sociedade e memória cornelia eckert

March 24, 2018 | Author: lupa | Category: Anthropology, Sociology, Family, Gender, Ethnicity, Race & Gender


Comments



Description

.com.br www.deriva 1 Editoração eletrônica e capa: Paulo Capra Arte Capa: Paul Klee, o anjo. Individualismo Sociabilidade e Memória: Anais do Colóquio / Organizado por Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH / UFRGS – Porto Alegre: Editora Deriva, 2009. 188 p; 14 X 20 cm Título em Inglês: Individualism, Sociability and Memory: Annals of The Event. ISBN: 1. Antropologia 2. Sociologia www.deriva.com.br Este livro Pode ser reproduzido para fins não comerciais no todo ou em parte, além de ser liberada sua distribuição, preservando o nome do autor. 2 Sumário 05 Apresentação Individualismo, Sociabilidade e Memória Ana Luiza Carvalho da Rocha Cornelia Eckert Memória, experiência e narrativa Myriam Moraes Lins de Barros Em busca da duração Um estudo do uso do vídeo na pesquisa sobre a construção da memória no processo de desocupação de casas de família na cidade de Porto Alegre/RS Anelise dos Santos Gutterres “No tempo da Nanda, o batuko era muito bom!” Narrativas e memórias do fazer batuko no Grupo de Batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago – Cabo Verde) Carla Indira Carvalho Semedo “A gente se abre para o mundo” Tornando o estrangeiro familiar e estranhando o familiar por meio de práticas cotidias em intercâmbios culturais Denise Silva dos Santos Memória e Família As experiências intrageracionais na construção dos projetos de vida de universitários negros Fabiela Bigossi 3 09 29 39 53 73 Memória e Geração A construção da narrativa de mulheres que praticaram aborto Fernanda Pivato Tussi Imagens da memória. RS. Fernanda Rechenberg Um sonho de cidade e uma soma de rupturas Estudo sobre os conflitos nos processos de gestão urbana em Porto Alegre Jeniffer Cuty 105 119 131 Memória. Porto Alegre. Porto Alegre/RS. documentações fotográficas possíveis A experiência de documentação da “memória fotográfica do bairro Cristal”. Thaís Cunegatto 153 161 173 4 . mas aqui é o meu lugar” Sociabilidade e cotidiano entre um grupo de idosos habitués da praça Saldanha Marinho. Rojane Brum Nunes “As vozes da experiência” Um estudo antropológico sobre memórias e sociabilidades na construção da paisagem da Rua da Praia.89 Experiência. Experiência e Política da Comunidade de Software Livre e de Código Aberto Brasileira Luis Felipe Rosado Murillo Horizontes urbanos Paisagem e imaginação no encontro etnográfico Mabel Luz Zeballos Videla “A praça é nossa. Santa Maria. das formas de reciprocidade e dos processos de interação social no contexto contemporâneo. Sociabilidade e Memória”. Louis Dummont. enfatizamos três módulos de formação. Max Weber. Sociabilidade e Memória Ana Luiza Carvalho da Rocha Cornelia Eckert Quando iniciamos nossa prática de ensino no PPGAS/UFRGS. abordamos o tema do “Individualismo”. O segundo módulo refere-se aos estudos de “Sociabilidade”. da construção social da pessoa moderna. entre outros. perpassando questões centrais do fenômeno urbano. Anthony Giddens. como conflito. desigualdade. na companhia privilegiada de Marcel Mauss. em 1993. o estudo das sociedades complexas moderno-contemporâneas. Nessa disciplina. distinção. poder.Apresentação Individualismo. Ganham realce os estudos sociais que permitem tratar desses processos a partir da perspectiva das 5 . No primeiro deles. e destacamos as leituras clássicas da antropologia e da sociologia sobre o mesmo. Nosso projeto era consolidar uma disciplina em que pudéssemos tecer as linhas teórico-conceituais do campo de pesquisa de nossa formação: a assim denominada antropologia urbana. solicitamos à Comissão Coordenadora a criação de uma disciplina intitulada “Individualismo. submissão e hierarquia. Norbert Elias. a partir de um leque de estudos etnográficos nas cidades modernas. também neste ano de 2008 nós incentivamos os alunos a apresentarem um trabalho de conclusão diferenciado: a turma aceitou o desafio de organizar e apresentar seus artigos finais na forma de um colóquio aberto à comunidade universitária. Nesse ínterim. seguimos com as bases da antropologia simbólica para iniciar os alunos no estudo da memória-esquecimento. perpassando os autores da Escola de Chicago e seus mestres de referência.trajetórias e projetos sociais. Nesse módulo. dedicamos nossa atenção aos estudos de sociologia. buscamos sempre referir os estudos antropológicos brasileiros que refletem sobre o viver urbano. autores como Maurice Halbwachs – precursor da antropologia dos estudos da memória coletiva em sua crítica aos estudos historicistas – inauguram o módulo sobre “Memória”. dos jogos e dramas sociais sempre aí correlacionados. do interacionismo simbólico. entre outros. dos habitus e ethos dos grupos. antropologia e história social. como Georg Simmel e Edmund Husserl. percorremos os estudos clássicos da sociologia urbana e da antropologia social do cotidiano. Em todos os módulos. da duração e das estruturas antropológicas do imaginário. mapeando enfaticamente os paradigmas da sociologia da forma. narrativa. das tendências da teoria da performance e da antropologia interpretativa. sugerimos o nome da 6 . Justamente nesse âmbito. A exemplo de nossas experiências de ensino anteriores. Em seguida. memória coletiva e imaginação simbólica. dos estudos da fenomenologia na sociologia da ação cotidiana. e aprofundamos leituras que tratam das noções antropológicas do espaço e do tempo para melhor introduzir os autores das hermenêuticas instauradoras sobre tempo. Para abrilhantar o ritual de passagem. à turma que aceitou o desafio. Nessa oportunidade. da sociabilidade. da UFRJ. Fabiela Bigossi. Luís é também o guardião desta memória. os leitores poderão conhecer as palavras proferidas por Myriam Lins de Barros no Colóquio Individualismo. Através desta publicação. publicada em livros e periódicos. reiteramos nossos agradecimentos à colega e nossa admiração por ela. Rojane Nunes. responsável por reunir estes papers e divulgá-los no portal do evento e nesta publicação. o nosso agradecimento por sua dedicação. mostra-se atento ao valor dos fóruns de debate intelectual do corpo discente. Jeniffer Cutty. convidamos aqueles que se interessam pelo tema a compartilharem desta produção com sua leitura que nos prestigia. 7 . Murillo. Carla Indira C. Por fim.br/sociabilidades). como se tornou interlocutora ímpar dos alunos e alunas que apresentaram seus papers no dia 3 de setembro de 2008. Fernanda Tussi. colocava-se para nós como uma oportunidade única. relacionada aos temas da memória. como sempre. Sociabilidade e Memória (www. Semedo e Luis Felipe R. A possibilidade de conhecermos sua experiência de pesquisa antropológica. e terão acesso aos trabalhos apresentados pelos(as) alunos(as): Anelise Gutterres.ufrgs. Thaís Cunegatto. Myriam não só aceitou o desafio e realizou uma brilhante conferência de abertura. em formato impresso. sobretudo quando se trata de oportunizar a presença de uma palestrante tão renomada para uma aula magna. Denise Santos. Assim. Devemos ressaltar que sua presença entre nós só foi possível graças ao apoio do PPGAS/UFRGS que.colega antropóloga Myriam Lins de Barros. Fernanda Rechenberg. Mabel Zeballos. da trajetória e do projeto social junto a grupos urbanos os mais diversos. para proferir a conferência de abertura e debater os trabalhos. 8 . Aguiar. Moraes. no ponto em que “ele” está. Quando fui convidada para participar do Colóquio Individualismo. 1. Hannah Arendt1 O storyteller. 2001. reflexões e memórias. 2. UFMG. mas à comunicação entre as gerações. mas.). uma lacuna no tempo. Algumas semanas depois. iniciando o texto desta conferência. 9 . o tempo não é um contínuo. na sua acepção usual. que vive sempre no intervalo entre o passado e o futuro. Sociabilidade e Memória. Odílio Alves. e a posição “dele” não é o presente. à sua tomada de posição contra o passado e o futuro. aceitei apresentar minha trajetória de pesquisa sobre memória. se distancia do passante massificado através da capacidade de narrar que ele mantém viva. como o flâneur.Memória. Entre o passado e o futuro. In: Hannah Arendt. Arendt. p. Odílio Alves Aguiar2 Começo este texto com uma revisão do título. Hannah. Propus um título: Memória e Experiência. é partido ao meio. antes. Eduardo Jardim e Bignotto Newton (orgs. “Pensamento e narração em Hannah Arendt”. A memória recuperada pelo storyteller não está relacionada à transmissão de uma tradição.215-226. Diálogos. experiência e narrativa Myriam Moraes Lins de Barros Do ponto de vista do homem. São Paulo: Editora Perspectiva. 1979. Belo Horizonte: Ed. um fluxo de ininterrupta sucessão. cuja existência é conservada graças à “sua” luta constante. eu mesma. UFMG. Diz a autora ao se reportar à obra de Walter Benjamin: “O que chamamos experiência é o que pode ser posto em relato”. Há. sua perspectiva social e individual. São Paulo: Companhia das Letras. O texto começava com alguns dos muitos aspectos dos estudos de memória: sua seletividade. neste caso em particular do memorial acadêmico. exatamente. A leitura do trabalho de Beatriz Sarlo (2007)3 que acabara de fazer nesta mesma ocasião foi que me alertou para este esquecimento inicial. Belo Horizonte: Ed. Reproduzo aqui o parágrafo inicial: Há muito tempo tenho trabalhado sobre memória e a idéia básica da memória como uma construção social ganha toda sua expressão no momento em que é preciso debruçar-se sobre si mesmo e iniciar o trabalho de elaboração de uma linha narrativa que apresente uma história de vida acadêmica. experiência e narrativa. (Sarlo. três anos atrás escrevi o memorial para o concurso de titular na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro4. Beatriz. um relato de uma trajetória acadêmica e a inicio com a lembrança de uma experiência recente. Sarlo.acrescentei mais uma palavra a estas duas: a narrativa. nas prioridades que defi- 3. 10 . 2007. ele mesmo. seu caráter narrativo. Cultura da memória e guinada subjetiva. Este ajuste é uma precisão conceitual e uma definição mais clara dos processos de pesquisa antropológicos sobre memória nos quais o próprio momento da narrativa é. 26). a seleção está na forma de narrar. 2007: p. Há nesta elaboração uma seleção do que deve ou não estar inserido na história e. 4. Tempo Passado. O Memorial é datado de 01 de setembro de 2005. momento de construção da memória. Realizo. Assim o título passa a incorporar o termo ‘narrativa’ e mudando então para Memória. A partir da orientação de Gilberto Velho. dos interlocutores. a questão do poder já pautada por Becker e por Gilberto Velho em seus trabalhos. Volto mais uma vez a Beatriz Sarlo: “A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível). 2007: p. trazendo. a questão da memória não se vislumbrou como uma possibilidade analítica. assim como da análise histórica de Michel Foucault sobre sexualidade e loucura que tinha áreas de interseção com o campo teórico e de pesquisa sobre desvio social. Retomo o texto escrito naquele momento e o reescrevo.24. (Sarlo. sabendo que a cada narração de uma experiência. No caso de Gilberto Velho. cidade. família. que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar”. 25) Minha trajetória. A narração também funda uma temporalidade. Naquela ocasião outras questões estavam em cena nas discussões da antropologia urbana. para o centro das discussões. gerações são os grandes temas das pesquisas que venho desenvolvendo há mais ou menos 30 anos. Logo no início desta trajetória. durante o mestrado. da continuidade da própria vida. mas a de sua lembrança. em meados da década de 70. há aproximações claras com a tradição antropo11 . Estes eixos cruzam-se entre si e com o campo de estudos da memória.nem as áreas de atuação e na intromissão de elementos externos à trajetória acadêmica. Velhice. uma nova versão da trajetória é elaborada em função do momento. aproximei-me do interacionismo simbólico e das discussões sobre desvio e estigma com Erving Goffman e Howard Becker. Louis Dumont. Uma das questões teóricas nos estudos sobre as camadas médias que estava presente no conjunto de pesquisas no Museu Nacional era a delimitação sócio-cultural deste universo social em termos de situação e posição de classe e de ethos e visão de mundo.lógica dos estudos de Mary Douglas e de Evans-Pritchard sobre acusação. Neste sentido as contribuições teóricas de Raymond Firth. Estilos de vida. basicamente. nas discussões sobre grupo de status. A preocupação inicial do meu projeto de dissertação era trabalhar a identidade social de mulheres velhas. mundos sociais. a antropologia urbana que se desenvolvia no Museu Nacional na década de 70. heterogeneidade são algumas categorias teóricas que passam a fazer parte de um campo de estudos 12 . havia uma sensibilidade para novas formas de organização social e de expressões das identidades sociais numa sociedade em processo de franca transformação em suas mais diferentes esferas. Estas referências teóricas estão presentes em Max Weber. Assim. o debate sobre identidade social e a discussão sobre desvio social e estigma estiveram no centro das questões sobre as relações sociais nas grandes cidades. Alfred Shultz. interpretações da análise cultural de Geertz. O universo entrevistado era composto de mulheres católicas de camadas médias do Rio de Janeiro. complexidade. ethos. Ao mesmo tempo. sem contar a discussão inicial do Gilberto Velho quando inicia este campo de trabalho da antropologia urbana com a pesquisa sobre os white collors em Copacabana. Simmel e mais proximamente Gilberto Velho eram e continuam a ser fundamentais para a construção das referências teóricas nos debates em torno do individualismo e da ideologia individualista da sociedade moderno-contemporânea. nas análises de classe de Pierre Bourdieu. no entendimento do caráter histórico e cultural das identidades femininas e nas múltiplas determinações presentes na construção social destas identidades e estava em ressonância com as discussões do feminismo na academia brasileira daquela época como mostra o estudo realizado 5. Maria Laura Cavalcanti e Bruna Franchetto5. sobretudo após a aposentadoria.11-70. As mulheres entrevistadas para a pesquisa compunham uma rede social que se criara em torno da figura carismática de D. Rio de Janeiro: Zahar Editores. Helder Câmara. A coleção apresentava a questão da mulher como um tema eleito para o debate das ciências sociais em diálogo com o movimento feminista.sobre as camadas médias urbanas. quando se coloca em questão a importância relativas das classes sociais nas construções do ethos e das visões de mundo. a dissertação foi publicada. 13 . O trabalho assistencial e outras atividades ligadas à CNBB realizados paralelamente à vida profissional e. em 1981 na Coleção Perspectivas Antropológicas da Mulher pela Zahar e tendo como organizadoras Maria Luiza Heilborn. A proposta teórica e política da coleção era expressa no questionamento da naturalização do lugar da mulher na sociedade. In: Perspectivas Antropológicas da Mulher 2. p. 1981. Às referências teóricas antropológicas neste campo de estudos sobre camadas médias. Interpretei esta experiência como parte de um projeto que se constituía na velhice como o último projeto de vida. deram o tom para a experiência de velhice ativa das mulheres pesquisadas. em parte. Com o título Testemunho de vida: um estudo antropológico de mulheres na velhice. soma-se a literatura sociológica de Alfred Shultz e Georg Simmel. Myriam Moraes. Lins de Barros. Voltando à pesquisa de dissertação. “Testemunho de vida: um estudo antropológico de mulheres na velhice”. ). para a existência do próprio projeto há a necessidade de sua comunicação e na sua formulação. Se tomarmos a própria noção de projeto (Velho. em algum grau. 1981)7. 1999. portanto de uma vida já vivida e reorganizada neste momento para dar sentido ao projeto e mesmo. A perspectiva dos avós sobre a família permitiu a análise das mudanças sociais e permanências de valores na família e da própria família como 6. embora não seja formulado exatamente nestes termos originalmente é. Maria Luiza e SORJ. In: Micelli. iniciase aí uma área de interseção entre pesquisas sobre velhice e gênero. definidora do próprio projeto. de fato. Bila. E sem dúvida. 7. um interesse teórico a partir da minha pesquisa no doutorado realizado entre 1981 e 1986. Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea. Neste contexto acadêmico não se enunciava claramente a relação óbvia entre projeto e memória como pouco depois é elaborado. Heilborn. neste momento. 14 . desenvolve-se uma narrativa de coerência em uma trajetória de vida fragmentada. desde o início. “Estudos de gênero no Brasil”. DF: CAPES. São Paulo: Editora Sumará: ANPOCS. basicamente nos segmentos de camadas médias urbanas. o trabalho sobre velhice de mulheres de camadas médias acaba sendo incorporado na publicação no campo dos estudos de gênero. O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). Rio de Janeiro: Zahar Editores. A questão que se colocava naquele momento era a das implicações das mudanças sociais e culturais na família. (1999)6. A memória vai se constituir. Os avós foram os personagens centrais desta discussão. Sergio (org. Brasília. vemos que a questão da narrativa da trajetória do indivíduo já é. nas relações de gênero na sociedade brasileira. Individualismo e Cultura. apontar para sua possibilidade de efetivação.por Maria Luiza Heilborn e Bila Sorj sobre a trajetória dos estudos de gênero no Brasil. Velho. 1981. Giberto. Portanto. Neste trabalho procuro dialogar com os autores clássicos da literatura brasileira sobre família como Antonio Candido e Gilberto Freyre. também. Foram os próprios avós que ao recorrem a seu passado na família de origem. sobretudo. antropólogos. Alguns pontos e algumas conclusões da tese vêm sendo retomados em diferentes pesquisas minhas e de outros pesquisadores. uma contribuição para os estudos sobre família moderna na sociedade brasileira e sobre as experiências de relações intergeracionais na família que. alguns antropólogos e sociólogos denominam de solidariedade intergeracional8. Durante o próprio trabalho de campo tornou-se fundamental a iniciação nas análises sociais da memória individual e social.um valor social nestas camadas sociais. A experiência na sociedade moderna de uma organização familiar nos moldes de uma família extensa parece ser. no que se refere ao lugar da mulher no mundo público e privado. hoje. com pesquisadores de família contemporâneos. no momento em que se questionava o lugar da mulher na família e se realizava a concretização das trajetórias profissionais femininas. Ao mesmo tempo a importância dos avós na organização familiar é pensada em função do próprio panorama das mudanças na sociedade e. Em 1989 havia publicado o artigo “Memória de velhos e fa15 . acabaram me apontando o percurso teórico da memória como uma instância social e coletiva capaz de ser compreendida pela perspectiva das ciências sociais. em particular. na família. Outro aspecto trabalhado foi o das relações entre as mulheres na família. sobretudo mães e filhas. A questão da memória é um dos aspectos que trabalhei neste momento e que retomo nos estudos sobre cidade e velhice. com a tradição de estudos antropológicos sobre parentesco e família. historiadores e psicanalistas. Lins de Barros. 1989. Myriam. diferentemente da pintura. Autoridade e Afeto. interpretado como uma narrativa de memória e cada uma das fotos uma pista das lembranças e em si mesma uma versão possível da memória familiar. Avós. Álbum de Família. O aprofundamento das questões teóricas estava ainda dentro das discussões sobre família: são as relações familiares. Ilana. Lins de Barros. O livro é um ensaio sobre fotografias de família e apresenta os resultados de pesquisa realizada no final da década de 80 com o universo que denominamos os guardiães da memória familiar e com o acervo fotográfico destes indivíduos das camadas médias e altas. Memória e família e ou memória 8. iniciei mais francamente a interlocução com historiadores e com as temáticas referentes à memória coletiva e a história de grupos sociais. filhos e netos na família brasileira. os legados das lembranças na constituição e na importância de acervos fotográficos. Lins de Barros. Myriam Moraes e Strozenberg. 1993. 1987. assim. 29-42. vol.2. 3. 10. e não como uma construção deste real. 16 .mília” na Revista Estudos Históricos9. Myriam Moraes. aprofundando as leituras dos trabalhos de Maurice Halbwachs. Retomava as questões da tese de doutorado sobre memória. no. a preservação da família como um valor. p. Como parte deste projeto de estudo sobre memória. No ensaio procuramos mostrar como a fotografia é apreendida pelos narradores como uma captura do real. Rio de Janeiro. Em uma linguagem que indica que as fotos representam o real e a verdade das relações familiares. os guardiães dos acervos de fotos de família constroem a imagem da família e de sua história referida nas imagens retratadas. O álbum é. “Memória de velhos e família”. Em 1992 publiquei com Ilana Strozenberg o livro Álbum de Família editado pela Comunicação Contemporânea10. Rio de Janeiro: Comunicação Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. In: Estudos Históricos. 9. Nos projetos. fronteiras simbólicas e os valores da modernidade compreendem um conjunto de noções desenvolvidas na antropologia brasileira por Gilberto Velho e que remetem a Simmel e à tradição da Escola de Chicago. sintético demais. No tratamento das questões relativas à cidade. Este último título. como já foi apontado atrás. a cidade aparece ao mesmo tempo como espaço social constitutivo e construído pelas relações sociais no mundo moderno e como tema para as entrevistas de história de vida. As pesquisas estavam lidando com memórias e lembranças de indivíduos moradores do Rio de Janeiro e buscavam entender os significados atribuídos às transformações urbanas e aos diferentes momentos das trajetórias de vida. fazia uma busca de 17 . fala das formas e condições em que se vive na cidade do Rio de Janeiro e trata dos significados dados à experiência de vida. aos significados dados pelos indivíduos com mais de 60 anos à vida urbana. Complexidade urbana. uma releitura da literatura brasileira que tem o Rio de Janeiro como palco dos dramas. A memória da cidade surge a partir das pesquisas “Memória e uso do espaço urbano por velhos na cidade do Rio de Janeiro” e “ A construção do espaço urbano ontem e hoje”. em diferentes contextos sociais. ao mesmo tempo. das crônicas e dos personagens e. Esta experiência prazerosa de associar literatura brasileira e antropologia ainda está em meus projetos para atividades futuras. A idéia de construção remete. a pesquisa permitiu uma viagem pelas perspectivas históricas na análise da vida urbana. mundos sociais. heterogeneidade. sobre memória e sobre velhice. assim. Nos dois projetos a discussão teórica procurou abranger a literatura sobre a cidade moderna.da família é também a temática de uma incursão na literatura brasileira com uma análise da obra memorialista de Carlos Drummond de Andrade. sobre seu personagem típico. Neste percurso e inspirada por esta literatura. Na obra dos dois pensadores. a cidade moderna é abordada através de suas relações sociais fundamentadas na ideologia individualista e na economia de mercado onde tudo e todos são transformados em mercadoria e. o flâneur e sobre a perda do sentido da experiência na sociedade capitalista. apresentada por Benjamin na figura do narrador. O diálogo entre os autores já estava dado de antemão: a inspiração simmeliana está presente na figura do flâneur e parece uma das 18 . neste contexto. integro às minhas leituras os trabalhos de Walter Benjamin sobre a cidade moderna. o homem blasé de Simmel e o flâneur de Benjamin são apresentados como constitutivos das metrópoles modernas. A viagem literária e histórica fez a aproximação com autores brasileiros que tinham trabalhado a constituição das metrópoles brasileiras na modernidade como Olgária Mattos. Neste momento do percurso das pesquisas. Nestas caminhadas por outros campos levava comigo as bolsistas de Iniciação Científica que tiveram que ler Lima Barreto. experiência e narrativa. descobrir o mapa da cidade.imagens da cidade que era lembrada pelas pessoas que entrevistava. Procurava uma aproximação entre a antropologia compreensiva da história da vida cotidiana e a história da cultura. impossibilitado de ter a quem transmitir suas experiências. a tentação em trazer para o debate sobre a cidade moderna duas perspectivas distintas se concretiza no diálogo que realizo com Simmel e Benjamin e entre os dois. as histórias oficiais registradas nas Regiões Administrativas. A apreensão desta literatura não se dá pela interpretação benjaminiana da impossibilidade da narrativa mas pelo que esta interpretação indica: a compreensão das lembranças dos indivíduos como uma construção de tempoespaço de memória. entre outros. Maria Stella Bresciani e Nicolau Svecenko. Karina (ors. Myriam Moraes. Gilberto e Kuschnir. p. coletiva. Influência que não se limita a Benjamin mas que abarca um conjunto de sociólogos e filósofos alemães e sociólogos americanos da Escola de Chicago. moradores eles mesmos de diferentes bairros e regiões da cidade11. social e oficial. “Velhos e jovens no Rio de Janeiro”. Desafios do trabalho antropológico. 2003. sobre as histórias das transformações urbanísticas e sociais. a docência na graduação permitiu-me realizar um laboratório com os alunos sobre memória da cidade. Como já disse. In: Velho.) Pesquisas Urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. um certo distanciamento do autor frente à posição de Durkheim quando coloca uma margem de opções e de possibilidades de construção das lembranças. Nas pesquisas sobre memória dos velhos na cidade.influências de Simmel na obra de Benjamin. Apontando a herança durkheimiana na conceituação de memória individual. são retomados os pontos fundamentais da análise sociológica de Maurice Halbwachs. 156-173. também. Os trabalhos dos estudantes trouxeram um amplo panorama de bairros. em 1989 quando publiquei em Estudos Históricos uma interpretação das fotografias de família. Para Halbwachs. embora o homem só possa ter memória de seu passado enquanto ser social. A amplitude do cenário do Rio de Janeiro e do Grande Rio era possível pela própria característica dos alunos de graduação. além do caráter ensaístico das obras dos dois autores. sobre heterogeneidade urbana. 19 . Enquanto as pesquisas eram desenvolvidas. de modos de vida e de histórias relatadas por entrevistados ou arquivadas nas sedes das regiões administrativas. desenvolvi uma breve análise dos trabalhos de Halbwachs. Parte desta experiência está relatada em Lins de Barros. mostrava. a memória individual é um ponto de vista da memória coletiva e este ponto de vista varia de acordo com o sentimento 11. Outro aspecto fundamental da memória individual e coletiva. situação social são alguns dos aspectos a serem levados em conta nos estudos destas diferenças. com a perda da figura do narrador ou de lugares da memória na modernidade como é trabalhada por Benjamin ou por Pierre 20 . dado pelo lugar que o indivíduo ocupa nas relações sociais. A partir desta apreensão da obra de Halbwachs. na memória vivida. Procurando entender as narrativas de memória dentro deste quadro teórico em que a memória é construída e compreendendo que esta construção se dá em um campo sóciocultural específico.de realidade. em artigo publicado no mesmo número de Estudos Históricos (1989). Gênero. E mais. A proeminência de um dos aspectos em relação aos outros deve. utilizo a idéia de Michel Pollak. estou mais preocupada em entender versões. as relações entre estas diferentes versões e os lugares sociais a partir dos quais são compostas estas versões. A memória individual é dependente. é o centramento na vida em sociedade. ainda dentro desta mesma configuração teórica. do espaço de conflitos entre diferentes versões das memórias e da história dos grupos sociais e do uso social das lembranças na elaboração da identidade e das fronteiras de grupos e segmentos sociais. também. São os quadros sociais de memória do grupo social que darão as referências aos indivíduos. Não estou lidando. construída nas experiências de indivíduos inseridos em grupos sociais. assim. O caráter relativo da memória também vai ser congruente com a idéia da memória como uma reconstrução do passado. ser avaliada nas análises destas versões. o próprio momento da narrativa tem que ser considerado para que se compreenda a narrativa como uma possibilidade entre outras da construção das lembranças. do lugar de onde se narra as lembranças. e. assim. geração. neste campo teórico igualmente.Nora mas com a complexidade e a heterogeneidade na vida moderna e as condições contemporâneas da construção de narrativas baseadas em experiências que trazem a dimensão dinâmica e processual onde se entrelaçam relações de gênero. assim. As preocupações teóricas sobre memória estão. A definição deste campo teórico iniciado há anos atrás e reavaliado e aprofundado nos processos de pesquisa sobre memória e uso da cidade pelos velhos configurou-se. Nos projetos posteriores. Kertzer & Jennie Keith (ed. Myerhoff. Age & Anthropological Theory. as questões da memória e do projeto de vida. No trabalho das interpretações das narrativas de lembranças. Cornell University Press. assimiladas ao campo teórico da discussão da relação indivíduo/sociedade nas sociedades complexas contemporâneas em uma mesma linhagem teórica dos estudos de Gilberto Velho. a perspectiva antropológica é aprofundada nas discussões metodológicas do uso de história de vida e da análise dos depoimentos de lembranças como momentos rituais como trabalha Barbara Myerhoff (1984)12.). como um plano de estudos para um prazo mais longo. Estão compreendidas. In: David I. locais de moradia. portanto. trajetórias profissionais. 21 . Nesta perspectiva teórica as questões dirigem-se para as representações do indivíduo moderno. na verdade. Barbara. para a construção da realidade social como processo. etc. 1984. 12. a proposta de pesquisa foi no sentido de trazer novos questionamentos mas ainda dentro deste campo de interesses teóricos e metodológicos. Ithaca. “Rites and Signs of ripening: the intertwining of Ritual”. as reflexões sobre trajetórias individuais e campos de possibilidades sócio-cultural onde se inserem. Neste sentido desenvolvo no artigo “O passado no presente: aos 70 falando do Rio de Janeiro” a idéia da construção da identidade de uma geração a partir das narrativas de memória e a percepção dos marcos da cidade como pistas para as lembranças13. Apresento, também, neste texto a discussão do direito à cidade por parte desta geração que não consegue mais se identificar com a paisagem urbana e com formas de interações sociais. Ainda com o material das pesquisas sobre memória, cidade e velhice tratei das relações entre densidade dos relatos de memória, gênero e curso da vida14. A percepção de que a narrativa tem densidades diferenciadas em função do momento em que se relata a trajetória, das desigualdades de gênero e de classe foi trabalhada na análise das narrativas de homens e mulheres de diferentes segmentos sociais, examinando particularmente as memórias de mulheres das classes trabalhadoras de suas trajetórias de vida em relação à família e ao trabalho. Algumas idéias presentes no trabalho “Densidade da memória...” onde estes aspecto da densidade diferenciada são estudados são retomadas e procuro trabalhar o lugar da mulher mais velha na família e nos espaços públicos, sua mobilidade ou não nos percursos urbanos e no lidar com as instituições e, também, sua autonomia frente à família nas escolhas de atividades cotidianas. Seguindo na mesma linha de pesquisa procuro, em outro momento, trabalhar alguns pontos de uma antropologia das emoções 13. Lins de Barros, Myriam Moraes. “O passado no presente: aos 70 falando do Rio de Janeiro”. In: Cadernos de Antropologia e Imagem. No. 4. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Núcleo de Antropologia e Imagem. 1995, p. 91-106. 14. Lins de Barros, Myriam Moraes. “Densidade da memória, Trajetória e Projeto de Vida”. In: Estudos Feministas. Vol. 5, no.1/97, p. 140-147. 22 baseada em histórias de vida e uma antropologia/sociologia dos sentidos. No artigo “A cidade dos velhos” (1999), faço um esboço de um caminho de análise entre o sentido da visão identificado por alguns autores como o sentido humano que mais se associa aos valores da modernidade e à experiência nas metrópoles, interpretando o traçado de mapas urbanos feitos pelos velhos nas formas de narrar os espaços da cidade do Rio15. Mais uma vez recorro a Simmel e a Benjamin. O primeiro desenvolve uma sociologia dos sentidos e atribui à visão a experiência singular que associo em Benjamin à relação entre o olhar e o ser olhado do flâneur nas metrópoles. E sem dúvida, assim como ocorre com a visão das fotografias pelo narrador a paisagem urbana e seus marcos são, como já tratei atrás, uma chave de partida para uma narrativa. Construímos nos contextos acadêmicos questões e respostas e retomamos algumas, fazendo uma releitura de trabalhos já realizados (mais uma vez uma narrativa de memória). Em 1998 publico, pela Editora FGV, a coletânea Velhice ou Terceira Idade? Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política16. Nas reuniões da ABA de 1994 e 1996 a temática da velhice foi debatida por pesquisadores de diferentes centros de pesquisa e mostrou que novos e jovens pesquisadores estavam se somando à primeira geração de antropólogos que se dedicam ao tema da velhice no Brasil. A coletânea reúne trabalhos de autores que haviam apresentado 15. Lins de Barros, Myriam Moraes. “ A cidade dos velhos”. In: VELHO, Gilberto (org.). Antropologia Urbana. Cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 43-57. 16. Lins de Barros, Myriam Moraes (org.). Velhice ou Terceira Idade? Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, 4ª edição. 23 suas pesquisas na Reunião da ABA de 1996 e que representavam, nas ciências sociais, aqueles que estavam produzindo mais efetivamente sobre velhice e envelhecimento. O livro significou para mim a possibilidade de tornar pública uma produção antropológica, portanto, uma perspectiva das ciências sociais sobre temas que poderiam se tornar cativos da área médica ou da gerontologia. Diferentemente destas duas, minha preocupação não era e não é constituir uma área de antropologia da velhice, embora os autores tenham um acervo de conhecimento sobre o tema, mas trabalhar a temática a partir dos referenciais teóricos e metodológicos da antropologia e dentro desta tradição. É a partir desta perspectiva que entendo que deva ser estimulada a interlocução com as diferentes áreas de conhecimento e com diferentes instâncias da vida social. Como já foi apresentado atrás, o livro trouxe para um conjunto de pesquisadores a oportunidade de concretizar a rede de pesquisa em torno destas temáticas e desencadear outras publicações na área. Nesta publicação, o artigo derivado da dissertação de mestrado publicado anteriormente em uma coleção de estudos de gênero está agora inserido na parte dedicada à memória, juntamente com os trabalhos de Cornélia Eckert, de Alda B. da Motta e Maria Letícia M. Ferreira. Neste momento já está clara a interseção entre estes diferentes temas de pesquisa: memória, gênero, classe e velhice e, está construída claramente uma rede de pesquisadores. Ao longo dos trabalhos sobre velhice e cidade, trabalhei com diferentes segmentos sociais e tratei de examinar a construção da memória a partir de distintas perspectivas e perceber a própria constituição de situações propícias a um desencadeamento de lembranças como os espaços de sociabilidade informais e formais. Quando 24 Tentação movida por um movimento que aparece em algumas ocasiões na mídia e nos espaços de sociabilidade de forma a marcar nostalgicamente as perdas dos lugares de memória sob o ponto de vista geracional e. A partir da questão das gerações. recentemente aos estudos de família. muitas vezes. ao estudar projetos de vida de jovens universitários de segmentos diferenciados das camadas médias e mesmo das camadas trabalhadoras. autonomia e independência na família nas diferentes gerações. que é ter pais vivos e filhos jovens e jovens adultos que. solidariedade familiar. às vezes. Esta incursão trouxe mais claramente a importância de trabalhar trajetórias de vida de diferentes gerações nas perspectivas de gênero e classe. atualmente. uma vez que é uma versão entre outras da história das cidades através de seus personagens eleitos pela dimensão geracional. pela própria história oficial. é. a responsabili25 . aproximadamente. ela mesma. assim. muitas vezes. um objeto de pesquisa. os ganhos permitidos pela modernização da sociedade. adiaram sua saída da casa dos pais. A guinada para os estudos da juventude logo depois significou uma mudança de perspectiva geracional. volto. Trata-se de pesquisa sobre trajetória de vida em outra situação geracional. empregada. A pesquisa tem como foco as mulheres de camadas médias urbanas que estão.tratamos das lembranças na e da cidade há uma tentação que deve ser sempre observada: a de sobrepor às dimensões de classe e gênero a referência geracional. Um dos objetivos do projeto é expandir e refinar para estes segmentos as discussões sobre redes sociais. na faixa de idade entre 50 e 60 anos e que vivem uma experiência bastante comum. Esta via de interpretação das perdas e da construção de uma história sobre o espaço urbano. As histórias de vida destas três gerações indicaram um novo percurso de pesquisa que me leva a aprofundar os sentidos e as práticas referidos ao legado de valores e dos bens materiais. examinada como espaço das relações hierárquicas entre gêneros e entre gerações. sobre trabalho da mulher. Três gerações femininas em famílias de camadas médias: trajetórias de vida e o projeto de autonomização.dade e sentido de obrigatoriedade em relação aos mais velhos e aos mais jovens. os avós. os pais. Se no projeto de pesquisa anterior as mulheres de 50 a 60 anos foram o foco da discussão sobre mu- 17. uma base tanto sob o ponto de vista teórico como empírico. No prelo. de jovens adultos e de suas figuras de referência como as mães. sobretudo. O trabalho de doutorado realizado na década de 80 é. Lins de Barros. à família. da família urbana. sem dúvida alguma. 26 . Myriam Moraes. Estou partindo de referências de alguns trabalhos sobre mulher. sobre as relações de gênero para realizar esta escolha geracional: as mulheres desta geração parecem viver uma experiência particular e distinta das gerações anteriores e da que as segue imediatamente e esta especificidade pode ser interessante para compreender as configurações das relações familiares contemporâneas. A insistência em trabalhar estas questões parece ser interessante para a compreensão das relações familiares em um momento do grupo doméstico em que esta mulher de 50 a 60 anos é tomada como referência para a pesquisa17. sobre envelhecimento. Museu Nacional. Tem sido desde então uma questão permanente para a compreensão da família a coexistência de configurações de valores tradicionais e modernos. por um lado. e por outro. os amigos. à casa. Seminário Roberto Cardoso de Oliveira. espaço de socialização de indivíduos e da transmissão de valores igualitários. memória e narrativas. Finalizo com Hannah Arendt: “ A primeira coisa a ser observada é que não apenas o futuro . maternidade. a reordenação e surgimento de novos temas sobre sexualidade. reorganizações da vida doméstica. como um fardo com que o homem tem de arcar e de cujo peso morto os vivos podem ou mesmo devem se desfazer em sua marcha para o futuro”. parentalidade. Rio de Janeiro. e não.dança social e trajetória de vida. agora os jovens passam a ocupar este lugar.“ a onda do futuro” -. Hannah Arendt Rio de Janeiro. como em praticamente todas as nossas metáforas. é visto como uma força. 27 . Mudanças no mundo do trabalho. os dramas individuais nos trânsitos entre mundos e entre opções de vida retomam e recriam as questões sobre trajetórias. 03 de novembro de 2008. mas também o passado. 26 de agosto de 2008. 28 . Marcas que nesse estudo serão procuradas a luz dos conceitos de duração de Gaston Bachelard. Espaços acolhedores de lembranças de no mínimo duas gerações de alianças com descendência de parentesco ou pelo lado materno ou pelo lado paterno. e entendidas através da noção de ruptura. a partir da figura do “guardião da memória” e em meio ao movimento de desocupação das moradas que eles habitam. segundo Lins de Barros cíclico.Em busca da duração Um estudo do uso do vídeo na pesquisa sobre a construção da memória no processo de desocupação de casas de família na cidade de Porto Alegre/RS Anelise dos Santos Gutterres “Como. Nominação feita por Myriam Lins de Barros (1988: p. se na desordem do armário embutido Meu paletó enlaça o teu vestido E o meu Sapato ainda pisa no teu” (eu te amo. Chico Buarque) Essa apresentação visa refletir sobre o uso do vídeo como técnica para a pesquisa dos processos de construção da memória familiar. 29 . Halbwachs chamou de marcas visíveis do passado. que segundo esse autor são os centros decisivos do tempo onde o narrador se orienta e se guia.34) o “guardião da memória familiar” torna-se também aqui figura fundamental para se compreender o que M. num deslocamento constante e também. portanto. relativo a gênero e a geração. e. como forma de construção do próprio narrador. é importante ressaltar que eles são fruto de uma metodologia de pesquisa em vídeo desenvolvida no Banco de Imagens e Efeitos Visuais onde segundo Rafael Devos. estabelecer uma ordem e um contexto para elas. observando as suas descontinuidades no processo vivido. avaliar a sua permanência no tempo. ou o pupilo. Neste caso. acionadas pelas diferenças trazidas por cada um dos indivíduos a relação. e segundo a orientação dos trabalhos de Walter Benjamim nesse sentido. ao observarmos o desenvolvimento da narrativa nesses trechos de vídeo. Um descobrimento que é provocado pela experiência do processo de interação que ao observarmos os trechos em vídeo que serão apresentados. buscamos dar um tratamento documental a gravações feitas durante um dia inteiro de trabalho. Um sentido que compartilhado é o catalisador da narrativa e pode nos levar a pensar sobre os papéis envolvidos nele. ela estaria evitando a sua própria morte. o potencial narrativo de transmissão da sua memória do passado. tendo como ouvinte não o neto. Portanto para esse autor o tratamento dessas narrativas envolve “a digitalização. a análise e a classificação dessas “falas” (Devos. se dá em meio às diferenças.Onde esse indivíduo é capaz de. tensões e surpresas. o filho. no prelo) menos atrás do – segundo Geertz – “estive lá” do realizador 30 .2008. Ainda sobre os trechos apresentados aqui. mas o antropólogo e sua câmera. já que para esse autor o passado vivido é vivido quando narrado a alguém. buscaremos pensar na linha de Gilberto Velho numa comunidade de sentido. A narradora a que assistiremos aqui reúne em sua figura. de forma a “desmontá-las” em busca das “mudanças de sorte” do narrador dentro de um processo que é sempre maior do que o visualizado. e o papel da emoção talvez seja apenas o de suavizar a novidade excessivamente hostil”. é mãe de Claudia.em campo. atrás desses re-começos. em todas as suas formas. Bachelard. viúva de Mauro e recentemente avó de Sofia. “sair viva do outro lado”. em A dialética da Duração. usou essa energia para completar uma graduação em Turismo. nosso tumulto. nasceu em Porto Alegre. Habitados por essa afirmação nos ocuparemos. a narradora que mencionávamos até agora. Quase sempre. a morte da mãe. ao olhar essas imagens em vídeo. Marcos e Camila. são sempre lembradas como marcos importantes para o reforço da sua capacidade de “virar”. De forma a dar conta do movimento provocado pelos deslocamentos que a experiência dessa troca funda. construídos a partir do percurso por essas fotos e por esses objetos da casa. esses fechamentos de sentido presentes ao logo da fala ou do percurso pela casa. gostaríamos de apontar a escolha da câmera na mão como hipótese dessa possibilidade de narrar a narração. que já teve “muitas esquinas”. usa uma frase do neurologista: “a mudança é no fundo bastante triste. Carla criou os filhos. os rompimentos. Uma opção da pesquisa que está preocupada com as mudanças de sorte. a pensar sobre o risco de desaparecimento desse indivíduo à medida que ele se constrói na narração desses objetos outrora dispostos pela casa. nesse caso. Nos dois fragmentos que serão vistos. Falante e “cheia de energia”. nossa melancolia. é o desaparecimento”. do pai e do marido precocemente. Carla Castilho.47) “a continuidade é apenas nossa emoção. quando está dialogando com os estudos da psicologia de Pierre Janet. Para Bachelard (1989: p. Hoje Carla mora numa casa 31 . e mais. como ela coloca. Dona de uma vida. acompanhou o marido na sua trajetória acadêmica fora do estado e para driblar a rotina sem a companhia dele. do álbum desmontado da sogra. Veremos agora um primeiro trecho. onde Carla embarca numa viagem. sob o titulo de A cidade e suas Ruínas. orientada por rituais. da formatura do pai. ela desocupava. ou essa casualidade como colocaria Bachelard. em 1997. Essa aleatoriedade aparente. das férias.em Canela. Eram fotos que misturavam momentos na casa de praia. por datas festivas ou épocas distintas. como de acompanhar. que na época. com seus gatos e seus cachorros preta e moleque. nas fotos e na ambiência da casa. 32 . na antiga casa dos pais. Uma estética e um movimento de câmera inspirados no vídeo dirigido por Ana Luiza Carvalho da Rocha. na casa de Gramado na serra. Fotos que estavam reunidas em seu quartinho-sótão a partir da categoria fotos. atrás da descoberta da escolha e do esquecimento de diferentes objetos compositores da morada à medida que em razão desse momento prático – de entrega das chaves – eles tinham possibilidade de ir ou ficar. impulsionou a pesquisa de uma estética de gravação em vídeo e em captação de som que fosse capaz: tanto de acompanhar esse momento de montagem das relações entre as fotos oriundas de momentos diferentes da vida de Carla. “móvel da sala”. sem nenhuma organização aparente. encontrada nas caixas de fotos parecia análoga aos espaços da casa que naquele momento. dos quartos dos filhos. “roupas de inverno” amontoavam os corredores e cantos da casa. que cresceu e morreu na casa. o deslocamento dessa narradora pela casa. por entre caixas e caixas de fotos. que guardavam duas gerações da família dela e da família do marido. Essa “desorganização”. divididos por caixas com as etiquetas “panelas”. de relação com o espaço que as fotos evidenciam. representações de infância. decoração. Nesse trecho que assistimos chamamos atenção para um volume de diferentes vestuários. nos evocando a pensar a transformação da cidade de Porto Alegre a partir desse ponto de vista. antes quarto de um dos irmãos do marido. de paternidade. Os momentos fixados pelas fotografias familiares na mobilidade das relações articuladas pela narradora: a partir da descrição de hábitos. Na continuidade dessa gravação poderíamos ver Carla mostrando através de diferentes fotos.[Situação 01 – escolha das fotos – gravado em abril de 2007 às 9h] Trecho de vídeo com 3 minutos e 10 onde Carla vai montando através das fotos de diferentes momentos. Trabalhamos em cima dessa terminologia a fim de 33 . itinerários. três paisagens possíveis da mesma janela do quarto da filha. relações entre parentes. sobretudo a historia familiar. expressando com isso “a importância e permanência do valor da instituição familiar”.33). Também não é a intenção restringir uma única concepção de casa como construtora da definição de família. entre o tempo e épocas diferentes vividas nessa mesma casa Para Lins de Barros (1989: p. irmandade. está ligada a transmissão de uma mensagem que se refere ao mesmo tempo “a individualidade da memória afetiva de cada família” e a memória da sociedade mais ampla. podem evocar pelo conceito de “história vivida” a memória coletiva de uma classe média moradora de Porto Alegre. práticas. a determinação do que nominei “casas de família” não pretende distinguir e nem excluir a diversidade de representações sobre família que desde meados dos anos oitenta vem sendo repensadas pela antropologia. Nessa linha. segundo Halbwachs a transmissão de uma história. posturas. mãe e filhos. para pensar a construção desse indivíduo narrador. precisam dessas fotografias e desses objetos. que não estão relacionados ao um tempo da matéria. Ou no caso das comemorações: delimita regiões e itinerários que depois a fim de serem re-vividos em outras casas. é relevante à medida que ela acumula gestos de um vivido anterior. como são os caminhos que re-imprimem o que Benjamim chama de “rastros” que habitam o passado.reunir em torno dela o contexto de uma trajetória de vida de camadas médias. e onde a casa ocupa um papel de solidez. Da mesma forma que o tempo 34 . de provedora das “lembranças de família” já que são casas de áreas extensas. como chama Bachelard (2005: p. ocupa lugar central na história de vida dessas famílias.31). pois são eles que evocam as narrativas que durando no tempo podem compor através de novas narrativas a permanência dessas famílias para além das casas onde viveram por muitos anos. uma noção trazida por esse autor para pensar esses espaços de acomodação do tempo. A intimidade e a presença da máquina fotográfica no registro dos rituais familiares e das cenas cotidianas dessas famílias contribuem para a construção de uma infância que ocupa e explora certos espaços imaginados da casa. onde “uma certa concepção de casa”. internas e externas. que abrigaram ao menos duas gerações de casamentos de uma mesma família. mas a um tempo vivido. Pois a morada para Bachelard ela é imaginada. Dessa forma somos capazes de entender por que a morada de Carla não estava sendo destruída com a destruição da sua casa. Famílias compostas por relações de aliança clássicas entre pai. Constituindo uma “topofilia”. fundamental para pensarmos determinadas casas como “moradas”. Abordar a questão “da quantidade de tempo de vida numa casa”. não esconde daquele que assiste o ajuste do foco. as diferenças de luz dos espaços gravados. seja a de nós mesmos ou a dos outros. esses “instantes de iluminação súbita” (1994: p. Estetizando a experiência não no sentido de 35 . é por meio de razões não por meio de durações que pretendemos dar-lhe continuidade.vivido de Bachelard não está relacionado a vida de uma só pessoa. depende de ações e de narrações de outros que não nós mesmos. Para Bachelard. para Paul Ricoeur “a historia.84). ou de uma só família. onde repousa a pessoa do pesquisador e a pessoa de Carla a fim de encontrar e evidenciar através do vídeo a interdependência da presença do outro na construção dessas narrativas orais. Num processo de gravação que é uma pesquisa em torno da subjetivação do olhar desse pesquisador que aparece numa certa estética de gravação: que prefere as seqüências aos cortes. portanto não há começos nem fim absolutos possíveis nessa narração que nós fazemos de nós mesmos” (1994: p.39). Na linha dos estudos de Schutz sobre as motivações que movem a experiência. ele é o acúmulo de histórias. sem os quais o arcabouço da nossa duração se desmancharia. do nosso nascimento e da nossa morte.83) da qual fala Benjamim sobre a força da fotografia em chamar um pedaço de “nós-mesmos” a integrar o pedaço de outros. e. em verdadeiros eixos racionais. pensar na duração do indivíduo é pensar que “nossa história pessoal nada mais é que a narrativa de nossas ações descosidas” é ao contá-la. desenvolve-se entre um indício e um fim que não nos pertencem. e retomando a comunhão de sentido do qual nos ensina Gilberto Velho estamos ao realizar essa pesquisa em vídeo nos perguntando sobre “um grupo de decisões experimentadas” (1989: p. pois a história da nossa concepção. Portanto a experiência da nossa própria duração passada se baseia para Bachelard. [Situação 02 – escolha dos objetos – gravado em 31 de maio de 2007 às 9h30] Trecho onde Carla sentada na escada da casa fala sobre uma ovelha de pelúcia velha que teve pedaço da orelha comida pelo cachorro. Levar ou não levar a ovelha de pelúcia? Quando Bergson irá pensar a memória como um depósito de lembranças. levando dúvidas em Carla sobre se a levava para a nova casa ou a deixava ali. também como parte da duração dessa relação do pesquisador com o outro. Parafraseando 36 . eles não são matéria inerte. uma ovelha que comprada pelo marido tinha sido até agora uma “guerreira” pois sem nenhuma aparente razão ela ainda estava por ali. mas justamente o contrário. a própria experiência da abertura. funcional e consciente no acionamento da lembrança. como o acionador desse depósito. Para ele não temos controle sob algum objeto ao ponto de afirmar que ele nos fará lembrar especificamente de determinada sensação ou ocasião. É ela no psiquismo humano. admite-se que antes da imaginação ser a capacidade de formar imagens. Portanto trabalhando com o conceito de imaginação desse autor. ela é a capacidade de deformar as imagens. diferente de Bachelard. “Graças ao imaginário a imaginação é essencialmente aberta.1). aquilo que se olha é fruto dos instantes que compõe aquela interação.afirmar “o aquilo que se olha é aquilo que se vê”. libertá-las. ele elegerá a matéria. a própria experiência da novidade” (1990: p. que trazidos a consciência serão sempre os mesmos na relação matéria-memória. evasiva. Já para Bachelard é possível “conversar com os objetos”. de mudá-las. não sofrendo interferência do presente no “resgate” e construção das lembranças. e sim na descoberta de que imaginação existe neles. Para tanto o que nos move a acompanhar junto com Carla. definirá o destino da ovelha: ou ir ou ficar. que fotos podem contar histórias. 37 . é a própria existência humana”. que apostamos. que objetos podem e tem potencial de evocar histórias. porque é o volume dela. que objetos deixar.o poeta e pintor William Blake “a imaginação não é um estado. o processo de decisão: sobre que fotos levar. estamos implicados não na descoberta de que função eles tem. A dialética da duração.3. São Paulo: Centauro. Campinas: Papirus. no prelo. 2005. 1987. RJ. Rafael. No fundo das aparências. filhos e netos na família brasileira. 1989. 1994. Ed. GEERTZ.Referências BACHELARD. Cornelia & ROCHA. BACHELARD. Zahar. Tempo e Narrativa. MAFFESOLI. Myriam. In: Estudos Históricos 3. HALBWACHS. DURAND. 3 ed. O tempo e a cidade. Autoridade e Afeto. 1988 DEVOS. Gaston. A memória coletiva. Gilbert. Textos escolhidos de Alfred Schutz. WAGNER. LINS DE BARROS. Jeanne Marie. Maurice. Memória. vol. Desmontando narrativas:sobre o tratamento documental de acervos audiovisuais de narrativas orais 2008.. RICOEUR. n. Historia e narração em Walter Benjamim. 2008. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. GAGNEBIN. Fenomenologia e relações sociais. Projeto e Metamorfose – Antropologia das Sociedades Complexas. Paul. São Paulo: Editora Ática. 2005. São Paulo: Vozes. 1989. Obras e vidas: o antropólogo como autor. A poética do espaço. (org. Gilberto. Myriam. 38 . Ana Luiza Carvalho da. 2003.2. LINS DE BARROS. São Paulo: Martins Fontes. 1979. 2006. Avós. Clifford. 1994 VELHO. 2002. Rio de Janeiro. Perspectiva. e Introdução). ECKERT. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. “Memória e Família”. Porto Alegre: Editora UFRGS. Michel. Gaston. Helmut R. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. São Paulo: Martins Fontes. por isso não quero dar um caráter de solidez à constituição do grupo quando tal é inexistente. mostrar uma maleabilidade do grupo que vai sendo construído em decorrência dos vários momentos de *. 39 . situações de desistência de um ou outro elemento e de reentrada destes no grupo. outras 12. 2. uso pseudônimo. nós batuko era sabi!*” Narrativas e memórias do fazer batuko no Grupo de Batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago – Cabo Verde) Carla Indira Carvalho Semedo Enquanto estava fazendo o campo.. Orlando2 e Otávio. aproximadamente 15 minutos de viagem de Praia. na região rural da cidade da Praia (capital de Cabo Verde).. ao mesmo tempo em que. São Martinho Grande fica na ilha de Santiago. eu não sei. não sei. 30 anos). eu que organizo o grupo. o nosso batuko era muito bom”! 1. o grupo de batukadeiras de São Martinho1 Grande se encontrava constituído por dezasseis (16) mulheres (sendo cinco adolescentes entre a faixa etária de 13 a 16 anos) e dois coordenadores. quando as questionava sobre o número total dos elementos.” (Solange. não sei.. pois é difícil aparecer todo mundo no ensaio. A fim de manter o anonimato das minhas colaboradoras de pesquisa. Ao invés. elas me respondiam evasivamente. Tradução do crioulo: “No tempo da Lara.“Na tempu di Lara. sem nenhuma certeza: “Sinceramente.. ás vezes aparecem 8. pois presenciei em vários momentos. Trago a constituição de forma dinâmica e não estática do grupo. de garantir retornos de apoios financeiros de outras instituições governamentais ou não governamentais. 13 ou mais querendo ir” (Nany. se de repente formos convidadas para participar em algum show. Mas. Diferente das batukadeiras cuja escolaridade é muito baixa. não mais. ou vendas informais ambulantes) que elas realizam e cuja filiação de classe remete à classe popular. têm formações superiores (Marcos tem bacharelato e Otávio tem licenciatura) e situações socioeconômicas acima da média das batukadeiras. 5 ou 6 pessoas. só se constitui enquanto um grupo coeso e articulado com a vinculação à associação da comunidade: a Associação para o Desenvolvimento de São Martinho Grande (ADSMG) em 2007 na altura presidida pelo Orlando. sei que somos muitas. Este grupo. mas nos ensaios apareçam umas 4. argumentando que esta precisava ter um grupo de batuko e que estando vinculado com a associação. E essa disparidade entre a condição socioeconômica e escolaridade. pertencendo socialmente à classe média. “Eu nem tenho idéia de quanto somos. sendo que algumas nem são escolarizadas. condicionando assim as atividades econômicas remuneradas (nomeadamente peixeiras. a fim. perpassava tanto as nar40 . então presidente e atual coordenador delas que as incentivou a trabalhar junto com a associação. venda ambulante de frango. 30 anos). o grupo ganharia um caráter institucional. podes ter certeza que vai aparecer umas 12. Tanto Orlando quanto Otávio. segundo minhas colaboradoras.agenciamentos das batukadeiras conforme a situação e a audiência. de baixa renda. Nós viemos a conhecê-lo a partir do Orlando e este nos diz sempre que Otávio não tem grupo. “Antes nosso batuko era bom. ou nas situações de tensões eminentes resultante dos acordos estabelecidos tacitamente relativamente aos papéis de cada um. íamos aos concursos e ganhávamos sempre. ele tem outra situação de vida e do Otávio não sabemos quase nada. Para além da Fátima. nem sua formação. mas ele não tem grupo algum” (Ana. pode ter um grupo de batukadeiras a acompanhálo. fazendo ku torno3. O grupo atual é constituído por elementos que participaram no grupo dos anos 80. Nair quando meninas participaram do grupo durante os anos 90. que ele canta sozinho. a faixa etária ronda 30 a 40 anos. Este grupo de batukadeiras recém-formado em 2006 é precedido de um outro que. levantamos de novo. “Ah. tendo também presença de adolescentes. Lúcia (filha da Fátima). No meio 41 . espero que continuemos fortes” (Fátima). entre os quais Fátima. foi durante os anos 80 e 90 foi muito aplaudido e isso foi sendo trazido constantemente nas narrativas das batukadeiras e da comunidade de São Martinho Grande em geral. fazíamos bom batuko. na articulação entre o grupo de batukadeiras e a ADSMG. As outras batukadeiras desse grupo atual. somente que é professor de 2º grau. 40 anos). a mais velha do grupo (62 anos) e é a única que veio do antigo grupo e que era trazida sempre nas narrativas das batukadeiras e na comunidade na sua totalidade. depois. o grupo foi abaixo e agora em 2006. Claudia.rativas das batukadeiras quanto do Orlando e do Otávio. Orlando não é como nós. do que não sabemos. dos quadris conseguido por flexões fortes dos joelhos. discutir como as narrativas sobre o antigo grupo (a partir de 1975 a 1999) de batukadeiras de São Martinho Grande são revividas pelo atual grupo formado em finais de 2006 e pela comunidade no seu todo. A discussão trazida por De Certeau (2003).desses sujeitos aparece uma outra: Lara. Dessas narrativas destacam-se duas figuras: Lara e Fátima como lugares de memória em Halbwachs (1990). o saber-fazer do batuko na Comunidade de São Martinho Grande é recriado a cada ato narrativo. Lara é emigrante em Portugal desde 2001 e no período que estava realizando trabalho de campo. meses depois de tê-la conhecida por meio dessas narrativas e da forma como ela é produzida e produz o imaginário social dessa comunidade. incorporo a noção de tempo narrativo em Ricoeur (1994). junto com Fátima. deste trabalho da memória. falar do batuko realizado por esta comunidade implica remeter à Lara e ao tempo áureo do batuko. reapropriado pelos sujeitos sociais nas suas práticas cotidianas e a memória é agenciada em experiências vividas. Junto com esta noção de memória. em Dezembro de 2007. 42 . como um marco na prática do fazer batuko nos anos 80 a 90. Lara aparecia sempre para mim por meio das narrativas das batukadeiras e da comunidade no seu todo. ela foi passar um mês em Cabo Verde. no sentido em que elas se reconstituem como sujeitos atores nestes lugares de memória. Ku torno se traduz em um forte e/ou frenético requebrar das ancas. no qual a partir da narrativa. Busco através dos dados etnográficos. ao mesmo tempo em que. Durante o trabalho de campo. Dado que para a comunidade falar da Lara implica falar dos momentos áureos do fazer batuko. esse tempo Passado. Presente e futuro que vai sendo reinventado. Na verdade. as artes de sa3. só vim a conhecer Lara. que mais que uma narrativa que elas me contam. dialeto de conversação em Cabo Verde. Lara que depois veio a emigrar para Portugal em 2001. uma cantadeira e crianças / adolescentes que davam ku torno. “Eu gosto de fazer batuko. escutando as narrativas. Após a Independência. pensávamos as letras e depois fazíamos as ‘cantigas’. na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (Polack. as estórias4 do fazer batuko nesta comunidade.. Uso estórias para tentar trazer a dimensão da oralidade. dos vários momentos e das suas respectivas protagonistas que deram vida à mesma.) é um elemento constituinte do sentimento de identidade. blusa amarela e saia 4. entrou o partido Movimento Para Democracia (MPD). com o PAICV5. Faz muito tempo que faço.. Fomos chamadas muitas vezes e ganhamos sempre. até 1990. recriadas pelos sujeitos no seu cotidiano. Com a abertura política em 1991. tal como a discussão da memória e identidade social discutida por Michel Pollack (1992) permearão a discussão. 43 . Falar do grupo atual implica falar da trajetória da prática do batuko. começou-se a fazer concursos para eleger o melhor grupo de batuko. dentro do léxico do Crioulo. Tínhamos uniforme. 1992: p. Éramos cerca de 13 batukadeiras. vigorou em Cabo Verde. de (re) construção da identidade social e cultural desta comunidade. 5. sob orientação do Partido Africano para Independência de Cabo Verde (PAICV). Estórias no sentido émico da palavra. Depois da independência. A independência de Cabo Verde foi em 5 de Julho de 1975. grifo meu). por meio das heranças socio-culturais. vai ganhando forma nas idas ao campo.ber fazer inventadas. O batuko como produzindo e sendo produzido pela memória social da comunidade de São Martinho Grande e de como esta memória. Eu e a cantadeira.5. na linha de Pollack “(. o sistema de partido único. tanto individual como coletiva. possui um caratér de conformação de valores sociais. às tensões internas com o coordenador e o presidente. Depois que Lara emigrou. Fátima junto com Lara é construída pela comunidade como marco da memória do fazer batuko e em decorrência disso. quando ela referindo-se ao grupo atual. Na verdade. a aprendizagem. No tempo de PAICV. o batuko ficou desvalorizado. como fica bem visível na narrativa da Fátima. na linha da representação social. Ao mesmo tempo em que. reapropriada por estes e não uma memória coletiva à lá representação coletiva de Durkheim que vê esta como sendo exterior aos indivíduos e coercitivo. bons momentos aqueles. de bemfazer o batuko. as formas diferenciadas e legitimas do fazer batuko. Esta narrativa que traduz uma memória vivencial do batuko. ficamos sem cantadeira e nosso grupo enfraqueceu” (Fátima). remetendo a uma passado vivido. construir e experienciar sua prática do batuko hoje 44 . Foi muito bom. mas analisar esta mais na linha de uma memória social. o batuko era bastante valorizado mas com a entrada do MPD. a uma memória experiencial. Ela me trouxe a figura da Lara como o elemento que possibilita costurar os vários momentos experienciais do batuko. que se traduz em uma voz que critica. ao mesmo tempo em que. ela resignifica seu presente. Dessa forma. essa legitimidade cria sujeitos que detendo um saber-saber as permite à la De Certeau (2003) artes de fazer.marron. seu momento presente. do fazer batuko durante os anos 80 e 90 apareceu na fala da Fátima quando a questionei sobre o fazer do batuko. ambas possuem uma legitimidade (corporificando em forma de respeito a este saberfazer) conferida pela comunidade. que demarca as artes do fazer. esta memória vai sendo (re)construída nas práticas sociais pelos sujeitos sociais. se apropriam destes quadros sociais de memória. pois com a criação desse grupo novo. as batukadeiras. a todo instante este passado. para construir a sua trajetória do fazer batuko nesse presente-presente. 45 . Sendo que Lara é. por meio de narrativas evocativas. em cuja narrativa. Este passado-presente que seria o tempo narrativo da Mimese I em Ricoeur (1994) se configura nesse caso em um passado vivido. o qual na Mimese III. pois ela mesma retoma este e a si mesma inscrita nessa memória coletiva para solidificar e relativizar a sua presença no grupo. de pré-figuração que vai sendo trazido pelas batukadeiras na Mimese II. os quadros sociais (os lugares vividos de sociabilidade. Lara aparece como uma guardiã da memória. que se apresenta corporificada em forma de artes de fazer. nós somos 18. ao mesmo tempo. Na verdade. de reciprocidade) são reinventados. reiterando. o momento de configuração das suas práticas cotidianas. de troca. presente-futuro à la Ricoeur (1994). as várias temporalidades que vão ganhando presença: passado. objeto e sujeito dessa apropriação. este tempo pré-configurado vai sendo reconfigurado.é sempre em dialogo com essa experiência passada. é na mimese II. presentepresente. esse instante da configuração que o momento de evocação do presente-passado e do presente-futuro se realiza. “Agora com apoio de Óscar e Otávio levantamos de novo. Eles têm nos ajudado muito mas Otávio disse que temos que diminuir o número de batucadeiras. tendo em conta o contexto social e as exigências do fazer batuko pra se enquadrar numa produção de produção musical. como tempos narrativos presente-passado. presente e futuro são (re) construídas pelos sujeitos sociais nas suas práticas cotidianas. Assim. esticam as pernas e colocam tchabeta nestas e batem com as mãos. A figura do Otávio. produzindo um som forte. como pude ver nos ensaios. As mulheres sentadas em circulo ou arco. Ele só aparece pra ensaiar conosco quando tem um show marcado. minha filha. as músicas ensaiadas são exclusivamente dele (na maioria das vezes). Óscar e Otávio disseram que iam nos dar uniforme. Nair. mas 6 é muito pouco para fazer tchabeta6. nós sempre fomos um grupo grande. de formá-las para serem futuras artistas”. depois as pessoas foram morrendo. davam ku torno.ele quer que fiquemos somente 6. Eu não concordo com isso. Naquele grupo antigo. com intuito de este “educá-las. “Otávio há muito tempo não aparece. por vezes estridente. Um instrumento de percussão semelhante a uma almofada. tem que ter mais gente. sem possibilitar as batukadeiras um amadurecimento das suas próprias músicas. De todo modo. quando Otávio participa (já que ele não tem grupo de batukadeiras que lhe possa acompanhar nos shows). agora fazer um grupo pequeno não faz sentido. Por outro lado. (Fátima). Lúcia. particularmente quando Marcos enfatiza a presença do Otávio no grupo. neste novo que apareceu agora só permaneceu eu. feito com material de couro sintético por fora e por dentro com tecidos de jeans velhos. Claudia. ao mesmo tempo em que. 46 . também denominado de tchabeta. Claudia. a sua figura nos leva a problematizar esta relação entre ele e as batukadeiras. mas precisamos de apoio. Agora estamos iniciando. mas até agora nada. Lúcia e Neta. desses que estavam nesse grupo. é construída pelas batukadeiras como um mediador que as permite um agenciamento no mundo da musica. já 6. outras desistiram. nós éramos 13. Nair. vamos ensaiando com ou sem Otávio Não precisamos dele”. ) organizada sob forma de desfile dançante ao som do ritmo de tambores e cornetas suportando a música uma entoação própria”. Com a independência. como a Tabanca7. a tabanca é uma “manifestação cultural que tem o seu inicio por ocasião das comemorações de Santa Cruz (3 de Maio). terminando a 29 de junho (dia de S. como narra Fátima. de construção da Nação cabo-verdiana. populares que durante a colonização eram proibidas. tanto o batuko. mas ele nem consideração. nossos companheiros. 29 anos).. Pedro). pois ele cantava bem. Tinham uniforme: blusa amarela e saia castanha. 9. Constitui uma atividade (. tem conosco” (Nair. cuja performance fazia com que elas ganhassem frequentemente. A gente vai de boa vontade. nossas casas para ir participar em shows e ele nem nos remunera. para “dar voz às mulheres” cabo-verdianas e lutar pela sua emancipação. 8. Segundo Tavares (2006:48). A organização. não tem grupo. tinha um bom grupo. “Teve uma vez fomos cantar para concorrer com um cantor de Achada Grande9 e não estávamos muito firmes de que íamos vencer.. Estávamos 7. criada a 27 de Março de 1981. dentro do PAICV . o qual materializava a condição de grupo e diferenciava de outros potencias e possíveis grupos de batuko. data em que é mandada celebrar uma missa. Bairro da Cidade da Praia localizado no perímetro urbano. 47 . por meio da ação do PAICV houve todo um discurso e valorização das práticas culturais. junto com a criação do Estado enquanto entidade jurídico-política. era a construção desse ideário de identidade nacional. Ele manda avisar com Solange sempre em cima da hora e tu sabes que aqui todo mundo tem seus afazeres e às vezes temos que deixar nossos filhos.que como ele mesmo diz. na verdade. Vários concursos de batuko foram organizados pela Organização das Mulheres de Cabo Verde (OMCV8) nas várias regiões da Ilha de Santiago a fim de se eleger o melhor grupo de batuko e o grupo de São Martinho Grande. ele era bom. O que se pretendia. Em meados de Janeiro. pois talvez não conseguíssemos concorrer com ele. Lúcia. sentadas nos dois sofás que se encontravam dispostos na varanda da casa. como fazer e onde fazer e porque fazer. sendo que estas tensões são em parte desencadeadas por fatores geracionais. Fátima aparece também como guardiã da memória da comunidade que registra as práticas tradicionais do fazer batuko e tem legitimidade no grupo ainda que exista uma tensão entre as formas tradicionais de se fazer batuko que esta defende e as formas modernas que as outras batukadeiras defendem. Fátima se dirigiu para mim e me perguntou se eu não queria que elas fizessem batuko pra mim. 48 . queríamos que fosse livre. Fátima e Neta. Na verdade. ao mesmo tempo em que. um das batukadeiras. o batuko era bastante valorizado mas com a entrada do MPD. Por conseguinte. Faz parte do grupo das ilhas que fica geograficamente no sul do arquipélago. (. No tempo de PAICV. Foi muito bom. aqueles. que se traduzem na forma de se conceber o fazer do batuko no grupo: quando fazer. o batuko ficou desvalorizado”. junto com Claudia. Mas no fim sempre conseguimos ganhar..com medo. Face 10. Nisso. formas do batuko com particularidades diferenciadas das outras que não passaram pela mesma experiência do fazer batuko. estas tensões traduzem também retratos temporais de um tempo vivido (tempo passado) que produzem e são produzidas por um imaginário social do grupo de referência das batukadeiras. não quisemos que as pessoas pagassem para nos ver.. Fátima para além de ser a mais velha do grupo e por fazer parte do antigo grupo está a todo instante trazendo por meio das suas práticas e narrativas. estava na casa da Marta. ao que aceitei. em um dia de Sol. bons momentos. o grupo de Sotavento.) Fomos chamadas para ir à Ilha do Maio10 fazer show. dia do ensaio.à minha reação positiva. é de amor. tal como Claudia. 49 . que iam ensaiar no domingo e. de amigo. 12. elas pararam de bater as palmas e de cantar. menos Fátima que face à desistência delas as chamou de novo para continuar fazendo batuko ao que Lúcia retorquiu que não. Trajetória diferente das batukadeiras com as quais fiz a 11. Nenhuma aceitou. o formato roda ou em arco. nossa amizade. ao que Fátima insistiu para que batessem somente com as palmas das mãos. é di amor. como não traziam tchabeta. cerca de 13. O retrato que Fátima traz do batuko vivenciado no grupo dos anos 80 possui outra conotação daquele vivenciado pelas outras batukadeiras do grupo atual. que estavam cansadas para fazer tchabeta nesse momento. iam cantar para mim. nu ta agradeceu bu amizadi e nu ta flau ma nós també nu tem cheu considerakon para bo”11 Instantes depois. armavam o terreru12 e faziam batuko até altas horas. Lúcia seguiu o exemplo da Fátima e começou também a bater palmas e a cantar junto com esta. ao anoitecer. conforme o contexto e a audiência. reiterando que no domingo. “No tempo de OMCV” e quando era mais moça. reclamaram com ela. “ A Fátima tem manias de coisas antigas. Neta e Marta que batiam as palmas e cantavam em uníssono a seguinte música: “Indira nu tem 3 cusas pam flabu. dos anos 2006. começou a bater palmas e disse para as outras me fazerem batuko. iam fazer batuko. agora coisas mudaram e o batuko é diferente”. Agradecemos tua amizade e nós também temos muita consideração para ti”. di amigo nós amizade. as batukadeiras. Termo émico atribuído ao cenário do batuko. Tradução de Crioulo: “Indira temos três coisas para te falar. todos os dias no final da tarde. cuidar das crianças. mas sempre arranjávamos um tempo para fazer batuko”. já que estas só no domingo ensaiam o batuko . Mas Fátima refuta dizendo: “Não é que agora elas têm menos tempo.etnografia. ir à fonte pegar água. No nosso tempo. era muita lida na casa. muito trabalho. 50 . argumentando que voltam cansadas do trabalho e depois têm que ocupar com tarefas domésticas. caminhar muitos km para apanhar lenha para cozinhar. trazendo junto uma idéia de que a dinâmica era ensaio e não batuko como sociabilidade o qual tem eco no imaginário da Fátima e outras batukadeiras da sua geração. nós também. era muito sacrifício também. Petrópolis. In: Estudos Históricos. São Paulo. POLLACK. Editora Vozes. Volume I. Vértice. Aspectos Evolutivos da Música Cabo-Verdiana. São Paulo. Centro Cultural Português / Instituto Camões. TAVARES. RICOEUR. Tempo e Narrativa. “Memória e Identidade Social”. Maurice. pp. A invenção do quotidiano: Artes de fazer. Manuel de Jesus. 1994. Paul. 2003. Tomo I.° 10. 9ª edição.Referências DE CERTAU. 2006. Vol 5. 51 . A memória coletiva. Praia.200-212. Michel. Papirus Editora. n. 1990. 1992. HALBWACHS. Rio de Janeiro. Michel. 52 . Refiro-me ao AFS Intercultura Brasil. buscando. 53 . Cabe ressaltar que este estudo enfoca. principalmente. segundo alguns autores apresentados na disciplina Individualismo.2 Serão utilizadas. O termo “intercâmbios culturais escolares” será utilizado por ser o termo mais encontrado em materiais de divulgação de agências e de organizações que oferecem esses programas de intercâmbio. mais precisamente. 3. Essa disciplina foi realizada na Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. assim. reflexões realizadas a partir de breve etnografia de experiências de intercâmbio cultural escolar realizados por uma organização específica3 de jovens de 15 a 18 anos. que é uma organização filiada ao American Field Service. durante o 1º semestre de 2008.“A gente se abre para o mundo” Tornando o estrangeiro familiar e estranhando o familiar por meio de práticas cotidianas intercâmbios culturais Denise Silva dos Santos Introdução A proposta deste paper é abordar a temática de intercâmbios culturais escolares1 . também é utilizado o termo “intercâmbio intercultural”. “high school” ou “colegial”. Ana Luiza Carvalho da Rocha. Sociabilidade e Memória. um maior entendimento antropológico dessas experiências de intercâmbio. “escolar”. Cornelia Eckert e Dra. as obras em que Simmel e Schütz trabalham o tema do estrangeiro e a teoria dos papéis sociais de Goffman. 2. Além dessa forma. 1. ministrada pelas professoras Dra. Simmel e Goffman Como sugere Teixeira (2000). Os participantes estrangeiros que vêm para o Brasil. participantes brasileiros que já vivenciaram essa experiência em diversas partes do mundo e famílias brasileiras que receberam estudantes intercambistas. freqüentam escolas regulares de 2° grau juntamente com jovens da mesma idade e se inserem na comunidade local. e entrevistas presenciais e via Internet com ex-participantes brasileiros e estrangeiros.A partir das narrativas dos “atores/participantes”: estrangeiros que vivenciaram essa experiência no Rio Grande do Sul. assim como aprenderiam ou não como partilhar desses signos e sentidos para se sociabilizar e se sentir parte desse novo contexto. moram com famílias brasileiras. Para a concretização deste estudo. 54 . buscarei contextualizar algumas reflexões e indagações que foram levantadas sobre esse tema. análise de materiais de divulgação sobre o programa – impressos e virtuais. Encontros promovidos pela instituição AFS Intercultura Brasil para os participantes da experiência – famílias que hospedam os estudantes intercambistas e os próprios estudantes. propondo que eles aprendam a dominar os códigos de linguagem e de conduta do país em que se encontram por meio das interações realizadas no cotidiano. durante cerca de 11 meses. Simmel refere que o termo 4. O Intercambista e o Estrangeiro: Reflexões sobre o campo e algumas questões teóricas a partir de Schütz. A proposta dos programas é a de inserir esses jovens nessas comunidades. foram realizadas observações participantes realizadas em orientações/treinamentos interculturais4 . Seria então por meio da sociabilidade cotidiana que esses jovens buscariam compreender os significados e sentidos dos atores com quem estão se relacionando. O texto de Simmel foi publicado em 1908 e influenciou muitos estudos posteriores no chamado campo “sociologia do estrangeiro”. A autora comenta: O que caracteriza o estrangeiro simmeliando é que ele é alguém que vem de fora. não aspirando ser assimilado. O ser/estar estrangeiro – no sentido de sentir-se parte.stranger remete não somente ao estrangeiro. Durante o período em que fica no país hospedeiro5 . mas preservando. dominar códigos comuns de uma comunidade da qual ele nunca pertenceu antes. esquisito. singular. possui uma forma mais específica de interação” (p. ele ambiciona deixar de ser reconhecido pelo grupo como estrangeiro. 23). se estabelece mas não se torna membro pleno do grupo. podemos pensar que o estudante de intercâmbio possui uma peculiaridade. a situação vantajosa de poder ser 5. Hospedeiro é um termo utilizado pelos participantes do programa para referir-se ao país. desconhecido. afinal ele é um estrangeiro dentro do contexto brasileiro. 55 .183). Ao se pensar nas experiências de intercâmbio escolares. ao mesmo tempo. estar próximo e ao mesmo tempo distante – é abordado por Simmel (1983): “o estrangeiro é um elemento do próprio grupo. sua interação positiva com o grupo: estar distante e próximo simultaneamente (p. Porém esse quando utilizado nas traduções em português e em espanhol é concebido como estrangeiro. porém recebe a “incumbência” de ser como um brasileiro. às escolas e famílias que recebem os estudantes estrangeiros intercambistas. atendo-se mais ao significado espacial relacionado ao termo. fazer parte de uma família local. mas também a alguém que é estranho. esta é sua condição de pertencer. quando uma está na presença de outras. Dependendo da situação pode manifestar que entende mais ou menos o português. A condição de “observar o observador não observado” (p. o observador provavelmente levará vantagem sobre o ator e a assimetria inicial do processo de comunicação com toda probabilidade será mantida” (p. costuma manipulá-los conforme lhe seja interessante. na qual ele negociaria sua “identidade nacional” e assumiria uma identidade estranha a sua. a de “estrangeiro”. valendo-se de sua condição de estrangeiro. pois. Essa situação está explícita na fala de uma estudante alemã.16) abordada por Goffman (1975) pode aplicar-se à condição do intercambista.. Goffman (1975) traz que a capacidade de “dar impressão” envolveria duas espécies diferentes de atividades significativas: a expressão que ele irá transmitir – essa abrange os símbolos verbais.18).12). Então. em geral. “que os outros podem considerar sintomáticas do ator. não domina os códigos de comunicação. ou seus substitutos. quando passa a compreendê-los e a atribuir-lhes sentido.) sejam quantas forem as etapas que ocorrem no jogo da informação. inicialmente. após estar há quase 8 meses morando em Porto Alegre: “Todo 56 . falando num português praticamente sem sotaque. há alguma razão que leve a pessoa a atuar visando transmitir às outras a impressão que ela intenta transmitir. A proposta do intercambista seria vivenciar uma experiência. Como sugere Goffman (1975): “(.. deduzindose que a ação foi levada a efeito por outras razões diferentes da informação assim transmitida” (p. mas.12) –. sendo entendida como a “comunicação no sentido tradicional e estrito” (p. Esse se encontra em vantagem. tendo como objetivo tornar-se como um nativo. e a expressão que ele emitirá – essa inclui uma ampla gama de ações.apreciado na condição de estrangeiro. Quando observamos um estrangeiro. digo que sou de Igrejinha6 e todos acreditam!”. Por outro lado. Afinal. A função do modelo cultural seria eliminar a árdua investigação. pressupõe o resultado correspondente. fornecendo condutas já prontas a serem utilizadas. nascida ou criada dentro de um grupo. caso se deseje obter um determinado resultado. demonstrando em sua expressão facial orgulho por sua capacidade de “tornar-se como um nativo”. Dentro do sistema de referência que ele absorveu do seu grupo natal. a receita também serve como um esquema de interpretação: quem procede como indica uma receita específica. Igrejinha é uma cidade no interior do Rio Grande do Sul localizada numa região de colonização alemã. verificamos que é uma pessoa que se encontra em um contexto onde aquele modelo cultural ao qual ele estava habituado não pode ser utilizado. No entanto. necessariamente. Essa “habitual forma de pensar”. deve-se proceder como indica a receita prevista para esse fim. Schütz (2003) sugere que cada pessoa. e essas orientações acabam lhe servindo como um guia absolutamente válido para as situações que se apresentam habitualmente no mundo social. 57 . Essas orientações/receitas funcionariam em parte como um preceito geral para a ação e lhe orientariam para conseguir o que deseja. vai. como poderíamos chamá-lo. é natural e lógico que o estrangeiro comece a interpretar seu novo ambiente social segundo os termos da sua “habitual forma de pensar”. aceita e adquire os padrões do modelo cultural que lhes são “passados”. 6. consta como idéia já pronta o modelo de referência como válido para o novo grupo – uma constatação que. corresponde à idéia de Max Sheler de uma “concepção relativamente natural do mundo”. Ela falava com um sorriso no rosto.mundo acha que eu sou brasileira. 2. Nesses encontros. ed. se confirmar inadequada. Colocar pessoas para conviverem juntas sem partilharem muitos signos e símbolos comuns acaba fazendo com que nas interações surjam muitas experiências frustradas de comunicação. Michell R. vol.rapidamente. No caso dos estudantes. organizadas pela instituição AFS. que também estão participando da mesma experiência de intercâmbio. Bélgica. Santa Maria. Finlândia. Os estudantes costumam proceder de países. Austrália. 1999). como: Nova Zelândia. Suécia. o estudante de intercâmbio é inserido numa família e na comunidade local para incorporar as práticas cotidianas do meio do qual ele passa a fazer parte. No estado do Rio Grande do Sul. page 1-17. entre outros. Porto Alegre. Estados Unidos. Durante o ano de intercâmbio. eles partilham suas experiências em treinamentos interculturais7 . e 7. Itália. China. a proposta de intercâmbio cultural tem como questão central o contato entre pessoas por intermédio das experiências cotidianas. 58 . alojados em diferentes cidades. Indonésia. Tailândia. entre outras. atividades de orientação e de trocas de experiências. (Hammer. Hammer (1999) argumenta que os treinamentos interculturais se constituem de atividades que prepararam as pessoas municiando-as de instrumentos e condições para trabalharem e viverem efetivamente envolvidas numa cultura estrangeira. Intercultural Press. As famílias recebem os estudantes. Canela. os jovens têm um freqüente e intenso contato com outros estudantes de países diferentes. Para essa imersão cotidiana. Japão. costumam haver cerca de 20 a 35 intercambistas por ano.. Essa situação acaba se constituindo num cenário fértil para muitas dificuldades de comunicação. Alemanha. como: Rio Grande. Santa Rosa. In: Intercultural Sourcebook: Cross Cultural Training Methods. Cross – Cultural Training: The Research Connetion. eu tenho que escutar português. mas é que muitas coisas são diferentes e eu não sei direito o que eu devo fazer.. eu tenho que pensar muito durante todo o dia.... e os dois dormiam no mesmo quarto. Intercambista: Eu entendo que eu vim para cá para ser brasileiro. A situação escolhida para ser dramatizada foi: “O estudante tinha um irmão hospedeiro mais ou menos da mesma idade. 59 . O Sociodrama pertence ao conjunto de estratégias utilizadas no Psicodrama. ambos os sexos.. adolescentes entre 15 e 18 anos. Eram cerca de 20 participantes estudantes intercambistas na atividade. a comunicação normalmente é realizada por meio da comunicação não-verbal. O irmão finlandês estava começando a ficar irritado e incomodado com a situação. ele normalmente ficava puxando conversa e fazia todo o tipo de barulho para o outro. Itália. Porém ele não sabia como resolver o problema. O irmão brasileiro gostava de dormir mais tarde. Irmão Hospedeiro: Então você não tem que fazer tudo. Isso não quer dizer que eu não goste das coisas. pois o irmão brasileiro não se dava conta da situação”. que desenvolveu o Psicodrama. É difícil para mim. Eu estou muito cansado. Segue abaixo o trecho de um diálogo de uma atividade de sociodrama8 . Só é difícil para mim tudo isso. Alemanha. Quando o irmão brasileiro chegava no quarto. 9. Intercambista: Eu gostaria. Nos primeiros dias. Turquia e Finlândia). Estados Unidos. mas.. mas você também tem que me entender.. realizada durante uma atividade de orientação com um grupo de intercambistas que estava há cerca de 2 meses no Brasil. de diversos países (como Bélgica. sendo um recurso técnico a partir do qual é possível trabalhar um tema comum ao grupo. O Sociodrama é um método de trabalhar com questões grupais por meio da proposta de Jacob Levy Moreno. falar português. O intercambista finlandês gostava de dormir mais cedo.esses normalmente sequer possuem a capacidade de se comunicar em um idioma comum.9 8. estava acostumado assim desde seu país. mais do que reconhecer o “outro”. no Brasil. para o estrangeiro.o que eu mais sentir saudade do Brasil eh comida! No primeiro eu nem queria comer o feijão e agora to morrendo de vontade de comer! (trecho do depoimento dado via-email da exparticipante tailandesa que realizou intercâmbio na cidade de Canela no decorrer no ano de 2006. a cultura do novo grupo tem a sua história particular. Tradução livre realizada pela autora do paper do texto original em francês do Schütz (2003). Como aborda Schütz (2003). Atualmente faz cerca de um ano e meio que ela retornou. o jovem. expressou em um depoimento suas inquietações: a sua saudade do seu cotidiano no Brasil e o receio de como seria o seu retorno ao contexto cultural tailandês. 60 . Schütz (2003) traz que o estrangeiro após testar a utilização do seu modelo cultural percebe que este “já não funciona como um sistema de receitas testadas à nossa disposição. a uma situação histórica específica” (p.Ao se deparar com essa nova realidade. isso mostra que a sua aplicabilidade se limita. E também. às vezes quero beijar e dar abraço when I meet people. antes de retornar para seu país. Atualmente ela se encontra na Tailândia e tem 17 anos). é diferente”. e essa história é mesmo acessível. “Porém. mas as pessoas aqui não. Uma jovem tailandesa de 17 anos. era assim o jeito que nos cumprimentávamos. esta cultura não consegue formar uma parte integrante 10. e na sua narrativa ela demonstra seus sentimentos: Isso porque as pessoas no Brazil vê que são coisas normais. passa a “se reconhecer” com seus padrões de interação no cotidiano – “no Japão.e achei que o jeito que as pessoas aqui GREET eh muito frio. na verdade.19)10 . mas as pessoas aqui só levantar mão e sorrir gently. as 61 .da sua biografia. Para aprender as coisas dos brasileiros. Só o estilo de vida de seus pais e avós se torna para um homem a base do seu próprio modo de vida. Esses padrões. pois ele disse coisas certas. ressignificariam e se aprenderiam novas formas de interações distintas das aprendidas no seu contexto nacional. Durante a sessão de sociodrama realizada no treinamento. como tem sido feito com a história do seu grupo origem. regional e local. a participante que desempenha o papel do intercambista comenta ao referir-se como está se sentindo: Sentimento Intercambista: Agora eu estou muito confusa.” Será que se poderia pensar o mesmo no caso desses estudantes adolescentes? Será que não haveria a possibilidade de eles adquirirem/incorporarem os sentidos dessa nova cultura como parte de sua biografia e de seu modo de vida? Considera-se que a rotina pode ser entendida como algo que orienta o sujeito e. passam a ser questionados e ressignificados pelos estudantes intercambistas. um papel a ser desempenhado no cotidiano. Eu não sei o que fazer agora (a participante faz este comentário após o irmão brasileiro ter dito que ela precisa agir como um brasileiro). eu estou aqui para ser brasileiro. ao mesmo tempo. assim como os papéis sociais que o sujeito desempenha e as formas de comunicação que ele aprende como sendo adequadas e efetivas para transmitir a sua mensagem aos demais do seu grupo. Questões como a importância do jogo dos papéis sociais. exige um desempenho. essas certezas. Afinal seria por meio das interações cotidianas entre os estudantes estrangeiros e a comunidade local que se construiriam. interações sociais, o jogo cênico que se dá socialmente e a presença ou não de intencionalidade nas ações dos atores fazem com que reflitamos se podemos pensar se haveria ou não domínio dessa intencionalidade quando não há muitos sentidos e significados partilhados pelos atores envolvidos? Quando se pensa na experiência de um estrangeiro buscando ser como um nativo, ou seja, um intercambista estrangeiro buscando ser como um jovem brasileiro, buscando incorporar sentidos, entendimentos e condutas de jovens da sua mesma idade, percebe-se pela etnografia que durante o intercâmbio, muitas vezes, a identidade de intercambista torna-se mais forte e reconhecida pelos membros da comunidade local, que recebe esse estudante, do que a identidade do país de origem desse. Afinal o que pressupõe essa identidade de intercambista? Porque essa identidade, status, acaba muitas vezes se sobrepondo à identidade nacional desses jovens? Essa é uma questão que permeia quase toda a dramatização do sociodrama realizado durante o treinamento. Percebe-se que os estudantes participantes se perguntavam em diversos momentos da atividade: qual seria o papel que deveriam desempenhar? Após a realização da dramatização e na etapa do compartilhamento11 da experiência, a participante colocou: 11. No Sociodrama, assim como no Psicodrama, haveria três etapas da sessão como aborda Gonçales (1988). Essas seriam: 1º. Aquecimento: 2º. Dramatização: e 3º. Compartilhamento. Nessa última etapa, cada participante do grupo expressa inicialmente o que lhe tocou ou emocionou na dramatização. Posteriormente, são feitos os comentários sobre o que ocorreu. (Gonçalves, C., Prática Psicodrámatica, cap. 10, (p.97-102) In: Gonçalves, C., S., Almeida, W., C., Wolfe, J., R., Lições de Psicodrama, São Paulo: Ágora, 1988). 62 Intercambista: Agora eu me sinto melhor, porque eu sei o que ele pensa. Eu sei que ele quer que eu seja como um brasileiro, essas coisas... Eu acho que no futuro em muitas situações serão melhores porque eu sei que muitas coisas do que ele faz não significa que ele seja rude, mas que o fato dele não perguntar não quer dizer que ele seja mal educado. Tudo pode ser entendido de um jeito diferente. (...) Irmão Brasileiro: Talvez na sua cultura perguntar as coisas antes de fazer algo seja educação, talvez na sua cultura... Mas na nossa cultura pode ser diferente, e você está aqui e não poderá mudar nossa cultura. Tem coisas que você pode entender e outras que você não pode entender na cultura, tem que tornar-se parte dela. Mesmo que você possa não entender-la, e até mesmo sem entender-la. Rotina, cotidiano, comunicação e globalização: algumas contribuições de outros autores sobre a temática do intercâmbio e do estrangeiro... Segundo Giddens (1984): Se o sujeito só pode ser apreendido através da constituição reflexiva de atividades diárias em práticas sociais, não podemos entender a mecânica da personalidade separada das rotinas da vida do dia-a-dia, através das quais o corpo passa e que o agente produz e reproduz (...) (p.48). De acordo com o autor citado acima, a rotina faria parte do agente e da continuidade de sua personalidade. Isso ocorre devido ao seu percurso, nos caminhos das atividades cotidianas, e também das instituições da sociedade. Faz-se necessário um exame da 63 rotinização, pois esse provavelmente “deve o afirmar, dota-nos de uma chave mestra para explicar as formas características de relação do sistema de segurança básica com os processos reflexicamente constituídos inerentes ao caráter episódico dos encontros” (1984: p.48). Os estudantes estrangeiros em meio à participação dos cenários de famílias locais encontrariam-se desprovidos desses referenciais da rotina cotidiana? Como poderia ser o processo do agente em busca de se sentir parte de uma rotina de uma comunidade, de uma rede de relações sociais, às quais ele ainda não se identifica e deve, compreender, e atribuir significado? Essas famílias também estão ressignificando suas práticas a partir da inserção desse novo membro familiar, o qual pretende assumir o papel social de filho, de irmão dentro dessa família, além do papel de jovem estudante intercambista estrangeiro. Berger, P., Luckmann (1983) abordam que “de fato, não posso existir na vida cotidiana sem estar continuamente em interação e comunicação com os outros” (p.40). Inicialmente, essa interação com a comunidade local se dá de forma muito precária e limitada, com muitas situações de dificuldade de comunicação, ainda que haja boas surpresas de comunicações consideradas com sucesso. Com a chegada da Internet, há também a possibilidade de comunicação virtual em tempo real, quase que instantânea com a comunidade de origem; algo que antigamente não havia nos intercâmbios. Há questões presentes na globalização que estão fazendo parte das experiências dos participantes. Uma jovem de 11 anos que iria receber uma estudante de Hong Kong me relata que já estava em contato quase diário, via Messenger e Skype, com a irmã estrangeira que estava para chegar cerca de dois meses antes de essa chegar. As duas já estavam estabelecendo uma 64 a conduta de um estrato particular de jovens acaba só sendo entendida a partir da mundialização. as identidades sociais acabavam por ser associadas a grupos: “que ocupavam um espaço – país. A partir das observações. nos contextos de maior contato entre jovens em vez dos signos e símbolos comuns à juventude globalizada? Oliven (2007) aborda que. Como poderíamos entender que essa identidade nacional seja mais acessada e reforçada. tênis.89). memórias e tradições” (p. uma cidade ou um bairro – e nele projetavam valores. o estranho ao grupo. t-shirt. mas afinal quando se inicia a experiência de intercâmbio? Ortiz (1999). com esses símbolos e signos – “decantados pelo processo de globalização” (p. Poder-se-ia tradicionalmente definir uma cultura a partir dos limites. percebia-se uma grande preocupação em se demarcar fronteiras. delimitar quem era de dentro.89) – em situações de maior contato entre eles as identidades culturais associadas à nacionalidade se sobressaiam nos seus discursos.. e separar o que era de fora.)” (p. o que poderia ser ou não considerado parte de determinada cultura.. a partir do que caberia ou não em determinada cultura. a partir de referências desterritorizadas como. Nesse contexto. Ele diz que “nas sociedades contemporâneas. quem fazia parte. fazia-se necessária a delimitação do território. em situações em que se reuniam esses jovens de diferentes partes do mundo. ao se referir à globalização em termos de modernidade-mundo. como a juventude.comunicação e um contato virtual antes da experiência propriamente dita. estabelecer qual 65 . Para isso. até muito pouco tempo. jeans. traz que não faria sentido falarmos em “cultura global” e muito menos em “identidade global”. ídolos de rock (.235). Porém o autor argumenta que o processo de mundialização da cultura produz novos referenciais identitários. pode-se perceber que. quando chegam em outros territórios. de aprender com o diferente. que o cosmopolitismo seria. há o seguinte slogan: “estude em outro 66 . Sahlins (2001) sugere que a marca da diferença cultural poderia ser entendida como uma resposta à globalização e ao mundo capitalista. as linhas das identidades se apagam ou são traçadas de acordo com novos deslocamentos e interesses. costumes. uma orientação. Sugere. valores. “cidadão do mundo”. afinal. e. ainda. idiomas. de se abrir para o mundo. este último sendo o termo utilizado em materiais de propaganda. as pessoas viajam e levam consigo suas idéias. costumam associar essa experiência a uma possibilidade de se sentir parte do mundo.era o idioma. estrangeiros. 2007). os símbolos e os costumes utilizados por esse grupo.253). possuem características próprias na atualidade globalizada. caracterizando-se por uma busca de contrastes em oposição à uniformidade. No site do AFS Brasil. assim como as organizações e agências promotoras desses intercâmbios. acima de tudo. assim como ter aprendizagem e educação intercultural associada a essa idéia de cidadão mais cosmopolita. enfim. elas se adaptam. Esses jovens e essas famílias participantes. Porém as pessoas não se fixam diretamente a territórios. Esses imigrantes e viajantes. Ele traz que a perspectiva do cosmopolita “precisa envolver relacionamentos com uma pluralidade de culturas consideradas entidades distintas” (p. Hannerz (1994) aponta a distinção entre a identidade cosmopolita e o local. uma abertura para experiências culturais divergentes. assim como aprendendo uma nova forma de estabelecer relações nesse cotidiano (Oliven. roupas. Atualmente o mundo está cada vez mais interligado econômica e politicamente. Os viajantes e os imigrantes acabam aprendendo a língua desse novo país e aceitando parte dos hábitos desse país. adaptar-se às necessidades e adotar novas maneiras de pensar e de se comportar. Tornando o familiar estrangeiro e o estrangeiro familiar O sentimento de se sentir parte da família hospedeira é mais freqüentemente relatado por uma ex-participante de mais de 20 anos. Yarmouth: Intercultural Press. 1993). o ser um cidadão mais cosmopolita. Tanto ela como a filha 12. habilidades que seriam adquiridas por meio da “aprendizagem intercultural”12 .. Mais uma vez é retomada a idéia da construção de uma “nova identidade”. amplie seus horizontes e descubra o mundo que cabe dentro de você”. apreciar e valorizar as coisas e as pessoas diferentes sem deixar de reafirmar sua própria identidade individual e cultural (Hansel.) quando fui embora minha mãe americana me deu a chave da sua casa. que se encontrava no aeroporto. que possui habilidades para lidar com as diferenças. Seu caminho: avaliar com cuidado. ao se referir à experiência: “(. B.. esperando a chegada da estudante de um país oriental. Atualmente é professora. The exchange student survival kit.. 67 . que irá ampliar a sua visão de mundo. e suas três filhas também realizaram intercâmbio.país. Um cidadão capaz de se desterritorizar e territorizar ao mesmo tempo. na experiência de intercâmbio. e poderia entrar na casa quando eu quisesse” (ex-participante uruguaia que viajou para os Estados Unidos. Segundo Hansel (1993). assim como sua família já recebeu um intercambista em sua casa). o ser “cidadão do mundo”. o cidadão que irá carregar o mundo dentro dele. comenta que se motivou muito para receber uma estudante devido ao contato que teve com uma estudante da Tailândia que estava na sua cidade. afinal eu era a sua filha. Tal atividade envolve a propensão individual a estar disposto. disse que eu poderia levar a chave. a Aprendizagem Intercultural consiste na disponibilidade de absorver a experiência de uma nova cultura e responder apropriadamente a essa. Uma mãe hospedeira de Antonio Prado. a qual ficaria na sua casa. Apenas não sabemos como designar a unidade pe13. o estrangeiro é sempre um homem sem história. Me sinti que sou meia brasileira meia tailandesa que as vezes eu penso como os brasileiros ia pensar mas também entendo os pensos (pensamentos) dos tailandeses. Como forma de preservar a narrativa da informante. Depois que eu voltei pro meu pais. 68 . Ele partilha na sua vida regular as condições comuns deste elemento. e ela expõe seu grande desejo de estabelecer contato com uma pessoa do outro lado do mundo. do ponto de vista do novo grupo. Schütz (2003) traz que. Caso esses não fizessem parte daquele contexto específico. que irá fazer parte da sua família. family. não iriam fazer sentido nenhum para os atores envolvidos como as famílias hospedeiras e o intercambista. Compartilhar a rotina do cotidiano. dizendo: “a gente se abre para o mundo”.de 11 anos demonstravam estar muito motivadas esperando a estudante. as vezes me deixou confusa com meu sentimentos ou pensados (trecho de depoimento dado via-email pela ex-participante tailandesa que realizou intercâmbio na cidade de Canela. trago do trecho de um depoimento sobre a experiência de intercâmbio de uma ex-participante13 : I learnt a lot in that year. durante um certo período de tempo. poderia ser uma possibilidade de se estabelecer comunicações e de buscar partilhar sentidos e significados. Atualmente. não se traduziu e apenas parte da ortografia foi corrigida. adaptation. e Simmel (1983) postula que o estrangeiro pode ser entendido como um membro orgânico do grupo. Em relação a isso. Trecho literal extraído do depoimento. por mais que não esteja organicamente anexado ao grupo. friends and many things I see the world in the different way. cultures. ela se encontra na Tailândia e tem 17 anos). culiar de sua posição, além de dizer que se compõe de certas medidas de proximidade e distância. Embora certas quantidades delas caracterizem todas as relações, uma proporção especial e uma tensão recíproca produzem a relação formal particular com o estrangeiro (p.188). Fazendo alusão à idéia de tornar desconhecido o que é familiar, naturalizado e considerado habitual, podemos relacionar isso à preocupação expressa por um pai brasileiro à espera da estudante intercambista da China, no aeroporto. Ele refere que a sua casa, agora, estaria organizada de uma forma diferente; afinal sua família seria diferente, pois haveria uma nova filha. A casa estava preparada para recebê-la: o quarto havia sido reorganizado, ele havia colocado mais um beliche no quarto das meninas (ele tem três filhas), e elas haviam se desfeito de coisas para poder liberar espaço no guarda-roupa. Ele também expressou preocupação – ao se dar conta enquanto falava comigo – em como faria para sair de casa aos domingos, afinal agora seriam seis integrantes na família, e ele só tinha um carro. As preocupações desse pai expressavam seu desejo de incorporar na sua rotina essa estudante estrangeira, tornando-a parte de sua família. Ele demonstrava ansiedade pelo seu tom de voz, sua expressão facial, enquanto esperava a jovem no saguão do aeroporto de Porto Alegre. Apesar de dizer que essa idéia havia partido de sua filha adolescente de 16 anos, ele traz que todos os demais membros também se motivaram a participar da experiência, sendo que uns mais e outros menos. Esse pai buscaria, dessa maneira, encontrar formas de tornar esse estrangeiro familiar. Schütz (2003) traz que o estranhamento e a familiaridade não se limitam ao campo social, mas representam categorias gerais 69 da nossa interpretação do mundo. Quando encontramos alguma coisa desconhecida, que sai do curso ordinário do nosso saber, começaríamos um processo de investigação, procuraríamos antes de tudo definir o novo fato com base nos nossos conhecimentos prévios. Isso porque buscaríamos captar o sentido; depois, iríamos transformar passo a passo o nosso esquema geral de interpretação do mundo, de tal maneira que esse “algo” estranho e seu significado passassem a ser compatíveis com todos os outros fatos e significados da nossa própria experiência e a constituir com eles um sistema coerente. Se conseguirmos transformar um conhecimento estranho em familiar/conhecido, o que antes era por nós considerado algo estranho, até mesmo um “problema”, transformar-se-ia em algo que passaria a fazer parte do nosso conhecimento seguro; dessa forma, conseguiríamos aumentar e ajustar a nossa reserva de experiências. O que nós nomeamos normalmente como processo de ajustamento social nada mais é do que um tipo especial desse processo, e por meio desse processo que deveria se submeter o estrangeiro ao novo. Conseguindo realizar esse processo de ajustamento social, o estrangeiro conseguiria tornar o que era estranho inicialmente em algo familiar e natural. Dessa forma, podemos pensar também que as famílias que hospedam estudantes intercambistas também passariam por esse processo ao compartilharem suas rotinas e seus cotidianos com esses jovens, podendo também exercitar o ato de tornar o estrangeiro familiar e, até mesmo, estranhar muitas questões que pareciam familiares e naturais. 70 Referências: AFS Intercultura Brasil. Quem somos AFS Brasil. Disponível em: <http:/ /www.afs.org.br/>. Acesso em julho de 2008. BERGER, P., LUCKMANN, T. A construção Social da realidade: tratado de Sociologia do Conhecimento, ed. Vozes, Petrópolis, 1983. Cap. I Os Fundamentos do Conhecimento na Vida cotidiana (p.35- 68). GIDDENS, A. A constituição da sociedade. ed. Martins fontes, 1984. Cap. 2. Consciência, self e encontros sociais. GOFFMAN, Erving. Introdução, capítulo 1, In: Representações do eu na vida cotidiana. Vozes, 1975. HANNERZ, Ulf. Cosmopolitas e locais na cultura global. In: FEATHERSTONE, Mike. Cultura global. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 251-266. OLIVEN, R. , G. Cultura e Identidade. In: NUSSBAUMER, G., M. (org.), Teorias e Políticas da Cultura: visões multidisciplinares. Ed. EDUFBA, Salvador, 2007 (p. 235-243). ORTIZ, Renato. Modernidade-mundo e identidades. In: Um outro território. Ensaios sobre a mundialização. São Paulo. Olho d’Água, 1999, p. 67-89. SAHLINS, M. “Dos o tres cosas que sé acerca del concepto de cultura”. In: Revista Colombiana de Antropologia. Vol 37, enero-diciembre 2001. (pp. 290-327). SIMMEL, Georg. O estrangeiro. In: SIMMEL, Georg. Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983, (p. 182-188). SCHÜTZ, A. L’Étranger: un essai de psychologie sociale. Paris: editions Allia, 2003. 71 72 . onde ocupam geralmente 73 . é claro. enquanto o percentual de brancos entre os estudantes de 18 a 24 anos de idade no nível superior era de 57. referente a pesquisa realizada em 2007. Conforme a Síntese de Indicadores Sociais divulgada pelo IBGE em setembro de 2008. 2008: p. A sociedade brasileira vive um momento de intensas discussões sobre o acesso da população negra.Memória e Família As experiências intrageracionais na construção dos projetos de vida de universitários negros Fabiela Bigossi A carreira universitária nas sociedades complexas evidencia uma ascensão social e condições mais propícias para inserção no mercado de trabalho e configura-se enquanto um campo de possibilidade de aquisição de capital econômico. o de pretos e pardos alcançava cerca de 25%.9%.213) A especificidade da abordagem. ao ensino superior. esta possibilidade é mais remota. através dos estudantes negros universitários e seus projetos de vida. é fomentada também devido a exclusão dos negros no mercado de trabalho. evidenciando a enorme diferença de acesso e permanência dos grupos raciais neste nível de estudo (IBGE. conforme seus próprios relatos evidenciam. uma possibilidade concreta de ascensão para esses jovens. mas a formação universitária. No caso de estudantes negros. social e cultural. pretos e pardos conforme a classificação do IBGE. Neste ínterim investiga-se o discurso em torno das experiências de ingresso e de permanência no ensino superior sem negligenciar o contexto histórico das relações raciais no Brasil. Dados disponíveis no site http://www. como se percebe através das empregadas domésticas. divulgado em novembro de 2006. a UNB é a universidade que mais tem professores negros no Brasil. A universidade enquanto meio de ascender socialmente. sendo que tem um quadro de 1500 professores. segundo dados apresentados por José Jorge de Carvalho. interesse simbólico. cabe refletirmos também sobre o processo de exclusão e desigualdade que muitas vezes antecedeu o projeto de vida desse estudante.org. as políticas afirmativas contemporâneas. ou seja.os cargos de baixa remuneração. dentre os quais apenas 15 são negros. em que 90% destas são negras e cerca de 23% são submetidas a jornadas de trabalho superiores a 48 horas semanais1. No espaço acadêmico. percebem-se os aspectos subjetivos da vivência de cada um dentro de um sistema de valores e de representações que evidenciam a constituição de um projeto de vida que envolva a universidade como meio de ascensão. 74 . Através da construção da trajetória dos estudantes.br/ referentes ao Estudo Especial sobre Cor ou Raça. o processo de construção da imagem do negro em face de um mercado de trabalho restrito e determinações sociais de discriminação e desigualdade. Dessa forma. como as questões familiares estão imbricadas na construção de um projeto de ascensão social através da universidade e em que medida esta é percebida como possibilidade da diminuição de disparidades entre os grupos. implica num conjunto de valores que dizem respeito ao simbólico capital simbólico. lucro simbólico - 1.ibge. os esquemas cognitivos. (Bourdieu. O projeto existe como meio de comunicação. sentimentos. articular interesses. estruturado em uma perspectiva social mais ampla. cultural. os sistemas de classificação. 1981: p.149-150) O projeto de vida é delineado freqüentemente no seio familiar. 1989). ligado à idéia de indivíduo-sujeito. objetivos. aspirações para o mundo (Velho. Conforme Bourdieu. os princípios de visão e de divisão. 1996: p. como maneira de expressar. como um instrumento básico para negociar a realidade com os demais atores envolvidos nesse projeto. os esquemas classificatórios. dentro das famílias e na individualidade dos estudantes. produto da incorporação das estruturas objetivas do campo considerado. que são. 2003) e relacionado com a possibilidade de ser um meio para a aquisição de capital econômico e cultural. apoiado sobre o conhecimento e o reconhecimento. em parte. da estrutura de distribuição do capital no campo considerado. constituindo-se. o ponto de partida para se pensar em projeto” (Velho. isto é.Capital simbólico é qualquer tipo de capital (econômico. “O capital simbólico é um capital com base cognitiva. uma forma de distinção dos demais atores sociais (Bourdieu. “A noção de que os indivíduos escolhem ou podem escolher é a base. o ingresso no meio acadêmico é parte de uma estratégia familiar: 75 .24). escolar ou social) percebido de acordo com as categorias de percepção. onde se tem definido qual o papel de cada ator. onde o estudante também possui as próprias percepções quanto ao seu papel no desenvolvimento deste projeto de estudos. de princípios de visão e de divisão. 1996: p. (Bourdieu. Alfred Schutz e Paul Ricoeur busca-se refletir sobre o papel das relações entre as gerações. também. de estruturas cognitivas duradouras – que são essencialmente produto da incorporação de estruturas objetivas – e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada (Bourdieu. A trajetória que levará o indivíduo a uma formação universitária é percebida como um investimento que as famílias fazem e que a partir dessa condição o estudante tem a responsabilidade de levar adiante o projeto familiar e afirmar-se na sociedade (Foracchi.36) O valor simbólico do diploma universitário institui uma diferença social. 1972). são.Elas [as famílias] investem tanto mais na educação escolar quanto mais importante for seu capital cultural e quanto maior for o peso relativo de seu capital cultural em relação a seu capital econômico e. A característica do projeto é a sua dinâmica e permanente possibilidade de reelaboração reorganizando a memória do indivíduo envolvido. confere um status diferenciado ao detentor do título e este se distingue dentro da família. as estratégias de herança que visam à transmissão direta do capital econômico) ou relativamente menos rentáveis. de um sistema adquirido de preferências. os agentes sociais. Nesse sentido. de fato. agentes que atuam dotados de um senso prático. especialmente na família. 1996). mudando no decorrer de sua elaboração e adequado pelos agentes conforme um “campo de possibilidades” que se apresenta no decorrer da trajetória desses estudantes. universitários e a família envolvida no projeto. quanto menos eficazes forem as outras estratégias de reprodução (particularmente. na articulação 76 . Tendo como marco teórico os estudos de Maurice Halbwachs. Assim. que “existe como meio de comunicação. as experiências intrageracionais especialmente na família. conforme a contribuição de Schutz. O ator. pode-se refletir a partir do estudo de Fernando Henrique Cardoso intitulado “Capitalismo e escravidão no Brasil meridional”. objetivos. dessa forma. proporcionando assim maior consistência ao projeto. individual e familiar e a tensão do sujeito na escolha/convivência de projetos. A partir desses estudos vê-se a possibilidade de abordar em conjunto a experiência. que se conhece e se desloca na experiência. e no campo das práticas ela é a rede prioritária na qual a solidariedade étnica e de classe viabiliza os projetos de ascensão social (Barcellos. Cabe ainda destacar. é percebido enquanto sujeito reflexivo. A importância da família na elaboração do projeto é percebida nas experiências diversificadas que ela proporciona conforme seu ethos e visão de mundo. o acionamento de identidades e a construção dos projetos realizada conforme um campo social. 1996). abordando as relações. como maneira de expressar. pode-se pensar na construção dos projetos. A memória familiar é destacada por fornecer indicadores básicos do passado. sentimentos. constituindo-se num aval de dignidade. articular interesses.dos projetos de vida. 2003). O projeto de vida aparece dentro das famílias e na individualidade dos estudantes como instrumento básico para negociar a realidade com os demais atores envolvidos nesse projeto. 77 . Relativo a especificidades dos projetos de vida em grupos negros. a importância em abordar o desdobramento dos projetos em social. aspirações para o mundo” (Velho. A família para o negro é uma instância de afirmação de seu pertencimento ao universo das regras. A trajetória de ascensão social do negro através da universidade. que ela constitui resposta política a uma conjuntura. aos seus olhos. 1985: p. fundidas nesta discussão. ou 78 .206).sobre a ascensão social de negros em Porto Alegre: . com as quais forma um sistema. ou seja. ao mesmo tempo. Além da discussão sobre o contexto espacial que engloba a identidade e/ou raça. a ascensão social do negro significa.. reitera-se também o cuidado necessário para não transformarmos em intrínsecas a um grupo as propriedades que lhe cabem em um dado momento. que se encontra significativamente a margem do acesso ao ensino superior e vêm paulatinamente construindo alternativas para sua inserção nesse meio e através de demandas significativas na busca da igualdade social. (. de obter uma ocupação capaz de produzir melhores rendas. isto é. A par do êxito em termos de maior consideração social.. admiração social. É uma estratégia de diferenças (Carneiro da Cunha.339). a perda da condição de ser alienado imposta pela avaliação social desfavorável da cor (Cardoso. respeitabilidade.. dentro de um estudo com abordagem permeado por questões étnicas. ganha uma nova dimensão e se apóia numa motivação mais complexa no grupo negro. 1962: p..). O que se ganhou com os estudos de etnicidade foi a noção clara de que a identidade é construída de forma situacional e contrastiva. permite mostrar a organização e o reconhecimento da situação pelo próprio grupo em estudo. resposta articulada com outras identidades em jogo. garantia econômica e todos os demais componentes normais da obtenção de um status mais alto.o ideal de subir na vida. O ator constitui-se por diversas identidades e é preciso ter em mente que estas são acionadas conforme sua necessidade no campo social. Sendo formada por processos sociais. mas como tipos de organização baseados na consignação e na auto-atribuição dos indivíduos a categorias étnicas. Com o objetivo de superar visões essencialistas e antiessencialistas. 1985: p. 2005). “uma 79 . permitindo que se funde um empreendimento comparativo. a “Identidade é um fenômeno que emerge da dialética entre indivíduo e sociedade. mas dos tipos de organização social das diferenças culturais. onde em clara polêmica com autores norte-americanos afro-centristas.195).seja. originária. A etnicidade como forma de interação social. ter em mente que a identidade é construída situacionalmente e não enquanto essência do ator. Não são grupos concretos. demonstra que não há uma cultura negra pura.” (Berger & Luckmann. conforme Fredrik Barth. sem constituir algo primordial e cristalizado. a construção identitária dos segmentos negros de funda na especificidade de sua experiência histórica: as culturas e identidades negras são indissociáveis da experiência da escravidão moderna e de sua herança racializada (Gilroy. Concomitantemente. 1999). também é possível valer-se das contribuições de Paul Gilroy em seu livro “Atlântico Negro”. Conforme Berger e Luckmann. não dos tipos de agrupamentos étnicos. requerendo ser expressa e validada na interação social. suas memórias estão enraizadas nesta história peculiar. Prioridade que é conveniente atribuir à dimensão subjetiva na definição de grupos étnicos. é um processo contínuo de dicotomização entre membros e outsiders. (Barth. assim como se mudam as relações conforme o uso de determinada identidade. pois permitem associar a construção de projetos inseridos numa experiência coletiva. é abordada a experiência. segundo os autores. mesmo.vez cristalizada é mantida. Os quadros sociais da memória. evidenciando que o uso da identidade étnico/racial é situacional. que é constantemente trabalhada. remodelada pelas relações sociais”. espaços onde a memória é revivida. o que se busca saber é de que maneira os estudantes lançam mão da identidade étnica na construção dos projetos de vida e no discurso de ingresso e permanência no ensino superior. possuindo movimento na evocação e associação das lembranças. especialmente pensando na presença das gerações anteriores na construção dos projetos destes estudantes. Maurice Halbwachs é um importante condutor nessa abordagem que percebe uma identidade individual enquanto construção coletiva. na escola. reconstruída permanentemente são importantes. assim como de qualquer outra identidade social. Neste conjunto. Igualmente. passado e futuro na memória coletiva. que se faça a distinção entre tipos de identidade social para que assim seja possível operacionalizar o conceito de identidade durante o processo de investigação empírica. no trabalho. são pensados a partir da reciprocidade da vida cotidiana. a experiência na família. quando fazem menção às discriminações sofridas pelos avós e pais e o quanto dentro da família faz-se referência ao passado. como é feita a reconstituição desse tempo vivido. o acionamento de identidades e a construção dos projetos. modificada ou. Mostrando assim que não há uma separação entre presente. Problematiza-se nesse plano da memória a família 80 . da transmissão de valores entre os indivíduos. Essa determinação da identidade por meio das relações sociais sugere ainda. como é estabelecida a relação identidade e projeto de vida. recriada. Dessa forma. pois afirmava que só chegara até o lugar em que estava. 1945). conforme o relato do pai. considerava que 2. conforme a interlocutora. a ascensão econômica que proporcionou. tratado aqui como minoria. Todos os nomes utilizados neste trabalho são fictícios. pode ser caracterizada quando um grupo de pessoas. Conforme o relato de Ana2. uma análise privilegiada em relação às atitudes e aos modos empregados para a afirmação desse grupo étnico. a educação de boa qualidade e o investimento que os padrinhos fizeram em livros sempre era relatada pelo seu pai enquanto responsáveis por levá-lo a alcançar o grande espaço e reconhecimento que tinha profissionalmente. Mesmo assim. isso nos anos 60 e 70 e o pior é que ainda tem dessas coisas nas cidades do interior.e os grupos sociais e étnicos. devido a características físicas ou culturais. dentro de um contexto de representação da universidade como espaço de reconhecimento e ascensão social. que segundo Wirth. “Meu pai tem histórias horríveis de discriminação. Ana narra que o pai sempre fez questão que ela e a irmã estudassem em escolas de boa qualidade. 81 . com um importante cargo no governo estadual do Rio Grande do Sul por causa do investimento em educação que os padrinhos haviam feito. de vezes que ele foi barrado em clubes. mas sim. ele acreditava que através da educação se poderia ultrapassar as questões étnicas. são tratadas de maneira desigual e sentem-se discriminadas por um grupo dominante com status e privilégios superiores aos seus (Wirth. O desafio dos estudos sobre educação e marginalização de negros tem o desafio de aprofundar e propiciar a análise desvendando o significado da educação para esse grupo. O investimento em educação não se restringe. ela trabalha de camareira e diz que não quer que eu tenha uma vida sofrida como a dela. precisam superar mais dificuldades para ingressar numa universidade. Meus primos não recebem o mesmo incentivo para estudar. outra interlocutora nesta pesquisa diz: “minha mãe sempre diz que eu não fui feita para trabalhar. pois seu círculo de amizades era composto pelos seus colegas de escola. mesmo os de sua família. Ela lembra ainda das narrativas do pai sobre as discriminações que sofria mesmo dentro da universidade. Fábio. que é funcionária pública. porque os negros. se acostumou com a posição de inferioridade que sempre atribuem a nós e se acomodou”. relatando suas próprias experiências do espanto dos clientes quando viam que uma negra estava 82 . também fala no mesmo sentido do apoio que tem dos pais para o estudo. a universidade representa uma busca de condições melhores para a disputa no mercado de trabalho e é no mercado de trabalho que ela percebe maior preconceito aos negros. Conforme este relato. O incentivo que recebem para ingressar no mercado de trabalho é sempre maior. Ele estuda na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) no turno da noite e trabalha durante o dia todo. Isso é ruim. e mesmo podendo custear seus estudos. A boa educação proporcionava assim uma possibilidade de ultrapassar os limites que a questão étnica impunha”. mas que ele sempre afirmava que estava lá para estudar e que a cor não impediria ele de cumprir com seu objetivo. brancos e de classe média e média alta. Uma situação diferente da maioria dos negros ainda hoje.seu estilo de vida era diferente dos demais negros. a mãe. Assim como o pai de Ana contava para sua filha sobre o privilégio que tivera quando comparava-se aos outros negros. faz questão de pagar integralmente a faculdade do filho. tem gente que se sente discriminado e logo desiste. Maria. às vezes acho também que falta um pouco de vontade de batalhar. que soma-se a memória familiar e do grupo. conforme definição de Michael Pollack. compondo essas lutas de memória. em que se insiste que a aprovação das cotas é uma conquista do movimento e não conquista individual e que devido a isso os negros devem aderir as cotas e não percebê-las apenas como uma reparação individual. O Movimento Negro e o discurso sobre a aderência dos negros a política de cotas é um exemplo para pensar nesse âmbito. Cabe assim. Trago estas pequenas narrativas para mostrar em especial a importância da memória na construção dos projetos de vida dos universitários com os quais converso e como a memória é articulada na construção dos projetos de vida familiares e individuais.ocupando o espaço de recepcionista. Outro interlocutor relevante para a compreensão da articulação entre a construção do projeto de vida articulado a uma memória coletiva. especialmente Gilberto Velho. para minha pesquisa. “A aprovação das cotas é uma vitória. o desdobramento dos projetos em social. o Movimento Negro trabalha com a visibilidade há muito tempo e agora estamos vendo os resultados. é o Movimento Negro. é de suma importância para refletir sobre os projetos individuais e familiares dos estudantes na pesquisa. O ator é percebido enquanto reflexivo. que se conhece e se desloca na experiência e através das experiências intrageracionais especialmente na família. As cotas amenizam as disparidades no ensino e eu acredito que também sensibili83 . individual e familiar e a tensão do sujeito na escolha/convivência de projetos. A partir da “Fenomenologia da Vida Cotidiana” de Alfred Schutz e daqueles que seguem sua linha teórica. mencionar a construção de discursividades do grupo enquanto um projeto social. faz-se necessário abordar o “projeto social”. especialmente para quem estava aqui dentro e diretamente ligado no projeto. senão nós é que estaríamos sendo racistas. negra. eles seriam os primeiros contemplados com essa chance a mais de entrar na universidade. agora. Tinha um montão de estudantes do ensino médio que estavam lá conosco ansiosos para saber se as cotas seriam aprovadas. mas na hora de lutar mesmo. uma exposição durante a semana toda de coisas que evidenciam a nossa cultura. todas essas coisas que vieram para o Brasil com os africanos. Às vezes isso 84 . A fala de Paula segue ainda sobre a aprovação das cotas: “as cotas na UFRGS foram um processo muito doloroso. A gente quer trazer o maracatu. Por outro lado eu fiquei também feliz porque quando escrevemos o projeto de implementação das cotas tu acredita que conseguimos apoio. capoeira. eu mesma me impressionei até com o discurso da Carla que é professora. sempre dando palestras e até tem um grupo para discutir essas questões raciais. como é o meu caso. porque já tinha sido transferida uma vez e não iam fazer isso conosco mais uma vez. mas nós não íamos mesmo deixar ninguém sair se não houvesse a votação. No dia da votação tu viu. por favor né? Então. já no início das aulas nós [integrantes do Grupo de Trabalho de Ações Afirmativas na UFRGS] vamos fazer aqui. foi aquela pressão. o nosso esforço.zem os educadores para trabalharem com as diferenças. mostrar a nossa cultura e o que esses estudantes têm para contribuir”. A gente percebeu que tem muita resistência dentro da UFRGS. foi o professor José que é assumidamente contra cotas. cuidar para não cometer exageros. bem nesse espaço [apontando para o espaço em frente à portaria da Faculdade de Educação] uma exposição. pais de santo. aqui olha. que nos ajudou muito no envio do projeto. na verdade quem redigiu o projeto. porque a UFRGS é o sonho da maioria. voltando ao que eu te contava sobre a votação das cotas. vai ser na segunda semana de aulas. de partir pra cima ela disse que tínhamos que pensar melhor. mas se sensibilizou tanto com o nosso empenho. como o do Emerson. Para dar conta dessas narrativas dos sujeitos. Na verdade nós já temos esse serviço.também é um problema. que não entrei por cotas. mas apresenta uma forma de necessidade transcultural. não pode concorrer às cotas. mas tem gente que vai se importar. que afirma que existe entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana uma correlação que não é puramente acidental. ele vai entrar na justiça para ter a vaga dele assegurada”. e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da existência temporal. que só porque estudou em escola particular. A dimensão subjetiva. que é meu vizinho. nos dois últimos anos do ensino médio. ganha expressividade na medida em que nas narrativas em torno das fotos familiares se ma85 . das emoções. Sabemos que vai ter manifestações de preconceito e já estamos disponibilizando um serviço para atender os alunos que se sentirem discriminados. A gente já pegou um advogado da ONG [IAA. então a gente precisa dar um suporte para os alunos que sofrerem discriminação pelos colegas e até pelos professores. até eu. porque tem alunos que já estão nos procurando com medo de represálias quando chegarem aqui e também porque temos casos. mas eu não me importo. utilizo-me dos estudos de Paul Ricoeur. com a aprovação das cotas a gente quer trabalhar. porque tinha bolsa. que o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo. ou seja. porque a universidade é vista por muitos negros como um projeto individual e não como uma conquista do grupo negro e é justamente isso que agora. até porque elas não existem na pósgraduação sei que vou ser apontada como cotista. em que expressam a construção coletiva de um projeto e evidenciam o papel fundamental da memória compartilhada.Instituto África-América] para ele. Por fim. cabe contextualizar este estudo no campo da antropologia urbana. A imagem organiza a memória e possibilita conciliar a narrativa cronológica e não cronológica nos dando muitas vezes a chave para as interpretações dos nossos informantes em relação aos seus projetos e como os vivenciam dentro de um campo de possibilidades freqüentemente diverso de seus ascendentes. desempenham uma multiplicidade de papéis na dinâmica social.terializa o coletivo. que buscava compreender o fenômeno urbano e a complexidade das relações sociais desenvolvidas concomitantemente. da diferenciação legitimada pela lei. 86 . Os estudos de antropologia urbana desenvolvem-se a partir da Escola de Chicago. que vivenciaram de forma ainda mais desigual os resquícios do período escravista. como a construção das redes de relações dos atores e de seus sistemas de interação. questionando como os atores. Os estudantes interlocutores nesta pesquisa pertencem a universidades públicas e privadas localizadas em Porto Alegre. personagens em interação. É nesse espaço que a antropologia urbana ganha expressão. o grupo. a situação que muitas vezes é compartilhada além da família nuclear e perpassou a história de várias gerações. enfatizando que a investigação sociológica e/ou antropológica devia se dar pela análise das formas de relações sociais. Família e Ascensão Social de Negros em Porto Alegre. São Paulo. F. 1996. In: Comunidade e sociedade no Brasil. Salvador: Novos Toques. 2005. F. São Paulo: Difusão européia do livro. BERGER. In: O negro na universidade. 2005. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. “A Socialização Secundária e a Mudança Social”. 1972. Museu Nacional. Cornelia e ROCHA. Difusão Européia do Livro. P. “Grupos étnicos e suas fronteiras”. P e LUCKMANN T. 1996. 2002. 1999. J J. FORACCHI. 1962. In: O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. 2002. Razões Práticas. In: Teorias da Etnicidade. F H. Antropologia do Brasil: mito. BOURDIEU. São Paulo: Unesp. número 1. O negro no mundo dos brancos. P e WACQUANT. M. Ana Luiza Carvalho da. A memória coletiva.24. Estudos Afro-Asiáticos. história. BARTH. 34 edição. Campinas: Papyrus. HALBWACHS. “Exclusão racial na universidade brasileira: um caso de ação negativa”. P. Petrópolis: Vozes. São Paulo.Referências BARCELLOS. 1985. Rio de Janeiro: Brasiliense. BOURDIEU. L. Editora da UFRGS. CARDOSO. Rio de Janeiro: Tese de doutorado PPGAS-UFRJ. D. 1972. O tempo e a cidade. “Uma história para não passar adiante: a memória viva e o sublime escravo”. ECKERT. FERNANDES. etnicidade. M. leituras básicas de introdução ao estudo macro-sociológico do Brasil. CARNEIRO DA CUNHA. Porto Alegre. CARVALHO. 87 . Vol. “Frustrações dos jovens e orientação do protesto estudantil”. São Paulo: USP e Nacional. “Sobre as artimanhas da Razão Imperialista”. Vértice. São Paulo. 1990. GILROY. 1986. In: A construção Social da realidade. M. 1979. Zahar. IBGE. Fenomenologia e relações sociais. 2006. Síntese de Indicadores Sociais – Uma análise das condições de vida da população brasileira 2008. Estudos e pesquisas. In: O fenômeno urbano. SIMMEL. “The Problem of Minority Groups”. In: O fenômeno urbano. Introdução. G. 1979. (Org. “ A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano”. WIRTH. P. Projeto e metamorfose antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. WIRTH. 1979. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. “A metrópole e a vida mental”. 1945. Textos escolhidos de Alfred Schutz. Estudo Especial sobre Raça ou Cor. “O urbanismo como modo de vida”. Antropologia das sociedades complexas. Capítulo 3. Projeto e metamorfose. 1994. “Trajetória Individual e campo de possibilidades”. RICOEUR. Rio de Janeiro: Zahar. “A Tríplice Mímese”. Capítulo 12. Zahar. WAGNER. R E. L. 2008.IBGE. VELHO. Rio de Janeiro: Zahar. VELHO. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. informação demográfica e socioeconômica. PARK. G. Capítulo 4. H R. 1994. Campinas –SP: Papirus. 1994. L. In: Tempo e Narrativa (tomo 1). In: O fenômeno urbano. 1979. G. 88 . número 23. In: The sciences of man in the world crisis. e Introdução). New York: Columbia University Press. tendo em vista que a prática do aborto provocado é um processo considerado ilegal no Brasil. dentro do universo de pesquisa.Experiência. Uma das questões centrais situa-se na reflexão sobre o período em que o aborto foi realizado e a relevância para sua compreensão no contexto brasileiro bem como o que a época nos informa a respeito da prática. não tão estritamente vinculados à faixa etária – ainda que este recorte é bastante presente. Nesse sentido. relacionados 89 . Algumas questões serão importantes para conduzir essa análise como o questionamento acerca da importância do tempo transcorrido após o evento para a ressignificação da interrupção da gravidez. Para isto. faço um recorte. pretendo me centrar em algumas narrativas coletadas em Porto Alegre e Região Metropolitana sobre esse evento e sua compreensão enquanto uma experiência fenomenológica. As narrativas das mulheres me permitirão refletir acerca de uma perspectiva geracional. para pensar a questão da geração. Memória e Geração A construção da narrativa de mulheres que praticaram aborto Fernanda Pivato Tussi O presente ensaio trata de um estudo sobre a memória de mulheres a respeito de suas experiências de interrupção da gravidez. Proponho dividir em dois grupos. indiscutivelmente importante e atravessa diretamente a separação que aqui sugiro – mas sim. Dessa forma. tal como se observa nos esquemas abaixo. há pouca variação na relação entre faixa etária e as categorias elaboradas.ao período no qual cada uma das mulheres praticou o(s) aborto(s). uma vez que somente mulheres mais velhas podem se encontrar na primeira categoria e as mulheres mais jovens só podem estar na segunda. a categoria de idade perpassa essa divisão. O que justifica esse tipo de agrupamento relativo à época é a forma com que a intervenção aparece relacionada ao contexto sócio-histórico. Evidentemente. Período em que o(s) aborto(s) foi(ram) realizado(s)* Idade das mulheres no dia da entrevista 90 . Um grupo refere-se às mulheres que o realizaram nas décadas de 1970 e 1980 e outro das que o provocaram de meados dos anos 1990 em diante. Daniela Knauth (NUPACS/UFRGS) e Ondina Fachel Leal (NUPACS/UFRGS). originalmente. além de evitar que alguma informação viesse a identificar a entrevistada. O autor sustentava que não existe. portanto. Michel Bozon (INED. Estela Aquino (MUSA/UFBA). Víctora. foram retiradas do banco de dados da etapa qualitativa do Projeto Gravidez na Adolescência – Estudo Multicêntrico sobre jovens sexualidade e reprodução no Brasil (GRAVAD)1. posto que uma das entrevistadas realizou três abortos: dois nas décadas de 1970 e 1980 e um após os anos 1990 e. Cecília McCallum. do ISC/UFBA. Todas as mulheres tiveram seus nomes trocados. do IMS/UERJ. foram recolhidas por mim entre os anos de 2006 e 2008. O consultor estatístico foi Antônio José Ribeiro Dias (IBGE). Sexualidade e Saúde. por Maria Luiza Heilborn (IMA/UERJ). Tânia Salem e Eliane Reis Brandão. e Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde. *Neste esquema o número total de mulheres soma mais de doze. Sexualidade e Reprodução no Brasil(Pesquisa GRAVAD) foi elaborado. 91 . A pesquisa foi realizada por três centros de pesquisa: Programa em Gênero. 1. A idade das mulheres deste universo de pesquisa varia de 23 a 52 anos. a primeira testemunha que devemos apelar. por assim dizer. Duas destas entrevistas. As outras dez. O grupo de pesquisadores compreendeu Maria Luiza Heilborn (coordenadora). Programa de Estudos em Gênero e Saúde. Paris). Daniela Knauth. A pesquisa foi financiada pela Fundação Ford e contou com o apoio do CNPq. O Projeto Gravidez na Adolescência: Estudo Multicêntrico sobre Jovens. da UFRGS. Estela Aquino. se encontra nas duas categorias. já nos dizia Maurice Halbwachs (1990). Michel Bozon. Fabíola Rohden. realizadas em 2000. é a nós mesmos.As narrativas as quais me refiro são baseadas em doze entrevistas realizadas entre os anos de 2000 e 2008 com mulheres de grupos populares e de camadas médias que interromperam uma ou mais gestações em Porto Alegre e Região Metropolitana. Ceres G. Memória e Experiência Ao evocar uma lembrança. mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos. como Maurice Halbwachs (1990) a define. A análise da experiência se fundamentará no estudo fenomenológico com o intuito de compreender como os indivíduos vivenciam seu mundo e. um determinado evento crítico. As narrativas podem ser trabalhadas naquilo que expressam dos jogos de memórias individuais das experiências. 1990: p. e com objetos que só nós vimos. É por isso que. a partir destas. já que nunca estamos sós. portanto. é importante resgatar Halbwachs (1990) e o que ele nos sugere sobre a coletividade das lembranças: Nossas lembranças permanecem coletivas. posto que elas ocorrem a partir da evocação dos outros. Pensamos pelos outros e para os outros. 92 . são coletivas. e elas nos são lembradas pelos outros. que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem. a sociedade interfere na lembrança. por extensão. Na reflexão sobre problema da relação entre a memória e o social. (Halbwachs. nunca estamos sós. vinculadas à vida social e que são transmitidos como valores morais acerca do aborto. Uma das questões centrais é se existem ou não diferenças entre os dois grupos que aqui trabalho. em realidade. As lembranças.pensamentos fora do mundo. Não é necessário que outros homens estejam lá.26) O trabalho sobre a memória é o ponto de partida para pensar a perspectiva de geração. Dessa forma. A consciência coletiva. por uma memória coletiva. e. quais seriam essas distinções e como se expressam nas narrativas das mulheres. de modo que memória individual e memória coletiva estejam implicadas. uma vez que. A memória das pessoas irá depender de sua associação com os grupos de convivência. não é a mesma que temos hoje. Essa situação pode também ser entendida pela perspectiva halbwachsiana no sentido de que a relação da pessoa com o grupo é necessária para que seja possível a lembrança e sua conservação. é possível estabelecer algumas relações entre as narrativas das mulheres entrevistadas e a memória.está constantemente presente nas pessoas. pois nossa percepção e nossas idéias se transformam por meio de novas 93 . o processo de evocação dos fatos vividos. Halbwachs (1990) argumenta. mas são constantemente reconstruídas em sua evocação. inclusive na evocação da memória. Assim. O evento do aborto foi vivenciado corporalmente por elas. mas a evocação de suas lembranças é coletiva. com isso. Essa imagem do que foi vivido no passado. É possível perceber elementos do passado e do presente na reconstrução da lembrança. por exemplo. haja a reconstrução desse passado. Isto abre espaço para que cada vez que um fato seja evocado. além de suas referências. a recordação é uma imagem que se organiza a partir do material disponível atualmente na nossa consciência. posto que envolve elementos que transcendem apenas aquela mulher e um grupo determinado de mulheres. O vínculo com a família ou com o parceiro. as narrativas apontam para uma forte relação com outras pessoas que tiveram presença no momento da gravidez e de sua interrupção como é o caso do parceiro e da família da mulher. é importante para que se possa compreender o contexto de realização do aborto e. No caso especifico desta prática. As lembranças não estão em um ponto determinado de nossa memória. A lembrança. Um exemplo a ser citado é a recente abordagem que tema o aborto como um direito reprodutivo da mulher. a memória é relacional e situacional. que fundamentam a memória individual. Dessa forma. que foi difundida pelo movimento feminista. é feita a partir de referências sociais do narrador. Desta forma. A memória é uma construção do presente e resultado da interação social em diferentes contextos. portanto. posto que um grupo está em uma condição especifica para vivenciar determinados eventos. retorna-se ao ponto em que o individuo só tem memória enquanto membro de um grupo. proponho que o período em que a mulher interrompeu a gestação nos informe sobre a realidade da sociedade daquela época. uma situação social irá predispor indivíduos a estilos de pensamentos e experiências comuns. isto é. 2006). Desta forma. 2004). Ao explorar alguns pontos da questão geracional. a época em que a gravidez foi interrompida – e a narrativa a partir do que foi vivenciado – é importante para 94 . depende do momento em que está sendo revivida e para quem está sendo relatada. permite pontuar aspectos sócio-históricos acerca desta temática no Brasil. com o intuito de transmitir suas experiências vividas. Isto abre espaço para pensar que as lembranças possuem um caráter geracional (Lins de Barros. Nesta linha.experiências. de maneira que a questão de direitos sexuais e reprodutivos deu seus primeiros passos a partir do período de redemocratização (Sarti. como um processo seletivo. e que. As lembranças são narradas a partir de diferentes perspectivas que irão relacionar-se com a situação social em que se encontra o narrador. O exercício de lembrar do passado no presente é percebido nos discursos das mulheres que fizeram aborto. surgiu. muitas amizades eu perdi.a virgindade era uma coisa que pesava bastante. E se alguém não era virgem. como o fato das mulheres terem que esconder do pai e eventualmente também da mãe que tinha relações sexuais.. porque o que importa. queria me matar.. a não ser que. eu era a única na rua.trazer um delineamento sobre a prática do aborto. mas sim quem eu sou.). nas narrativas. imagina! (. obviamente todo mundo descobriu. porque não vendiam. enfim. Uma grande bobagem isso. aos 14 anos. imagina. 49 anos. em comparação às das décadas de 1990 em diante. tudo era muito sigiloso. Beatriz... Como efeito da reconstrução da memória.. comenta que o primeiro aborto que provocou. teve interferência em suas amizades.). tu sabe. Naquela época não podia nem comprar pílula na farmácia. digamos assim (. Meu pai teve um desgosto muito grande. então tu paga por aquilo que tu fez.alguém comprasse pra ti. Era muito discriminado também. trazendo elementos constitutivos da sociedade da época: Isso foi em 71 (.. porque os pais. a percepção de uma sociedade mais conservadora e “machista”. o que importa não foi aquilo que eu fiz. Os dados de pesquisa coletados conduzem a uma reflexão sobre diferenças na realidade vivida e na experiência de aborto de quem realizou esta prática nas décadas de 1970 e 1980. as mães não queriam que as filhas se dessem comigo. me enforcar. não 95 .. eu penso assim. eu não seria uma boa companhia..).. no início dos anos 1970.. tu não ficava sabendo.. Meu pai [quando soube da gravidez] ficou horrorizado. Estas diferenças aparecem nos discursos de forma mais clara na realidade da sociedade da época. além de relatos sobre “preconceitos” e “discriminação” em relação a mulheres solteiras que não eram virgens. daí o pessoal. (..). porque não tinha. que eu tinha feito um aborto. (.. Imagina se a vizinhança vê.tão. Salete e Tânia. tão.mas não sei porque. [risos] (Salete. tão. na época condenava. É um pulo muito grande. especialmente com a família. era uma época assim.. a gente nasce disso aí.. Beatriz.. duas das mulheres entrevistadas.a gente vivia uma época tão massacrada.). Antes era tudo assim: ah...).por aquilo que tu é.)... por conta disto.. Eu notava que essa época era assim. na época não tinha. Era uma coisa muito fechada. Os jovens têm outros tipos de pais. e ao esforço em se conseguir informações. aquela época. (. Não era fácil como é hoje..Eu fiquei “falada”.. Feio? Disso aí. como se diz.. mais diálogo. tudo era tão camuflado. Era um mundo bem diferente. televisão também não. 21 e 38 anos. mais aberto. solteira. não sei. Não tinha Internet.não sei se condena hoje. Isso a gente não queria. Era totalmente diferente. 51 anos.. anos 70.) vai pegar mal (. (.. 49 anos.. assim.Mãe e pai não falava abertamente como é hoje em dia.. Fez três abortos: aos 14. Além disso. 80 pra agora. Enciclopédia era muito didática.. hoje em dia a gurizada tem diálogo aberto.. tudo era tão difícil de tu colocar. sem filhos. em escola não se falava. de geração. né? Os anos 80. Hoje é bem diferente. esse modelo conservador foi associado também à dificuldade em obter diálogo sobre sexualidade. hoje tem 96 . é feio.. tudo era errado.. trazem elementos e comparações interessantes sobre os dois períodos: Eu devia de ter procurado uma alternativa pra.as pessoas sempre vêem aquilo ali. como é que eu vou te dizer. Tudo era horrível falar com pai e mãe. por aí. casada. A sociedade condena. Hoje em dia tem mais diálogo. sem filhos.) Não foi fácil.. provocou um aborto aos 22 anos. Só não vai dialogar se tu não quiser. a presença de diversos aspectos que permitem considerar diferenças relativas à prática do aborto – seja sexualidade. diálogo entre pais e filhos. A narrativa de experiência de aborto é um tema que cabe pensar desde 97 . Experiência e Trajetória A experiência do aborto. o vivido e o transmitido” (Pollack. ou seja. Essa ação mútua pode ocorrer durante os relatos sobre aborto. As portas estão todas abertas pra ti te informar. acesso à contracepção. Ou então vai ali pro Google.8-9). Michel Pollak (1998) refere que há também “uma permanente interação entre o vivido e o aprendido. de maneira a reinterpretar o que passou. tirar dúvidas. coletivamente e na interação social. quando referida à trajetória das entrevistas. Retomando a questão específica da memória.todas as vantagens. dois filhos. viúva. coisa que na minha época não tinha. permite abordar o movimento reflexivo posterior ao evento vivido. e selecionando os eventos conforme as circunstâncias. assume-se que o significado é produzido biograficamente no mundo.. Fez um aborto aos 16 anos. É justamente na reflexão acerca da própria experiência de um sujeito no mundo que o sentido emerge. 52 anos.) Percebe-se com isso. Ao narrar suas experiências. (Tânia. sugere-se que a lembrança do passado remete sempre ao presente.. Nesse sentido. 1998: p. questões morais – nas duas épocas pesquisadas. elas irão reconstruindo as lembranças que têm do que foi vivido – especialmente ao salientar as diferenças da época. bem como o contexto das gestações. (Sofia.) Eu ia ter que parar de estudar. são importantes para compreender sua decisão de ter provocado os 98 . não tem como. um filho: fez dois abortos aos 36-38 anos. Pra mim não existia essa possibilidade [de seguir com a gestação]. eu tinha conquistado meu grande sonho. seria possível pensar. eu nem pensei. Foi nesse período que engravidou e realizou aborto duas vezes. o que permitiu que ela ingressasse na faculdade aos 35 anos. eu não quis. bem como a decisão de interromper a gestação. Sofia. (. E como eu tava assim. A trajetória de vida torna-se relevante para compreender o contexto.a teoria de Alfred Schutz (1979). a partir dessas biografias. que era poder entrar aqui na UFRGS pra fazer meu curso. também. Sofia diz: A gravidez ia atrapalhar os planos de eu me formar. 40 anos. Nesse sentido..) A trajetória de Sofia. o porque se deu a escolha de interromper ao invés de prosseguir com a gravidez. Ela vem de uma classe baixa em ascensão. de justificativas relativas aos seus estudos. tem 40 anos e fez dois abortos. ao mesmo tempo em que se pensa a interpretação sobre a própria reflexão acerca do vivido. uma vez que as escolhas são fruto de processos da trajetória. decorrente do relacionamento com seu namorado – que era casado. uma das mulheres entrevistadas. O fato do namorado de Sofia ter outra união oficial foi um dos principais motivos apontados por ela para a interrupção das gestações. As entrevistas com mulheres que passaram por essa experiência poderiam ser pensadas no sentido de trajetória da vida delas (biograficamente). acompanhado.. separada. O aborto. baseadas na biografia de cada individuo. e. só pode ser compreendido a partir de sua biografia. O conceito êmico “assumir” recorrente nas camadas populares e que se refere mais especificamente ao sujeito masculino e à paternidade. como comida e roupas). há sempre a relação com outras pessoas da rede da mulher que pensa em interromper a gestação. O próprio ato de cogitar o aborto como uma possibilidade já está associado a um indício de falta de expectativa em relação à constituição de uma família. aumentando a possibilidade de aborto em função do homem não “assumir”2 (Víctora. por mais que ocorra no corpo da mulher. Nesse sentido. argumenta o autor. aquele que sustenta a criança (provendo algo material. encontrou o aborto como uma alternativa. ou seja. que darão significado às ações em um mundo vivido coletivamente. O sujeito interpreta sua vivência e não tem um projeto. com isso. esteve relacionada à experiência e à trajetória de vida trazida em sua narrativa. mas o constrói a partir de sua trajetória. portanto. Alfred Schutz (1979) defende que as escolhas são sínteses das experiências anteriores. 1991) 99 . no caso de Sofia. almejando concluir os estudos universitários e. no momento de uma gravidez. no momento em que engravidou de um homem casado. Isso porque ela relata que batalhou para alcançar uma vaga na universidade pública. 2003). além disso. São as experiências passadas.abortos. como dissociar a prática do aborto da trajetória de vida da mulher que a vivenciou. Cada ser humano. Não há. não se dá de maneira isolada. muitas vezes a mulher aguarda por uma posição do parceiro para 2. Há. O homem que assume seu filho é aquele que o reconhece publicamente. o que envolve diretamente o parceiro e sua posição frente à gravidez. é. às vezes. (Víctora. A decisão de interromper a gestação. 1991). a construção de um projeto a partir de um campo de possibilidades (Velho. por exemplo. ou seja. dada a situação considerada irregular do parceiro. no caso em estudo. Nesse momento. 1996). uma jovem de 24 anos. “não existe”. ela se relacionou com um colega de trabalho. 100 . Posteriormente. Ele [o parceiro] não queria assumir a culpa junto comigo. ele iria ver que a prova da traição estava ali.. uma vez que ele já tinha um relacionamento com outra mulher. a partir do referencial teórico schutziano. já que ele era casado e.decidir realizar um aborto caso ele “não assuma” já que. que realizou um aborto poucos meses antes da entrevista. então tu não vai amar uma criança assim. a forma de assumir dois relacionamentos simultaneamente. devido à situação do parceiro “não assumir”. resultado de um relacionamento anterior. cada vez que ele olhasse para o filho.). seria muito trabalhoso “assumir” um filho “sozinha”. após o nascimento. quando percebeu que estava grávida novamente. um filho. é interessante para ilustrar essa relacionalidade. com os outros. no qual o antigo parceiro. casado e com filhos. (Priscila. Priscila justifica a realização do aborto: Eu tive que tomar a decisão [de abortar] (. como ela diz. eu tive que ter força e coragem pelos dois. sempre na relação com o “Nós”.. contrariando as expectativas dela. pertencente aos grupos populares. que a experiência é compartilhada. portanto. O caso de Priscila. 24 anos. sem a presença de um sujeito masculino com funções de protetor e provedor (Sarti. em suas palavras. ela foi impelida a realizar o aborto. isto é. Esse exemplo demonstra.) O caso de Priscila evidencia claramente a noção de que. “não assumiu” a criança. Priscila tem um filho. ele queria assumir o filho dele de uma forma que não existe. e não de maneira isolada. Isso. aparece também na relação com a família. solteira. fez um aborto aos 24 anos. Há situações em que a jovem esconde a gravidez de alguns membros da família e. É o caso exemplar de Ana. na separação do casal. ainda que os pais do namorado soubessem. ainda que em um contexto bastante frágil. apareceu nas narrativas associado ao pai ou à mãe como pessoas que decidiram que era melhor a menina interromper a gestação a ter um filho. anos mais tarde. 24 anos. como alternativa a uma gravidez não planejada. 44 anos. o aborto é recorrido para que outro segredo não seja revelado. e da família em geral. sem filhos.) Da mesma forma. porque eu tive que esconder do meu pai. provocou um aborto aos 22 anos. porque a mãe chorava muito quando ficou sabendo disso. Tânia. também tentou esconder a gravidez dos pais. foi bastante cruel na época. mas ela lembra da intervenção da mãe e também do que o namorado na época em que ela fez o aborto havia dito: 101 . né? (Salete. vai me correr de casa. após ela ter feito o aborto. é bastante presente de diversas maneiras. 52 anos. né? Porque meu pai era muito machista. Salete conta que o pai nunca soube da gravidez. por estes não saberem que ela estava tendo relações sexuais. na época. né. conta que seus pais nunca souberam que ela fez um aborto aos 19 anos. como ela relata: Pra mim. o aborto. solteira. que engravidou aos 15 e pouco soube me detalhar sobre alguns eventos relacionados ao aborto. mas esses acabaram descobrindo. resultando no seu casamento com o namorado e. o papel dos pais. Denise.Especialmente com mulheres que engravidam quando bem jovens. meu Deus. pois foram os responsáveis pelo pagamento do procedimento. dada a sua postura intolerante frente à sexualidade das filhas. Foi então a mãe quem a acolheu. Aí eu disse. 51 anos. Também às escondidas. mas sim. determinante para uma decisão. o que não significa que não seja um ato refletido. e só são compreendidas em momento posterior ao evento ocorrido.Ele [o namorado. como interromper uma gravidez. Pode-se pontuar que o tempo transcorrido 102 . não tem um entendimento completo no relacionamento com o “Nós”. A socialização ocorre através da experiência com o “Nós”. com o “Nós”. É possível relacionar essas situações com o argumento de Alfred Schutz (1979) que sugere que o “Eu” se constrói a partir da interação social.. baseado nas noções do presente. Essas percepções. ou seja. na época] veio me falar que minha mãe que decidiu tudo. isto é. É importante ressaltar que os relatos de aborto geralmente são pouco compartilhados. o sujeito do aborto não reflete sobre a ação. e ela que marcou. com o outro. um filho. Novamente percebe-se o compartilhamento de experiências. que é sempre constante e. ou seja. que a gente ia tirar [fazer o aborto]. Ana. 24 anos. O ato de lembrar não seria reviver um momento anterior. posto que está imerso na situação. ainda que a vivência real do aborto ocorra no corpo da mulher. com a coletividade. reconstruir. que não sei o quê. por sua vez. ocorrem a partir da biografia das mulheres na sua interação social.marcou tudo e agendou tudo e daí eu fui lá e fiz o aborto. no caso. que ela que procurou o local pra fazer o aborto e. A compreensão é o que dá sentido à experiência subjetiva que só ocorre depois que o fato aconteceu e em função de outros sujeitos. provocou um aborto aos 15 anos. refazer as experiências passadas. Ao estar envolvido na experiência.. solteira. sendo esse tema quase um tabu. isso aí eu sei. após o tempo transcorrido. Suas lembranças.reflete no entendimento do que foi vivido. ainda que haja uma certa ambivalência na definição precisa sobre as emoções sentidas. especialmente em comparação com a época em que o aborto ocorreu e o sentimento atual. para que se ressignifique a prática do aborto e isto pode interferir na percepção das mulheres de diversas formas. que o próprio tema emerge: como o reconstruir e o ressignificar as experiências de aborto. A sociedade tem também um papel de imperar normas e constrangimentos. não sem um viés político. passando pelo recorte geracional. de modo significativo. sejam elas mais recentes (de mulheres mais jovens) ou mais antigas (de mulheres mais velhas) são transmitidas através de narrativas da experiência e reconstruídas na evocação de suas memórias. a partir de uma perspectiva geracional. pode impactar o debate político acerca da legalidade do aborto no Brasil nos dias de hoje? 103 . Por fim. gostaria de encerrar este ensaio com uma provocação a ser debatida. ). ________. HALBWACHS. 1987. v. São Paulo: Companhia das Letras. 1990. Família e Gerações. Cynthia Andersen. Rio de Janeiro: FGV Editora. SARTI. (org. DEBERT. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. Ecléa. 2003. Barros. ________. Sociologia. 12. Memória.). 2. A memória coletiva. In: M. Flavia de Mattos. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) do Instituto de Filosofia e ciências Humanas. 2006. Gilberto. 1979. Individualismo e cultura. A Família como Espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. 1998. Michel. no. Estudos históricos. Velha é a Vovozinha: identidade feminina na velhice. 2006. n. São Paulo: Centauro. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. VELHO. Fem. 1998. VÍCTORA. Mulheres. POLLACK. 1994. 2. Fenomenologia e relações sociais. 2004 . n. ________. Alfred. Rev. MOTTA. Florianópolis. LINS DE BARROS. (Org. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV. 3. 1989. Maurice.Referências BOSI. 3. . silêncio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ceres. notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. ed. esquecimento. M. 1991. Sexualidade e Reprodução. v. 1996. 52. Trajetória dos estudos de velhice no Brasil. Myriam Moraes. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória. A Antropologia e o Estudo dos Grupos e Categorias de Idade. SCHUTZ. São Paulo: Cortez. Velhice ou Terceira Idade?. Estud. Santa Cruz do Sul: EDUNISC. L. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Guita G. 104 . mas não sabe nem explicar como era. desde o surgimento da fotografia. documentações fotográficas possíveis A experiência de documentação da “memória fotográfica do bairro Cristal”. deixa entrever algumas das motivações simbólicas. Esta é uma das motivações que mobiliza um grupo de senhoras na busca pela composição de um registro visual de seu bairro. Guardar na memória. que configura um “trabalho”. morador do Cristal. É também o gesto que leva inúmeros fotógrafos a aderirem a uma estética fotográfica “documental” como representação do real na composição de imagens no mundo contemporâneo. Mas que relação podemos estabelecer entre o desejo de “guardar” a imagem na lembrança e uma estética fotográfica calcada no gênero documental? Quando Boris Kossoy (2002) discute o processo de construção de realidades que envolve a representação de uma realidade con105 . que entrelaçam a fotografia às artes da memória.Imagens da memória. amadores ou profissionais. encontra na imagem fotográfica pontos de ancoragem ao fluxo incessante e sempre renovador das imagens da memória. eis uma das principais motivações dos fotógrafos. A fala de Tarso. Fernanda Rechenberg “A maioria guarda na memória. afetivas e testemunhais. Se tiver fotografado é mais fácil”. Porto Alegre. Este ato inteligente que é “lembrar”. Tal expressão. é suficiente para desencadear alguma desconfiança acerca da credibilidade que a fotografia constrói em sua modalidade “documental”. orientando um portar-se em campo com a câmera e o estabelecimento de uma relação específica com o sujeito fotografado. atribui à imagem o estatuto de “documental. Lewis Hine. sociólogo por formação. na qual seu potencial descritivo e a conexão física com o referente constituem a sua âncora. estas características celebram o potencial descritivo da imagem e sua função testemunhal. É interessante pontuar que o nascimento do fotodocumentarismo está amplamente relacionado com o interesse de fotógrafos. recurso que permitia a iluminação e o registro dos becos mal afamados de Nova York. As imagens de Jacob Riis e Lewis Hine1 ficaram gravadas como ícones do fotodocumentarismo na história que entrelaça a fotografia e a vida social.48). cunhada pelo autor. porém imaginária” (Kossoy. as fotografias de Riis são pautadas por um caráter investigativo e uma estética direta. fazia uso de uma estética pictorialista mais refinada que Riis. É importante situar o termo “documental” no interior de uma tradição fotográfica. com o inovador uso do flash. 2002: p. 106 . assim como a opção por um conjunto de características na composição da imagem convencionalmente aceitas como “documental”. mas partilhava a preocupação em “tornar visíveis” as desigualdades e injustiças sociais. Jacob Riis (1849-1914) e Lewis Hine (1874-1940) são reconhecidos pela maior parte dos autores no campo dos estudos fotográficos como os “pais fundadores” da fotografia documental. De modo geral. na qual correspondem uma ética e estética específicas. Marcadas por uma forte intenção de denúncia social.creta através do signo fotográfico. jornalistas 1. profundamente influenciados pela obra de Georg Simmel na fundação de uma sociologia contemporânea. entretanto. trata-se de duas realidades em tensão perpétua entre o visível e o invisível. é portadora de uma realidade própria que não corresponde necessariamente à realidade do sujeito/objeto ou situação referente. ou ainda de “pensar o tempo”3. entre outros. em autores como Robert Park e Louis Wirth. Para o autor. como Roland Barthes e Vilém Flusser. Este mesmo caráter investigativo inspirou também as pesquisas da Escola de Chicago.47). Antonio Fatorelli (2003) nos traz contribuições importantes a esta discussão. em oposição à fotografia experimental. Pretendemos aqui abordar a fotografia documental em sua relação com a memória. Nesse aspecto. tecendo críticas à obra de autores consagrados no campo da fotografia. a qual confere prioridade à interferência da subjetividade do fotógrafo. Conforme aponta Kossoy (2002). o oculto e o aparente (2002: p. oferece à memória fragmentos visuais que informam sobre o homem. a natureza e a vida social em distintos períodos. É nesta perspectiva que a fotografia em sua modalidade documental se constitui calcada na referência física e concreta da realidade visível na representação fotográfica. 3. 107 .e pesquisadores em retratar a então efervescente vida urbana e seus grupos particulares2. a fotografia documental. em seu viés testemunhal. desde o seu surgimento. os gestos de lembrar e esquecer. Cf Gaston Bachelard (1994). na qual o fotógrafo acha conveniente minimizar sua participação manipulando seu equipamento apenas o necessário para a obtenção de imagens literais. a fotografia documental é convencionalmente aceita como aquela que acentua a importância do referente e do dispositivo ótico na formação da imagem. A fotografia. 2. 138) em torno de nós. esta relação entre a fotografia e seu referente constrói-se a partir de distintas filiações conceituais as quais revelam olhares e pensamentos diferenciados acerca da memória e sociedade. A materialidade da fotografia é evocada em sua solidez irrefutável. influenciado pela sociologia clássica de Èmile Durkheim. Frequentemente. Trata-se de perspectivas em torno da fotografia 108 . 2002: p.Nas artes da memória. desde o ponto de vista de cada sujeito que rememora. Autoras como Ecléa Bosi. imutável e irreversível (Kossoy. o referencial material. atentas às construções simbólicas das imagens fotográficas como laços que engendram a memória. diante do qual as fotografias representam as “marcas visíveis” do passado. destaca o caráter social e coletivo da reconstrução das lembranças. A teoria social da memória de Maurice Halbwachs. no caso das fotografias. trazendo a tona lembranças que são. fixo. A perspectiva halbwachsiana da memória inspira diversas pesquisas nas quais a fotografia é analisada enquanto uma prova factual. a matéria – simbolizada pelos artefatos e objetos – assume um valor crucial no processo de reconstrução das lembranças. pela carga simbólica que trazem mas também. Myriam Lins de Barros e Miriam Moreira Leite trabalham profundamente nesta perspectiva. Para Halbwachs (2004). coletivas e constantemente atualizadas. os estudos de imagem fotográfica e memória primam pela relação indissolúvel entre a fotografia e o “fato passado”. pela possibilidade de reconstrução no presente de cenas passadas. um testemunho da realidade capaz de evocar lembranças. assim como o grupo social são fundamentais no ato de rememorar.47). Para Halbwachs. Os objetos têm um caráter social e referencial que os confere um “lugar” na memória. operando quase como “uma sociedade muda e imóvel” (2004: p. Ainda segundo Fatorelli (2003). Ao recolocarmos questões referentes à uma filosofia das formas para o contexto das imagens fotográficas. abrindo espaço para a tessitura de novas relações e qualidades evocadas na imagem. Uma forma que não é abalada pelas situações de conflito. ou seja. Os estudos de Simmel sobre a natureza sociológica do conflito trazem uma importante matriz para pensar a sociedade em termos de sua movência e não fixidez: para o autor. Simmel nos convoca a contemplar a instabilidade da matéria da vida social. traz em seu conteúdo um valor documental irrefutável. Pensar a fotografia desde esta matriz implica a retirada da solidez testemunhal da fotografia. imaginamos a retirada da ênfase de um suposto conteúdo substancialista inerente à fotografia e a recuperação da liberdade das formas na imagem. mas justamente se produz nela. À diferença de uma tradição durkheimiana. Nesse sentido.nas quais a sua qualidade enquanto documento é fundante. para o autor a separação entre fotografia documental e ficcional legitima a dicotomia entre uma prática fotográfica politicamente engajada em seu compromisso com o real. haveria a promoção de um tipo de fotografia direta. A permanência. 109 . e a desqualificação de uma produção fotográfica criativa na documentação de temáticas relacionadas à vida social. É fundamental retomarmos aqui a filosofia das formas de Georg Simmel e sua decisiva influência na fundação de uma sociologia contemporânea. voltada para temas críticos como a violência ou a miséria. que se ajusta e se orienta para a pesquisa dos complexos fenômenos que compõem o quadro da vida urbana. o conflito produz a forma da sociedade e é justamente através da tensão que a vida social se move. se dá na forma e não no conteúdo. portanto. e outras de inspiração meramente formalista. o tempo “congelado” de uma fotografia não é senão um arranjo temporal vibrante e nunca parado. é importante somar à abordagem simmeliana das formas a problematização do tempo proposta por Gaston Bachelard (1994). Nossas reflexões aderem à premissa bachelardiana segundo a qual não é possível pensar o passado. que lhe dá a propriedade de reconstrução de lembranças. não é possível destituir a profundidade temporal por ela evocada. Nesse sentido. perpetuado na matéria que constitui uma imagem fotográfica. Se para Simmel a permanência da vida social acontece pela forma. em Bachelard. já se coloca como uma forma de “pensar o tempo”. o autor revela o caráter fundamental do ritmo para a matéria. Nessa perspectiva. A obtenção fotográfica. para pensar a fotografia em sua relação com a memória. O tempo bachelardiano é instante. as escolhas que orientam o ato fotográfico não deixam de ser uma tentativa de organizar esse tempo. A solidez irrefutável e testemunhal perde força. um tempo que é organizado. 110 . Estes apontamentos reúnem um esforço por retirar a fotografia do estatuto fixo e imóvel que a palavra “documento” evoca. utilizado.Entretanto. por isso. e sim “pensar o tempo”. Ao se debruçar sobre a “ritmanálise”. no qual esta só existe em um tempo vibrado. nesse sentido. tão celebrada ao se falar de imagens documentais. coerente e eficaz. se fotografar é uma forma de pensar o tempo. esta permanência está na duração. compõe-se a partir de um arranjo rítmico. vibracional. e a duração está neste esforço pela continuidade. A imagem fotográfica é composta sobre a vibração temporal e a realidade visível. A obra de Bachelard nos convoca a desconfiar das bases de um realismo pouco sensível ao “materialismo ondulatório” descrito nas relações entre o tempo e a matéria. Assim. A fotografia convoca a esta materialidade do tempo vivido. de reprodução ou duplicação da realidade. retomando o princípio das formas de sociabilidade de Simmel. postos de lado ou incorporados à narrativa da memória. encontramos uma forma de pensar o tempo no tratamento e na escolha/organização das fotografias que compõem um acervo. Perguntaríamos quais seriam estes laços mais fluidos.liberando a imagem fotográfica de uma relação direta com a realidade visível. veiculados pelos grandiosos projetos arquitetônicos os quais redimensionam a “pequenez” da vida cotidiana em grandes escalas de equipamentos urbanos. as imagens fotográficas são envoltas em interpretações substancialistas. 1989: p. Seguindo os estudos de Gilbert Durand (2002) sobre o imagi111 . comumente dado à fotografia? A distinção que Michel Maffesoli recupera entre formismo e formalismo. Imagens fotográficas captam instantes que são aceitos ou recusados. para alguns quase vocacional da fotografia. É justamente neste ponto que reside a exaltação da fotografia documental frente a outros gêneros fotográficos: na capacidade. para além do estatuto de “testemunho da existência de pessoas. nos faz compreender a sociabilidade da vida urbana como impregnada de uma diversidade de formas sociais as quais contrastam com o formalismo discursivo atuante sobre esses espaços. Por outro lado. e à possibilidade de construção/desconstrução das narrativas reveladas pela imagem. que seguem criando imagens e memórias no interior dos espaços sociais. que as conectam estreitamente com um referencial concreto.39). conceitos respectivamente inspirados em Simmel e Durkheim. De modo geral. de lugares e de paisagens” (Lins de Barros. “O que entendemos por memória?”. ou seja. 1990) dos moradores do bairro. configurando práticas discursivas que conformam possíveis imagens da memória desta cidade. Foi uma demanda do Clube de Mães do Cristal à Comissão de Cultura da cidade de Porto Alegre.nário. de forma a dar continuidade a um certo discurso sobre os espaços urbanos habitados. Encaminhado a partir de uma demanda comunitária – leia-se de um grupo articulado e atuante de mulheres de meia e terceira idade –. Especialmente porque o grupo demandava um trabalho fotográfico “profissional”. e viabilizado por uma parceria entre o Clube. Vemos que a representação em imagens de uma cidade pode estar impregnada de um formalismo nos modos de ver e operar a linguagem visual. e não. Olhar de fora os olhares de dentro. a Descentralização da Cultura e a Coordenação da Memória/SMC. o projeto expressava uma preocupação em compor uma memória visual do bairro frente às correntes transformações urbanas em curso no espaço. 112 . O projeto “Memória Fotográfica do Cristal” consistia num livro de fotografias com imagens do bairro Cristal. Os desafios do projeto eram muitos. pelos próprios moradores. podemos falar em imagens que sobredeterminam outras. Partimos em busca de imagens criativas e autorais do Cristal. associadas a uma tentativa etnográfica de compreender os “quadros sociais da memória” (Halbwachs. Converter em imagens fotográficas uma memória de muitas vozes e continuamente atualizada no presente era o principal deles. foi uma das primeiras 4. “Guardar na memória”: desafios do fazer fotográfico documental Retratar a memória de um bairro de Porto Alegre foi o objetivo principal do projeto “Memória Fotográfica do Cristal4”. como inicialmente pensávamos. realizado por alguém de fora da comunidade. das ruínas do Estaleiro Só. Janaína Bechler e Jefferson Pinheiro (entrevistas e texto) e Rafael Corrêa (diagramação). mostrava não só uma ação política de protesto frente às transformações em curso. Realizado de janeiro a setembro de 2008. Ainda que cada uma remetesse à imagens por vezes coincidentes. a publicação de um livro que contemplasse as “imagens da memória” trazia a tona uma luta pelas imagens que se busca guardar. Eram imagens da orla. dos maricás floridos. das vilas que entremeavam o desenho do bairro com seus casebres e carroças. que cresce às custas da metamorfose de paisagens e usos cotidianos. A equipe era formada por Fernanda Rechenberg (fotografia). Ingressávamos. das corridas no Jockey Clube. assim. 2005) de um grupo. envolto em grandes empreendimentos culturais e comerciais que prometiam deixar para trás os loteamentos e vilas irregulares que até então 5. Na contramão da corrente de imagens que aludiam à chegada do “mito do progresso” (Durand apud Rocha.indagações do grupo de mulheres na busca por um delineamento do projeto que orientasse o trabalho da equipe5. 113 . por vezes discordantes. 2001) no bairro. da figueira. estava claro que as imagens da memória para este grupo em nada lembravam as transformações em curso. 6. A vontade de fixar estas imagens em um livro. Durante o período do trabalho de campo6 eram veiculadas sistematicamente pela mídia e espaços publicitários imagens referidas a um “novo” Cristal. mas também o desejo de preservar em imagens fotográficas a ação do tempo sobre a instável matéria da paisagem urbana. mas que também incluía as projeções de uma cidade que altera sua forma. nos “jogos da memória” (Eckert e Rocha. nos quais os interesses de distintos grupos embaralham-se e orientam novas práticas sociais. à diferença de uma etnografia da lembrança do passado. denotada pela intensa especulação imobiliária que passava a destacar a face “nobre” do bairro. Estávamos. ladeiras. formávamos nosso conhecimento sobre a vida urbana e os processos de transformação do Cristal através das imagens que produzíamos. Chegava o tempo de uma nova valorização dos espaços. praças e becos do Cristal. frente ao testemu114 . 2005). As nossas “enunciações pedestres” (De Certeau.caracterizavam o bairro. Percorrendo o bairro em busca de imagens buscávamos seguir uma “etnografia da duração” (Eckert e Rocha. para usar uma expressão cara à Bachelard. um pensar que organizava a experiência temporal embaralhada pela subjetividade intrínseca de uma equipe em busca de imagens. ao percorrer as ruas. a qual. um olhar “estrangeiro” ao bairro. só adquiriam substância e materialidade pelo desejo presente de lembrar. orientados pelos caminhos da memória do grupo de senhoras. 1994). 2001). os espaços e as práticas a eles associados no bairro. com o objetivo de atrair camadas médias e altas. Percorremos. “com a câmera na mão” (Eckert e Rocha. inspirados em uma “etnografia de rua”. propondo desenhos possíveis das imagens da memória. acolhe as ondulações rítmicas do pensar em relação ao tempo vivido. filiavam-se a outros espaços da cidade: tínhamos. “pensando o tempo”. Os trajetos percorridos em campo. a qual revia as suas próprias imagens na experiência urbana que constituía cada integrante enquanto habitante da mesma cidade. onde obter fotografias era sempre o “mote” para uma conversa e a análise posterior dessas imagens nos permitia formar um quadro amplo do impacto das transformações no cotidiano desses habitantes. portanto. durante 6 meses. Nestes percursos. Por outro lado. 2002). Embebida na “função fantástica”. algumas das tantas faces do bairro. pessoas e práticas que em pouco tempo estariam desaparecidas. interpretando paisagens. guardando.nho fotográfico. percebemos que a documentação fotográfica é sempre uma possibilidade e nunca uma representação absoluta do referente. esquecidas até. mesmo em sua aparente “fixidez”. “a contemplação 115 . Documental sim. O fotógrafo traz consigo filiações que revelam estéticas fotográficas particulares. Ao escolhermos o tema da memória para pensar o processo de obtenção de imagens. mas não pela tentativa de representar na imagem o referencial concreto do “mundo real” dos habitantes do Cristal. Para além da conhecida distância etnográfica que pauta a relação entre pesquisador e pesquisado. um conjunto de imagens e uma “forma” de compor essas imagens que seja potencialmente interpretativa da memória do grupo. As imagens “duravam” justamente porque não cessavam de vibrar. Como aponta Durand a respeito do aspecto ocular da imagem no contexto das artes fotográficas. transformadas. a memória organiza esteticamente a recordação (Durand. Documentar fotograficamente as imagens da memória de um grupo social é apenas uma aproximação possível entre “dois mundos”. Falamos de um trabalho fotográfico “documental”. O tempo captado pelas lentes da câmera não era congelado nem cessava de transcorrer depois de acionado o obturador. falamos de diferentes adesões a conjuntos de imagens. sujeita às oscilações do tempo. em sua memória. a matéria fotográfica é. a memória coletiva que entrelaça os informantes organiza-se a partir da “fonte inesgotável de idéias e imagens” na luta contra a dissolução no tempo. por testemunhar instantes de um tempo em vibração. da busca etnográfica por uma aproximação entre os diferentes olhares que se debruçam sobre um tema comum.do mundo é já a transformação do objeto” (2002: p.409). e em alguns casos. dos campos de conhecimento de adesão do fotógrafo. 116 . da configuração ambiental e social que se disponibiliza ao retrato. As fotografias são portadoras de construções simbólicas particulares que engendram tradições do campo da fotografia. Referências BACHELARD.). 243 a 259. 1994. 1994.). Iluminuras nº44. da. Rio de Janeiro. DURAND.br FATORELLI. (org. Petrópolis. São Paulo. Gilbert. Imagem e Memória: Estudos em Antropologia Visual. A dialética da duração. 2000. Antonio. KOSSOY. 1988. Mauro G P. DURAND. Porto Alegre. “Premissas para o estudo da memória coletiva no mundo urbano contemporâneo sob a ótica dos itinerários de grupos urbanos e suas formas de sociabilidade”. Imagem e Memória: Estudos em Antropologia Visual. Ecléa. 2002. Cornelia e ROCHA. Memória e sociedade. e EDUSP. Michel. SP. Rio de Janeiro. As estruturas antropológicas do imaginário. Cornelia e ROCHA. Cornelia e ROCHA.biev. SP. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Vozes. Boris. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. Fotografia e Viagem: entre a natureza e o artifício. da. “Imagens do tempo nos meandros da memória: por uma etnografia da duração”. Gilbert. Cornelia e ROCHA. Ltda. Disponível em http://www. São Paulo. Ana Luiza C. Queiroz ED. (org. Ática. 1999 p. ECKERT. Garamond. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. DE CERTEAU. In: Koury. Martins Fontes. 2000. ECKERT. 2001. Ana Luiza C. São Paulo. Gaston. Mauro G P.ufrgs. Ana Luiza C. In: Koury. 1987. da. São Paulo: 117 . ECKERT. 2003. “Imagens do tempo nos meandros da memória: por uma etnografia da duração”. BOSI. Ana Luiza C. Lembranças de velhos. Cultrix. In: Revista Margem. Etnografia de rua: estudo de antropologia urbana. da. Garamond. ECKERT. Puc. A imaginação simbólica. 118 . Zahar. São Paulo. n. Ana Luiza Carvalho da. Michel. “As figurações de lendas e mitos históricos na construção da Cidade tropical”. Myriam Moraes. SP. ROCHA. São Paulo. 1989. p 11 a 25. Vozes. As aventuras de Georg Simmel. A metrópole e a vida mental. (Org.Ateliê Editorial. (org). “Memória e Família”. 2002. SIMMEL. WAIZBORT. Porto Alegre: BIEV. Simmel. p. Editora Ática. Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. 1983. vol. 2008.). A memória coletiva. PPGAS/UFRGS. Editora 34. O fenômeno urbano. Leopoldo. MAFFESOLI. Memória. Maurice. Otávio G. 29 a 42. In: VELHO. In: Estudos Históricos 3. 1990. Rio de Janeiro. MORAES FILHO. recebido em julho 2001. G. E. Vértice. 2. LINS DE BARROS. São Paulo. 3. Rio de Janeiro. 1979. No fundo das aparências. HALBWACHS. Um sonho de cidade e uma soma de rupturas Estudo sobre os conflitos nos processos de gestão urbana em Porto Alegre Jeniffer Cuty Introdução Porto Alegre. de modelos espaciais e representações esquemáticas para o desenvolvimento do Município. como outras capitais brasileiras. pensamos aqui na duração conceitual e projetual do processo de reavaliação normativa. vem atravessando uma revisão da sua lei urbanística. Nesse sentido. este trabalho propõe pensar o planejamento urbano na cidade de Porto Alegre e a atuação dos agentes respon119 . a qual é responsável pelas diferentes configurações de traçados e de arquiteturas na cidade. até esgotar-se ou encaminhar-se para um novo projeto urbano e social. definindo o modelo de uma “nova cidade”. a qual permanece ou se renova até a proposta de uma nova lei. representando muito mais do que um conjunto de normas. pois carrega uma forte intenção conceitual e também processual. A complementação e a revisão de planos compõem apenas uma face do planejamento urbano. Nesse sentido. tendo em vista que aquela que está em vigor deverá se tornar obsoleta ou inadequada às demandas e às características assumidas pela cidade. O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental vigora na capital gaúcha desde 1999. Entendendo-se que a construção da cidade e da realidade implica em um processo de negociação entre indivíduos e grupos sociais e que o princípio do planejamento urbano sugere continuidade e agilidade na sua condução. durante as discussões sobre a construção da cidade do futuro (em fórum realizado entre maio e julho de 2008) e o encaminhamento da criação de um instituto voltado à pesquisa e à cooperação técnica no âmbito do planejamento urbano porto-alegrense. por conta de polarizações político-partidárias. entre forma e conteúdo (Simmel. as quais vinculam o tempo de ação do planejador ao tempo da gestão pública e ainda pela coexistência de interesses e tendências propositivas particulares destinadas a solucionar as questões urbanas. detectam-se rupturas importantes nessa tessitura projetual. Como referencial teórico. 1983). Para tanto. com as reflexões sobre experiência a partir da obra de Benjamin. A revisão desses “contínuos atos” de planejar a cidade – na sua origem e no seu processo atual – através da investigação dos atores e dos grupos sociais diretamente envolvidos. oficinas e reuniões de técnicos em Porto Alegre. utiliza-se como estudo de caso a observação realizada em painéis.sáveis pela gestão urbana a partir da perspectiva do conflito e das tensões observadas. portanto ideológicas. pode contribuir para a compreensão de aspectos da sociedade e da cultura. em espaços políticos de discussão voltados para o exercício de sonhar coletivamente a cidade que se tem e que se quer. com a dialética da duração de Bachelard e com a noção de cidade como experiência temporal e a possibilidade de investigação do planeja120 . propõe-se trabalhar com os estudos de conflito e tragédia da cultura de Simmel. bem como da possibilidade ou não de execução de análises e diagnósticos ambientais e projetos urbanos em diferentes escalas. a fim de aproximar este trabalho aos estudos de memória coletiva. 2. Desenvolvimento econômico. em Porto Alegre. assuntos como Mobilidade urbana. realizado entre maio e julho de 2008. discursos e experiências do cotidiano de atores dedicados a traçar e sonhar estratégias para o desenvolvimento da cidade. destaco a observação realizada no Fórum “Porto Alegre: uma visão do futuro”1 e nas reuniões que ocorreram paralelamente a este congresso. portanto. Georg Simmel nos auxilia a refletir a configuração. numa conceituação para reuniões que ocorrem no IAB/RS2 e na AsBEA3. os quais nos informam sobre práticas. como fóruns. especialistas e comunidade organizada. Um dos principais encaminhamentos do fórum foi a criação de um Instituto de Planejamento Urbano em Porto Alegre. AsBEA: Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura. Entre elas. Urbanismo sustentável. IAB/RS: Instituto dos Arquitetos do Brasil Departamento do Rio Grande do Sul. oficinas e reuniões em associações de classe. Interação e troca de experiências entre técnicos Com o objetivo de refletir a atuação técnica nos processos de gestão urbana em Porto Alegre e seus conflitos internos. 121 . teve como objetivo central debater entre técnicos. Simmel refere-se a uma “estetização da vida social” na identificação de formas. Retoma-se ainda a leitura de Halbwachs. a fim de explorar conceitualmente a formação e a conservação desses espaços. O Fórum “Porto Alegre uma visão de futuro”. o planejamento e a gestão urbana. detive-me por três meses na observação de espaços de debate. pensando. 3. a fim de traçar novos caminhos para o desenvolvimento. Dinâmica e estética urbana. ou 1. a dinâmica e os conflitos dos espaços de discussão e de participação aqui focalizados. entre elas as “sociações reguladas por códigos de interação”.mento urbano a partir de uma etnografia da duração proposta por Eckert & Rocha. por exemplo. sentiam-se mais motivados a demonstrar seu conhecimento entre 122 . mesmo que saibamos que muitas dessas propostas não terão vitalidade técnica e política para serem aplicadas. suas capacidades de argumentação. e constitui assim o que chamamos de sociabilidade em sentido rigoroso” (Simmel.63). situação que provocaria o fenômeno da sociabilidade ou “a forma lúdica de sociação” (Simmel. de um lado. Voltar-se para esses ambientes de sociabilidade é refletir. apontando para o prazer de estar reunido. o qual “se desvencilha das realidades da vida social e do mero processo de sociação como valor e como felicidade. O autor vai além da identificação dessas formas. entre si. ou seja. inclusive. apresentar propostas inovadoras e. percebi grupos de técnicos “falando a mesma língua” e exercitando. sociedades com objetivos comuns entre seus membros. 2006: p. ir além da representação projetual de cidades. a necessidade de estar sociado e de sentir-se parte do processo de decisão sobre os rumos da cidade. configurando.64). de outro questionamos o estímulo para a recorrência de sociações formadas pelos mesmos técnicos discutindo os mesmos temas. interação e troca. assim. Podemos então nos valer de sua teoria para analisar os grupos técnicos incumbidos da tarefa de “solucionar” obstáculos ao planejamento e à gestão urbanos. O autor refere-se ainda a um “impulso de sociabilidade”. Reunidos para discutir possíveis encaminhamentos acerca do “patrimônio urbano edificado”.mesmo no Fórum citado. Simmel nos auxilia a resolver a questão sobre “o que é a sociedade” e a entender como e por que ela se conserva. No primeiro espaço de discussão que observei. 2006: p. entre si. observamos grupos ligados por relações mútuas. afirmando que ele “vê sociedade onde há reciprocidade”. Se. si do que realmente partilhar propostas viáveis sobre o problema em questão. Observei momentos de tensão, iluminando interesses divergentes expostos na “visão de cidade” de cada um. Objetivos contrapostos podem assinalar, conforme Simmel, “forças integradoras do grupo que se forma”, concentrado nas discussões por uma cidade a ser construída. Simmel defende que o conflito, no interior do grupo social, deve ser cultivado a fim de “garantir condições de sobrevivência”. A oposição de pontos de vista, nesse sentido, “permite-nos colocar nossa força à prova conscientemente e só dessa maneira dá vitalidade e reciprocidade às condições das quais (...) nos afastaríamos a todo custo” (Simmel). Para ilustrar esses momentos de divergência e conflito, descrevo trecho do meu diário de campo escrito após a observação da oficina no Fórum: O primeiro a falar no pequeno grupo que aderi, o arquiteto Tiago Holzmann da Silva, defendeu uma reavaliação dos discursos sobre patrimônio, salientando que “esta prática seria mais importante que a ação”. Reservando-se ao que lhe pareceu coerente (mesmo chamando discurso de prática), passou a palavra e baixou a cabeça – num gesto de quase indiferença com o que seria falado a seguir. Sem maiores digressões, o segundo a falar – o engenheiro e funcionário da Prefeitura Marcelo Allet – expôs sua “visão objetiva” da cidade que precisa de uma gestão eficiente, referindo-se a uma “equação econômica que deveria atingir os interesses gerais”, para, com isso, solucionar qualquer problema relativo à preservação do patrimônio. Para ele, o mais importante é entender que existe um sistema econômico e uma gestão pública “destoantes” e “tudo precisa funcionar como um bom negócio”. Lembrei das colocações feitas na defesa que assisti no dia anterior, sobre o mercado de arte e a logística empresarial que adminis123 tra grandes eventos, no caso, a Bienal do Mercosul. Seria possível pensar que, o empresário que investe em arte e na sua circulação está “imprimindo uma marca de competência e qualidade”, a qual o Estado (poder público) não conseguiria realizar. Para este empresário, está tudo em perfeita ordem, em perfeito funcionamento e o seu retorno nesse investimento está no prestígio da empresa, no cumprimento e na visibilidade de sua responsabilidade social, sendo que tudo isso representa um ótimo negócio. Estaria, então, este engenheiro do fórum sugerindo que as ações sobre o patrimônio material pudessem (ou devessem) ser privatizadas ou, pelo menos, administradas pelo empresariado? O conflito, segundo Simmel, assegura a continuidade e a conservação da forma e da sociedade. A tragédia, por outro lado, seria a ameaça da impossibilidade de transformação, através da desagregação total dos grupos envolvidos e da impossibilidade de realização de espaços de discussão e de construção coletiva, por mais que eles pareçam se repetir (na sua forma e no seu conteúdo). Por tragédia entende-se ainda a perda de tensão entre contrários, quando “sobra apenas um lado” político, a exemplo dos tempos de ditadura militar no Brasil. Se observarmos as ações sobre a cidade e sobre áreas de interesse cultural, poderíamos nos referir a objetivação da cultura que se dá através de tombamentos de edificações ou mesmo da fixação de determinadas “imagens” sobre áreas urbanas, lugares, grupos e indivíduos configurando também a chamada tragédia da cultura sugerida por Simmel. Outros aspectos a considerarmos nos “contínuos atos de planejar” e de refletir os processos coletivos, refere-se à experiência, no sentido adotado por Walter Benjamin, dos técnicos imersos na vivência e nos discursos da gestão urbana, bastante dispostos a com124 partilhar e mesmo narrar sua prática. Benjamin associa os textos que tratam da experiência à noção de enfraquecimento, seja da aura da obra de arte pelas muitas reproduções, pelo esvaziamento das grandes narrativas e pela atrofia da experiência. Sobre isso, poderíamos destacar a prática política de reunir-se para “falar e sonhar entre si” soluções urbanas como uma motivação e uma experiência a ser transmitida. O importante, para garantir a transmissão e a continuidade da própria idéia de planejamento é o exercício coletivo de “estar reunido em um ambiente aparentemente participativo e democrático”, o intercâmbio de experiências e a construção de narrativas, as quais, para Benjamin, têm uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir num ensinamento moral ou numa sugestão prática, num provérbio ou numa norma de vida, de qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (Benjamin, 1989: p.200). Por sua vez, a conotação que Benjamin dá ao conselho é inusitada: o conselho não seria propriamente uma resposta a uma pergunta, mas algo que poderia permitir, favorecer a continuidade de uma história que está se desenrolando e que poderia, portanto, tomar diversos caminhos. A respeito do narrador que transmite sua experiência, que provoca novos questionamentos e garante a conservação dos saberes e da cultura, recupero a imagem da segunda reunião que observei, desta vez na “casa dos técnicos”, o Instituto de Arquitetos do Brasil. Na ocasião, convidados e a Comissão de Urbanismo do IAB estavam reunidos para analisar possibilidades de criação do Instituto de Planejamento Urbano em Porto Alegre, esboçado nas oficinas do Fórum. Meu interesse estava focado em perceber determinismos e outras características nas apresentações e no debate. Esse mo125 A experiência no trato do que mostrar. o técnico aqui descrito alinhava uma idéia e a defende em público.mento seria como um laboratório de avaliação das nuanças entre comportamentos. seria o resultado de uma pesquisa criteriosa. de um lado. do exercício de imaginação e de representação de quem o elabora. ponderações e argumentações. Na formulação de um órgão de planejamento. muito me questionei sobre os determinismos da profissão do arquiteto que precisa apresentar sempre um discurso convincente sobre suas idéias e seus conceitos imaginados. afinal. lembramos que o arquiteto. Malinsky salientou que conhecia melhor o exemplo estrangeiro (francês) que os nacionais. (Diário de campo. sobretudo para contextualizar os institutos no âmbito das administrações. Este momento de construção coletiva se transforma num momento de convencimento coletivo. colocar-nos atentos sobre a 126 . porque partia de exemplos no Brasil e na Europa. no seu diaa-dia. Esta seleção mereceria muitos parênteses e muitas notas de rodapé. é aquele que imagina o tempo todo. de suas atribuições e vinculações. da cultura urbana e política de cada cidade (e país). Com a sua fala. Poderíamos. 14 de julho de 2008) Com essa performance. sendo que o primeiro palestrante apresentou uma estrutura clara e definida do que seria o instituto em Porto Alegre: O arquiteto Malinsky estava preparado com um PowerPoint que mostrava um projeto “quase executivo” de Instituto de Planejamento em Porto Alegre. A reunião se deu na forma de um painel. como revelar e argumentar é fundamental para o êxito do “projeto”. a maior parte arquitetos aposentados. A sala estava ocupada com aproximadamente trinta pessoas. da época de implantação de cada um. O esquema de criação do instituto era interessante. que. Assim. Assim. também reproduz suas vivências entre si e com outros grupos. mas nosso objetivo concentra-se em identificar práticas recorrentes e a conservação dos espaços de discussão entre técnicos. fato que nos levaria a considerar o produto coletivo de experiências compartilhadas e memórias construídas. O grupo que partilha momentos de discussão. é um fenômeno social. destacando que as narrativas não têm como objetivo buscar “a verdade” de cada narrador. assim como na capacidade e na predisposição ao seu compartilhamento. Se pensarmos que a memória. De outro. a fim de acrescentarmos elementos a esta análise. Isso nos leva a interpretar a prática política de argumentação e convencimento. Nesse sentido. A ação da memória ativada pelo convívio em grupos de discussão é fundamental para a conservação dos processos de gestão urbana. pois se dá na interação com o outro. Halbwachs nos ensina que agregamos lembranças de outros indivíduos em nosso conjunto de percepções do presente. podemos nos valer dos estudos de memória coletiva a partir da obra de Halbwachs. 127 . de um lado. ou seja. nem a verdade contida na narrativa. podemos afirmar que ela é constituída por um grupo.especificidade de quem é aquele que está falando e o que exatamente está defendendo. a qualidade e a complexidade de uma proposta projetual (como a criação do referido instituto) estaria relacionada à riqueza de experiência dos participantes desse processo. é transmitido na reciprocidade da vida social. não fixo. Benjamin nos fala sobre a transmissão de saberes através da narração que se dá coletivamente. segundo Halbwachs. ao longo da construção das reavaliações e proposições sobre a construção da cidade. Os grupos sociados e 128 . Para Bachelard. A ritmanálise. nem o mesmo poder de continuidade” (Bachelard). contrastantes nos seus objetivos. “Se o que dura mais é aquilo que recomeça melhor. Bachelard nos alerta para perceber as ondulações do tempo e os ritmos compreendidos como “sistemas de instantes. nem a mesma solidez de encadeamento. com maior ou menor intensidade. Com isso. bem como nas suas formações coletivas. devemos assim encontrar em nosso caminho a noção de ritmo como noção temporal fundamental” (Bachelard). O filósofo Gaston Bachelard e seus estudos sobre a dialética da duração nos abre novos focos de atenção investigativa no sentido de alertar para a percepção de ritmos que constituem os fenômenos da duração. os quais nos provocam ressonâncias profundas. tendo em vista que se entende que coexistem espaços de discussão e participação distintos na suas formas e nos seus conteúdos. sugerida por Bachelard.Um processo ou múltiplos processos de gestão urbana no Brasil? Iniciamos esta reflexão sugerindo a avaliação dos processos (no plural) de gestão urbana em Porto Alegre. destoando de uma harmonia em andamento”. observamos que espaços de debate e momentos de reavaliação do curso de projetos para a cidade representariam instantes que sugerem recomeços. Preocupado em refletir a duração. seria um método ou uma a terapia eficaz no trato da cidade e de sua gestão que esmorece com o tempo. por falta de “vida rítmica” e de “uma atenção e um repouso-rítmico” (Bachelard) ou ainda pela sua obsolescência. parece “impossível não reconhecer a necessidade de basear a vida complexa numa pluralidade de durações que não tem nem o mesmo ritmo. defendeu. a habilidade do planejador em abordar e compreender a diversidade de uso e ocupação dos espaços. mas será que a falta não estaria na capacidade de perceber utopias e outros ritmos? 129 . Há quem reclame da falta de utopias no urbanismo atual. o qual difundia zoneamentos rígidos e homogeneidades nas feições das cidades. “O ritmo das idéias e dos cantos comandaria pouco a pouco o ritmo das coisas”. a falta de habilidade no trato das “diversidades temporais bem reguladas” (Bachelard). ou seja. em pleno auge do modernismo implantado nos EUA. e os próprios movimentos utópicos indicariam ritmos e mesmo conflitos conceituais nos processos de administração urbana. as estratégias do planejamento e de gestão das cidades expressas conceitualmente em modelos gráficos. apresentada em “Morte e Vida de Grandes Cidades”. Podemos citar aqui a tese de Jane Jacobs.as propostas polêmicas são antídotos contra o esmorecimento. que. Una concepción trágica de la cultura. Cornelia. BENJAMIN. BENJAMIN. Jane. De qué tiempo es este lugar? Barcelona: Gustavo Gilli. Kevin. Da vida ao tempo: Simmel e a construção da subjetividade no mundo moderno. Walter. Porto Alegre: Corag. Gaston. 1990. 2005. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. 1988. 15. BATISTA. Maurice. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2006. Obras Escolhidas. As aventuras de Georg Simmel.Referências BACHELARD. São Paulo: Brasiliense. Simmel. São Paulo: Brasiliense. Vol. Evaristo (org. 2006. São Paulo: Martins Fontes. O tempo e a cidade. 130 . São Paulo: Vértice. ROCHA. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Passagens. Ana Luiza Carvalho de e ECKERT. out/2000. pp. MORAES FILHO. Magia e técnica. HALBWACHS. Selma. LYNCH. Georg. 1993. JACOBS. São Paulo: Imprensa Oficial.. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. 2004. 103-117. Lima: Ed. n. 2006. Porto Alegre: Editora da UFRGS.). Leopoldo. FERREIRA. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 3. 1972. Jonatas. 1989. A memória coletiva. São Paulo: Editora Ática. Walter. 2000. Obras escolhidas. SIMMEL. São Paulo: Editora 34. vol. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Morte e vida de grandes cidades. 1983.44. BENJAMIN. Vol. arte e política. PDDUA: Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental. 2000. WAIZBORT. PUC/ Peru. A dialética da duração. São Paulo: Editora Ática. 1. Walter. Memória. preservação/transformação de laços de sociabilidade. Quais seriam. os aspectos pertinentes do ritual dos 131 . Experiência e Política da Comunidade de Software Livre e de Código Aberto Brasileira Luis Felipe Rosado Murillo Introdução O olho vê. Destarte. uma vez que ela é constitutiva da experiência dos agentes no trabalho de tessitura. o paralelo aponta para a importância central da memória na vida social. Marilyn Strathern (2002) propôs um paralelo entre o ritual funerário dos Malanggan em Papua Nova-Guiné e a produção de tecnologia da informação livre e/ou de código aberto no que diz respeito a uma economia de imagens mentais. a lembrança revê A imaginação transvê É preciso transver o mundo Manuel de Barros. portanto. O exemplo dos Malanggan é ilustrativo de uma instituição melanésia que se funda efetivamente com base no trabalho sobre a memória. “Livro sobre Nada” Em sua discussão sobre coletividades imaginadas e múltipla autoria. virtualidade implicada no ritual de mortos célebres que ajuda a sustentar a composição/manutenção de coletivos melanésios. “através do tempo e do espaço. coletivos e suportes computacionais da comunidade de software livre e de código aberto. mas a investigação do trabalho sobre a memória e o que ela nos revela sobre os processos de constituição/preservação/deslocamento das fronteiras da comunidade F/OSS. 132 . O que particularmente nos interessa para este ensaio não é a afirmação reducionista de que tudo se resume ao estudo da memória e da imaginação. Outro elemento de comparação é o de que um determinado saber-fazer é requerido para a criação do Malanggan. expressão empregada em grande parte da bibliografia sobre o tema. Como imagem de uma escultura construída em homenagem a um falecido célebre da comunidade. É somente nesse sentido que os estudos sobre a Melanésia de Strathern (2001. como afirma Strathern (2002: p. 2002) servem como inspiração para o ingresso na problemática da memória e da socialidade. já que ela está encarregada de permitir o estudo da produção conceitual de um grupo e de outro com as suas especificidades contextuais e históricas. Doravante F/OSS (do inglês Free and/or Open Source Software). da mesma forma como os códigos de programas de computador circulam em redes de pessoas”. Já que o paralelo não pode 1. distribuidores e usuários de software livre e de código aberto1? Em primeiro lugar. assim como o fato de que a criação parte da memória do experiente criador que carrega consigo imagens-lembrança de outros Malanggans. apesar de inusitada.Malanggan entre os Melanésios para pensarmos a memória do coletivo de produtores. o Mallangan circula entre os melanésios.19). cumpre estabelecermos que a analogia não almeja ao estabelecimento de um denominador comum definitivo. A comparação entre o ritual mortuário da Nova Guiné com o chamado “modelo Open Source” é fortuita. Sob os eixos da experiência e da política. o trabalho “Os Quadros Sociais da Memória” de Maurice Halbwachs é um clássico fundador. ele demonstra o papel da atividade intelectual e memorial e mantém. sob esse aspecto. Ao superar a abordagem subjetivista Henri Bergson. gostaríamos. o autor lança as bases de uma sociologia da memória. apresentaremos respectiva e brevemente duas posições no debate sobre a memória: a discursiva e a hermenêutica. manutenção e deslocamento de suas fronteiras constitutivas. procederemos com a discussão sobre a comunidade de software livre e de código aberto brasileira procurando evidenciar o papel da memória para a criação. um ponto de convergência com a produção e distribuição de F/OSS no que diz respeito à centralidade da experiência. de sugerir que. procurando apontar quais são as suas potencialidades e no que ambas contribuem para o presente estudo – ainda que estejam marcadas em suas raízes por incompatibilidades de ordem epistemológica. Abordagens da Memória Ouvir [uma palavra] produz uma ressonância atávica dentro de mim Manuel de Barros. inaugurando também uma via para os estudos do 133 . ainda. Em um segundo momento.ser levado adiante pois as similaridades entre a economia de código aberto e de imagens mentais para a criação ritual de esculturas na Melanésia terminam aqui. se o Malanggan é uma tecnologia. “Livro sobre Nada” No que diz respeito ao estudo das relações entre memória e sociedade. 10. É a conjunção. igualmente. p. de múltiplas experiências. É através de sua abordagem sociológica que a noção de memória atinge o ponto de não-retorno em relação ao tratamento bergsoniano que lhe precede: ao invés de postular uma definição idealista. 134 . Segundo Sauborin (1997). tradução minha). a multiplicidade dos referentes da linguagem. 1997). a transformação do conceito de morfologia social teve conseqüências importantes. qual seja. a memória como repositório da totalidade das imagens-lembrança dos sujeitos. Assume-se que há uma multiplicidade do tempo social na justa medida em que indivíduos são sujeitos de múltiplas discursividades e. “da linguagem. Para o estudo contemporâneo da memória e da sociabilidade.cotidiano. do espaço-tempo. Halbwachs ancora a sua discussão da reconstrução sóciosimbólica da memória. Sob o postulado durkhemiano – no âmbito da teoria do conhecimento – de que os sistemas de classificação tem origem no social. Dentro da ordem da rememoração. com a memória coletiva organizada em quadros sociais a definir pertenças e externalidades. do tempo e do espaço social assumem a forma de uma problemática” (ibidem. que é a chave da delimitação da morfologia das relações sociais e se diferencia da morfologia social no sentido tradicional como formando um outro nível de objetivação. tradução minha). afirma Saborin. é o conceito de memória coletiva que permite redefinir o campo de estudos durkheimianos de morfologia social. A redefinição caracterizou “conjuntos sociais como totalidades parciais” (ibidem. já que contribuiu para lançar as bases de uma abordagem da heterogeneidade da vida social “ao colocar em jogo as noções de tempo e espaço social” (Saborin. ela passa a ser assumida como atividade coletiva de reconstrução do passado. por conseguinte. à superação dos problemas legados pela abordagem estrutural.K. sobretudo a “Arqueologia do Saber” de 1969 com sua proposta de análise “das condições históricas do exercício da função enunciativa”. e da linguagem e de suas condições históricas de produção para a perspectiva discursiva. em seus avanços. Halliday.A. Também assumiu uma grande centralidade nessa corrente o trabalho arqueológico de Michel Foucault. duas perspectivas contemporâneas estão referidas à memória. marcada pela preocupação com a relação entre linguagem. A primeira delas é a análise de discurso. Por sua vez. tendo oferecido respostas que apontam para a abertura do universo dos signos em direção à investigação da experiência e da linguagem no caso da hermenêutica. com base no marxismo relido por Althusser. um intenso teóricometodológico teve de ser levado a cabo pelo grupo do filósofo Michel Pêcheux na França da metade dos anos sessenta até o início dos anos 80. desde matrizes disciplinares distintas2. Ao deixar em suspenso as incompatibilidades de ordem epistemológica. Outros desenvolvimentos posteriores que também carregam o nome de “análise de discurso” tiveram origem na Inglaterra sob o título de Critical Discourse Analysis através dos trabalhos de Fairclough (1989) sob influência de Gramsci. no estruturalismo lingüístico de Saussure e na psicanálise de Lacan. é-nos permitido afirmar que todas as tendências em análise de discurso guardam entre si a proposta de historicização das práticas de linguagem com vistas ao desvelamento de relações de poder e dominação. É preciso clarificar o que referimos por perspectiva discursiva e hermenêutica neste ensaio. a perspectiva hermenêutica em dis135 . além dos trabalhos da escola francesa e da arqueologia de Foucault. tais como o fechamento do universo dos signos. 2. Ambas ocuparam-se dos limites do estruturalismo. Para que a definição de discurso como ponto de encontro entre uma memória e uma atualidade fosse elaborada. história e poder. A segunda perspectiva – de caráter hermenêutico – está referida ao trabalho filosófico de elaboração de uma teoria da interpretação combinada com a fenomenologia. do interacionismo simbólico e da análise da conversação. cujas origens remontam ao paradigma estruturalista francês e. da semiótica social de M.Com vistas ao tratamento analítico ou filosófico da problemática da multiplicidade dos sentidos e da experiência. 2008). A sua composição é a de uma rede de redes discursivas. 136 . Para uma discussão comparativa entre Hermenêutica e Análise de Discurso a respeito da definição de interpretação e do tratamento da relação estrutura-evento.. da direção do vento. da natureza e da disposição dos materiais e dos objetos que ela contém. Nesta perspectiva.Resta a pergunta contudo: no que ambas definitivamente contribuem para a discussão sobre a memória? A noção de “memória discursiva” teve origem no trabalho de J. J. ênfase adicionada).. e não da vontade expressa pelo incendiário. ou seja. todo o discurso “marca a possibilidade de desestruturação-reestruturação [das redes de memória. palavras de vingança. 1994 apud Paveau. a análise estará voltada para o acontecimento de retorno de enunciados provenientes do plano da memória (coletiva. sua modalidade de existência histórica essencial [. ver Carvalho. (Courtine. À diferença da abordagem discursiva. Michel Pêcheux aponta a distinção: “Uma vez que foi posto fogo em uma granja.” (Pêcheux. O domínio da memória é assumido como um plano virtual. faz-se necessário percorrer a via da restituição da agência para os sujeitos sem abandonar a investigação do lugar do político na linguagem. 1990: 63. Como evidência do conflito entre as duas abordagens em uma nota de seu texto “Discurso: Estrutura ou Acontecimento”. Está no horizonte da hermenêutica a busca do sentido oculto nos textos – um trabalho que pressupõe o sentido com conteúdo e a intencionalidade por trás da manifestação linguageira como sua condição de base. de suas imprecações. cujo foco está voltado para a narratividade como processo ativo de trazer para a linguagem a experiência humana do tempo. Nem o céu. Courtine (1981) sobre o discurso comunista dirigido aos cristãos. a ênfase está colocada na experiência efetiva de estar no mundo como condição primeira das práticas de linguagem.“se aceitarmos a idéia de que a linguagem é o tecido da memória. Como ponto de partida. etc. 1994). sendo] um índice cussão neste ensaio faz referência à filosofia de Paul Ricoeur (1989. etc. discursiva). 2004.]. lacunar e segmentado por tomadas de posição. nem a terra: para além do objetivismo discursivo que estuda o discurso a partir do descentramento dos sujeitos e do subjetivismo fenomenológico que se centra nos problemas da consciência e de sua conexão com o mundo. a propagação do incêndio depende da estrutura do madeiramento e das aberturas. a abertura de um campo de estudos para a investigação de um domínio próprio da memória. como defende Bergson. apagamentos no fio do discurso (intradiscurso). 1990: p.potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação. a ênfase da análise de discurso não está voltada para uma ação consciente. 1999: p. uma das condições fundamentais do trabalho analítico está dada pela caracterização do espaço da memória dos dizeres que marca adesões.176). p. deliberado. “no corpo orientado para ação” (ibidem. quer dizer.56). Henri Bergson inaugura uma investigação fenomenológica da lembrança. trabalho que se desenvolve no espírito e no campo perceptivo através da união. Ao contrário de Bergson.209). Do fio condutor que se inicia em Bergson. para além do idealismo de sua proposta. das “coisas que agem sobre mim e [d]as coisas sobre as quais eu ajo”. construído ou não. mas de todo o modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço” (Pêcheux. Como fundador da abordagem da memória enquanto domínio virtual. permanece como nexo a defesa do domínio ontológico da memória. passa pela reformulação sociológica de Halbwachs e encontra o tratamento discursivo da escola francesa. Daí o grande mérito da abordagem pioneira de Bergson que garante. Em Análise de Discurso. postulando que a memória está sempre presente en absentia e implicada virtualmente na percepção humana. pois. depreende-se que a ênfase é colocada na ação perceptiva. a totalidade virtual da memória (memória pura. no entanto. interligando. na medida em que ele constitui ao mesmo tempo o efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente. reformulações. Da afirmação de que “toda percepção já é memória” (Bergson. repositório das lembranças) e a memória atual do 137 . repetindo-se. sob o imperativo teóricometodológico do descentramento dos sujeitos e da afirmação de sua determinação histórica. 1999). esta só se realiza através de uma concepção na qual “o passado se conserva inteira e independentemente no espírito e o seu modo próprio de existência no modo inconsciente” (Deleuze. o interdiscurso3 preenche o lugar de base das memórias e de pré-condição dos dizeres. 138 . O lugar da hermenêutica fenomenológica de Ricoeur no debate sobre a memória é bastante peculiar. cada uma. fazendo a ligação e evidenciando a tensão entre os dois domínios interdependentes da percepção objetiva e da lembrança subjetiva no conhecimento das coisas. assume serem expressões da vida e da experiência humana do tempo textos. o interdiscurso pode ser definido como “uma série de formulações marcando. A aposta fundamental é a de que através de um exercício interpretativo é possível chegar até a questão da existência. parafraseandose. Para J. Para o autor. estabelecendo definitiva e necessariamente a articulação entre a linguagem. para Bergson. A hermenêutica de Ricoeur. 1998: p. enunciações distintas e dispersas. documentos e narrativas. É neste espaço interdiscursivo que se poderia denominar segundo Michel Foucault domínio da memória que constitui a exterioridade do enunciável para o sujeito enunciador na formação dos enunciados ‘pré-construídos’ de que sua enunciação apropria-se” (Courtine.J. no que diz respeito à linguagem. Se. 3. pois o ponto de partida fenomenológico. Courtine. pois ela se ocupa da relação entre o vivido e a linguagem com o objetivo trabalhar [n]a própria tensão entre sujeito e objeto. opondo-se entre si. o passado (já percebido) só retorna sob a determinação de uma percepção presente.corpo presente.18). por sua vez. transformando-se). o inconsciente e o político (histórico). Para a análise de discurso. articulando-se entre elas em formas linguísticas determinadas (citando-se. a realidade humana para ser estudada exige a mobilização da interpretação hermenêutica e da descrição fenomenológica pela via da investigação do sentido e da intencionalidade. No que consiste. do mundo do texto e do mundo do leitor. por fim. sendo que a “narração implica memória. pensada como articulação prática: pois. “o que importa é a maneira pela qual a práxis cotidiana ordena. o presente do futuro. Esta relação é teorizada como a tríplice mimesis com base no problema da experiência do tempo em Sto. Em suma. o presente é implodido em um tríplice presente – o presente do passado (memória). o autor defende um modelo interpretativo que se ocupa da relação entre a atividade de narrar histórias e o caráter temporal da experiência. o presente do passado. extraída da Poética de Aristóteles. Ao desafiar a concepção cronológica do tempo. um em relação ao outro.27). para hermenêutica a experiência é anterior à lin139 .86). p. leitores” (Ricoeur. A tríplice mimesis compreende três momentos: I. por conseguinte.85).96) das práticas de linguagem segundo Paul Ricoeur. 199x: p. trabalhada desde a hipótese de base de que “o tempo só se torna humano na medida em que é articulado em um modo narrativo” (ibidem. na qual aspectos temporais são pré-figurados em memória. previsão implica espera [. Os três momentos correspondem a uma “síntese do heterogêneo”. o presente do presente. Leitura. III. 1994: p. autores. o presente do presente (atenção) e o presente do futuro (espera). e. tessitura da narrativa. esse arco das operações? Voltado primeiramente para a narrativa. Porque é essa articulação prática que constitui o indutor mais elementar” (ibidem. configuração com base em elementos pré-figurados. coloca-se a tarefa de “reconstruir o arco inteiro das operações pelas quais a experiência prática se dá obras. em que entra em cena a refiguração com a combinação. II.. Agostinho e na análise de composições narrativas. experiência prática.portanto.] e é graças a espera que as coisas futuras estão presentes a nós como porvir” (Ricoeur. p. conforme os próprios termos do autor.. a linguagem é anterior à experiência. Ela não é sequer um mundo. É através do discurso. uma experiência para levar à linguagem e à partilhar” (Ricoeur. Porque estamos no mundo e somos afetados por situações. ela representa o seu fundamento – o telos da linguagem é a comunicação da experiência4. sua transformação – o que representa a concorrência colocada em termos dos processos de objetivação que delimitam o que é próprio e o que é exterior ao mundo do software livre. Para a análise de discurso de linha francesa (em busca do estudo das determinações de ordem inconsciente e histórica). sua modularidade. 1994: p. o objetivo da exposição anterior e daquela que se segue é o de empregar no estudo da comunidade brasileira de software livre e de código aberto as potencialidades de ambas as abordagens no estudo da memória: a importância do vivido e a dinâmica política da linguagem. Segundo Ricoeur. como ponto de encontro entre estrutura (da língua) e evento. o rótulo de “anti-humanistas”. Se existe para a abordagem hermenêutica uma centralidade do sujeito da experiência.120). duas dimensões podem ser exploradas: 1) a da oposição pública entre o livre e o proprietário que delimita 4. tentamos nele nos orientar por meio da compreensão e temos algo a dizer. Sem a pretensão de combinar as duas abordagens e sem procurar exaustivamente elencar seus pontos de convergência e divergência. o que rendeu a seus teóricos. 140 .guagem. Daí. na análise de discurso a tônica é a do descentramento dos sujeitos da consciência. que a experiência é passível de ser significada. Os processos de objetivação dizem respeito fundamentalmente à experiência e às tomadas de posição em relação à memória dos dizeres e das práticas relacionadas às tecnologias livres. O que está sob investigação é a tomada de posição em relação ao significado e a extensão possível do software livre. sua crítica. “a linguagem não constitui um mundo para ela própria. ainda no período de vigência do estruturalismo na França. . de procurar desvelar os processos nativos de afirmação/negação/denegação (apagamento) das diferenças que são constitutivas da experiência dos/das agentes da comunidade brasileira. É de grande interesse para a discussão o papel da memória nos atos de instituição da comunidade de software livre. isto é tão velho quanto os computadores.]. sua complementariedade. o criador do Projeto GNU de software livre. a primeira comunidade de compartilhamento de software teria sido a do laboratório de Inteligência Artificial do MIT. Mas nós fizemos isto mais do que a maioria”. Desta experiência5 teriam sido extraídos os elementos para a composição do núcleo-manifesto de uma economia de software livre: “Quando eu comecei a trabalhar no laboratório de Inteligência Artificial do MIT em 1971. para definir seu lugar respectivo. essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar. se integra.o escopo das coisas-a-saber e das coisas-a-fazer no âmbito das tecnologias livres e de código aberto. mas também as oposições irredutíveis” (Pollak. em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes [. assumida neste ensaio. eu me tornei parte de uma comunidade de compartilhamento de software que existiu por muitos anos. como vimos.. 1989:7). e 2) a perspectiva interna. 5. Compartilhar software não estava limitado a nossa comunidade em particular.53. a história e a memória: “A memória. 141 . A Comunidade Brasileira de Software Livre e de Código Aberto Segundo Richard Stallman. tradução minha). da mesma forma que compartilhar receitas é tão velho quanto cozinhar. 1999: p. A descrição de Stallman do “xangrilá tecnológico” que foi o laboratório de inteligência artificial do MIT é um sintoma do trabalho cultural e político de reconstrução da memória. já que é possível pensá-la nos termos de Pollak acerca da relação entre o político. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade. (Stallman. Vendedores de Software querem dividir os usuários e conquistá-los. mas eles acabaram indo longe demais: eu não podia permanecer em uma instituição onde tais coisas eram feitas contra a minha vontade” (Stallman. os problemas neste contexto estavam relacionados à possibilidade de copyrightability. A criação da GPL por Richard Stallman foi o produto de um contexto de mudanças substanciais nas leis de propriedade intelectual nos EUA. fazendo cada usuário concordar que não deve compartilhar com os outros. sobretudo. Com a mudança das leis em 1976 e 1980.Em 1984. dando origem a uma nova proposta de produção. um manifesto foi escrito e publicado por Stallman. Essas dimensões combinadas definiram o contexto da criação da primeira licença Copyleft. Foi. à definição de software per se e ao significado da infração do direito autoral de uma peça de software. Segundo Kelty (2008). eu não posso em boa consciência assinar um termo de sigilo ou um acordo de licenciamento de software. O manifesto GNU descrevia um cenário de crescente avanço na comercialização de software – com a subseqüente criação de impedimentos legais para o funcionamento de uma economia do dom entre programadores –. 1985 – acessado dia 13/10/ 2007. a prática comercial era dominada por segredos de fábrica e por proteção de patentes. 142 . Antes de 1976. e propunha uma nova economia cujo meio circulante fosse a informação a ser manipulada livre e colaborativamente: “Eu considero que a regra de ouro exige que se eu gosto de um programa eu devo compartilhá-lo com outras pessoas que gostam. tradução minha e ênfase adicionada). Eu recuso quebrar a solidariedade com outros usuários dessa forma. começou-se a fazer uso em larga escala da lei de direito autoral. Richard in “GNU Manifesto”. distribuição e utilização de software livre. sobretudo de 1976 à 1980. com a elaboração da licença GPL – General Public License6. Por anos. batizada e popularizada como Copyleft – que se ins6. eu trabalhei no laboratório de inteligência artificial para resistir a tais tendências e outras inospitalidades. html 143 . a liberdade de estudar como o programa funciona e adaptá-lo para as suas necessidades (liberdade no. a liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar ao seu próximo (liberdade no. Acessado dia 13/05/2005. estabelecendo pertenças e marcando distâncias entre os/as agentes. acesso ao código-fonte é um pré-requisito para esta liberdade.tituiu a obrigatoriedade moral do compartilhamento e a negação de qualquer tipo de aprisionamento da informação. 2). As “4 liberdades” descritas na definição do que é software livre são a expressão primeira dessa orientação: “O Software Livre se refere a quatro tipos de liberdade. e liberar os seus aperfeiçoamentos. para qualquer propósito (liberdade no. http://www. 3).gnu. um dos mais importantes desdobramentos na história da comunidade foi o surgimento da narrativa Open Source (código aberto) no final da década de noventa. Ao propor a substituição da expressão “software livre” e das táticas de propaganda de tecnologias de código aberto. Como conseqüência do crescimento da economia de software livre e de sua popularização em escala global. a partir do qual o enquadramento da memória opera ativamente – mas não sem conflitos –. a liberdade de aperfeiçoar o programa. (Projeto GNU)7 Este ato primordial de instituição do software livre através de um manifesto e de um instrumento jurídico específico. de modo que toda a comunidade se beneficie (liberdade no. para os usuários do software: a liberdade de executar o programa. acesso ao código-fonte é um pré-requisito para esta liberdade”.org/philosophy/free-sw. figura como discurso fundador. os propositores do Open Source almejavam desviar o foco das atenções do discurso pro7.pt. 0). a licença GPL. 1). mas não o define como um direito moral. Com o aumento da circulação na Internet das posições pró8. O Movimento de Software Livre tem como seu objetivo primário a idéia de que todo software deve sempre ser acompanhado de seu código fonte. com base nas licenças de software que instituem a “liberdade” e/ou o caráter “aberto” do código-fonte: “As diferenças entre o Movimento de Software Livre e o Movimento de Código Aberto são mais amplas e mais filosóficas. mas não todas as licenças de código aberto são software livre”.com/pub/a/oreilly/ask_tim/2003/gnusource_0703.org – tradução e ênfase minhas). do ponto de vista legal. foi possível experienciar o sentido das práticas de enquadramento da memória da comunidade. (Tim O’reilly. ou seja. com o direito do usuário de modificar e estender o código fonte. código-fonte aberto e fechado. pelo contrário. focaliza os benefícios pragmáticos do compartilhamento do fonte. o GNU Public License (GPL) e seus derivados. enquanto a definição de código aberto foi uma tentativa de capturar as similitudes em um espectro de diferentes licenças. O Movimento de Código Aberto compartilha esse objetivo. ao mesmo tempo em que se tornou necessário problematizar dicotomias superficiais entre a lógica comunitária (aberta e/ou livre) e a lógica corporativa – oposição esta que se expressa em diversas terminologias êmicas (“bazar” e catedral. Todas as licenças de software livre são código aberto. 144 . É um pouco mais inclusivo. http:/www. Segundo Tim O’Reilly.fundamente moral de Richard Stallman.).html – acessado dia 20/10/2006. Através do trabalho de imersão em campo. livre e proprietário.org 8 versus OpenSource. mas. academia e monastério.oreilly. GNU. etc. Além do mais. o Movimento de Software Livre é associado com apenas um único grupo de licenças. filosófico e pragmático. E eu vou ganhar conhecimento. manifestações começaram a emergir. was associated with the dotcom boom and the evangelism of the libertarian pro-business hacker Eric Raymond. refers to it. assim. e as pessoas que quiserem melhorar. HotWired. ao VI Fórum Internacional de Software Livre em 2005. Yahoo!. The two terms resulted in two separate kinds of narratives: the first. Com evidencia a repercussão local da narrativa Open Source. Kelty realizou uma resgate histórico com o objetivo de mostrar as origens de uma diferença que marca definitivamente a comunidade em escala global: “Free Software forked in 1998 when the term Open Source suddenly appeared (a term previously used only by the CIA to refer to unclassified sources of intelligence). G.Open Source e com a visita ao Brasil do porta-voz dessa iniciativa. Eric Raymond9. entrevista realizada dia 01/04/2005 – ênfase adicionada). sabe? Meu software é bom e eu vou abrir. regarding Free Software. Em seu trabalho sobre a significância cultural do Software Livre. eu sou muito mais open source que software livre porque eu sou técnica. (S. Eu estou dando o pouco conhecimento que tenho para o mundo e ele retorna mais. stretched back into the 1980s. represen9. problematizando a pretensa unicidade do movimento de software livre: “É que. Isso gera uma relação em cadeia em que os softwares vão ficando cada vez mais excelentes”. a Internet enquanto meio fundamental das sociedades em rede – é fundamental na dinâmica comunitária por conectar o global e o local na produção do software livre e de código aberto. se sintam a vontade. including the pragmatic (and polymathic) approach that governed the everyday use of Free Software in some of the largest online start-ups (Amazon. regarding Open Source. é um software de qualidade. Porque o que me atraiu para o software livre. promoting software freedom and resistance to proprietary software “hoarding.” as Richard Stallman. mas eu gosto mais da idéia do open source. and others all “promoted” Free Software by using it to run their shops)” (Kelty. 145 . LinuxChix Brasil. the second. the head of the Free Software Foundation.. 2008: 99). who focused on the economic value and cost savings that Open Source Software represented. lista ASL. de experiências ativas de trabalho e interação. e to no movimento software livre porque junto com muitas outras pessoas combatemos a alienação política e queremos construir um sociedade mais justo e solidária” (E. por excelência. isso não é problema nosso [.] Eu sou socialista.] desculpe. mas com fundamentos ideológicos. projeto Casa Brasil. Governo Federal. Associação Software Livre e Administradora de Sistemas para a Google. mas pra mim o SL e especialmente a GPL é a tradução do capitalismo na tecnologia” (F. Se isso vai acontecer moral ou imoralmente na visão de outras pessoas.org.R. por vezes...W.. Eles querem que o SL dê certo. 04/29/2008. Os criadores do SL não pregam isso e não se interessam por isso.. recolhidas em uma lista de discussão de pessoas envolvidas com a organização do IX Fórum Internacional de Software Livre. as pessoas envolvidas segmentam um tecido de memória comum..) 146 .) “Ligar o Software Livre com movimentos sociais diversos é coisa da cabeça de quem os liga. profundamente distinto com as tecnologias da informação e pela disputa em torno de símbolos como “liberdade” e “comunidade”..tando para as comunidades o espaço. realizado anualmente desde 2000 na cidade de Porto Alegre: “O software livre é sim uma tecnologia.] não sei de onde as pessoas tiram que o SL deveria ou alguma vez foi contra capitalismo [.. Intimamente marcados pelo engajamento ativo e. 04/30/2008. Tais como nestas manifestações. e esta é uma decisão política de garantir as 4 liberdades [. O software livre somente está onde está hoje porque foi idealizado a GPL.Org. segmentada e disputada.. lista ASL. A política enquanto relação de força nos discursos está referida precisamente às tomadas de posição em relação a uma memória compartilhada. 147 .W. de disputa entre ofertas de software. enfim. a expressão movimento de software livre suscita diferentes tomadas de posição. software livre). Para os defensores do movimento de software livre. participante da Fundação Software Livre / América Latina e administradora de redes da corporação Google. ficar fazendo.. se preocupa mais em fazer o seu. militante do Partido dos Trabalhadores e empregado do Ministério da Cultura no setor de inclusão digital. Para o caso da comunidade brasileira em específico.O debate bastante recorrente em torno da obrigatoriedade moral do compartilhamento e/ou da superioridade técnica do software livre ecoa nas manifestações de F. está em jogo primeiramente a eficácia da tecnologia e o investimento em diferenciais competitivos que dizem respeito diretamente às práticas colaborativas de produção de software de código aberto.R. o filosófico (para utilizarmos a definição empregada pelos agentes)... Politicagem porque quem realmente desenvolve software (Open source.. Os exemplos expressam distinções latentes e transpõem demarcações traçadas anteriormente no plano internacional da comunidade. a injunção ao compartilhamento da informação precede o momento de mercado. tanto de um ponto de vista que privilegia trabalhos técnicos como aquele voltado para o social.. Isto nos remete precisamente para o ponto em que é possível evidenciar quão marcadas as manifestações estão na disputas que partem de agentes cuja experiência com as tecnologias livres e/ou de código aberto é bastante distinta: “Movimento de Software Livre? Eu diria que é politicagem. G. fazer e contribuir com a comunidade ao invés de fazer propaganda. 04/06/2005). Para os adeptos do modelo de negócios de código aberto (open source). e E. ficar fazendo política” (E. CAcert. Quem realmente faz não fica falando bobagem. geralmente não se envolve tanto com a política. podemos afirmar que a expressão “movimento” de software livre produz diferentes sentidos por suscitar memórias de agentes envolvidos de formas distintas com as tecnologias. com política”. Digamos que é o pico visível de um iceberg de mudança de forma de produzir. da forma como está se colocando no Brasil. (B.“Eu vejo o movimento de software livre como uma semente de transformação social. “Neste momento. A gente vê isso diariamente..P. N. só existe um movimento político. Projeto Debian. no Brasil. entre o técni148 ... quem sabe. 01/06/2005).. esta posição.. Grupo de Usuários Slackware. diferentes agentes com as mais variadas trajetórias é que os enunciados servem de índice para uma tensão que é característica da comunidade brasileira. Não tem a preocupação com o software livre e. Em função da multiplicidade das experiências e de seu potencial de agrupar. para outras atividades da sociedade [. um dia ter uma infra-estrutura social cultivada pelas pessoas em um regime de compartilhamento” (D. Através da leitura do espaço virtual da memória que acompanha os enunciados precedentes.K. 02/06/2005). O movimento de software livre é uma força capaz de instigar uma mudança na sociedade na forma de produzir conhecimento” (G. A visão minha é a percepção do próprio grupo de Slackware que vê as pessoas fazendo uso de software livre para ter um crescimento político. sim. Não existe um movimento da tecnologia em si. conseqüentemente. Ministério da Cultura. em diversos Estados.] E. não tem interesse nenhum com software livre. “O movimento de software livre para mim hoje é a base de qualquer outra ação de expansão desses arranjos econômicos para outros produtos e. 03/06/2005). Dentro de sua rede de trocas.) “‘O momento ideológico e radical já ficou para trás. e a razão e não a emoção estão direcionando as estratégias de adoção de Open Source” (C.T. endereço: http://www. Este trecho faz parecer que os motivos por trás do software livre foram produtos da emoção. 2008. Existe um crescente numero de soluções de negócio baseadas em Open Source entregando valor real para as empresas.) A despeito dos posicionamentos críticos. O momento ideológico e radical já ficou para trás. entre o programador e o ativista: “O ecossistema em torno do Open Source já é maduro o suficiente para impactar a industria e os usuários de software. as divisões internas da comunidade não implicam em ruptura a ponto de se constituir em um diferente coletivo.” (Anônimo11 – ênfase adicionada.ibm.co e o não-técnico. marcando adesões e distanciamentos em relação à memória do “movimento de software livre”. Acessado dia 4 de Agosto.com/ developerworks/blogs/page/ctaurion?entry=ecossistema_open_source_amadurecendo_r%C3%A1pido 149 . e no do trabalho em prol da eficiência das tecnologias Open Source –. endereço:http://www.ibm. Bela forma de tratar aspectos sociais importantes com descaso. Acessado dia 4 de Agosto. e a razão e não a emoção estão direcionando as estratégias de adoção de Open Source’. É como dizer que a independência da India aconteceu por razões emotivas. IBM Brasil10 – ênfase adicionada. 2008. As organizações já olham e implementam softwares Open Source sem os receios de alguns anos atrás.com/ developerworks/blogs/pagectaurion?entry=ecossistema_open_source_amadurecendo_r%C3%A1pidoreço: 11. a afirmação da existência ou não de um 10. As regularidades observadas podem ser evidenciadas no evento de retorno de enunciados (do plano da memória dos dizeres). a re-figuração. em seu funcionamento. O lugar de instauradores de discursividade de Richard Stallman e de Eric Raymond apresenta-se como pré-texto de um ativo processo de tessitura de novos dizeres. o processo de leitura é a abertura para um novo gesto interpretativo. Do processo de composição resulta. de coisas ditas e feitas (refeitas e ressignificadas).movimento de software livre é discursivizado de forma recorrente como: a sobreposição indevida do político ao técnico e/ou a adesão ao discurso comunitário e colaborativo. As manifestações dos/das agentes apresentadas até aqui referem-se. à trajetória dos agentes e à memória. leitura do que é dito e experimentado. enfim. tal como aparece na tensão entre a política e a tecnologia. largamente mobilizada e atualizada. Nesse processo delinear fronteiras entre a política e a técnica. além de elementos pré-figurados. 150 . abrindo e reiniciando o processo da tríplice mimesis. No processo de rememorar e atualizar dizeres. o discurso fundador da GPL e da Iniciativa Open Source préfiguram um campo de possíveis que se transformam a partir da experiência efetiva e diferenciada dos diferentes subgrupos que compõem o tecido sócio-técnico heterogêneo da comunidade brasileira. Tal como em Ricoeur. Daí a negação da política e reafirmação da técnica como índices de posicionamentos críticos em torno de acontecimentos experimentados com diferentes significados atribuídos. também participa da composição a espera: o horizonte os agentes antecipam relacionados com as tecnologias livres e/ou de código aberto. KELTY. New Jersey: Duke Press. C. Volume 1. J. CASTELS. DELEUZE. São Paulo: Vértice. Two Bits. 2005. Maurice. I. 1a ed. Manuel. Freda & LEANDRO FERREIRA. COURTINE.Referências BERGSON. Os multiplos territórios da análise do discurso. 2008. sociedade e cultura. Christopher. Matéria e Memória. M.). 1999. In: Galliazi. Sagra-Luzzatto.br/ 151 . São Paulo: Martins Fontes.discurso. p. Metodologias emergentes de pesquisa em educação ambiental. Bergsonismo. A memória coletiva. HALBWACHS. v. Porto Alegre. 1999. Percurso Epistemológico e Histórico. V. São Paulo: Editora 34. Maria Cristina. M. A sociedade em rede (A era da informação: economia. 1998. acessado dia 13/05/2008 – http://www. CARVALHO. São Paulo: Editora Paz e Terra. In: INDURSKY. . PAVEAU. Ijui: Editora Unijuí. 2004. . Jean Jacques.. Freitas. C. O chapéu de Clementis. Gilles.ufrgs. Henri. Reencontrar a Memória. Marie-Anne. 1990. Análise do discurso e hermenêutica: reflexões sobre a relação estrutura-acontecimento e o conceito de interpretação. . 201-216. (Org. ________. 1997. POLLAK. 2. “Perspective sur la mémoire sociale de Maurice Halbwachs” in Sociologie et Sociétés. Rio de Janeiro. “Memória. Paul. Paul. 152 . SABORIN. Silêncio. p. 1990.sead2/simposios. 3-15. pp. 1994. Porto/Portugal: Rés. RICOEUR. 1988. Esquecimento” In Estudos Históricos. vol XXIX. no. São Paulo: Pontes. Michel. Tempo e Narrativa – Tomo I. vol. Michel.html PECHEUX. Campinas: Papirus. 2. 3.139-161. 1989. O discurso: estrutura ou acontecimento? Campinas. n. Conflito das Interpretações. ele mesmo bosquejando mapas junto aos seus interlocutores e deslocando-se com eles através de fronteiras e paisagens imaginárias. na cidade de Porto Alegre: o Elo Dourado. proponho uma reflexão teórico-metodológica sobre imaginação e narratividade da e na cidade levando em conta fundamentalmente 153 . as construções de memória coletiva que ali estão em jogo. Penso o diálogo etnográfico como um “caminhar juntos” no esforço de imaginar o espaço urbano tal como vivido pelos sujeitos do estudo. Sociabilidade e Memória no PPGAS – UFRGS e trata-se de uma tentativa de articular parte da bibliografia relativa a paisagem. e atualmente em vias de regularização fundiária. Considero o papel do etnógrafo como narrador. com o objetivo de construir um enquadre para a escuta e interlocução na experiência etnográfica das diversas narrativas sobre a cidade e a experiência de vida na cidade. invasão individual e invasão coletiva organizada. Objetivo compreender. através de suas práticas cotidianas e das suas narrativas. Neste sentido. espaço e imaginação nela trabalhada.Horizontes urbanos Paisagem e imaginação no encontro etnográfico Mabel Luz Zeballos Videla O presente artigo é resultado do acompanhamento da disciplina Individualismo. Desenvolvo pesquisa etnográfica junto aos moradores de uma vila constituída em processo de loteamento irregular. e particularmente de pessoa moderna. que se estendem para além de seus limites imediatos. Munn. à concepção do espaço urbano e dos deslocamentos nas cidades e entre cidades: O homem não termina com os limites de seu corpo ou a área que compreende sua atividade imediata.os ensinamentos de Georg Simmel. do ponto de 154 . Não se trata de pensar as fronteiras como limites a serem atravessados ou transgredidos. 1967: p. integrando a ação dos indivíduos e o tempo. pode se ancorar uma reflexão sobre a cidade para além de suas características físicas. Duração. Crapanzano. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que emana dela temporal e espacialmente. (Simmel. e ancorada na minha experiência etnográfica. Gaston Bachelard e Walter Benjamin. uma cidade consiste em seus efeitos totais. ou melhor a duração (Bachelard. 2004.23) Proponho assim uma abordagem do espaço urbano como implicando a configuração e refiguração contínua de horizontes e fronteiras imaginários nas práticas e narrativas de práticas espaciais dos atores (Cf. E as tentativas por “domesticar” esse além apenas conseguem deslocar o horizonte (Crapanzano. desperta desejos. A qualidade imaginária do horizonte assinalada por Crapanzano (2004) permite pensar as fronteiras como marcas ontológicas que supõem um “além” impossível de ser atingido. jogos de poder. Se pensarmos o espaço urbano. Narrativa Na concepção simmeleana de pessoa. Da mesma maneira. 2004). Paisagem. Esse “além do horizonte” oferece possibilidades. medos. mas deslocados. 1994). 2006). Descola. o nascimento e o aniquilamento ininterruptos das formas. No entanto.” (1996: p. Tal como o homem modela “um grupo de fenômenos” na categoria de paisagem. esta implica uma visão de uma unidade fechada. 2005) mantenho uso do termo lendo-o em referência ao mundo no qual o homem. De outro lado. podemos nos aproximar às formas de constituição das fronteiras no espaço urbano. 2006). que se destaca do precedente e reivindica seu direito em face dele (1996: p. Isto é. a unidade fluida do vir-a-ser. Para se perceber uma coisa tal como a paisagem – diz-nos Simmel – precisa-se ter uma unidade. menos como um dado físico e mais como uma operação simbólica através da qual a parte de um todo se torna um conjunto independente. na ação e no tempo. não sem uma certa violência. podemos compreender como essas fronteiras e horizontes são deslocáveis ou transponíveis na ação no tempo. como um espaço no qual esses indivíduos criam fronteiras e imaginam um “além” do espaço da experiência cotidiana. e seus conseqüentes deslocamentos na imaginação.. entendida como “a cadeia sem fim das coisas. 155 . em quanto espécie e em quanto indivíduo.15).. um conjunto percebido como tal pelo espírito. Levando em conta que a própria idéia de natureza é historicamente datada (Cf. Esta abordagem articula-se com a noção de paisagem tal como entendida por Simmel (1996). Essa infinitude é para Simmel a natureza. se bastando a ela mesma.vista dos indivíduos que nele moram. o homem tem uma “pré-ciência” da infinitude da qual a paisagem é um recorte autonomizado. se pensarmos em termos de “espaços de exclusão” dominados por poderes ou agências relativos não apenas às ações contemporâneas de outros. mas também a ações ancestrais tal como pensadas ou imaginadas por uma memória partilhada (Munn.17). exibe traços irredutíveis à representação do tempo linear. como diz Bachelard.” (Ricoeur. de compreender a diversidade dos fenômenos temporais e de ter o ritmo como base da eficácia temporal (1994: p. Os fenômenos temporais não “duram” todos do mesmo modo.“é no tempo” ou devém na duração. Ele nos diz (1994: p. A duração é construída de ritmos e a continuidade psíquica implica na multiplicidade de durações. e a concepção de um tempo único apenas torna imperfeita nossa visão dos fatos no tempo.99) Trata-se. Gaston Roupnel nos fez entender o lento ajuste das coisas e dos tempos. do “ser na duração” (Cf. ou o ser-“no”-tempo. É precisamente através de uma imagem espacial que Bachelard coloca a questão da descontinuidade e dos múltiplos ritmos da duração (e do ser na duração). O sulco do arado é o eixo temporal do trabalho e o repouso da noite é o limite do campo. “Mas é porque contamos com o tempo e fazemos cálculos que devemos recorrer à medida.8). ou melhor. junto às videiras]. 1994). Ser-“no”-tempo já é diferente de medir intervalos entre instantes-limites. Deve pois ser possível dar uma descrição existencial desse “contar com” antes da medida que ele exige. Com a mesma clareza com que delineia figuras de espaço. Bachelard. 1994: p. não ao inverso. É antes de mais nada contar com o tempo. [Minha ênfase] 156 . a planície arada nos delineia figuras de duração. ela nos mostra o ritmo dos esforços humanos. Esse “ser no tempo” é entendido aqui tal como Ricoeur (1994) o faz ao trazer o Dasein heideggeriano para o interior do ato de narrar. calcular.8): Diante desse campo humanizado [ao longo dos caminhos da Borgonha. A multiplicidade da duração exprime-se através da ação dos indivíduos no espaço. a ação do espaço sobre o tempo e a reação do tempo sobre o espaço. A intratemporalidade. o espaço não é imóvel e permanente em contraste com o dinamismo do tempo.27). 2005: p. Essa qualidade metafórica da duração vincula-se aos paradoxos entre tempo e narrativa. Bachelard. me aproximo a eles levando em conta a concepção bachelardiana do ato poético. Isto é.Isto é. que segundo Ricoeur (1994) resolvem-se. na tessitura da trama narrativa. O espaço deve ser pensado em relação à ação no tempo e a continuidade dever ser entendida como metafórica (Cf. pois as próprias intrigas coordenam distensão e intenção. penso a cidade como animada pelo “esforço dos habitantes de continuarem no tempo. Desde que viso estudar configurações de memória na cidade. do espaço e da imaginação em narrativas que constituem uma memória partilhada. E isto envolvendo certa violência interpretativa. ligando assim a problemática do tempo. 1994). 1993). de viverem concretamente suas memórias pensadas” (Rocha e Eckert. numa relação dialética entre narrativa e temporalidade: nem a consonância narrativa é o simples triunfo da “ordem”. em tanto processos imaginários. Assim. 1994). que faz explodir a linearidade do tempo historicamente pensado e logicamente organizado em discursos. nem a experiência da temporalidade se reduz à simples discordância (Ricoeur. Bachelard. ao mesmo tempo que são evidenciados. e a história dos indivíduos na cidade 157 . um ato sem passado que é preciso abordar nessa novidade. concordância e discordância. a imagem como símbolo remetendo para um “além” que não é de caráter histórico. É através de atos poéticos que os meus interlocutores constroem uma continuidade para suas biografias na urbe. Há na poética do ato narrativo um fazer com o tempo que sintoniza com a poética do espaço tal como entendida por Bachelard (1993). no presente da imagem (Cf. tornando-se o antropólogo.54): Ironicamente. Alimenta-se assim um universo simbólico mais ou menos partilhado.como a história das situações que eles enfrentaram em seus territórios (Rocha e Eckert. sendo por ele capturada.30). Trata-se pois. elas mesmas criadas e recriadas a cada novo ato de narrar. incluída a etnógrafa. 2004) em sua diversidade e em sua semelhança. É nessa operação que as nossas trajetórias e experiências são narradas em relação às paisagens da cidade. tessituras de intrigas das quais participam todos os interlocutores. Nessas narrativas são jogados nossos horizontes imaginativos (Cf. como diz Benjamin. Pois. toda narrativa etnográfica pretende capturar o movimento da vida vivida. Seguindo Rocha e Eckert (2005: p. tragicamente.198). 2005: p. os meus interlocutores e eu vemo-nos envolvidos em múltiplas narrativas da cidade. E nessa tarefa destaca-se a figura do narrador. preso desse encadeamento insondável do próprio movimento do tempo. Tentar compreender essa poética em funcionamento é o que a interlocução etnográfica deve permitir. Na troca contínua de conversas e nas caminhadas partilhadas como parte da pesquisa. moradores urbanos tanto eles quanto eu. Crapanzano. entendo meu próprio papel como o lugar de narrador e de coisa narrada. No meu caso. tanto na pessoa do etnógrafo quanto nas pessoas dos seus interlocutores. Portanto. de pensar alguns dos processos de constituição de paisagens imaginárias dos meus interlocutores através de uma 158 . a arte de narrar vincula-se à faculdade de intercambiar experiências (1993: p. conjuntos de imagens que remetem para a memória da cidade. Rocha e Eckert. 2005).221). Pois. 159 . entendo as falas partilhadas em campo como carregadas de imagens e ritmos do ser na cidade. mas como parte de experiências partilhadas.205). uma memória coletiva da cidade.etnografia da duração (Cf. “o narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer” e sua experiência biográfica transcende a experiência individual. 1993: p. 1993: p. sendo em grande parte uma experiência alheia (Benjamin. Assim. E não apenas como as paisagens e as temporalidades dos sujeitos que narram. privilegiando a figura do narrador que imprime na coisa narrada a sua marca vital (Benjamin. W. Rio de Janeiro. p. A invenção do cotidiano: 1. In: Política e trabalho. SP .Referências BACHELARD. 12. Philippe. Zahar. “Excluded spaces: the figure in the Australian aboriginal landscape”. “O narrador. p. artes de fazer. Denise. Papirus. 2005. In: Velho. C. Campinas. The Anthropology of space and place. Pardelà nature et culture. Low and Lawrence-Zúñiga. 13-38 DESCOLA. In: CRAPANZANO.L. 1994 BACHELARD. 13-28 160 . Imaginative Horizons. O Tempo e a Cidade. São Paulo. An essay in literary-philosophical anthropology. Vozes. Vincent. 2006. p. São Paulo. 2004. 1993 BENJAMIN. Michel de. 1967. 15-24 SIMMEL. Petrópolis. Philippe. University of Chicago Press. “A filosofia da paisagem”. 1. In: Setha. Brasiliense. Walter. setembro 1996. UFRGS. Obras escolhidas vol.): O fenômeno urbano. Georg. Paris. São Paulo. 1994 CRAPANZANO. Otávio (org. I. 1994 ROCHA. In: Benjamin. Vincent. Nancy. Magia e técnica. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Descola. Ática. Chicago-London. p. A. “Le grand partage”. “Imaginative horizons”. A dialética da duração. Gallimard. 1993 CERTEAU. arte e política. p. Porto Alegre. Martin Fontes. A poética do espaço. Oxford. 2005 SIMMEL. & Eckert. da. Georg: “A metrópole e a vida mental”. Gaston. 92-109 Paul Ricoeur: Tempo e narrativa. 91-131 MUNN. Gaston. mas aqui é o meu lugar” Sociabilidade e cotidiano entre um grupo de idosos habitués da praça Saldanha Marinho. As referidas observações participantes se inserem na pesquisa etnográfica que proponho realizar na minha dissertação de mestrado. realizadas entre fevereiro e julho de 2008. Rojane Brum Nunes Introdução O presente trabalho propõe tecer algumas reflexões acerca de dados etnográficos obtidos através de observações participantes. no programa de pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do sul – PPGAS/ UFRGS. semestre 2008/01. no centro da cidade de Santa Maria. RS. Tais reflexões serão realizadas à luz da bibliografia ministrada na disciplina Individualismo. Sociabilidade e Memória. que busca apreender os usos. 161 .“A praça é nossa. os sentidos. Santa Maria. Rio Grande do Sul. centro de Santa Maria – e de que modo essas questões se relacionam com o processo de experienciar a velhice em um contexto urbano-contemporâneo. as práticas sócio-culturais e as formas de sociabilidade que esses idosos estabelecem em suas relações com um território específico – Praça Saldanha Marinho. junto a um grupo de idosos habitués da Praça Saldanha Marinho. um dos principais representantes do Interacionismo Simbólico. um deles me respondeu: “Pois não! Sente-se! A praça é nossa. eu também busco apreender as motivações simbólicas envolvidas no processo de territorialização de um espaço público. Sociabilidade e interação: os “papéis sociais” no encontro etnográfico Cabe aqui registrar que o título desse trabalho decorre da minha primeira inserção em campo. 09/02/2008). comportando duas equipes – a que controla a ação ou o “espetáculo” – os atores – e a outra que se definirá como “platéia”. configuram uma “cena social”. orientadas por determinados modelos estabelecidos de conduta ideal. mas aqui é o meu lugar!” (Diário de campo. as estratégias de construção e manutenção de fronteiras simbólicas e os vínculos de identidade e pertencimento que se configuram a partir desse processo.Nesse sentido. onde os idosos se reúnem. na qual. ao focalizar as interações sociais. considera que quando interagimos com outras pessoas estamos desempenhando “papéis sociais”. considero que à pesquisa antropológica não cabe averiguar a veracidade desses conceitos e tampouco a das “fachadas sociais” 162 . Embora a linguagem dramatúrgica de Goffmann utilize-se de conceitos como “representação falsa”. assinalando que essas representações. o que demonstra o fato de estarmos constantemente representando na vida social. Goffman (1987) descreve o processo de interação através de uma linguagem teatral. ao pedir licença para sentar em um dos bancos da praça. “papéis sociais discrepantes”. como dizem. O sociólogo Erving Goffman. a totalidade de atividades de um ator desenvolvida em um período de tempo. 1987: p. lhes conferindo um estilo socialmente valorizado” (Goffman. incorporando à sua atividade os signos que dão um brilho e um realce dramáticos aos fatos que. “Uma vez adquirido o repertório simbólico apropriado e familiarizado com a sua manutenção. 163 . durante sua representação. poderiam passar despercebidos ou não serem compreendidos. toda a interação social implica numa representação a partir de uma “fachada” definida como: “A fachada é a representação. ao desempenho e à manutenção de determinadas “fachadas” e “papéis sociais” no decorrer das interações sociais. utilizada habitualmente pelo ator. a sua representação tende a incorporar e a ilustrar os valores sociais oficialmente reconhecidos. sim.41). buscar compreender as motivações simbólicas que levam ao agenciamento. pode-se utilizálo e dar brilho às representações cotidianas.” (Goffman. mas.representadas pelos atores.30) O sociólogo assinala ainda que quando um ator está na presença de um público. a complexidade da “cena social” dificulta classificar e delimitar quem são os “atores” e quem faz parte da “platéia”. dado que segundo os próprios pressupostos teóricos do autor. caracterizada pela presença contínua do mesmo diante de um conjunto de observadores. 1987: p. A fachada é a aparelhagem simbólica. de propósito ou não. Por outro lado. ao contrário. 1987: p. depois que soube que ele era irmão de um ex-colega meu. ficamos mais amigos ainda! Somos velhos amigos! E amigos velhos também [risos]. segundo Goffman. percebe-se que o grupo pesquisado e o/a pesquisador/a enquanto atores sociais.59). entre o pesquisador e o seu grupo de pesquisa. Já demos muitas risadas por aqui! Mas. ele é muito mais velho do que eu. uma oposição essencial entre nosso “eu íntimo” e nosso “eu social” (Goffman. 21/05/2008). hein! [risos]. A partir dessas narrativas e à luz dos pressupostos interacionistas de Erving Goffman. O seu Luís respondeu-me: “Daqui da praça! Ficamos amigos aqui na rua mesmo. faz surgir. desempe164 . O seu Augusto reagiu à provocação dizendo assim: “Mas que esperança. enquanto uma “interação face à face”.” (Diário de campo. perguntei-lhes de onde eles se conheciam. Mas. é só o que me falta! Ah! É que hoje tu tá mais ‘engraçadinho’ainda por causa da visita [referindo-se à pesquisadora] né? Deixa estar. (Diário de campo. durante as representações do eu na vida cotidiana. Em uma observação participante. depois nós conversamos!”. que se dá para ambos a partir da incorporação de “fachadas” e do desempenho de “papéis sociais” e sob a perspectiva do encontro entre essas “duas instâncias do eu” – o íntimo e o social. As constatações desse autor sugerem que pensemos a interação social que se constrói no encontro etnográfico.A necessidade de uma “coerência de expressão”. 21/05/2008). enquanto seu Augusto e seu Luís conversavam. também podem ser pensadas como formas nas quais se engendram diferentes 165 . eles não haviam sido privados de permanecer nos bancos que ocupam costumeiramente.” (Diário de campo. O seu Luís. interpelou: “Inclusive. evento anual que ocorre no mês de maio. tenho certeza! [risos]. em função das instalações dos stands. eu voto no Farret [outro candidato]. o Pimenta [candidato à eleição municipal de 2008] tá prometendo es tofar os nossos bancos! E de vermelho! Mas ele vai ter que estofar os bancos aqui do “recanto dos velhos” de azul! Eu sou gremista! E se ele [Pimenta] não quiser. que assumem o eixo central na proposta teórica de George Simmel. A sociabilidade como forma lúdica de sociação Em uma determinada ida à campo eu perguntei aos idosos se durante o período de realização da Feira do Livro. O seu Augusto disse-me o seguinte: “Não! Aqui no nosso quadrilátero. aquela pedra que estava ali adiante atrapalhando os pedestres. eles não mexem! O Prefeito precisa de nós aqui.nham diferentes papéis no decorrer da interação social proporcionada pelo encontro etnográfico. ele é gremista. foi retirada porque nós avisamos a Prefeitura!” (Diário de Campo (21/05/2008). As “formas de sociabilidade” no mundo urbano. 21/05/2008). no nosso ‘recanto dos velhos’. já apontado por seu Augusto como sendo “engraçadinho”. nos arredores da Praça Saldanha Marinho. o trabalho. tudo o que estiver presente nos indivíduos sob a forma de impulso. Em si mesmas. Nas palavras do próprio autor. Para Simmel (1983). a religiosidade. essas “matérias” com as quais a vida é preenchida. mas. que separa as “formas” e os “conteúdos” na vida societária. fatores de sociação. não são sociais. A partir da perspectiva deste sociólogo. engendrando ou mediando influências sobre os outros. é um processo que consiste numa espécie de jogo social. interesse ou estado psíquico.1983: p.166). o amor. essas forças e interesses tornam-se autônomos dos objetos que criaram e através dos quais eram utilizáveis para os nossos propósitos. a fome. a “sociação é a forma – realizada de incontáveis maneiras diferentes – pela qual os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem os seus interesses” (Simmel. são designadas por esse autor enquanto conteúdo da sociação. por exemplo. Esses “materiais”. a qual surge a partir de certos impulsos ou em função de certos propósitos. a própria sociedade refere-se à interação social. sim. considera Simmel. na medida que agregam os indivíduos a formas específicas de interação. demonstrando que a “reviravolta completa” da determinação das formas pelo conteúdo da vida social à determinação de seu conteúdo pelas formas sociais. o autor assinala que: 166 .“papéis sociais” e “fachadas” a serem incorporadas pelos sujeitos. Simmel (1983) traz a arte e o direito como exemplos de conteúdos que se autonomizaram. Considerando a sociabilidade enquanto uma forma autônoma ou lúdica de sociação. Desse modo. não são sociais. abordando a velhice em situações de asilamento. realizada em julho do corrente ano. Debert (2004). Refiro-me aqui à dissertação de mestrado de Lucas Graeff (2005) realizada junto ao Asilo Padre Cacique – POA e aos trabalhos de Liliane Guterres. sobretudo. 167 . Eckert (2002). Ferreira (1995). São liberadas de todos os laços com os conteúdos. na UFRGS. forma e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais. que entre outros. através do veículo dos impulsos ou dos propósitos. com um outro que. que ocorrem tanto no “jogo” quanto na “seriedade do real”. Para Simmel. indicando. foram apresentados na Jornada Antropologia e Envelhecimento.” (Simmel. Trabalhos recentes no âmbito da Antropologia do Envelhecimento vêm trazendo contribuições a esta temática de pesquisa.1983: p. Maria Cristina Castilhos França e Luciano Vianna. As formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria. em espaços institucionalizados. Peixoto (1996) e Motta (1998). É isto precisamente o fenômeno que chamamos de sociabilidade. existem por si mesmas e pelo fascínio que difundem pela própria liberação destes laços.“Sociedade é estar com um outro. para um outro. a ocorrência de conteúdos intencionais como disputas. a conexão entre jogo e sociabilidade explica porque esta última abrange todos os fenômenos que por si mesmos podem ser denominados formas sociológicas lúdicas. solidariedades. nos denominados grupos de terceira idade e em contextos onde ocorrem práticas de esporte e lazer entre idosos (as)1. A expressão “jogo social” é significativa no seu sentido mais profundo. Cabe ainda recordar as significativas contribuições à temática da Antropologia do Envelhecimento. desejos.168). inimizade e cooperação. Diferentemente dos idosos que se reúnem para a prática de algum esporte ou para as atividades de lazer promovidas por algu1. das pesquisas de Alves (2004). cujo conteúdo não é o propósito. que pretendo lançar um olhar antropológico. tava um dia bem bonito até! Tchê! Tu tá faltando com os teus “veinho” da praça!” (Diário de campo. mas o meio pelo qual o vínculo social se mantém enquanto forma – independente. comenta que a distinção significativa entre forma e conteúdo na obra desse autor. É acerca desse “jogar conversa fora”. clarifica-se em outra modalidade básica de sociabilidade. Desse modo. próximos ao “recanto dos velhos”. enquanto forma autônoma e lúdica de sociação. principalmente aquela despossuída de fins práticos. se reúnem para “jogar conversa fora”. Durante o mês de julho do corrente ano foi realizada uma reforma nos canteiros da praça Saldanha Marinho. buscando apreender o seu conteúdo narrativo. das possíveis mudanças de assunto. 31/07/2008). que visam à manutenção e à permanência da forma de sociabilidade que configuram. enquanto se dirigiam até à Praça. Ao se encontrarem no “calçadão”. um dos idosos questionou o outro.ma instituição. percebe-se que os interlocutores zelam pela relação em curso. Heitor Frúgoli (2007). por meio de regras de sociabilidade construídas e negociadas pelos mesmos. os aposentados que se deslocam cotidianamente até a Praça Saldanha Marinho. sobre essa sociabilidade. impossibilitando a permanência dos mesmos no local. a conversação. portanto. como eles mesmos dizem. em um tom que mesclava jocosidade e dramaticidade: “Mas por que tu não veio ‘assinar o ponto’ aqui ontem? Nem tava chovendo. nos comentários que realiza sobre as formas de sociabilidade de George Simmel. causando com isso algumas alterações nos percursos e deslo168 . Segundo o autor. Ele me respondeu. Após fazer algumas fotos da Praça Saldanha Marinho. ajuda-nos a compreender as relações de aproximação e afastamento entre os atores sociais. Durante a nossa conversa. o conflito é uma força integradora dos grupos. na maioria das vezes. tal como faziam os demais idosos. 169 . Eu fico mais é aqui. eu me dou com eles. perguntei-lhe se ele não gostava de sentar na Praça. de modo que a produção do conhecimento acontece justamente através da apreensão dessas formas sociais. 31/07/2008). tecidas e experimentadas no cotidiano. em um elemento da própria relação que se estabelece a partir da interação entre os mesmos. dirigime até o Calçadão. (Diário de Campo. tem um que até foi meu colega de trabalho.camentos das demais pessoas entre a Praça e o Calçadão. com certa indiferença: “Eu não! Aqueles lá ficam a manhã inteira só jogando conversa fora! Eu até me dou com eles. sugere que as relações sociais sejam apreendidas pelas figuras e formas sociais que são desenhadas. consistindo. A consideração de Simmel (1983) acerca da importância sociológica do conflito. onde sentei-me junto a um idoso que observava atentamente às pessoas que por ali passavam. a partir da sua proposta de uma “sociologia figurativa”. sem muito“papo”. enquanto uma forma de sociação. olho o movimento e vou embora. espero a minha vianda ficar pronta. Sociabilidade e cotidiano: “as artes de fazer” A ênfase dada por Michel Mafessoli (1988) à uma “epistemologia do cotidiano”. mas não fico lá! Às vezes até passo por lá rapidinho. tal como se verifica na narrativa acima. 177). Segundo o autor. então ele respondeu-me. Para pensar este processo. ou seja “contratos pragmáticos” sob a forma de movimentos. enfaticamente.”(De Certeau. Após me falar da chuva intermitente que o impedia de ir à praça. Perguntei-lhe se estes eram os amigos que esperava. estabelecem e (re) inventam diferentes usos e sentidos ao espaço urbano. afirma que o conceito teórico de “cidade-panorama” desconsidera as práticas cotidianas dos praticantes “ordinários” da cidade. Ele tem com efeito uma tríplice função“enunciativa”: é um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre. não alcança o “embaixo”. a visibilidade de um olhar panorâmico sobre a cidade. Outros idosos iam chegando e dirigindo-se aos bancos do outro lado do canteiro. 1994: p. a ma170 . sendo que na maioria das vezes escrevem um “texto urbano” sem poder lê-lo.178).Michel de Certeau (1994). Percebe-se aqui a construção de fronteiras simbólicas. 1994: p. por sua vez. onde vivem os “caminhantes que transformam em outra coisa cada significante espacial (De Certeau. o seu José comentou-me que estava aguardando alguns amigos. ele apresenta-nos o conceito de “enunciação pedestre”: “O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação está para a língua ou para os enunciados proferidos. é uma realização espacial do lugar e implica relações entre posições diferenciadas. apontando para os referidos bancos: “Não! Aqueles são de lá! Lá da turma do engraxate!”. que através de suas “artes de fazer”. 1994). o espaço é demarcado quando alguém estabelece fronteiras. Cabe aqui recordar Roberto Damatta (1985). ou ainda como uma forma de “enunciação pedestre” (De Certeau. que devido às motivações simbólicas específicas. o presente trabalho propôs realizar uma problematização acerca dos dados iniciais da minha pesquisa etnográfica. configura-se como um “território de sociabilidade” (Rocha & Eckert. um processo que não é simples. 1985: p. quando ele afirma que os espaços são esferas de significação social. 171 . Nesse sentido. Por fim. 2005) para os idosos que o freqüentam. mas aqui é o meu lugar”. que além de separarem contextos e configurarem atitudes. Damatta assinala que estas não são apenas categorias filosóficas. tentando estabelecer um diálogo e uma tessitura conceitual entre autores que considero fundamentais para a apreensão dos processos simbólicos que motivam o(s) idoso(s) habitués da Praça Saldanha Marinho a dizer (em) que “A praça é nossa. um espaço público. muitas vezes associadas a gerações específicas como aponta Lins de Barros (1993).nutenção e o agenciamento das mesmas. de forma que um “pedaço de chão passa a ser separado do outro”(Damatta. sendo necessário explicar de que modo as separações são feitas e como elas são legitimadas e aceitas pelas pessoas.30). dotadas de conteúdo único e hegemônico. Ao assinalar a natureza social das categorias tempo e espaço. mas sim categorias sociológicas. bem como os vínculos de identificação e pertencimento com a Praça Saldanha Marinho. contém diferentes éticas e visões de mundo. George. Michel. Erving. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 172 . La présentation de Soi.Petrópolis:Vozes. 1998. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Roberto. Ática. filhos e netos na família brasileira. (org. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. São Paulo: Brasiliense. GOFFMANN. A Casa e a Rua.São Paulo: Ed.Referências DE CERTEAU. In : La mise en scène de la vie quotidienne. “ Les Représentations”. O conhecimento comum. 2006. Simmel.). Paris: Minuit. MORAES FILHO. SIMMEL. Autoridade e Afeto – avós. Myriam. Questões fundamentais da sociologia. 1985. A invenção do cotidiano: artes de fazer. LINS DE BARROS. 1993. Evaristo. DAMATTA. 1973. Michel. 1994. MAFFESOLI. 1983. e “fazer de conta” não é mentira mais do que o jogo ou a arte são mentiras devido ao seu desvio de realidade. Porto Alegre/RS. é cenário privilegiado para evidenciarmos o jogo destas formas de sociabilidade em que se expressam diferenciados estilos de vida Neste sentido busco trabalhar as experiências cotidianas distintas que propiciam processos de interações e sociações outras que conformam paisagens díspares num mesmo espaço urbano num intervalo temporal de três décadas. O universo de pesquisa se concentra no centro urbano porto alegrense com enfoque numa das mais importantes ruas deste espaço urbano – a Rua da Praia. O contexto urbano. ao mesmo tempo. se faz de conta que cada um é reverenciado em particular.“As vozes da experiência” Estudo antropológico sobre memórias e sociabilidades na construção da paisagem da Rua da Praia. estes grupos urbanos se relacionam e interagem “harmonicamente” dentro de uma sociação que é de conflito. 173 . Embora estas distintas sociabilidades entrem em disputa por um mesmo espaço urbano em prol da constituição e conformação de determinada paisagem. Para George Simmel “a sociabilidade é o jogo no qual se “faz de conta” que são todos iguais e. portanto. 1983: p. (Moraes Filho.173). Thais Cunegatto A proposta deste artigo enfatiza parte da pesquisa que desenvolvo no mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. na sua forma que se trans-forma diariamente. busco compreender as motivações que engendram a apropriação bem como o abandono do espaço urbano Rua da Praia e o significado deste território na constituição da identidade de seus habitues atuais e de outrora. portanto.. pois “aquilo que a primeira vista parece desassociação. Apoiada nos estudos fenomenológicos de Alfred Schutz a cerca das experiências cotidianas que regem direções e ações através das quais os indivíduos lidam com seus interesses e negócios baseados num estoque de conhecimento. A proposta deste artigo é trabalhar com a hipótese que estilos de vida diferenciados geram formas de sociabilidades distintas que implicam em diferentes apropriações de um mesmo espaço urbano. além disso.O conflito aqui se ancora na perspectiva de Simmel cujo conflito pode estar vinculado a uma forma de sociação e.” (Moraes Filho. percebe-se que só se entende os motivos. é na verdade uma de suas formas elementares de sociação. 1983: p. Neste sentido. as motivações. A experiência de um fenômeno como comportamento sem174 . Formas de sociabilidades que conformam paisagens distintas num mesmo espaço urbano que se metamorfoseia na passagem do tempo.128). Alfred Schutz (1979) revela. que a importância do significado é dada pela experiência passada que a pessoa possui sobre um fato. num processo de reflexão. em retrospectiva. no ritmo do seu cotidiano. Sendo a experiência passada significativa na compreensão da ação presente e do projeto futuro. Isto faz com que o significado das ações seja dado em consonância com as suas experiências anteriores. em uma rua central de Porto Alegre. pode atuar como força integradora do grupo. Onde eu observo estas formas de sociação? No pulsar da vida cotidiana. . O ‘significado’ das experiências..69). tem significado. A pesquisa deve buscar responder quais foram os “motivos” que levaram os sujeitos a fazerem tal ação. neste caso. A compreensão. para o pesquisado.” (Schutz. não é mais do que aquele código de interpretação que as vê como comportamento.. 1979: p. eu não entendo nada disso não adianta buscar o que era. também no caso do comportamento somente o que já está feito.) é no tempo interior. eu só não entendo onde estavam estes bolsões de miséria. suas experiências vividas. Assim. terminado. A experiência pré-fenomenal da atividade. que nossas experiências atuais são ligadas ao passado por meio de lembranças e retenções e ao futuro por meio de pretensões e antecipações. (. eu acho que descaracteriza muito. “Só a experiência percebida reflexivamente na forma de atividade espontânea tem significado. Percebe-se aqui a influência de Alfred Schutz na obra de Paul Ricoeur (autor que será mais diante abordado) Na narrativa de Hiliana que traz a Rua da Praia da década de 60 como a Belle Epoque encontramos um repúdio a forma atual de apropriação do espaço urbano. portanto. então. Aqueles came175 .pre é analisável depois do ocorrido e não no interior do momento em que ele ocorre. a esta forma de sociabilidade que figura nos dias de hoje a Rua da Praia: “Mas que era belle epoque era. buscar compreender as motivações subjetivas através do processo reflexivo do ato de narrar. não tem significado. desta forma. parte sempre do passado. mas eu acho que dava pra. porque é claro que não vai vir nunca mais né.. se tirar aquele calçadão já ganhou o prêmio. As ações humanas só são compreensíveis se encontrarmos nelas motivações. Eu não sei. é sempre reflexiva. ou na durée. O centro de Porto Alegre. desfilar sob a passarela encantada da mais famosa rua da cidade de Porto Alegre. eram recebidas e distribuídas no espaço da Rua da Praia e eram sociabilizadas por estudantes de classe média intelectualizados. mais especificadamente a Rua da Praia era o espaço dos intelectuais e da alta sociedade. do país e no mundo.. antiga Rua da Ladeira e passava duas a três horas se arrumando em casa para praticar o footing. Relato não muito diferente desse é desenvolvido por Dante Camaratta. ao seja. daí botam não sei o que . As informações políticas nacionais e mundiais. segundo ele.lôs aqueles que estão na Praça da Alfândega. por exemplo. um lugar destinado às 176 . A Rua da Praia se constituía na voz de cronistas e moradores antigos de Porto Alegre enquanto um espaço de glamour. em sua voz ele traz uma Rua da Praia marcada pela efervescência política. praticando o footing. meu avô.. se eles são camelôs eles não podem ir pro camelódromo? Porque daí trazem o filho. uma rua majestosa que abrigava personagens ilustres provindos de camadas sociais mais favorecidas economicamente que desfilavam por suas calçadas. encontrar amigos.puxa nós temos umas praças tão bonitas . Em seu relato os cafés da Rua da praia também ganham espaço bem como os do Mercado Público. para caminhar por três a quatro quadras da Rua da Praia para olhar vitrines. tipo a Praça Garibaldi. Hiliana nostalgicamente relembra seus quinze anos quando morava na General Câmara . como um palco de descoberta do que acontecia dentro da cidade. que aguardavam notícias da segunda Guerra Mundial enquanto engraxavam seus sapatos elegantes e flertavam com belas meninas que praticavam o footing. flertar com os moços da sociedade. como na narrativa dos dois informantes acima. daí trazem a cozinha. daí botam a lona. e camisetas espalhados na “vitrine popular” que é o chão. que exibiam em suas vitrines as últimas tendências da moda. Um grande centro de compras da dita classe popular é disponibilizado a baixos preços por vendedores ambulantes tidos como ilegais e /ou camelôs. atores sociais desprovidos deste capital econômico. No lugar de vestidos longos. bermudas. nos termos de Pierre Bourdieu (2007). Este cenário de outrora se modifica drasticamente nos dias atuais. em cima deles. acessórios. A chamada “degradação do Centro” vem sendo motivo de discussão por parte de várias instituições e órgãos públicos. chapéu. A Rua da Praia hoje não é mais composta por cafés glamourosos. roupas. Segundo Patrícia Rodolpho (2001) em seu ensaio sobre a Rua da Praia esta “desvalorização” da área central de Porto Alegre gera para os habitantes de classe média e alta um imenso desconforto criando repulsa destes em relação a esta zona dantes exaltada pela sua magnitude e efervescência cultural. calçado engraxado e sombrinhas protetoras do Sol de outrora encontramos chinelos. encontra-se hoje a denominada “classe popular”. Suas calçadas foram tomadas por tapetes de plásticos que tapam as ondulações de em preto e branco desenhadas no chão. lojas da alta sociedade. 177 . sapatos. guardachuva. O lugar ainda marcado pela efervescência se transfigura. bonecas. Ao invés de um grupo urbano marcado por seu poder de capital econômico. artigos como DVDs.belas moças que passeavam com seus chapéus e flertavam com os honrosos moços da sociedade. ou seja. salto alto. Esta transformação de atores sociais no palco deste cenário urbano gera tensões e conflitos que são negociados no viver a cidade. Os atores sociais se alteraram. confeitarias elegantes. De um lado uma discussão patrimonial que busca salvaguardar os monumentos.35) Os centros urbanos. porém ressalta os perigos desta análise que não leva em conta que este processo de acumulação de capital diferencia os habitantes das sociedades brasileiras de forma desigual e assimétrica e que as classes baixas podem oferecer resistência à difusão destas “orientações culturais padronizadas”. como prevê o projeto Monumenta que vem sendo implementado no centro de Porto Alegre. ressalta o autor que diferentes grupos sociais têm práticas e orientações diferenciadas no que tange há “aspectos que têm conseqüências e significados diversos de acordo com a posição social tais como questões políticas” (Oliven. os prédios históricos através de um processo de uma “reeducação patrimonial de utilização do espaço público”. segundo Antônio Arantes em sua análise sobre a cidade de São Paulo. 2000: p. o cotidiano destes habitués que vivenciam este espaço urbano. se apropriam des178 . nos estudos das sociedades complexas conforme Ruben Oliven (1980) apresenta uma aparente homogeneização das classes sociais nos centros urbanos devido à intensificação capitalista industrial.O cenário urbano. 1980: p. Neste sentido. as praças. De outro. politizando o espaço urbano (Arantes 2000: p. que por seu turno as refletem.144) Para o autor este quadro deve-se a elevada pauperização das classes populares que desencadeia “paisagens onde a vernácula pobreza e a diferença cultural – em suas várias feições – interpelam e situam socialmente as fachadas de cristal globalizadas. tem uma grande tendência para o “crescimento do número dos pontos de pernoite e da população que dorme nas ruas do centro” (Arantes.145) Esta migração das classes populares para os centros urbanos faz emergir a tensão colocada no espaço urbano: Rua da Praia. buscam estratégias e criam astúcias que são negociadas em seus espaços urbanos na vida cotidiana como formas de resistência a esta lógica dominante e oficial.122)”. elas articulam experiências sociais a um espaço. Recorrendo a Antônio Arantes percebe-se este conflito imerso numa complexidade de sentidos e representações entre o que tange a ordem do vivido e a do oficial. Pois as “representações que fazem do centro aqueles que habitam suas praças e ruas não são diferentes aos marcos e monumentos da paisagem oficial Ao contrário. Sendo assim. que maneiras de fazer formam a contrapartida. mais importante é descobrir como uma sociedade inteira não se reduz a ela. “Não podendo analisá-lo de uma forma unilateral que pressupõe a simples acomodação da classe popular a este sistema de regras e de conduta previsto pelos órgãos oficiais para a utilização do espaço público”. 2000) da cidade através de suas práticas cotidianas e sociabilidades que se confrontam com a lógica de preservação patrimonial.tes “pontos de amarração” da memória (Arantes. que procedimentos populares (minúsculos e do cotidiano) jogam com os mecanismos de disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los. classe popular. do lado dos dominados 179 . “Se é verdade que por toda parte se estende e se precisa de uma rede de vigilância. Seguindo os passos de Michel De Certeau vemos a existência de uma dinâmica do social articulada por seus atores no viver cotidianamente esta cidade que é palco e ao mesmo tempo objeto destas tensões. dando-lhes um contexto e significações populares (2000: p. estes atores sociais entendidos enquanto. 2006).16). Neste sentido o autor me auxilia a pensar este jogo entre formas de narrativas e configuração de paisagem. Paul Ricoeur (1994) ao nos colocar que o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado num modo narrativo. (Halbwachs.dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política”. o nascimento e o aniquilamento ininterruptos das formas. por conta do espaço é que as lembranças permanecem em nosso espírito. “pontos de amarração” da memória. antes pelo contrário. levanta a questão relacionada ao exercício da narração como uma 180 . Tanto as sociabilidades quanto a paisagem se trans-formaram. (Certeau. 1994: p. a unidade fluida do vir-a-ser. não é apenas um olhar ingênuo sobre coisas sobrepostas que conforma a paisagem. Estes espaços urbanos. Conforme Georg Simmel. onde nossas impressões se sucedem uma às outras. pois estas habitam nestes espaços que conservam a matéria da lembrança. lugares cuja memória coletiva acontece. transformando uma forma em paisagem. se metamorfosearam em sociabilidades e paisagens conflitivas. é a delimitação e a conceituação deste olhar que retira da natureza um recorte. conforme Ecléia Bossi se constituem como espaços de conflito ao mesmo tempo em que são espaços de deleite. o retorno ao passado através das memórias se torna possível.41). exprimindo-se através da continuidade da existência espacial e temporal (Simmel: p. Maurice Halbwachs sugere que o espaço é uma espécie de “baú de memórias” onde são depositadas reminiscências individuais e sociais. Pelo termo natureza. Sendo assim o espaço é uma realidade que dura. na problematização entre o tempo vivido e narrado como diria Paul Ricoeur. o autor entende a cadeia sem fim das coisas. Se tu deixares. No outro sentido.procempa. eles sugam as nossas energias. Quando pergunto o porquê de seu passeio no tão desprezado centro de Porto Alegre.” O espaço urbano permanece e se trans-forma.com. nunca saio” . vivo em casa durmo até meio dia. dando lugar a outras sociabilidades. eles te passam a perna” me afirma ela. não antagônico ela narra seu desprezo a cerca deste espaço quando uma senhora começa a conversar conosco e se apresenta como moradora do Centro. ela re-afirma: “Para passeio. O Programa Viva o Centro considera que é preciso. como reforçar e qualificar a atratividade que sempre existiu. Já contabiliza mais de mil participantes. espaço este que se metamorfoseou na passagem do tempo. oras. considerando seu status diferenciado com relação às demais regiões da cidade. A reação da moradora do Menino Deus é de repulsa: “Nossa. mas não é horrível morar aqui?! O Centro é a escória. como é bom ser turista da própria cidade!!!Não conhecia esta beleza. neste aspecto surge uma interjeição: “Nossa.br/pmpa/prefpoa/vivaocentro/ default. tanto valorizar o Centro Histórico. Extraído do site http://lproweb.php?p_secao=133 as 09:48 do dia 28/04/2008 181 . Encontramos na fala de uma moradora do Bairro Menino Deus esta dimensão conflitual e ambígua do vivenciar o espaço central da cidade de Porto Alegre. As Caminhadas são orientadas por professores universitários. nele estão os camelôs que são ex-presidiários. Vera narra em uma caminhada histórica e cultural provida pelo Programa Viva o Centro a Pé1 seu ponto de vista a cerca do Centro. Não mais a estética dos sapatos de couro e das discussões político-intelectuais das camadas médias e altas da cida- 1.luta de permanência. estudiosos em história. arquitetura e artes que narram a história de edificações e espaços públicos do Centro da cidade... Suas impressões se dão em dois sentidos: de um lado destaca a beleza patrimonial do centro da cidade. como turista. 4. Durante este evento várias bancas de livros e revistas são expostas na Praça da Alfândega com os preções reduzidos em 20%. uma senhora de 82 anos tem uma rede de amigos na Praça da Alfândega. Nos bancos da praça. O limite para ela entre a Rua da Praia e Andradas não é nomenclatural e nem ao menos temporal. afirma sua identidade “Sou da Praça” com orgulho. É o grupo da Praça da Alfândega que reclama da falta de remédios no Posto de Saúde Santa Marta. Diferente dos informantes anteriormente descritos que resgatam em sua narrativa a cerca da Rua da Praia a sua juventude Frida traz o cotidiano atual para falar da Rua da Praia e quando me refiro a sua mocidade ela ressalta não pertencer aquele espaço. a luta das prostitutas pela permanência neste espaço cotidianamente quanto em eventos como a Feira do Livro. Para ela.feiradolivro-poa. Nice 4 é uma prostituta da Praça há 24 anos. que só passava por ali para ir para o trabalho.br/. em sua narrativa traz a praça como um território que configura seu envelhecimento. Frida. a Praça da Alfândega. 3. A discussão é de uma classe popular que clama por seus direitos. passando a esquina democrática é a Rua dos Andradas e lá estão outras profissionais do sexo.com.Sua identidade como habitué da praça se dá no seu processo de envelhecimento.Para maiores informações visite o site: http://www. mas nunca permanecia. Nice reivindica seu direito de estar na praça e afirma “que esta 2. Nome fictício escolhido pela interlocutora. A Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (SMIC) é o órgão responsável pelo controle das vendas no espaço público.de de Porto Alegre. A Feira do Livro é evento anual de consagração ao livro que marca há 54 anos a cidade de Porto Alegre. ela é espacial. a política permanece sob nova forma. a Rua da Praia é onde está o calçadão. 182 . o vendedor de cafezinhos que briga com a SMIC2 para que possa vender durante a Feira do Livro3. encontramos a de Roberto. narrar os espaços é uma forma de mantê-los vivos.tal higienização é culpa do Projeto Monumenta que busca retirar tudo o que eles acham que não presta dali. Ambas as paisagens: a de outrora e a atual são negociadas e arranjadas. eternizados nas lembranças. mas não dizem pra onde”. pois dentro do conflito das quais elas emergem elas são aco183 . só se for algemada e com imprensa.” Comungando com a narrativa de Nice. como nos diria Bachelard (1989). mas nós profissionais do sexo conquistamos nossos direitos. Não saio dali. Agora dizem que tem que tirar a gente dali. uma luta contra a morte de paisagens constituintes do imaginário da cidade de Porto Alegre. o do Camelódromo. Ao ressaltar sua indignação contra as ações do projeto Roberto desabafa que muitas pessoas podem perder seu “ganha pão” e que parece que com isso o Estado não se preocupa. A questão da revitalização do centro urbano colocada por Nara e por Roberto traz a tona o conflito latente que é a disputa por uma paisagem num determinado espaço urbano. “Nos mostraram um bolo e vieram com outro. disseram que iam construir o camelódromo e íamos pra lá. participante da Associação da Feira da Rua da Praia que também ressalta o Monumenta como um projeto que visa retirar os feirantes deste espaço urbano e transferi-los para outro espaço. e esta disputa é pela existência e morte de determinados tipos de sociação que ao serem narradas são revividas e perduradas. Tal questão implica uma resistência eterna contra a morte das imagens nas quais habitamos. Roberto revela que a associação da qual é dirigente está com processo judicial em trâmite contra este projeto governamental de recuperação patrimonial. Para o caso deste estudo. constituintes e construtores desta memória coletiva que configura o social. Portanto. não saio. as formas de sociabilidade conformam certo espaço urbano. o espaço se trans-forma e por isso permanece. 184 . ou seja. ou seja. Sabiamente Hiliana nos mostra que as sociações vivenciadas numa Rua da Praia de 1960 davam forma àquela paisagem da Rua da Praia em 1960. outro habitus e outra visão de mundo. embora regido nos dias de hoje por outra estética urbana.modadas nas lembranças e no cotidiano dos narradores que as habitam. A Rua da Praia permanece como o espaço do comércio e o espaço do lazer como era nesta Porto alegre de 1960. pois como ressalta Hiliana: “ Não adianta revitalizar . Na frase de Hiliana percebe-se que não são apenas os prédios históricos que conformavam a paisagem de outrora que busca ser resgatada pelas instituições patrimoniais. eu não volto mais lá. bem como este espaço conforma certa sociabilidade. o que era não volta mais”. Razões Práticas. In: VELHO. (Org. 1989 BACHELARD.). In :Tempo e narrativa. 1994. Simmel. Paisagens Paulistanas: transformações do espaço público. 1979. (Org. (org). 185 . São Paulo. SIMMEL. RJ. G A dialética da duração SP. Série de publicações eletrônicas do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Petrópolis: Vozes. Campinas. Zahar. Ática. A Filosofia da paisagem.2000. Encontrando imagens na e da Rua da Praia: problemas e descobertas de uma etnografia urbana. 1983. BOURDIEU. A Invenção do Cotidiano. SP: Editora da Unicamp. RICOEUR. O fenômeno urbano. 2007. Pierre. Sobre a teoria da ação. In: Revista e Política e trabalho. e Introdução). 2001. Georg. Textos (escolhidos de Alfred Schutz.. Questões fundamentais da sociologia. Campinas: Papirus. PPGAS. Patrícia. Editora Ática. 2006. 1996. CampinasSP: Papirus. E. Tradução de Simone Carneiro Maldonado. RODOLPHO. IFCH e ILEA. RJ. . 1994 SIMMEL. Tomo I. 1979. Paul. São Paulo: Martins Fontes. Fenomenologia e relações sociais. SIMMEL. G A poética do espaço. número 12. 1988. Zahar. In: Iluminuras. CERTEAU. Tempo e Narrativa: a tríplice mimese. A metrópole e a vida mental. MORAES FILHO. WAGNER. Helmut R. LAS. BACHELARD. Antonio Augusto Neto.Referências ARANTES. Otávio G. G. Georg. Rio de Janeiro. UFRGS. Michel de. Jorge Zahar. 186 . 187 . Cornelia Eckert Professora Associada do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Autores e Organizadores Ana Luiza Carvalho da Rocha Antropóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora participante da Universidade Federal de Santa Catarina. Fernanda Pivato Tussi Mestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social / UFRGS. Anelise dos Santos Gutterres Mestranda em Antropologia Social Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social /UFRGS Carla Indira Carvalho Semedo Mestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social / UFRGS. Denise Silva dos Santos Mestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social / UFRGS. Myriam Moraes Lins de Barros Professora titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fabiela Bigossi Doutoranda em Antropologia Social Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social /UFRGS. Jeniffer Cuty Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional / UFRGS. 188 . Thaís Cunegatto Mestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social / UFRGS.Fernanda Rechenberg Doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social / UFRGS. Mabel Luz Zeballos Videla Mestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social / UFRGS. Luis Felipe Rosado Murillo Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social / UFRGS. Rojane Brum Nunes Doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social / UFRGS.
Copyright © 2024 DOKUMEN.SITE Inc.