Santa Catarina de Gênova - Tratado Do Purgatório

May 15, 2018 | Author: James Michael Luckson | Category: Purgatory, Sin, Love, God, Immortality


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Tratado do PurgatórioSanta Catarina de Gênova Introdução O “Tratado do Purgatório” de Santa Catarina de Gênova († 1510) foi publicado em 1551, no “Livro da Vida admirável e Santa da Beata Catarina de Gênova“, no qual há uma explicação católica sobre o purgatório. Publicado em Gênova por Antonio Bellono no ano 1551, p. 94 e 05. Tradução da versão espanhola de J. Bergamin. A edição que foi traduzida para o espanhol foi publicada por F. Valeriano da Finalmaria, em Gênova em 1929. Desta edição foi copiado também a continuação, que traz algumas informações da vida da Santa: “Quando esta alma bendita, abismada no amor de Deus, desejava, se podia desejar, estando como estava privada de todo desejo, expressar a seus filhos espirituais aqueles sentimentos que tinha do seu doce amor, no qual estava submergida, dizia algumas vezes: Oh, se pudesse dizer aquilo que sente este coração, no qual me sinto arder e consumir totalmente! Então eles a diziam: Oh, madre, dize-nos alguma coisa se queres! E ela respondia: Não posso encontrar palavras apropriadas a tão fogoso amor, pois me parece que tudo o que eu dissesse seria tão diferente do que é, que faria injúria a este doce amor meu. O que somente posso dizer é isto: que se disto que sinto em meu coração caísse uma só gota no inferno, o transformaria todo em vida eterna, porque haveria tanto amor e tanta união com ele que os demônios se converteriam em anjos e as penas se mudariam em consolações, pois com o amor de Deus não pode haver pena. Um religioso que estava presente surpreso com essas coisas que ela falava, lhe disse: Madre, eu não entendo bem isto que disse mas se fosse possível, queria poder entender melhor. Filho, respondeu ela, tenho como impossível poder dizer outra coisa. Então aquele desejoso de entender mais, lhe disse: Madre, se eu tentasse dar alguma interpretação a suas palavras, e se esta interpretação a suas palavras lhe parecesse que coincidia com o seu pensamento, no-lo diria? A que contestou ela alegremente: Oh, doce filho meu, eu o creio. Então lhe disse o religioso: Poderia talvez ser o que disse deste modo: que o efeito do amor que sentes seja um íntimo calor unitivo, o qual une a alma com o seu Deus-Amor, e de tal maneira a une, por participação de sua bondade, que não discerne já a alma entre si mesma e Deus. E é tão admirável esta união que não há palavras para expressá-la, porque é impossível poder sentir, gostar nem desejar nenhuma outra coisa que não seja aquele amor unitivo. E como isto, que poderia ser vontade e honra do Amor-Divino, é todo o contrário que o interno, com seus demônio e seus condenados, porque estes estão em rebeldia para com Deus, se assim fosse, como dizes, é possível, que estes receberiam uma só partícula de tal união, ela os privaria da rebeldia que têm para com Deus, unindo-lhes, de tal forma com esse Deus-Amor que estariam já na vida eterna, porque é sua rebelião contra Deus o que lhes faz estar no inferno (o qual se encontra em todo lugar onde há esta rebeldia). E, por isso, se houvesse essa partícula de união que dizes, naquele lugar em que estão, não seria mais esse lugar o inferno, mas seria a vida eterna, pois esta se encontra ali onde há tal união divina. Ao escutar tudo isto a Madre parecia tão gozosa, que com um rosto alegre lhe disse para terminar: Oh, doce filho meu!, assim acontece de fato, como você disse, pois assim é de fato.” A versão da vida e escritos da santa foram relatados por seus discípulos prediletos: Marabotto e Ectore Vernazza. A autenticidade do “Tratado do purgatório” foi posta em dúvida por Hügel em seus estudos sobre a Santa (Sanches, 1923). Hügel o atribui em parte à santa como o diálogo espiritual, a Battistina Vernazza. Finalmaria, na edição a que nos referimos, parece justificar o contrário, seguindo o texto de 1551, que é, efetivamente, o publicado por Battistina Vernazza, a discípula da santa. O título com que foi conhecido este texto era: Tratado do purgatório da Beata Madona Catarinetta Adorna. Santa Catarina nasceu em Gênova no ano 1447. Foi da família Güelfa dos Fieschi. Se casou em 1463 com Giuliano Adorno. A pouca felicidade de seu casamento a foi desencantando pouco a pouco do mundo. “Não mais mundo, não mais pecado!” clama em 1473, ao se converter a uma nova vida cristã. Desde então, até a sua morte em 1510, a vida da santa foi progressivamente subindo na devoção e na penitência, até alcançar aqueles dois anos de sua vida em que ela nos conta que viveu o seu purgatório. (J.B.) Estando, todavia na carne esta santa alma se viu colocada no purgatório do fogo do amor de Deus, o qual a abrasava e purificava totalmente quando tinha que se purificar, de modo que, ao passar desta vida para a outra, pudesse apresentar-se imediatamente diante de Deus, seu doce amor. Assim, em meio desse fogo amoroso, compreendia sua alma como estavam suas almas benditas no purgatório – pregando a miséria e mancha do pecado, que nesta vida ainda não fosse purgado. E estando deste modo no purgatório do amoroso fogo divino, estava unida a seu divino amor, contente com tudo aquilo que Ele nela operava e compreendendo-a do mesmo modo como as almas que estão no purgatório. Por isso dizia: Perfeita conformidade das almas purgantes com a vontade de Deus As almas que estão no purgatório, segundo o alcance do meu entendimento, não podem ter nenhuma outra afeição que a de estar neste lugar; e isto acontece por determinação de Deus. Não podem estas almas voltarem-se para si mesmas, dizendo por exemplo: “Já cometi tais e quais pecados, pelo que mereço estar aqui”, Tampouco podem dizer a si mesmas: “Eu não queria tê-los cometido, porque assim eu estaria agora no paraíso”. Nem sequer podem dizer de outras almas: “Esta sairá daqui antes de mim, ou eu sairei antes dela.” Não podem ter memória própria nem de nenhuma outra coisa, nem no bem e nem no mal, que possa causar-lhes maior aflição do que as que têm. Elas têm, ao contrário, tanto contentamento de achar-se dentro da ordem divina e de que Deus opere nelas como mais lhe agrade e o que mais o agrade, que não podem pensar de si mesmas com maior pena. Vendo somente as operações da vontade divina nelas, não podem ver outra coisa que isto, porque é tanta a misericórdia divina para conduzir o homem a si, que não há pena ou bem, então para o homem que possa acontecer como coisa sua, pois se desse modo sucedesse ou pudesse desse modo ver que o sucedia, não estaria como está dentro da caridade. Não podem ver sequer, essas almas do purgatório, que estão sofrendo por seus pecados; e não podem ter em sua mente esta representação deles porque com isto lhe sucederia uma imperfeição ativa, presente, que não pode dar-se neste lugar, porque nele não pode atuar o pecado. Estas almas não veem o motivo de estar no purgatório, mais que uma só vez, que é ao sair ou deixar a vida, e já não podem ver mais, porque de outro modo se lhes seria como uma propriedade sua o vê-lo, não podendo já ter nenhuma. Porque estando essas almas na caridade, e não podendo desviar-se dela com nenhum defeito atual, não podem crer e nem desejar outra coisa senão o puro querer da pura caridade, pois estando no fogo do purgatório estão dentro da ordem divina (o qual é a caridade pura) e não podem desviar-se o mais mínimo em nenhuma outra coisa porquês estão tão igualmente privadas de poder pecar como de poder merecer. Alegria das almas do purgatório e sua crescente visão de Deus. Exemplo da escória. Não creio que haja alegria nem contentamento capaz de comparar-se ao de uma alma no purgatório, a não ser o dos Santos no Paraíso. E este contentamento cresce a cada dia pela influência de Deus nessas almas, a qual vai crescendo conforme vai consumindo aquilo que o impedia. A escória do pecado era o impedimento e o fogo a vai consumindo pouco a pouco de modo que a alma se vai descobrindo cada vez mais ao influxo divino. Sucede como quando uma coisa está coberta ou tapada, não podendo corresponder à iluminação do sol, o que não é defeito do Sol, que ilumina continuamente, senão daquela oposição que lhe oferece a cobertura naquela coisa. Se, então ardesse, consumindo-se aquela cobertura, se descobriria a coisa ao Sol, e tanto mais corresponderia à iluminação solar quando a cobertura mais se fosse consumindo. Do mesmo modo a escória ou o bolor (o próprio pecado) é a cobertura das almas que no purgatório se vai consumindo pelo fogo, e quanto mais se consome, tanto mais, sempre, corresponde ao verdadeiro sol que é Deus. Por isso vai crescendo o contentamento conforme vai destruindo-se a miséria e se descobre a alma ao raio divino. E assim cresce um e míngua a outra sem que acabe o tempo. Porque não diminui a pena por isso, senão o tempo de estar nessa pena. E no que se refere à vontade, não é possível dizer que aquelas penas sejam tais penas porque se contentam ao ordenado por Deus, com cuja vontade para pura caridade está unida à vontade daquelas almas. Penas das almas do purgatório. A maior pena é a separação de Deus Por outro lado, sofrem aquelas almas uma pena tão extremada que não haveria língua capaz de explicá-la nem inteligência que pudesse compreender sequer uma centelha dela, se Deus por graça especial não se o mostrasse. Uma centelha disso é o que Deus por uma graça especial mostrou à minha alma; mas não posso expressá-lo com minha língua. E esta visão que me deu o Senhor do purgatório nunca mais se apagou de minha mente, e os direi dela o que puder, pois só entenderão aqueles aos quais o Senhor se digne abrir o entendimento. O fundamento de todas as penas é o pecado original e o atual. Deus criou a alma pura, simples e limpa de toda mancha do pecado; e com um certo instinto bem-aventurado fez Ele, do qual o pecado original com que a alma se encontra, a separa; e quando se apega ao pecado atual, então, se afasta mais de Deus a alma; e quanto mais se afasta, tanto mais se torna maliciosa, porque Deus lhe corresponde menos. E como todas as bondades que podem existir, o são por participação de Deus, o qual corresponde com as criaturas irracionais como Ele quer e tem ordenado, não abandonando- as nunca, e como à alma irracional corresponde Deus mais ou menos, conforme a encontre purificada do impedimento do pecado, por isso, quando encontra Deus uma alma que se aproxima de sua primeira criação pura e limpa, faz que aquele instinto bem-aventurado, se vá descobrindo e crescendo nela tanto, e com tal ímpetos e furor pelo fogo da caridade (a qual lhe dirige para os eu fim último) que pareca à alma uma coisa insuportável encontrar-se impedida para ele; e enquanto mais e melhor o vê assim a alma, tanto mais aumenta nela essa pena. Diferença entre os condenados e as almas purgantes. Como as almas que estão no purgatório já não têm culpa do pecado, não têm outro impedimento para chegar a Deus que somente aquela pena que o retarda fazendo que seu bem aventurado instinto não alcance esta perfeição. E vendo então, com certeza, quanto importa o mais mínimo impedimento, que é por necessidade de justiça que se atrasa nelas o cumprimento daquele instinto bem-aventurado, é porque nasce então para as almas aquele fogo extremado tão parecido ao do inferno; mas que é diferente por não haver mais nas almas purgantes nenhuma culpa, a qual é a que perverte a vontade dos condenados do inferno, aos quais Deus não lhes corresponde com a sua bondade, que é porque esses condenados permanecem naquela outra desesperada e pervertida vontade contrária à vontade de Deus. Assim vemos claramente que é a perversa vontade contrária à vontade de Deus que faz a culpa, e que perseverando a vontade má, persevera a culpa. Pois é por haver saído dessa vida com aquela vontade má, porque a culpa daqueles que estão no inferno não foi redimida e nem pode remir-se: porque já não podem trocar a vontade com a que saíram desta vida, já que naquela passagem a alma se estabiliza no bem ou no mal com a deliberação da vontade em que então se encontra; conforme está escrito: “Ubi te invenero“, isto é, na hora da morte, com a vontade de pecar ou com o descontentamento e arrependimento dos pecados “Ibi te judicabo.” E para este juízo não há possibilidade de remissão, porque depois da morte a liberdade do livre arbítrio torna-se imutável, pois a vontade torna-se fixa naquilo em que se encontrava no momento da morte. Aqueles que estão no inferno, por haverem-se encontrado no momento da morte com a vontade de pecar, levaram consigo a culpa infinitamente, e com ela a pena; que não é, entretanto, tanto como a que merecem, ainda que seja necessariamente sem fim. Mas aqueles outros do purgatório não têm mais que a pena, porque a culpa foi cancelada no momento da morte por eles mesmos, ao sentir-se descontentes por seus pecados e arrependimentos de haver ofendido com eles a Bondade Divina. E assim a pena é finita para eles e vai diminuindo com o tempo, como disse antes. Oh, que miséria das misérias a nossa, e tanto maior quanto a cegueira humana não a sequer vê! Deus mostra sua bondade até com os próprios condenados. A pena dos condenados não é, contudo, infinita em quantidade, porque a doce bondade de Deus resplandece com o raio de sua misericórdia ainda até no inferno. O homem morto em pecado mortal merece uma pena infinita em um tempo infinito; mas a misericórdia de Deus fez só o tempo infinito e a pena finita em quantidade: posto que justamente poderia dar-lhes pena muito maior do que a que é dada. Oh, que perigo é o pecado quando se comete com malícia! Porque o homem não se arrepende dele senão com muita dificuldade, e não arrependendo-se, permanece na culpa; a qual persevera nela tanto quanto o homem permanece nessa vontade do pecado cometido e na de cometê-lo. Purificadas do pecado, as almas purgantes sofrem gozosamente as penas. Por outro lado, as almas do purgatório têm sua vontade totalmente conforme a vontade de Deus; e por isso Deus corresponde com a sua bondade; e assim elas estão contentes no que a vontade se refere; e purificadas do pecado original e do atual no que se refere à culpa. Ficam assim as almas purificadas como quanto as criou Deus; pois por haver saído estas almas desta vida, descontentes e confessados de todos os pecados cometidos e com a vontade de não voltar a cometê- los, Deus perdoa imediatamente a sua culpa e não lhes fica mais, então, do que aquela cobertura ou escória do pecado, da qual se vão purificando no fogo com a pena. E assim purificadas de toda a culpa e unidas com Deus pela vontade, veem a Deus claramente, segundo o grau que a Ele alcança seu conhecimento; vendo também quanto vale e importa este gozo seu de Deus, e que é o fim para a qual as almas foram criadas. Com quanta violência de amor desejam as almas do purgatório alcançar o gozo de Deus. Exemplo do pão e do faminto. As almas do purgatório encontram uma conformidade tão unitiva com a de Deus, a qual tanto as atrai para si (pelo instinto natural de Deus com a alma), que não se pode dar-se uma figura ou exemplo que sejam suficientes para esclarecer uma coisa como esta, tal como a mente a sente e compreende em efeito pelo sentimento interior. De todos os modos, darei exemplo que se oferece ao entendimento. Se não houvesse em todo o mundo mais que um só pão, o qual servisse para matar a fome de todas as criaturas, e que por natureza, quanto está são, instinto de comer, e não comendo-o não pudesse ficar doente nem morrer por ele, aquela fome sempre cresceria, porque o instinto de comer não lhe faltaria nunca. Mas se o homem soubesse, então, que só aquele pão podia saciá-lo, e que não tendo-o não poderia satisfazer a sua fome, sofreria uma pena intolerável. Pois quanto mais se aproximasse daquele pão, sem podê-lo ver, tanto mais cresceria nele o desejo natural de comê-lo, o qual, por seu instinto, somente quer aquele pão que consiste todo o seu desejo. Se o homem que digo estivesse certo de que já nunca mais tornaria a ver o pão, naquele mesmo momento encontraria o seu inferno: como as almas condenadas, as quais são privadas de toda esperança de jamais ver o pão de Deus, seu salvador verdadeiro. Mas as almas do purgatório têm a esperança de ver o pão e sanar-se dele. Por isso só padecerão fome e sofrerão esta pena todo o tempo que estiverem sem poder saciar-se daquele pão de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e salvador, amor nosso. O inferno e o purgatório nos revelam a admirável Sabedoria de Deus. Assim como o espírito limpo e purificado não encontra lugar a não ser em Deus para o seu repouso, por haver sido criado para esse fim, assim a alma em pecado não encontra outro lugar adequado para ela que não seja o inferno, que para este foi ordenado por Deus. Por isso, naquele mesmo instante em que o espírito se separa do corpo, a alma vai só ao lugar, que lhe foi ordenado, sem que ninguém a guie, exceto aquela alma que conserve a natureza do pecado porque saiu do corpo em estado mortal. Mas se a alma condenada não encontrasse no momento da morte aquela ordenação procedente da justiça de Deus, cairia em um inferno muito pior que aquele em que caiu, porque estaria fora daquela ordenação divina, a qual participa da divina misericórdia, que não lhe dá tanta pena quanto merece. Por isso, não encontrando a alma lugar mais conveniente para ela, nem em outro que se encontra com menos dano que aquele que por ordenação divina se lhe oferece, se lança dentro, como encontrando nele seu lugar próprio. Assim também, em relação ao purgatório, diremos que a alma, separada do corpo, ao não se encontrar com aquela pureza e nitidez com que foi criada e vendo em si o impedimento da culpa, que só pode ser quitada por meio do purgatório, rapidamente se lança nele de boa vontade. Porque, se a alma não encontrasse aquela ordenação prévia para tirá-la de seu embaraço, naquele mesmo momento se geraria para ela um inferno pior que o purgatório: ao ver que não podia alcançar, pelo impedimento da culpa, seu fim divino; o qual importa tanto, que, em sua comparação, o purgatório não vale nada, ainda que, como foi dito, seja tão semelhante ao inferno; mas em comparação com ele é quase nada. Necessidade do purgatório. Mas ainda quero dizer-lhes: é o que vejo, que pelo que se refere a Deus, o purgatório n]ao tem nem sequer portas: tal que o que quer nele entrar, entra; porque Deus é todo misericórdia e tem sempre para nós os braços abertos para receber-nos em sua glória. Mas também vejo que aquela essência divina é de tanta pureza e nitidez (e muito mais que se possa imaginar) que a uma mínima falta, se lançaria voluntariamente em mil infernos antes de poder encontrar-se na presença da Majestade Divina com aquela mancha. E por isso a alma, vivendo o purgatório ordenado para purificar-lhe daquelas manchas, se lança dentro; e lhe parece encontrar nele uma grande misericórdia, pois vai poder tirar de si aquele impedimento. Natureza terrível do purgatório. A importância do purgatório não pode expressar a língua nem conceber a mente; pois ao mesmo tempo que se vê nele tanta pena como no inferno, se vê também que a alma, quando somente sente em si um mínimo traço de imperfeição, o recebe como misericórdia, como foi dito: não fazendo estimação do seu dano em comparação com aquela mancha impeditiva de seu amor. E parece-me ver que a pena das almas do purgatório é maior, por ter visto nela mesma alguma coisa desagradável a Deus e por haver visto que esta coisa a fizeram voluntariamente contra tanta bondade; pois nenhuma outra pena pena sentem tanto como esta no purgatório. E é assim, porque estando em graça, veem a verdade e a importância do impedimento que não a deixam aproximar-se de Deus. Todas essas coisas que digo são incomparáveis com aquilo outro que está gravado em meu pensamento (quanto foi podido compreender nesta vida); e são coisas tão difíceis estas, que a seu lado, toda outra visão ou palavra, ou sentimento ou imaginação, toda outra justiça, toda outra verdade, me parecem mentira e coisa de nada. E ainda estou confusa por não saber encontrar palavras mais claras para dizê-los. O amor de Deus que atrai a si as almas santas e o impedimento que essas encontram no pecado, gera a pena do purgatório. Considero que há tão grande conformidade entre Deus e a alma, que quando a alma vê Deus naquela pureza em que a criara, a atrai de certo modo a si com tão ardente amor que bastaria para aniquilá-la se não fosse imortal. E faz a alma estar transformada tanto em seu Deus, que já não vê ser outra coisa senão Deus; o qual continuamente a vai atraindo e incendiando, não abandonando-a jamais, até havê-la conduzido a aquele ser seu de onde saiu; isto é aquela pura nitidez em que foi criada. Quando a alma, vendo-se a si mesma interiormente, se sente assim atraída com tão amoroso fogo para Deus, então por aquele calor mesmo do amor ardente a seu doce Senhor e Deus, que percebe em seu entendimento, toda ela se sente como se liquidar e fundir. E vendo depois a luz divina; e vendo nela como Deus não cessa nunca de atraí-la e conduzi-la amorosamente à inteireza de sua perfeição, com tanta e tão contínua previsão e cuidado; e que isto só por puro amor o faz; e vendo-se a alma pelo impedimento do pecado entorpecida para seguir aquela atração de Deus, aquela meta unitiva que Deus lhe oferece para atraí-la a si; e vendo também quanto lhe significa o estar, todavia, tão atrasada que não pode ver a luz divina, mostrando a ele aquele outro instinto da alma que quisera ser livre e sem impedimento algum para seguir aquela busca unitiva de Deus: digo, que o ver todas essas coisas juntas é o que gera nas almas a pena que sofrem no purgatório. E não é só isto a dizer que sinta sobre toda aquela pena que padecem por isso (ainda sendo, como é, grandíssima), porque o que sentem mais todavia é a oposição em que ainda se encontram contra a vontade de Deus, a qual veem já tão claramente inflamado de um forte e puro amor para elas. E este amor, com aquela meta unitiva que disse, age de maneira tão forte e tão contínua nas almas que parece como se não tivesse que fazer outra coisa mais que isso. Por isso a alma, vendo isto, se encontrasse outro purgatório mais terrível para poder arrancar de si de maneira mais rápida esse impedimento, em seguida se atiraria nele, movida pelo ímpeto daquele amor tão consequente entre Deus e a alma. Como Deus purifica as almas. Exemplo do ouro no crisol. Vejo também que procede daquele amor divino em direção a alma certos raios e centelhas de fogo tão penetrantes e tão fortes que parece que deviam aniquilar não somente o corpo, mas a alma mesma, se isto fosse possível. Estes raios têm dois efeitos: um, o de purificar; o outro, o de aniquilar ou consumir. Veja o ouro: quanto mais o fundes melhor se torna; e tanto se poderia fundir que se aniquilaria nele toda a impureza. Este efeito tem o fogo em todas as coisas naturais; mas a alma, como não se pode aniquilar e consumir em Deus, se aniquila e consome em si mesma; e quanto mais se purifica, tanto mais em si mesma se consome e aniquila para unir-se a Deus totalmente purificada. O ouro, quando se purifica até vinte e quatro quilates, não se consome mais, por mais fogo que se ponha nele, porque não pode consumir-se senão o que nele é imperfeição ou escória. Assim também faz o fogo divino com a alma. Deus mantém o fogo até que se consuma nela toda imperfeição e a conduza à perfeição dos vinte e quatro quilates (a cada alma, naturalmente, segundo o seu grau). E quando a alma já está purificada deste modo, fica toda ela em Deus sem conservar nenhuma coisa em si que seja propriamente sua. Seu ser é Deus. Por isto, quando Deus está conduzindo a alma a si, purificada desse modo, fica a alma, então, impassível, porque não fica nada nela a ser consumido. Pois, se purificada como está, se mantivesse no fogo, este fogo não lhe causaria pena alguma; antes, bem lhe seria um fogo de amor divino, durável como de vida eterna, sem dano algum nem alguma contrariedade.
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