do “verdadeiro” porque o fator que assegura o peso desta língua é essencialmente seu número de falantes; o falso mandarim se encaixa no “cluster” mais populoso, no “lugar-comum”. Figura 2: Análise em “clusters” de 25 línguas e duas “línguas falsas”. e isto se confrma se suprimirmos as duas línguas “verdadeiras” para conservarmos apenas as línguas “falsas” (Figura 3): o “falso” espanhol permanece sozinho, em singleton, enquanto que o “falso” mandarim se reagrupa com o portu- guês, o bahasa, etc. esta técnica das falsas línguas nos permite assim julgar a pertinência dos fato- res: alguns não alteram em nada a classifcação, podendo então ser considerados como redundan- tes e eliminados. Podemos observar também que o ! ! 1 23 louis-jean calvet | o peso das línguas A Figura 4 ilustra a maneira pela qual os três primeiros fatores latentes principais, aqui denomi- nados x, y e z, separam as 88 línguas que seleciona- mos. Por motivos de clareza, classifcamos apenas um número limitado de línguas. Nossa escolha está baseada em uma análise em “clusters”, cujos deta- lhes não estão apresentados aqui. Dezoito línguas em cor azul são os singletons, o russo e o polonês estão agrupados em um dubleton, e indicamos uma língua para cada um dos cinco “clusters” res- tantes. O inglês está visivelmente separado de todas as outras línguas, pois ele apresenta valores “extre- mos” em um grande número de fatores e isso fca bem ilustrado aqui. Outras línguas aparecem isola- das nesse espaço: o alemão, o espanhol, o francês, o mandarim, o português... O grupo compacto na parte de baixo do diagrama contém as línguas nór- dicas e também o neerlandês. “latentes” e em classifcá-los em ordem decrescente pela “quantidade de informação” que eles trazem. No caso ideal no qual todos os fatores originais são totalmente independentes (não correlatos) os fatores latentes são exatamente os mesmos que os originais, nos casos gerais eles diferem. É fácil imaginar que um fator “intermediário” entre prêmio Nobel e língua-fonte de tradução seja sufciente para dar uma informação quase equivalente àquela fornecida pela combinação de dois fatores. É muito mais difícil imaginar a situação quando são utilizados dez fatores, todos mais ou menos correla- tos entre si. É isso que faz a análise em componentes principais. Nós a utilizamos em nossa base de dados e o resultado é que se nos contentarmos com os três primeiros fatores latentes, eles reagrupam 75% da informação fornecida pelo conjunto dos dez fatores originais, é com isso que podemos contar. ! Romani Espanhol Hindi Árabe Português Mandarim Francês Alemão Italiano Japonês Inglês Armênio Islandês Bambaraa Ourdu Russo Polonês Esloveno Figura 4: Diagrama das 88 línguas sobre os três componentes principais. 1 24 louis-jean calvet | o peso das línguas Tabela 11: Classifcação das 88 línguas por soma dos valores. 1 Inglês 23 Coreano 45 Pendjabi 67 Ucraniano 2 Francês 24 Armênio 46 Swahili 68 Khmer 3 espanhol 25 estoniano 47 Azeri 69 Afrikaans 4 Alemão 26 turco 48 Bengali 70 Sundanês 5 Japonês 27 grego 49 Min 71 georgiano 6 Neerlandêss 28 Catalão 50 Hakka 72 Bhojpuri/ Bihari 7 Árabe 29 eslovaco 51 Visaiano/ Cebuano 73 xiang 8 Sueco 30 Croata 52 Urdu 74 Madurês 9 Italiano 31 Curdo 53 Sindhi 75 gan 10 Dinamarquês 32 Bielorusso 54 Vietnamita 76 Zhuang 11 Islandês 33 Albanês 55 Bambara 77 gujarati 12 Finlandês 34 Romeno 56 Uzbeque 78 telugo 13 Romani 35 Kirundi/ Rwanda 57 Yoruba 79 Marathi 14 Russo 36 tagalog 58 Pashtu 80 Malayalam 15 Polonês 37 Hindi 59 tamoul 81 Singalês 16 Português 38 Bahasa 60 Nepali 82 Radjasthani 17 Norueguês 39 Búlgaro 61 guarani 83 Kannada 18 Mandarim 40 Farsi 62 Igbo 84 Oriya 19 Hebraico 41 Serbo 63 thai 85 Amárico 20 tcheco 42 Kazakh 64 Javanês 86 Assamês 21 esloveno 43 Haussa 65 Yue 87 Shona 22 Húngaro 44 Peul 45 Pendjabi 88 Birman Tabela 12: Classifcação das 88 línguas por soma das posições. 1 Inglês 23 Bahasa 45 Bielorusso 67 Oriya 2 Francês 24 Farsi 46 thai 68 Pashtu 3 espanhol 25 Norueguês 47 Kazakh 69 Kirundi/ Rwanda 4 Alemão 26 grego 48 Curdo 70 Wu 5 Japonês 27 Croata 49 Uzbeque 71 Sundanês 6 Neerlandês 28 esloveno 50 telugu 72 Assamês 7 Árabe 29 eslovaco 51 Marathi 73 Yoruba 8 Sueco 30 Bengali 52 Malayalam 74 Bhojpuri (Bihari)) 9 Italiano 31 Islandês 53 Romani 75 Radjasthani 10 Dinamarquês 32 Albanês 54 georgiano 76 Khmer 11 Islandês 33 Búlgaro 55 Visaino 77 Peul 12 Filandês 34 estoniano 56 Sindhi 78 Amárico 13 Romani 35 Catalão 57 gujarati 79 xiang 14 Russo 36 Hindi 58 Swahili 80 Birman 15 Polonês 37 Armênio 59 Javanês 81 Singalês 16 Português 38 tamoul 60 Haussa 82 Bambara 17 Norueguês 39 Urdu 61 Nepali 83 Shona 18 Mandarim 40 Azeri 62 Kannada 84 guarani 19 Hebráico 41 Vietnamita 63 Min 85 gan 20 tcheco 42 tagalog 64 Yue 86 Zhuang 21 esloveno 43 Ucraniano 65 Hakka 87 Igbo 22 Húngaro 44 Pendjabi 66 Afrikaans 88 Madurês As variações entre os dois modos de cálculo, e portanto entre as duas tabelas, precisam ser inter- pretadas. A partir do quinto lugar essas classif- A maioria das outras línguas (o “lugar-comum”) está agrupada na nuvem no centro do diagrama. Podemos observar também que na parte superior dessa nuvem fguram oito línguas africanas que aparecem muito embaixo em nossa classifcação. Os comentários acima podem, eventualmente, parecer arbitrários, mas não podemos nos esque- cer que o diagrama 4 é uma projeção em duas dimensões de um espaço tridimensional: em uma tela podemos submeter o diagrama a rotações, e a confguração do conjunto dos pontos aparece de maneira muito mais nítida. Para fnalizar, pode- mos dizer que esse tipo de análise é complementar a uma classifcação puramente numérica. As lín- guas que estão afastadas do centro a nuvem de dis- tinguem por algum tipo de razão, seja ela positiva ou negativa, sem que esses qualifcativos incluam um julgamento de valor no conjunto das línguas estudadas. Façamos recapitulação dos seguintes pontos: 1) Vimos que o conjunto de dados considerados como pertinentes, assim como o seu trata- mento, nos permitia estabelecer, dependendo do modelo de cruzamento escolhido, várias classifcações para as línguas. Apresentamos abaixo dois que correspondem aos dois trata- mentos que nos parecem mais adequados. 2) Vimos também que as análises em “clusters” e em componentes principais faziam sobressair línguas com comportamentos singulares diante dos fatores selecionados. 3) Finalmente, a técnica das “falsas línguas” nos possibilitou fazer uma refexão sobre a perti- nência dos fatores. tais análises e classifcações têm, portanto, um valor heurístico. elas propõem alguns ques- tionamentos sobre o agrupamento das línguas, sobre a importância ou a utilidade dos fatores etc. É isso que discutiremos mais adiante, após a apresentação de duas classifcações temporárias. Na realidade, esse trabalho está em vias de reali- zação, e o que apresentaremos aqui é uma espécie de protótipo, sob a forma de uma classifcação provisória que leva em conta as 88 primeiras lín- guas, considerando primeiramente a soma dos valores (tabela 11) e depois a soma das posições (tabela12). 1 25 louis-jean calvet | o peso das línguas (53°). Isso faz do romani uma língua singular e a questão de seu peso pode ser discutida. O fenômeno inverso não é verdadeiro. Um valor muito baixo em um parâmetro distribuído de maneira dessimétrica não fca longe da média das línguas e não acarreta uma “subclassifcação” por valores. enfm, não precisamos esperar nenhum efeito drástico em caso de um parâmetro distri- buído regularmente, como por exemplo o IDH, cuja média é de 0.62 não muito distante do 0.5 teórico. aplicações desta abordagem no âmbito das políticas linguísticas Nosso objetivo é, portanto, preparar uma “classi- fcação das línguas do mundo”, cuja prefguração é apresentada neste trabalho. em sua versão fnal, tal classifcação irá constituir um observatório do “peso” das línguas, e será regularmente atualizada, caso o comportamento das línguas diante dos fatores se modifque (reitero que o projeto não apresenta problemas de natureza científca, mas o de encontrar meios fnanceiros e mão de obra...). ele fcará disponível na Internet e será possível consultar ao mesmo tempo tanto nossas fontes como a maneira pela qual nós trabalhamos com elas, condições que consideramos essenciais para que se possa abrir um debate científco. Além disso, ele poderá auxiliar nas decisões em matéria de políticas linguísticas. Por exemplo, em um país que tenha que decidir sobre quais línguas ensinar no ensino médio ou superior; ou mesmo um grupo de falantes que queira saber sobre o status de sua língua poderá ver por que há outras línguas mais bem-classifcadas, e o que convém fazer para que ele possa fazer “subir” a dele. em suma, ele será um lugar de trocas e de discussões científcas sobre esses temas A mesma abordagem também poderá ser aplicada em situações mais locais, no âmbito das integrações regionais (União europeia, Merco- sul, etc.). No momento, estamos desenvolvendo um trabalho sobre o peso das línguas nos países do Mediterrâneo, a ser apresentado em um coló- quio sobre “As políticas linguísticas no Mediter- râneo”, que acontecerá em tel-Aviv, em novem- cações diferem ora muito pouco (o neerlandês aparece em quinto ou sexto lugar); ora sensivel- mente (o húngaro aparece em décimo quarto ou vigésimo segundo lugar) e às vezes diferem de maneira extrema (o romani em quinquagésimo ou décimo terceiro lugar). esse problema de não linearidade da relação entre uma classifcação por valores e uma classifcação por posição merece nossa atenção. Quando observamos as distribuições de valo- res dos fatores para as línguas consideradas cons- tata-se que, na maioria dos casos, elas não são uniformes nem mesmo simétricas no conjunto do domínio, e sim extremamente assimétricas. Por exemplo, se considerarmos o Prêmio Nobel de literatura, constatamos que 65 línguas não pos- suem nenhum; 12 línguas têm um e somente 4 línguas têm mais de 10, com máximo de 25 em língua inglesa. tal assimetria é encontrada evi- dentemente nos valores normalizados utilizados nas classifcações, fazendo com que a média dos valores normalizados sobre o fator Prêmio Nobel seja de 0.04, bem inferior ao valor “teórico” de 0.5 esperado em uma distribuição simétrica. A média das classifcações por posições para 88 línguas sem ex-aequo é necessariamente de 44.5. Isso pode ser observado em um grau mais ou menos acentuado na maioria dos fatores; 6 apresentam uma média de valores normalizados inferior a 0.1; 3 com 0.25, e apenas um apresenta uma média superior a 0.5. O resultado é que se uma língua aparece no alto de uma classifcação de um fator cuja distribuição é assimétrica, sua distância relativa em relação à média, portanto em relação ao conjunto de todas as outras línguas, será mais signifcativa na classifcação por valores que na classifcação por posição neste único fator. em outros termos há um prêmio para o vence- dor. em uma análise combinatória todas as vari- áveis são supostamente iguais, embora uma certa vantagem relativa entre elas tende a provocar uma melhor classifcação por soma de valores para a língua considerada. Assim, no caso do romani, o valor normali- zado sobre a entropia é de 1, enquanto que o valor médio da entropia é de cerca de 0.17, fato que traduz a importância da diáspora, o romani é mais bem classifcado por valores (13°) que por posição 1 26 louis-jean calvet | o peso das línguas larização: que línguas ensinar em Hong Kong? e no Japão? Qual é o peso respectivo do mandarim e do cantonês nessas regiões? Ainda na mesma linha de raciocínio, seria interessante poder estudar o peso das línguas na francofonia africana, na África ocidental, na África central, etc. Sem dúvida, estaríamos lidando com reper- cussões regionais de um projeto mundial, e não da simples extração de algumas línguas do index geral para a formação de um subíndex local. Aliás, o comportamento das línguas frente aos diferentes fatores selecionados pode mudar se nós os considerarmos a partir de um ponto de vista regional, por exemplo diante da entropia ou diante do fuxo de traduções. Assim, a própria noção de peso das línguas passaria a ser uma parte importante da refexão no âmbito das políticas linguísticas. bro de 2008. Durante uma conferência proferida no dia 22 de abril de 2008, em Singapura, (L-J Calvet, “globalisation: A gravitational Presen- tation of the World Linguistic Situation”, 43rd ReLC International Seminar, Language Teaching in a Multilingual World : Challenges and Oppor- tunities), apresentei os diferentes desdobramen- tos locais deste trabalho: elaboração de um índex das línguas dos países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASeAN), comparação do peso de uma determinada língua (chinês, inglês, japonês....) na zona da ASeAN e na zona APeC (Cooperação econômica da Ásia e do Pacífco), ou ainda a comparação do peso de todas as lín- guas de um país (Singapura, Malásia...). Qualquer que seja o caso, esses índices regionais seriam uma ajuda interessante para o estabelecimento de polí- ticas linguísticas, por exemplo, no âmbito de esco- 1 27 o dicionário de variantes do alemão: coleta de dados sistemática da variação nacional e regional do alemão-padrão 1 Ulrich Ammon (Universität Duisburg-essen) 1 este texto foi traduzido e adaptado por Mônica M. g. Savedra Barretto (PUC-Rio) e Beate Höhmann (tU-Berlin), do original em alemão, intitulado Das Variantenwörterbuch des Deutschen: Die systematische Erfassung der nationalen und regionalen Variation des Standarddeutschen, enviado pelo autor para apresentação no I encontro Internacional do gt de Sociolinguística da ANPOLL, realizado na PUC-Rio em agosto de 2007. 1. retrospectiva de algumas abordagens sobre variação da língua alemã entre os estudos pioneiros na pesquisa sobre variantes e variedades de língua padrão nacional e regional, destacam-se aqueles desenvolvidos pela linguística russa, em especial na então sociolin- guística (ante nominem), representada por georg V. Stepanov e Alexander D. Schweitse, que infuen- ciaram de forma bastante expressiva os trabalhos desenvolvidos de romanística e anglicismo, res- pectivamente. Somente mais tarde, alguns sociolinguistas, como o alemão Heinz Kloss (1967) e o australiano Michael Clyne, ampliaram estes estudos para outras línguas, como por exemplo, para o português, o espanhol, o francês, chinês, etc. (cf. CLYNe 1992). O mesmo procedimento utilizado por Kloss e Clyne pode ser aplicado para o Dicionário de abstract this contribution describes the background and the struc- ture of the frst comprehensive dictionary worldwide for a pluricentric language, i.e. a language with different standard varieties for different countries or regions. the Variantenwör- terbuch des Deutschen contains all the national and regional variants of Standard german and only these. It is structured thus that each single variant takes you to all the correspon- ding variants of the same variable. the dictionary was recei- ved with great interest and became a bestseller. Dictionaries of the same structure could be made, and would be worth while being made, for any pluricentric language like, for example, Portuguese, Spanish or english. the contribution illumina- tes the geographic and historical background of german as a pluricentric language and the functions of the various stan- dard varieties for their countries and regions including the expression of the respective collective identity. It also sketches the research history and the development of theories and ter- minologies for pluricentric languages in general. 1 28 ulrich ammon | o dicionário de variantes do alemão blica Democrática da Alemanha e da União Sovi- ética – sob a infuência de uma política de divisão permanente por parte de seus países da Alemanha – consideraram as diferenças linguísticas da Ale- manha Oriental e da Ocidental como “variantes nacionais”. O trabalho mais conhecido a respeito se tornou o ensaio de gotthard Lerchner (1974). A descrição de Riesel das peculiaridades linguís- ticas da Áustria (1964a: 12-21), da Suíça de lín- gua alemã (21-24) e das duas partes da Alemanha (7-11) é extremamente precisa e foi confrmada posteriormente em grande parte pelas pesquisas. Mesmo sendo reconhecidamente mais detalhada para a Áustria, ela é bastante rica para as demais nações de língua alemã. No trabalho de Riedel são utilizadas abordagens teóricas predominantes naquela época, bem como algumas terminologias específcas, que podem causar confusões na tradu- ção. Assim, propomos, a seguir, uma revisão sim- plifcada da terminologia atual em comparação a terminologia de Riesel. em vez de variantes, usaremos o termo varie- dades no âmbito dos sistemas linguísticos plenos (p.ex. a “língua literária austríaca”). tais varie- dades correspondem às formas de manifestação (Erscheinungsformen) de uma língua na linguística soviética. este termo hoje é em grande parte evi- tado, uma vez que não fca claro o que se preten- dia defnir como variedade. Nos textos disponí- veis encontramos a oposição Erscheinungsformen vs. Wesen(sformen) einer Sprache (formas de mani- festação e formas de essência de uma língua). Na verdade, o antônimo de variedade é simplesmente a língua (plena), que é entendida como um con- junto de variedades. talvez a oposição termino- lógica entre aparência e essência (Erscheinung/ Wesen), presente nos conceitos de Erscheinungs- form e Wesensformen, induziram Riesel a contras- tar variedades nacionais (para ela “variantes”) com uma “norma linguística geral”.ex. a “língua literá- ria austríaca”). O termo variante hoje é usado de um modo mais específco, para designar determinadas “singularidades” ou particularidades“ (segundo expressão de Riesel) de uma variedade. Assim a expressão Marille (Aprikose) é uma variante aus- tríaca – mais precisamente uma variante lexical. As variantes específcas das diferentes nações ger- Variantes do Alemão, ou seja, o mesmo modelo de dicionário proposto por Ammon, Bickel, ebner, entre outros (2004) para descrever as variantes do alemão, pode ser utilizado para descrever variantes de outras línguas. Na área de germanística, elise Riesel já havia tratado anteriormente da questão da variação nacional de línguas padrão (cf. RIeDeL, 1952, 1953 e 1964b). O trabalho apontado como o de maior relevância para o tema foi o célebre livro Der Stil der deutschen Alltagsrede (O estilo do alemão cotidiano), publicado em 1964 (Cf. RIeDeL, 1964a). Sem dúvida, Riesel foi sensibilizada pelo tema pela sua própria história de vida e pelo des- tino de seu país, a Áustria, cuja incorporação pela Alemanha nazista fcou eufemisticamente conhe- cida como der Anschluss (a ligação). tal anexação foi legitimada, entre outros fatores, pela ideia da nação de língua (Sprachnation), a partir da igual- dade linguística da Alemanha e da Áustria. Riesel não corroborava com esta ideia de uma nação de língua onde uma língua representaria uma nação, um estado, um país. Pelo contrário, acreditava que as particularidades linguísticas do alemão austríaco poderiam funcionar como pro- teção argumentativa de defesa contra a anexação da Áustria pela Alemanha. Mesmo sem negar que a Alemanha e a Áustria falassem a mesma língua, enfatizou as diferentes “formas de manifestação” (Erscheinungsformen) (1964b, p. 12) do alemão falado na Áustria do alemão falado na Alemanha. Os usos linguísticos que no sul da Alemanha se manifestavam como dialeto ou como língua lite- rária coloquial na Áustria ter-se-iam desdobrado, graças ao seu desenvolvimento histórico, em uma característica de fala de cunho literário. Riedel também citou as diferenças do alemão da Suíça, em especial a língua literária suíça (Schweizer Lite- ratursprache). Acrescentou que, devido à preferên- cia dos suíços pelo uso do dialeto, as peculiari- dades literárias na língua escrita se faziam menos perceptíveis que na língua oral (1994ª, p. 21). Riesel ainda propôs que, além de considerar as variantes do alemão da Áustria, da Suíça e da Ale- manha, fossem também consideradas as variantes do alemão das duas partes da Alemanha, a Ale- manha Ocidental e Oriental. Mas, somente na década de 1970, alguns linguistas da antiga Repú- 1 29 ulrich ammon | o dicionário de variantes do alemão não têm relevância nacional. Centro linguístico é um hiperônimo sobre nação com próprias varian- tes de língua-padrão. Riesel salientou e elaborou mais a variação nacional do que a variação regio- nal do alemão-padrão. A teoria e a terminologia contemporânea são altamente compatíveis com a abordagem teórica e com os termos de Riesel. elise Riesel pode ser considerada sem dúvida uma pioneira da atual teoria sociolinguística de línguas pluricêntricas. Riesel também antecipou uma importante possibilidade de aplicação da mencionada teoria, devido a sua principal atividade e interesses pre- dominantes: a relevância do tema para a matéria e o ensino de alemão como língua estrangeira. Na Alemanha, Hugo Moser foi um dos pri- meiros que, já no fnal dos anos 50, tratou da temática da variação nacional da língua alemã, porém com uma avaliação unilateral tendenciosa a favor do alemão-padrão na antiga RFA. Mais tarde, nos anos 80, Peter von Polenz se ocupou de forma mais equilibrada e diferenciada com o tema. em parte, ele foi encorajado por importantes trabalhos do linguista Michael Clyne, como relatado em Ammon (1995, pp. 35-60). 2. divulgação do conhecimento sobre a variação nacional do alemão-padrão Reforçando a ideia de que o alemão é uma língua pluricêntrica, até há pouco tempo acreditava-se que o “alemão certo” teria o mesmo aspecto em todos os lugares, onde a língua fosse usada como ofcial. esta hipótese veio a ser refutada pelo pró- prio uso das línguas nos meios de comunicação. em 1º. de janeiro de 1995, a Áustria se tor- nou membro da União europeia (Ue). Nas reu- niões de negociação que precederam a adesão, fcou bastante evidente que os austríacos não fala- riam exatamente o mesmo alemão que os alemães. A delegação de negociação austríaca apresentou 23 palavras típicas austríacas, que no futuro deveriam ser adicionadas aos textos ofciais da Ue às pala- vras alemãs usadas pela Alemanha. A delegação também solicitou a inclusão de outros termos do alemão austríaco no alemão institucional da Ue, manófonas hoje são denominadas Austriazismen, referindo-se à Áustria, Helvetismen, referindo-se à Suíça e Teutonismen, referindo-se à Alemanha. O que Riesel denominou linguagem literária, devido à infuência anglo-saxônica, na maioria das vezes hoje é chamado de língua padrão (Standardsprache). As diferentes manifestações nacionais ou regionais de uma língua padrão chamamos de suas varieda- des padrão (Standardvarietäten) nacionais, respec- tivamente regionais. Uma língua com múltiplas variedades padrão, como o alemão, o inglês, o francês e outras, chamamos de língua pluricên- trica (com uso decrescente também língua poli- cêntrica). O termo pluricêntrico foi introduzido pelo americano William Stewart ou pelo alemão Heinz Kloss, que falou em língua pluricêntrica em 1967 pela primeira vez. (cf. Kloss, 1967:33). Aqui propomos, em vez do termo língua pluricêntrica, o termo introduzido por Ammon (1995) Zentrum einer Sprache (centro de uma língua) (cf. Ammon 1995:95-100). No contexto temático presente, a noção de cen- tro de uma língua refere-se a cada nação ou região que dispõe de sua própria variedade-padrão. O grau de disposição sobre uma variedade-padrão pode ser especifcado na base de uma teoria sis- temática da padronização de variedades linguís- ticas (cf. Ammon 1995:73-94). Simplifcando grosseiramente, podemos diferenciar centros ple- nos (Vollzentren) do alemão para a língua alemã (com códices próprios, portanto obras de refe- rência autoritárias para a exatidão linguística) de demicentros (Halbzentren), os quais embora dis- pondo de particularidades da língua-padrão, não dispõem de codifcações próprias. Sendo assim, a Alemanha, a Áustria e a Suíça germanófona seriam centros plenos, enquanto Liechtenstein, Luxemburgo, a tirol do Sul e a Bélgica oriental seriam demicentros, sendo ainda possível outras diferenciações. Desta forma, p. ex., Namíbia e Romênia poderiam ser denominadas quartos de centros (Viertelzentren) por apresentarem varian- tes de língua-padrão. entretanto o alemão não é língua ofcial naqueles países. O conceito de centro linguístico é presente na obra de Riesel – p. ex. através suas referências excursionistas por particularidades regionais (ale- mão do norte – alemão do sul, 1964ª: 14), os quais 1 30 ulrich ammon | o dicionário de variantes do alemão 3. notas a respeito da variação nacional e regional do alemão- padrão A variação do alemão-padrão deve ser analisada com base nos países e partes de países onde o ale- mão é língua ofcial, o que pode ser visualizado no mapa a seguir, cuja legenda signifca: • partesclaras: língua ofcial nacional • partesescuras: língua ofcial regional caso necessário fosse. tal solicitação foi aceita, sem resistência, por parte da Ue. Dentre as 23 palavras austríacas da Ue estão termos como Eierschwammer (Pffferling – fungo), Faschierte (Hackfeisch – carne moída), Fisolen (grüne Bohnen-feijão verde), Kren (Meerettich – rábano), Marill (Aprikose – damasco). Na maioria, termos referentes à culinária, o que reforça o este- reótipo dos austríacos, conhecidos como “feacos” (apreciadores da boa mesa). e foi justamente com referência à manutenção dos termos austríacos concernentes à culinária que o então prefeito de Viena, Helmut Zilk, convenceu, na época do ple- biscito, seus compatriotas à adesão da Áustria à Ue. Nas ruas de Viena e nos arredores da capital, foram colocados cartazes ilustrativos com o título “Erdäpfelsalat bleibt Erdäpfelsalat” (salada de batata permanece salada de batata), o qual mostrava uma porção de salada de batata, com o termo Erdäpfel- salat, que é o correspondente austríaco para o termo alemão Kartofelsalat, usado na Alemanha e na Suíça. Outro exemplo desta natureza também foi utilizado no slogan de um prato com tomates: “Sagen Sie bitte (...) Paradeiser. Sie dürfen es auch als EU-Bürger” (diga Paradeiser (tomate em aus- tríaco). Isto também poderá fazê-lo como cidadão da Ue. A defesa das particularidades linguísticas austríacas na Ue ainda renderam o elogio feito ao ministro encarregado das negociações, por parte dos austríacos: “Danke, Herr Außenminister, für Ihre Zähigkeit!” (Sr. Ministro, obrigado por sua visão!). As circunstâncias linguísticas da adesão da Áustria à Ue reforçam a ideia de que a língua alemã não é uniforme, mesmo na variante-padrão, conhecida pelos termos Hochsprache – língua alta, Schriftsprache – língua escrita –, ou Literaturspra- che – língua literária. Fica claro que as diferenças regionais e as diferenças nacionais existem não somente na língua coloquial, na grande diversi- dade dos dialetos ou ainda dos patois. Pelo con- trário, a discussão a respeito do alemão austríaco demonstrou que também o alemão padrão não soa igual em todo lugar. Acrescentamos aqui que tam- bém devem ser consideradas as diferenças regio- nais entre a Alemanha do norte e do sul (Apfelsine/ Orange (laranja), Sonnabend/ Samstag (sábado), Harke/ Rechen (ancinho) e entre outras. ! Além da padronização de formas linguísticas ofcializada em livros e compêndios escolares (Cf. Ammon 1995:73-88), existem peculiaridades da língua-padrão em todos os sete países ou partes de países onde o alemão é língua ofcial (Amtsprache), ou seja “variantes nacionais” (nationale Varian- ten). Nos centros plenos elas são lexicalizadas em obras de referência próprias. Na Alemanha, entre outros, nos volumes do Duden; na Áustria, no dicionário austríaco Österreichisches Wörterbuch (39. a edição 2001) e, na Suíça, em diversos dicio- nários escolares ou no dicionário suíço Schweizer Wörterbuch (2006). Os menores demicentros, no entanto, não têm codifcações linguísticas próprias. Uma outra dife- rença entre os centros plenos e demicentros consiste em que naqueles, as variantes específcas se esten- dem a todos os níveis linguisticos e gramaticais, enquanto que nestes são limitadas ao vocabulário. Na análise das variantes nacionais dos demicen- tros, fca evidente que o uso de algumas variantes não equivale aos limites nacionais. Pelo contrário, 1 31 ulrich ammon | o dicionário de variantes do alemão mação artística na Alemanha, pronunciava pala- vras tais como König (rei) com uma fricativa no fnal [‘kø:niC]. ela foi ameaçada de demissão caso não convertesse sua pronúncia ao alemão-padrão suíço [‘kø:nik]. Nas estações suíças regularmente chegam cartas de protesto contra a pronúncia teu- tônica que ocorre esporadicamente. Para muitos austríacos a variedade nacional é expressão de sua identidade. Já para os suíços, o dialeto suíço, que não deve ser confundido com o alemão-padrão suíço, que é presente na comuni- cação cotidiana, é que tem essa função. em ambos os casos, a manutenção de particularidades lin- guísticas é uma espécie de atitude defensiva para com o vizinho maior, a Alemanha. As diferenças entre o alemão-padrão das três nações podem ser identifcadas pela consciência e pelas atitudes de alemães, austríacos e suíços. Uma explicação para as diferenças na atitude é o fato de que os alemães, na sua história recente, nunca se sentiram ameaçados pela Áustria e pela Suíça. entretanto, a recíproca não é a mesma. Uma atitude que reforça tal afrmação é o fato de os austríacos chamarem os alemães de Piefkes (singular Piefke). A expressão deriva, por um lado, do nome do com- positor militar prussiano gottfried Piefke (que compôs o “Königgrätzer Marsch” por ocasião da vitória da Prússia sobre a Áustria no ano 1866) e, por outro lado, da grande incidência deste sobrenome na Alemanha do norte. Para os suíços, os alemães se chamam Schwobe (singular Schwob), o que se refere ao “Schwabenkrieg”, a guerra dos suíços contra as cidades da Alemanha do sul (1499). Mas, certa- mente, também está relacionado ao fato de serem os suábios os vizinhos alemães mais próximos. É notável que pelo conteúdo de ambas as expressões é associado o estereótipo prussiano. Os “Piefkes” e os “Schwobe” são, portanto, inconsequentes, im- prudentes, militaristas e se consideram sempre os melhores. em contrapartida, para os alemães, os austríacos e os suíços são extremamente simpá- ticos. Os alemães não têm apelidos nacionais para os austríacos e para os suíços. Pelo menos, nenhum popularmente reconhecido. Pode presumir-se que numa assimetria dos apelidos nacionais as diferen- tes experiências das nações fquem evidentes. As atitudes subjacentes existem também em relação as respectivas particularidades linguísticas. muitas variantes valem em diversos centros ou demicentros nacionais, enquanto outras apenas em parte deles. A falta de equivalência da variação do alemão-padrão com suas fronteiras nacionais demonstra que a variação regional se sobrepõe à variação nacional. O inventário exaustivo de todas as variantes nacionais e regionais pode ser encon- trado no Dicionário de Variantes do Alemão (Varian- tenwörterbuch des Deutschen) (2004). 4. a coleta sistemática da variação nacional e regional do alemão- padrão no dicionário de variantes do alemão grande parte das diferenças em todos os níveis linguísticos e gramaticais provém dos respectivos dialetos, cujas formas evoluíram para o alemão padrão como empréstimos. Os limites dialetais não correspondem aos limites nacionais, o que ocasiona difculdades na delineação das varieda- des nacionais e dos dialetos. Algumas formas, que são empréstimos dos dialetos do baixo alemão, somente são usadas pelo alemão do norte, como por exemplo Laken (Leintuch – pano de linho) ou Harke (Rechen – ancinho). em outros casos, as mesmas formas são usadas no alemão-padrão tanto no lado suíço quanto no lado austríaco e/ou ainda eventualmente no lado alemão. Assim, por exemplo, das Stockerl (der Hocker – banquinho) na Áustria é termo do alemão-padrão e na Bavária, e, portanto, na Alemanha, é dialetal. Do mesmo modo, o termo Guetzli, que na Alemanha é Plät- zchen (biscoito), na Áustria Zeltel é considerado num lado da fronteira como Schweizerhochdeutsch (alemão padrão suíço) e, no outro lado, ou seja, na Alemanha é considerado dialeto. este uso variado ocasiona polêmica quanto à padronização das for- mas de expressão da língua alemã. A existência de diferentes variedades do alemão- padrão é hoje reconhecida e enfatizada, sobretudo pelo lado austríaco e pelo lado suíço. Não só na Áustria as variantes nacionais próprias são defen- didas, como no caso já descrito das negociações de adesão à Ue, mas também na Suíça. Um exemplo é a ameaça de demissão de uma porta-voz de notí- cias da rádio suíça DRS, que, devido a uma for- 1 32 ulrich ammon | o dicionário de variantes do alemão 6. o dicionário de variantes do alemão (variantenwörterbuch des deutschen) O Dicionário de Variantes do Alemão (Ammon/ Bickel/ ebner u.a. 2004) foi recebido com um grande interesse nos países de língua alemã, com vendagem signifcativa. Aparentemente ele preen- che uma lacuna. ele documenta a variação nacio- nal e regional do alemão-padrão de forma abran- gente. Num prefácio detalhado está um panorama geral sobre o alemão como língua pluricêntrica e ainda sobre os centros plenos e demicentros nacio- nais do alemão. A fm de fornecer uma representação sistemá- tica e de fácil acesso para os usuários foram desen- volvidas estruturas próprias para os artigos que são ilustrados com explicações. O Dicionário de Variantes foi elaborado durante cerca de dez anos em cooperação estreita de três grupos de trabalho, a saber: em Duisburg (Alemanha), Basiléia (Suíça) e Innsbruck (Áus- tria), sob participação de numerosos outros inves- tigadores individuais nos demicentros nacionais e em diversas regiões dos centros plenos. O dicionário de variantes registra para cada palavra todas as variantes correspondentes ao padrão nacional e regional, cuja pesquisa de levan- tamento de dados foi cuidadosa e empiricamente comprovada. também contém entradas do alemão vulgar (gemeindeutsche Stichwörter), que valem em toda as regiões de língua alemã. elas servem para encon- trar palavras e locuções que são regionalmente ou nacionalmente restritas. Assim, por exemplo, a entrada Fahrerfucht (fuga do motorista após cau- sar um acidente) faz uma indicação a Unfallfucht, que na Alemanha ocorre ao lado da variante do alemão vulgar, como a Führerfucht na Suíça. No entanto, no caso dos registros do alemão vulgar, trata-se sempre de variantes – não de palavras invariáveis. termos que são invariáveis na totalidade da área linguística alemã (não con- tando as diferenças fonéticas) como Mensch (ser humano), Stein (pedra), Tisch (mesa) etc. formam a maior parte do vocabulário alemão. eles garan- tem a ampla concordância do alemão-padrão nos 5. notas sobre como lidar com a variação nacional e regional do alemão-padrão no ensino de alemão como língua estrangeira Até recentemente, somente o alemão da Alema- nha era considerado no ensino de alemão como língua estrangeira. Ainda hoje, a situação do alemão como língua pluricêntrica não é total- mente esclarecida. embora a diversidade nacio- nal e regional da língua alemã não seja negada, as preocupações quanto à sobrecarga em aprender diferentes variedades são evidenciadas. Assim, o ensino do alemão como língua materna e como segunda língua se orienta involuntariamente pela variedade nacional do centro em que o ensino acontece. entretanto, acredita-se que os professores e estudantes de alemão como língua estrangeira deveriam ser confrontados desde o início com diversas variedades nacionais. Con- siderando o tamanho do país e sua capacidade econômica, ao que tudo indica, a o alemão da Alemanha ainda continuará sendo a variedade de referência para o ensino da língua. Isso não signi- fca uma visão unicêntrica. Atualmente começam a surgir possibilidades de familiarização com as variedades da Áustria e da Suíça e a possibilidade destes países receberem alunos e professores de alemão para cursos de formação e de atualiza- ção. A abordagem pluricêntrica da língua alemã também deveria ser considerada na formação de professores de alemão como língua estrangeira. este conhecimento fundamentado do pluricen- trismo da língua deveria ser ensinado ao lado dos conhecimentos de gramática e didática. Não estamos assim sugerindo que devam ser aprendidas todas as variações-padrão nacionais e regionais por igual, posto que esta atitude seria utópica. Até para os germanistas falantes nati- vos de alemão seria totalmente irreal. trata-se da sensibilização, isto é, da conscientização da diversidade nacional e regional do idioma ale- mão. e tal é tanto viável quanto desejável na aula de alemão como língua estrangeira. Maiores esclarecimentos sobre este ponto de vista podem ser encontrados em Hägi (2006) e em Ammon & Hägi (2005). 1 33 ulrich ammon | o dicionário de variantes do alemão referências bibliográficas Ammon, Ulrich (1995) Die deutsche Sprache in Deutsch- land, Österreich und der Schweiz. Das Problem der nati- onalen Varietäten. Berlin/New York: de gruyter. _______. (1997) Die nationalen Varietäten des Deutschen im Unterricht Deutsch als Fremdsprache. em Jahrbuch Deutsch als Fremdsprache 23: 141-158. _______. Bickel, Hans, ebner, Jakob et al. (2004) Vari- antenwörterbuch des Deutschen. Die Standardsprache in Österreich, der Schweiz und Deutschland sowie in Lie- chtenstein, Luxemburg, Ostbelgien und Südtirol. Berlin/ New York: W. de gruyter. _______ & Hägi, Sara (2005) “Nationale und regionale Unterschiede im Standarddeutschen und ihre Bedeu- tung für Deutsch als Fremdsprache.” em e. Butulussi/ e. Karagiannidou/ K. Zachu (eds.) Sprache und Mul- tikulturalität. Festschrift für Professor Käthi Dorfmüller- Karpusa. thessaloniki: University Studio Press, 45-58. Clyne, Michael (1992) Pluricentric Languages. Differing Norms in Different Nations. Berlin/ New York: Mouton de gruyter. Hägi, Sara (2006) Nationale Varietäten im Unterricht Deutsch als Fremdsprache. Frankfurt a. M. etc.: Peter Lang. Kloss, Heinz (1967) “Abstand Languages” and “Ausbau Languages”. Anthropological Linguistics 9/7: 29-41. _______. (1976) Abstandsprachen und Ausbausprachen. em göschel, J./ Nail, N./van der elst, g. (Hgg.) Zur Theorie des Dialekts. Wiesbaden: Steiner, 301-322. Lerchner, gotthard (1974) Zur Spezifk der gebrauchs- weise der deutschen Sprache in der DDR und ihrer gesellschaftlichen Determination. Deutsch als Fremd- sprache 11: 259-265. Österreichisches Wörterbuch (2001). 39a ed. Wien: Volk und Wissen. Riesel, elise (1953) K voprosu o nacional´nom âzyke v Avstrii. 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Quem não gostaria de saber, p. ex., como se chama um ‘pedaço pequeno e redondo feito de farinha de pão’ – como diz a indicação do signifcado – em diferentes lugares: de Schrippe em Berlim passando por Brötli, Bürli, Brötchen, Laibchen, Rundstück, Mutschli, Wecken, Weckerl e Weggen 1 . Ao lado deste aspecto lúdico, também encontramos termos que retratam um lado triste da história das nações de língua alemã, como por exemplo Abschiebung (deportação) na Áustria e na Alemanha – Ausschaffung na Suíça, e por conseguinte: Abschiebehaft, também Abschie- bungshaft na Alemanha – Schubhaft na Áustria – Ausschaffungshaft na Suíça. Um outro aspecto relevante pensado na ela- boração deste dicionário diz respeito à melhora das relações entre os países e regiões de língua alemã. Há vários indícios que tal relações não sejam tão boas. Principalmente por parte da Alemanha, ainda há uma carência de um reco- nhecimento real das particularidades linguísti- cas das demais nações ou partes de nações de língua alemã. A arrogância ocasional por parte dos alemães e – em contrapartida – a sensibi- lidade dos demais centros de língua alemã, às vezes, até mesmo difcultam uma cooperação na promoção conjunta da língua alemã, incluindo a promoção de alemão como língua estrangeira no exterior, tão necessária nesta época de glo- balização. 1 todos estes termos são usados para designar pão francês. 1 34 1. ela afeta exaustivamente a totalidade de uma população em tODOS os domínios da vida pública e social no que diz respeito às condi- ções legais e socioeconômicas. 2. ela implica uma fusão de um estado com outro sem restrições. 3. ela é irreversível. Uma MSR, sob as condições acima, leva a diferentes resultados de acordo com a duração da fase de transição e com as qualidades dos inputs sociais e comunicativos durante esta fase. A fm de investigar esta microgênese dos estados transicio- nais de formação identitária, em nosso caso aqui as mudanças nas “tradições da linguagem oral” (Schlieben-Lange, 1983), precisamos primeiro entender o que Bloch (1973) quis dizer com sua metáfora brilhante da “não simultaneidade do simul- tâneo” (Ungleichzeitigkeit des gleichzeitigen). em 3 de outubro de 1990, todos os habi- tantes da antiga gDR tiveram que se adaptar às normas ocidentais. O pressuposto para se viver na sociedade-alvo era o domínio de práticas habituais antigas e somente depois, gradualmente, em fun- ção dos ritmos individuais, sociais e locais, novos hábitos seriam adquiridos e praticados. O ociden- tal “não simultâneo” se encontra com o “simultâ- neo” somente se ele ou ela mudar seu “hábito lin- guístico” (Bourdieu 1982). O ritmo da mudança é refetido nos registros e estilos de lidar com essa mudança social radical (MSR). esses marcadores sociolinguísticos transicionais são governados por mudança social radical 1 e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos de berlinenses do leste e do oeste depois da reunificação alemã 2 Norbert Dittmar é professor na Free University of Berlin. 1 Radical Social Change (RSC) aqui adotaremos a sigla para o português MSR (Mudança Social Radical). 2 este texto foi traduzido e compilado por Ana Claudia Peters Salgado, a partir do texto-base Radical Social Change and Its Sociolinguistic Refection in Registers and Styles of East and West Berliners After the German Reunifcation (em inglês), apresen- tado pelo Professor Norbert Dittmar no I encontro Interna- cional do gt de Sociolinguística da ANPOLL, ocorrido na PUC-Rio entre 31 de julho de 2007 e 3 de agosto de 2007. 1. 0 contexto sociolinguístico da comunidade de fala de Berlim antes e depois da MSR em 1989 O foco desse trabalho é a identidade social de adultos socializados – orientais e ocidentais – com idades entre 30 e 65 anos, em Berlim. Devido ao fato do Muro ter separado dois mun- dos completamente diferentes em termos polí- tico, socioeconômico e cultural, Berlim oferece insights prototípicos sobre o processo intercultu- ral de lidar com a perda de identidade e a neces- sidade de reconstruir novas identidades. este processo, é claro, é refetido e manifestado em encontros comunicativos e negociações interati- vas entre berlinenses orientais e ocidentais, mas também frequentemente em (monológicas) falas preocupadas com um e com outro ser. No que diz respeito principalmente com “identidades transicionais”, uma mudança social radical difere de outras mudanças relevantes nas vidas de indi- víduos e de grupos sociais em muitos aspectos importantes: 1 35 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos ças estilísticas e como as mudanças traduzem em expressões e manifestações da nova norma social e comunicativa? Podemos predizer que o pro- cesso contínuo de superar a divisão linguística de quarenta anos será uma adaptação lenta às normas ocidentais. A tarefa da sociolinguística nessa situação é descrever a “sincronia diacrônica”, por exemplo, o “corpo a corpo” linguístico com a dinâmica diária da mudança linguística orientada por forças cognitivas e sociopolíticas. 2. contexto de estudo No outono de 1993 e em 1994, cerca de 60 narrati- vas complexas e interativas sobre os dramáticos even- tos de 9 e 10 de novembro de 1989 foram coletadas de amigos e parentes (berlinenses ocidentais e orien- tais) que eram, em sua maioria, mulheres jovens e professoras nas escolas do ciclo fundamental de Ber- lim Oriental (então professoras gDR) para quem lecionei cursos de linguística complementar. Narrativas de experiência pessoal nos habilitam a reconstruir os dramáticos eventos de 9 de novem- bro e as emoções que constroem a MEMÓRIA COLETIVA de uma comunidade envolvida numa mudança social radical. tais eventos nos dão a opor- tunidade de descrever a estrutura (tanto a forma quanto a função) de narrativas sobre a mudança que se manifesta na insegurança cognitiva e nos proble- mas em escolher adequadamente expressões de duas culturas diferentes. Com foco nos “eventos”, a natu- reza do discurso foi narrativa. Comparando as espe- ranças dessa noite fantástica com a amarga realidade social quatro ou cinco anos mais tarde, a segunda metade da conversação foi argumentativa. Como em todo estudo sociolinguístico, o foco principal de análise é o comportamento verbal e comunicativo de um grupo social marcado: o grupo minoritário oriental que estava/está de certa forma perdendo sua identidade e tem que se adaptar às normas da sociedade-alvo que é a ocidental. O cor- pus sociolinguístico de análise detalhado das diferen- ças Orientais-Ocidentais encontra-se mais elaborado em Dittmar & Bredel: The Language Wall. The Overcoming of the ‘Wende’ and its Consequences in Conversations with East and West Berliners. Berlin 1999. processos sociocognitivos e são manifestados na superfície do discurso e da interação. Ambos os fenômenos, Social Hexis e Habitus (Bourdieu, 1982), têm seu papel na comunicação. Depois de 40 anos de respectivo isolamento, as pessoas de Berlim Ocidental encontraram as pessoas de Berlim Oriental em condições de liber- dade e sob autosseleção. As bagagens culturais de ocidentais e orientais nos primeiros “encontros reais e espontâneos” estão representadas na Figura 1, que consiste de uma lista prototípica de valores que estão em confito uns com outros. Antes de passar aos detalhes linguísticos do discurso da MSR (‘Umbruch’ discourse), deixe- me dar uma ideia da historicamente dividida comunidade de fala de Berlim no fm da década de 1980. A Figura 2 mostra o impacto na língua e na comunicação nas fases interculturais transi- cionais. Note que eu não reduzo a natureza das comunidades ocidentais e orientais a diferenças entre um modelo de “prestígio” e um modelo de “solidariedade”, que foram propostos por Leslie Milroy como termos “guarda-chuva”. A constela- ção sociolinguística é muito complexa, mas o jar- gão central no lado oriental era “moral socialista” e no lado ocidental, “mercado livre” (consumo e laser). Outros fatores determinantes são: • Multiculturalidade do Ocidente, monocultu- ralidade e estrutura social uniforme do lado oriental; • Redesdecontatofechadaeabertanoquediz respeito a contatos internacionais; • Comportamento egocentrado e orientado à competição no lado ocidental, e comporta- mento centrado na comunidade e baseado na solidariedade no lado oriental. Além do mais, como pode ser visto pela Figura 1, “Ocidente” e “Oriente” têm diferentes perfs sociolinguísticos e históricos; os diferentes aspec- tos do impacto no “modelo da solidariedade e do prestígio” no uso cotidiano da língua estão elabo- rado em detalhes nesta fgura. A questão está, então, no pano de fundo da Figura 1: Que estratégias comunicativas são usadas para aproximar das normas ocidentais? Como as transições são manifestadas em mudan- 1 36 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos • c u l t u r a o r i e n t a d a p a r a o l a z e r • a m p l o e s p e c t r o d e v a r i e d a d e s • r e g i s t r o f o r m a l / i n f o r m a l c o n t í n u o • b i l i n g u i s m o s o c i a l • g r a n d e s d i f e r e n ç a s e n t r e v a r i e d a d e s d i a l e t a i s e c o l o q u i a i s • m e n o s u s o d a v a r i e d a d e p a d r ã o • m e r c a d o s l i n g u í s t i c o s ( l í n g u a c o m o f o r m a d e s e l e ç ã o ) • c o m p e t i ç ã o s o c i a l n a c o m u n i c a ç ã o v a r i e d a d e s C O C O [ C O m m e r c i a l & C O n s u m e - o r i e n t e d v a r i e t i e s ] ( v a r i e d a d e s o r i e n t a d a s p a r a o C O m é r c i o e o C O n s u m o ) S o c i e d a d e a l v o ( G E R ) • r e d e s d e r e l a ç ã o m a i s s o l t a s • m e n o r e s t r a t i f c a ç ã o s o c i a l / m o b i l i d a d e • m u i t o s c o n t a t o s c o m s o c i e d a d e s m u l t i c u l t u r a i s ( i n g l ê s c o m o s e g u n d o l í n g u a ) • g r a n d e d i f e r e n ç a s e m s t a t u s • d e m o c r a c i a p l u r a l í s t i c a c o m o r i e n t a ç ã o d e m e r c a d o • é t i c a e g o c e n t r a d a e e s c u l p i d a p e l o m e r c a d o • r e l a ç ã o c o m p l e x a e n t r e d o m í n i o s / i n s t i t u i ç ã o p ú b l i c o e p r o v a d o s ! m u d a n ç a + a d a p t a ç ã o - v a r i e d a d e / r e g i s t r o d e t r a n s i ç ã o M u d a n ç a d e v a r i e d a d e m u d a n ç a d e r e g i s t r o e s t r a t é g i c a s c o m u n i c a t i v a s p e r d a < - > a q u i s i ç ã o p r á t i c a s c o m u n i c a t i v a s I n s e g u r a n ç a c o g n i t i v a d e s a u t o m a ç ã o d e v e l h a s n o r m a s e p r á t i c a s c o m u n i c a t i v a s . i n s t a b i l i d a d e / r e l a x a m e n t o c o g n i t i v o / e m p r é s t i m o d e " o u t r a s v o z e s " + a d a p t a ç ã o - ! t i p o d e c o m u n i d a d e l i n g ü í s t i c a : m o d e l o d o p r e s t í g i o • r e g i s t r o i n f o r m a l p r i v a d o • r e g i s t r o p ú b l i c o r i t u a l i z a d o • b i l i n g u i s m o i n d i v i d u a l • d i a l e t o s , d i a l e t o u r b a n o d e B e r l i m ( v a r i e d a d e d e p r e s t í g i o ) • m a i s u s o d a l í n g u a p a d r ã o c o m o l í n g u a c o l o q u i a l • l í n g u a d e p r e f e r ê n c i a ( n ã o c o m e r c i a l ) m o d o d e i n t e r c â m b i o c u l t u r a l • h a r m o n i a s o c i a l n a c o m u n i c a ç ã o v a r i e d a d e S O M O [ S O c i a l i s t i c M O r a l i t i e s , n o n - c o m m e r c i a l c u l t u r e ] ( M O r a i s S O c i a l i s t a s , c u l t u r a n ã o c o m m e r c i a l ) c o m u n i d a d e d e o r i g e m ( G D R ) • r e d e s d e r e l a ç õ e s f e c h a d a s e s i m é t r i c a s • e s t r a t i f c a ç ã o s o c i a l / m o b i l i d a d e • p o u c o c o n t a t o c o m c o m u n i d a d e s m u l t i c u l t u r a i s • e c o n o m i a c e n t r a l i z a d a e m o n o p o l í s t i c a • f o r t e i n t e g r a ç ã o d e n t r o e i d e n t i f c a ç ã o c o m p r o c e s s o s d e t r a b a l h o • u n i f o r m i d a d e , p o u c a s d i f e r e n ç a s d e s t a t u s • g o v e r n a d a c o m a u t o r i d a d e • f o r t e c a r á t e r d e o b r i g a ç ã o n a é t i c a s o c i a l i s t a • f o r t e d i v i s ã o e m d o m í n i o s p ú b l i c o s e p r i v a d o s ! t i p o d e c o m u n i d a d e l i n g ü í s t i c a : m o d e l o d a s o l i d a r i e d a d e F i g u r a 1 : v a r i e d a d e s S O M O & K O – C o m u n i d a d e d e f a l a d e B e r l i m 1 37 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos Tabela 1. Origem social dos informantes do Corpus “Wende” de Berlim. Dados Informantes 1 número 2 data 3 nome 4 origem 5 origem 6 sexo 7 idade 8 profssão 9 duração/ páginas B01OF 21.12.92 gina O®W Henningsdfr f 21 costureira, assistente de cirurgião dentista 1,5 Std. (?) B02OF 10.8.93 Dirk O Friedr.hain m 33 músico 1,5 Std (?) B03OF 1.10.93 Heidi O Prenzlberg f 31 tradutora, vendedora 1,5 Std B04OF 28.4.93 Micha O Li.berg m 33 motorista de caminhão 1,5Std B07O 13.11.93 Yvonne O®W f 53 professora 25 min B08O 1.11.93 Bert O®W m 40 enfermeiro 22 min B09O 11.93 Leonardo O m 43 iluminador 31 min B10O 11.93 Angi O f 29 professora 3 S B11w10 11.11.93 Astrid O f 36 governanta 35,30 min B11w2O 11.11.93 Daniela O f 38 professora 35,30 min B12O 11.93 Crista O f 23 estudante 23 min B13w1o 11.93 Kicky O f 48 diretora de jardim de infância 42,30 min B13m2o 11.93 Stefan O ? m 50 torneiro-mecânico B14O 23.11.93 gitta O®W ? f 28 secretária 34 min B15O 17.11.93 Dolly O ? f 27 assistente médica 31,30 min B16O 10.11.93 Kira O Hellersdorf f 36 pediatra 63 min B17O 2.12.93 Karin O ? f 29 proessora 45 min B18O 18.11.93 Ines O ? f 59 assistente sociopsicológico 6 S B19O 11.93 Detlef O ? m 26 eletricista, estudante 39 min B20O 11.93 Paula O ? f 40 professora 42,17 min B21O 11.93 Maria O ? f 41 professora 55,34 B22O 11.93 Lena O ? f 35 secretária 26,07 B23O 11.93 Jochen O ? m trabalhador 3 S B24O 11.93 Lore O ? f 50 ? 35,13 B25O 11.93 Ruth O ? f 36 professora 35,18 B26O 11.93 Jenny O ? f 22 ? 11,35 B27O 11.93 Vera O ? f ? ? 30,03 B28O 11.93 Rainer O®W ? m 39 trabalhador 7,10 B29O 11.93 Willy O ? m ? ? 29,06 B30O 11.93 Dithmar O ? m 33 mecânico 10,52 B31O 11.93 Konrad O ? m 28 ? 6,25 B32O 28.11.94 Lutz O Lichtenberg m 38 economista, auxiliar de idosos B33O 11.93 ? O - - - - B100ON 18.3.96 Alla O Hellersdorf f 54 professora 9 S B101ON 27.11.95 Stassek O Hellersdorf m 44 professora, auxiliar de idosos 16 S B102ON 20.11.95 Wolf O Mitte m 47 engenheiro, líder sindical 24 S B103ON 27.11.95 Robert O Hellersdorf m 38 linguista 40 min B104ON 11.93 Peter O ? m 34 diretor de escola 22,30 min B105ON 5.11.93 Christiane O ? f 34 cozinheira, auxiliar de idosos 9 S B50WF 2.5.+ 29.11.93 Susi W Schöneberg f 34 assistente de cirurgião dentista, árbitra 1 Std B51m1WF 26.12.93 Axel W Steglitz m 28 decorador de interiores 1 Std B51m2WF 26.12.93 Niko W Lichterfelde m 30 promotor júnior 1 Std B52WF 24.5./ 18.11.93 Ina W Zehlendorf f 25 funcionária pública 1 Std B53WF 14.12.92 Connie W Zehlendorf f 45 cirurgiã dentista 45 min B54W 15.11.94 Alina W ? f 51 auxiliar de idosos 5 S B55W 21.11.94 Manfred W ? m 46 auxiliar de idosos ? B56W 21.11.94 Manuela W®O f 29 enfermeira infantil, estudante 6 S B57W 12.94 Steff W f 27 estudante 9 S 1 38 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos B59W 12.94 Markus W Lichtenrade m 27 estudante 7 S B60W 18.1.95 Alfred W Lichtenrade m 57 estofador, jovem aposentado 9 S B61W 18.1.95 Beate W Lichtenrade f 19 aprendiz de farmacêutica 3 S B62W 19.1.95 ernst W m 35 preceptor 3 S B63W 19.1.95 Dieter W m 39 preceptor 3 S B64W 19.1.95 Concha W f 48 assistente de direção escolar 2 S B65W 19.1.95 Pia W f 46 psicóloga, educadora social 8 min B66W 19.1.95 gudrun W Lichtenrade f 55 governanta 8,30 min B67w1W 9.11.95 Christine W Lichtenrade f 49 professora de ensino fundamental B67m1W 9.11.95 Jens W Neukölln m 52 highschool teacher B68W 11.11.95 Ilona W Lichtenrade f 44 enfermeira de enfermaria escolar 18 S. B70W 12.95 torsten W Neuk., Lirade m 44 professor 18,48 B71W 23.1.96 Rolf W Neuk., Lirade m 44 professor 20 min B72W 26.1.96 Norbert W Neuk., Lirade m 44 diretor escolar 35 min B73W 21.11.93 Frieda W f 41 caixa de banco, dona-de-casa 4 S B74W 11.93 thomas W m 63 eletricista, pensionista 6 S B75W 12.3.96 Piet W Kreuzbg,Neuk m 37 professor 12 S B76W 19.3.96 Anton W Zehlendorf m 42 diretor escolar 30min B77w1W 19.3.96 Berta W Frohnau f 25 estudante (HU) B77w2W 19.3.96 Caroline W Prenzlberg f 25 estudante (HU) B78W 19.3.96 Dieter W ? m 40 professor 25min B111WN 12.94 egon W ? m 34 enfermeiro, estudante 12 S B112WN 20.3.96 Speedy W Mariendorf m 45 professor 18 S. B113WN 18.3.96 Sara W Neukölln f 43 professora 10 S B114WN 13.3.96 Cris W grunewald f 45 professora 16 S. B150w1UF 5.5.93 Neuenhag. U Neuenhagen f 25 enfermeira de enfermaria escolar 15 S B150w2UF 5.5.93 Neuenhag. U Neuenhagen f 55 enfermeira de enfermaria escolar 15 S B151w1wU 7.92 Basel U Neuenhagen f 35 atendente de loja B151w2wU f 55 atendente de loja 3. a hipótese do registro Que efeito sociolinguístico teve a MSR de 1989 na comunidade de fala de Berlim Oriental? A mudança linguística afeta principalmente a comunidade comunicativa de Berlim Oriental (CCBO). O sítio sociolinguístico da adaptação lin- guística às normas comunicativas ocidentais é o uso de registro 3 . A mudança é direcionada pela neces- sidade do uso de uma maior e mais diferenciada gama de registro (de acordo com as normas ociden- tais: vocabulário mais amplo, maior diferenciação 3 A noção de “registro” está especifcada em Dittmar (1997, pp. 207-216), que toma a defnição de registro de Biber & Finegan (1994). ela considera: performance específca de gênero, ade- quação lexical/congruência lexical dentro do enquadre comu- nicativo, adequação da prosódia do discurso, etc. social no estilo, mais expressabilidade subjetiva e emocional, mais modulação e variação prosódica na voz). Na antiga Alemanha Oriental havia uma divisão da “comunicação de trabalho” entre registro FORMAL e INFORMAL, sem variantes interme- diárias como em um estilo continuum; entre este dois registros não havia qualquer transição suave. A Figura 2 ilustra a extensão e diferenciação de registro orientada por princípios políticos, econô- micos e interculturais de aquisição de uma segunda língua, através de “fases transicionais”. Na primeira fase, espera-se que as pessoas da antiga Alemanha Oriental tragam consigo para a nova e compartilhada sociedade ocidental: • umatendênciamaisforteparafalardialetos(ver exemplo (9) gINA no parágrafo 6.2), mais uni- formidade e mais conformidade no discurso diá- 1 39 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos em vista que “os seres humanos constantemente interpretam a si mesmos e aos outros especial- mente um outro desconhecido de repente assume importância em interações, ou se suas próprias compreensões são desafadas (gLAeSeR 2000, p. 9). O processo dinâmico de identifcação em interações consiste em “categorizações sociais”, uma noção cunhada por Harvey Sacks e recons- truída teoricamente por Hausendorf (2000). Partimos do pressuposto que havia uma identi- dade mais ou menos estável de Berlinenses Orien- tais e Berlinenses Ocidentais antes de 1989 (o que pode não ser verdade). Ambos os lados tiveram que questionar suas identidades depois da MSR, durante a década de 1990 e depois. Os processos de divergências das antigas normas e convergência em direção às novas normas afetaram principal- mente os Berlinenses Orientais – esse fato surgiu de uma análise cuidadosa de um grande corpus de gêneros discursivos e interações verbais. Con- trariamente ao esperado, Alemães Ocidentais e Orientais verbalizaram e sentiram que eles eram estranhos uns aos outros e tiveram que passar por múltiplos processos de categorização social a fm de se conhecerem melhor mutuamente. tal como foi mostrado em Dittmar & Bredel (1999), o resultado geral da maioria dessas categorizações sociais é o fato dos berlinenses orientais manifes- tarem (em discurso e em interações) uma identi- dade danifcada enquanto que os ocidentais pra- ticavam um tipo de identidade hegemônica (cf. AUeR & HAUSeNDORF 2000). Como pode haver um equilíbrio entre esses dois comporta- mentos tão diferentes na vida cotidiana? tajfel & giles hipotetizam que tais grupos que experimen- tam identidades danifcadas se comparam com o comportamento dos “outros” (no caso, os ociden- tais). O resultado dessas comparações individuais e sociais pode ser a assimilação, por um lado, e “distinção social” por outro. em longo prazo, uma considerável porcentagem de berlinenses orientais irá se converter às normas ocidentais – sem deixar quaisquer traços orientais. O caso de divergência passa por alternativas cognitivas que se manifesta- riam em distinção sociopsicológica. Neste estudo, entretanto, estamos preocupados com as fases transicionais de categorização social e identifcações manifestadas em indicadores em des- taque na fala e na interação. rio: menor amplitude de registros com menor diferenciação estilística (como, por exemplo, com respeito à “imagem sociolinguística” e egoapre- sentação) em comparação com uma ampla gama de registro e um continuum diferenciado de esti- los de contextos na comunidade ocidental; • jargõestécnicosediários,modeloscomunicati- vos e chunks (expressões comunicativas prontas e estereotipadas); • um comportamento menos “ego-centrado” durante a conversação (por exemplo, um maior uso do pronome “man” – forma genérica do “you”/você em vez do “I”); Figura 2: Mudança social radical e seu impacto na língua e comunicação numa fase transicional “intercultural”. 4. perda de identidade e o processo de reconstrução da identidade Antigas normas Antigas práticas habituais (gDR) Mudança social radical (queda do Muro) Fases Transicionais fase transicional internormativa e inter-habitual instabilidade/insegurança cognitiva e habitual Novas práticas habituais (sociedade alvo: FRg) Uma MSR tal como a descrita até agora implica mudanças na identidade social que, por sua vez, implica processos complexos de identifcação desde a perda de valores e normas até a captura de novos valores e normas. Reconsiderando a hipótese do registro, anteriormente descrita, a Figura 2 pos- tula um processo cognitivo no qual antigas normas habituais mudam para outras mais novas. A desautomação de velhas normas e a aquisição de novas normas implica passar por fases transicio- nais. em relação à antiga identidade, este processo pode ser descrito melhor pelo conceito dinâmico de “identifcações”. Assim, mudando “o foco do processo de formação identitária” (gLAeSeR 2000, p. 9), leva à descrição sociolinguística do signifcado no discurso e interação. Concordamos com a defnição de glaeser: “Identidade é o signi- fcado do ser para si mesmo e para o outro” tendo Desauto- matização de antigas normas e práticas habituais (entauto- matisierung) Instabilidade Relaxamento cognitivo empréstimo de outras vozes (polifonia) Novas reorien- tações cogni- tivas 1 40 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos ilha; nós precisamos uns dos outros mais do que nunca nesses tempos) • Com frequência, eles consideram entrevistas como atos ofciais; “bater papo custa vidas”; heute ist der 17. November 1989 ein trüber + verregneter Tag + eingeladen in mein wohnzim- mer habe ich eine junge frau + kerzenschein und ein glas sekt sollen uns helfen diesem grauen buss- und bettag etwas freundlichkeit zu verleihen (...) jung quirlig quicklebendig sitzen sie mir gegenü- ber + ihr name spielt keine rolle + ?darf ich sie für heute dolly nennen? (hoje é 17 de novembro de 1989, um dia feio e chuvoso; eu convidei uma moça para vir a minha casa; luz de velas e um copo de cham- pagne podem ajudar a dar a este dia cinza de mudanças um toque de amizade (...) jovem, cheia de vida, de olhar vivo, você está sentada em frente a mim; seu nome não importa; posso lhe chamar de Dolly hoje?) Schegloff e outros mostraram que os segundos “não preferidos” após a demanda inicial são mais complexos que os “preferidos”. No caso em questão, as “primeiras” perguntas são marcadas por formas complexas. Através de uma apresentação pesada e séria, estas primeiras perguntas impõem certa carga no interlocutor, impelindo-o a corresponder a essas necessidades complexas e a reagir apropriada- mente. tais aberturas longas projetam a preferência do entrevistador pelas narrativas ricas em detalhes (eventos autênticos, argumentos morais, etc.). em termos de pragmática contrastiva: tais aberturas longas e pesadas são não preferidas pelos interlo- cutores ocidentais porque elas projetam a expecta- tiva de narrativas exaustivas – cuja própria ideia já é desagradável! A razão é simples: a chave da socie- dade ocidental é a “cultura do lazer”. 5.2. Padrões e instrumentos de tratamento e pro- cessamento de MSR em narrativas de experiência pessoal Contar e recontar os eventos da queda do muro mostra claramente que lidar com eventos de mudança específca não contempla a assunção 5. nível macro: modelos pragmáticos em narrativas de experiências pessoais com a “queda do muro” 5.1. Os primeiros cinco minutos Comparado à simples e rotineira abertura con- versacional dos berlinenses ocidentais, a abertura conversacional dos berlinenses orientais é marcada por normas socialistas coletivas (as fontes de ações são externas ao indivíduo) e por fórmulas estereoti- padas (não individuais). O modelo ocidental mais frequente e não marcado é ligeiramente, mas não substancialmente, variado em diferentes signifca- dos lexicais, como por exemplo, a versão-padrão: – ?wie hast du den neunten elften + neununachtzig erlebt? (ALINA, B 54 W, Altenpfegerin,57) – (Como você viveu o 9 de novembro de 1989?) A abertura conversacional ocidental é pragmá- tica e prática, direta, de acordo com a máxima gri- ceana: formule sua pergunta o mais breve possí- vel e não mais longa que o necessário; a pergunta não tem que ser moralmente legitimada. Bem diferente e marcado – da perspectiva do estilo ocidental – é o comportamento dos falantes orientais: • Eleslegitimamopropósitodaentrevistanarra- tiva explicitamente; unsre studiengruppe + hat sich die aufgabe ges- tellt + erlebnisse + erinnerungn an diesen tag zu sammeln + äh dies material wollen wir dann + für den einsatz im unterricht zusammenstellen (LORe B 24 0, 50) (Nosso grupo de estudo decidiu coletar experi- ências e memórias desse dia; nós pretendemos organizar esse material para aulas) • Elesmotivamaentrevistaatravésdeprolonga- das manifestações de interesse pessoal e apelos de solidariedade; wunderschön wäre es wenn wir beide uns durch unser gespräch näherkommen + keiner ist eine insel + wir brauchen uns in dieser zeite mehr denn je (DOLLY B 15 0, Arzthelferin, 27) (seria ótimo se nós dois pudéssemos nos apro- ximar depois dessa conversa; ninguém é uma 1 41 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos zar a fronteira – a antiga área do Muro – e visitar o lado ocidental da cidade após a queda do Muro (Dittmar & Bredel 1999:91-95) 5 . (1) O caso do processamento retrospectivo do “fracasso” em cruzar a antiga fronteira (“Muro”) entre os lados oriental e ocidental: INA, B 13 0, professora do ensino fundamen- tal, 48 6 1. un da ham wir uns in unsern schönen wart- burg gesetzt (e então nós nos sentamos em nosso lindo Wartburg) 2. und sind die berliner allee + (e então estávamos dirigindo pela Avenida Berlim) 3. damals hiess sie ja noch klement-gottwald- allee (que naquela época ainda tinha o nome de kle- ment-gottwald-allee) 4. runter bis zur ostseer straße (em direção à rua ostseer) 5. und als günther in die ostseer straße einbiegen wollte (foi quando Günther quis entrar na rua ostseer) 6. da hab ick ´n richtigen heulkrampf gekriegt + (eu dei um grito) 7. da hab ick gesagt (e disse a ele) 8. nee da fahr ich nich hin (não, não quero ir lá) 9. + da ham se mich nich als meine oma gestor- ben ist rübergelassen (neste lugar, eles não me deixaram passer quando minha avó morreu) 10. dann will ich da jetzt och nich hin (então não quero ir lá agora) 11. jetzt hab ick da nüscht verloren (eu não tenha nada a fazer aqui) 12. da hab ick geheult (então eu chorei) 13. ich wollte einfach nich nachm westen fahrn (eu não queria passar para o lado ocidental) de uma homogeneidade estrutural e funcional do gênero “narrativa” 4 . Um resultado importante desse estudo é que a então chamada “forma normal” (forma canônica) das narrativas se dissolve nas narrativas de MSR. tais narrativas de MSR se desviam da forma nor- mal das narrativas nos seguintes aspectos: • Sua função não é somente contra uma his- tória interessante, mas também “pensar alto” (Slobin), ela tem a função de processar senti- mentos pessoais sobre os eventos da MSR. • Há um frequente ir e vir entre o passado e o presente; portanto, não há um enredo prin- cipal. Ao contrário, a estrutura nuclear desse tipo de narrativa é dissolvida; há diferentes eventos e padrões que coexistem e são expres- sos por diferentes formas da polifonia. Pode- mos distinguir construções intrapolifônicas (por exemplo, integração de diversas autovo- zes no discurso), construções interpolifônicas (por exemplo, integração de vozes de “outros”) e construções híbridas (por exemplo, fusão de suas próprias vozes e vozes de outras pessoas). • Desestabilizaçãocognitivaeseurefexonasfor- mas e funções das narrativas (relaxamento ver- bal) são típicos para comunicação em situações MSR. A posição estrutural dos padrões/funções das narrativas não é mais válida somente para o enten- dimento mútuo dos interlocutores, mas serve também para orientação elementar para processar o conhecimento do falante. Antes de classifcar as narrativas de experiências de MSR em três tipos, apresentamos e comentamos uma narrativa típica constante do nosso corpus. Nos exemplos que se seguem, Ina e Maria con- tam, cada uma, narrativas longas e muito pessoais sobre seus fracassos e resistências internas de cru- 4 Parece mais adequado substituir o postulado da homogenei- dade pela suposição de diferentes tipos de narrativas (Bredel 1999). esta conclusão já pode ser encontrada em gülich (1980) e Rehbein (1980; 1984). gülich baseia a distinção que faz entre narrativas “funcionais” e “não funcionais” no critério dos esquemas de ações “encaixados” (1980, p. 374). Rehbein distingue, por outras razões, ‘Siegesgeschichten’ de ‘Leidensges- chichten’ levando em consideração a autoapresentação do ator e mais tarde narrador da história. 5 “Wessi” e “Ossi” são nomes estereotipados para Alemães Oci- dentais e Orientais, respectivamente. 6 O sistema de transcrição está explicado em Dittmar & Bredel (1999). Nesta contribuição, usamos símbolos muito simples: + é uma pausa, ^ alteamento da prosódia, todas as palavras são escritas com letras minúsculas; exemplos (4) e (5) estão trans- critos de acordo com os princípios da análise da conversação (Jefferson, Schegloff, Sacks et alii). 1 42 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos 12. dachte nur an + (eu só pensava sobre) 13. wenn die jetzt mich als ossi sehen (quando eles me vissem como um/uma ossi então) 14. drehn die mir den hals rum^ (eles iriam me estrangular) 15. und hatte sorgenˆ + eh (e eu tinha medo) 16. dass man mich als ostler sofort drueben erkennt^ + (de que eles iriam notar que eu era uma oriental logo de cara) 17. weil ja och immer jesacht wird (porque nós sempre dizemos que) 18. der ossi is zu erkennen^ (percebe-se um ‘ossi’) 19. wat ick nachher als gegenteil beweisen werde^ (e não há nada que prove o contrário) 20. eh da hab ick jedacht nee da gehste nich rüber + (então eu pensei: não, eu não vou lá) 21. ick sage es tut mir leid ick kann nich + (eu disse: sinto muito, não posso fazer isso) 22. ick sage du kannst jetzt sagen los (eu disse: você pode dizer vamos lá) 23. und + ick sage ick schaffe et noch nich (mas eu digo que eu não posso fazer isso ainda) 24. dit is einfach nich drin (simplemente não é possível) 25. und zu meiner freude hat er t eigntlich einje- sehn (e pra minha alegria ele entendeu e aceitou) 26. und hat jesagt er kann dit vastehn + (ele disse que podia entender) 27. denn er war ja nun vor eem jahr drüben jewesen (porque ele tinha estado lá um ano atrás) 28. und weeßte wie det ihm danach ging^ (e você sabe como ele se sentiu depois) 29. er war total durchnander (ele fcou completamente confuso) 30. und konnte die alebnisse jar nich so jut vaar- beiten (e não conseguiu processar tudo) 31. er hat bald n halbet jahr jebraucht (ele levou cerca de meio ano) 32. um die eindrücke da wegzustecken ja^ (pra superar esses sentimentos) 14. ick hatte + regel + (eu tinha minhas regras) 15. also det war für mich (e já tinha vivido isso) 16. ick weeß nich + (eu não sei) 17. als ob da eener `n brett vorgehalten hat + (se eu não estava conseguindo pensar direito aquele dia) 18. und ich wollte nich + (e por isso eu não queria ir) 19. ick hab jeheult (eu chorei) 20. na und denn hat er gewendet + (então ele voltou) 21. is mit mir die ganze berliner allee wieder zurück + (retornou comigo pela Avenida Berlim) 22. und hat mich zu hause abgesetzt ..... (e me trouxe pra casa) (2) O caso do medo prospectivo MARIA, B 210, professora de ensino funda- mental, 41 1. mein mann wollte so jerne mit mir dann rüberjehn + (meu marido queria mesmo cruzar o muro comigo) 2. als die grenz nun jefallen warˆ (quando o muro caiu) 3. sagt der Mensch komm wir gucken mal (ele disse: vamos dar uma olhada lá) 4. und er konnt mich nicht bewegen (mas ele não conseguia mudar minha cabeça) 5. weil + ick hatte so ne panischen ängste in mir^ (porque eu tinha um medo terrível dentro de mim) 6. ick dachte wenn ick jetzt da rüberje^ + (eu pensava que se eu fosse lá agora) 7. erst ma dacht ick+ (meu primeiro pensamento) 8. grundsätzlich muss ick dit wort so formulieren (como eu posso dizer) 9. ick dachte nur an pennervolk (eu só pensava nos vagabundos) 10. ick dachte jar nich an die jehobene klasse (eu não pensava de forma alguma na classe supe- rior) 11. ick dachte nur an überfälle^ (eu só pensava nos assaltos) 1 43 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos 53. ich hab bald noch n + ach + bald über n jahr jebraucht (eu levei quase um ano) 54. um aleene mit n öffentlichen verkehrsmitteln rüberzufahrn + (pra ir lá de transporte público sozinha) essas são duas narrativas que exploram as experiências pós-Muro. Nenhuma das duas tem sucesso em se abrir para o mundo ocidental, para a nova realidade. A razão desse fracasso é o medo do desconhecido: no caso de Ina, um processamento retrospectivo devido a experiências anteriores; no caso de Maria, uma ansiedade prospectiva devido a expectativas negativas. A tentativa de Maria de cruzar a agora “libe- rada” fronteira é malograda devido ao seu imagi- nário ideológico do mundo oriental internalizado e às suas expectativas negativas (vagabundos, ata- ques, assaltantes). ela permanece presa a represen- tações ideológicas coletivas com as quais ela apren- deu a viver e das quais ela não consegue se despir (valores de socialização da gDR). A maneira de Maria lidar com seus medos é descritiva (suas formulações refetem uma distância psicológica), enquanto Ina a percebe através de representação cênica: da habe ich geweint (então, eu chorei). encenação e descrição são procedimentos comunicativos diferentes para processar experiên- cias. É interessante notar o tratamento narrativo e o processamento do “impacto/choque” dos acon- tecimentos pelas três repetições em cada uma das narrativas: Maria verbaliza seu bloqueio interno em três sequências: 5, 21-28 e 39; Ina aparece chorando três vezes (6, 12 e 19). Rehbein (1980, p. 104) explica esse tipo de processamento do cho- que da seguinte maneira: A barreira psicológica não pode ser dissolvida por um “metadiscurso” ou por comentários metalinguísticos (uma possível transformação na descrição); ela tem que ser pro- cessada por repetições de padrão relevante – existe um tipo de repetição que o falante deve ativar; o choque impede seu próprio processamento. enquanto Ina dissolve seus medos com o choro (a princípio um choro descontrolado, pas- sando depois a um choro autorizado e justifcado), não se vê mudança de estado no processamento de Maria. Ina processa seu medo pela imaginação; 33. die er dort alebt hat (que ele vivenciou lá) 34. und deswegen hat er s eigentlich verstandn (e por isso ele entendeu de verdade) 35. wenn ick sage ich bin noch n ich so weit (quando eu disse que eu ainda não estava pronta) 36. und dann sind wir rüberjelaufen (e então nós andamos até lá) 37. und dann mussten wir noch durch so n’ tun- nel jehn (e passamos pelo túnel) 38. und als wir den tunnel überwunden hatten^ (e quando nós saímos do túnel) 39. war ebend dort der westen + (havia mesmo o ocidente lá) 40. und meine erste reaktion war + (e minha primeira reação foi) 41. na dit is ja n scheisshinterhof + (é a mesma droga terreno) 42. den haste im osten och (que nós tínhamos no oriente também) 43. und damit war meine angst weg + (e meu medo se foi) 44. ich habe dort die alten häuser jesehen (eu vi velhas casas lá) 45. die ick als hinterhof k/kulisse kenn^+ (do tipo que eu já conhecia) 46. und dachte mensch + dit sieht nja jenauso aus wie bei mir zu hause + (e pensei: caramba isso parece exatamente com o que temos em casa) 47. und damit wurd ick mutich (e isso me encourajou) 48. und als er dann noch mit mir in den eenen türken stürzte (e quando ele então entrou comigo na loja dos turcos) 49. und dort weintrauben kaufte (e compramos uvas lá) 50. die wir unterwegs erst mal zu uns nahmen (que comemos no caminho) 51. ^ja^ da war also meine hemmschwelle erstmal weg + (meu medo já tinha acabado) 52. wobei ick sagen muss (apesar de que eu tenho que dizer) 1 44 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos tivas: Maria bloqueia a apropriação de um novo mundo, enquanto Ina é capaz de revisar experiên- cias anteriores e aceitar novos caminhos e formas de expressão individual, de ação e de estilo de vida. A estrutura linguística formal refete as fun- ções exploradas nas narrativas de Maria e Ina. Há sequências descontínuas (repetições, idas e vindas, interrupções, representações reduzidas dos eventos) e avaliação contrastiva. Conectivos argumentativos ilustram o processamento interno e também explicam procedimentos intra e inter- polifônicos. O evento narrativo é um importante exemplo de relato biográfco. Narrativas de análise são somente um tipo de narrativa no nosso corpus. De maneira geral, nar- rativas de MSR ocorrem dentro de três padrões (BReDeL, 1999) 7 . ao reviver antigos eventos permite a ela um pro- cessamento emocional das experiências. De forma contrária, o medo de Maria, categorizado num modo de conhecimento emocionalmente fxo ou fossilizado, não pode mais ser processado. Outro aspecto importante, compartilhado por ambas as narradoras, é o processamento intrassubje- tivo dos eventos narrados. Não há interesse particu- lar em objetos externos ou representações do mundo exterior. As narrativas são guiadas por imagens inter- nas, subjetivas. Maria não processa o presente, mas o passado que ela projeta no presente (13-15). Muitos outros exemplos de narrativas como a de Maria e de Ina refetem maneiras de lidar com o antigo e internalizado mundo (socialização da gDR); as formulações e seus imaginários explicam as diferentes formas de identifcação e suas perspec- 7 A tabela é baseada em Bredel (1999), que objetiva a uma nova classifcação de narrativas e suas manifestações básicas como gêneros. ela mostra que é difícil caracterizar o que se quer cha- mar de “forma normal subjacente” ou “formas canônicas” de narrativas. Tabela 2: Narrações de MSR: tipos de narrativas. Narração de análise Narração de exemplifcação Narração de fragmentação Característica funcional principal Processamento de experiências particulares antes e depois da MSR; conhecimento parti- cular de consequências específcas da MSR. Representação de experiências particulares antes e depois da MSR (o conhecimento do co- tidiano real tem a função de evi- denciar). Neutralização de experiências particulares antes e depois da MSR. estrutura da narrativa: sequência e organização do conhecimento no discurso . Estrutura proposicional do núcleo narra- tivo: sequenciamento descontínuo (repeti- ções, interrupções, esqueleto da narração) . Avaliações: contrastiva, conversão narrativa . Conectividade: e, mas, porque, ainda que, embora (argumentativa) . Representação do protagonista: prota- gonista singular ou genérico (eu, você, um homem, uma pessoa); muitas trocas de pro- nomes . Sequência cronológica tem- poral; construção coerente do mapa mental . Avaliações estereotípicas coe- rentes dos eventos . Conectivos temporais e ilustra- tivos: e, e...então . Protagonista singular (“Eu”) . Representação fragmentada das experiências . Nenhuma avaliação declarada/ aberta: reprimida ou muito genérica, “voz emprestada” . Conectividade muito solta . Protagonista genérico e neutra- lizado Meios de repre- sentação cênica . estabelecimento de espaço imaginário: prin- cipalmente referências a ações . empréstimo de outras vozes: procedimentos inter e intra-polifônicos, construções híbridas . Relação entre narração e experiência pessoal: contraste, estabelecendo oposições . Recriação de atuações passadas (citação, fórmulas expressivas) . Procedimentos interpolifônicos . Relação entre narração e expe- riência pessoal: coerente . Nenhum espaço de imaginação é estabelecido . empréstimo de outras vozes: procedimentos inter e intrapoli- fônicos, construções híbridas . Relação entre narração e experiên- cia pessoal: neutralizada Papel do ouvinte tendência à marginalização do ouvinte; Falante orientado no sentido de compreender a si mesmo. espaço de imaginação comparti- lhado; Ratifcação das avaliações pelo ouvinte. Conarrador; Ouvinte genérico. 1 45 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos ses orientais categorizam os berlinenses ocidentais usando metáforas. (3) Maria B 21o (Z. 891ff. BK): 1. (-) dEswegen bin ick der MEInung dass man nich sagen kann Ossi und wEssi.= (e por causa disso eu acho que não se pode dizer “ossi” ou “wessi”) 2. und? (-) den wEssi erkennt man an seiner KALTschnäuzigkeit.(--) (mas pode-se reconhecer o “wessi” pelo seu sangue frio) 3. dIt muss ick OOCH sagn.(--) (isso eu também tenho que dizer) 4. der wEssi hat in seiner hGRUNDhaltung eh ne jewisse iABlehnung in der (o “wessi” tem como atitude básica uh ... uma expressão de rejeição 5. ausstrahlung und ne KALTschnäuzigkeit= e um sangue frio) 6. =die wir Ossis noch nich produZIERN könn.(.) (que nós “ossis” ainda não conseguimos ter) 7. weil wir noch zuviel HERZ in uns drInne ham-(.) (porque nós ainda temos muito coração den- tro de nós) 8. und noch viel soZIAlet wat wir empfnden.(--) (e ainda nos sentimos muito voltados para o social) 9. der wEssi der jeht da so als strukTUR durch die gegend?(-) (o ocidental se põe como uma estrutura pelo país) 10. MEIne persönlichkeit geht keen was AN.(-) (minha personalidade não tem relevância para ninguém mais) 11. MEIne persönlichkeit bin !ICH!.(-) (eu sou minha personalidade) 12. und denn nOtfalls noch die faMILie= (e se necessário, incluo só a família) 13. =aber AUßen? ihn (.) hat ihn hnIch zu inte- reiSSIERN wat ick dEnke. (mas for a isso não interessa a mais ninguém o que eu penso) estrutura de oposição Oposição intrapessoal Oposição externa (esquema actante-coactante) Nenhuma oposição Modelos Relato biográfco, ilustrações Nenhum Relato biográfco As palavras-chave que respondem às questões de (a) a (c) são: (a) Como as pessoas lidam com os fatos e as conse- quências de uma MSR em suas narrativas? – elas não somente relatam eventos extraordinários para seus ouvintes, mas suas narrações são caminhos para compreender como pessoas que viveram uma MSR lidam com essas mudanças e se cons- troem identitariamente. As pessoas PROCeS- SAM, RePReSeNtAM e NeUtRALIZAM experiências particulares para fns individuais. (b) Quais funções pragmáticas têm as narrativas de MSR? – Dentre outras, a das funções principais é “SPeAKINg FOR tHINKINg” (Slobin). (c) existem estilos verbais específcos para lidar com e trabalhar as experiências de uma MSR? – Narrando, as pessoas têm diferentes estilos verbais que revelam seus estados mentais de consciência no discurso: (1) Maneiras diferentes de estabelecer coerência por ordem cronológica (relações temporais) e de estabelecer perspectivas sobre eventos pas- sados e projeções futuras, tipos específcos de sentenças avaliativas inseridas no discurso. (2) Formas diferentes de estabelecer referências a pessoas, lugares e eventos. (3) O recurso cênico da polifonia é uma forma de organizar e representar as experiências de MSR. 5.3. Identifcação através do uso de categorização social 8 Boa parte das narrativas, ao identifcar o falante e o “outro”, costuma levar a estereótipos, através de categorizações sociais inseridas nessas narrati- vas. Os seguintes trechos de duas longas narrativas ilustram, de maneira prototípica, como berlinen- 8 No parágrafo seguinte eu me baseio em ROtH, Marita. Metaphors we are convincing by, contribution to the european Conference on Interaction, Summer Workshop, Helsinki, Fin- land, 2002 (parte da dissertação de 2003). Minha análise é, contrastando com a dela, de natureza sociolinguística e mais inspirada pela etnografa que pela análise da conversação. 1 46 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos 6. ihren sogenannten wOHlstand. (--) (suas assim chamadas prosperidade) 7. den se sich immer eINreden wollen. ja? (---) (que elas sempre tentam trazer a tona na con- versa sim) 8. so seh ICH das. (é como eu vejo isso) 9. dis is eIjentlich ooch=n (--) n=jewisses KAR- tenhaus= (que não verdade é um castelo de cartas tam- bém) 10. wat eigentlich ooch sEHr schnell zuSAM- menbrechen kann. (que na verdade pode desmoronar muito rápido também) Se tomamos a teoria de Lakoff & Johnson (1980) como um ponto de partida, MARIA con- sidera os “seres” da Alemanha Ocidental (“Wes- sis”) como “recipientes” de emoções, enquanto para a categorização social de MICHA estes “reci- pientes” são vazios. Maria fala metaforicamente do “sangue-frio” dos alemães ocidentais em con- traste com o “coração que existe dentro do ale- mães orientais”. Mas este “sangue-frio” é só uma “casca” uma “concha” na qual se pode bater. e se você tentar muito você pode até ser capaz de “tirar esta casca” e encontrar alguma coisa boa. De forma similar, Micha usa metáforas para criar estereótipo, avaliando os alemães ocidentais como “reservados”. Quanto ao limite que separa o interior do exterior de um “recipiente”, são usadas metáforas (do campo da construção) “fachada” e “castelo de cartas” que “desmorona”. em comparação com Maria, o falante Micha descreve o contraste entre o interior e o exterior não só com metáforas para o forte e duro limite entre estes dois lados. enquanto que para Maria a rigi- dez do exterior pode ser removida e revelar alguma coisa boa do interior, na fala de Micha não há nada de bom no interior. O “recipiente” está vazio. Dessa forma, o interior é ainda pior que o exterior. Categorizações sociais são manifestações con- versacionais de identifcação do “outro”, distin- guindo-o do falante (por implicatura). elas são o resultado de impressões vividas. essas representa- ções são sinais de identifcações e indicam que a identidade está ainda em processo. 14. und so: GEHN die AUch.(-) (e é assim que eles agem também) 15. die gehn UNpersönlich.(-) (eles agem de forma impessoal) 16. die gehn UNpersönlich und UNnahbar.(-) (eles andam de forma impessoal e não acessível) 17. und Erst wenn man=n bisschen an der schale RUMjeklopft hat, (.) stellt man fest (.) (e somente quando bate-se em sua concha é que você se dá conta 18. dass da hinten sojar (.) hinter sojar=n LEbewe- sen is-(-) que existe um ser vivente por detrás) 19. wat eh reaGIEren kann ANTworten kann und soJA:R (-) ehm (.) (que é capaz de reagir capaz de responder e até capaz de uh... 20. richtig schön emPFINden kann.(.) capaz de realmente sentir) 21. ob HERZlichkeit FRÖHlichkeit oder TRAUri- gkeit. (.) ja, so-(-) (se alegria ou tristeza) 22. aber man muss LEIder erst die schAle entblät- tern. (mas infelizmente tem-se primeiro que “tirar a casca”) 23. und mAnchmal, im im (.) dahInleben nebenei- nander hat man keene ZEIT zu (e às vezes na vida do dia a dia não se tem tempo de 24. entblättern.(-) tirar a casca) (5) Micha B04o, Z. 561ff. 1. Mes is wIrklich sehr viel (-) fasSAde. ja?(--) (há muita fachada sim) 2. es wird VIeL wert uff fasSAde jelegt. (presta-se muita atenção à fachada) 3. von AUßen. (--) (de fora) 4. wenn man HINterguckt hinter die leUte, (---) (se você olha através da pessoa) ((35)) 5. und dass se eIgentlich (.) äh (.) sehr hart ARbeiten müssen für ihre fasSAde (.) für (e as pessoas na verdade uh … dão duro para manter a fachada de 1 47 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos tiva, quanto mais esse eu for associado a outros pronomes no discurso como nós, tu, você (gené- rico), mais distante de seu egocentro o falante estará. • DU(TU): o tu que o falante usa pra se referir a si mesmo tem, em geral, a função de marcar alternância de perspectiva. ele abre espaço para negociação entre o falante e ele/ela próprio(a) (processamento cognitivo); tem uma função refexiva, metacomunicativa. (É claro que tem também algum efeito de “coletividade”, pois o tu acaba por envolver o ouvinte no que o falante está dizendo). • MAN(VOCÊ – genérico: alguém, uma pes- soa): a perspectiva do falante é impessoal, sem referência ao individual. Muito embora os berlinenses orientais sejam agentes de suas próprias histórias, eles as relatam como eventos coletivos. eles e colocam a uma grande distân- cia do egocentro da experiência; eles se retiram de envolvimentos pessoais em experiências dramáticas e muito pessoais, curiosamente. em termos de discurso de MSR, os orientais optam predominantemente pelo uso do você (genérico) ao relatarem suas experiências pró- prias, evitando assim o processamento mental de suas experiências pessoais. (6) ALLA, B 100 ON (Uso de pronomes: narra- ção intrapolifônica) Entrevistador: und die hundert mark? (e a quantia bem-vinda de 100 Marcos?) Alla: ja die hab ich dann auch einmal ge/dann ein- mal geholt; das/ ach so das war auch noch das (sim, eu fui e peguei; ah sim, aquilo foi schlimmste. hab ich gedacht was machst du denn nun läßt du=s verfalln, na ja @kaufen kannste o pior. eu pensei “o que tu estás fazendo? tu ti esqueces? tu não podes comprar nada mesmo”) sowieso nichts@ dann also muß du irgendwo hier in so=ne sparkasse; und das war eh/ wo war (e então tu tens que ir a um banco por perto que era em – sim onde era mesmo) denn/ auch/ doch das war nochmal wedding; ich glaube wedding. + und das war/ eh war auch (o banco? Ah era em Wedding; acho que em Wedding ... e isso era outra) Heteroestereótipos de berlinenses ocidentais e orientais (retratados em um recente estudo de Ruth Reiher) são, pois, uma conclusão concei- tual de muitas e repetidas experiências, eles estão separados de eventos e experiências concretos, eles estão fossilizados em um conceito ou noção. São avaliações negativas de berlinenses ocidentais ou estereótipos negativos (de acordo com Reiher): “reservados”, “mentalidade consumista”, “arro- gante”, “variedade-padrão”, “egoísta”. São estere- ótipos negativos de berlinenses orientais: “não- amigável”, “dependente”, “falante de dialetos”, “inseguro”, “envergonhado”, “xenófobo”. 6. micro-nível: significados verbais em narrativas de msr Como foi mencionado, falar sobre e avaliar os eventos de uma MSR pode ser complementado pelo uso de signifcados verbais específcos. tais recursos são analisados em diferentes publicações de N. Dittmar e U. Bredel [Dittmar & Bredel (1999), Dittmar (1998), Dittmar (2000) and Dittmar (2001)] e aqui serão apresentados numa visão geral. (A) Para relatar verbalmente eventos que eles vivencia- ram pessoalmente, os berlinenses ocidentais usam muito o pronome pessoal EU enquanto os orien- tais usam com mais frequência o VOCÊ (gené- rico). O evidenciável uso do você refete o forte impacto da moral socialista, cuja máxima: Prefra o pensamento coletivo ao individual. Incorpore esta máxima no seu jeito de falar e no seu estilo. A fm de processar dados difíceis e sensíveis de experiências pessoais em narrativas, os berlinenses orientais frequentemente optam pela alternância pronominal: Ich/wir g du g man (eu/nós g tu = você=alguém). em alemão, os pronomes pes- soais têm a função de estabelecer proximidade e distância do egocentro (Figura 3). Os pronomes ajudam a processar as experiências de uma MSR. • ICH (EU) é o centro perspectivista da fala (eu, aqui, e agora). Se tomamos o eu como o centro de origem dêitico e numa egoperspec- 1 48 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos lhado entre aqueles que interagem no discurso. tem como uma função/referência coringa que pode ser preenchida por qualquer signifcado pelo falante ou pelo ouvinte, possibilitando diferentes associações com o mundo social da sociedade perdida. (7) GINA, B 01 OF (Vagueza, Uso de pronomes, Uso de partículas modalizadoras) Gina: dit kam + bei mir so zum anfang + so vor (xx) bei uns da warn wa irgendwie soo so (aconteceu comigo assim no começo / era assim como que o começo, aqui no lado oriental, nós estávamos) isset/ da isset ürgendwie viel lockerer also + da hat man mehr + ok zum beispiel + janz blödet (trabalhando e de repente você podia se divertir, você sabe e no começo, era assim) einjesperrt bloß nüscht sagen und und immer schön kuschen und + immer schön feißig sein und (de algum jeito como, não diga nada, comporte-se bem e trabalhe duro) arbeiten und + dann kannst dir wat holen und so ne^ (xx) + und zum anfang wa dit ooch hier + dis (então assim mais relaxado... um exemplo bobo:) beispiel hat man da n blatt papier liejen na und dann liecht dit da + is ooch ejal + bei uns + glei weg (tem um pedaço de papel na sua mesa e por lá ele fca, não importa no lado oriental se ele de repente) damit ja^ also + dit is n janz blödet beispiel jetzt aber so so so irgendwie so + aba ürgen- dwie mit (desaparece... é um exemplo bobo, mas de alguma maneira eu não... ) der zeit (pff ) + weeß nich + is dit allet schon so selbstverständlich daß man + dis ürgendwie so (é do senso comum, isto é você não se preocupa com isso e é assim...) 9 hinnimmt na dann isset halt so + also wird man auch automatisch n bißchen + %freier denn ne^ + in seinen jedanken und + jefühlen ne^ äh +1,5+ klar ürgendwie + zum beispiel nochmal so=n sch/ so=ne schlímme situation. da StAND ein schlánge vor der/ vor der spa- rkasse (situação ruim. Havia uma longa fla no banco) die hatte noch nich geöffnet, nachmittags glaub ich; und eh mir @ging das herz wie ver- rückt also@ (ele ainda não estava aberto na parte da tarde, eu acho; e meu coração estava batendo feito louco) eh die polizei hatte da eh geórdnet weil soviele leute warn, und dann drinnen/ drinnen wars ja ganz (e a polícia estava lá para garantir a ordem por- que havia muitas pessoas lá e dentro do banco) schnell; ich glaube man mußte nur den ausweis vorzeigen; ich weiß es schon gar nicht mehr. (e foi tudo rápido; eu acho que era só mostrar seu cartão, eu não me lembro mais …) Figura 3: Proximidade e distância dos pronomes pessoais em alemão do egocentro. (B) Uma das características mais evidentes do discurso de MSR é a “insegurança cognitiva”. Devido a uma mudança completa nas condições de vida, o indivíduo perde orientações claras; isso se refete no uso de expressões de vagueza, como por exem- plo, assim..., como assim..., de algum jeito, de alguma forma, algum lugar etc. A referência de assim e como assim é vazia ou “silenciosa”: ela se refere a algo que não está no texto e nem foi retido como conhecimento parti- ! 9 Nem tudo está transcrito e traduzido aqui. Procuramos desta- car as frases que mais ilustram a vagueza do discurso. 1 49 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos plo, a saída de uma partida de futebol pode ser uma cena maior e as condições ruins do tempo seriam um subtópico ou cena menor (pois devido às condições do tempo um time jogou pior que outro). Nas interações e con- versas depois de uma MSR, as cenas menores de pano de fundo (Nebenschauplätze) podem se tornar temas centrais de tal forma que o “jogo de futebol” pode passar a ter um papel impor- tante na formação de identidades, ao estabele- cer simbolicamente distância ou proximidade de um grupo com “outros”. Uma coisa parece certa: partes do pano de fundo podem tomar posições de destaque trazendo tópicos proemi- nentes de uma certa “época” (HYMeS 1997), como é o caso da reunifcação Alemã quando algumas coisas mudaram para sempre. 2) Os tipos de narrações de análise, exemplifca- ção e fragmentação são importantes manifesta- ções de processamento de uma MSR. trazer à tona histórias dramáticas de “perigo de morte” é somente UMA das funções comunicati- vas dessas narrativas. Há mais funções rituais (externas, sociais) nessas interações como, por exemplo, as funções relacionadas à audiência. Como também há funções mais internas (pro- cessamento e foco de experiências pessoais. As funções básicas de narrativas associadas a MSR foram isoladas e classifcadas por Bredel (1999) em sua dissertação. 3) Categorizações sociais são uma manifestação relevante de experiências próprias e de “outros” num período de encontros sociais densos e confitantes. estereótipos são fossilizações/ fxações de avaliações e modalizações fuídas de discursos (elas solidifcam preconceitos e evi- tam negociações), e a máxima que subjaz aqui é: fluctuat nec mergitur. Cuja imagem é “metáforas nas quais vivemos e que nos con- vencem” (Roth 2002). 4) Meios típicos que refetem uma MSR no dis- curso e interação são marcadores linguísticos específcos (variante específca de um grupo social, aspectos dialetais urbanos, pronomes, partículas modalizadoras, itens lexicais, etc.), mas também são artifícios psicolinguísticos do discurso (reparações, repetições, vague- za, etc.) jetzt in der schule oder so + da hat man(x) ooch dis (weiß ich nich) groß ausm + unter- richt abhauen ooder weeß ick + karten spielen + ick meine dit war bei uns ooch jewesen + bloß denn haste ooch die (xx)/ die dements- prechenden + folgen offm tüsch jehabt denn ne^ + haste irgendwie welche mit äh teilun- gen jekriegt oder + ürgendwie wenn klasse äh lehrerabend oder sowat war + oder elterna- bend denn + so ne (xxx) wenn die janzen+ die lehrer einjeladen worden denn halt %ne^% + denn ham die det ebend so reinjekriegt (xx) daß also soo + also zu hause denn ooch stunk denn ne^ + ja und hier da jehst einfach ausm raum ja pff (3) meu último exemplo trata de uma mudança lin- guística em progresso. Movidos pela tendência de moldar os seu registros pessoais numa forma mais simpática, aqueles ‘ossis’ com contatos íntimos com ‘wessis’ incorporam o uso inovador da partícula (evidencial) “HALt” em seu discurso evaluativo. Até a década de 70 somente o evidencial “eBeN” tem sido usado na fala coloquial do norte – como alternativa a partícula “HALt” do sul. Causado pela migração mássica de sulistas para Berlin-Oeste, o “HALt” do sul se tornou rival do “eBeN”. Ao contrário do que se pode esperar, as duas expressões NÃO são sinônimos. O signifcado modal central de “eBeN” é a evi- dência objetiva, enquanto o signifcado central de “HALt” focaliza o aspecto subjetivo da evidência. Como explicar a expansão ampla e rápida e a alta frequência de “HALt” na comunidade oriental? A partícula modal “HALt” recentemente tem assumido a qualidade de uma valor comunicativo a mais: funciona como um ‘amaciador’ epistêmico na interação interpessoal. 7. conclusões Que tipos de insights sociolinguísticos podemos ter a partir desse estudo? em vez de conclusões eu gostaria de levantar cinco pontos: 1) em um discurso “equilibrado” e não mar- cado (pequenas conversas cotidianas) temos as cenas maiores (Hauptschauplätze) e as cenas menores (Nebenschauplätze), como por exem- 1 50 norbert dittmar | mudança social radical e seu reflexo sociolinguístico nos registros e estilos BARZ, I. & FIx, U. (1997) (Hgg.): Deutsch-deutsche Kommunikationserfahrungen im arbeitsweltlichen All- tag. Heidelberg. BIRKNeR, K. (1999): Bewerbungsgespräche mit Ost- und Westdeutschen. Eine kommunikative Gattung in Zeiten gesellschaftlichen Wandels. Dissertation, FB Sprachwis- senschaften der Universtiät Hamburg, Hamburg. BOURDIeU, P. (1982): Ce que parler veut dire. 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Os psicolinguistas Bühler (1934, p. 220) e Pätzold & Pätzold (1995, p. 76) pro- põem o termo “atmospheric whiff ” (“Sphären- geruch”) para as manifestações de estilo comu- nicativo nas quais o repertório de um grupo A é percebido pelo grupo B como sua gestalt que emite uma identidade específca. A percepção social do estilo se cristaliza a partir de padrões e aspectos sociolinguísticos e é motivada por necessidades reais de distinção social (Dittmar 2002). Diferenças de registros podem ser dis- solvidas com as mudanças de estilo – mas para aqueles que simplesmente não se adaptaram à sociedade ocidental, existem também perspec- tivas de adaptação sociolinguística e cognitiva (“divergência”) que podem levar a modelos inovadores e à construção de novas e sucessivas identidades. 8. referências AUeR, P. & HAUSeNDORF, H. (2000): (Hgg.): Kommunikation in gesellschaftlichen Umbruchsitua- tionen. 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