OPSISUniversidade Federal de Goiás/Campus Catalão Curso de História Dossiê História e Sensibilidades ISSN: 1519-3276 Apoio: CPPG/CAC; PRPPG/UFG A Opsis pode ser acessada pela URL: http://www.catalao.ufg.br/historia no link publicações OPSIS Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão Curso de História Av. Dr. Lamartine P. de Avelar, 1120 - S. Universitário - Catalão GO Revista indexada: Geodados: http://geodados.pg.utfpr.edu.br/ ; Sumários de Revistas Brasileiras: www.sumarios.org ; Latindex: http://www.latindex.unam.mx/ Pede-se permuta Editor Chefe: Dr. Valdeci Rezende Borges Editora deste Número: Dra. Márcia Pereira dos Santos Conselho Editorial: Dr. Cláudio Lopes Maia Dra. Eliane Martins de Freitas Dr. Getúlio Nascentes da Cunha Dr. Luiz Carlos do Carmo Dra. Luzia Márcia Rezende Silva Dra. Márcia Pereira dos Santos Dra. Regma Maria dos Santos Dra. Teresinha Maria Duarte Dr. Valdeci Rezende Borges Comissão Editorial: Dra. Eliane Martins de Freitas Dra. Márcia Pereira dos Santos Dra. Terezinha Maria Duarte Conselho Consultivo: Dra. Manoela Mendonça (Universidade de Lisboa) Dr. Amalio Pinheiro (PUC/SP) Dr. Gilmar de Carvalho (UFC) Dr. Júlio César Bentivoglio(UFES) Dra. Kênia Maria de Almeida Pereira (UNITRI) Dr. Luiz Humberto Martins Arantes (UFU) Dra. Solange Fiúza Yokozawa (UFG/CAC) Dr. Wolney Honório Filho (UFG/ CAC) Dra. Lucimar Bello P. Frange (UFU) Dra. Márcia Elizabeth Bortone (UnB) Dr. Marcos Antônio de Menezes (UFG/ Jataí) Dra. Vanda Cunha Albieri Nery (UFU) Revisão Técnica: Valdeci Rezende Borges Diagramação: Cacildo Ferreira - Impressão: Gráfica São João Capa: Marte castigando a Cupido - 1613 - Bartolomeo Manfredi OPSIS - Curso de História. Dossiê História e Sensibilidades. Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão. Catalão - GO, v. 8, n. 11, jul-dez. 2008. p. 370 ISSN: 1519-3276 História – Sensibilidades – Periódicos SUMÁRIO Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07 Dossiê História e Sensibilidades 1- O Brasil nasceu cansado? Entre louvor e horror ao trabalho na música popular (anos 1930/1940) . . . . . . . . . 13 Adalberto Paranhos 2- A polifonia perdida do arraial do Tijuco . . . . . . . . . . . . . 37 Júlio César de Oliveira 3- Memória e afetividade: a importância das emoções nas trajetórias sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Veruska Anacirema S. da Silva 4- A casa: lugar de afagos e conflitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 Pedro Vilarinho Castelo Branco Artigos 5- A nova história política e o marxismo . . . . . . . . . . . . . . 97 Laurindo Mékie Pereira 6- Teoria do discurso historiográfico de Hayden White: uma introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120 Ricardo Marques de Mello 7- Tempo e narrativa na historiografia contemporânea . . 146 Cristiano Alencar Arrais Eliézer Cardoso de Oliveira 8- A função social do historiador existe? . . . . . . . . . . . . . . 174 Maria Clarice Rodrigues de Souza 9- Drummond e seu tempo: a vertente social em A Rosa do Povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190 Flávio Pereira Cardoso Larissa Cardoso Beltrão 10- Memórias do Cárcere: história, memória e literatura . . 210 Kamilly Barros de Abreu Silva 11- “Alguma coisa está fora da ordem”: a luta feminina pelo direito ao voto, educação e trabalho no início do século XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222 Tatiana Lima de Siqueira 12- A morte e a morte de Tancredo Neves: controlando muitas vidas através de uma morte . . . . . . . . . . . . . . . 240 Mirian Bianca Amaral Ribeiro 13- Considerações breves sobre cultura rural . . . . . . . . . . . 258 Maria Helena de Paula 14- “Uma esmola pelo amor de Deus”: caridade, filantropia e controle social (Juiz de Fora, 1870 – 1930) . . . . . . . 275 Jefferson de Almeida Pinto 15- Vivências urbanas e conflitos culturais: intervenções e ações na medicalização da sociedade manauara da Bélle Époque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299 Paulo Marreiro dos Santos Junior 16- Os pardos forros e livres em Vila Rica: sociabilidade confrarial e busca por reconhecimento social (c.1747 – c. 1800) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 318 Daniel Precioso 17- O Rio de Janeiro no tempo de D. João VI . . . . . . . . . 341 Carollina Carvalho Ramos de Lima Resenha 18- O legado artístico de Nicolas-Antoine Taunay e a polêmica “Missão Francesa” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 363 Emerson Dionísio Gomes de Oliveira CONTENTS Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07 Dossier History and Sensitivities 1- Was Brazil born tired? between praise and horror to work in te Brazilian popular music in the 1930s and 1940s . . 13 Adalberto Paranhos 2- The lost polyphony from arraial do Tijuco . . . . . . . . . . . 37 Júlio César de Oliveira 3- Memory ande affectivity: the importance of emotins on social trajectories . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Veruska Anacirema S. da Silva 4- The home: a place of caresses and conflits . . . . . . . . . . . 77 Pedro Vilarinho Castelo Branco Articles 5- The new political history and the marxism . . . . . . . . . . 97 Laurindo Mékie Pereira 6- Historiographical theory of the discourse of Hayden White: an introduction . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120 Ricardo Marques de Mello 7- Time and narrative in contemporary historiography . . 146 Cristiano Alencar Arrais Eliézer Cardoso de Oliveira 8- Does the social role of the historian exist? . . . . . . . . . . 174 Maria Clarice Rodrigues de Souza 9- Drummond and his epoch: the social perspective in A Rosa do Povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190 Flávio Pereira Cardoso Larissa Cardoso Beltrão 10- Memórias do Cárcere: history, memory and literature . 210 Kamilly Barros de Abreu Silva 11- “Something is out of order” the fight for women’s right to vote, education, and work: in the home of the century XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222 Tatiana Lima de Siqueira 12- The death and the death of Tancredo Neves: controlling many lives trough of a death . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240 Mirian Bianca Amaral Ribeiro 13- Brief considerations about rural culture . . . . . . . . . . . 258 Maria Helena de Paula 14- “A donation for god’s sake”: charity, philanthropy social control (Juiz de Fora, 1870 – 1930) . . . . . . . . . . . . . . . 275 Jefferson de Almeida Pinto 15- Urban experiences ans cultural conflicts: interventions na actions of the medicalization of society manauara of Bélle Époque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299 Paulo Marreiro dos Santos Junior 16- The pardo man in lining and fredom in Vila Rica: confrarial sociability and searchs for social recognition (c.1747 – c. 1800) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 318 Daniel Precioso 17- The Rio de Janeiro in the epoch of D. João VI . . . . . 341 Carollina Carvalho Ramos de Lima Review 18- The artistic legacy of Nicolas-Antoine Taunay and the controversial “French Mission” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 363 Emerson Dionísio Gomes de Oliveira EDITORIAL A revista Opsis que se apresenta é resultado de um duplo esforço de sistematização de discussões em história. Primeiramente, pelo próprio Dossiê temático História e Sensibilidades, que é fruto de uma reflexão iniciada no contexto do VIII Simpósio de História de mesma temática, promovido pelo Curso de História CAC/UFG em 2007. Naquele momento os organizadores do simpósio, sintonizados com as atuais preocupações historiográficas no Brasil, abriam espaço para debates que iam ao encontro de variadas formas de se fazer história, mas principalmente dentro dos parâmetros da História Cultural. Se, como Pesavento (2006, p. 161), entendemos que “a sensibilidade está no cerne da História Cultural, que se propõe a trabalhar com as formas pelas quais os homens, a partir de suas histórias, representavam a si próprios no mundo”, podemos compreender que o campo do sensível diz respeito a nós, como historiadores, mas também, a nós como sujeitos de histórias diversas. Assim, as discussões realizadas permitiram empreender debates dentro dos quais a questão da sensibilidade humana aparecia como viés de análise, explicação e compreensão da história. Portanto, é motivo de alegria e orgulho, dois estados d’alma positivos, que significam otimismo e gosto pela história, apresentar uma publicação que traz como escopo as discussões sobre as sensibilidades na história sem, no entanto, abrir mão da presença de outros temas e outros recortes teóricos que dão conta do quão amplo e dinâmico é o campo historiográfico. Lembrando Paul Ricoeur (2007), em seu monumental A memória, a história, o esquecimento, se a humanidade tem se assentado na busca por uma memória feliz, ao historiador, como parte dessa mesma humanidade, caberia a formulação, ou a busca, de uma, também, história feliz; o que não significa eximir-se da história como tragédia e sofrimento, mas tão somente cumprir um papel social e humano de se ocupar da aventura de homens e mulheres no mundo. Dessas implicações, do trato das sensibilidades pela história, abre-se a revista com o Dossiê: História e Sensibilidades, composto por quatro artigos. Os dois primeiros se originaram das conferências ministradas pelos autores no simpósio acima referido e tratam, cada 7 traz trabalhos de temas livres. apresenta a polifonia. Adalberto Paranhos problematiza o culto ao trabalho do Governo Vargas através da musicalidade. mas sem vínculos com o simpósio em destaque. aparentemente perdida. também na perspectiva de diálogo com a teoria da história e debates sobre tempo e narrativa. valendo-se. nos séculos XIII e XIX. Em discussões que tratam do século XX. Júlio César de Oliveira. mas que o autor consegue divisar e ouvir . Tem-se. segundo uma perspectiva interpretativa que se assenta na obra de Norbert Elias. de diferentes documentos históricos. Finalizando o dossiê tem-se o artigo de Pedro Vilarinho Castelo Branco que problematiza a casa como lugar de afetos e afagos num contexto de transformação cultural. de forma introdutória. a revista traz o artigo de Veruska Anacirema S. tal como aparece na literatura piauiense de início do século XX. do Arraial do Tijuco. Em discussões relacionadas à teoria da história. glorificadora da batucada e que se expressa como enfrentamento à apologia ao trabalho como valor. em seguida. que problematiza as disputas e questionamentos das fronteiras de gênero sentidas por mulheres que empreenderam ações de lutas pelo voto. para complementar tais discussões. em seu artigo. Tem-se. Tem-se também o artigo de 8 . Flávio Pereira Camargo e Larissa Candido Beltrão dialogando. apresentam pesquisas ou preocupações no campo das ciências humanas. da Silva que discute algumas noções de memória e afetividade. a teoria do discurso historiográfico de Hayden White. nos quais os autores. educação e trabalho. por seu lado. para tanto. Maria Clarice Rodrigues de Souza debate a função social do historiador. tem-se o artigo de Laurindo Mékie Pereira que debate as configurações atuais da Nova História Política e do Marxismo. ocupado em apresentar. tem-se o artigo de Tatiana Lima Siqueira. A segunda seção da revista. com a poesia de Drumond e Kamilly Barros de Abreu Silva problematizando a literatura de testemunho a partir da obra de Graciliano Ramos. primeiramente. propondo variados objetos de investigação. o artigo de Ricardo Marques de Mello.um a seu modo. o artigo de Cristiano Alencar Arrais e Eliézer Cardoso de Oliviera e. Ainda compondo o dossiê temático. Os dois artigos seguintes trazem à baila as discussões sobre literatura e história. de tons e sons da / na história. Artigos. Emerson Dionísio Gomes de Oliveira apresenta sua resenha do livro O sol do Brasil. Os dois artigos seguintes tratam de cultura e sociedade. Já os dois últimos artigos dessa seção. na seção Resenhas. apresentam a análise dos aspectos da luta social de pardos. Já o artigo de Maria Helena de Paula traz como hipótese de leitura a configuração cultural e lingüística. de Lilia M. cuja reflexão sobre morte é realizada tomando a morte de Tancredo Neves como foco da análise. debatidos no contexto das comemorações do bicentenário desse marco histórico. Por fim. no artigo de Daniel Precioso. e os vários impactos da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil. encerrando as discussões propostas por esse número da revista Opsis. Schwarcsz. tais como as mesmas se apresentam em recortes da cultura popular rural em Catalão – GO. temática do artigo de Carollina Carvalho Ramos de Lima. dedicando-se a tempos mais recuados. sendo que Jefferson de Almeida Pinto se dedica a pensar a filantropia e o controle social e Paulo Marreiro dos Santos Junior se dedica a pensar a medicalização da sociedade no contexto da Bélle Époque. Márcia Pereira dos Santos Dezembro de 2008 9 . forros e livres em Vila Rica no século XIII. definidas por suas inter-relações.Mirian Bianca Amaral Ribeiro. . Dossiê História e Sensibilidades . . br 13 . de uma forma ou de outra. Keywords: work. tomou parte ativa no debate que então se instalou e que oscilava entre a afirmação do batente e a glorificação da batucada. São Paulo: Boitempo. como aqueles que envolviam o culto ao trabalho regular e metódico e sua negação. Cultura e Arte.com. antinomic values circulated socially. 1 Professor do Programa de Pós-graduação em História e dos cursos de Ciências Sociais e de Música da Universidade Federal de Uberlândia. sob certos aspectos. Mestre em Ciência Política (UNICAMP) e doutor em História Social (PUC-SP). um espectro ronda o Brasil. valores antinômicos circularam socialmente. ainda persiste: o fantasma da preguiça e da indolência. Teimosamente. ed. Co-autor de Música popular en América Latina (Santiago de Chile: Fondart. Editor de ArtCultura: Revista de História. samba. The musical production of that period reflected such contradiction by taking active parting. que. popular music. Na contramão dessa concepção. uma delas atravessou séculos e. 2007). governo Vargas. ideologia do trabalhismo. Palavras-chave: trabalho. música popular. desde a sua invenção. nos anos 1930/40.O BRASIL NASCEU CANSADO? ENTRE O LOUVOR E O HORROR AO TRABALHO NA MÚSICA POPULAR (ANOS 1930/1940) WAS BRAZIL BORN TIRED? BETWEEN PRAISE AND HORROR TO WORK IN THE BRAZILIAN POPULAR MUSIC IN THE 1930S AND 1940S Adalberto Paranhos1 Resumo : Durante o primeiro governo Vargas. samba. in one way or another. Vargas administration. E-mail: akparanhos@triang. Dentre as muitas representações que dele se forjaram. Isso se retratou inclusive na produção musical da época. entre outras obras. such as the cult to methodic and regular work and the refusal to it. Vice-presidente da IASPM-AL (seção latinoamericana da International Association for the Study of Popular Music). Autor. de O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil (2. 1999). in the debate that emerged then and that oscillated between the affirmation of work and the glorification of the batucada (bohemia). Abstract: During the the Vargas administration. laborism. com o advento do “Estado Novo” – e em especial com a entrada em cena do Departamento de Imprensa e Propaganda da ditadura – desencadeou-se uma autêntica cruzada antimalandragem. tudo isso sem se lançarem sofregamente à busca de alimentos. formatado segundo as práticas e os valores que empurravam mar afora a civilização européia em tempos marcados pela aceleração das conquistas comerciais. podiam desfrutar de um cardápio variado. os índios. já se faziam ouvir expressões de desdém de franceses e portugueses que se horrorizavam com a ociosidade dos chamados selvagens. quase se confundindo com o ato de seu batismo. ficavam. Portugueses e franceses. p. com a desorganização do modo de produção fundado no trabalho escravo. capítulo 11. 211). 14 . esperavam-se exemplos edificantes.” 2 Em muitos momentos da história do Brasil. Afinal. em particular. deparamo-nos com o estigma da preguiça. ver Clastres (2003). foi inventado sob o estigma da preguiça. não eram. Da área da música popular. de pinturas e plumas em vez de regarem com suor as suas áreas cultivadas. como mulheres. salienta o antropólogo Pierre Clastres (2003. os apelos do batente enfrentaram sérias dificuldades para sobrepor-e aos apelos da batucada. preservar uma boa aparência. eles não atinavam com o que encontraram por estas bandas. os índios o motivo de preocupação das autoridades e dos membros das classes dominantes. embasbacados: “Grande era a sua reprovação ao constatarem que latagões cheios de saúde preferiam se empetecar. Entre o final do império e os primórdios da vida republicana. Páginas tantas da nossa história. Como ressalta Sidney Chalhoub (1986). De toda maneira. com sua economia de subsistência. num certo sentido. Naquelas circunstâncias. os detentores do capital e seu braço político vão criar condições para a emergência de uma ideologia do trabalho. Nos calcanhares da malandragem O Brasil. seu propósito explícito consistia em proceder à valorização do trabalho. como uma pedra no sapato de todos quantos se comprometiam com esse esforço “civilizatório”. travou-se uma luta sem tréguas contra a ociosidade e tudo o que cheirasse a elogio ao não-trabalho. obviamente. gozar de saúde. 2 Sobre o assunto. Guiados por seu olhar. de fato.Numa época em que se procurava imprimir um novo impulso ao desenvolvimento capitalista nestes não tão tristes trópicos. 39-58. Realizaram-se apresentações públicas de artistas nacionais em eventos bastante badalados. a valoração positiva do trabalho e as noções de ordem. Getúlio Vargas. a torto e a direito. ver Chalhoub (1986). que se casavam o reconhecimento do significado da festa carnavalesca e a exploração do seu potencial turístico. por todos os meios possíveis. lembro. E. como alguns jornais cariocas. progresso e civilização. esp. pela Prefeitura do Distrito Federal é um indicador disso. cap. a consolidação de um mercado de trabalho assalariado no período pós-escravidão. Sobre a vadiagem no Rio de Janeiro e em São Paulo entre o início da República e a Primeira Guerra Mundial. entre outras medidas. 1984. p. como o Dia da Música Popular e a Noite da Música Popular. passou a manter. estigmatizada nos relatórios policiais como “viveiro natural da delinqüência” (FAUSTO. p. acabara por unir o samba à malandragem. contato direto com os cartazes da música popular brasileira. Ver igualmente Mattos (1991). 2. cap. Sem querer refazer aqui o que já está documentado por outros autores6. ver Vasconcellos e Suzuki Jr. no que seriam seguidos por representantes do Estado. dono de sua força de trabalho. em trabalhador “livre”. era contraposta ao trabalho disciplinado sob as ordens do capital. o “Estado Novo” se nutria. 15 . a promover o enaltecimento da malandragem. dessa forma. por exemplo.Tratava-se de condenar a ociosidade e favorecer. 3 e 4. (1995) e Salvador (1990). de passagem. Com a instauração do “Estado Novo”. portanto. especialmente p. A oficialização do desfile de carnaval. principalmente a partir de meados da década. o que implicava. como item prioritário da pauta dos debates parlamentares de 1888. Cabral (1966. 5 Sobre essa relação. Era preciso cortar o mal pela raiz.5 Desde o princípio dos anos 30. Na sua campanha de valorização do trabalho. em 1935. Fernandes (2001). 6 Ver. A repressão à ociosidade figurou. 5. ver Fausto (1984. começariam a emitir claros sinais de aproximação com a área da canção popular. no processo de formação da música popular brasileira. espescialmente cap. de tempos em tempos. Articulavam-se. cap.3 A vadiagem. não poderia admitir que se continuasse. na sua ânsia de erigir uma sociedade disciplinar. 6-8). III. então. 35)4. 33-45). O Teatro 3 4 Sobre trabalhadores e vadios. em pessoa. Era inadiável converter o liberto. e Soihet (1998) cap. dessa tradição. setores da sociedade civil. interromper a íntima relação que. destinadas ao público estrangeiro. que foi ao ar em 18 de abril de 1942. as trocas culturais entre os países latino-americanos e o “grande irmão do Norte”. Tal programa de rádio. na abertura da Exposição Nacional do Estado Novo. desse programa se acha em Tota (2000. ele acusava o comparecimento de “muito Sobre a política da boa vizinhança made in USA. resultou em alguma abertura de mercado para o samba e um punhado de sambistas. Observador inclemente do cenário político estado-novista. O local de onde ele falava era sintomático: o Rio de Janeiro. 8 A descrição. 7 16 . em parte.7 Ela favorecia. na presença do alto escalão do governo federal. 120-126) (citação da p. 123). especialmente os três primeiros tópicos. identificado como genuíno produto brasileiro. a esse estreitamento de contatos entre o poder institucionalizado e os artistas populares. — Se você misturar duas palavras. é claro. durante uma transmissão para a América do Norte de um programa de rádio especial da Blue Network (apud TOTA. o samba na bagagem. e mexer bem. 2000. se misturar vários brasileiros. se somava ao rol de homenagens que se rendiam a Getúlio Vargas pelo transcurso de mais um aniversário do ditador no dia seguinte. carregando. 2 e 3. p. a todo vapor. em janeiro de 1939. especialmente cap. E.Municipal. Por outro lado. transmissões radiofônicas oficiais. consternado. em minúcias. a ardilosa política da boa vizinhança do governo norte-americano. Um desses programas chegou ao requinte de ser irradiado para a Alemanha nazista diretamente do terreiro da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Simultaneamente. abriu suas portas ao samba. obterá o samba. p. o escritor Marques Rebelo assistia. você terá a dança do samba. Esta era a receita sintética que ninguém menos do que o cineasta Orson Welles fornecia aos ouvintes dos Estados Unidos que pretendessem conhecer o bê-á-bá do Brasil e de seu ritmo característico. música e Brasil.8 O rumo que tomavam as coisas no Brasil deixava muitas pessoas de cabelo em pé. Anos antes. como parte integrante da estratégia de afirmação de sua hegemonia continental. 123). entre o final dos anos 1930 e o início dos anos 40 estava em curso. a diferentes pontos do planeta. mais especificamente o Cassino da Urca. Cantores renomados integraram a comitiva presidencial em viagem a países latino-americanos. e Tota (2000). se incumbiam de transportar o samba. ver Moura (1984). seja como for. o que. vinculada a uma história que prioriza a ação das elites. pois extravasavam toda a irreverência contra os abusos e mete-a-mão das autoridades – foram minguando. p. os sambasexaltação. 1939. cabritos que se engabelam com o chacoalhante bornal da subvenção [. com a intenção expressa de facilitar o entendimento “com as autoridades federais e municipais para obtenção de favores e outros interesses que possam reverter em benefício de suas filiadas” (art. 11 De todo modo. Se. dos estatutos da União das Escolas de Samba. 97).povo encomendado... comumente veiculada. As grandes sociedades não precisavam mais ficar correndo o livro de ouro para fazer seus préstitos. ele ganhava terreno. viveria dias de esplendor sob o “Estado Novo”. 1. dentre os quais sobressairia “Aquarela do Brasil”12. Esse tipo de análise. esse seria o período de florescimento de uma grande safra de sambas cívicos. desaparecendo dos desfiles (LAGO. não procede. Ela consta. sem contar os cáusticos comentários sobre a vida cotidiana. para ali. Francisco Alves. 1997.° 2). como esclarece Sérgio Cabral. p. Eram pagas para alegrar o povo. 78 rpm. 148). Emi. Não por acaso. cujas anotações iniciais datam de 1. 1.º de janeiro de 1939 e se prolongam até 31 de dezembro de 1941. dos pecados de origem que o conservaram afastado de lugares respeitáveis.) Apoteose do samba (v. p. (apud CABRAL.9 Esses novos capítulos do processo de entronização do samba como símbolo musical da nação10 repercutiam favoravelmente junto aos sambistas em geral. 17 . Despido. Relançamento (Relanç. Os inquilinos do Palácio do Catete cobravam essa fatura. de aceitação generalizada.11 O samba. 11). de Ary 9 Esse diário-romance. para muitos artistas. a informação.): caixa (cx. Mas isso tinha um preço. Odeon. 1996. Mas tinham também a sua contrapartida. inaugurando também um outro astuto veio de popularização do chefe” (REBELO. na versão oficial.] todas desfilaram. do Estado e do governo Vargas na promoção do samba a símbolo nacional. 10 Estas considerações não me conduzem à conclusão. CD n. de que a obrigatoriedade das escolas de samba apresentarem enredos com “motivos nacionais” tenha sido uma imposição do “Estado Novo”. está coalhado de críticas ao ditador. que insiste em realçar o papel decisivo. o compositor comunista Mário Lago não via com bons olhos uns tantos desdobramentos da situação a que fora alçado o samba: Começavam as subvenções para aqui. ignora ou faz pouco da atuação dos próprios criadores e divulgadores do samba para a sua afirmação como ícone musical do país. E as escolas de samba encaminhadas para lá. quando não único. Os carros de crítica – talvez os mais esperados. que já invadira os cassinos e as telas de cinema. 2002. pagar esse preço era visto como compensador. 12 “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso). 1997. 2003. isso sim.º). à ditadura e aos “engodos dipianos”. aprovado em setembro de 1934. Ver Paranhos. Arquivo Nacional.Barroso.14 Ou ainda de “Brasil. LP Brasil com “S”. lambuzados de clichês do ufanismo tupiniquim. 37 e 38) frisou que. Regravação (Regrav. 14 “Brasil!” (Benedito Lacerda e Aldo Cabral). ver cap. “o decidido propósito” de Getúlio Vargas e do “Estado Novo” de estimularem toda música que exprimisse “profunda brasilidade”. exalava o espírito oficial da época. faria com freqüência o elogio rasgado do “Estado Novo”. não se tratava apenas de manter a celebração da Natureza e sim de introduzir na cena política uma nova personagem: o povo brasileiro”. Por essa razão. Pronunciamento do músico Oscar Lorenzo Fernandes.13 Com um ar grandiloqüente. “notaremos que. É o caso de “Brasil!”. o aparentemente possível conflito entre natureza e cultura resolverse-ia pelo trabalho” (FURTADO FILHO. 2004. base sobre a qual se assentaria o “lema tríptico disciplina. Note-se que essa canção foi gravada e lançada antes de “Aquarela do Brasil”. p. Relanç. Nada mais conveniente à ditadura. De fato. 288). usina do mundo”15. mesmo considerando a riqueza da terra como dádiva de Deus. 78 rpm.16 13 Nesse tempo se saudava.º aniversário da “revolução de 1930”. não podia descuidar da importância da obra humana. Colúmbia. e manifestações como o nativismo romântico do século XIX. algo mais apareceu. 78 rpm.: LP Os rouxinóis. assim. FC 103. saturada de nacionalismo. se pusermos frente a frente o verde-amarelismo. 18 .): Rogério Duprat. a ênfase recaía sobre a Natureza. Déo. antes. nacionalismo”. bem como o ufanismo que se instalou no princípio do século XX. Emi. Sobre o samba-exaltação. 1939. usina do mundo” (João de Barro e Alcir Pires Vermelho). essa fornada de sambas-exaltação. no campo da produção musical erudita. por ocasião do 10. cúmplices ou parceiros dos novos tempos simbolizados pelo “Estado Novo”. 15 “Brasil. agora. Marilena Chaui (2000. Revivendo. “a poética da brasilidade. s/d. samba que nos coloca diante de trabalhadores cantando felizes. Esta composição. Colúmbia. 1942. 16 Nas palavras de outro estudioso. embora não contivesse qualquer referência ao regime estado-novista. civismo. 1974. e. como exemplo mais bem acabado. Francisco Alves e Dalva de Oliveira. que então grassava em terras brasileiras. 6. p. se levarmos em conta que os trabalhadores figuravam nos cálculos governamentais como peças da estratégia que objetivava reduzir o impacto da luta de classes e subordiná-los aos projetos de desenvolvimento capitalista em andamento. Da exaltação à natureza se passaria à exaltação mais ou menos explícita do regime político vigente. registrado em disco pelo DIP. espelho meu. E aqui nos deparamos. até tentar apropriar-se da imagem de malandro. Marques Rebelo (2002. tendo em vista o enaltecimento da “democracia racial” e da “democracia social” supostamente existentes no país. Sobre o assunto. Foi o que se deu com Getúlio Vargas. p. É a partir de todas essas mudanças na cena político-musical brasileira que se pode compreender o alcance da iniciativa governamental de incorporação do samba à galeria de símbolos da nacionalidade. no mesmo movimento. p. eles flagram as “coisas nossas”. ele cumprisse a contento a função que e desejava atribuir-lhe. à Carmen Miranda. portanto. p. ressignificado. como símbolo da nação. que se orgulhavam da sua condição de criadores do samba. ele se mirasse no espelho e perguntasse: “espelho. aparar algumas arestas. como assinala Kerber (2005). procurar “depurá-lo”. expurgar certas tradições para que. Ao mesmo tempo. Com apurado senso de percepção. valia tudo. era. informa que o ditador se divertia à larga com o anedotário popular envolvendo seus golpes de esperteza. era muito mais interessante ao regime que a incômoda associação entre samba e malandragem. 192). a entronização da baiana.O nacionalismo espontâneo17 originário de compositores de extração popular e/ou de classe média. Tal qual a unha adere à carne. que serão concebidas como expressão da mais fina malandragem: “acariocaram a imagem de Getúlio. o novo samba urbano carioca soldara o sambista ao malandro. 18 Nesse contexto. setores das elites e do governo Vargas teriam contas a ajustar com seu “passado negro”.18 Para atingir esse objetivo. existirá no mundo alguém mais esperto do que eu?”. no registro que lança em seu diário-romance em 26 de janeiro de 1940. ver Paranhos (2005) esp. Já Mário Lago (1977. dispara um comentário certeiro a respeito das proezas políticas de Vargas. Noel Rosa e Assis Valente se alinham entre os seus mais destacados propagadores. com o legado histórico do culto à malandragem. Ao assimilar o samba e. aquelas que compunham o pão-nosso-de-cada-dia da vida das classes populares urbanas. Era como se toda manhã. e ele passou a ser 17 Refiro-me a uma espécie de nacionalismo que não se permitia arrebatamentos ou derramamentos típicos do verde-amarelismo encampado pelos sambas-exaltação. Desatar esse nó era tarefa encarada como urgente e inadiável. 78-83. Tornava-se necessário. bem comportado. em sintonia com a política cultural estado-novista. os temas da mestiçagem e da conciliação de classes eram retrabalhados pelos ideólogos do regime. 19 . no entanto. uma vez mais. 189) em suas memórias. ao despertar. a Lapa. Como se não bastasse a pregação das boas-novas anunciando que o céu se inclinara em direção à terra. vida livre. pelos mais elevados desígnios políticos. como uma zona famosa pela sua boêmia.apresentado como o grande malandro. mais particularmente. foi alvo preferencial da polícia estado-novista e dos rearranjos urbanos que redundaram na reabertura da temporada de desapropriações em massa para dar passagem à “modernidade” e à “civilização”. como conclui apressadamente Tiago de Melo Gomes (1999. 140). que. ao traçar o retrato falado dos tempos dourados da Lapa. o que ia passando todo mundo pra trás. que. a prostituição. p. clubes de jogo. definiu-a. guiado. paraíso dos sabidos e calvário dos otários. Na Lapa. pretensamente. as armas do Estado foram apontadas para a Lapa. mostruário de mulheres famosas. blitzen policiais. o que sempre tinha um golpe escondido no bolso do colete. reinado e república da malandragem carioca. Dos propósitos à ação. a rigor. (1998. a administração de Henrique Dodsworth (1937-1945) a golpeou em pleno 19 Sobre a construção da imagem de Getúlio Vargas como bom malandro e as referências à sua esperteza no teatro de revista. esse procedimento “desqualifica totalmente a tese de que este teria sido um inimigo da malandragem”. p. O escritor João Antônio (2001. 89-90 e 97-98). transbordava seus limites territoriais e abraçava outras regiões da circunvizinhança. tudo se passou sem perda de tempo. Isso não se restringiu ao plano das intenções. 97). para derrotar a inimigalhada. a droga. Identificado pelas autoridades como um cancro social. 2001. Vargas. “todos os vícios estavam representados: o jogo. associados ao bem comum. p. as instituições estatais e as “pessoas de bem” certamente deveriam mover um combate incessante à malandragem tradicional. se o ditador gostava de ser tido como malandro. um evangelho em louvor ao desvario. a trapaça. a repressão se abateu sobre os redutos da malandragem carioca. império. centro da vida política do País em certa faixa da idade republicana. com o advento do “Estado Novo”.”19 Daí não se segue. 20 . Seu símbolo-mor. ver Velloso. a sodomia” (LUSTOSA. com a era de justiça social inaugurada com a “revolução de 1930” e. p. 12). Longe de poupá-la das intervenções urbanas em curso. rosário de cabarés. entre outros atributos. Malandro do bem. Quando o florentino Dante. como dois pólos ou dois horizontes de vida que não se tocam. 17 e 18). perfeitamente. evidentemente. numa política de arrasa-quarteirão justificada pelo chefe de polícia. sem dó nem piedade. vergados sob o peso de suas capas de chumbo douradas (ALIGUIERI. num determinado sentido. poderiam somar-se ainda os hipócritas. que se locomoviam a passos de cágado. ambos se defrontaram com uma outra realidade. poderíamos até localizar o lugar que lhes cabia. Em compensação – e isso é digno de nota –. Se recuássemos bastante no tempo. cantos XVIII e XII). 21 .20 Como nos ensinou Gramsci (2001. também poeta. p. Para os fins deste texto. O espelho no qual se enxergavam os criadores do samba urbano carioca refletia imagens partidas e justapostas de protagonistas de uma história que muitas vezes não dispunham de condições de viver 20 Sobre a “política de terra arrasada” posta em prática na Lapa e arredores. eles toparam. Virgílio. 78). acompanhado de seu guia. O cerco sobre malandros. se materializava nessas medidas drásticas. a segunda vala é toda ela ocupada pelos aduladores. Nesse mundo reservado aos pecadores. eles podem. boêmios. Tais personagens da Lapa e de todas as lapas do Rio estavam predestinados a receber um tratamento de choque. o que ele designa como “material ideológico” compreende “até a arquitetura. a disposição e o nome das ruas”. E a concepção dantesca dos aduladores (que. Prostíbulos e cabarés foram fechados aos montes. ver Lenharo (1995. habitantes da sexta vala. transpôs o Rio Aqueronte e adentrou no Inferno. A ideologia do regime. coronel Alcides Etchegoyen (sucessor do macabro Filinto Müller) em nome dos bons costumes e da moral pública. ser assemelhados aos malandros. deixando-nos conduzir aos idos da Idade Média. 2 e 4.coração. A eles. Entre a orgia e a “regeneração” A oposição entre o batente e a batucada não se apresentava aos sambistas de forma linear. com os rufiões e os sedutores. e Velasques (1994). não se afina com a estreiteza dos valores estado-novistas) lhes prescreve um lugar efspecialíssimo: viver submersos no esterco. especialmente cap. gigolôs. prostitutas se fez sentir. quem sabe. na primeira vala do oitavo círculo. p. Máximo e Didier (1990) especialmente p. p. É de dentro dela que brota. 189-192. antes de retornar a discussão e reenquadrá-la no período do “Estado Novo”. Logo se vê que a temática do malandro regenerado não é obra do “Estado Novo”. O culto ao samba. Orestes Barbosa (1978. 289-295. “O que 21 Malandro. assegurava ele sem pestanejar. 22 Atirar-se à orgia era. o texto verbal da canção não se limita a falar sobre (discurso intransitivo) a existência social. Ao contrário.simplesmente a seu bel-prazer21. à batucada e à malandragem nutriu-se.. (1984). 511-514 e 520-523. boemia e coisas que tais. acima de tudo. 3 e 8. apesar da industrialização emergente e dos avanços da urbanização.). e Salvadori (1990) especialmente p. variadas e contraditórias acepções do que era ser malandro. Jornalista e boêmio inveterado. o desemprego. como não poderia deixar de ser.. regada a samba. especialmente p. conviviam as duas tendências mencionadas.. transformando a matéria-prima das experiências vividas em samba. o “discurso transitivo” dos sambistas: “em outras palavras. Vasconcellos e Suzuki Jr. Esse movimento pendular entre o batente e a batucada (ou. fala a existência”. 128-134). no limite. 189-192. Oliven (1982). dessa realidade. discriminados como pessoas de atitudes suspeitas. p. o subemprego ou o emprego ocasional compunham o cotidiano de muitos trabalhadores (quantos deles em estado potencial. Pelo contrário. batucada. mais ou menos contraditoriamente. em especial p. entre o amor ao samba e o martírio) como elementos que não se excluem é perceptível em muitas composições. como diz Muniz Sodré (1979. Vou me concentrar aqui em algumas canções. por exemplo. por sinal. Matos (1982) especialmente cap. em diferentes momentos históricos e numa mesma época.] são em maioria”. Num país em que. Se este iria investir muita saliva e cassetete em seu esforço de convencimento pró-trabalho. não é de todo surpreendente que o discurso do abandono da orgia22 e do chamado ao batente se entrecruzasse com a exaltação da malandragem. entre o prazer e o sacrifício. Tinhorão (1981. sinônimo de festa. que parcelas “responsáveis” da sociedade buscavam recuperar para o mundo do trabalho. 81) testemunhava um certo desequilíbrio de forças: “os que combatem o trabalho [. 34). essa situação representava um reforço nada desprezível àqueles que se utilizavam dos mais diversificados expedientes para fazer frente à luta pela sobrevivência. no próprio campo da música popular brasileira se detectavam sinais de que. é possível registrar.. p. Às voltas com uma queda-de-braço permanente com as necessidades do dia-a-dia. nunca teve um significado unívoco. 22 . Ver. um dos sucessos que embalaram o carnaval de 1931. Odeon.) Os grandes sambas da história (CD n. Relanç.será de mim”23. a situação de muitos sambistas que ofereciam resistência à introjeção das normas disciplinares burguesas.: cx. p. gravação (grav.: CD Mário Reis. 1990. 1993. 157) 23 “O que será de mim” (Ismael Silva. Relanç.. Noel cantava em suas apresentações ao vivo e em programas de rádio nos quais divulgava essa canção que arrebatou o Rio de Janeiro: [.º 10). por exemplo. Emi.: coleção (col. Odeon. ao mesmo tempo em que se alegra quando sua companheira bate asas e voa para longe: Nem tudo que se diz se faz Eu digo e serei capaz De não resistir Nem é bom falar Se a orgia se acabar [. queixava-se o personagem desse samba. “Mesmo eu sendo um cara trapaceiro/ não consigo ter nem pra gastar”. “Nem é bom falar”25.): 1930. 1971.. a existência de um Brasil no qual a maioria da população. em “Com que roupa?”26.. Nilton Bastos e Francisco Alves). Odeon. Silvio Caldas. Francisco Alves e Mário Reis..: CDs Duplas de bambas (CD n.. 78 rpm. Noel pela primeira vez (CD n. 25 “Nem é bom falar” (Ismael Silva.] Eu nunca sinto falta de trabalho Desde pirralho Que eu embrulho o paspalhão Minha boa sorte é o baralho Mas minha desgraça é o barracão Dinheiro fácil não se poupa Mas agora com que roupa? [. indiretamente. Nilton Bastos e Francisco Alves). lançamento (lanç. Funarte/Velas. A elas se acrescenta. Revivendo.] (apud MÁXIMO. Parlophon. 23 . “Lenço no pescoço”24 e inúmeras outras canções se inscrevem nesse bloco. Ao insinuar. Globo/BMG. Mais revelador. DIDIER.): 1931. era o que. 26 “Com que roupa?” (Noel Rosa) Noel Rosa. isso por si só freqüentemente não servia de estímulo para “entrarem nos eixos”. 24 “Lenço no pescoço” (Wilson Batista). Noel retratava. 2000. pés-rapados que eram. Francisco Alves. 1930. relanç. 78 rpm. 1933. s/d.º 1).] Embora grande parte dos compositores da música popular brasileira vivessem na pindaíba. 1997.: LP Mário Reis. Regrav. 1931. Victor. 78 rpm.. 78 rpm. à margem da gravação disponível em disco. Relanç.º 1). Nele o sujeito do samba pressente seu fim ante a perspectiva do término da orgia. entretanto. vivia com as calças na mão. como que a sugerir a possibilidade de um eterno retorno à orgia. 164 e 165). até certo ponto.. ora é o homem ora a mulher que são desprezados pelo seu par. ninguém crê Quem já foi vadio um dia É vadio até morrer Mas pouco me importa Digam tudo que disser Eu deixei a vadiagem Por causa de uma mulher Se malandrear era uma expressão símbólica da “definição identitária” da geração de sambistas formados de acordo com os padrões dos bambas do Estácio e de outros pontos do Rio de Janeiro. por ser da orgia. Quantas vezes a deserção da malandragem não foi decantada de maneira ambígua. tudo isso contava. a perspectiva de afastar de sobre si os sobressaltos de quem se situa na tênue fronteira entre o lícito e o ilícito. Mas esse terreno. as promessas de uma nova vida como decorrência do ato de entrega às responsabilidades sociais. ao que consta. Seu autor. sua afirmação deixava de segregar sua negação em uns tantos sambas. é visivelmente acidentado. com seus aclives e declives. “a importância da temática da malandragem no estilo novo e o caráter problemático dessa temática. Mário Reis. nem por isso. Seu tema.. Vale a pena transcrever sua letra na íntegra porque ela condensa elementos presentes em um bom número de sambas que abordam a regeneração dos malandros ou o final da malandragem. dialeticamente. um outro samba tinha ido para os ares. Como observou Sandroni (2001. Daí. Odeon.No ano anterior. A vadiagem eu deixei Não quero mais saber Arranjei outra vida Porque deste modo Não se pode mais viver Eu deixei a vadiagem Quando eu digo. a “Vadiagem”27. segundo o mesmo autor. que é ao mesmo tempo a do abandono da malandragem”. 1929. 168. “neles. por não ter deixado a malandragem. seria Francisco Alves. isto é. 27 “Vadiagem” (Francisco Alves). p. 78 rpm. 24 . O peso da instituição familiar. como parece ser a exigência dos tempos de ‘hoje em dia’”. s/d. o samba escarnece do otário. 1979. 78 rpm. Relanç. tentar. Odeon. de fato. por exemplo. Outra composição contagiada pela ambigüidade é um clássico do carnaval. Marçal e o Estácio. cuja “mulher lhe dá o suíte”. São Paulo. De mais a mais. Francisco Alves e Mário Reis. O canto de seu protagonista não soa como se ele estivesse plenamente convencido das vantagens da “vida regenerada”. aqui. o verbo deixar. também da lavra do Estácio. ao contrário do que aparece na transcrição da letra de “A malandragem” em Cardoso Junior (1998. p.. p.A dubiedade contamina.: CDs Duplas de bambas (CD n. Senão vejamos: A malandragem eu vou deixar Eu não quero saber da orgia Mulher do meu bem-querer Esta vida não tem mais valia Mulher igual para a gente é uma beleza Não se olha a cara dela Porque isso é uma defesa Arranjei uma mulher Que me dá toda vantagem Vou virar almofadinha Vou tentar29 a malandragem [. Convém recordar que uma das acepções de tentar é provocar.. Abril Cultural. Francisco Alves. Relanç. o que restabeleceria a coerência da mensagem veiculada. 25 . parecer fazer mais sentido. 29 Apesar de.. na estrofe seguinte. “A malandragem”28. 90). tudo indica que a figura em questão não foi recuperada para as labutas do trabalho. 30 “Se você jurar” (Ismael Silva. à primeira audição. Tanto que ele ensaia sua volta à orgia no exato momento em que anuncia a disposição de abandoná-la: Se você jurar Que me tem amor Eu posso me regenerar Mas se é para fingir. mulher A orgia assim não vou deixar [. com todos os seus caminhos tortuosos. em vez de tentar. grav. Nova História da Música Popular Brasileira (NHMPB).: 1930. 183). Revivendo.] Para dizer o mínimo. Desertar dela parece ser a porta de acesso a outra modalidade da vida malandra. e em Alencar (1980. 78 rpm.) Bide. Francisco Alves canta.: fascículo (fasc. samba bem acolhido no carnaval carioca de 1928. lanç.: 1931.º 1).] 28 “A malandragem” (Bide e Francisco Alves). e reconhece que “malandro é seu Abóbora/ que manobra com as mulhé”. 1928.. “Se você jurar”30. Nilton Bastos e Francisco Alves). 26 . Sua vida. Heitor dos Prazeres coloca na boca de um malandro o discurso da regeneração via trabalho. esp. O malandro. Revivendo. na pele da “fuzarqueira” Aracy de Almeida. não significa desconhecer a existência de uma censura ditatorial prédezembro de 1939 –. com o advento do “Estado Novo” a polifonia/dialogia cederia lugar ao monólogo. que. Sua esperança parecia projetar-se rumo ao além. 145 e 146. Victor. portanto.. Se agora já está claro que a safra de sambas que tratam da regeneração dos malandros não foi obra patenteada pelo regime estado-novista. tudo se modificou. o teria despojado de seu conteúdo crítico. 33 “Tenha pena de mim” (Babaú e Ciro de Souza).A minha vida é boa Não tenho em que pensar Por uma coisa à toa Não vou me regenerar [. E por aí andavam as coisas até chegarmos. Victor. do silenciamento de vozes destoantes da política estatal. No samba “Vou ver se posso. se prolongou de 1940 a 1945? Em vários casos. p.: cx.. 78 rpm.. teriam eles dominado inteiramente a cena musical brasileira entre 1937 e 1945? Ou isso somente teria ocorrido sob o reinado do DIP. 78 rpm. 2004. com a instauração do “Estado Novo”.” (Heitor dos Prazeres). obviamente. em vários sambas. Por mais enfático que ele seja.. mais uma vez. por exemplo.32 Ao se analisarem as gravações que se sucederam entre 1937 e 1939.. bem como da assimilação dos sambistas aos propósitos da ditadura. 32 Ver. bate na tecla do abafamento. uma dúvida existencial quase implode o que transparece na superfície da letra. uma crítica ardida. Uma trabalhadora.º 2). na prática.. antes. O tom preponderante. 13. Para a autora. Mário Reis: um cantor moderno (CD n. 1937.: CD Sambistas de fato.”31. 2.] Esses vaivéns reaparecem inclusive numa das mais veementes defesas de quem decide pegar no batente. nesses casos. Mário Reis. ela ia desfiando em “Tenha pena de mim”33 como se fora a encarnação de uma maria-das-dores: 31 “Vou ver se posso. 1934. Relanç. não tinha por que se orgulhar de sua condição. um rosário de ais. BMG/RCA. que. os cortes temporais que figuram em determinados trabalhos permitem supor que. ao se apropriar do samba como símbolo nacional. Aracy de Almeida. da entrada em ação do DIP – o que. promete se esforçar para tentar suportar a faina do trabalhador: “vou ver se posso/ conseguir a [sic] trabalhar”. Relanç. ao “Estado Novo”. fica evidente que o trabalho continuava a sofrer. Martins (2004). na verdade. s/d... 1. col. admite que “Tenha pena de mim” foi o primeiro sucesso que a elevou ao status de uma cantora de grande popularidade. SESC-São Paulo. meu Deus Isso é pra lá de sofrer Sem nunca ter Nem conhecer felicidade Sem um afeto Um carinho ou amizade Eu vivo tão tristonha Fingindo-me contente Tenho feito força Pra viver honestamente O dia inteiro Eu trabalho com afinco E à noite volto Pro meu barracão de zinco E pra matar o tempo E não falar sozinho Amarro essa tristeza Com as cordas do meu pinho “Tenha pena de mim” escancarava a “transitividade” do samba. a quem coube dar o ponta-pé inicial da composição. 265) ao se referir ao “samba que seria o vitorioso do ano”34 no primeiro carnaval sob o “Estado Novo”. 35 Ver depoimento no CD Aracy de Almeida.Ai. 34 A confirmação desse êxito está também em Severianoe Mello (1998. 169). 2001. que prestam maiores informações sobre o surgimento dessa canção. 27 .35 Quem era o crioulo de morro que atendia pelo apelido de Babaú? Ninguém mais que um humilde empregado de uma birosca fincada no alto da Mangueira. Ciro de Souza. não tenho nada Não saio do miserê Ai. São Paulo. a recepção popular alcançada foi consagradora. p. meu Deus Tenha pena de mim! Todos vivem muito bem Só eu que vivo assim Trabalho. que um dia se encheu de coragem e resolveu mostrar a Ciro de Souza um samba que começara a esboçar. p. por sua vez. ai. Aracy de Almeida. ver. A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes. por um compositor da Vila Isabel. como lembra Edigar de Alencar (1980. Feito a quatro mãos. e o então desconhecido Babaú (Valdomiro José da Rocha). ai. Orlando Silva. Relanç. em 1937.: 1938. 28 . “Tenha pena de mim” seguiu sua trilha em direção ao sucesso.Detalhe: o nome original da composição foi alterado. Duas legendas do Estácio. originalmente.36 Sem desfazer do seu amor pela bem-amada. momentaneamente. Moreira da Silva. Victor. 78 rpm. a despeito da função tutelar assumida pelo “Estado Novo” na sua “proteção” aos pobres. Moreira da Silva no ritmo quente da batucada. Com Deus ou sem Deus.: 1938. RCA/ BMG. e Roberto Roberti). pois a censura costumava vetar o emprego da palavra Deus nos títulos das músicas. o samba “Abre a janela”. formosa mulher E vem dizer adeus a quem te adora Apesar de te amar como sempre amei Na hora da orgia em vou embora Vou partir e tu tens que me dar perdão Porque fica contigo meu coração Podes crer que acabando a orgia Voltarei para a tua companhia Para incômodo de uns e outros. grav. s/d. Gravada. a orgia. Carlos Galhardo. e convertendo-se.: col. como se pode imaginar. 78 rpm. estabelecendo. 37 “Ando na orgia” (Bide e Marçal). Carnaval. nesse mesmo ano. Porém. lanç.: cx. 1939. sua história. é “O trabalho me deu o bolo”38. revisitavam o tema em “Ando na orgia”37.: 1937. aqui. ela seria regravada em 1939.º 2). a composição mais emblemática de que.º 30). 78 rpm. O repúdio ao trabalho. muita coisa prosseguia malparada. Relanç. grav. associada à populaça. 38 “O trabalho me deu o bolo” (Moreira da Silva e João Golo). O cantor das multidões (CD n. uma profunda relação de empatia com a massa da população trabalhadora/ sofredora. o eu lírico confessava que a sedução exercida pela orgia era irresistível: Abre a janela. anda de par com a glorificação da orgia por um trabalhador escaldado pela experiência do batente: 36 “Abre a janela” (Arlindo Marques Jr. 1995. Orlando Silva emplacou outro destaque do carnaval de 1938. Odeon. sua glória (CD n. de olho no carnaval de 1940. Victor. Bide e Marçal. lanç. interpretada por um dos ícones da malandragem.: 1937. não se despregava do repertório das canções da época. Revivendo. numa espécie de hino dos escanteados. com toques de sofisticação. em 1939. de bom grado. à louvação ao não-trabalho.39 Os governantes. preocupados em polir a imagem do Brasil como uma nação constituída por trabalhadores de todas as classes. E o arranjo para a Orquestra Odeon. por exemplo. entre o batente e a batucada. que. Os empresários logicamente são as últimas pessoas na face da terra a aceitarem. estavam muito longe de assistir. às declarações de amor à orgia e à celebração da malandragem. a escolha recaía sobre a batucada. esse estado de coisas desgostava muita gente. identificava o gênero dessa canção. Ver. as medidas legislativas promulgadas pelo governo Vargas pretensamente em benefício dos trabalhadores. deixa quem quiser falar Eu fui trabalhar O trabalho estava cruel Eu disse ao patrão: Senhor. Intelectuais comprometidos com o regime também se incomodavam com a perpetuação dessa situação. concebido. sem qualquer reação. 29 . pelo maestro Simon Bountman. Imprensados entre a ideologia do trabalhismo. o repúdio ao trabalho regular e metódico. antes deixava fluir. como que a sacramentar musicalmente a letra de “O trabalho me deu o bolo”. o ronco da batucada. não abafava. no selo do disco.Enquanto eu viver na orgia Não quero mais trabalhar Trabalho não é pra mim Ora. me dá o meu chapéu Eu não quero trabalhar Trabalho vá pro inferno Se não fosse a minha nega Nunca que eu botava um terno Posto na encruzilhada. E foi aí que se acionou o DIP para tentar pôr um paradeiro nisso tudo. editorial da Revista de Organização Científica. Era ela. e pesando sobre si a mão de ferro da 39 Organização racional do trabalho e disciplina eram lemas constantes do empresariado paulista nucleado em torno do IDORT (Instituto de Organização Racional do Trabalho). Urgiam providências para debelar essa onda que parecia interminável. 1942. De volta ao começo Com certeza. para eles uma ofensa lesa-pátria aos nossos foros de civilização. 105-144).] é o do medo. p. Marques Rebelo (2002. 41 Em Paranhos (2002 e 2006). da delação. houve um elevado número de composições e compositores populares afinados com o regime e com a valorização do trabalho40. teriam. num momento em que a expansão. 30 . p.repressão. do rádio e do disco minava as expectativas que eles tinham alimentado. Num certo aspecto. para além da simpatia que sua atuação granjeava. 117 e 51) anotaria que “o clima que se respirava [. quando mais não seja porque “as paredes são de papel”. Como ressalta Arnaldo Contier (1988. Se. senão aderido à ordem estado-novista. é óbvio. A tesoura da censura. abaladas umas tantas crenças generalizadas que ainda perduram acerca das relações Estado/ música popular sob o “Estado Novo”. os compositores e intérpretes da música popular.. com sua lâmina de corte afiada. 321. sabe-se que Villa-Lobos. Outro pesquisador também se reporta às letras de canções gravadas entre 1937 e 1945: ver Severiano (1983. eu arrolo e analiso uma série de composições representativas das vozes dissonantes sob a ditadura estado-novista. ao se abrigarem sob o generoso guarda-chuva do Estado. assim como outros músicos eruditos e intelectuais filiados ao modernismo nacionalista.. ficam. de outro despontaram. o exercício da censura era considerado um meio válido para coibir a proliferação de vulgaridades como a linguagem chã e chula. finalmente. chegou ao ponto de incentivar e aplaudir iniciativas dessa natureza. ao intervir discursivamente nas questões ligadas ao mundo do trabalho. p. no mínimo. canções (sambas em sua maioria) que traçaram linhas de fuga em relação à “palavra estatal”. com a contestação aberta aos princípios ideológicos oficiais. operava com desenvoltura. de um lado. ela respondia ainda a apelos de determinados segmentos da sociedade brasileira. pelo menos calado o que sua voz trazia de inconveniente aos novos tempos? O ar político sob o qual se vivia era turvo e tenso. cap. No caso específico da canção popular. como um tipo de discurso alternativo. envolvendo tanto a temática do mundo do trabalho como das relações de gênero.41 A partir daí. Essa constatação equivale a um atestado de que. sem freios. não nos deparamos. Neste caso. 6). Nem por isso deixaram de circular socialmente imagens e concepções que colocaram em movimento outros valores. a área da música popular não se resumiu a mera caixa de repetição do discurso hegemônico. ao menos até 1943/ 1944. da espionagem”. no âmbito estético. Ver Tota (1980. 324 e 325). 40 Tota apresenta um “Apêndice: letras de sambas e marchas” para ilustrar sua dissertação. nas quais trabalho rimava com martírio e miserê. 78 rpm. em muitos casos. Atitude perfeitamente compreensível. a tentação da orgia atingia em cheio aqueles que eram intimados a se alistar no exército nacional de trabalhadores. Dircinha Batista. porque. 1945. realçando-se um solo de clarineta e a reconstituição do ambiente musical de gafieira. Este é mais um exemplo. não corresponde a um ato voluntário. Do seu estranhamento resulta que “tão logo inexista coerção física ou outra qualquer. um número não desprezível de composições ainda continuava a elaborar rimas de pé quebrado. 31 . também não Mas na quinta novamente Eu tornei a me cansar Sexta-feira descansei Pra no sábado continuar Há muita gente que trabalha tanto Que não samba Que não dança E vive se matando Trabalhando o dia inteiro Sem sambar de noite Acabando a mocidade Que não dá prazer Por isso é que eu sambo Me deixa sambar Sei lá se hoje mesmo eu posso morrer De quebra. foge-se do trabalho como de uma peste”. Viver à base de expedientes 42 “Passeei no domingo” (Ari Monteiro). interpretado com muito balanço por Dircinha Batista. Continental.Apesar da lavagem cerebral que se tentou realizar. entre tantos disponíveis. não Quarta. antes de mais nada. uma trabalhadora não muito convicta exprime à sai moda tal realidade em “Passeei no domingo”42: Passeei no domingo Acordei na segunda Com o corpo cansado De tanto sambar Assim mesmo eu fui trabalhar Terça-feira. 83) salientou. em termos gerais. nas representações da vida social presentes nas canções populares. como Marx (2004. “Passeei no domingo” é um samba contagiante. sendo. um trabalho forçado ou obrigatório na sociedade capitalista. de que. Sem ser marxista. p. o trabalho. os mais variados – com os prós e contras que isso acarretava – era por vezes percebido como algo preferível a escravizar-se sob um regime de trabalho metódico, regular e sobretudo financeiramente pouco compensador. Referências ALENCAR, Edigar de. O carnaval carioca através da música. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980. ALIGUIERI, Dante. A divina comédia: inferno. 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Artigo recebido em dezembro de 2008 e aceito para publicação em dezembro de 2008. 36 A POLIFONIA PERDIDA DO ARRAIAL DO TIJUCO THE LOST POLYPHONY FROM ARRAIAL DO TIJUCO Júlio César de Oliveira1 Resumo : O artigo visa a refletir sobre alguns fragmentos sonoros que marcaram a paisagem sonora do Arraial do Tijuco no decorrer dos séculos XVIII e XIX. Para a plena realização deste desafio recorreu-se a diversas fontes de pesquisas, dentre elas, à literatura, a música, os relatos de viajantes e as obras dos memorialistas locais. Palavras-chave: paisagem sonora, Tijuco. Abstract : This article aims at reflecting about some sonorant fragments which were crucial to the soundscape from Arraial do Tijuco throughout the XVIII and XIX century. In order to fully carry out this challenge several search sources were studied, among which literature, music, travellers speech and the writings memorialist of the local. Keywords: soundscape, Tijuco. Analisando-se a paisagem sonora2 do Arraial do Tijuco, por meio das obras produzidas por memorialistas, historiadores e viajantes, depreende-se que ela era labiríntica, conflituosa e denunciadora do autoritarismo português. Doutor em História Social pela PUC/SP. Professor da Universidade de Uberaba e da Universidade Presidente Antônio Carlos. E-mail:
[email protected] 2 Concebida como todo e qualquer campo de estudo atinente à acústica, em particular a polifonia e a musicalidade existentes nas cidades, à paisagem sonora caracteriza-se por ser composta por sons fundamentais, sinais e marcas sonoras. Quanto aos sons fundamentais, cabe destacar que eles tanto podem ser criados pelos elementos da natureza, como pelas máquinas de combustão interna. Por fim, verifica-se que eles não precisam ser ouvidos conscientemente, uma vez que se tornaram hábitos auditivos, porém, deve-se salientar que eles são notados quando mudam ou desaparecem totalmente, sendo, nestes casos, relembrados com afeição. No que se refere aos sinais, verifica-se que eles são sons destacados e ouvidos conscientemente. Alguns destes sinais, tais como sirenes, sinos e apitos, constituem-se em recursos de avisos acústicos, que tanto podem anunciar um acontecimento aprazível e/ou catastrófico. No que concerne à marca sonora, observa-se que ela se refere a um som da sociedade que seja único ou que possua determinadas qualidades que o tornem significativo ou notado pelos habitantes daquele lugar (SCHAFER, 2001). 1 37 Nesse contexto, ocupam uma posição singular as reflexões realizadas pelo memorialista Joaquim Felício dos Santos3 diante da opressão portuguesa junto à sociedade tijucana, posteriormente, diamantinense4. Nessa perspectiva, antes de esquadrinhar-se algumas obras por ele produzidas, mais especificamente Acayaca5 e Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro do Frio, deve-se salientar que elas foram geradas em um momento histórico caracterizado pela luta em prol da implantação da república e pelo ressurgimento da imprensa liberal, silenciada desde 1832, em Diamantina.6 Nesse sentido, o jornal O Jequitinhonha, objetivando o retorno dos assuntos liberais às conversas cotidianas, passou a publicar, em folhetins, diversas obras relembrando à população o seu passado de lutas e rupturas, conclamando as elites à retomada dos tempos de glória 3 Joaquim Felício dos Santos (1824-1895) nasceu na Vila do Príncipe, atual cidade do Serro. Com residência fixada em Diamantina, esse republicano “histórico” foi senador, jurista, memorialista e romancista. Ao longo de sua vida publicou diversas obras, dentre elas, um projeto de Código Civil Brasileiro, Memórias do Distrito Diamantino e um trabalho crítico-humorístico-histórico intitulado O Brasil do ano 2000. 4 Para alguns viajantes e historiadores, a implantação do Regimento Diamantino, fundamentado em uma legislação draconiana, foi responsável por aprofundar o isolamento do Distrito, fazendo com que ele se tornasse uma colônia dentro de outra colônia, desligado do restante do Brasil por uma extensa barreira legal e administrativa, “mais eficaz naquela sua forma do que as pedras e tijolos da Grande Muralha da China”. Para outros pesquisadores, possivelmente influenciados por Joaquim Felício dos Santos, a excessiva centralização administrativa vigente no Distrito, ao contrário do restante da Colônia, obteve excelentes resultados, pois fora organizada de forma especial, isto é, completamente independente de quaisquer outras autoridades da Colônia, portanto, prestando contas tão somente ao governo metropolitano. Em sentido contrário a essas abordagens sugerimos, entre outras, a leitura das obras de Júnia F. Furtado citadas no artigo. 5 O romance Acayaca foi publicado em 1866, por meio da tipografia Perseverança Fluminense, sendo em 1869 relançada na série Leitura Para Todos. Além do referido romance o autor produziu Poção do Moreira, Acaba-mundo, O Intendente dos Diamantes, Fragmentos de um Manuscripto e O Capitão Mendonça. 6 Para Furtado, a referida obra caracteriza-se, além de denotar a construção que o autor faz da história do referido Distrito, pelo fato de estar impregnada pelas histórias de diversos “heróis” e “vilões” que povoaram a região diamantina, destacando-se entre eles, Chica da Silva: “Chica da Silva foi a única mulher do século XVIII elevada, por Joaquim Felício, à categoria de personagem histórica. Todos os homens - fossem libertos ou escravos - nascidos na terra brasilis figuravam nas Memórias como mártires no panteão dos heróis nacionais. Com Chica no entanto não aconteceu o mesmo. Homem do século XIX, o autor reconstruiu a personagem conforme a visão que predominava em sua época, e fez projeções de suas impressões no século anterior. Baseou-se em cenas de seu cotidiano social, em que a mulher e a família deviam regrar-se pela moral cristã e onde imperavam os preconceitos contra ex-escravos, mulheres de cor e uniões consensuais” (FURTADO, 2003, p. 266). 38 reproduzido o Libelo do Povo. foram publicadas as seguintes obras de Joaquim Felício dos Santos: Acayaca e Memórias. Outro aspecto de cunho literário e. do português Alexandre Herculano. Segundo a autora. Imiscuído entre os editoriais inflamados. p 56-57). observa-se que a referida obra foi inspirada em diversos romances românticos ambientados no período medieval. em sua dinâmica mítica. o presbítero. deve-se salientar que as representações que buscam o mito de origem não são exclusividade da história que Santos lutou para engendrar.e de honra. em particular na obra Eurico. que interpreta a luta pela nacionalidade. Nesse caso. e culmina com as Páginas da História do Brasil Escritas no ano 2000. segundo a perspectiva do projeto liberal. estando ele margeado por instituições opressoras. o romance Acayaca publicado no Jequitinhonha. começar a contar as histórias referentes às diferenças entre Brasil e Europa e também aquelas relativas à identidade nacional. por apresentar em seu âmago o mito da fundação da terra. atravessa esses discursos a tentativa de reconstruir a gênese da cidade a partir da mitificação das origens. sob o fulgor das estrelas. portanto. ao tratar dos discursos que tiveram como objetivo analisar as origens da cidade de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. Do ponto de vista literário. os românticos acreditavam que era possível. Do ponto de vista histórico. a gênese política e sonora dessa opressão. conforme ressaltou Marc Bloch (2001. segundo Souza (1993) ao Guarani de José de Alencar. por extensão. sobre a terra e com os índios. ocasião em que os mouros invadiram a península ibérica. em franca oposição ao regime monárquico. Santos narra a fundação mítica do Arraial e a luta titânica empreendida pelos índios Puris contra os invasores portugueses e. a ser enfatizado conduz a interlocução do autor com o ideário preconizado pela primeira geração do romantismo brasileiro que. pois algo muito semelhante teria ocorrido no âmbito da historiografia produzida em outro continente. acreditava não existir nada mais significativo do que a natureza. que remete o tempo de sua narrativa às lutas nacionais portuguesas no século VIII. Ou seja. para expressar a idéia de Nação. o mito fundador teria 39 . Insatisfeito com o presente. histórico. O mesmo procedimento também teria sido adotado para explicar a fundação de muitas cidades brasileiras. Nesse contexto. equipara-se. de uma forma geral. Pesavento (2002) também toca nessa questão. assinado com o pseudônimo de Timandro. Nesse contexto. verifica-se no romance a marcante presença de uma fonte cultural de origem judaico-cristã que acentua o mundo como eco e materialização da palavra8 e. Isto é. para os tempos da colonização” (BRESCIANI. que construíra uma comunidade simbólica de sentido” (PESAVENTO. o fato de o autor recorrer aos sons para explicar e ao mesmo tempo justificar a origem do Arraial e. os sons tabus. pela Gênesis e pelo evangelho de São João. conseqüentemente. assim como nas demais que se seguiram. Influenciado. a autora tece o seguinte comentário: “Sua obra histórica tem uma ‘posição’ literária. respectivamente. Dessa forma. da terra e. descrita por Santos. uma que ressalta o mundo como eco e materialização da palavra e outra que concebe o universo regido por uma música cósmica. da opressão ali existente. 2002. O mito fundador. Nesse sentido. 246). sendo. No entanto. garantir a unidade da população em torno de projetos políticos. e seu discurso sobre o passado compõe uma coerência de sentido mítica. O horizonte de temporalidade desse mito é o passado. responsável pela constituição do céu. 40 . criam-se ou criam outros deuses ou o mundo a partir do som. isto é. segundo a qual. que. quais sejam. esse último. p. como se sabe. os trabalhos desenvolvidos pelos intelectuais que se debruçaram sobre os estudos acerca das colônias européias instaladas no continente americano: “Todas as elaborações intelectuais sobre o que veio a ser cada uma das antigas colônias européias nas Américas sentem-se irresistivelmente atraídas para a origem. e a sua narrativa busca reconstruir a sociedade antiga com vistas a consolidar um sentimento identitário. p. observa-se no romance Acayaca que as coisas irrompem para a vida ao serem nomeadas pela voz do Criador e são ressaltadas constantemente pelo verbo divino. com ele. no dizer de Bresciani. por conseguinte. é fundamental para representação de um pertencimento. 2003.por função promover o sentido da pertença e. 23-33). do próprio Arraial. a forte presença de uma cosmogonia na qual os deuses apresentam-se. o autor explica o surgimento do Arraial. 69). outro elemento também pode ser observado na obra de Santos. mais especificamente Memórias do Distrito Diamantino. destaca-se novamente em meio à paisagem sonora de cunho mítico. um começo. 8 Segundo Sant’Anna (2001. assim como naquelas de diversos povos em diferentes momentos históricos. sons considerados por diversos 7 Ao tratar da obra de Augusto Porto Alegre.7 O retorno às origens também caracterizaria. observa-se na narrativa do memorialista. duas são as fontes culturais pelas quais os homens explicaram o surgimento do universo e da terra. p. que virão disputar-vos as riquezas que descobrirdes. em particular. pelos mais velhos e sábios. quando proferidos ou produzidos. Nesses casos. verificava-se que eram zelosamente guardados. retratados por Santos em Acayaca. dessa forma. a cobiça há de devorar-vos as entranhas. mas o ouro há de escaldar-vos as mãos. como nos caçastes a nós. nos precipícios. em segredos e. 282). enquanto aquela árvore existisse. Interpretando o acontecimento como sinal de mau agouro e tomados de pânico. uma das inúmeras filhas do pajé Pyrakassu. onde o sol cresta e enegrece a pele. o pajé ateou fogo ao cedro sagrado e proferiu sua maldição sobre os invasores das terras sagradas do Puris: Quereis riquezas. em local distante. Diante desse quadro desolador que conduzia à extinção da nação Puris. achareis muitas debaixo da terra que calcamos debaixo dos pés. e aí mesmo sereis caçados a moçaba. Profanastes nossas ibicoaras. amanhã sereis perseguidos por outros. expulsastes-nos da taba: mas vossos filhos serão também expatriados. estabelecendo entre si uma luta atroz. seria suficiente para causar um colapso no Império e no Estado. esconder-vos-eis nas brenhas. Hoje. nos abismos. por extensão. no meio dos animais bravios. são para ele são emblemáticos a palavra hebraica Jaweh e o termo chinês Huang chuang (sino amarelo). foram tradicionalmente proferidos de maneira imprópria e sempre seguidos por morte e destruição. Segundo a crença vigente no seio dessa nação indígena. por isso eram somente conhecidos pelos membros do grupo e. os homens brancos. onde 9 Segundo Schafer (2001. que. derrubaram a acayaca. Tomastes nossas terras.estudiosos de enorme ressonância simbólica que. se tocado pelo inimigo. informados pelo mameluco Tomás Bueno sobre o segredo da tribo. constituindo-se. além de serem ouvidos na contemporaneidade na forma de sirenes da defesa civil. em silêncios cuja manutenção garantia a sobrevivência do grupo. Entretanto. os índios passaram a rebelarse contra o pajé.9 Mediante o poder atribuído a esses sons. e vê-lo-eis arrastados em correntes para irem perecer em um país. fosse pelas lutas internas e/ou pelas constantes incursões militares do homem branco. 41 . nossos perseguidores. durante os festejos do casamento de Cajubi. tinham o poder descomunal da criação e da destruição. p. Fugireis para bosques. eles estariam protegidos contra todos os males e defendidos de todos os perigos e ameaças. que quando tocadas são seguidas por um desastre. os sons tabus estavam vinculados ao culto de uma árvore por eles denominada de acayaca. os sons tabus. No caso dos Puris. e.. por meio das obras de Santos.carbonização da acayaca. seguiu-se um dilúvio. Continuando a auscultar a paisagem sonora do Arraial do Tijuco e/ou cidade de Diamantina. Mediante esse fato. brilhantes. daqueles que sabem guardar um segredo. 21). ou seja. árvore considerada sagrada pelos Puris. porque conheciam que tanto mais confiança gozariam. vossos ossos branqueados os rochedos. Após ter proferido tais palavras e ateado fogo à árvore sagrada. em uma atitude de segredo na qual observa-se o desejo de 42 . assim como. e assim não valiam as melhores intenções. segregada do resto do Brasil. especiais. sucintos em seus atos e palavras.repousavam as cinzas dos bravos. segundo seu autor: Éramos regidos com leis particulares. que essa paisagem sempre esteve direta e indiretamente associada a uma polifonia denunciadora da presença incômoda. inicialmente. quanto mais promovessem os interesses do Fisco (SANTOS. fazendose notar na forma reservada dos indivíduos. 1976. logo em seguida. eles aparecem envoltos em uma narrativa de cunho histórico. transparentes.] As vistas da Corte eram haver todo proveito do descobrimento dos diamantes: daí deviam os governadores tirar regras de sua conduta. como uma colônia isolada. ordinariamente cristalizadas na forma de octaedro. Abordando-se à paisagem sonora desse período da história do Arraial descrita por Santos em Memórias do Distrito Diamantino. isto é. observa-se nela a constante presença dos sons tabus. Também. 1866. começaram a aparecer pedrinhas rijas. pois. mais especificamente Memórias do Distrito Diamantino. e arrojados ao mar. debaixo do mando das autoridades. p. sendo. e vossos corpos jazerão insepultos sobre a terra para serem pastos de corvos. p. Procuravam não se desviar das determinações da Corte. embora com sacrifício dos povos. e ninguém se animará a buscá-los para o jazigo sagrado (SANTOS. portanto. a brasa adormecida dos diamantes faria arder sempre as mãos de todos aqueles que se atirassem com voracidade sobre o seu cintilar. que visa narrar a saga da população do Distrito na luta pelo direito à cidadania. [. na forma de discrição dos mais diferentes sujeitos sociais. o diamante . autoritária e opressiva da Coroa portuguesa. Na referida obra. 61). isto é.. a presença de idéias republicanas no momento da luta pela independência. ou serão lançados no Jequitinhonha. constata-se. seja pela recusa de transmiti-la. chamada Roma Deusa do silêncio. quando. Lara. O corte impede a revelação e a realização do ritual de passagem (PAULA. que julgava um direito seu.. e o garimpeiro o que a exercia. seja pela recusa de recebê-la. injustamente usurpado. p. ela incorporou outra faceta. quando ele não corresponde àquilo que deve ser. Esse silêncio é um prelúdio para a revelação. que teve a sua língua cortada por Júpiter ao contar à mulher deste a sua paixão por Juturna (PAULA. Confere às coisas grandeza e majestade. condenado a degredo para o solo ardente africano. p.79): “Garimpo era a mineração furtiva. Isto é. Abre passagem..ocultar as misérias que constituem tudo aquilo que o indivíduo aprendeu que não deve ser (PAULA. vendo sua família na miséria.. [. p. vestindo uma pele de lobo coberta de olhos e de orelhas. 1999. calava-se. deportada. clandestina do diamante. denominado deus do silêncio. porque com a proibição da mineração se lhe tirava o único meio de subsistência.]”.. temos o mutismo que é o impedimento desta. uma forma de ocultar as misérias. [. por lhe terem confiscados todos os bens [. Posteriormente. 1999). Diferentemente desse silêncio de abertura e de revelação.. podia-se ouvir à noite os sinais acústicos da opressão portuguesa por 10 Segundo Santos (1976. era representado sob a figura de um jovem em pé com o dedo sobre os lábios.] o mutismo está ligado às línguas cortadas para esconder as manchas e as misérias do indivíduo. 116-117). pois ela silenciava sobre si com medo de ser delatada e. ia exercer uma indústria. 1999.] Garimpeiro tornava-se muitas vezes aquele que obrigado a expatriar-se ou a passar uma vida de misérias. a mineração clandestina. tendo dessa forma seus bens confiscados. inicialmente. 116-117). era aquele que. no desejo de preservar sua vida e sua liberdade. A reser va constituiu-se. 43 . 11 Harpócrates. a obra Memórias do Distrito Diamantino também possibilita observar que a paisagem sonora do Tijuco caracterizava-se por ser composta de sons separados que podiam ser claramente ouvidos em razão do baixo nível de ruído ambiental. significando que devemos falar pouco. detecta-se no interior da sociedade tijucana o silêncio de Harpócrates e de Lara:11 O silêncio de Harpócrates é o silêncio do tijucano. em uma maneira encontrada pela população do Tijuco para preservar a própria vida e liberdade.10 Nesse contexto.. como a impor silêncio. É o silêncio da prudência e da circunspecção. por extensão. devido ao fato de os sons se sobreporem com menos freqüência. Além dos sons tabus. ou seja. sendo emblemático o próprio ato de garimpar escondido que ganhou na região diamantina uma conotação associada ao bandidismo e à delinqüência. do rufar dos tambores. vestidos de largos sortus de pano grosso azul que lhes estendiam até os joelhos. que silenciosa e cotidianamente subiam e desciam as ladeiras. encontrar-se por todos esses espaços diversas formas de silêncios e sons provenientes da voz.. tendo nas cabeças chapéus de imbés de longas abas. subiam pelos desfiladeiros apertados do Arraial de baixo (SANTOS. Nas noites ecoavam.] onde é o Arraial de Baixo e que então era um covil de feras bravias. 1976. como os garimpeiros de vida difícil e incerta. invariavelmente. os gritos desbragados das onças. o isolado. as ruas do Tijuco tornavam-se melancólicas e silenciosas. Ninguém podia julgarse seguro em sua casa. eram um vasto tremedal que no tempo das águas se alagava. mais especificamente nos primeiros anos de fundação do Arraial. além do tinir dar armas. 1976. dos passos dos soldados às margens do São Francisco ou na mata densa. desde a fundação do Arraial. isolados do resto da colônia. p. 110). descendo da Grupiara até o Rio Grande. persistente uivo dos lobos. tornando-se intransitável e servia como barreira às feras que acossadas. 43). pelos índios. Chafariz.meio do tinir das armas. como lúgubres galerias de um vasto cemitério: apenas se ouviam o tinir das armas e o andar compassado e monótono dos soldados que rondavam (SANTOS. o rufar furtivo das asas dos pássaros noturnos e o pio noturno das corujas. sendo-nos interdita toda comunicação com os povos de fora. freqüentemente. defrontava-se. o cricrilar dos grilos. Também ocupava uma posição singular nessa paisagem sonora noturna. São Francisco e Cavalhada. seguidos por seus vôos silenciosos. porém. cuja alta tessitura invadia os ouvidos dos homens instalando em suas almas o medo e o receio de se sair à noite: [. à noite. com 44 . No mundo labiríntico das ruas e becos era possível. denunciando-o. deparava-se com homens livres e pobres. p. Era assim que. Nesse contexto. Pelo universo multifacetado das ruas e becos. do andar compassado e autoritário dos soldados que cotidianamente percorriam as ruas e becos do Arraial: Vivíamos como estivéssemos em um eterno bloqueio. obtinha a liberdade e partilhava seus bens com a Fazenda Real. As ruas do Macau. O senhor via com desconfiança no escravo um inimigo oculto que. segundo os romances de Santos e as pesquisas realizadas por alguns historiadores.. trajados de jaqueta de couro de veado. Nada se pode comparar ao ruído confuso e discordante que reina nas vendas muito freqüentadas: uns riem. contribuíam para definir os territórios a serem ou não freqüentados pelos “homens de bem”: [. p. O pão era aí extremamente caro”. comunicando-se reciprocamente seus vícios e que se esquecem. acompanhando-se de um instrumento mais bárbaro ainda (SAINT-HILAIRE. suficientemente altos para serem ouvidos a metros de distância. canta com voz afinada uma canção bárbara. teceu os seguintes comentários: “Não me recordo de ter visto em outro lugar tantos pobres. é para lá que levam o produto de seus roubos. sem ligar ao que se passa em redor. na embriaguez. de serem freqüentemente utilizados como mão-de-obra alternativa à escrava (SOUZA. 45 . estes agentes sociais eram constantemente impedidos ou desobrigadas de assistirem à missa. especificamente. nada produz para alimentação de seus habitantes.] os escravos passam uma parte dos momentos de liberdade que se lhes concedem e dos que podem furtar a seus senhores... encostado indolentemente à parede.homens de poucas e ásperas palavras. 156 158). calças de tré. quando não esfarrapadas e seminus. este aqui. o tom e a altura da voz empregada em seus diálogos cotidianos. e aí acabam por se corromper. 63). não impedia. Acostumados a comunicarem-se por meio de berros e gritos estridentes. com suas vozes e gestos ruidosos. os termos. outros discutem. São absolutamente desocupados [. dança sapateando. Além das vestes. p. que.12 Mal vestidos. deparava-se constantemente com a presença ruidosa e incômoda de diversos desclassificados. dos quais os proprietários das vendas não foram talvez os menores cúmplices. aquele outro.. como os sisudos capitães-domato. nos dias considerados santos. O que. que o intendente lhes dava.. camisa de chita ou riscado. a escravidão e suas misérias. 12 Sobre a presença ruidosa e incômoda destes sujeitos sociais Mawe (1975. o Tijuco se abastece em fazendas afastadas várias léguas. também lhes denunciavam a condição social. apesar de considerados turbulentos e intratáveis pelas autoridades e pelas classes hegemônicas. Cento e cinqüenta desses infelizes vinham todas as semanas receber farinha. 1982). por não terem recursos suficientes para vestir adequadamente a si mesmos e aos seus familiares. em número de seis mil. 1975. esses sujeitos sociais.] por estar situado em distrito estéril. todos falam com loquacidade. no entanto. sobretudo mulheres. dos gestos rudes e do olhar desconfiado. Próximo aos chafarizes públicos ou cruzando as pequenas praças. Por esses territórios também circulavam e conversavam entre si.Ao lado destes. se atrevem irreverentes a entrar na casa de Deus com vestidos pomposos. que uma parcela significativa desse capital acumulado foi empregada na satisfação de novas necessidades intimamente atadas ao luxo. 1996. pode-se observar que tal prática culminou. Reportando-se ao período do Terceiro Contrato (1748-1751). por meio de palavras comedidas e de forma afável. pelo grande número de mulheres desonestas que habitam no mesmo Arraial. as classes hegemônicas procuravam imitar “à risca” os usos e modas provenientes da Metrópole. Porém. e totalmente alheios e impróprios de suas condições (SANTOS. não se contentando de andarem com cadeiras e serpentinas acompanhadas de escravos. a evitar pelos meios possíveis as ofensas de Deus e com especialidade os pecados públicos. alugá-lo a uma taxa de juros de 16% à Real Extração (FURTADO. do comércio e da riqueza. 1976. vozes e silêncios. cada qual com suas respectivas vestimentas. destacavam-se algumas mulheres que. becos e praças do Arraial um reduzido número de pessoas pertencentes às classes hegemônicas. que com tanta soltura correm desenfreadamente no Arraial do Tijuco. de costumes delicados e de fala mansa. Ou seja. no bem estar de muitos e na riqueza de alguns. Entre eles. ruas. invariavelmente. devido à indolência das autoridades e à tolerância do Contratador Felisberto Caldeira Brant para com o contrabando. o que propiciou profunda alteração nos costumes dessa camada da sociedade. 51). como sempre. suas falas e seus sorrisos espalhafatosos provocam a ira e a indignação de alguns moradores do Arraial: Devendo-se atender. falar e se comportar no âmbito doméstico ou público desses sujeitos sociais. posteriormente. Contrastando com a forma rude e simples de se vestir. de um lado. por meio de seus trajes ricos e pomposos. imitavam ditames oriundos da França. 46 . p. verifica. quando ocorreu o aumento da população. para além dessa prática corriqueira. seus gestos. com vida tão dissoluta e escandalosa que. mais que a nenhuma outra coisa. estavam cotidianamente presentes nas esquinas. 56). que. também transitava pelas ruas. praças e becos. eram aplicados na aquisição de um escravo para. indivíduos oriundos dos setores intermediários cujos parcos recursos. outros sujeitos sociais. geralmente bem trajadas. p. por extensão. Um dos mais graves e sérios estudos do tempo era o da denominada política ou civilidade.] neles se discutiam questões que tinham a aparência da maior gravidade e importância. que hoje 13 Nesta perspectiva. dentre elas a oriunda das tosses. 85). isto é.De outro lado. uma ocasião em que parecia se abrandar um pouco a severidade dos rigorosos artigos do inexorável ritual da etiqueta: era nas reuniões de família. foram recrutados. com grande perigo da etiqueta. na maneira que cada membro das classes hegemônicas deveria “regular” o seu comportamento no âmbito privado e público. e sobre que divergiam. isto é. p. Escreviam-se tratados longos. como as provenientes das conversas. Outras sonoridades. [. valsas e fandangos. que se imprimiam e nitidamente se encadernavam [. as opiniões dos mais abalizados autores e práticos. o memorialista constatou que uma fração também expressiva do capital acumulado pelas elites foi devidamente aplicada nos mais “graves” e “sérios” estudos atinentes à “civilidade”. v. ou inobservância das etiquetas burlescas e ridículas. que se era obrigado a observar. isto é.. a consciência da superioridade de seu próprio comportamento em relação aos demais segmentos sociais. mestres que se mandavam vir de longe.] Em uma sociedade a menor discrepância das regras do ritual. sendo algumas delas permitidas. que na maioria das vezes culminavam em bailes animados ao som dos minuetos. 47 . da maneira por que cada um devia em publico regular o seu comportamento. denomina de consciência da civilização. porém. existiam momentos em que se abrandava a severidade dos artigos atinentes às etiquetas. às falas e às vestimentas a serem utilizadas cotidianamente.. ou seja. os mais diversos mestres que ensinavam e escreviam longos tratados. eram consideradas “crime de lesa-civilidade”. 1976. e o delinqüente era apontado a dedo como homem grosseiro e falto de educação (SANTOS. 2). Nessas reuniões. em que se discutiam questões concernentes aos gestos.. por meio de altos salários. ouviam-se diversas sonoridades. No entanto.13 Quando da realização das refeições. com grandes dispêndios e pingues ordenados. nas reuniões de família. mestres de nomeada. as pessoas “esqueciam” as regras básicas de comportamento: Havia. constituía-se grave crime de lesa-civilidade. observa-se que as elites locais haviam atingido aquilo que Elias (1994. Mediante essa necessidade. devidamente impressos e encadernados.. Para este estudo havia mestres. ocupava um lugar expressivo na cotidianidade sonora dos moradores do Tijuco os sons provenientes do contato dos homens com madeira. à medida que a terra foi sendo desbravada. em seqüência cronológica ou geográfica. altares-mores e laterais. 1976. que 14 Utilizando o conceito de morfologia.chamamos bailes. em particular na primeira metade do século XVIII. Atendo-se à sonoridade proveniente da cultura material existente no Tijuco. que são utilizados na fabricação de moradias. sendo. corso. hoje é a interminável cita de concreto bruto que une as casas. esse material passou a ser a pedra.. quando a música eletriza os espíritos e convidava para a dança damas e cavalheiros. dava forma e volume à materialidade do Arraial.. Schafer (2001) conclui que a morfologia possibilita reunir. ouvia-se o resfolegar lamurioso dos serrotes. Já a costa oeste da América do Norte está se movimentando diretamente da era da madeira para a modernidade cinzenta sem passar pela experiência da era da ‘pedra’” (SCHAFER. sobre o espaço natural. cidades e nações. e o sol muitas vezes surpreendia os dançantes fatigados. estratos e outros artefatos. logo em seguida. de tal forma que as variações ou mudanças evolutivas possam se tornar claras: “A primeira coisa a considerar é a base material das diferentes culturas e sociedades. 48 . escutava-se das matas a sonoridade forte e límpida dos machados que cortavam as árvores. ouvia-se uma polifonia oriunda dos mais diferentes instrumentos de trabalho que. carpinteiros e carapinas. 85). Cada área geográfica da Terra em determinados materiais em abundância.. pedra. como sistemas destinados a classificar os sons de acordo com suas várias formas e funções.] Já notei que na Europa central o material de construção original era a madeira. Amplamente utilizada por marceneiros. então.. Dos instrumentos de trabalho utilizados pelos marceneiros oficiais que trabalhavam a madeira executando tarefas que exigiam maior “delicadeza” ou maior “artifício” que o encontrado nos carpinteiros que lavravam a madeira destinada à confecção de móveis. para. madeira. p. empunhados pelos entalhadores. quando as igrejas eram construídas com base de madeira e os seus interiores eram compostos de púlpitos. e o de tipologias. Dos cinzéis. as horas passavam. bambu ou metais. 2001. transformálas em portas. mas não saciados (SANTOS. p. esta sonoridade entremeada por breves pausas para a inspeção do produto confeccionado. no entanto. devido à ação humana. oratórios. [. como formas sonoras que se modificam no tempo e no espaço. nas construções mineiras. o arrastar sibilante das plainas e as rápidas batidas do martelo sobre a madeira. [. 228-229). sons de formas ou funções similares. ruas. utensílios e artefatos.14 Em meio a esse quadro sonoro fragmentado e contraditório. gelosias.] o tempo assim corria. Devido à necessidade de artefatos de ferro cotidianamente empregados em diversas atividades. estando-se próximo às forjas e bigornas. ouvia-se. cujos movimentos das rodas. oficiais que lavravam as pedras de cantaria. escutavamse de longe. verifica-se que um dos sons mais expressivos existentes na localidade era originário do contato das ferramentas utilizadas pelos canteiros. Contrastando com o lento vagar das carroças e com os sons dele provenientes. pesados e lentos. desenhava-se também uma sonoridade composta pelo lento e pesado vagar dos cascos dos bois ou cavalos que puxavam carroças. pregos. verifica-se na região do Tijuco a proliferação de pequenas forjas. sons retinidos. tilintantes e impacientes provenientes do choque entre os pequenos martelos e a matéria-prima trabalhada ainda em estado incandescente. ouvia-se uma sonoridade sutil. leve e graciosa como os movimentos realizados pelos artífices que as modelavam com delicadeza e precisão. estava à rápida sonoridade oriunda das ferraduras dos cavalos que. provocados pelas mãos pesadas dos ferreiros que empunhavam pesadas marretas capazes de fazer vergar o duro metal trabalhado. quando a demanda por construções mais sólidas passou a vigorar na região das Minas. dobradiças. montados por diversos sujeitos sociais. Na confecção dos artefatos mais simples. pedras rijas lavradas e destinadas a serem assentadas em cantos das obras de alvenaria. observa-se que ela era brusca e estridente. gravavam. sons rápidos. rangidos contínuos e assimétricos. brutescos de meio-relevo em madeira. lavravam ou esculpiam laçarias. Ao longo das ruas. fazendo com que das janelas surgissem mulheres com um olhar curioso ou com que os transeuntes se aproximassem dos pedrais que ladeiam as vias do Arraial. isto é. entre elas na construção civil e na mineração. flores.representavam. como se estivessem imersos em um poço profundo. em contato com as ruas mal pavimentadas. Por volta de 1840. dentre eles. freqüentemente entrecortada por pequenas faíscas e associada a uma forma de trabalho e de vida considerados opacos e brutos como a polifonia advinda do contato das marretas com as pedras. arredondados. folhagens. fechaduras. igualmente. chamando a atenção pública. No que tange à polifonia oriunda do contato dos instrumentos de trabalho dos canteiros com as pedras rijas lavradas e destinadas a serem assentadas em cantos ou ângulos das obras de alvenaria. Na produção de artefatos maiores. passavam pelas ruas estreitas e íngremes. emitiam. 49 . referindo-se a um baile realizado. os casais se deslocavam para um imenso salão em cujo centro estendia-se uma longa mesa. contradanças. Nas ruas. durante a qual trocam idéias conversando sobre os trechos que haviam percorrido. irregulares e pouco extensos. Na hora das refeições e à noite. Após as danças. sobre as quais vestiam uma longa saia de montar. realizadas em voz alta por todos os componentes do grupo de tropeiros. segundo ele. Santos. Além desses sons e ruídos. também acompanhavam as tropas as infindáveis conversas. sendo as primeiras organizadas com o intuito de homenagear respectivamente a família real.Cavalos e mulas eram o transporte quase mesmo para as mulheres. valsas vivas e alegres. 156). verdadeiramente. preponderava o uso do carro de bois. Para o transporte urbano. 2000. ou falando de suas aventuras amorosas. Divertem-se cantando e tocando violão e depois adormecem sobre enxergas de couro espalhadas pelo chão. envolvidos em rudes cobertores (ARRUDA. independentemente de serem eles profanos ou sacros. ao som de uma marcha. os estalidos repentinos e agudos dos chicotes e o tilintar dos sinos atados aos pescoços das éguas “madrinhas” que guiavam trinta ou cinqüenta mulas carregadas de mercadorias e víveres a serem vendidos na Praça da Intendência. em homenagem ao governador. p. assim como os constantes gritos emitidos pelas gargantas dos arrieiros e dos tocadores. 156). p. observa-se que as ruas e becos eram iluminados e decorados. Era exatamente nesses veículos de rodas maciças e excessivamente barulhentas que famílias inteiras iam à vila ou arraial aos domingos ou nos dias de festas. um carro patriarcal (ARRUDA. contudo. de uma forma geral. becos e praças também eram realizadas festividades de cunho profano e sagrado. as autoridades civis e eclesiásticas.. sinuosos. as janelas das casas eram ornadas. Para a realização dos festejos. que montavam como os homens. rica e abundantemente servida de todas as “sortes de iguarias”: 50 .. também se deslocavam constantemente as tropas e com elas o tropel ritmado das mulas. à custa do povo. sendo para tanto obrigadas a usar calças. Nas ruas e becos estreitos. sobretudo Páscoa e Natal. Cada tropa em separado prepara sua própria refeição. Era. 2000. na residência de Josefa Maria da Glória. observou que no interior de duas grandes salas decoradas com suntuosos móveis e “magnificamente iluminadas” damas e cavalheiros dançavam minuetes. deve-se ressaltar que os ruídos “sagrados” produzidos pelas igrejas. 1976. nas igrejas eram tecidas extensas redes de sociabilidades que se estendiam e se tornavam perceptíveis. devido ao aumento significativo dos sons no mundo contemporâneo. som não musical. O povo percorria alegre as longas e espaçosas alamedas do jardim. O que é música para um homem pode ser ruído para outro.Mais de oito mil luminárias clareavam o jardim. Em todos os semblantes se via trassudar o contentamento. que impregnavam ruas e becos com uma sonoridade sacra e ao mesmo tempo profana. Ao lado das festas religiosas. significa perturbar uma porção significativa do público. que entrelaçavam sua folhagem. deva haver mais concordância do que discordância a respeito de quais sons constituem ‘interrupções não-desejadas’. Mas o termo mantém a possibilidade de que. observou que etimologicamente o termo pode ser remetido ao francês arcaico noyse. provavelmente a mais satisfatória seja ainda ‘som não desejado’.15 Segundo. as ruas de arvoredos limpárão-se. ocupava uma posição proeminente na polifonia do “velho Tijuco” os ruídos produzidos interna e externamente pela igreja. social e 15 Schafer (2001) refletindo sobre o aumento de sons no mundo moderno terem transformado significado da palavra ruído ( noise ). que encantava (SANTOS. assinalar que. numa determinada sociedade. em particular os provenientes dos sinos e dos órgãos. qualquer som forte e distúrbio em qualquer sistema de sinalização. e essa é a maneira pela qual a legislação tradicional costuma tratar dos problemas do ruído” (SCHAFER. e os chafarizes no centro da iluminação pareciam fios de prata. davam-se vivas entusiásticos ao governador: tudo apresentava uma variedade de divertimentos. conversavase. Construídas pelas Irmandades ou Ordens Terceiras. os tanques reverberavão as luzes. a palavra ruído passou com o decorrer do tempo a ter vários significados e interpretações. que lhes ia no interior. p. então. Isso torna o ruído um termo subjetivo. exceção feita à de Santo Antônio. Para ele contemporâneamente existem quatro definições gerais para a palavra ruído. Para ele. a de Vila Rica e a do Tejuco tocavam sem cessar à porfia. asseárão-se e lastrárão-se de alva e fina arêa. mas pela autoridade que as igrejas tinham para emiti-los. p. caracterizaram-se não somente por serem os mais fortes. 51 . ‘Perturbar o público’. inicialmente. às palavras provençais do século XI noysa. Ria-se. devese. primeiramente. Nesse sentido. salpicando brilhantes perolas. Duas bandas de música. gritava-se. nosa. como gigantescos espelhos estendidos sobre o solo. por cima negrejava a sombria abobada de altos arvoredos. das quatro definições gerais a mais satisfatória e a de “som não-desejado”: “Das quatro definições gerais.258). 195-196). antes de se esquadrinhar alguns ruídos provocados por essas instituições. quais sejam: som indesejado. nausa e as palavras latinas nausea ou noxia. 2001. casamentos e batismos . Era por meio dos seus sons familiares . as paredes das casas. alardeavamse a expulsão dos espíritos do mal. festas. Em outros momentos . nas cerimônias públicas. É um desenvolvimento tardio da mesma necessidade de clamor que antes havia sido expressa pelo canto e pelo estrondo. à mesa das autoridades e estar na área central de uma procissão religiosa representava para diversos sujeitos sociais. o divino era sinalizado pelo sino da igreja. não somente dos homens. Nesses territórios. a população do Arraial preocupava-se com a vestimenta e o local destinado a elas nesses eventos. pois sentar nas primeiras fileiras dos templos. nos casamentos e batismos. p. 2003. s/d. O interior da igreja também reverberava com os mais espetaculares eventos acústicos. nas missas realizadas aos domingos. como ainda da igreja e da própria cidade (HUIZINGA. verificava-se em algumas ocasiões que se constituíam em verdadeiros reservatórios de silêncio nos quais homens e mulheres procuravam. Para toda a cristandade.como missas.que se anunciavam.os templos eram povoados por vozes que. mortes e casamentos. pois o homem trouxe para esse lugar não somente as vozes que se ouviam nos cânticos. p. No que tange ao aspecto social. sob abóbadas escuras e silenciosas. recuperarem a tranqüilidade mental e espiritual perdida nos mais diversos afazeres cotidianos. quando da realização desses eventos. destacando entre eles a sonoridade oriunda dos órgãos que foram inventados para fazer a divindade ouvir. por meio de sussurros. proferiam preces ou comentários maldosos acerca de um antigo desafeto ou cânticos construídos por intermédio de uma linha melódica que conduzia os ouvintes às esferas celestiais. 83). as gelosias das janelas . 158). p. Em outras ocasiões. sobretudo.o órgão. Externamente. sinais evidentes de distinção (FURTADO. mas também a mais ruidosa máquina que até então ele havia produzido . isto é. 10).. a sonoridade dos sinos erguia-se cotidianamente acima dos ruídos da vida profana e elevava todas as coisas a uma dimensão de ordem e serenidade. por meio de sons centrífugos. 52 . nascimentos. observa-se que. por intermédio do som centrípeto. No que concerne à sonoridade existente nesses espaços. E ele foi todo planejado para fazer a divindade ouvir (SCHAFER.sonoramente. também se podia ouvir a polifonia extraída por diversos músicos dos mais diferentes instrumentos. de dispersão. 2001.que atravessavam as folhagens das árvores. relembravam de forma tristonha que a noite trazia em seu âmago a necessidade do descanso. No entanto.Nesse sentido. ao longo do tempo. As principais casas do Arraial caracterizavamse pela extrema limpeza. nunca deixou de tocar. 97-98). a bulha de sinos também desempenha sonoramente um papel coercitivo e punitivo junto à população local. pois relembram por meio de sua polifonia alguns aspectos preconizados pelo cristianismo. Nesse contexto. quando se concluía um tratado de paz ou era eleito o papa (ALGRANTI. nas suas vozes familiares. ora anunciavam o luto ora chamavam para a alegria. Saint-Hilaire observa que. o sino de Rolando. as seguintes ponderações acerca dos sinos: Um som se erguia constantemente acima dos ruídos da vida ativa e elevava todas as coisas a uma esfera de ordem e serenidade: o ressoar de todos os sinos.tendo estas últimas como peculiaridades. Toda gente sabia o significado dos diversos toques que. mais detalhadamente. as casas e sobrados do “velho Tijuco” caracterizaram-se.e por serem 53 . Eles eram para a vida quotidiana os bons espíritos que. por terem as cercaduras das portas e das janelas pintadas de diferentes cores . e mesmo durante a noite. algumas destas casas do Arraial. o caráter efêmero do mundo material e a pecaminização da vida. embora sejam diferentes os recortes temporais e espaciais. eram brancas por fora. dentre eles. não perdiam o seu efeito no espírito dos ouvintes. p. Alinhadas às ruas e becos. o badalar dos sinos anunciavam de maneira alegre que o romper do dia trazia consigo a possibilidade de se valorizar o espírito por intermédio das orações. Assim como. são oportunas. construídas em barro. Focalizando. apesar de incessantes. cobertas de telhas. na sua maioria. no dizer de Chastellain. Que atordoamento não devia produzir o badalar dos sinos de todas as igrejas em todos os mosteiros de Paris ressoando desde manhã até o anoitecer. Durante o famoso duelo judicial entre dois burgueses de Valenciennes. além das cores. da recomposição das forças físicas e do amor comedido e matrimonial. ora avisavam do perigo ora convidavam à oração. por estarem coladas umas às outras. madeira ou adobes. Eram conhecidos pelos seus nomes: o grande Jacqueline. 1997. o fato de terem vidraças . terem seus quintais circundados por muros baixos e por seus anexos cobertos de palha ou telhas. em 1145. do trabalho e da abstinência em relação aos prazeres corpóreos. o grande sino ‘que é horrível de ouvir’. Nesses espaços onde. momentaneamente. desaparecem entre os regos d’água cercados de capins. entre eles. No entanto. as gelosias. de uma forma geral. o de propiciar um maior arejamento das casas. Atendo-se. aos sobrados. segundo Saint-Hilaire. logo em seguida. ao contrário do que intuiu o viajante. o monjolo ou a moenda. observa-se que no alto das paredes caiadas encontravam-se fixados quadros concernentes à vida religiosa. Próximas aos monjolos. de influência mourisca. mulheres conversavam enquanto lavavam os parcos utensílios domésticos e crianças divertiamse com os respingos de água ou arremessando gravetos nas quedas d’água para vê-los saltar e. tornavam tão tristes as casas de Vila Rica. arquitetura trazida do Oriente provavelmente pelos comerciantes e lapidários de diamantes. Também caracterizava esses espaços o fato de serem raras nas casas do Arraial as gelosias ou rótulas de treliças feitas de madeira que.raras as rótulas nas janelas e portas das residências (SAINT-HILAIRE. a sala e a cozinha. p. à seguinte configuração: no primeiro piso estavam localizadas as lojas ou os escritórios. servindo também para guardar diversos utensílios e alimentos. termo que remete ao espaço sobrado ou ganho em virtude de um assoalho suspenso. ao bom gosto e à modernidade preconizada por alguns segmentos sociais. que consiste em um balcão coberto de treliças. 28). para o viajante francês. assim como para os demais viajantes estrangeiros. enquanto no segundo estavam instalados os quartos. Adentrando-se a maioria das casas do “velho Tijuco” no decorrer dos séculos XVIII. passaram a maior parte do tempo. que mantinha a privacidade de quem estivesse no interior das casas (FURTADO. de origem mourisca. Os sobrados também se diferenciavam das construções de outras localidades mineiras pelo uso do muxarabi. p. 1974. verificava-se em seus interiores a realização de inúmeras atividades. aliás. eram associadas ao confinamento e ao silêncio das mulheres. abrigavam a casa da farinha. ao longo dos séculos. estava atada a diversos fatores. as mulheres. Tristeza esta justificada na medida em que. cujo som seco e opaco denunciava que os grãos estavam sendo moídos. 2003. sendo estas separadas e obedecendo. crucifixos 54 . 130). a existência de poucas gelosias no Tijuco. espelhos. bancos e mesas (SAINT-HILAIRE. ornamentadas com dossel e cortinado. selas. 1974. 28). sempre colocados sobre extratos objetivando evitar a presença incômoda da umidade e dos roedores. escutava-se um ranger melancólico e assustador provocado pelo contato da madeira com as dobradiças enferrujadas. próximos ao chão. dependurava-se em cabides uma multiformidade de objetos. Havia camas feitas de jacarandá. os lambaris pintados à imitação de mármore. enquanto outras se contentavam com os mais simples. cadeiras. para projetarem o futuro e relembrarem o passado. Postadas silenciosamente diante dos oratórios. nas quais se dormia sobre colchão de cabelo. cadeiras de grande espaldar. 2003. 55 . Velas dispostas em candeeiros iluminavam o interior das residências. deparava-se também com um reduzido número de móveis. verificar-se que algumas forras possuíam pequenos oratórios portáteis caros e sofisticados.16 Quando da realização da limpeza dessas residências. em meio as suas orações. frasqueiras e mais raramente armários. observava-se. chamadas camas de vento. Na maioria das residências. em alguns casos. algumas com gavetas. em particular nas casas mais abastadas. Em algumas poucas casas. devido à ausência de armários. Sendo emblemático. eram guardadas roupas. Havia mesas de diversos tamanhos. quem sabe. ouvia-se uma sonoridade pesada. quando da abertura das pesadas portas ou tampas dos baús e canastras. Nas caixas. Ou. caixas. bancos e tamboretes de couro ou lona. canapés e estantes para acomodar livros” (FURTADO. baús. 16 “Os móveis em geral não eram muitos e adquiridos mais em face da sua necessidade prática do que pelo efeito decorativo que causavam. 132). aproveitavam aquele momento de quietude e silêncio para sintonizarem-se consigo mesmas e com Deus. Em baixo. ao mesmo tempo. documentos. latão ou vidro. baús ou canastras. onde se guardavam roupas e outros objetos de uso pessoal. espingardas e chapéus. Contrastando com a parca quantidade de móveis e. entre eles. bem como aquelas com catre simples. roupas. cartas e papéis de uma forma geral. oriunda do constante arrastar dos móveis. lenta e tristonha. ou seja. confeccionados de ferro. as mulheres. No interior das casas. ‘canoas de vento’. p. tais como tamboretes cobertos de couro cru. usavamse ‘espreguiceiras’.e oratórios habilmente colocados em nichos nas paredes. p. cômodas com gavetas. ocupando um lugar significativo na vida de algumas pessoas. ou mesmo as de lona. Sobre os móveis dos aposentos das casas mais abastadas deparava-se com imagens de ouro e prata e oratórios que eram denunciadores das posses dos proprietários e de suas respectivas devoções. instaladas no interior das casas e as cozinhas “sujas”. a saber. ao também guarda-livros. tachos de latão ou cobre. para isso. 17 “Em 14 inventários (21. Ou. entre outros fatores. as almas aflitas e sedentas de vingança dos escravos e dos garimpeiros. associados por crianças e alguns adultos aos ruídos produzidos pelas “assombrações”.2%) foram registrados a posse de livros. quando a vida cotidiana era iluminada por pequenos lagos de luzes provenientes desses artefatos. espetos. conduzidas pelos ventos que se afunilavam pelos corredores. dispostas em cerca de 360 tomos. pelas condições climáticas e pela fuligem oriunda dos fogões a lenha. sendo que 12 eram portugueses e todos brancos. três deles eram padres. caldeirões. compunha-se de aproximadamente 140 obras. Manoel Pires de Figueiredo. A esses espaços. diversos cantos provenientes dos pássaros e das vozes humanas. como três volumes da obra de Ariosto e um volume sobre a Revolução de Portugal em 1640. 54-55). 2003. invariavelmente. inicialmente. esses espaços. bacias para pão-de-ló. com as cozinhas. escumadeiras. desmembravam-se em dois. por vezes. sendo. três eram funcionários graduados da Real Extração. que abrangiam os mais diferentes assuntos. A pequena mas seleta biblioteca do guarda-livros e também caixa da Real Extração João Antônio Maria Versiani encerrava algumas curiosidades. por vezes chegavam de forma escorregadia.17 Na escuridão. em direção aos fundos das casas. o crepitar das velas e os esporádicos assobios provenientes dos lampiões eram. na parte externa das residências. entre eles. almofarizes com tigelas de metal para triturar grãos (FURTADO. pelos espíritos daqueles que morreram de forma trágica ou sucumbiram devido aos maus tratos. Desde total. destacando-se. Isto é. p. de uma forma geral. cuja sonoridade predominante era denunciadora do trabalho. 56 . adormeciam tendo os ouvidos acariciados pelas vozes adocicadas que contavam histórias infantis de outros tempos e lugares. Mas de longe a biblioteca mais preciosa pertencia.estavam os livros e as velas dispostas em candeeiros que iluminavam o interior das residências. grande número em latim e alguns em francês” (FURTADO. revelando um grau de instrução elevado. p. 1996. verificava-se que os poderes da visão eram fortemente reduzidos enquanto os ouvidos eram super sensibilizados. utilizados os seguintes utensílios: chocolateiras. Nesse contexto. estrategicamente situadas no exterior das residências.135). grelhas. deparava-se. onde se cozinhava e realizavam os trabalhos considerados mais pesados e menos higiênicos. Deslocando para o interior dos domicílios. na maioria das vezes. Localizadas. as denominadas cozinhas “limpas”. A do N. ARRUDA. Nessa perspectiva. provocavam um borbulhar fugidio e escorregadio. Famílias e vida doméstica. com numerosos e bem cuidados jardins dispostos irregularmente sobre um plano inclinado. ouvia-se também o som oriundo do bater a nata do leite que. os contrastes. M. S. Nesses territórios. constituindo-se em uma paisagem sonora em que se faziam presentes os conflitos. opunham-se. ao explodirem. enfim.o imaginário mineiro na vida política e cultural do Brasil. M. M. 2003. Sobre as chapas dos fogões. vez ou outra. o som manso e opaco do mato amontoado. gradativamente. História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada no Brasil. p. logo depois. Neles. as permanências. como o da lenha que ardia no fogão e. M. excluíam-se e se complementavam.Nessas últimas. São Paulo: Companhia das Letras. Apologia da história: ou o ofício do historiador. as tensões. M. ao contrário de Ouro Preto com seus jardins mal cuidados. estavam os caldeirões. 1997. ruídos e silêncios que se interpenetravam. emitia estalidos provenientes da madeira queimando. Rio de Janeiro: Zahar. observa-se que ela era composta por sons. as mudanças. ia apresentando uma mudança quase imperceptível em sua sonoridade e textura. BRESCIANI. In: SOUZA. Mito da mineiridade . Tese (Titular) 57 . tendo abaixo as chamas do fogo. modificando o líquido em creme e o som aberto transmudando-se em uma polifonia fechada e pesada na medida em que formava a manteiga. M. São Paulo: Brasilense. havia diversos sons típicos. 83-154. 2001. L. 2000. Para além destes compartimentos deparava-se. os movimentos próprios da história. Referências ALGRANTI. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna interpreta o Brasil. BLOCH. L. ao se tentar ler e decifrar alguns fragmentos da paisagem sonora do Arraial do Tijuco. cujo fervilhar das águas neles contidas provocava a formação de pequenas bolhas de água que. ao ser agitada por meia hora ou mais. podia-se ouvir a sonoridade das enxadas ao cortarem as ervas daninhas e. misturado com a terra. In: MATOS. SANTOS. E. 2. Rio de Janeiro: J. Ao encontro da palavra cantada: poesia. Belo Horizonte: Itatiaia. 2003. 2001. 2002. FURTADO. Zahar . 1993. F. R. A. Diamantina. HUINZINGA. 1996. 1974. TRAVASSOS. Abrindo os baús: tradições e valores das Minas Gerais. F. v. Memórias do distrito diamantino da Comarca do Serro Frio. 1866. Música: palavra-chave da memória. 2003. R. Lisboa: Ulisséia. S. J. SANTA’ANNA. 1975. 2001. T. 1976. O livro da capa verde – o Regimento Diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo: UNESP.]. Serro e Diamantina na formação do Norte mineiro no século XIX. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. SCHAFER. O processo civilizador.Departamento de História. O imaginário da cidade. Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo: Companhia das Letras. 58 . Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. J. In: ______. de [Orgs. SOUZA. J. 1975. PAULA. M. de. PESAVENTO. MAWE. 1999. ELIAS. O declínio da Idade Média. C. MEDEIROS. Belo Horizonte: Itatiaia. música e voz. N. UNICAMP. A. SANTOS. J. Artigo recebido em julho de 2008 e aceito para publicação em agosto de 2008. N de. de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. . F. SAINT-HILAIRE. de. P. F. 1994. dos. A de. J. São Paulo: Marco Zero. SAINT-HILAIRE. M. J. Folhetins inacabados. T. Cidade: momentos e processos. ______. Campinas.d. Belo Horizonte: Autêntica. Viagem ao interior do Brasil. O Capitão Mendonça. Rio de Janeiro: 7 Letras. Porto Alegre: UFRGS. A afinação do mundo. J. s. Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo: Annablume. Memória e História Social do Trabalho pela UESB. Para isso. abordá-la a partir de um único campo disciplinar. To this end.MEMÓRIA E AFETIVIDADE: A IMPORTÂNCIA DAS EMOÇÕES NAS TRAJETÓRIAS SOCIAIS MEMORY AND AFFECTIVITY: THE IMPORTANCE OF EMOTIONS ON SOCIAL TRAJECTORIES Veruska Anacirema S. affectivity. Especialista em Educação. com diferentes possibilidades de existência e que inspira conjuntos multidisciplinares de saberes exige. Abstract: This study discusses some notions of memory and affectivity crossed by the idea of modernity. controle. Professora da Rede Estadual de Ensino. pois os ultrapassa e os sintetiza. studies by the sociologist Norbert Elias are taken into account so we can trace the presence of affections on human reciprocities. toma-se como referência estudos do sociólogo Norbert Elias. a partir da compreensão de que os afetos são traços constitutivos dos fundos de saberes e fazeres armazenados na vida social. tamanha a sua presença no mundo contemporâneo (FARIAS. que nos permitem perseguir a presença dos afetos nas reciprocidades humanas. E-mail: veruska. Cine-Vídeo/UESB. Keywords : memory. uma breve descrição de que tipo de memória estamos falando. dado o seu caráter multimodal. Também não estamos nos referindo à definição de que ela se trata de uma afecção do espírito – o que nos levaria a uma discussão de tipo metafísico.anacirema@gmail. inicialmente. modernidade. Tomando como dimensão do saber a epistemologia. considering that affections are constitutive features of the knowingand-doing backgrounds stored in social life. Colaboradora do Programa de Extensão Janela Indiscreta.com 1 59 . partimos da idéia de que a memória não se reduz aos atos da lembrança e do esquecimento. atravessadas pela idéia de modernidade. justamente. Cultura. Considerações iniciais O tema da memória. da Silva1 Resumo : Essa reflexão discute algumas noções de memória e afetividade. ou seja. modernity. Palavras-chave: memória. afetividade. control. Uma das dificuldades dos estudos sobre a memória é. UESB. 2008). Mestranda pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. e até mesmo de herança. passível de ser apreendida nos fluxos das gerações2. está referida apenas a uma. armazenamento. No período 2 Para Paul Ricouer (2007). longe de indicar uma síntese ou conceituação definitiva da memória. na ambivalência entre o contínuo e o diferente. Nesses termos. Com efeito. em contextos marcados por jogos de força. a memória. negociações e acomodações. à Grécia. A expressão “sócio-psíquico” revela uma relação de simbiose entre o social e o subjetivo e. entre outras coisas. e em geral inconsciente. 3 Na psicanálise. para aquilo que dissemos. No plano simbólico. 60 . percebido como o lugar em que os significados vão se constituindo. síntese e transmissão dos saberes simbolicamente produzidos em diferentes tempos e espaços.No recorte aqui privilegiado. estamos nos referindo àquela função considerada como atributo da humanidade e. anteriormente. a memória pode ser compreendida como um elemento fundamental à constituição. o termo pulsão refere-se à tendência permanente. aos espaços onde essas ações acontecem e aos objetos de nossas experiências. a memória é parte intrínseca do movimento de autocompreensão. Ao organizar (selecionar e descartar) as experiências humanas. conectando os processos sociais à subjetividade. Ao usarmos o termo subjetividade que remete. ainda que a idéia de espírito seja aqui pertinente. às noções de afetos e emoções. daí. certamente. as dimensões cognitivas e afetivas. como em tantos outros campos do saber ocidental. daí. ao regular as lembranças. possibilidade teórica. lembramos que essa opção. doam sentido às nossas ações. o conceito de geração é. desempenhando um papel importante nas experiências humanas. pensada como uma forma de compreensão da relação humana com o tempo. classificando e qualificando os objetos e a realidade. é possível apontar. as rotinas e os padrões de vivência. entre tantas. não ser a opção desse estudo: a de abordar a memória como uma afecção do espírito. O interesse despertado pela memória pode nos conduzir. a memória concatena sentimentos e valores que nos permitem pensar na importância das emoções nas trajetórias que condicionam as pulsões3 dos indivíduos e das coletividades e. tem o status de um dispositivo sócio-psíquico que. dos mais apropriados a atribuir uma densidade concreta ao conceito mais geral de transmissão. como parte desse processo. Nesse ponto. em uma primeira impressão. que dirige e incita a atividade do indivíduo. disputas. à relação entre passado e presente. referindo-se às relações interpessoais e geracionais que vão tecendo teias de lembranças. num longo percurso histórico. incluindo Platão e Sócrates. entre indivíduo e sociedade. 4 Um estudo detalhado e importante sobre a herança grega da memória. 2006). e que definem o que deve ser lembrado e esquecido. Embora Halbwachs tenha sido (e ainda o é) importante no pensamento social. poderia ser recuperado4. de um lado. 188). 61 . p. Igreja. situando a questão da lembrança nos contextos sociais. por exemplo. abrangendo de forma especial as noções do tempo e do eu (VERNANT. p. repletas de significados. 1990. 17-20). pois o passado só se torna compreensível a partir das construções sociais do presente. Vamos então considerar. Ele estabelece o conceito de memória coletiva e nos apresenta a idéia de “quadros de memória”. incorporando a categoria de memória à teoria social: Maurice Halbwachs. Estado. O francês Maurice Halbwachs (1877-1945) apontou novas possibilidades sociológicas para o estudo da vida cotidiana. a memória era uma das divindades do panteão grego. entre eles. temos. comum nas ciências sociais da primeira metade do século XX. o de elo entre o passado e o futuro (SANTOS. a memória encerrada na noção do tempo passado que. grosso modo. derivando em vários significados. na visão da socióloga Myrian Sepúlveda dos Santos. Há uma interdependência entre o indivíduo que lembra e os estímulos grupais (Família. a forma como os homens passaram a lidar com a memória transformou-se bastante. Já a partir do século XVII. limitações significativas no que diz respeito. que escapam às possibilidades desse trabalho.arcaico. ao manter a antinomia. classes. Podemos encontrar idéias específicas de memória em diferentes épocas e pensadores. ao priorizar um dos eixos nas análises teóricas. e por outro lado. grupos sociais diversos) para a lembrança e o esquecimento (HALBWACHS. pode ser encontrado em Ricouer (2007). numa forma de compreensão das estruturas que ordenavam o mundo. a memória era associada ao espaço. em Aristóteles. ao demonstrar a importância das estruturas coletivas nas formas individuais do lembrar. Durante o Renascimento. Mnemosyne. seus estudos apresentam. a contribuição daquele que foi considerado um divisor de águas na discussão do tema. diante de técnicas mnemônicas. brevemente. 2003. Mais tarde. do aparelho sensitivo e motor do tempo físico. Nesse sentido. na sua capacidade criativa. Essas perspectivas teóricas abrem caminho para pensar a memória em sua relação com as práticas reflexivas e as interações sociais no seu caráter plural. padrões cognitivos. recusa campos específicos. Ela inclui reminiscências. A definição de memória. regras sociais e normas. monumentos. Nós somos tudo aquilo que lembramos. portanto. indivíduo/sociedade. a memória. Não há nada no mundo que não seja mnemônico por natureza (CASEY apud SANTOS. além de estar presente nos documentos. escapa a explicações restritivas. nas experiências e nos afetos. enquanto fenômeno sócio-psíquico também encontra-se nos corpos. construção social. imaginação. 1999. A memória. pois ela também é o resultado de si mesma (SANTOS. museus e tradições. A memória social é responsável pela estruturação dos sistemas sociais. ampliando e atualizando os seus significados. 37). do corpo. excede o escopo da mente humana. contribuíram com o aprofundamento da categoria de memória. p. A memória não é só pensamento. atitudes e sentimentos. práticas reflexivas e construções sociais. cientistas sociais procuraram resolver as antinomias entre indivíduo e sociedade através de sínteses teóricas que integravam práticas a estruturas sociais. subjazendo também a operações técnicas e científicas. p. 28). 23). sujeito e método do conhecimento. permeando as interseções entre corpo/ mente. ou seja. ela é também uma deter minada experiência de vida capaz de transformar outras experiências. A memória está presente em tudo e em todos. rituais. enquanto resultado de conhecimentos adquiridos. 25-26). Por isso. ao ponto de torná-la objeto. Memórias passaram a ser compreendidas a partir de estruturas coletivas. 2003. sem que estas perspectivas teóricas fossem consideradas excludentes (SANTOS. p. na sua condição de construção simbólica. nós somos a memória que temos. razão/emoção. comemorações. p. importantes teóricos.A partir da década de 70. a partir de resíduos deixados anteriormente. o conhecimento científico e tecnológico e assume formas ideais e materiais que se encontram imbricadas e só podem ser separadas analiticamente (DOMINGUES. 62 . 2003. pelo estabelecimento e manutenção de padrões interativos e institucionais. de diferentes campos das ciências humanas. bem como através de abordagens compreensivas que tratavam as memórias coletivas como textos simbólicos a serem interpretados. processos interativos. 2003. então. ao mesmo tempo. 1999. nesse trabalho. cônscia de ser uma prática consciente e preocupada com o vazio que deixaria se parasse ou meramente relaxasse (BAUMAN. o tratamos nos termos do sociólogo Zigmunt Bauman. a intenção não é datar o começo do que chamamos modernidade. intrínseca à noção de simbólico. fundamentando os temas da unidade. a memória. em Bauman. mas também histórica. Isso se traduz tanto nas figurações 63 . como categoria de pensamento e. enquanto uma função que se vive e se sente.Tomar o estudo da memória a partir desse referencial é ter em mente seu caráter multifacetado e os diferentes terrenos em que ela se inscreve. Memória e nexos com a modernidade Embora seja ontológica ao ser humano. pode ser vista como um dado sócio-histórico que. definimos as experiências. na atualidade. passa a informar a maneira mesma como compreendemos as coisas. da cultura e do desenvolvimento. Associada à modernidade. a memória passa a cumprir um importante papel na regulação do que pode/deve ser lembrado ou esquecido e terá atuação especial na formação nacional e nos processos civilizadores do Ocidente. da sociedade. vivemos as permanências e as mudanças nas dinâmicas sócio-históricas e pensamos o futuro. 12). do eu humano e da conexão entre os três: um objeto de pensamento. transmitimos os atos e os produtos do conhecimento. p. que se dá a partir de determinado tempo histórico. configurando outros modos de sentir e existir. está ligado à modernidade. mas pensar a respeito de uma nova experiência humana. Podemos pensar a modernidade como um tempo em que se reflete a ordem – a ordem do mundo. O conceito de modernidade é polissêmico e por isso. da afetividade. Percebe-se que. a exemplo da linguagem. O aparecimento da categoria como uma preocupação não apenas filosófica. social e psicanalítica. um bem de compreensão com importante papel nas relações sociais. surge nos processos sociais e nos ajuda a entendê-los. as noções de identidade e os conceitos de cultura. do hábitat humano. juntamente com os esforços de ordenação e doação de novos nexos de sentido característicos desse tempo. de uma prática ciente de si mesma. de preocupação. A memória. A economia dos afetos. o conhecimento do terreno. Em todos esses processos é possível verificar. entendida para além de um traço individual. A ênfase no planejamento. controle do tempo e das práticas produtivas no trabalho. conforme analisado pelo sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990). A eficácia desses investimentos pode ser percebida na aprendizagem. no controle e na ordenação de pessoas e coisas. autonomização da esfera cultural (HOBSBAWM. valores e costumes. tornaram-se precondições cada vez mais indispensáveis para o sucesso social (ELIAS. a regulação precisa e organizada das próprias emoções. com o crescente controle e autocontrole dos instintos. na classificação. revoluções políticas. com impactos variados a depender dos espaços sociais onde esses controles são efetuados. no que diz respeito às sociedades européias dos séculos XI ao XVII. onde agia o indivíduo. Nas tensões instauradas na modernidade entre as percepções do novo e do antigo. criação de domínios laicos. o autocontrole. na esteira do controle racional tanto das forças naturais quanto das sociais. crescimento das cidades. mudanças radicais nos estilos de vida de grupos distintos. como contrapartida. investimentos na disciplina dos corpos e dos afetos. incorporação e transmissão de saberes essenciais para os trânsitos nesse novo mundo. 1997). o cálculo. a memória dialoga com o subjetivo tanto no que diz respeito aos sentimentos identificados à nostalgia da originalidade e da autenticidade alocadas num dado passado (tradição) quanto naqueles presentes nas experiências postas em marcha pela maquinaria urbano-industrial e as novas estruturas de poder (moderno). a capacidade de previsão. 1993. colonização de vastos territórios. das pulsões e das emoções. como um componente coletivo. que marcou o 64 . Alguns dos resultados da modernidade são bem discutidos: centralização estatal com os monopólios da força e da tributação. p. resultando na formação de uma nova estrutura da personalidade.sociais quanto nas teorizações intelectuais a respeito da relação com o passado e com o devir histórico. expansão dos meios de transporte e comunicação. A reflexão contínua. íntima da modernidade. compreendida aqui como uma série de procedimentos concatenando emoções e corpos. humano e nãohumano. leva a mudanças de hábitos.226). as relações sociais que construímos nas interdependências humanas. é uma das conseqüências dos esforços de racionalização de caráter secular próprio ao projeto da modernidade5. então é importante pensarmos na sua relação com a afetividade. Voltaremos mais tarde a esse autor quando trataremos das pressões exercidas pela modernidade sobre os afetos. mediante a monopolização da força física. contribuindo com a maneira com a qual as pessoas se portam no mundo e validam suas experiências. nos vários entrelaçamentos possíveis nas interdependências humanas e que levam a determinados resultados. nas mudanças históricas. Os processos afetivos estão presentes nas condutas humanas e. desde a Antiguidade até os nossos dias. inicia a coordenação de afetos e sentimentos. já que a complexificação das experiências humanas a partir da modernidade deixa entrever o funcionamento de vários planos condicionando as práticas sociais e culturais. muitas vezes. Se a memória envolve modelação das práticas humanas.processo civilizador ocidental. Um exemplo é o lugar que os sentimentos ocupa na construção do ideário da Nação. Isso não significa que não tenha havido um tipo específico de ordem. as crenças. sobretudo. mas. em função de necessidades analíticas. caro à modernidade. conforme Elias (1993). A separação entre razão e emoção como sendo diametralmente opostas parece se dar. dos processos de aprendizado e transmissão das experiências. 65 . ainda na trilha de Elias. é preciso pensar nos processos. as noções de moralidade. da tributação e de uma série de controles para a pacificação e a convivência social. assumem lugares 5 A noção de projeto aqui não quer dizer que houve um planejamento calculado. Memória e afetividade Os afetos fazem parte das reflexões de praticamente todos os filósofos. A Nação. A aposta aqui é a de que os afetos estão nos atravessamentos em que se constituem as expressões cognitivas e corporais. assim. afetos específicos. daquilo que é preciso lembrar e esquecer para fundar um determinado pertencimento. A confluência entre a racionalização da vida e os efeitos na constituição afetiva dos indivíduos e grupos nos leva a problematizar o par razão/emoção como uma das interfaces possíveis na organização e no próprio estudo da memória. os gostos. Cada trama social comporta. considerando tanto as redes alongadas quanto aquelas de escala reduzidas. decisivos. por exemplo. 14). mas “en physicien”. a afetividade é passível de apreensão nas articulações entre as relações sociais. por exemplo. Perceber a possibilidade de estudar o afeto sob o prisma da teoria social. é que podemos encontrar elucubrações sobre o amor. 66 . econômicas e culturais. embora tangenciando as diversas discussões. 2005. isto é. Em muitos casos. políticas ou religiosas sobre a sociedade e o indivíduo voltase para as práticas sociais e seus processos de produção/reprodução. ela pode ser percebida nas elaborações teórico-metodológicas e nos percursos intelectuais dos estudiosos da História. Phobos. Outras vezes. significação/ressignificação. no âmbito da teoria social ou sob a perspectiva dos estudos históricos. cujo empreendimento racionalista marcou a história do pensamento ocidental. ou de campos afins. 2007). Será por acaso que algumas das divindades da Grécia Antiga eram referências a sentimentos e paixões? É o caso de Eros. Medo e Vergonha. parece estranho. marcadas por esforços de objetividade. p. a herança iluminista que pesa sobre as nossas formas de pensar insinua uma dicotomia entre o racional e o emocional. a questão dos afetos está presente nas teorizações das ciências humanas. manifestou interesse pelo tema ao escrever Paixões da alma. que dão cada vez mais importância à vida cotidiana. Mas será mesmo possível afirmar essa separação? Descartes. Mas. que apesar da aparente estranheza. respectivamente. de explicá-las por suas causas primeiras como um filósofo natural (GLEIZER. distantes e teoricamente diversos no tempo como Platão e o seu texto O Banquete. em função da importância dos afetos na experiência humana. nem mesmo como um moralista. então. Temos que a própria possibilidade de racionalização sobre o tema implica uma relação com a afetividade. que designam Amor. Aidós. Podemos pensar. parte de uma perspectiva tributária das significativas transformações ocorridas nas pesquisas das ciências sociais e históricas. da Antropologia e de outros campos do conhecimento. em pensadores tão importantes. em que expressa sua intenção de explicar as paixões não como um orador. que dizia que a sua essência objetiva era dominada pela paixão (KONDER. no qual Sócrates conversa com amigos sobre o tema e Marx. Especulamos que. principalmente ao longo do século XX. tratar da afetividade. da Sociologia. O olhar sobre as determinações econômicas. afinal. embora isso não signifique ininteligibilidade. também encontra seu lugar no constructo mais amplo que é a sociedade. conferindo valor sociológico ao estudo das emoções ao perceber o racional no irracional (NERY. Os estados emocionais têm. os sentimentos. para Weber. a possibilidade das experiências e. O agir emotivo está no âmbito da irracionalidade.A razão instrumental. O seu estudo deixa de ser objeto exclusivo das ciências biológicas e passa a ocupar uma posição importante nas ciências humanas. disparadas pelos processos da modernidade abrem 67 . assim como outras manifestações. resultando nas experiências grupais. p. p. com reverberações na discussão sobre a racionalidade e a irracionalidade. os sentimentos arrebatadores elevam os indivíduos acima de si próprios. Os afetos estão imbricados na própria ação. A memória. a busca e a ênfase na racionalidade.16). As emoções. se dão em contextos sociais. mas sim. as emoções. 2001. Nas interações coletivas. como ponto de interseção modal e criativo das relações sócio-psíquicas e sócio-históricas. em si. estão referidas à vida em sociedade. as experiências subjetivas que marcam nossas vivências. de interrelações pessoais e grupais. um lugar importante na ação humana. Já Weber classifica a ação emotiva como um tipo de ação social. o fato de que as ações afetivas não passam por uma elaboração consciente do tipo que planeja os resultados desejados a partir de uma dada ação. designada como dispositivo sócio-psíquico comporta.17-21). ainda que de forma marginal. para além da unidade conceitual do indivíduo. embora encontrem sua existência nas consciências individuais. Essas considerações nos levam a pensar que. e sua relação com o inteligível. afinal as racionalizações ocorrem em ínfimos momentos no dia-a-dia (NERY. ainda que na forma de desvios. as paixões. portanto. gostos e modos de expressão. Em Durkheim. detentor de saberes. influenciando comportamentos. podemos pensar que o âmbito do sensível. o papel da religião na coesão social mobiliza emoções que. meticulosa na avaliação de prós e contras e relação fins e meios. 2001. Desse modo. Não é à toa que o tema dos afetos está presente nas investigações a respeito da vida social em autores clássicos como Durkheim e Weber. entre seus traços constitutivos. cede lugar privilegiado à razão prática. ou seja. incluindo práticas sociais e culturais. A separação entre mente e corpo dá lugar a uma perspectiva em que o corpo é. compreensão e experimentação do mundo. nas suas interdependências. O conceito confere certo limite à noção de razão autônoma e voluntarista. é a psicanálise.. de Sigmund Freud (1856-1939). e sua relação com a memória. seja na tentativa de desenvolver tecnologias específicas para o controle das emoções e das pulsões em uma sociedade civilizada.caminho. O indivíduo está mergulhado em uma totalidade de significados.”. de algum modo. para a percepção e o estudo dos afetos. “afetado” e essas afecções qualificam suas “disposições para. O homem está sempre. Pensando a afetividade com Freud Embora um dos objetivos aqui seja demonstrar a possibilidade de abordagens sobre os afetos a partir da teoria social. Razão e emoção são um duplo reversível: a racionalização opera com base na afetividade em dada situação ao mesmo tempo em que utiliza seu potencial reflexivo para orientar as emoções. suas relações com o espaço e o tempo. por outro lado. ao afirmar a existência de camadas ou níveis da mente dominadas por vontades primitivas que estão escondidas sob a consciência e que se manifestam na forma de lapsos. porque se sente dada emoção e não outra. em um viés com caráter mais psicologizante. Nesse sentido. a partir daí. chistes.. bem como de tradução das nossas vivências para os outros. Esse saber adquire uma importância fundamental nos estudos sobre a memória. O homem transcende sua condição dentro 68 . mobilizam saberes. definindo. herdada do Humanismo e do Iluminismo. As emoções estão presentes na maneira como as pessoas lidam com o presente e com o passado e. daí que não é possível pensá-lo fora dos contextos sociais. podemos pensar nos afetos como formas de conhecimento. seja para compreender melhor essa dimensão inextricável do ser. sonhos ou traumas. faz-se necessário uma angulação em direção a outro campo de conhecimento para lançar luz a determinadas idéias que serão pinçadas mais à frente. seja para afirmar o lugar de destaque da afetividade na trajetória sócio-histórica dos indivíduos e grupos. em situações específicas. inclusive. Um caminho alternativo para pensar a afetividade. principalmente em função da idéia de inconsciente. ressignificam experiências e definem estratégias. No esquema freudiano. especialmente a pulsão e a angústia. o indivíduo apresenta 69 . pois toda a fundamentação da experiência se dá no e pelo corpo. Eles estão à mercê de dominações e classificações (bons e maus) com repercussões na estrutura psíquica da personalidade. em sua condição de aderência às pulsões. Entendido como um estado emocional inclui toda a gama de sentimentos humanos. evidenciando e expressando as experiências (FARIAS. Nesse sentido. que informa a nossa vivência. o que possibilita sua apreensão inteligível. cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos. por exemplo. 4). Os afetos também podem ser considerados como reações aos traumas. o psiquismo é o terreno onde a vida ganha sentido.de si mesmo. também estão no alvo dos controles. na leitura de uma das primeiras obras de Freud. em seguida. A partir das modelações. a memória está ligada ao inconsciente. o afeto está identificado à sexualidade e é. 2008). o inconsciente é lógico e mnemônico. internamente. enquanto processo formativo da psique. condicionado pelas pulsões e os traumas que constituem a vida. Assim. do mais agradável ao mais insuportável. Em Freud. ao sujeito. desse modo. nos lembrando do ausente e. companheiro desde o nascimento até a morte (CÔRREA. A dominação dos afetos é a conseqüência inevitável do controle das pulsões. estamos diante de um acontecer permanente e intenso na vida do homem. física ou psíquica. p. Isso é percebido na medida em que o desenrolar da vida se dá nas determinações e nos deslocamentos ocasionados pelos traumas e esses traumas são. A questão do estudo do afeto surge em uma rede intricada com outros conceitos. Apreendemos esse dado. Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1948). sobretudo. de modo imediato ou adiado. A partir da extensa série de casos analisados podemos pensar que conhecer o afeto é ter acesso ao recalque e. selecionando. Os afetos. manifestado de forma violenta. interferindo nas nossas ações e contribuindo para as posturas que exercemos nos diversos contextos sociais. além do entrelaçamento conceitual. descarga. lembranças de alguma coisa. constituindo-se então em vias expressivas dos contextos considerados. O psiquismo então supõe o eterno retorno – memória – dos nossos traumas. 2005. relacionado com a energia da pulsão. concatenando. Assim. Também em A Sociedade de Corte (2001). de forma sistemática. por exemplo. 9). A originalidade trazida pelas teorizações a respeito desse aparelho bio-psíquico. interpela o tema das disposições corpóreas na triangulação entre memória. p. O esquema teórico-metodológico desenvolvido pelo sociólogo Norbert Elias. 1994. for mado por níveis (consciente. enquanto método clínico. linguagem e conhecimento (FARIAS. subconsciente e inconsciente) que recebem os diversos registros e impressões causados pela e na experiência cotidiana e que obedece a determinadas lógicas de funcionamento que a psicanálise.217). Os processos 70 . Nessas elaborações. Elias traz à tona o tema das emoções ao abordar o processo de formação histórica da sociedade de corte ocorrido entre os séculos XI e XVII. p. Embora Freud não tenha tratado conceitualmente a memória. se fazem sentir os ecos da psicanálise soando numa série de concepções analíticas que têm como questão as disposições corporais. especialmente no caso da sociedade francesa.disposições para viver certos afetos ou deles se utilizar para experimentar os mais diversos objetos. Compreender esse aspecto da teoria freudiana é perceber o quão importante se tornam os conhecimentos sobre as modelações das pulsões e do corpo e o quanto podemos considerá-los conectados à modernidade e ao seu chamado ao autocontrole e à responsabilidade. enquanto fluxo vital. influencia uma gama de estudos em vários campos de conhecimento. tenta descrever. Renato Janine Ribeiro afirma que Norbert Elias aponta o interesse nas formas de sentir e imaginar como tema de estudo (RIBEIRO apud ELIAS. a despeito de sua desconfiança com relação ao que ele considera o anti-historicismo da teoria freudiana (RICOUER. que podemos identificar com a memória. Elias busca a noção de pulsão na obra de Freud. 2008). já que o psiquismo pode ser compreendido como uma espécie de “aparelho da memória”. o tema atravessa toda a sua obra. A afetividade sob controle As discussões mais atuais sobre a memória nos conduzem aos dispositivos de regulação e coordenação das pulsões bio-psíquicas. Na apresentação da edição brasileira do livro O Processo Civilizador. 2007. incluindo as teorias sociais. noção tão importante nos dois volumes da obra O Processo Civilizador. passo. nas interdependências. expressão facial está sob espreita de si mesmo e dos outros. Desde aqui. nos modos de sentir e agir no mundo ocidental moderno. Cada gesto. por exemplo. para este. temos que as modelações das pulsões. compreendidos como processos de longa duração. séries de atos de racionalização. 71 . comportamentos e sentimentos dos indivíduos. Ao lado das grandes transformações ocorridas no âmbito do Estado. a partir da incorporação de saberes socialmente elaborados. Desse modo. que vão se refletir desde as regras de etiqueta e civilidade usadas nos cenários palacianos até as condutas privadas como o comportar-se no quarto. eles estão intensamente imbricados. A vida. Com isso. como indica Elias (1993).civilizadores6 descritos nessas duas obras resultam na adoção de novos códigos de conduta com conseqüências na sensibilidade. é possível perceber a novidade histórica para a qual o sociólogo quer chamar a atenção: embora espécies e graus de controle sempre tenham existido na experiência humana. no esquema elisiano. esse processo é descrito como um sistema de coerções 6 Os processos civilizadores são. pois. a formação dos estados nacionais e demais elementos da modernidade trouxeram um estágio até então nunca visto de autocontrole dos corpos. Elias analisa a instauração de novos modos de agir a partir da figuração sócio-histórica desenhada com a formação dos estados modernos e os percebe ancorados numa elevada escala de controle dos afetos tendo como base as transformações da nobreza guerreira em nobreza de corte. ligados à formação do Estado Nacional e à complexificação das variadas redes em que se inscrevem as sociedades e seus efeitos nos corpos. a noção de pulsão. que na obra de Freud está pautada no indivíduo. mais especificamente. indicando a importância fundamental dos controles e autocontroles na constituição das experiências humanas. em Elias emerge como categoria de entendimento do social. A obra de Elias é uma chave para o entendimento de como os fluxos vitais são modelados nos agentes em específicas dinâmicas sócio-históricas. é impensável sem controles e estes são construídos e destruídos nos embates históricos. os conceitos indivíduo-sociedade não são dados absolutos: um não se realiza sem o outro. se dá nas relações sócio-históricas ou. 242). p. nas demais camadas da sociedade. 1993. sob controle. as manifestações artísticas ligadas ao romantismo.216-217). atitudes rotineiras que antes dos processos que levaram à formação dos estados nacionais eram experimentados sob certo grau de liberdade passam a ser alvo de controles regulares em práticas difusas as quais perpassam desde os espaços institucionais até o comportamento individual. O que o indivíduo busca [nessas atividades] é poder experimentar sensações de amor. Elias utiliza em suas análises dos processos civilizadores expressões como anseios.progressivamente interiorizadas até o ponto de se tornarem um fenômeno de autocoerção permanente que Elias denominou habitus. Paul Ricouer. de medo em situações que. Os modelos sociais com seus novos habitus foram. sentimentos e modos de expressão que atuam. p. de modo geral. p. comportamentos agressivos. de extravasamento das pulsões e dos sentimentos reprimidos na modernidade. Uma dada dinâmica psicológica opera conjuntamente com uma dada dinâmica social na formação de saberes. desejos e investiga emoções como o pudor e a vergonha. particularmente. dos sentimentos. das representações (RICOUER. não lhe causam perigo. sentimentos apaixonados. progressivamente. cada vez mais perceptível na constituição do homem ocidental a partir do século XVI. 13). em termos gerais. promovam um turbilhão de emoções vitais (VIEIRA. Nesse sentido. A afetividade está. que rege a distribuição das pulsões. ao analisar as contribuições teóricas de Elias chama a atenção para um de seus conceitos chaves: o de economia psíquica. mas que. prazer. sobre toda a sociedade. paixões. Nesse contexto. ódio. sobre os indivíduos e. foram dois lados de uma mesma transformação na estrutura da personalidade social (ELIAS. O forte arranco da racionalização e o não menos (durante algum tempo) forte avanço do patamar da vergonha e repugnância que se tornou. balanceadas por uma excitação/ tensão agradável. alegria. Paixões. remorso. difundindo os sistemas de controles e autocontroles em níveis diferentes. 72 . desejos. nem instabilidade. o lazer e o esporte vão ganhar importância como forma de escape. por esse prisma e de maneira duradoura. a partir das redes relacionais constituídas nas experiências. no fundo. a partir da corte. impulsos. medo. 2007. 2003. penetrando. alegria. de tipos e graus variados. em tempos e espaços variados. específicas a cada trama ou contexto social e que ultrapassam as respostas baseadas nos instintos. para isso. Amor. de um grupo com o outro. As emoções comparecem testemunhando as transformações sócio-históricas e seus impactos na vivência cotidiana. Considerações finais A afetividade é inseparável dos indivíduos. Mas por que não incluir aí. temos os grupos. Ambas são igualmente fundamentais para a existência do ser humano e juntas formam um único grande contínuo funcional (ELIAS. medo. de outras ciências humanas.] a forma e a estrutura das funções psicológicas de direção de si mesmo mais consciente e inconsciente jamais poderão ser compreendidas se forem imaginadas como alguma coisa que exista ou funcione. nos atravessamentos em que se conjugam aspectos econômicos. os sujeitos agindo e sendo coagidos nos processos de mudança e permanência dos fazeres e saberes da vida social. considerados isoladamente ou em grupos.. 1993.. sob os grandes rótulos que as ciências utilizam para descrever as experiências humanas. sociais e que constituem. [. não é preciso teorizar tendo como locus privilegiado o eu pragmático ou considerar as emoções como expressões desconcertantes e irracionais. pois que as emoções se dão por razões sociais. políticos. em qualquer sentido. também. as dinâmicas que surgem e se reproduzem nas sociedades. ódio.A análise demonstra não apenas a importância dos afetos. ainda que não abordada de 73 . em vários campos do saber. p. E. É necessário entender os afetos como presentes nas coletividades. mas também a viabilidade de seu estudo a partir da teoria social e. isoladamente do resto. a afetividade também é tema das Ciências Sociais e da História. tendo em vista que. enquanto traço constitutivo de suas experiências no mundo. na interação de um ser humano com o outro.. como a face de uma mesma moeda.. a emotividade? O ser humano porta uma imensa capacidade de sentir emoções. O viés apontado por essa reflexão pretendeu indicar que. religiosos. que a grande diferença entre o ser humano e os demais animais é a racionalidade. É muito comum a afirmação. de uma camada social com outra.238). culturais. para além dos estudos psicológicos e biomédicos. cada vez mais. Também é importante pelo fato da teoria freudiana ter gerado impactos em estudos de vários matizes. na formação da psique humana. Os mecanismos da 74 . incluindo as ciências sociais. embora essa racionalidade não aponte para o fim das dores. no que chamamos de modernidade. estão presentes nos processos civilizatórios. comparece na obra do sociólogo Norbert Elias. como conseqüência. Partir de Freud se faz necessário na medida em que suas teorizações demonstram que. os fluxos vitais se tornam pulsões a partir de esforços direcionados. As obras de Elias utilizadas aqui como referência para uma visão diferenciada sobre a questão da afetividade demonstram como as emoções. de forma ampliada. As emoções. no entretenimento e nos esportes. As novas abordagens sobre a memória nos permitem pensar nas diversas circunstâncias em que ela se insere. nos permitindo pensar no grande empreendimento que levou o homem. tanto individuais quanto sociais. como manifestações do terreno complexo que é o psiquismo. suas emoções e condutas. das relações e disputas de poder.forma direta e sistemática. o desenvolvimento das estruturas e seus modos de sensibilidade são passíveis de compreensão na percepção das maneiras como os agentes existem e dão sentido à vida. no trabalho e na política. dos espaços de construção de saberes e fazeres. nas condutas individuais e coletivas. são forjadas nas relações sociais. Elias estabelece um encadeamento entre uma teoria da modelação das pulsões e uma economia psíquica e as relaciona ao desenvolvimento das estruturas sociais. a partir da teoria social. num longo percurso histórico. A noção de pulsão. quando o mesmo chama a atenção para o fato de que os comportamentos e modos de sentir que acreditamos naturais são socialmente elaborados por meio de aprendizados arranjados em redes complexas constituídas no processo de formação dos estados nacionais e. das trajetórias de indivíduos e grupos. a conter seus instintos animais. de modelações. enquanto fluxos modelados que se manifestam nas disposições corporais. Ainda nesse mesmo movimento. deixando entrever um esquema teórico-metodológico. a racionalizar. mas insinuando-se nos esforços de compreensão das figurações sócio-históricas. no lazer. para além do caldeirão sentimental que é cada ser humano. das incertezas e conflitos. que indica caminhos possíveis para pensar os afetos como manifestações existentes nas práticas sociais e culturais. subjetividade coletiva e a modernidade brasileira contemporânea. Criatividade social. 28. 1999. v. estão presentes nas reciprocidades humanas. Assim como o ato de lembrar está sempre referido à necessidade de interação de um indivíduo com outro ou com um grupo. 2001. compreendendo a clássica noção de lugares de memória. mentais e subjetivos. sujeitas às pressões e alterações históricas. Diante disso. As estimas e os afetos. p. nos quais os afetos participam de forma consciente ou inconsciente definindo. 61-67. (no prelo) 75 .br/scielo. O processo civilizador. apresentada por Pierre Nora (1993). socialmente elaborados nos aprendizados que vivenciamos ao longo da vida e nas diversas estruturas sociais e. As emoções comparecem entrelaçadas com os processos de produção de signos e sentidos. 2005.org. contribuindo para os sentidos que atribuímos ao mundo. em suas relações. conforme visto com Elias. Carlos Pinto. v. Acesso em 20 de maio de 2008. SP: UNICAMP. Edson S. set. inclusive. Estudos de psicanálise. ELIAS. 1993. DOMINGUES. os afetos também são organizados nas experiências dos seres humanos em seu meio. muitas das nossas escolhas e comportamentos. por isso. Alguns apontamentos sobre o dueto Memória e Modernidade. ele está mobilizando uma série de saberes incorporados.lembrança e do esquecimento são constituídos nos entrelaçamentos de várias ações e reações. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editoria. quando um indivíduo lembra. longe de serem atributos individuais. Referências CORRÊA. (org. podemos considerar a afetividade como traço inscrito nas memórias. também como espaços imaginários. In: Lívia Magalhães Rocha e Claudinei Lombardi. Disponível em: http://pepsic. ou seja. ______.) Temas em educação. Belo Horizonte. Rio de Janeiro: Contra Capa. n.bvspsi. José Maurício. FARIAS. Campinas. Norbert. I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. II. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______. 1994. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e a aristocracia de corte. O processo civilizador. O afeto no tempo. 1948. Tecido de razões e sensibilidade: emotividade nas racionalizações elaboradas por pacientes infartados em situação de internamento hospitalar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. SP: Editora da UNICAMP. 10. dez. 2006. nº. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Marcos André. Pierre. SANTOS. Paul. 76 . 2005. São Paulo: Centauro. A era das revoluções: Europa (1789-1848). 1996. A memória coletiva. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Myrian Sepúlveda dos. Eric J. A memória. Marília: UNESP Marília Publicações. Dissertação (Mestrado em Sociologia) . KONDER. v. 2007. Sigmund. 1993. Disciplina Teorias da Memória. Universidade Federal da Bahia. Anotações de aula do curso de Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). VIEIRA. artista e processo civilizador – uma leitura de formação das tradições estéticas no Ocidente a partir de Norbert Elias. Campinas. HOBSBAWM. FREUD. Memória coletiva & teoria social. 2003. 1º sem. Maurice. 2003. 2007. Salete. HALBWACHS. o esquecimento. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. 2000. Salvador. Espinosa e a afetividade humana. Mariella P. p. NORA. Leandro. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. GLEIZER. São Paulo. Obras completas. São Paulo: Boitempo. Arte. 7-28.Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. a história. II.______. Anais eletrônicos do V Simpósio em Filosofia e Ciência. 1990. Sobre o amor. Psicopatologia de la vida cotidiana. São Paulo: Annablume. Madrid: Biblioteca Nueva. NERY. 115p. 2000 . Projeto História. Artigo recebido em agosto de 2008 e aceito para publicação em setembro de 2008. RICOUER. Jean-Pierre. VERNANT. In: ______. 2008. Ocupou vários cargos públicos entre eles o de Professor do Liceu Piauiense e da Escola Normal. afetos. Revista História Hoje da ANPUH. nas primeiras décadas do século XX. É co-líder do Grupo de pesquisa “História. analisando como os referidos literatos desenvolvem toda uma argumentação. E-mail: pedrovilarinho@uol. affection. crônicas de assuntos variados. autor do livro Mulheres plurais. utilizam a literatura como estratégia de ação para prescrever à sociedade novas formas de perceber e vivenciar as relações familiares e o espaço da casa. em 1880. com o objetivo 1 Doutor em História. Tutor do PET. which maintained a certain lack of distinction between public and private spaces. Estudou no Seminário das Mercês. The main argument is organized around the idea that these writings aimed to offer cultural parameters that favored on the one hand a break with traditional cultural practices. em São Luiz do Maranhão e bacharelouse em direito pela Faculdade do Recife. Ocupou vários cargos públicos no Piauí. Bacharel em direito (Recife 1898). Sua obra literária conta com ficção. 77 . publicado pela editora Bagaço do Recife. in the first decade of the 20 th century. O principal argumento se organiza em torno da idéia de que esta produção discursiva buscava oferecer parâmetros culturais que favorecessem o rompimento com práticas culturais tradicionais. Abstract: This study analyses the writings of a group of authors from the state of Piauí who. A proposta do presente texto é discutir alguns trabalhos literários de Abdias Neves2 e Clodoaldo Freitas3. Caminhos da história . Nasceu em 1855. Publicou artigos em periódicos especializados como a Revista História Unisinos. 3 Clodoaldo Freitas. used literature as a strategy for prescribing to society new ways of perceiving and experiencing family relationship within the home.A CASA: LUGAR DE AFAGOS E DE CONFLITOS THE HOME: A PLACE OF CARESSES AND CONFLICTS Pedro Vilarinho Castelo Branco1 Resumo : Este artigo analisa a produção discursiva de um grupo de escritores piauienses que.com.Cultura e Subjetividade” do CNPQ.História. membro permanente do Programa de Pós-Graduação em História da UFPI. Maranhão e Pará. onde faleceu em 1928.UNIMONTES e Opsis. que apontavam para certa indistinção entre os espaços públicos e privados Palavras-chaves: espaços privados. literatos.br 2 Abdias da Costa Neves. writers. Keywords: private spaces. Foi Senador da República e autor de vários livros entre eles o romance Um manicaca. na cidade de Oeiras e faleceu em 1924 em Teresina. é fundador da Academia Piauiense de Letras. Nasceu em 1876 em Teresina. Sentia. Acostumara-se à vida no meio dos escravos. a confiança de sentir-se querido. não lhe dava confortos morais. O dinheiro que lhe servia pra tanta coisa. Uma família onde os laços de afetividade e de respeito unissem pais e filhos. formada por pai. Sua casa não se caracterizava como lugar de privacidade e intimidade. definindo-os como lugares de intimidade e privacidade. um ninho de bondade feminina. novas formas de perceber e vivenciar o espaço da casa e as relações familiares. Pode-se. só na vida. agora. onde 78 . confortável. Comecemos a argumentação pela análise de um trecho de Clodoaldo Freitas. acima transcrito.de prescrever à sociedade do início do século XX. rico e sem família. O trecho do romance O Plácio de Lágrimas. seus desejos. tendo filhos que estavam no cativeiro. p. Clodoaldo Freitas coloca nas aspirações de Jerônimo de Pádua o padrão familiar moderno. separada do resto do corpo social. aborda várias das questões que vão estar no centro da discussão aqui proposta: Jerônimo seguiu e entrou em casa. no qual. a paz de espírito. onde a família. onde o carinho da esposa e dos filhos lhe traria o descanso. o que mais angustiava o personagem de Clodoaldo era a sua incapacidade de ter construído uma família. Aparentemente. como inadequados e procuravam dar outros significados à casa e a família. Ele desejava uma família nuclear. a suave influição da ventura da família e onde era senhor absoluto. partilhando amores ilícitos com suas escravas. pudessem conviver intimamente. 1910.02). aconchegado no meio dos seus. retrata a angústia do protagonista Jerônimo de Pádua diante da solidão que se abatia sobre ele. a se utilizar dos corpos das mulheres para saciar suas vontades. gerando filhos para viverem em cativeiro. onde a casa representasse o espaço de convivência reservada. a partir dos anseios da personagem. os gozos da família. mapear a cartografia desejante do próprio autor. um lar. entre as muitas escravas. a escolher. Condenavam comportamentos ditos. sua favorita eventual. mãe e filhos. a bem aventurança dos carinhos dos filhos (FREITAS. Aí onde o não esperavam as carícias de uma esposa. paz de espírito. uma casa confortável. o vácuo que se fazia em roda dele. Compreendia quanto era triste a sua existência passada no meio do dinheiro e de escravos. utilizando-se do personagem Jerônimo de Pádua. por eles. a aplicar punições severas aos corpos dos cativos. os afagos de filhos queridos. Guizot e depois Comte e Spencer. p. p. Filósofos como Kant. A família. separada do resto do corpo social. Para o autor. dar racionalidade ao corpo social. tornando-se para pensadores ocidentais objeto de saber e poder. o afeto e o respeito se fizessem presentes. prática escriturística é um procedimento.224-226). Os historiadores que analisam as relações familiares na transição das sociedades tradicionais para a modernidade afirmam que as transformações nas relações familiares se davam em três aspectos: primeiro. de 4 A idéia de prática escriturística trabalhada no texto é um conceito de Certeau (1996). e ainda. por parte dos membros da família. 1991.93-103). ou ainda teóricos ligados ao catolicismo dedicaram parte de seus escritos e preocupações à família. moldada na livre escolha dos cônjuges. como o modelo que traria maior equilíbrio emocional às pessoas e que se adaptaria também ao novo ordenamento social em construção. 1996. onde o amor. como padrão hegemônico (PERROT. como definida anteriormente. está no centro da prática escriturística. desenvolvida por filósofos europeus nos séculos XVIII e XIX. através de uma nova forma de percepção e vivência da relação conjugal. no sentido de transformá-las. onde os filhos completassem esse cenário familiar ocupando espaço central na vida dos pais. onde a idéia de amor. pedagógico e religioso. segundo. Essas novas idéias sobre a família e sobre a casa mostram que o discurso dos literatos estava ligado a toda uma teorização sobre a família. Neste discurso está presente um conteúdo disciplinador que é criado e propagado a partir de formas de saber-poder produzidas dentro de espaço próprio. Nesse período a família foi alçada à condição de célula base da sociedade. na construção de uma nova idéia da casa como espaço de intimidade.uma prática que procura ordenar. 4 É esse modelo familiar moderno que eles prescrevem à sociedade como o mais adequado. procurando homogeneizá-lo (CERTEAU. de convivência reservada. institucionalizado como o discurso jurídico. 79 . onde homens e mulheres pudessem exercer a paternidade e a maternidade com desvelo e atenção. Estes pensadores acreditavam que tal instituição era importante demais para ser deixada ao acaso. adequando-as a padrões discursivos impostos como verdades. Hegel. ordenando-o.a esposa fosse a companheira legitimada por uma relação. Cada uma dessas formas discursivas procurando desenvolver a prática escriturística do corpo social. Na verdade procuravam elaborar saberes que influenciassem as práticas familiares cotidianas. sendo percebida como centro irradiador do novo ordenamento social. nem uma transgressão das normas sociais de convivência. a casa não parece ser significada pelas pessoas como sendo lugar de privacidade dos membros da família. mas também para educar. aceitável. sem muita cerimônia. a nova forma de relacionamento que passava a existir de maneira mais intensa entre pais e filhos. Casa e rua formam uma unidade na Teresina do final do século XIX e início do século XX. de prescrever à sociedade a forma que as relações familiares devem seguir. lugar de produção que contava com a presença intensa e constante de 80 . Muito mais que lugar de moradia. De portas e janelas abertas para a rua. velhas. onde tais literatos atuavam. Na documentação analisada. fazendo a propaganda de modelos familiares. para ser consumida com prazer. elas parecem manter com os espaços públicos uma relação interativa. Definiam o que seria legítimo. As formas assumidas por essa prática escriturística é o que interessa de perto a este ensaio. uma verdade sobre essas relações. sem avisar de sua entrada e não percebiam nisso nenhuma inconveniência. serem abandonadas como coisas rústicas. o que seriam práticas condenáveis. tornava-se o novo eixo das ligações familiares. por fim. As pessoas penetravam nas residências vizinhas. mas também. ultrapassadas. como uma estratégia de ação que seria utilizada pelos literatos para entreter. de formas de convivência. na forma do amor materno e paterno. e. no início do século XX. 1975. que deveriam entrar em desuso. p. A literatura surge assim como um meio. a casa continuava a ser.11-12). de definir. Os literatos que assumem a prática de escriturar. na forma de convivência provinciana e quase coletiva que era a marca da sociedade. sem se fazer anunciar previamente. constroem um saber. Outro hábito sintomático da falta de percepção da casa como espaço de intimidade diz respeito à constante presença de pessoas estranhas. A análise que está sendo proposta se desenvolverá partindo apenas dos dois primeiros aspectos apontados para a construção da vivência de relações familiares modernas (SHORTER.livre escolha entre os cônjuges. a dividir com os familiares o espaço da casa. Hábitos arraigados nas sociabilidades. com o objetivo de ajustá-las a padrões discursivos que buscavam se impor como hegemônicos. Ela teria um sentido didático. Um terceiro fator que dificultava a intimidade e privacidade dos moradores da casa eram as próprias condições físicas das construções. Abdias Neves dá vazão à prática de definir escriturísiticamente essa nova concepção dos espaços sociais. 1992. procurando didaticamente apontar para novos comportamentos e para a inconveniência de determinadas situações usais na sociedade. Abdias recorre à representação de algumas situações para mostrar sua reprovação a essas atitudes.pessoas estranhas ao grupo familiar. caracterizavam-se pela presença de alcovas. era a demarcação de um espaço segregado aos da casa. mas também pelas sociabilidades familiares tradicionais onde práticas de solidariedade entre membros de uma família larga se faziam presentes. os literatos definiam as novas sociabilidades. no entanto apontavam para certa indistinção entre o que era público e o que era privado. Isso se devia às precárias condições materiais do meio fazendo com que um número significativo de serviçais fosse necessário para tocar as atividades cotidianas desenvolvidas na casa. As práticas tradicionais. Por isso. caros às sociabilidades familiares modernas. 81 . se mostra capturado pela idéia burguesa de privacidade. na sua escrita. de portas com trancas frágeis ou mesmo inexistentes. e ainda. seguindo concepções arquitetônicas antigas. para designar os homens controlados pela mulher. Abdias Neves usou o referido termo para denominar seu romance publicado em primeira edição em 1909.11). 1998. Cada vez mais as atividades produtivas e mesmo as de lazer deveriam migrar para os espaços públicos. Muitas vezes. reservando à casa o lugar do privado e íntimo. O espaço da casa é ressignificado como lugar de repouso. e isso não era bem visto na mentalidade da sociedade tradicional (GAY. no final do século XIX e início do século XX. O hábito de trancar-se determinava a imposição de limites às outras pessoas. por um pudor com relação ao corpo (ARIÈS.320). apontavam para a distinção entre espaços públicos e privados. p. No romance Um Manicaca5. 5 Manicaca era um termo utilizado em Teresina. reservado à família e onde a presença de estranhos deveria ser algo eventual e seguir ritual de apresentação. de dar novos significados à casa. pela positivação da intimidade na vida conjugal e familiar. Na prática de escriturar. estabelecendo distinções. onde a família pudesse usufruir de sentimentos novos. de meias paredes. p. fazendo alusões. abusando da ausência do noivo para não deixarem coisa alguma sem exame rigoroso. senhoras e moças especialmente. a crítica de Abdias direciona-se à exposição do leito nupcial de Praxedes e Mundoca aos mexericos e comentários: Todos os dias encontro novo sintoma de atraso e fale-se que é um Deus nos acuda! A festa está correndo regularmente. A todo o momento estalavam risos pela casa. por toda parte. 1985. A atitude não causa nenhuma estranheza nem ao proprietário da casa. 128).Reprovável para ele era o comportamento do personagem Pedro Gomes. ali entravam e saíam. Ao rotular tal situação como inconveniente. o que se fazia com os outros noivos (NEVES. o pudor que deveria cercar esse espaço de intimidade feminina não permitia que ele fosse violado principalmente por pessoas de outro sexo. Desta feita. sonoramente acentuando pilhérias mais ou menos picantes.38). aprendera novas formas de sociabilidades e agora comentava da inconveniência. Abdias utiliza-se do personagem Ernesto. o autor acena para a idéia de que o quarto de dormir deve ser percebido como espaço de intimidade. Um segundo momento em que Abdias Neves trata da inconveniência da presença de pessoas estranhas aos espaços privados retrata a forma sem cerimônia como as pessoas entravam na casa onde residia o casal Praxedes e Mundoca. muito naturalmente. dando a procedência de alguns objetos. O segundo fator de inconveniência na atitude de Pedro Gomes é o fato de entrar desavisadamente no quarto de uma mulher. sem pensar na impertinência da visita. p. rapaz que freqüentara outros meios.] Todo mundo. nem aos visitantes. com ele. aluno de Direito na Faculdade do Recife. Entravam sem cerimônia. que ao chegar em casa à noite. devendo ser preservado dos olhares. [. vendo tudo. entra no quarto da filha Júlia sem avisar – Sem refletir na inconveniência do que ia fazer. que pareciam estar cumprindo um ritual corriqueiro e usual na cidade: Desde 11 horas da manhã apareciam visitantes. fora ao quarto onde dormia a moça e abrira a porta – (NEVES. apesar do sol que escaldava a rua. Mas uma coisa está encabulando-me. do atraso de certos hábitos usuais na cidade no começo do século XX. desculpadas pela opinião que sancionava esse costume. Quer saber? 82 . Fazia-se. 1985.. discutindo o preço de outros. p. Em outro trecho do romance.. esse lugar deveria ser preservado de comentários.] Ontem vi duas senhoras sentarem-se aí... 1998. sobre a vida sexual do casal. 1985. Mundoca. É a esse sentimento que ele se refere. bem às vistas de todos? Tinham seguido conversando e achavam-se sentados. defronte das janelas. que procuravam usar da imaginação para desvendar os momentos íntimos. ainda mais: sem perceberem nenhuma inconveniência na situação. Seu silêncio é enaltecido por Abdias como uma atitude correta. cheirosa. a vida íntima do casal a eles pertencia. A fala de Abdias procura dar outros significados também à sexualidade no âmbito conjugal. p. nada revela. na alcova.Diga-me. entretanto. 109). onde se daria de forma escondida. 83 . quando Mundoca é intimada pelas amigas solteiras. você que conhece melhor a terra: para que aquela cama exposta. p.. o segredo da vida conjugal mantêm-se entre o casal (GAY. entretanto banhava-se na presença de Rosinha e Emília Figueiredo que tinham vindo passar o dia em sua casa.. Os literatos condenavam a indiscrição das pessoas em indagar sobre a noite de núpcias. segredada o enlaçamento íntimo do casal. fazendo as mais cruas observações (NEVES. Não houve meio de evitar que a acompanhassem ao banheiro e lá estavam tagarelando (NEVES. Que alegria era essa? . Faltava à população a compreensão da inconveniência de certas atitudes. a lhes revelar os acontecimentos da noite de núpcias. [. Abdias Neves critica ainda a atitude das amigas de Mundoca em outro momento. Abdias vê nessa atitude uma grande intromissão na privacidade das pessoas. Os rapazes andam pior. deveriam se tornar lugar de privacidade. 1985. Riam-se apalpando os colchões.[. observaram todo o ritual de tomar banho e de arrumar-se da noiva. à espera dos noivos -[. p. preparada. de visitas abusadas. Para ele os eventos da vida conjugal deveriam ser segredados.] Não são apenas essas duas ou três moças.] Para quê? Diga! – Fica em exposição. frente a frente. revolvendo os travesseiros.319-324).131). para livrar-se da insistência das amigas. e demonstra todo o seu incômodo no seguinte trecho: Mundoca. de indiscrições. as amigas a acompanharam dentro do quarto e. Determinados espaços da casa como o quarto. O pudor em torno da noite de núpcias e da vida afetiva parece se instalar como valor nas sociedades burguesas. Vi alguns se sentarem ai. promete contar-lhes tudo o que ocorresse. Quando a noiva se preparava para a cerimônia de casamento.. os primeiros contatos entre os esposos.. no dia seguinte. A crítica de Abdias se estende também à freqüência de pessoas estranhas no espaço da casa. ao envolver-se secretamente com a madrasta do colega. 1994. a mulher. 1909. atendendo a convite do anfitrião.4). as cunhadas e os filhos pequenos. de serviçais é sempre apontada pelos literatos como motivo de desequilíbrios. reunindo indivíduos que não tinham entre si nenhum laço de consangüinidade. É assim que Abdias critica a presença de Luiz Borges. por escravas que cuidavam das tarefas domésticas cotidianas e de uma produção de rendas e bordados. p. p. 84 . torna-se motivo de inúmeros distúrbios. como provocadores de conflitos. que vai morar num quarto na casa do patrão. de quebra da ordem. Mais uma vez é a presença de pessoas de fora que promove conflitos (FREITAS. A casa era habitada por parentes. eram percebidos como fator de risco à privacidade (COUTINHO. culminando com o assassinato de Jerônimo de Pádua dentro do seu próprio domicílio (FREITAS. é caracteristicamente marcada pela falta de intimidade e privacidade entre o proprietário e seus familiares. A presença de estranhos. os quais faziam da família grupos de pessoas que iam muito além do marido. Divide com a família os mesmos espaços. Desta feita é o jovem estudante de Direito que. Os hábitos coloniais que contavam com a presença de inúmeros serviçais e agregados. aproximando-se perigosamente de Júlia e acabando por envolver-se com a mulher do patrão. convive cotidianamente. Clodoaldo Freitas também expressa a mesma opinião em seus romances. de amores ilícitos.31-35). ao passar as férias na fazenda da família de um amigo. que serviam. se tornando seu amante. a casa de Jerônimo de Pádua. para Jerônimo escolher suas favoritas ao posto de amantes. 1910. com todos. da mulher e dos filhos. Em Por um Sorriso. de interesses. Clodoaldo Freitas volta mais uma vez a criticar a inconveniência da presença de pessoas estranhas no espaço familiar. O romance mostra que a privacidade torna-se ainda mais fragilizada diante da chegada do novo sócio de Jerônimo que. A casa torna-se espaço de brigas. traz para o convívio da casa. Os encontros eram possibilitados pela convivência que Luiz Borges tinha dentro da casa do patrão. sobretudo. personagem já referido. funcionário de Araújo. 3). p. Em O Palácio das Lágrimas. posto que.92). ou ainda a construção de estábulos. Deveria se tornar um lugar quente de afetos. mas que as novas sensibilidades se impunham no discurso dos literatos como norma social pela qual as pessoas seriam cobradas. facilitar e encobrir determinadas atitudes ousadas. a relação de subordinação das mulheres às figuras masculinas até mesmo exigia essa diferença etária. depois de casada é o marido quem flagra seu encontro com o amante. pois diante de homens maduros. quase meninas. viria a favorecer a construção de uma relação de submissão feminina. 1985. a não ser o fato de pertencerem a um mesmo grupo social. a família deveria ganhar ainda outros significados. bem como o hábito de manter pequenos pomares nos quintais. assumiam uma postura 85 . de encantos e realizações amorosas. Entretanto. muitas vezes.As condições de construção das casas são ainda um fator que dificultava a vivência da privacidade. mãe e filhos deveriam vivenciar a troca de carinhos e atenção. se fizessem casamentos entre pessoas que não tinham grandes afinidades. por outro lado. o pai flagra o seu encontro íntimo com o namorado no quarto de dormir. Não significa dizer que essas sensibilidades só passaram a existir no período em estudo. serviriam para encontros entre amantes audaciosos (NEVES. as condições materiais de moradia poderiam. Abdias retrata como as portas mal fechadas e frágeis foram responsáveis pela descoberta dos segredos íntimos da personagem Júlia. Em Um Manicaca. Quando moça. tornava-se costume condenado pela escrita dos literatos. É assim que a escuridão da noite e a fraca iluminação das casas. ao incorporar novas sensibilidades. não sendo espaço de paixões. que era uma barreira na aproximação e na construção de laços afetivos entre o casal. em que os casamentos não tinham como motivação principal os desejos sentimentais dos nubentes. p. de depósitos nos fundos das casas. certos hábitos presentes nas sociedades tradicionais assumiam caráter condenável. A disparidade de idades. nessa sociedade. que os literatos escrituravam como apropriadas. No mundo de sociabilidades familiares modernas. onde pai. As práticas tradicionais permitiam que acertados os pontos de interesses dos grupos familiares. No entanto. as mulheres. Deveria entrar em declínio o universo social tradicional onde os interesses individuais sucumbiam diante das vontades familiares representadas pelos homens na função de pai. Na prática escriturística dos literatos. um certo ar de reverência ao marido senhor. Dessa forma. as mulheres não perceberão no esposo um igual. Diante da nova dimensão que a sociedade ocidental estabelece para as relações familiares. também. apontada como altamente desejável nas relações entre pais e filhos e entre os casais (D’INCÃO. maior liberdade de ação social. de legitimar e prescrever como mais apropriados alguns tipos de amor. Um segundo tipo de amor definido pelo autor é o amor vibrante. 1991. Ainda no início do século XX. A terceira e última forma de amor descrita é o amor vulgar e banal. calmo.47).237). a clara intenção de disciplinar os afetos. capazes de provocar transtornos aos princípios disciplinadores das relações entre os sexos. 1921. calmo. marcado pelo desejo intempestivo. problematizada de forma bastante profícua. buscarem o amor terno. 1995. paciente e resistente a todas as dificuldades. Em primeiro lugar. assim como as que poderiam ser vivenciadas fora da conjugalidade. p. Clodoaldo Freitas. o amor presente na vida das pessoas íntegras. ele define a existência de três tipos de amor possíveis. mais contidos. vai assim definindo tipologias. Ditas como fisiologicamente frágeis e sem contar com 86 . ou de matar o ser amado. p. constrói reflexões sobre o amor. Para Clodoaldo. as pessoas deveriam compreender a natureza dos sentimentos e. Mesmo no aspecto da vivência da sexualidade. doentio. indivíduos sãos de corpo e espírito. As mulheres são definidas por Clodoaldo Freitas como as maiores vítimas dessas relações amorosas que só visam saciar os desejos da carne. “que uma noitada sacia e a ausência de um dia apaga” (FREITAS. ruvinhoso. É o amor dos crimes passionais. Na sua problematização há. os homens continuarão a ter regalias inimagináveis às mulheres (RAGO. os prazeres ligados excessivamente à libido. a ele sempre estarão reservadas algumas regalias. em várias oportunidades. Ao tratar do amor entre um homem e uma mulher.respeitosa. brandos e de condenar as paixões onde o desejo. melhores refeições. sobre sua relevância. melhores lugares. lascivo e efêmero. a temática do amor também ganha espaço na escrita dos literatos. e por isso mesmo. pois tornava as pessoas capazes de cometer suicídio.2-3). p. escriturando as formas de amor que seriam mais apropriadas aos relacionamentos conjugais. a partir daí. fortes. essas pessoas seriam capazes de nutrir pelo ser amado um amor terno. somente ele poderia trazer o equilíbrio às relações familiares. a relação incestuosa entre os irmãos Burgos. O verdadeiro amor é escriturado como algo que não busca apenas saciar os instintos carnais. grávida e abandonada pelo amante: Todo mundo ama assim. p. Clodoaldo ilustra os perigos da referida forma de amor em Mãe Dolorosa. enveredam por uma relação incestuosa. a tão fadada ingratidão. que morre tranqüila. fadadas à infelicidade. Tu amaste assim. 1912. os inúmeros desencontros da vida afastaram os dois por muito tempo. Relações infrutíferas.22-31). Encontram-se duas criaturas e apaixona-se uma pela outra. O cio passa de ambos os lados com a saciedade. capaz de resistir à distância e ao tempo. Objetivado por ele como um sentimento calmo. que embebidos pela doçura do amor paixão. através da personagem Maria. fazendo com que se reencontrassem já na proximidade da morte de Santinha. rompendo com os limites morais da sociedade. Pagam com a morte e a infelicidade por tal ousadia. a dor e o sofrimento são provenientes dos excessos do amor romântico em um caso extremo. não foi? (FREITAS. No romance Os Burgos. na certeza de ter consigo o amor de Emílio.formação moral apropriada para resistir aos instintos carnais acabam sendo vítimas de homens inescrupulosos. é a ânsia pelo gozo material. caso contrário. a distância. e os ensinamentos da ciência. que amam o 87 . È esse amor verdadeiro que une Santinha e Emílio no romance Memórias de um Velho. p. a dor e o sofrimento se fariam irremediavelmente presentes. A relação moralmente condenável sofre. à medida que os filhos da relação incestuosa nasciam mortos. paciente. É o cio. Clodoaldo cria inúmeros casos em que o amor é encarado de forma positiva. de uma gravidez indesejada decaindo socialmente e moralmente diante das tiranias sociais que a desqualificam. é o desejo carnal. respeitando os princípios morais. 1921. que o verdadeiro amor desconhece. As escolhas amorosas deveriam recair sobre relações sadias. Seguindo na tarefa de esclarecer sobre as formas corretas de vivenciar a afetividade. o tédio. o abandono. que condenava as relações entre parentes próximos (FREITAS. é coisa de pessoas de espírito íntegro.3). por que deseja assim o sexo oposto. Clodoaldo também afirma que o amor romântico precisava respeitar alguns limites. também sanções da natureza. na perspectiva do autor. Daí o esquecimento. ou bacharel. Lançaremos inicialmente os exemplos criados por Abdias Neves no romance Um Manicaca.corpo. mas. que envolvia a transmissão do patrimônio familiar e mesmo a criação de novas unidades produtivas. também. A moça casa. podemos perceber a multiplicidade das práticas presentes nas escolhas conjugais. não passará. a escolha da filha recai sobre Luis Borges. condenando determinadas atitudes como tradicionais. È assim que inicia suas críticas aos modelos tradicionais apontando a desigualdade nas idades e as escolhas que levaram em consideração os interesses familiares em detrimento das vontades individuais. capaz de propiciar a ele uma boa aliança familiar. no entanto. a não ser de forma gradual a outras motivações nas escolhas conjugais. Além da falta de 88 . mesmo contra sua vontade. a reação desse foi de completa contrariedade. não aceitando a hipótese de casar a filha com um simples empregado do comércio. comerciante bem aquinhoado na cidade. Ao apresentar o pretendente ao pai. ou ainda o momento propício de fortalecer as alianças com outros grupos de elite. porém com boa situação financeira. O caso da personagem Júlia é ilustrativo dos interesses que estavam em jogo nas escolhas conjugais. uma moeda de troca. Ao observarmos atentamente a documentação. não a sua realização pessoal. o espírito. antigas. um homem mais velho que Júlia. proteger. empregado no comércio na função de guarda-livros. 1906) No entanto os grupos sociais médios e as elites. um tipo sugestionável. O referido casamento é assim construído por Abdias Neves como uma relação viciosa desde a sua origem. Júlia é filha de Pedro Gomes. A prática de casamento dentro do mesmo grupo social continuará muito presente na sociedade. mas. Pedro Gomes acaba casando a filha com Araújo. os rapazes e as moças seriam agora treinados para fazer as escolhas. No entanto. podendo sonhar com um genro que fosse comerciante. compreender. perdoar e esperar (FREITAS. a felicidade conjugal. pessoas que sabem cuidar. e por isso mesmo incompatíveis com os novos modelos de sociabilidade moderna. Abdias discute em várias passagens do texto as relações conjugais. um homem que desse continuidade ao processo de ascensão social que ele vinha conseguindo. A escolha da moça foi prontamente rechaçada pelo pai que via no casamento da filha. os quais durante séculos viram nas escolhas conjugais um assunto de família. se. de boa formação. além disso. um rapaz de boa família. onde dois jovens de idades e condições sociais equivalentes iniciam relacionamento de aproximação de onde brotam sentimentos e desejos mútuos. e não dos desejos e sentimentos dos cônjuges. a desigualdade nas idades seria outro fator negativo. serena. Se Araújo torna-se manicaca. Júlia. por seu lado. Um segundo casal retratado por Abdias Neves no romance é o casal Praxedes e Mundoca. boa filha. que acabam por desaguar na felicidade conjugal. se impunha como outro empecilho é criado 89 . porém os dois fazem escolhas totalmente compatíveis para os seus grupos familiares. por seu lado. Se o exemplo de Praxedes e Mundoca é retratado como caso exemplar. A relação dos dois aparece no texto de Neves como modelo paradigmático. Precisava de um marido de vinte anos e o que lhe fora imposto pela vontade paterna estava em condições de adotála como filha. e onde a diferença de idade. não poderia corresponder aos anseios de uma mulher jovem como Júlia. capaz de tornar-se boa esposa e mãe exemplar. p.afinidade entre os noivos. havia lhe dado um moribundo (NEVES. a filha casava muito bem. Além disso. bem situado na cidade. Não há imposição familiar para o início da relação. o que dá ao casal o equilíbrio necessário para a manutenção da relação. e o pai que não quisera atendê-la. casal formado a partir da livre escolha. de mais de dezesseis anos. era filha de um rico comerciante. cujo casamento nascia da imposição paterna. é descrita por Abdias como vítima do jogo de interesses do pai. o que a tornava uma mulher bem dotada para ser a esposa de um bacharel de futuro. Araújo. é traído pela esposa. pelo conhecimento prévio e pelo estudo dos comportamentos e idéias de ambas as partes. afinal de contas era um bacharel. A escolha de Praxedes. Além do já exposto. 1985.150). isso se devia aos vícios de origem do relacionamento. Precisava de um homem são. era totalmente aceitável: Mundoca era mulher reservada. o caso de Júlia e Araújo. pela admiração mútua. Para a família de Mundoca. Mundoca nutre devotado respeito às opiniões e idéias de Praxedes. mais velho. capaz de sustentar a moça e de trazer prestígio social à família da noiva. das normas sociais patriarcais que davam aos homens poder excessivo e discricionário sobre os filhos. a distância entre homens e mulheres continuam a ser uma possibilidade na vida de casados (COUTINHO. fadada à infelicidade e à infidelidade conjugal. não transformam necessariamente a vida conjugal em espaço de felicidade. 2003. 1994. de sensibilidades.. Em grande medida elas parecem aceitar a nova condição feminina.. mal passado os quinze primeiros dias ter saudade da vida de solteira. que o envolvimento emocional fossem recíprocos. p. estão participando dessa escolha de forma mais igualitária (MUNIZ. casa-se a gente esperando um paraíso de delícias. Os conflitos.04). encenada em Teresina em meados dos anos 1920. A trajetória de Laura. 1925. enquanto Jorge (o esposo) vive do clube para as farras. de autoria de Jônatas Batista. elas esperavam que os afetos. a me rolar na cama. e que as mulheres. A história de Laura e Jorge é ilustrativa dos conflitos de interesses e desejos em torno da vida conjugal. Noites inteiras completamente isolada. p. um céu constante de gozos e felicidades. no amor. p. ouvindo o tictac monótono do relógio. as disputas.60-75). o mal querer. Astúcia de Mulher é uma peça teatral de costumes teresinenses. Ao aceitarem o jogo do amor romântico. a insistência masculina em não se deixar capturar pelas normas de convivência familiar modernas. a infidelidade. e já me queixo da sorte. 6 90 . as novas sociabilidades familiares a colocavam em situação de certa igualdade com os homens. que a atenção. No entanto. Afinal de contas.26-30). parece ser uma demonstração de que o poder masculino sobre as escolhas matrimoniais está diminuindo. aos interesses sentimentais do casal. dos bailes para o jogo! (BATISTA. para depois. O fato de as escolhas conjugais serem agora lastreadas em afetos. a principal queixa das mulheres é a falta de reciprocidade masculina. a idéia da família moderna parece ser aceita com mais facilidade pelas mulheres. personagem da peça teatral Astúcia de Mulher6. ilustra bem os desejos e as angústias de muitas mulheres recém-casadas: É realmente para desesperar!. As mulheres por um lado se deixavam capturar pela idéia do casamento como lugar quente de afetos. O fato das escolhas matrimoniais atenderem à vontade dos cônjuges. viciosa. Ainda não tenho seis meses de casada. ao se entregarem a uma vida conjugal onde os maridos são agora escolhidos livremente.pelo autor como uma relação doentia. ponto de conflito entre os casais. finalmente. a separação. de privacidade e a interferência dos afetos nas escolhas conjugais são propostas que se tornarão muito presentes na sociedade nas décadas subseqüentes. onde as figuras masculinas deveriam continuar comandando o grupo familiar. significado dentro de outros parâmetros. a idéia de intimidade. Na documentação. é assim que a relação entre casa e rua só muito lentamente vai se modificando. 1906). quando a mulher insensatamente não aceita a orientação do esposo.por insistirem na vivência cotidiana de uma dupla moral que lhes possibilitava maior movimentação social. do romance Memórias de um Velho. As propostas de significar os espaços públicos e privados como distintos. os literatos tomam a vida familiar como um problema que precisa ser repensado. o que provocava conflitos freqüentes entre o casal e. por seu lado. as visitas sem aviso prévio. deviam pelo menos. econômica. È essa compreensão da relação entre marido e mulher que Clodoaldo Freitas diz faltar no personagem Guilhermina. As mulheres. Em síntese. se não concordavam com suas idéias. se tornava. alguns espaços da casa sendo significados como 91 . querendo mandar em tudo. Para Clodoaldo. a relação conjugal entre Emílio e Guilhermina perde seu ponto de equilíbrio. desautorizando o marido em público. até considerar-se um incômodo. que procurava controlá-lo. ou que não foram incorporadas pela população. esposa de Emílio. As portas foram se fechando. Depois de algum tempo de casada. em alguns casos. deveriam aceitar resignadamente a orientação do marido. A força das práticas já arraigadas na sociedade procura adequar as novas propostas aos velhos costumes. No entanto. na sua prática escriturísitica. Os literatos. ela se revelou uma mulher autoritária. Emílio havia escolhido Guilhermina para esposa por perceber nela uma mulher modesta. sua autoridade de chefe da família e passa a enfrentá-lo. o incômodo dos literatos com algumas atitudes da população mostra que havia um descompasso entre algumas práticas cotidianas da sociedade e as propostas apresentadas pelos literatos ao corpo social. tolerantemente respeitá-las e não buscar o confronto. não podemos dizer que as propostas dos literatos foram repudiadas. simples e trabalhadora. a questioná-lo de forma ameaçadora e desrespeitosa (FREITAS. prescreviam às famílias um modelo de relacionamento marcado pela ordem e pela hierarquia. In: CHARTIER. do mundo tradicional. buscavam definir os comportamentos cotidianos que seriam compatíveis com padrões de convivência social modernos. Maria Ângela. rústicas que deveriam ser esquecidas em nome de uma civilidade e de formas de sociabilidades burguesas que supostamente seriam superiores e que deveriam se impor e se homogeneizar. e a fragilidade das atividades econômicas urbanas impunham limites. São Paulo: Companhia das Letras.) História da vida privada: da Renascença ao século das Luzes. familiar. Jônatas. 92 . n.1925. no mundo da modernidade. esse processo se dará dentro das condições e do ritmo em que a cidade de Teresina foi historicamente se inserindo no mundo da cultura escrita. In: DEL PRIORE. Maria Lúcia Rocha. O Piauí. 1997. 04. propondo mudanças nessa vivência familiar. O aburguesamento da família e as novas formas desensibilidade. aliados à continuidade da vivência no meio urbano. 88. definindo de forma patente a distinção entre o que era público e o que era privado. no nosso entendimento um caráter prescritivo. marcado pelas relações capitalistas. v. 16 abr. Por uma história da vida privada. Teresina. 7-19. Mary (Org. 1992. onde as relações com o mundo capitalista eram mais intensas.íntimos. p. Em síntese os texto de Abdias Neves e Clodoaldo Freitas assumem. Philipe. III. COUTINHO. p. São Paulo: UNESP / Contexto. ano XXXVI. Rio de Janeiro: Rocco. Referências ARIÉS. possibilitará que as propostas dos literatos sejam incorporadas à vida cotidiana. R. No entanto. D’INCÃO. 1994. faziam com que o discurso dos literatos. A presença ainda forte das sociabilidades rurais. Tecendo por trás dos panos. ao tempo em que condenavam as práticas que segundo eles deveriam ser percebidas como arcaicas coisas velhas. (Org. não fossem incorporados nas práticas e vivenciados com o ritmo e a intensidade que tinham em outros centros urbanos maiores. BATISTA. O crescimento da relação com a escola e a maior presença da cultura escrita no meio social da cidade.) História das mulheres no Brasil. Astúcia de mulher. 1906 a 09 fev. NEVES. São Paulo: Companhia das Letras. GEORGES. Diário do Maranhão. São Luis. Michelle. 93 . 22-31. Teresina. Artigo recebido em agosto de 2008 e aceito para publicação em outubro de 2008. p. Correio do Piauí. RAGO. 254 a 272. Lisboa: Terramar. Duby (Orgs. n. 1998. ano IV. Peter. São Paulo: Companhia das Letras. 1910. 93-103. Memórias de um velho. SHORTER. São Paulo: Paz e Terra. 02. 1. A educação dos sentidos. ______. A formação da família moderna . Um manicaca. n. p. Teresina: Projeto Petrônio Portela. 61. Os prazeres da noite. ______. O palácio de lágrimas. Coisas da vida. 16 dez.1912. 1991. A experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud. PERROT. n. Jornal a notícia. 17 jan.). ______. 11094. Edward. A família triunfante. Maceió: Catavento. jan.FREITAS. p. História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Luis. 15 dez. ano LXI. ano XXXIX. Clodoaldo. Margareth. p. 2003.23. GAY. 1991. Abdias. Os Burgos I. 22 jun. Teresina. 1985. IV. 1909. Mãe dolorosa. Jornal pátria Teresina. 1908 a 23 jan. ______. A invenção do falo. 10. Áries.628 a 10. v. v. ano I. 1906. MUNIZ. 1975.660. n. Litericultura. 1921. In: PHILIPPE. Durval. . Artigos . . uma síntese do percurso da história política. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros /MG – UNIMONTES . dando ênfase a sua fase atual. marxismo. serem retomadas e contrastadas com vistas a identificar possíveis pontos de diálogo e aproximação entre as duas propostas historiográficas. inicialmente. Faz-se uma síntese do percurso da história política. with emphasis on its current period.A NOVA HISTÓRIA POLÍTICA E O MARXISMO THE NEW POLITICAL HISTORY AND THE MARXISM Laurindo Mékie Pereira1 Resumo: O objetivo deste texto é refletir sobre a nova história política e o marxismo. Keywords : New Politic History. inaugurada na década de 1970. marxism. É consenso que o problema do poder é o aspecto definidor deste campo historiográfico. como sugere Falcon (1997. possible points of approximation and dialogue between the two proposed historical studies are identified. ao final. p. As relações e conflitos entre as duas correntes emergem ao longo da abordagem para. As relações e conflitos entre as duas correntes emergirão ao longo da abordagem para. ao final. First. Palavras-chave : Nova História Política. Abstract: The aim this article is to analyze the new political history and marxism. 1) o poder enquanto objeto dos historiadores e 2) os historiadores enquanto agentes do poder e/ou produtores de conhecimentos condicionados pelos mecanismos de poder. E-mail: mekie1@hotmail. dando ênfase a sua fase atual. Faço. As múltiplas relações entre a historiografia e o poder talvez possam ser resumidas em duas. in the end. serem retomadas com vistas a identificar possíveis pontos de aproximação e diálogo entre as duas propostas historiográficas. O objetivo principal deste texto é refletir acerca da chamada nova história política e seu distanciamento em relação ao marxismo. The relations and conflicts between the two theories emerge during this analysis and. Os dois Doutor em História pela USP . beginning in the 1970’s.com 1 97 . inaugurada na década de 1970. there is a summary of the trajectory of the political history. Este papel político da história 98 .] escola metódica quer impor uma investigação científica afastando qualquer especulação filosófica. p. a História tem tido sempre uma função social – geralmente a de legitimar a ordem estabelecida –. Josep Fontana é mais incisivo quando trata desta questão: Desde os começos. à crítica dos documentos. defendendo a tríade república. 97). 1997. a [. o social ou o econômico para análise (BURKE. Divido. possivelmente. o aspecto mais importante das relações entre história e poder. Abordá-lo não é o objetivo deste texto. nacionalismo e colonialismo. em alguma medida. Nas palavras de Guy Bourdé e Hervé Martin. à organização das tarefas na profissão (BOURDÉ. para fins de maior clareza da exposição. 1997). Este é. apresentando-se com a aparência de uma narração objetiva dos acontecimentos concretos (FONTANA. 15). 61). mas ele é aqui minimamente registrado e. 1997. A história política organizou-se e institucionalizou-se na segunda metade do século XIX com a configuração da Escola Metódica. Na primeira fase. MARTIN.aspectos estão de tal forma articulados que “história e poder são como irmãos siameses” (FALCON. se confundia com a história como um todo. a história política em três fases: a) a fase pré-Analles. p. nas manifestações mais primárias e elementares. A história nasceu com a intenção de narrar episódios políticos. reaparecerá no texto haja vista a dificuldade (neste caso. 1983. 1998. mais comumente conhecida como positivista. ainda que tenha tendido a mascará-la. obstruindo o crescimento de outras abordagens que elegessem o cultural. benéfica) já identificada de se separar os irmãos que nascem “colados”. a exemplo dos trabalhos de Heródoto e Tucídides... Os autores mostram como os historiadores metódicos atuaram na legitimação da Terceira República na França. embora seja também o mais comumente desconsiderado (FALCON. b) o período 1929-1974 e c) a fase compreendida entre 1974 e os dias atuais. sob a influência de Leopold von Ranke e seus seguidores. Esta vertente tornou-se mais forte no século XIX. a hegemonia da história política era tão vigorosa que. pensa atingir os seus fins aplicando técnicas rigorosas respeitantes ao inventário das fontes. p. p. às vezes. 61). o Estado é o objeto por excelência desta história política.. Juntos. Sintomaticamente. O crash de 1929 revelou as insuficiências do liberalismo econômico (POLANYI. ou se confunde com ele.não estava adstrito à França. Mas o declínio da história política não se deveu apenas à influência dos Annales. Era o padrão da chamada história factual.. é elitista. ou metódica. p. A estas linhas de transformação podem-se somar a Primeira Guerra (19141919) e a crise de 1929. Entre as mudanças. As transformações históricas registradas na passagem do século XIX para o XX e nas primeiras décadas deste produziram efeitos na maneira como se interpretava a história. encerrou o sonho burguês e suas certezas quanto à expansão permanente da riqueza e a manutenção da paz pelo império da razão (HOBSBAWM. assinala Hobsbawm. é idealista e ignora o material. 2003. estes processos parecem assinalar o fim de um tempo histórico e também de uma historiografia. a história política perdeu prestígio à medida que avançava a renovação proposta e praticada pelo movimento deflagrado por Bloch e Febvre. e ignora a análise. A Guerra.. 1980). Para René Remond.. p. há fatores de ordem histórica. institucional e teórico-metodológica para esse processo. Entre 1929 e a década de 1970. o crescimento do movimento operário e a revolução russa (REMOND.] (JULLIARD. e ignora a sociedade global [. uma vez que nele se concentra o poder. talvez biográfica. Remond aponta o advento da democracia política e social.. Aos fatores históricos da crise da história política se 99 . prende-se ao consciente e ignora o inconsciente. Os historiadores não passaram imunes por este turbilhão.]. 1976. visa os fatos precisos. ignora a comparação. O econômico e o social saltavam aos olhos de qualquer estudioso contemporâneo.] é psicológica e ignora os condicionantes. é ideológica e não tem consciência de sê-lo. é narrativa. especialmente a francesa.. cujo predomínio e difusão estão diretamente relacionados à consolidação dos Estados Nacionais no oitocentos e à expansão imperialista. 1995). 181).. e ignora o longo prazo [..]. durou até 1929. é parcial e não o sabe. é qualitativa e ignora as séries [. 19). A hegemonia da “positivista”. A síntese das características (negativas) desta historiografia é resumida em uma famosa passagem de Jacques Julliard: [. data-símbolo da nova fase da historiografia. ou o marxismo vulgar. As idéias dos Annales das duas primeiras gerações são. vamos de uma vez à raiz das decisões. conforme palavras de Fernand Braudel (1982. p. a prioridade do social e do econômico deslocava o político (REMOND. que mais prejudicou os estudos concernentes ao político. 9). 20-21). Eis porque historiadores e sociólogos se desviaram da observação do Estado: Alain Touraine chegou a dizer com razão que há 30 anos se lançou uma interdição na historiografia e nas ciências sociais ao estudo do Estado (REMOND.somariam os institucionais. 158-160). p. p. em geral. 1997). como explica Remond. tratando-o como mero instrumento de classe. Ater-se ao estudo do Estado como se ele encontrasse em si mesmo o seu princípio e a sua razão de ser é portanto deter-se na aparência das coisas. convém descartar ambos como problemas dignos de estudo. 1997. Mas foi a versão stalinista. compartilhadas pelos marxistas. estudar o Estado era algo quase proibido. Talvez as diferenças sejam quanto à presença de uma teoria da mudança social e de um maior interesse pela discussão teórica no interior do marxismo (CARDOSO. Neste ambiente intelectual e político. a longa duração tornava o tempo do episódio insignificante. e este é agora visto como simples produto do socialeconômico. remontemos à fonte luminosa: ou seja. materializados no movimento Annales e no marxismo oficial. Em vez de contemplar o reflexo. 11). na conjuntura e na estrutura tornava o fato desprezível. se o poder confundia-se com o próprio Estado na história política tradicional. Do ponto de vista teórico. às estratégias dos grupos de pressão. 2003. A preocupação dos Annales com a construção de uma história-problema contrastava-se com a narrativa descritiva da velha história política. uma vez que este era visto puramente como produto determinado pelas relações econômicas. 182). O marxismo oficial também contribuiu para segregar a história política. 2003. uma duração “caprichosa” e “enganadora”. p. como quer Hobsbawm (1998. Ora. a ênfase nas séries. 1976. 100 . sem vida e importância próprias. a mais importante mudança foi a nova compreensão do papel do Estado. BURKE. Especialmente o marxismo vulgar tinha uma compreensão muito estreita do Estado. Por fim. já estando compreendido quando da análise daquelas (JULLIARD. p. a exemplo do processo de burocratização. a pluridisciplinaridade é para ela como o ar que ela precisa para respirar” (REMOND. o ano de 1974. 1976. 29). conferindo-lhes uma repercussão pública” (JULLIARD. vaticinou acertadamente o autor francês. p. 1997). e e) a ampliação do conceito de política e mesmo de poder. os objetos também se ampliaram: 101 . parte da renovação da história como um todo. em verdade..] problemas políticos que resistem às modificações da infraestrutura. ou seja. É este um dos fundamentos da nova história política que tem justamente em Remond um dos seus principais nomes.Não por acaso. 1992. quando é publicada a coleção Faire de l’histoire. 182).] torna imediatamente políticos um grande número de acontecimentos. A principal tese do autor francês na sua luta contra a destruição do político nos estudos historiográficos é justamente a defesa da autonomia do político. da sua existência própria.] é impossível para a história política praticar o isolamento: ciência-encruzilhada. “[. como data-referência para a nova fase dos estudos do político . 190). Entre os fatores da renovação apontados/propostos por Julliard.. 2003. b) a ampliação das funções do Estado. 1976. ultrapassando as leituras que os circunscreviam ao Estado. organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora. Como assinala Remond. ciência política. “A história política de amanhã será o estudo do poder e de sua repartição” (JULLIARD. 1976. A renovação da história política foi. psicologia social.. e que não se confundem com os dados culturais que prevalecem num momento dado” (JULLIARD. Na esteira da renovação/ampliação do que constitui o político. quando defende a legitimidade da história política. o político é específico.. antropologia. d) a reconciliação da história política com o quantitativo e com a longa duração. Nesta. Jacques Julliard faz o inventário dos vícios da velha história política e aponta os caminhos para a nova fase. matemática e informática. Os historiadores do político se abriram para um diálogo com a lingüística. c) o desenvolvimento da tecnologia de informação que “[. Adoto. Remond reage contra estas concepções reducionistas do Estado e da instância do político. 184). liderada pelo que se denomina terceira geração dos Annales (BURKE. p... destacam-se: a) o reconhecimento de que há “[. p. p. Jacques Revel. a segunda guerra mundial e a crescente importância das relações internacionais na vida interna dos Estados revelaram que o político possui uma materialidade própria. Clifford Geertz. O estudo do político vai compreender a partir daí não mais apenas a política em seu sentido tradicional mas. coloca-se como prioritária a problemática do simbólico – simbolismo. a ampliação da ação do poder público para áreas como moradia. Autores mais identificados com o pensamento marxista também foram importantes. mas possui suas próprias razões.] que as escolhas políticas não são o simples decalque das relações de força entre categorias profissionais. Estas. a compreensão deste permanece importante. Parece-me que os pontos principais da mudança são o reconhecimento da especificidade do político e a transformação dos conceitos de Estado e poder.Poder e política passam assim ao domínio das representações sociais e suas conexões com as práticas sociais. em primeiro lugar. Michel Foucault. Georges Balandier e Pierre Bourdieu. Para Remond. Como observa Remond. 1997). os imaginários sociais. p. Louis Dumont. assistência social. Hannah Arendt. só o observador 102 . como Antônio Gramsci. 1997. a exemplo de Norbert Elias. Diferentemente do que propunha a ortodoxia marxista. umbilicalmente ligados. saúde.. Alex Tocqueville. Embora o político e/ou o poder não esteja mais adstrito ao Estado. mas sobretudo o poder simbólico. o Estado não é simples agente de classe. processos históricos como a intervenção do Estado para o enfrentamento da crise do liberalismo econômico. em nível das representações sociais ou coletivas. Diz o autor: Análises de processos de decisão relativos a escolhas importantes demonstraram [. pode atuar um pouco acima dos condicionantes sociais e econômicos. a memória ou memórias coletivas. mesmo não sendo algo desconectado das demais instâncias. bem como as diversas práticas discursivas associadas ao poder (FALCON. as mentalidades. legislação e subvenção da produção incorporou uma multiplicidade de interesses que resultam em uma margem de autonomia aos administradores. Perry Anderson e Edward P.. Thompson (FALCON. Os dois pontos. 76). formas simbólicas. Raoul Girardet. Nicos Poulantzas. Raymond Aron. são múltiplas e estão longe de se entender. Autores diversos influenciaram na transformação da história política. como em Bourdieu. também são produtos de um tempo histórico específico. autor que discutirei posteriormente. Segundo Stuart Hall. para além da história política. ao seu desenvolvimento. Sua diversidade. e mesmo por outros pensadores. Se a ampliação do papel e do conceito de Estado já implicava uma maior abertura quanto à definição da categoria. como revelam os textos de Remond . 2000) conferiram à noção de poder uma elasticidade antes inimaginável. Porém. um dos obstáculos levantados pelo marxismo vulgar. a mudança mais importante foi na conceituação do poder propriamente dito. De qualquer forma. Além disso. teve que reformular suas abordagens 103 . p. Esta parece ser mais ampla para Remond do que para Poulantzas. 130). 24). o Centre for Contemporary Cultural Studies. A “margem de independência” de que fala o autor é muito semelhante ao conceito de autonomia relativa do Estado de Nicos Poulantzas (1981). Talvez a diferença entre os dois conceitos esteja na extensão da margem. 1981. o segundo compreende que o limite da autonomia relativa é dado justamente pela estrutura de classe presente na sociedade capitalista.externo pode ter a ilusão de sua homogeneidade. aos políticos. seus antagonismos proporcionam ao governo. assim. A influência dessa nova conjuntura atingiu setores diversos. O fim último da própria autonomia é de natureza classista: O Estado sempre detém uma autonomia relativa em relação a essa ou àquela fração do bloco no poder (inclusive em relação a tal ou qual fração do próprio capital monopolista) a fim de assegurar a organização do interesse geral da burguesia sob a hegemonia de uma de suas frações (POULANTZAS. a reformulação no conceito de Estado ocorreu dentro e fora do marxismo. um espaço de liberdade e uma capacidade de arbitragem que eles usam geralmente em função da idéia que fazem do interesse superior da coletividade nacional (REMOND. A história política superava. enquanto o primeiro acredita que a arbitragem é utilizada em função das concepções dos governantes quanto ao “interesse superior da coletividade”. por ele liderado. Poulantzas e Antonio Gramsci. os novos movimentos sociais que emergiram ao final da década de 1960 e a máxima de que “o pessoal é político” (WOODWARD. p. 2003. um autor importante na renovação do marxismo e da própria história política. ao aparelho administrativo uma margem de independência. a maior parte das vezes expressa sob 104 .. A mais conhecida e importante influência certamente foi de Michel Foucault e sua visão de que o poder é “algo que circula”. 196).] indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer a sua ação. fluxos e cortes. a contribuição de Foucault não ocorreu sem gerar problemas e críticas na e para a história política. produz “conexões e desarticulações. Para o autor. a formulação de Serge Berstein é possivelmente uma das mais difundidas. 350).. 2007. que os tornam sujeitos e que os assujeitam [.] Não pressupõe um centro [.] as componentes são diversas e levam a uma visão dividida do mundo. como veremos posteriormente nas reações de René Remond quanto à delimitação do campo do político e nas indagações de Peter Burke quanto à identidade da nova história política. A mais recente. nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem” e em cujas malhas os “[... p. “[.e mesmo seus objetos em virtude da avalanche do movimento feminista (HALL.] é prática produtora de sentido. p. o poder “maquina”. 2002). [... 74-75). Desenvolvendo seu raciocínio. O conceito tem uma longa trajetória e é utilizado com variados significados (DUTRA.] mas são sempre centros de transmissão” (FOUCAULT. que se inscreve nos corpos. continuidades e rupturas. permitindo definir uma forma de identidade do indivíduo que dela se reclama” (BERSTEIN. o poder “circula em todas as direções [.. a família burguesa não são uma fortaleza contra as forças de fora.. segmento hegemônico na atualidade..] se espraia por todo o corpo social”. por meio da categoria cultura política. Na perspectiva foucaultiana. Entre os historiadores. p.. p. Todavia.. elas são o ponto de passagem e de inscrição destas forças” (ALBUQUERQUE JÚNIOR. nunca são o alvo inerte [. que “funciona em cadeia” e que “[..] nunca está localizado aqui ou ali. e pode-se dizer também a mais produtiva.. nunca está nas mãos de alguns. em que entram em simbiose uma base filosófica ou doutrinal. 2000.. 1998.183)....]”. 2003. Berstein sintetiza os elementos constituintes de uma cultura política [. conquista da história política foi construir um diálogo efetivo com a história da cultura.. “A casa.] a cultura política constitui um conjunto coerente em que todos os elementos estão em estreita relação uns com os outros. os sindicatos e a mídia. a escola. resiste a argumentos racionais.. No processo de formação e difusão de cultura política. 357). as palavras-chave. formada a partir da Revolução de 1789. 1998). p. Um exemplo paradigmático de cultura política seria a cultura política republicana na França. 1998. uma cultura política 105 . Para o autor. No entanto. e é a composição de influências diversas que acaba por dar ao homem uma cultura política. um discurso que se traduz em palavras e idéias e se representa em gestos. o mesmo papel significante (BERSTEIN. transformam-se. a razão/ planejamento/intenção estão presentes.. em que o vocabulário utilizado. os partidos. o Exército. os locais de trabalho. Para o autor. interesse material ou por determinação sócioeconômico-profissional. ritos e símbolos.] um discurso codificado. como resposta a uma dada conjuntura. enquanto ritos e símbolos desempenham ao nível do gesto e da representação visual. uma vez consolidada. as fórmulas repetitivas são portadores de significação. a cultura política se diferencia dos conceitos de ideologia e de tradição. destacam-se o fato de ele escapar ao determinismo de cunho sociológico e/ou marxista e também não se prender a uma leitura idealista da adesão a uma doutrina política (BERSTEIN. “A ação é variada. Porque se forma lenta e de forma complexa ao longo da vida. As culturas políticas nascem em um momento de crise. uma visão do passado. mas não determinam.a forma de uma vulgata [. ao qual se adere por convicção racional. 1998. incluindo a infância e a adolescência.. Entre as virtudes do conceito. porque ela depende da noção de classe. do segundo porque ele remete à idéia de algo sólido e imutável. um modelo de sociedade/Estado.]. Em síntese. uma cultura política é integrada por uma filosofia. estas instituições não agem por doutrinação. p. 1998). uma concepção da sociedade ideal [. pode haver mesmo uma boa dose de irracionalidade porque a cultura vai além da razão e. parece algo mais bem acabado e formulado. a qual é mais resultante do que uma mensagem unívoca” (BERSTEIN.. 351). Do primeiro. uma leitura comum e normativa do passado [. por vezes contraditória.] uma visão institucional que traduz no plano da organização política do Estado os dados filosóficos ou históricos precedentes. evoluem (BERSTEIN. Sua difusão se dá por canais convencionais como a família. enquanto as culturas políticas são plurais e móveis... 1998. que é o objeto por excelência do historiador do político (BARROS.. O campo do político amplia-se consideravelmente na atualidade e o conceito de cultura política e as possibilidades por ele abertas dotam a história política de uma grande vitalidade (DUTRA. na escola ou até mesmo na família. no ensino. 1992. a prática do poder [. um dos principais nomes da nova história política. e que beneficia do peso da experiência. da dedicação às causas pelas quais milita.. não poderia ser atingida por críticas provenientes da argumentação racional” (BERSTEIN. p. Nas palavras de Peter Burke. Seriam então a escola e a família sociedades políticas? Só é política a relação de poder na sociedade global: aquela que constitui a totalidade dos indivíduos que habitam um espaço delimitado por fronteiras que chamamos precisamente de políticas. será que há necessidade de história política? (BURKE. tudo parece ser poder ou ele parece estar em todos os lugares. 360-361). mas é fato que a “[. Se a política está em toda parte. Entre eles a questão da delimitação dos objetos da história política e de sua identidade enquanto área da história... expande-se de forma quase infinita. o preço de tal expansão é uma espécie de crise de identidade. Não se trata de puro impulso e completa irracionalidade: sua aquisição se fez por raciocínio. Mas não qualquer poder! O abuso.] interiorização das razões de um comportamento acaba por criar automatismos que são apenas o atalho da diligência racional anteriormente adquirida” (BERSTEIN. [.. no sentido de que os historiadores (seguindo teóricos como Michel Foucault) estão cada vez mais inclinados a discutir a luta pelo poder na fábrica. fragmenta-se também e até mesmo esgarça-se o “material” para estudo do historiador. a partir de 1968. praticá-la implica análise. O território da política expandiu-se. propõe uma delimitação. da noção de poder e a extensão de sua aplicação desencadearam sua diluição: tudo seria relação de poder.. p. 360). 2004). na família. Entretanto. “[. 2002.. o exercício.solidificada não se altera com facilidade.] Entretanto.. se o político é aquilo que tem relação direta com o Estado e 106 . [. Rene Remond.]..] a política é a atividade de que se relaciona com a conquista. se o poder. 27). 1998. 8).. A partir da máxima de que “o pessoal é político” e do descentramento do poder foucaultiano.] uma bagagem tão solidamente integrada. Mas há também problemas. nas relações interpessoais. p. p. Ora. o sindicalismo intervêm no campo das forças políticas (REMOND. É parte da obra por ele organizada. resposta e/ ou alternativas para os três problemas identificados e. está longe de equivaler a determinismo econômico e desprezar todos os elementos imateriais como meros reflexos. [. O próprio Marx confere ao político e ao cultural sua devida relevância quando produz textos mais históricos e menos analíticos. Vinte anos depois. O distanciamento da nova história política do materialismo histórico é também perceptível. ENGELS. no interior da tradição marxista.] existe uma política para a habitação. b) as concepções de Estado e c) e o conceito de ideologia. na famosa passagem de Marx. As relações de conflito entre a história política e o marxismo aparecem ao longo da trajetória do campo de estudos aqui tratado. como é evidenciado em O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. ele não se reduz a isso: ele se estende também às coletividades territoriais e a outros setores por esse movimento que ora dilata e ora encolhe o campo do político. Postulo que há. incluem os elementos que hoje diríamos pertencentes ao campo do imaginário: 107 .. as preocupações de Remond e a questão levantada por Burke ainda parecem sem respostas adequadas. portas abertas para um diálogo e parceria entre historiadores do político e marxistas. As condições legadas pelo passado e sob as quais os homens fazem a história. a televisão é um investimento político. Sua vitalidade também é visível. ou reconhecer na base material o fator mais importante. Por uma História Política . Este texto de Remond é de 1988. O determinismo atribuído a Marx parece derivar de suas formulações em A Ideologia Alemã (MARX. Convivendo com o crescimento e mesmo sendo geradas por ele. Parece-me que se podem identificar três grandes pontos de atrito entre as duas correntes: a) a noção de determinismo sócio-econômico.. conseqüentemente. 444). 1998). e em leituras difundidas pelo marxismo vulgar (HOBSBAWM. Em outros termos. assim como para a energia. 1998). que registra e celebra a renovação da área.a sociedade global. O fato de Marx priorizar o exame do econômico. p. pode-se fazer boa história política utilizando categorias consideradas como pertencentes ao materialismo histórico. texto produzido no calor de uma refrega anti-idealista. 2003. a história política continua a crescer e seus objetos parecem cada vez mais numerosos. As formulações de Gramsci contribuem de forma expressiva no reconhecimento do não-econômico e na superação de simplificações deterministas e mecanicistas. 1989). nessa linguagem emprestada. poder-se-ia dizer que os textos de Marx são. Nesta medida. 15-16). Contudo. por obra do pensamento de gerações anteriores e que atravessou no cérebro dessas gerações sucessivas um processo próprio e independente de evolução” (ENGELS apud CARDOSO. também. “[. p. fato por sinal severamente condenado por Polanyi. O autor austríaco não era marxista..] precisamente nessas épocas de crise revolucionária. 1997.. um testemunho da sua própria época. porque o período que Marx analisou e no qual viveu foi. o objeto predileto do autor e. conforme expressão de Polanyi (1980). especialmente na segunda metade do século XIX. 2000. Engels também rejeita o economicismo ao dizer que o “político. A crítica mais importante às teses marxistas no terreno do determinismo seria outra. tomando-lhes emprestado os seus nomes. p. de fato. não há como separar de fato ‘base’ de ‘superestrutura’” (CARDOSO.] a tradição de todas as gerações mortas oprime o cérebro dos vivos [. Thompson enriqueceram muito esta vertente historiográfica. p. a fim de apresentar. Autores como Antônio Gramsci... 1997. concretamente. admitir a primazia do econômico em Marx não é um problema. especialmente na juventude. teológico” formaram-se “[... jurídico. os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado. Primeiro. o tempo da civilização do mercado. porque isso não é sinônimo de determinismo. Para usar a feliz definição de Hobsbawm. 183).. e. a nova cena da história universal (MARX. segundo porque as relações econômicas foram. 1998. 12). A ênfase do autor nos elementos culturais e políticos foi de tal monta que ele chega a apresentar... ligeiros traços de idealismo (COUTINHO.] a história marxista toma Marx como ponto de partida e não como ponto de chegada” (HOBSBAWM. 12).] hoje é impossível ver o ‘ideal’ e o ‘material’ como loci de uma metáfora topográfica.] independentemente.. por fim. portanto. 108 . Raymond Williams e E. os gritos e as roupagens.[. mas é enfático na identificação da esfera econômica como a mais importante no tempo em que Marx viveu. Mas o materialismo histórico desenvolveu-se após Marx e com as próprias transformações históricas. p. P. precisamente o fato de que “[. a afirmação de que ele procede do Pai e do Filho (GRAMSCI. 240)... 1997) que rompem com determinismos de qualquer natureza. É instrutivo “ouvir” o próprio autor explicar o que pretendia com a expressão “economia moral”: O meu objeto de análise era a mentalité ou. praticamente. a um grupo. Como informa Hall. 2004. isto é. por impulso individual. escritor de obras políticas e históricas concretas (GRAMSCI. as tradições e até as superstições dos trabalhadores que com mais freqüência 109 . p. com o testemunho autêntico de Marx.] de apresentar e expor qualquer flutuação da política e da ideologia como uma expressão imediata da infra-estrutura deve ser combatida. a cultura política. embora esteja relacionada ao social-econômico. 2004. p. 1998) e da “experiência de classe” (THOMPSON. as expectativas. Williams já era uma referência central neste campo (HALL. e c) “[.] muitos atos políticos são motivados por necessidades internas de caráter organizativo. por avaliação incorreta (“erro de cálculo”) e por ensaios de hegemonia de pequenos grupos no interior do bloco dirigente. 1998) ao se lançarem o desafio de estudar a cultura a partir do marxismo. p. Gramsci propõe um princípio ao pesquisador: A pretensão [. Outras contribuições significativas foram dadas por Raymond Williams (1979) e Edward Thompson (1997. tem suas especificidades: a) a política é reflexo de “tendências de desenvolvimento das estruturas. tendências que não se afirma que devam necessariamente se realizar”. 2004. 239). ou deve ser combatida. como um infantilismo primitivo. antes que os estudos culturais se difundissem a partir dos anos 1960. 238). seria ridículo buscar na estrutura da Europa Oriental a afirmação de que o Espírito Santo procede apenas do Pai.. teoricamente. na do Ocidente. a uma sociedade” (GRAMSCI. e. como prefiro dizer.. b) os líderes políticos erram. São especialmente conhecidas as categorias thompsonianas da “economia moral” (THOMPSON. Utilizando o exemplo da Igreja Católica. 2003). o autor ironiza as leituras que vêem a política como decalque da economia: Na discussão entre Roma e Bizâncio sobre o estatuto do Espírito Santo.Ao analisar as relações entre estrutura e superestrutura. O autor prossegue apresentando vários elementos que refutam o determinismo e reconhece que a instância do político. ligados à necessidade de dar coerência a um partido. os chamados aparelhos privados de hegemonia (GRAMSCI. é completamente sem sentido pensar o poder de forma restrita ao uso da força ou pensar o Estado como um mero instrumento da burguesia. exercido de dentro do Estado no seu sentido estrito. a exemplo da Itália (GRAMSCI. a sociedade política tradicional. A hegemonia. A dominação seria então o poder repressivo. do poder. 1976. denominadas pelo ter mo insatisfatório de ‘motim’ (THOMPSON. mas é a direção moral e intelectual de uma ou mais classes sobre outras classes e se dá no âmbito da sociedade civil. em um vasto conjunto de instituições da sociedade civil. Gramsci define o Estado de forma complexa. evidentemente. 2004). a sociedade política. verifica-se que a própria noção de poder se modifica em Gramsci. a dominação mais a hegemonia (GRAMSCI. não se confunde com o poder estatal stricto sensu. por sinal. e as relações – às vezes neg ociações – entre a multidão e os governantes. uma vez que este se apresenta distribuído. 2004). 204). ao passo que o Estado ampliado seria uma construção de sociedades de tipo ocidentais. o Estado ampliado inclui a sociedade civil. ou descentrado como está na moda dizer. Estas questões estão ligadas a uma série de outros pontos – como estratégias distintas para a revolução. a soma da sociedade política mais a sociedade civil. Com Gramsci. além. 13) pode ter contribuído para isso. A difusão tardia do pensamento de Gramsci (SECCO. 2002. como foi visto. da ortodoxia stalinista. em certa medida. um conjunto de organizações às quais se adere de forma espontânea e em que se produz e difunde a cultura. serviu para a quase excomunhão dos estudos do político entre os anos 1930 e 1970.se envolviam nas ações no mercado. Uma visão reducionista do Estado. Além da estrutura repressiva-coercitiva. sem desconsiderar as posteriores discussões de Nicos Poulantzas. p. então. 1976. guerra de posições e guerra de trincheiras. Quanto ao problema do Estado e. O modelo de Estado repressivo seria prevalecente nas sociedades orientais nas quais a sociedade civil é pouco desenvolvida. a hegemonia pressupõe uma 110 . p. O Estado ampliado é. Diferentemente. 1998. as maiores inovações foram certamente de Antonio Gramsci. e possibilidades de se construir a hegemonia antes da tomada do poder político – cuja discussão foge ao objetivo deste texto. 2004). Voltando ao conceito ampliado de Estado. os valores políticos e intelectuais. arena de conflitos. a ideologia é “[. na atividade econômica. as distinções entre verdadeiro e falso.] uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte. conceitua o Estado de forma semelhante ao pensador italiano: [. Segundo Stuart Hall. os pecados capitais sempre apontados na teoria de Marx quanto à ideologia são “[.. 71. p. Nesta chave de leitura proposta por Gramsci e Poulantzas. descrevendo-a como uma visão deformada das relações sociais concretas. é “[. no caso capitalista. p. 98-99.] diria que o Estado. em A Ideologia Alemã . que passou a utilizar o conceito de ideologia com o sentido de “[. Para este. 1979.. 18-20). 71. de maneira sempre específica. Segundo Raymond Williams (1979. Karl Marx inaugurou. não é o conceito de ideologia de Gramsci ou Lênin que aparece nos textos que o recusam como inadequado ao estudo da cultura política (BERSTEIN. uma correspondência simples demais entre o econômico e o político ideológico.] um sistema de crenças característico de uma classe ou grupo” (WILLIAMS. real e distorção. operando numa perspectiva muito próxima de Gramsci.. acordos. uma perspectiva negativa da ideologia.] o reducionismo econômico. como uma relação.. 1981. mais exatamente como a condensação material de uma relação de forças entre as classes e frações de classe. No entanto. 111 . Definição bem próxima à de Lênin era a de Gramsci.. parece que foi perda de tempo grande parte dos conflitos que marcaram a história política e o marxismo e que prejudicou a ambos. tal visão foi reformulada a partir de Lênin. não deve ser considerado como uma entidade intrínseca mas. p. como aliás é o caso do ‘capital’. em se tratando de ideologia burguesa. 388).. 1998) ou limitado e menos operatório do que mentalidade (VOVELLE. em todas as manifestações de vida individuais e coletivas” e.. Poulantzas.. 74). no direito. p. 2004. concessões e resistências que integram o próprio Estado. 74). 130).] um instrumento de governo de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas” (GRAMSCI. 2004. O conceito de ideologia é um dos mais controversos do marxismo. p. tal como ele expressa.. no seio do Estado (POULANTZAS.. Quando se quer apontar as insuficiências do conceito de ideologia aponta-se preferencialmente para Marx. mas não correspondem às demandas colocadas historicamente. Para Gramsci. p. 157-158).‘verdadeira’ consciência e falsa consciência” (HALL. As ideologias (sempre orgânicas.] ‘organizam’ as massas humanas. são “elucubrações” sem fundamentos sociais. mas nem todos desenvolvem esta função (GRAMSCI. na teoria marxista. “O ponto fraco da relação estrutura-superestrutura. Os dois empreendimentos são felizes. sem organizadores e dirigentes. provinha de seu caráter puramente abstrato. ora. Nas palavras do autor: [. noção ampliada por Gramsci para se referir a todo agente organizador da sociedade civil. p. formam o terreno no qual os homens se organizam. 104).. Elas são construções históricas. nem correspondem necessariamente às classes. social. 237-238). sem que o aspecto teórico da ligação teoria–prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas ‘especializadas’ na elaboração conceitual e filosófica (GRAMSCI. mas eu prefiro o segundo. 261).. 2003. Parece-me que das categorias gramscianas emerge uma leitura acerca da ideologia que permite um diálogo fecundo com a nova história política e com a historiografia prevalecente hoje como um todo. As primeiras derivam da vontade isolada de uma personalidade ou grupo. particularmente. ou seja. “voluntaristas”.] não existe organização sem intelectuais. desse vínculo orgânico: os intelectuais” (PORTELLI. de agora em diante) não são produtos automáticos das relações econômicas. 112 . 1989). Trabalho a ser desenvolvido pelos intelectuais. p. está enraizada na dinâmica social e econômica. São “racionalistas”.. é social e historicamente produzida. p. 111. lutam”. É necessária ação efetiva para se construí-las. para alguns. As orgânicas “[. O escritor jamaicano interroga os textos de Marx de forma profunda para relativizar o alcance destas críticas e. 2004. A grande contribuição de Gramsci para o marxismo seria.. da ideologia. informa as relações entre as classes (GRAMSCI. então. 2004. recorre às teses de Gramsci para completar seu argumento quanto às possibilidades ainda vivas do marxismo e. exatamente a compreensão do papel dos intelectuais. todo homem pode ser um intelectual. 1977. Em princípio. Gramsci fornece uma tradução concreta. isto é. adquirem consciência de sua posição. há ideologias arbitrárias e orgânicas. caracteriza-se como difuso e disperso. Filosofia e senso comum se comunicam no fluxo social. isto é. “Neste processo de difusão (que é. A expressão “vivida” não é gratuita. a ideologia é vivida como uma fé. torna-se algo vigoroso contra o qual os argumentos racionais de alguém mais escolarizado dificilmente teria êxito (GRAMSCI. Para estas. bem articulado. os “simples”.A controversa questão da falsa consciência também não se sustenta com os termos gramscianos. sem serem ressignificados e retrabalhados. intelectualizadas e formalizadas. Um conhecimento teórico profundo é inútil se não dialoga com “as massas”. A escolha se dá num misto de razão e “religião” (não no seu sentido confessional).. p. É fundamental porque aponta para o fato de que a filosofia se traduz em senso comum quando é coerente com a vida real das pessoas. de 113 . Este processo se dá cotidianamente. e sempre se faz uma escolha entre elas” (GRAMSCI. contribui para explicar e dar sentido ao mundo concreto. 2004. 2004. Para o autor. 109). 2004. Este postulado da história da cultura já era colocado em prática por Gramsci quando redigia na prisão em fins da década de 1920 e inícios da década de 1930. Não se admite hoje que os discursos diversos sejam recebidos em estado bruto. uma certeza construída em bases não puramente racionais. 100-101. sendo a segunda mais importante do que aquela quando se trata das “massas”. 1990). A apropriação implica a transformação e mesmo a criação de algo novo (CHARTIER. combina valores e idéias aparentemente sem nexo. O senso comum é a “filosofia dos não filósofos”. “teórico”. mas que possuem sentido para o seu portador. expressões utilizados pelo próprio autor (GRAMSCI. as ideologias se apresentam em dois níveis principais: a filosofia e o senso comum. Toda filosofia tende a se transformar em senso comum e mesmo deve fazê-lo para que tenha função social. produzido neste processo. 114). O senso comum. A filosofia é o pensamento elaborado. Não há uma ideologia geral: “[. é orgânica. muito freqüentemente. p.. 96). É importante discutir também como se dá a difusão da ideologia e a sua apropriação pelos “não-filósofos”. p. de substituição do velho e. simultaneamente. como ela se converte em senso comum. Imaginar que algumas pessoas iluminadas vão “levar” a “verdadeira consciência” até os ingênuos que vivem na escuridão é algo sem sentido.] existem diversas filosofias e concepções de mundo. Em uma palavra. reconstrói ativamente. Nota-se. p. p. mas está bem longe de ser decisiva (GRAMSCI. 2004. aspecto próximo à idéia de capital simbólico de Bourdieu (2003). p. O “senso comum” gramsciano contradiz qualquer pretenso determinismo mecanicista ou reducionismo econômico ou de classe. por assim dizer. 2004. logicamente coerente. entre eles [. Os elementos que integram o senso comum formam-se histórica e lentamente. quando se trata “massas populares”. mas – apenas e sempre – como combinação mais ou menos heteróclita e bizarra. No entanto. como a forma parece ser tão importante quanto o conteúdo da mensagem. Saliente-se.] terreno já formado e não questionado sobre o qual as ideologias e 114 . As massas populares. Sua transformação também pressupõe os mesmos princípios. p. Para Stuart Hall. 108).] a forma racional em que a nova concepção é exposta e apresentada. jamais a mudam aceitando a nova concepção em sua forma ‘pura’. integrando fatores de ordens diversas. nesta passagem. O peso destes elementos varia conforme a formação intelectual do público-alvo. tem sua importância. sua modificação é mais trabalhosa. que mais dificilmente mudam de concepção e que. pelo menos genericamente) do expositor e dos pensadores e cientistas nos quais o expositor se apóia. A forma racional. a participação na mesma organização daquele que sustenta a nova concepção (GRAMSCI. ele diz que o senso comum é “[. Em virtude do caráter “religioso” do senso comum. Ele a constrói. 2004.combinação entre o novo e o velho)” (GRAMSCI. também. 108). 108). a recepção de uma nova concepção é mais complexa. 144). p. vários fatores influem. o “senso comum” é um instrumento que lhe permite superar a polarização estruturalismo-culturalismo (HALL. 2003.. a importância conferida à “autoridade do expositor”. 108). em todo caso. recorrendo aos ingredientes de que dispõe ao longo de sua experiência vivida. a autoridade (na medida em que é reconhecida e apreciada.. observa Gramsci (2004. E este não-filósofo não a recebe como um pacote fechado.. a perfeição do raciocínio que não esquece nenhum argumento positivo ou negativo de certo peso. Elas só podem tê-la se se traduzirem em filosofia de não-filósofo.. Interpretando Gramsci. As ideologias que “vêm de fora” não têm eficácia alguma na transformação social. ‘A personalidade é estranhamente compósita’. p. Ela contém ‘elementos e princípios da Idade da Pedra e princípios de uma ciência mais avançada. observa ele. p... Autores como Thompson 115 . preconceitos de todas as fases passadas da história. se iguala. da combinação dos elementos racionais com os “religiosos”. em importância.. Parece-me claro que as inovações promovidas no interior do próprio marxismo por autores como Thompson. a mais importante é. da solidez dos argumentos não teóricos por parte de quem compartilha uma cultura política/senso comum. 2003. Para Hall. da apropriação processual e ativa e do caráter histórico/vivido de ambas. 305-306).] (HALL.filosofias mais coerentes devem disputar o domínio. Argumenta que a natureza multifacetada da consciência não é um relacionamento entre ‘o eu’ e os discursos ideológicos que compõem o terreno cultural da sociedade. 2003.. a exemplo do caráter plural de ambas. 306). 306). a ênfase de Gramsci na cultura. e intuições de uma filosofia futura’ (HALL. é uma “[. contestar e transformar [. 2003. o reconhecimento da centralidade da história sobre qualquer formulação teórico-metodológica. p. o solo que novas concepções de mundo devem considerar. sem lugar a dúvida.]” (HALL.] reconhece a pluralidade dos eus e identidades que compõem o chamado ‘sujeito’ do pensamento. Além disso. De todas as pontes possíveis entre o marxismo e a nova história política. Poulantzas.. exemplificada na conceituação do senso comum. que se situa no centro de tanta teorização marxista tradicional sobre o assunto. O resultado da leitura gramsciana. Williams e Gramsci permitem o intercâmbio com a nova história política. fragmentária e contraditória [da] consciência [e] representa um avanço considerável da explicação pela via da ‘falsa consciência’” (HALL.. p.] concepção complexa. [. É particularmente instrutivo notar como o conceito e as características da ideologia gramsciana se aproximam da “cultura política” de Berstein. 2003. ao efetivo desmonte do estado operado pelo próprio Gramsci [.... esta é uma das maiores contribuições do pensador italiano: O ataque implícito de Gramsci à concepção tradicional de sujeito ideológico de classe ‘já dado’ e unificado. Foi a própria dinâmica da história que transformou a história política e o marxismo. 303).. p. BRAUDEL. Jean-Pierre. 4. de inegável importância. reconhecem as transformações deste. exigiria outro texto. BOURDÉ. p. mas não está dada de antemão (HALL. Lisboa: Presença. 1982. Há outras questões fundamentais como a discussão do sujeito no interior do marxismo e fora dele. Serge. Durval Muniz de. também. parece que a noção de classe ainda é uma barreira. Como sugere Hall. é pensada enquanto algo que pode ocorrer. 1998. as categorias marxistas permanecem operatórias na medida em que permitem explicar o mundo real e. Jean-François (Dir). No lugar das certezas de um pensamento vulgar. “Tudo pensar historicamente. 2004. 2007. no qual a determinação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.e Gramsci não hesitaram em promover revisões e enriquecimentos ao pensamento marxista quando a história o exigiu. Cultura política. Hervê. Petrópolis: Vozes. diferenças permanecem. 349-363. 116 . Lisboa: Publicações Europa-América. In: RIOX. Lisboa: Estampa. 6. entra o “marxismo sem garantias”. BERSTEIN. SIRINELLI. Pierre. 1983. O campo da história: especialidades e abordagens. um dos pontos da discórdia entre marxistas e nãomarxistas. José D’Assunção. 2. 273-274). Sua receita continua atual. dizia Pierre Vilar (1976) nos primórdios da década de 1970. História: a arte de inventar o passado. MARTIN. ed. Entre elas. ed. ed. Referências ALBUQUERQUE JÚNIOR. O exame das divergências. BARROS. eis aí o marxismo”. haja vista a sua quase desconsideração pelos “novos historiadores do político” e a sua persistente utilização pelos marxistas. SP: EdUSC. Guy. As escolas históricas . Evidentemente. 2003. Bauru. Fernand. 2003. a prioridade aqui era identificar pontos de aproximação. História e ciências sociais. O poder simbólico. Para uma História Cultural. Todavia. apesar de todas as inovações trazidas pelos autores citados. BOURDIEU. História e paradigmas rivais. 1998. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. FALCON. Um estudo sobre o seu pensamento político. Os intelectuais e a organização da cultura. 117 . 7. CHARTIER. In: ______. CARDOSO. ed. UFMG. Cadernos do Cárcere – volume 1. Roger. In: ______. Domínios da história. ed. 2004. FOUCAULT. ed. seu passado e seu futuro. Lisboa: Difel. Belo Horizonte. Antônio. 1992. Freitas. GRAMSCI. 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São Paulo: Brasiliense. entre relato ficcional e histórico. Hayden White é. Daniel Barbosa Andrade de Faria e Tereza C. indubitavelmente. tais como as relações entre literatura e historiografia. sob orientação da professora Tereza Cristina Kirschner. 2 Doutorando em História na Universidade de Brasília. Suas proposições (re)colocaram em pauta questões tidas como nãoproblemáticas. Para tal. Palavras-chave: discurso historiográfico. Keywords: speech historiographic. ou. E-mail: ricardo. Hayden White. epistêmico e ético. Kirschner. Finally. A primeira expõe a dimensão profunda (trópica) do discurso. Por fim. Agradeço aos esclarecimentos do professor Estevão de Rezende Martins e à leitura e aos comentários atenciosos dos professores Carlos Oiti Berbert Júnior. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. mais precisamente. Em seguida expõe-se os aspectos “técnicos” dos níveis estético.mm@hotmail. Ver Mello (2008). The first exposes the deep dimension (tropic) of speech and then explains to the aspects “technical” level of aesthetic. Sou grato também à CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – que me proveu uma preciosa bolsa de estudos. foi dividido em três partes. Abstract: This article presents the general lines that give outline the theory of speech historiographic of Hayden White. um dos autores em teoria da história que mais causou polêmica nos últimos trinta anos.com 120 .TEORIA DO DISCURSO HISTORIOGRÁFICO DE HAYDEN WHITE: UMA INTRODUÇÃO1 HISTORIOGRAPHICAL THEORY OF THE DISCOURSE OF HAYDEN WHITE: AN INTRODUCTION Ricardo Marques de Mello2 Resumo: Neste artigo apresenta-se as linhas gerais que dão contorno à teoria do discurso historiográfico de Hayden White. ethical and epistemic. which for m the manifest level. entre filosofia da 1 Este texto baseia-se no primeiro capítulo da dissertação de mestrado defendida na Universidade de Brasília no início de 2008. Hayden White. it presents two assumptions and one implication of his theory of knowledge produced by historians. apresenta-se dois pressupostos e uma implicação de sua teoria ao conhecimento produzido pelos historiadores. teoria da História. It is organized into three parts. theory of History. que formam o nível manifesto. em conjunto. de modo geral. e materializar o produto de seu labor em uma forma de apresentação. Porém. epistêmico e ético. neste artigo apresenta-se as linhas gerais que dão contorno à sua teoria do discurso historiográfico em três seções. valerse de um método. Partindo dessa preocupação. imagéticas. A segunda expõe os aspectos “técnicos” dos níveis estético. Consciência. prioritariamente. livros.história e discurso historiográfico e entre a natureza do conhecimento produzido pelos historiadores e um certo conceito de ciência. geralmente uma narrativa com começo meio e fim. sonoras ou de outra natureza. ou uma combinação deles. É evidente que a atividade do historiador não se limita à análise das fontes: é preciso organizá-las dentro de um recorte – teórico. documentários. 121 . Tais procedimentos podem ser caracterizados de maneiras diferentes. linguagem e campo histórico de modo a constituir o que Hayden White denomina de dimensão profunda ou latente do discurso. que diz respeito ao estatuto da verdade. A respeito de cada um desses aspectos e/ ou na combinação entre eles houve um número razoável de reações. entre outros. permanecem no presente – são transformados em materiais intersubjetivamente aceitos como historiográficos. A terceira e última seção delineia dois pressupostos de sua teoria – a neutralidade das fontes e a nãocientificidade da historiografia – e apresenta uma implicação ao conhecimento histórico. em uma análise. O fruto desse esforço pode materializar-se em artigos. linguagem e campo histórico: a dimensão profunda a) Da diferença entre teoria do conhecimento historiográfico e teoria do discurso historiográfico As teorias do conhecimento historiográfico pressupõem um conjunto de procedimentos mediante os quais os indícios do passado – que. interna de suas obras. A primeira relaciona consciência. por razões variadas. a dimensão manifesta do discurso do historiador. palestras. Dadas as controvérsias interpretativas acerca de sua teoria praticou-se neste texto um esforço constante em compreender o que foi formulado e principalmente como o foi. que formam. aulas. temporal e espacial –. reconhece-se como indispensável o trabalho com as fontes – sejam elas arquivísticas. Ricoeur. Paul Ricoeur (2003). White exatamente nesse sentido: não se deve analisar qualquer uma das fases separadamente. Embora P. denominaram essa transformação – dos indícios do passado em materiais historiográficos – de operação historiográfica. não se ocupa com a fase documental. escreve White. um capítulo para cada uma. 122 . ter em conta que as preocupações da teoria de White não são da ordem da operação historiográfica como um todo. sempre se pode “recorrer a critérios como a responsabilidade perante as regras da evidência” (WHITE. de crítica e de uma interpretação nova. Ademais. A fase documental: “efetuase desde a declaração dos testemunhos oculares à constituição dos arquivos e se fixa.114). afinal parece ser um equívoco metodológico exigir de um autor o que ele não se propôs a executar. a operação historiográfica é composta de três fases. para se distinguir entre boa e má historiografia. diferentemente de P. contudo. ele afirma. mais recentemente. de Certeau (2000) e. Hayden White. 179). 2003. mesmo por que. p. como os franceses M. p. sem que se considere as outras. 2001. Isso não permite afirmar. permite afirmar que sua proposta não é a de uma teoria do conhecimento historiográfico. Esse ponto de partida seria suficiente para desarmar uma série de críticas endereçadas à sua teoria. É ele o foco de análise. ele investiga e privilegia os aspectos explicativos e representativos do discurso. Sua preocupação tem como objeto o discurso historiográfico. Ricoeur parece criticar H. Mais especificamente.Alguns historiadores. dedicando. inclusive. que ele desconsidere ou dispense a presença de documentação no ofício do historiador. fase explicativa/ compreensiva: é a que diz respeito “aos múltiplos usos do conector ‘porque’ que responde à pergunta ‘por quê?’: por que as coisas ocorreram assim e não de outra maneira?”. aliás. no estabelecimento da prova documental”. fase representativa: é a “configuração literária ou escriturária do discurso oferecido ao conhecimento dos leitores de história” (RICOEUR. o caráter indissociável entre elas no trabalho do historiador. reiteradas vezes. como programa epistemológico. De acordo com Ricoeur. Ricoeur trate as três fases separadamente. isto é. Ela o faz enquadrando a massa de informações caóticas em um arquétipo. outros relatos historiográficos e tradições que permanecem presentes). sem desconsiderar a relevância dos conceitos para a constituição do discurso como um meio de apreender dada realidade. c) O objetivo do discurso White sugere que o objetivo do discurso historiográfico é tornar o desconhecido conhecido. ou seja. em um tempo e espaço específico. relacional. Isto é. Sua teoria. e se depara com uma massa de dados e informações (suas fontes. Desta forma. que vincula os dados da experiência e o movimento de conceituação para explicálos. o discurso é um “empreendimento mediador” ou diatático: nem sobredeterminado conceitualmente (hipotático). um historiador que se ocupa com um certo tema. 123 . cuja materialização verbal ocorre por meio da narrativa historiográfica. nem na pura ficção. o historiador busca tornar compreensível o que antes se mostrava obscuro. mas. De acordo o estadunidense. por outro. aos discursos produzidos pelas ciências humanas em geral.b) O conceito de discurso historiográfico H. busca transformar algo não-familiar em familiar. porém. por um lado. antes. por outro lado. White não está se referindo exclusivamente ao discurso de tipo historiográfico. mas entre essas duas áreas de representação. Mas a consciência não efetua essa transformação de qualquer maneira. por um lado. Na verdade. ganha em concretude e valor para a historiografia quando se desloca do termo geral discurso para o específico discurso historiográfico. White sugere que esse movimento de tornar familiar o não-familiar é uma ação da consciência humana. White conceitua o termo discurso como uma modalidade verbal que não se situa nem em uma demonstração lógica. mas situado em um plano médio (sintático). em um modo ou modelo de organização lingüística que torna o desconhecido ou incompreensível matéria compreensível e conhecida. sem impor um arcabouço conceitual independente dos dados da experiência. tanto para ele mesmo quanto para um suposto leitor a quem o texto será destinado. nem subdeterminado conceitualmente (paratático). precisa transformar o caos em um objeto ordenado. ao lidar com o termo discurso. 19). evidentemente. d) Os tropos Os tropos são espécies de figuras de linguagem. expressão ou pensamento foi inicialmente criado. servindo de arcabouço. da antiguidade clássica à contemporaneidade.Os modos por meio dos quais a consciência humana se manifesta linguisticamente no discurso historiográfico equivalem aos quatro “tropos mestres”: metáfora. p. o qual se consubstancia 124 . ou seja. conforme a lógica que presidia à relação entre os sentidos próprio e figurado: tropos. que alguém possui duzentas cabeças de gado se quer. cabeça deixa de ser tomada em seu significado próprio (como parte) e passa a ser interpretada fora de seu significado próprio (como todo). por exemplo. um movimento figurativo. White afirma que a formalização do discurso por meio dos tropos ocorre porque a historiografia lança mão da linguagem natural (ou comum) para caracterizar seu objeto de investigação. representa o animal como um todo. dizer que esse indivíduo possui duzentas unidades do animal todo e não apenas uma parte dele. Evidentemente. padrão. os “antigos costumavam dividir as figuras de linguagem em três grupos distintos. Esse mecanismo é posto em ação a fim de elucidar o que as coisas são e. na sentença acima. De acordo com o uso feito por White. O termo cabeça. supostamente próprias. 1989. ou melhor. sinédoque e ironia. literal nas palavras. necessariamente. as figuras de linguagem são maneiras de usar palavras. eles podem ser tomados como uma estrutura por meio da qual todo discurso historiográfico é assentado e recebe sustentação. expressões ou pensamentos e que a figura de linguagem representa um desvio ao sentido/ significado original. mais especificamente. ensejando novas classificações tipológicas. os tropos são figuras que designam novas significações a partir de significações próprias. De qualquer modo. expressões ou pensamentos fora de seu significado próprio. Segundo Lausberg (apud BRANDÃO. Quando se diz. O que deve interessar por ora é o pressuposto presente em toda figura de linguagem: o de que existe um significado próprio. essa divisão em três grupos foi problematizada e reconsiderada. figuras de pensamento e figuras de palavras”. metonímia. o que elas significam. Assim. no qual uma palavra. portanto. Esta opera. diz White. p. “o nome de uma parte de uma coisa pode substituir o nome do todo”. onde há uma redução do todo a uma parte ou de uma parte a outra “à condição de um aspecto ou função da outra” (WHITE. 49). “a 125 .. como designando. Já na metonímia. que é considerado. 1995. Há uma primeira caracterização do objeto e em seguida um movimento figurativo designando o que aquilo significa. A metáfora caracteriza os fenômenos. Nesta sentença. 49). “cinqüenta navios”. Metáfora. p. 1995. cada tropo opera esse movimento de modo particular.. Segundo White (1995. Porém. Uma das frases usadas por White para explicar a metonímia é “cinqüenta velas”. 1995. p. p. pode-se reduzir um fenômeno a outro ao se estabelecer uma relação de causa-efeito ou agente-ato.] o termo ‘coração’ deve ser entendido figuradamente. Além dessa redução do todo à parte. p. à maneira da analogia ou símile”. sinédoque e ironia O que determina de forma geral os tropos são as relações que se estabelecem internamente no discurso sobre um. define-se pela relação de contrariedade estabelecida entre a afirmação no nível literal e o que se espera que seja compreendido no nível figurado. A sinédoque opera por um mecanismo em que uma parte representa qualitativamente o todo. mas aquela qualidade de caráter convencionalmente simbolizada pelo termo ‘coração’ na cultura ocidental” (WHITE. que indica. A frase usada por White para caracterizá-la é “ele é todo coração”. 50). por fim. 49). Diz ele: “[. É uma espécie de comparação subentendida. por ele. 48).linguisticamente à maneira de um tropo. dois ou mais fenômenos. ou um microcosmo que equivale a um macrocosmo. a dimensão profunda ou latente do discurso produzido pelos historiadores. na verdade. entre autor e leitor. a respeito de algum tema. metonímia. diz White (1995. Dois eventos ou valores distantes no tempo e/ ou espaço podem ser focados sob certos aspectos que os assemelhem ou os diferenciem. não uma parte do corpo. “o termo vela é substituto do termo ‘navio’ de modo a reduzir o todo a uma de suas partes” (WHITE. “em função de sua semelhança ou diferença com um outro. A ironia. p. portanto.. 51). ela se insinua transideológica e metatropológica. meio e fim. sua preocupação. é com a presença dos tropos em amplitude quantitativamente superior. inadequadas as caracterizações metafóricas. 1995. a função que ele atribui aos tropos não é a de ser um elemento meramente decorativo ou de ornamento. considerando. de onde se poderia oferecer uma representação não figurada do mundo da experiência [. já que inspira “reconsiderações irônicas acerca da natureza da coisa caracterizada”. Se White exemplifica o mecanismo de funcionamento por meio de sentenças.] é por isso que as caracterizações do mundo vazadas no modo irônico são amiúde consideradas intrinsecamente refinadas e realistas( WHITE. Assim. mostrar-se autoconsciente das limitações de sua própria caracterização. Com isso. ou seja. presente em toda tentativa de apreensão do mundo por aquelas disciplinas que se valem da linguagem natural/ ordinária para dar conta do significado do seu objeto. metonímicas e sindedóquicas: a ironia pressupõe a ocupação de uma perspectiva ‘realística’ da realidade. profunda e latente. 126 . ainda. Os tropos. são macro-modelos formais que têm por função organizar e interpretar o mundo de modo a constituir o que Hayden White denomina de campo histórico condicionando a escolha de tais ou quais estratégias empregadas para explicar realisticamente o objeto de investigação. Eles deixam de ser uma técnica da retórica para ser a forma possível de concretização dos discursos historiográficos: é uma condição inescapável. mas busca. a ironia não se mostra apenas capaz de caracterizar um dado fenômeno. metáfora manifestadamente absurda destinada a inspirar reconsiderações irônicas acerca da natureza da coisa caracterizada ou da inadequação da própria caracterização”. Além disso. faz afirmações indicando o que a coisa é mediante a insinuação do que ela não é.. Enfim. porém. pode-se afirmar que o modo mediante o qual os tropos se materializam no nível frasal – conforme os exemplos supracitados – é o mesmo que se dá no nível discursivo: não há diferenças qualitativas ao se usar um ou outro tropo em uma sentença e usá-lo em uma narrativa com começo. mas é a maneira mediante a qual a consciência humana se manifesta no discurso: é a estrutura que organiza os dados do passado em uma forma lingüística coerente e inteligível. também.tática figurada básica da ironia é a catacrese (literalmente ‘abuso’). 1995. pode-se igualmente dizer que o campo histórico é finalmente reconhecido como mantendo certos tipos de relações entre seus elementos (ato. é apenas com a aplicação das estratégias de composição que ele recebe concretude. 1969). 5) propósito. 2) cena. aos cinco elementos que compõem o campo histórico. respectivamente.e) O campo histórico O termo campo histórico utilizado por Hayden White tem sua origem teórica em Kenneth Burke. 3) agente. White afirma que toda obra historiográfica leva em conta a presença desses cinco elementos na sua formulação. cinco perguntas são elaboradas: 1) o que foi feito. propósito e cena) quando as estratégias explicativas são postas no discurso.13). Burke toma o campo histórico. São eles: 1) ato. A diferença entre elas consiste no “modo como esses elementos se caracterizam e os pesos relativos [e relacionais entre si] dados a eles” (WHITE. explicação e ganha um significado. tal como utilizado por Burke e apropriado por White. A partir disso. Ele é fruto da escolha do tropo a partir do qual a estrutura da obra irá ser comportada: o historiador realiza um ato essencialmente poético. 5) por que ele fez isto. p. assim. Se é possível afirmar que o tropo condiciona a dimensão manifesta. 4) ação (agency). Estas cinco perguntas correspondem. agente. em que pré-figura o campo histórico e o constitui como um domínio no qual é possível aplicar as teorias específicas que irá utilizar para explicar o que estava realmente acontecendo nele (WHITE. é constituído e configurado pelo historiador antes da análise das fontes e representação da narrativa. 127 . isto é. ação. Mas. o lócus onde a história mesma acontece. se o campo histórico é formalmente delineado antes de uma análise das fontes. 1995. para White. nota 8). além disso: o campo histórico. isto é. construindo. 4) como ele fez isto. Entretanto. como um drama. 3) quem fez isto. as estratégias por meio das quais o historiador representará o passado realisticamente. K. mais especificamente de sua obra A Grammar of Motives (BURKE. uma imagem do passado. p. E ao se buscar compreendê-lo. 29. 2) quando e onde foi feito. Ou seja. com começo. A crônica refere-se à disposição dos fatos em uma ordem cronológica. ou apenas cronologicamente dispostos.Os níveis estético. Alguém que se debruce sobre algo ocorrido precisa torná-lo inteligível dentro de um certo tempo. explicação e representação do discurso historiográfico? De que modo se pode direcioná-lo a um ou outro fim? White identifica cinco níveis: 1) crônica. ou seja. Eles organizam o campo histórico de modo a permitir o uso de tais ou quais estratégias para caracterizar e explicar o que se deu no passado e o que aquilo significou. Isto é. epistêmico e ético: a dimensão manifesta a) As estratégias explicativas Mas quais são as estratégias de composição. Além disso. pela caracterização de alguns eventos da crônica em função de motivos iniciais. uma escolha – de ordem temporal. efetuam as primeiras formulações dos “elementos primitivos” do relato historiográfico. 4) argumentação formal. já há neste nível uma primeira atribuição de valor entre os eventos. de acordo com White. 128 . 1. A transformação de uma mera crônica em uma estória acontece. assim. Mesmo neste nível há. segundo White. 2) estória3. Os elementos primitivos Os dois primeiros níveis. os tipos de questões que o historiador deve prever e responder no curso da construção de sua narrativa. meio e fim. diferentemente do que ocorria na crônica. tem a necessidade de efetuar um recorte estabelecendo o período ou o momento a investigar. uma coerência formal entre os elementos que compõem o campo histórico e suscita. 5) implicação ideológica. os dados não-processados do discurso histórico. evidentemente. 3) elaboração de enredo. As questões são desta ordem: ‘que aconteceu depois?’ ‘Como 3 O termo estória foi traduzido de story que significa aqui um primeiro estágio organizacional dos dados dispersos. meio e fim. crônica e estória. de transição ou conclusivos. A estória indica. os eventos são colocados em um relato com começo. Aliás. apontando. um significado sobre aquele fato ou conjunto deles. seta. índice. Sendo assim. indicando. Hayden White identifica quatro tipos de “estruturas de enredo” empregadas nas obras historiográficas e filosóficas analisadas 129 . desta forma. dispor. Assim.isto aconteceu?’ ‘Por que as coisas aconteceram desse modo e não daquele?’ ‘Em que deu no final tudo isso?’ Essas perguntas determinam as táticas narrativas que cabe ao historiador empregar na construção de sua estória (WHITE. 1995. 2. O nível estético O que significa explicar algo mediante a escolha de um enredo determinado? Ou. o que pode ser considerado enredo para H. configurar. como aquilo tudo deve ser compreendido. como as dimensões manifestas do relato histórico. por White. White? “Prover o significado de uma estória por meio da identificação da modalidade de estória que foi contada é o que se chama explicação por elaboração de enredo” (WHITE. ao arranjar. 1973. 22). p. p. As estratégias representam os níveis estético (ou artístico). o historiador está preparando o leitor a tomar um caminho que o leve ao desenlace final de seu texto. 7). pois denota direção. como conseqüência. antes. o termo sentido para designar enredo mostra-se apropriado. e são consideradas. organizando-os em um sentido. Elaborar um enredo é narrar os fatos do passado de uma certa maneira. indicando as estratégias passíveis e necessárias de serem empregadas para explicar o que ocorreu no passado de forma coerente com o tropo sobre o qual o discurso será estruturado como um todo e com a caracterização do campo histórico concebida précriticamente. epistêmico (ou científico) e ético (ou político/ ideológico). O conjunto de relações entre esses elementos encaminhará o discurso a um ou outro significado. define o autor de Meta-História. organizar os fatos dentro de uma das quatro “estruturas de enredo pré-genéricas” estabelecendo certas relações entre os fatos que compõem a narrativa. a estória pré-organiza a narrativa e a explicação do discurso. que White precisa reduzir a narrativa historiográfica a uma forma de arte “limitada” ou “restrita” (restrited) para poder adaptar a teoria de Frye à sua. sátira e tragédia4. Ainda segundo Frye. Poder-se-ia objetar. “o conflito é a base ou tema arquétipo da estória romanesca” (FRYE. na mesma nota. esteja ele vivo ou morto. tendem a ser ingênuos contadores de histórias” (WHITE. “de todas as formas literárias. nota 06). A estória romanesca é um tipo de narrativa que põe em conflito o bem contra o mal. tragédia ou sátira por outro [. inclina-se ele por colocar em enredo segundo as formas mais convencionais . vencê-o e liberta-se dele no final. comumente algum tipo de batalha na qual o herói ou seu adversário. Nela o herói transcende o mundo. 23 e 24. Mas. por isso mesmo. antes. p. Porém. 130 .. p. Portanto. 1973. Daí a justificativa fornecida por White. 2) a luta crucial. São elas: estória romanesca. Ao se pensar a estória romanesca como uma estrutura de enredo para a historiografia.. p. sobre a objeção hipotética que se fez aqui: “as ‘estórias’ históricas tendem a incluir-se nas categorias elaboradas por Frye precisamente porque o historiador resiste à construção de peripécias complexas que constituem o fundo de comércio do romancista e do dramaturgo.] os historiadores em geral. a mais próxima do sonho que realiza o desejo” (FRYE. “[. devem morrer. ou ambos. comédia. 1973. p. comédia. a estória romanesca tem três estágios: 1) “o da jornada perigosa e das aventuras menores preliminares. 185-186).como o conto de fadas ou a novela policial por um lado. Exatamente por que o historiador não está (ou pretende não estar) contando a estória ‘pela estória’.. em um indivíduo. impondo à sua narrativa algo que não seria verossímil. com o triunfo daquele. Northrop Frye escreve que ela é. um valor (ou um conjunto deles). ou como estória romanesca. então.. 190). por que o historiador não se vale de técnicas complexas de elaboração de enredo. 185).: a estrutura formaliza certas relações típicas. evidentemente. 1973. a fragilidade teórica das proposições de Frye. o herói pode assumir muitas feições: pode consubstanciar-se em uma classe. povo. Entretanto. Hayden White sugere que a classificação da historiografia em uma forma de arte limitada não se dá pela matéria a respeito da qual se ocupa o historiador. 4 Em nota. instituição.em Meta-História . nem das fontes mediante as quais elabora seu texto. 1995. 3) e a exaltação do herói” (FRYE.] a análise de Frye das principais formas de literatura mítica e fabulosa serve muito bem para a explicação das formas simples de elaboração de enredo encontradas em formas de arte ‘limitadas’ como a historiografia”. Hayden White reconhece a existência de outras estruturas de enredo e. diz ele. sobretudo pelo receio de “distorcer” o que realmente aconteceu no passado. etc. mas não decide quem irá figurar como inimigo ou herói. por mais críticos que sejam de suas fontes. sendo fundamentada por uma série de maravilhosas aventuras em que o herói supera um inimigo. “O herói trágico”. do que simplesmente repudiadas” (FRYE. 2004). é de ordem conciliatória e não a vitória do herói sobre o inimigo. implicando que ao homem não é possível mudá-las mas que lhe cumpre agir dentro dela. porém. unificados. e na comédia o fim encaminha-se à conciliação. a “tendência da comédia é incluir tanta gente quanto possível em sua sociedade final: as personagens obstrutoras são mais amiúde reconciliadas. para White. no fim de contas. concordes consigo mesmos e com os outros (WHITE. 1973. a condição da sociedade é então representada como sendo mais pura. Nessa relação há a tendência a individualizar uma das partes em uma personagem humana. mas o desfecho aponta para uma saída: a conciliação. como naquela. podem assumir colorações de matizes variadas. p. p. As partes.Na comédia. ou ao próprio destino. Se na estória romanesca o herói (o bem) sobrepõe-se ao inimigo (o mal). Na tragédia também há uma relação entre partes. mais sã e mais sadia em conseqüência do conflito entre elementos do mundo aparentemente opostos de forma inalterável. O desenlace final. todo esforço humano está fadado a ser subsumido a uma força impessoal. ou convertidas. a comédia desenvolve-se sob uma tensão em que a platéia ou o leitor é implicitamente convidado a tomar partido em favor de uma parte em detrimento da outra. p. p. harmonizáveis uns com os outros. 25). 131 . Assim. dos homens com seu mundo e sua sociedade. também há relações conflituosas entre partes. 1995. vencendo-o. “não pode simplesmente esfregar uma lâmpada e invocar um gênio que o tire do apuro”. 25). De acordo com Frye. 165). porém. estes elementos revelam-se. assim como na estória romanesca. indicando a supremacia da “ordem natural das coisas” a despeito do esforço humano em superá-la. em historiografia. 1995. na tragédia. Impõem limites quanto ao que se pode aspirar e ao que se pode legitimamente visar na busca de segurança e equilíbrio no mundo (WHITE. O final da tragédia direciona o homem a certas condições que. se declaram inalteráveis e eternas. Hayden White afirma que as conciliações que acontecem no final da comédia são reconciliações dos homens com os homens. diz Frye (1973. Ele afirma. como em um silogismo: premissa maior. segundo H. sem vitória do bem sobre o mal e. Esta contraposição entre estória romanesca e sátira não é despropositada. 1973. O nível epistêmico Outra estratégia identificada pelo autor de Meta-História nos discursos historiográficos diz respeito ao que ele denominou “explicação por argumentação formal”. p. onde a lei da premissa maior será aplicada. estória romanesca. caracteriza-se por pressupor a “inadequação última da consciência para viver feliz no mundo ou compreendê-lo plenamente” (WHITE. Frye (1973. p. p. em partes. contém ou consiste em alguma lei supostamente universal de relações causais. premissa menor. sem essa polarização de forças: o ceticismo ronda as caracterizações do mundo em enredos vazados no modo satírico. e uma conclusão. 219) chega a afirmar que “como estrutura. de acordo com White. 1995. Isso ocorre. “mediante a invocação de princípios de combinação que servem como leis putativas da explicação histórica” (WHITE. ação (agency). mais que isso. N. porém. na qual o historiador estabelece relações de causa e efeito entre os elementos que compõem o campo histórico (ato. p. Na primeira a existência é idealizada: há a vitória do bem contra o mal. ainda. Assim como no nível da “explicação por elaboração de enredo”. um sentido reconhecível entre autor e leitor. tragédia e sátira são as quatro estruturas de enredo pré-genéricas por meio das quais os dados de uma crônica préorganizados em uma estória são finalmente postos em narrativa. por meio de um argumento nomológico-dedutivo. agente. recebendo. White. Ela é ultrarealista. “na qual os eventos realmente ocorridos são deduzidos por necessidade lógica” (WHITE. propósito e cena). aborda-se melhor o princípio básico do mito irônico [satírico] como uma paródia da estória romanesca”. assim. 11). o emprego de mais de um modo de enredo. por fim. deve haver um que predomine no texto tomado como um todo. 1995. Nesse nível o historiador busca explicar o que aconteceu no passado e o que aquilo significa. 26). Hayden White identificou quatro paradigmas de “explicação por 132 . ou seja. uma “dedução lógica”. entretanto. que em uma mesma narrativa historiográfica pode haver. Na sátira. 25). Enfim. desce-se do mundo idealizado à experiência concreta. comédia. 3.A sátira. Para o historiador que usa o modo formista de explicação. do gênero de concepção geral da realidade que encontramos em historiadores quando eles falam como filósofos – isto é. 29). nesse caso. objetivam tornar mais claro ao leitor os seus contornos e as suas especificidades. do colorido e da vividez do campo histórico é tomada como o objetivo central do trabalho do historiador” (WHITE. especialmente capítulo 1 da parte 1 e capítulo 1 da parte 2. O que há. e. Hayden White afirma que a argumentação formal se dá mediante uma relação de causa e efeito. Ver Pepper (1966). 133 . “os tipos ideais de Pepper proporcionam uma classificação bastante conveniente dos sistemas filosóficos ou das visões de mundo mais simplistas. 1995. As caracterizações dos objetos que compõem o campo de percepção do historiador cumprem a função de “lentes de aumento”. que o formismo não lida com a formulação de hipóteses de causação. que o argumento formal quando praticado em modo formista não explique seu objeto. 2001. 1995. como em um silogismo. parece ser uma inadequação conceitual que ficou sem resolução satisfatória. p. segundo H. Destarte. organicismo. mecanicismo e contextualismo5. do qual é uma variação. diz White. 5 Hayden White valeu-se dos “paradigmas explicativos” de Stephen C. 6 O formismo é um dos tipos de argumentação formal e. São eles: formismo. De acordo com White. a ênfase na identificação e descrição dos elementos que compõem o campo histórico recai sobre as diferenças desses mesmos elementos. entretanto. o tropo formista pode estar presente “em qualquer historiografia em que a descrição da variedade. simultaneamente. apresentados em World Hypotheses (1966). “Mas”. portanto. deveria estar em consonância com o conceito geral.argumentação formal”. quando invocam alguma idéia geral do ser. cada um em sua unicidade. Pepper. estabelecendo ligações intrínsecas entre seus componentes: o modo formista representa o mais alto grau de dispersão em suas análises entre as explicações formais mencionadas por Hayden White6. p. White afirma que as concepções das “formas básicas de reflexão filosófica” de Pepper não são apropriadas para se compreender os “sistemas” complexos de filósofos do porte de Aristóteles ou Kant. White. sua obra está satisfatoriamente realizada quando os fenômenos observados foram densamente descritos. p. nota 07). Mas essa caracterização quase exaustiva das particularidades dos eventos em geral não se presta como ponto de partida para generalizações. recorrem a alguma teoria geral relativa a verdade e verificação. A exemplo do que observou em relação a N. Porém. 29). 29. Isso não significa. consiste em uma busca pela singularidade dos objetos em investigação. Frye. nas suas particularidades mais que em suas semelhanças: “a tarefa da explicação histórica consiste em dissipar a percepção das similaridades que parecem ser partilhadas por todos os objetos” (WHITE. inferem implicação ética de verdades supostamente estabelecidas e assim por diante” (WHITE. tornando-o compreensível. O modo formista de explicação histórica. White usa a conhecida relação entre a Superestrutura e a Infraestrutura. 33). Mas isso não se reduz a uma busca por uma lei de caráter universal e atemporal. parece projetar uma causação contextual. Já as explicações por argumentação formal no modo organicista têm. 33). p. Assim. um compromisso metafísico com o paradigma da relação microcósmico–macrocósmica. O contextualismo. 134 . por excelência. como exemplo de explicação por argumentação formal do tipo mecanicista. o historiador mecanicista “aplica essas leis aos dados de modo a tornar suas configurações compreensíveis como funções dessas leis”. 1995. é. após encontrar as leis que governam a história. “uma relativa integração dos fenômenos discernidos em províncias finitas de ocorrência histórica em função de ‘tendências’ ou fisionomias gerais de períodos e épocas” (WHITE. o contexto. capazes de explicar o passado e o presente. o historiador acredita ser possível explicar o que aconteceu no passado inserindo seu objeto de investigação no contexto em que foi produzido. p. cujas transformações nas relações materiais de produção e existência (Infra-estrutura) condicionam as transformações nas instituições sociais e culturais (Superestrutura). segundo White. por seu turno. desta maneira. formulada por Marx. o mecanicismo. p.Menos dispersivo o contextualismo efetua. Um dado objeto em questão recebe sua caracterização. Em vez disso. Ao valer-se do modo contextualista. a partir desse objeto são tecidos fios ligando-o a outros eventos e estes a outros mais até se formar uma rede que avança horizontal e verticalmente no tempo e espaço. e o historiador organicista tenderá ser regido pelo desejo de ver entidades individuais como componentes de processos que se agregam em totalidades que são maiores ou qualitativamente diferentes da soma de suas partes (WHITE. pode explicar os fenômenos e seus significados. quando bem compreendido (e aqui parece residir um campo de batalha). 1995. o contextualismo procura determinar as características peculiares do tempo sobre o qual se debruça historicizando-o. 30). isto é. seu significado e sentido porque está imerso em condições que possibilitaram sua ocorrência da maneira que ocorreu. Nele. no âmago de sua estratégia. as leis causam tais ou quais contextos. De acordo com Hayden White (1995. explicitando as relações inter-funcionais das situações existentes. O modo de argumentação que identifica leis de caráter universal. mas que a relação contrária ou inversa não prevalece. Estado-Nação. Isto é. para o organicista.). O historiador evidencia sua preferência a uma ou outra posição ao atribuir tal ou qual valor à instituição social existente. 4. relacionando 135 .A congérie de eventos. à maneira mecanicista. pp. Por conseguinte. presente e futuro. radicalismo e anarquismo. 1995. o passado – objeto de análise e síntese – serve. como um meio de legitimação ou como catalisador para mudanças no presente. mas princípios ou idéias que norteiam os processos e que estão presentes tanto nos eventos tomados isoladamente como no processo como um todo. 36-37). e finalmente diferentes orientações temporais (uma orientação para o passado. independente da feição que esse telos venha a assumir (Razão. O nível ético A terceira. 38). Sendo assim. o estadunidense identifica a presença de quatro modalidades de implicação ideológica no trabalho historiográfico: conservantismo. etc. cada uma das implicações ideológicas representam diferentes noções das lições que as ciências humanas podem ministrar. liberalismo. Eternidade. É neste nível do discurso que se localiza o elemento político/ ideológico assumido pelo historiador em relação às condições de seu mundo contemporâneo. seja para mantê-lo no estado em que se encontra)” (WHITE. está imersa em um processo que se encaminha para um fim. Não há leis universais que regem a história. diferentes concepções da desejabilidade de manter ou mudar o status quo social. tenha ele consciência disso ou não. pode-se afirmar que qualquer uma das quatro implicações ideológicas trata o passado. o presente ou o futuro como repositório de um paradigma da forma ‘ideal’ de sociedade) (WHITE. p. com vistas a um futuro mais ou menos próximo. diferentes concepções da direção que as mudanças do status quo deve tomar e os meios de efetivar tais mudanças. e última. White conceitua ideologia como um “conjunto de prescrições para a tomada de posição no mundo presente da práxis social e a atuação sobre ele (seja para mudar o mundo. neste nível do discurso. 1995. Seguindo a obra de Karl Mannheim (1986). para um telos. estratégia que direciona a construção do discurso historiográfico é a “explicação por implicação ideológica”. As outras duas ideologias tendem. também aponta para modificações estruturais. Mannheim denominou de “congruência social”. O conservantismo é a implicação ideológica menos aberta às mudanças.permanência e ruptura em graus diferentes com valores distintos. 136 . White afirma que os conservadores “insistem num ritmo ‘natural’” das modificações sociais e que tais modificações não devem alterar as relações estruturais sob as quais uma determinada sociedade está assentada. o radicalismo materializa-se nas idéias socialistas/ comunistas de linhagem marxista. 39). Em concordância com o conservantismo. como nas gradualizações botânicas. ou o ritmo do processo educacional e das disputas eleitorais entre dois partidos empenhados na observância das leis estabelecidas de governação” (WHITE. sugere o “ritmo ‘social’ do debate parlamentar. O anarquismo projeta essa “comunidade ideal” no passado. mas deseja “abolir a ‘sociedade’ e substituí-la por uma ‘comunidade’ de indivíduos cuja coesão é mantida por um sentimento compartilhado de sua ‘humanidade’ comum” (WHITE. Ele tende a ver a mudança fulcral em iminência. p. à “transcendência social”. por um ato de autocontrole e autoconsciência. A diferença entre uma e outra está na velocidade que tal ou qual mudança deve ter e como ela deve ocorrer. no entanto. embora todas levem a sério a inevitabilidade das mudanças sociais. O anarquismo. em um estado primeiro. porém não visa a substituição de um sistema político por outro. O radicalismo objetiva uma transformação social de cunho estrutural. mas que pode. 1995. na derrocada do sistema capitalista de produção. São elas: radicalismo e anarquismo. Já o liberalismo está aberto às mudanças sociais em grau superior ao conservantismo: se este sugere que as transformações se dêem em um “ritmo natural”. como o próprio nome sugere. segundo Mannheim. aniquilar as bases sobre as quais a situação vigente se institui e simultaneamente erigir uma nova relação entre os indivíduos. 1995. Para Mannheim. por sua vez. do qual foi corrompida. o liberalismo não prevê modificações nas relações estruturais da sociedade: conservantismo e liberalismo são modalidades de implicação ideológica que tendem ao que K. que reconstitua a sociedade sobre novas bases. 39). p. ao contrário. o liberalismo. todavia. assumindo “suas responsabilidades diante da crítica desfechada por outras posições. 37). Isto é. 38)7. Em nenhum caso. existem quatro possibilidades em cada uma das estratégias: estória romanesca. não obstante. conservantismo. radicalismo e anarquismo não apenas inferem conseqüências do passado para o presente e futuro como também buscam sustentação discursiva por estarem ancoradas em uma modalidade cognitiva que carrega consigo o respaldo de ser ciência ou. b) Os estilos historiográficos Explicação por elaboração de enredo (estética). seja na elaboração de enredo. Mannheim. pois participam do debate intelectual a fim de sustentar a autoridade de suas respectivas posições de modo racional. 137 . elas se manifestam de forma “pura”. presente e futuro. as quatro implicações ideológicas identificadas por White trazem em si certas maneiras de relacionar passado. ao menos. p. 1995. lembra White. todas elas se apóiam em pressupostos científicos ou realísticos. diante dos ‘dados’ em geral ou do controle pelos critérios lógicos de consistência e coerência” (WHITE. as quatro implicações supramencionadas foram classificadas por White como “cognitivamente responsáveis”. comédia. por fim. que é vista como um sistema eternamente válido de organização social. da forma que está sendo narrado. 7 Com base em K. na elaboração de enredo. p. tragédia e sátira. pode conter passagens cômicas ou trágicas e. o reacionário na da prática de uma classe ou grupo. 1995. Essas posturas. Além disso. conservantismo.Em suma. na implicação ideológica. e anarquismo. o reacionário e o fascismo. no argumento formal. Uma narrativa vazada em estória romanesca. formismo. ser identificada como estória romanesca quando o discurso é tomado em sua inteireza: o que há é a preponderância de um modo sobre os outros. e o fascista na autoridade indisputada de um chefe carismático” (WHITE. Como se viu. como o apocalipticismo. liberalismo. por argumentação formal (epistêmica) e por implicação ideológica (ética) são. mecanicismo e contextualismo. pois fundam suas argumentações em premissas não-racionais: “o apocalipticista baseia suas prescrições para a ação na autoridade da revelação divina. as três estratégias presentes de modo manifesto no discurso historiográfico. por exemplo. argumentação formal ou implicação ideológica. Assim sendo. organicismo. Hayden White menciona a existência de outras implicações ideológicas. contudo. versar sobre algo que aconteceu. não são úteis para se analisar os discursos historiográficos. radicalismo e liberalismo. por exemplo. preponderantemente. porém. um argumento formal contextualista e uma implicação ideológica conservadora. se as três estratégias se combinam em cada uma de suas quatro possibilidades formando o que White denominou “estilo historiográfico”. White reitera. um enredo satírico. empregou. uma estória vazada no modo romanesco. uma implicação ideológica com feições anarquistas. não se pode perder de vista que a elaboração de enredo. sinédoque e ironia. Avançando um pouco no uso do gráfico talvez se possa estabelecer as seguintes correlações: Tropo Modo de Elaboração de Enredo Estória romanesca Tragédia Comédia Sátira Modo de Argumentação Formal Formismo Mecanicismo Organicismo Contextualismo Modo de Implicação Ideológica Anarquismo Radicalismo Conservantismo Liberalismo Metáfora Metonímia Sinédoque Ironia 138 . era de se esperar que a implicação ideológica fosse liberal. pelo quadro das afinidades exposto acima. metonímia. analisado em Meta-História . quando. O gráfico que expõe tais afinidades foi organizado por White da seguinte maneira: Modo de Elaboração de Enredo Estória romanesca Tragédia Comédia Sátira Modo de Argumentação Formal Formismo Mecanicismo Organicismo Contextualismo Modo de Implicação Ideológica Anarquismo Radicalismo Conservantismo Liberalismo Assim. White afirma que essas três estratégias se combinam de forma a tornar inteligível/ familiar o discurso do historiador de acordo com as afinidades nas “homologias estruturais” entre cada uma das quatro possibilidades das três estratégias. Destarte. por sua vez. O próprio Burckhardt.Além disso. tenderá a ser argumentada no modo formista e ter. argumentação formal e implicação ideológica são predeterminadas pré-criticamente pelos quatro tropos mestres: metáfora. que tais combinações não são necessárias e invariáveis no discurso de um historiador. Por isso. esforçou-se por mostrar que não há critérios objetivos ou “científicos” para fixar. não decidem. c) Pressupostos e implicação 1. qual o tropo apropriado para a historiografia: a escolha em compor o texto historiográfico sob um ou outro tropo é extra-epistemológica. p. A neutralidade das fontes e a não-cientificidade da historiografia O primeiro pressuposto da teoria de White diz respeito ao valor atribuído às fontes e aos fatos na constituição e composição do discurso historiográfico. ele não procurou estabelecer uma hierarquia entre eles. eles em si têm valor neutro. não têm pré-organização e tampouco impõem ao historiador o que deve ser tomado como relevante ou não em seu texto. 2001. White sugere que os dois elementos que qualificam uma modalidade cognitiva 139 . o modo de argumentação formal que será empregado na explicação dos eventos. Pelo contrário. codifica alguns como causas e outros como efeitos. ‘desloca’ alguns fatos para a periferia ou para o plano de fundo e leva outros para mais perto do centro. tampouco uma base ideológica sobre a qual o texto será assentado. o historiador lança mão de instrumentos no intuito de dar-lhes uma coloração realística ou. inclui alguns eventos e exclui outros). Ele sugere que os fatos e as fontes do passado não indicam ao historiador o modo por meio do qual seu discurso deve ser estruturado.Em que pese Hayden White tenha identificado um número limitado de maneiras de estruturar os discursos historiográficos. Isto é. Por conseguinte. Tendo como ponto de partida as ciências naturais. As fontes se apresentam mais ou menos como uma massa informacional amorfa: é o historiador que ‘condensa’ os seus materiais (isto é. científica. Essa afirmação aponta a dois pressupostos e uma implicação relevante. a elaboração de enredo mediante a qual o discurso será narrado. O segundo pressuposto diz respeito à cientificidade da historiografia. para alguns. por exemplo. une alguns e separa outros – a fim de ‘representar’ a sua dissertação como uma distorção plausível (WHITE. organizando-os do menos ao mais adequado. em primeira ou última instância. 129). Em outros termos: como os fatos e fontes não orientam o historiador na construção do significado discursivo. As diferenças não são. não tem uma linguagem técnica para referir-se aos objetos que povoam seu campo de percepção. Por fim. sem que haja infração factual. traz implicações sérias acerca das possibilidades e da natureza do conhecimento produzido pelos historiadores: a polêmica em relação à teoria de White não é despropositada. mas extraepistemológicas. deve-se observar que a não-cientificidade do conhecimento histórico está diretamente ligada à suposta neutralidade das fontes – no sentido aqui designado. ela está sujeita às figurações presentes em qualquer tentativa de apreensão do mundo que não tem um léxico próprio e irredutível. diferentemente da física. 2. maior liberdade na construção de narrativas historiográficas 140 . que permitiria. Implicação: a verdade na historiografia Tudo isso. da linguagem natural ou comum. Sendo assim. ausentes nos discursos produzidos pelos historiadores. ainda assim. Ambos os elementos estão. cabe àquele criar um. não provém das fontes. segundo ele. O significado do texto historiográfico. ele recorre ao que tem disponível: à linguagem natural e aos métodos operacionais. epistêmicas. sobretudo éticas e estéticas. Uma mesma história do Brasil. A historiografia. Porém. Para tal. Ela se vale. por conseguinte. pode ser narrada sob perspectivas díspares entre si. sobreposição ao material empírico ou incorreção metodológica. Suas idéias deslocam e reduzem a relevância e o papel anteriormente atribuído aos vestígios do passado e enfatizam a importância do movimento de estruturação discursiva. em vez disso. química e matemática. não há critérios objetivos para se definir qual interpretação é mais correta que outra. evidentemente. por sua vez. Evidentemente essa linguagem é formatada aos padrões aceitáveis a um discurso acadêmico.de científica são a linguagem técnica e o consenso entre os praticantes de uma dada comunidade intelectual sobre o método apropriado na caracterização e explicação do campo de observação. por exemplo. porém de uma construção interpretativa operada pelo historiador por meio da linguagem natural (sujeita às figurações) e dos métodos (passíveis de contestação). portanto. mas. Ver também Domanska. a verdade em historiografia estaria presente apenas nos enunciados tomados isoladamente. LaCAPRA. p. o discurso historiográfico não é apenas um conjunto de fatos dispostos cronologicamente. sobretudo por sua característica excessivamente estruturalista. tem repensado o papel dos tropos na composição do discurso historiográfico. 91-100). Para este mesmo pesquisador. 1994). Não seria. porém. No nível do significado não haveria critérios científicos e/ ou objetivos capazes de dirimir eventuais conflitos historiográficos. O foco de sua atenção teria se voltado à instância ideológica. o tropo. sugere que em artigos da década de oitenta White teria abandonado o tropo como instância precedente e condicionadora do significado de um texto. a simples soma daquelas. pode-se recorrer à confrontação entre sentenças e as fontes que as possibilitaram. Esses mesmos fatos são agrupados em uma forma de apresentação coerente. (1994. portanto. até então não conhecido. As partes. por seu turno. frente às críticas mais recentes. meio e fim identificáveis enquanto tal. 8 É preciso observar que Hayden White. White não nega que as sentenças possam conter afirmações verdadeiras. Koufou. nota 36). como Hans Kellner. Considerações finais Em síntese. a posição política o elemento condicionante do significado do discurso (Cf. Essas assertivas trazem uma implicação fulcral: trata-se da questão da verdade em historiografia. É por meio da narrativa que o conjunto de dados e fatos do passado ganham sentido e recebem significado. consubstanciando-se. p. Alguns comentadores de suas obras. 1985. White interpreta o discurso historiográfico constituído verbalmente por dois níveis indissociáveis: as partes (as sentenças. para ele. mas este não é. Dominick LaCapra. KELLNER. geralmente. cuja seqüência lógica exige começo. enfatizam a mudança de foco: da teoria trópica (de Meta-História e Trópicos do Dscurso) para a teoria da narrativa (de The Content of the Form e Realism Figural). obviamente. é um código para a teoria trópica ou vice-versa (Cf. compõem o todo. Por isso. os enunciados) e o todo. 35. Contudo. a teoria narrativa. Para isso. Miliori ( 2000). em uma narrativa dotada de significado. a teoria de Hayden White toma o discurso historiográfico como uma modalidade verbal em prosa cujo objetivo é transformar algo que aconteceu no passado. antes.e seus respectivos significados independentemente de qual o evento narrado8. A decisão a favor de tal ou qual significado estaria a cargo de critérios extra-epistemológicos. 141 . cena. Por conseguinte. em um evento compreensível no presente. na elaboração de enredo. mecanicismo e contextualismo. metonímia. com uma explicação e um dado significado é. por meio da crônica. indicando possíveis estratégias de explicação e significação do objeto investigado. combinando-se de certas maneiras. organicismo. uma conseqüência da estruturação discursiva operada pelo tropo que a organiza e condiciona as estratégias explicativas. o que White denominou estilo historiográfico. e do estabelecimento dos motivos iniciais. ato. Para realizar tal objetivo. for mismo. antes. Hayden White sugere que a transformação dos dados dispersos em uma narrativa historiográfica com coesão e coerência. Já as três estratégias propriamente explicativas se consubstanciam na elaboração de enredo. Isso ocorre por que os fatos e fontes do passado não trazem inscritos em si mesmos o modo por meio do qual o historiador deve contá-los: eles têm valor neutro. comédia. caracterizando. Embora possa organizar o campo histórico de certas maneiras. Desta forma. conscientemente ou não. propósito e ação). segundo White. familiar entre autor e um leitor suposto. que corresponde. As estratégias explicativas mantêm entre si dadas afinidades. no argumento formal e na implicação ideológica do discurso. Cada um dos tropos condiciona a organização do discurso historiográfico. na argumentação formal. intermediários e conclusivos. assim. sinédoque e ironia. Elas buscam constituir uma explicação plausível e coerente nos níveis estético. conservantismo. epistêmico e ético. o historiador organiza a estrutura de seu discurso pré-criticamente. tragédia e sátira. há um número limitado de fazê-lo.não-familiar. Cada uma delas possibilita quatro maneiras de ser discursivizadas: estória romanesca. transferindo-o à escolha do tropo 142 . aos quatro tropos mestres: metáfora. White desloca o valor comumente atribuído às fontes no discurso historiográfico. Essa organização estabelece o tipo de relações preponderantes entre os elementos que compõem o campo histórico (agente. ou seja. respectivamente. antes de uma averiguação das fontes. mediante o arranjo da estória: ambas as etapas organizam previamente os denominados “elementos primitivos” (dados nãoprocessados) do relato histórico. isto é. Inicia-se com o recorte temporal. na implicação ideológica. anarquismo. radicalismo e liberalismo. de linguagem e de relação entre mundo e apreensão cognitiva deste. questões antigas e esquecidas em novas bases (KOSELLECK. não há tropo mais adequado que outro. Mais que uma descrição da operação historiográfica. Porém. metonímia. Ou seja. 2002). como lembrou certa vez um renomado historiador. O nível profundo e o manifesto do discurso integramse em um método formalista. Embora ele reconheça que o modo irônico seja preponderante na historiografia acadêmica atual. Hayden White reformula. O que determina o uso da metáfora. que estão além de uma teoria cognitiva passível de ser classificada como indiscutível e apropriada de modo irrestrito. White afirma que a seleção do tropo não advém das fontes. para White. Todavia. não é o corpus de análise do historiador que determina a estruturação de seu discurso e seu significado. no qual se ressalta a relevância das estruturas por meio das quais o trabalho do historiador organiza seu campo e confere significado ao passado. A partir. por não possuir uma linguagem técnica que dirima eventuais litígios. da sociologia do conhecimento e da epistemologia para compreender a natureza da historiografia. mas. por não conseguir estabelecer consensualmente o modo lingüístico adequado para compor seu discurso. a historiografia está cativa da linguagem natural. se a organização do discurso historiográfico ocorre mediante a escolha de um ou outro tropo. White vale-se de termos e idéias oriundas da teoria literária. cabe. isto é. que. portanto. perguntar qual é o mais adequado para o historiador estruturar seu trabalho. então.mediante o qual a organização verbal será efetuada. antes. de uma certa concepção de ciência. Isso ocorre porque a historiografia se materializa – enquanto campo reconhecível entre um grupo de profissionais e um público específico – por meio da linguagem natural. efetua necessariamente um movimento trópico (figurativo) ao tentar caracterizar. mas de uma escolha extra-epistemológica. a organização trópica. 143 . explicar e conceder significado ao seu objeto. sinédoque ou ironia como estrutura lingüística a partir da qual o discurso irá se comportar é uma opção que tem origem em motivações não-científicas. Rio de Janeiro: Forense. Hayden White: the ironic poetics of lat modernity. 1994. La memória. Hayden White. Anatomia da crítica. 116 f. Introduction to Hayden White’s Tropics of Discourse. History. ed. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Brasília. RICOEUR. Dominick. In: The Johns Hopkins guide to literary theory and criticism. Reinhart. In: ______. Diacritics. Paul. 2000. 1985. MANNHEIM. CERTEAU. Da utilidade e desvantagem da história para Hayden White. 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Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. narrative. primeiramente.br 2 Dr. Num segundo momento procuraremos elaborar uma nova abertura conceitual por meio da demonstração das possibilidades que se abrem à sua exploração. em História e professor de Teoria da História na UEG . a tradição científica e filosófica do século XIX para.arrais@bol. procuramos demonstrar que eles estão no cerne das principais questões envolvendo o problema da escrita e da teoria da história atual. Palavras-chave: tempo.com. o primeiro destes dois conceitos será abordado dando ênfase. Para os restritos objetivos deste trabalho.br 1 146 .TEMPO E NARRATIVA NA HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA TIME AND NARRATIVE IN CONTEMPORARY HISTORIOGRAPHY Cristiano Alencar Arrais1 Eliézer Cardoso de Oliveira2 Resumo: O presente artigo procura abordar o processo de construção dos conceitos de tempo e narrativa na historiografia. They concepts helps in your tematic and metodologic renovation. situá-lo no interior da tradição historiográfica do século XX. Keywords: time. auxiliando em sua renovação temática e metodológica. para a forma como tais conceitos são utilizados dentro da prática historiadora e suas possibilidades analíticas. Through a analises of discussions realised in the last years concern that two concepts. narrativa. Através da análise do debate realizado nos últimos anos acerca destes dois conceitos. E-mail: ezi@uol. fundamentalmente.Anápolis. explanes how they are the focal point of questions envoirement the problem of write an teory of history current.com. Nossa preocupação volta-se. professor de Teoria e Metodologia da História na UFG. teory of history O presente estudo tem como objetivo identificar as principais reflexões sobre dois conceitos centrais dentro da historiografia contemporânea: tempo e narrativa. em História pela UFMG. teoria da História Abstract: This article abord´s the construct process of the concepts of time and narrative in the historiografy. somente então. Dr. E-mail: alencar. mostrando o nascimento da narrativa histórica na Antiguidade Clássica. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. O tempo como problema histórico Um respeitável historiador do século passado afirmara certa vez em seu pequeno manual publicado postumamente que a história é a ciência que estuda os homens inseridos no tempo. 147 . Quem não conseguir isso será apenas. no máximo. a duração. a segunda categoria fundante do conceito de história foi relegada a um segundo plano. Dessa perspectiva vieram as grandes contribuições do grupo original dos Annales e da História Nova para a historiografia. até hoje. conforme abordaremos mais adiante. Da inovação metodológica iniciada por ele e seu colega de metiére. sabe que ali está a sua caça (BLOCH. juntamente com o eclipse da narrativa. influencia os historiadores. um serviçal da erudição. duas categorias eram apontadas como fundamentais: os homens e o tempo. apesar de toda a inovação metodológica. o seu eclipse no século XX e o seu ressurgimento a partir da década de 1970. 54).Quanto ao conceito de narrativa. 2001. p. utilizaremos uma metáfora lunar. Daquela simples e limpa definição do conceito de história. Entretanto. não foi tratada como objeto com o qual os homens se pensam. Objeto no qual se pensa os homens. Onde fareja carne humana. 1944.175-176). por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram. por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem. Isto porque. A nossa indagação básica será: o fato da História ser uma narrativa teria conseqüências teóricas e metodológicas? Aproveitaremos esse panorama para analisar as conseqüências desse retorno da narrativa para uma melhor compreensão teórica da História. p. fundou-se uma das mais hegemônicas tradições historiográficas dos últimos tempos e que. são os homens que a história quer capturar. aquela tradição historiográfica permanecia agregada ao padrão epistemológico de seus antecessores que viam o tempo como um problema de ordem fundamentalmente cronológica (LANGLOIS & SEIGNOBOS. caracterizada pela dinâmica dos grandes agrupamentos e sínteses. Em época de racionalização do conhecimento. 25).O mais próximo que se pôde chegar de uma reflexão histórica sobre o tempo foi a obra de Fernand Braudel. ou dia a dia. 1983. sobreposto àquelas duas camadas. que reflete os episódios compreendidos em blocos sintéticos como o Romantismo. ao acontecimento que. p. de relação com as coisas inanimadas (BRAUDEL. não quis desprezar essa história. Acima dela encontrar-se-ia uma outra história. Em seu prefácio ensina que “A história trabalha em escalas e com unidades de medida não raro diferentes. de ciclos sempre recomeçados. assim como em Gramática das Cvilizações. Esta história formaria a base estruturante de toda a sua reflexão. tornou-se lugar-comum dentro da prática historiadora e de nossas próprias vidas cotidianas. que é a do homem nas suas relações com o meio que o rodeia. na verdade. poder-se-ia encontrar uma terceira dimensão. Ela é. agitam a superfície3. quase imóvel. ou por dezenas de anos ou por séculos inteiros”. a Revolução. não está no centro de nosso interesse. A primeira dessas dimensões estava direcionada para uma história. de ritmo lento. 3 148 . relacionada ao indivíduo. a construção de um sistema mecânico hipotético que garantiria a explicação de Também em Gramática das Civilizações Braudel utiliza a tripartição temporal. de lentas transformações. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico à Época de Felipe II. Um plano A. A obra de Braudel. quase fora do tempo. de uma história que passa rapidamente de um acontecimento a outro. uma história lenta. Tal concepção foi formulada seguindo os princípios da concepção mecanicista do universo que reforçaram a crença na idéia de tempo homogêneo. Braudel procurou incorporar à história as suas conquistas. E por último. um plano B. ou ano a ano. muitas vezes feita de retrocessos. Influenciado pelo avanço da perspectiva estruturalista proveniente da antropologia. com mensuração precisa e contínua. apenas um mote para compreendermos como uma determinada concepção de tempo. Num esforço de síntese sobre o trabalho do historiador com o tempo. como as ondas do mar. entretanto. Braudel define três planos temporais. movendo-se numa tripla dimensão temporal. por meio da perspectiva temporal tripartite utilizada em sua tese de doutoramento. cristalizada ainda no início do século XIX. a priori”. ao mesmo tempo. em seus Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. por conseguinte. O tempo. chamando-se com o mesmo nome ‘duração’. um dos seus componentes. tal concepção produz uma analogia entre tempo e espaço. nem as relativas podem ser percebidas antes da existência das coisas a que pertencem e. segundo Kant. derivado de uma experiência externa. o tempo é entendido como entidade unidimensional e. (KANT.determinados fenômenos naturais foi colocado em prática fundamentando-se na matemática4. matematicamente mensurável. da mesma forma não é um conceito derivado da experiência. Como forma do sentido interno que não constitui qualquer objeto externo. O tempo. ele não representa nenhuma propriedade das coisas (não depende dos objetos) porque “nem as determinações absolutas. 03-08). seja desigual). foi realizada por Kant em 1781. visto que não sofre transformação “o fluxo do tempo não se pode mudar” (NEWTON. Disso deduzse a impossibilidade de simultaneidade de tempos diferentes e a concepção de que a separação entre tempos diferentes é apenas a partição de um mesmo tempo. 4 149 . mas o tempo mesmo. não influenciando em seu acontecer. não um conceito empírico. o mês. p. “sem relação com qualquer coisa externa”. como condição geral de sua possibilidade. como são a hora. o espaço e o tempo. não pode ser suprimido”. As sensações de simultaneidade e de sucessão não poderiam ser percebidas caso não houvesse uma representação anterior do tempo que lhes desse fundamento. Ao partir da compreensão de que existem duas formas puras da intuição sensível (estabelecidas de forma a priori). visto que só nele é possível toda a realidade dos fenômenos: “Estes podem desaparecer. o dia. foi quem operou a primeira síntese conceitual que procurava definir o tempo segundo uma analogia com uma reta geométrica. a qual vulgarmente se usa em vez do tempo verdadeiro. p. Por outro lado. que influenciaria o conhecimento cientifico. o tempo não está no tempo. sem relação com qualquer coisa externa. “O tempo absoluto. de natureza infinita. nesse sentido. 147 e 50). O tempo. seria exterior a esse sistema do mundo. de 1686. Como uma instituição pura. representando Sir Isaac Newton. 1983. A elaboração mais sistemática do conceito de tempo. Destacam-se aqui as características do conceito de tempo elaborado pelo cientista: fluindo “sempre igual”. Kant vê no espaço. mas uma representação necessária que serve de fundamento a todas as intuições obtidas externamente. aparente e vulgar é certa medida sensível e externa de duração por meio do movimento (seja exata. 1981. torna-se uma condição a priori. verdadeiro e matemático flui sempre igual por si mesmo e por sua natureza. o tempo relativo. o ano”. Contudo. Contraditoriamente. pois. excetuando só uma. eu sei. p. desaparece igualmente o conceito de tempo. não problematizável. Parece justo que na moderna sociedade industrializada causenos certo incômodo aquela pergunta viceral que Agostinho procurava responder. devemos estabelecer as condições de possibilidade que nos permitem reorientar a concepção até agora formulada do tempo. o tempo é uma das mais importantes criações dos seres humanos. contribuindo para formar o senso de orientação e identidade de indivíduos e sociedades. Tempos plurais e temporalidades diversas Preliminarmente é preciso notar que o questionamento sobre o tempo permite-nos apreender determinados tipos de problemas que não são acessíveis às concepções históricas que consideram o tempo como uma constante independente e. 1981. portanto. 55-56). o tempo? Se ninguém me pergunta. não haveria tempo 150 . já não sei. é uma afirmação de Crítica da Razão Pura. porque esta forma não pertence aos objetos mesmos. mas ao sujeito que os percebe (KANT. e derivamos das propriedades desta linha todas as do tempo. Que é. Antes disso. em parte. conduzirnos a uma nova resposta acerca do problema do tempo: Ele não é mais do que a forma de nossa intuição interna. mais do que uma aquisição da natureza humana. cujas diversas partes constituem uma série de uma só dimensão. 53). p. Se se tira desta intuição a condição especial de nossa sensibilidade. Daí legitima-se a noção dominante de linearidade física do conceito de tempo. enquanto que as do tempo são sempre sucessivas (KANT. 1981. mas se quiser explicar a quem indaga. Retornaremos ao problema da relação entre tempo e a percepção do sujeito mais adiante. numa direção que nos pareça mais producente.a sucessão do tempo por uma linha prolongável até o infinito. a saber: que as partes das linhas são simultâneas. se nada passasse. a priori . afirmo com certeza e sei que. em sua conclusão transcendental que pode. representado por um segmento de reta com extremidades infinitas. Afinal. O fato. portanto. de um segundo significar “a unidade de medida de tempo. Da definição de Elias devemos reter a crítica ao processo de naturalização por que passou o conceito de tempo. oriundo das Ciências da Natureza. Os indivíduos passam por um processo de aprendizagem que identifica o tempo por meio da analogia com a medida dos ponteiros dos relógios. 13). o que comumente compreende-se por tempo é o símbolo de uma instituição social que age no sentido de disciplinar a sensibilidade do indivíduo em relação à duração e que contribui decisivamente para formar nossos hábitos sociais. adaptando-os aos fenômenos naturais. e que se nada existisse agora. relacionando o tempo à sensibilidade. É um erro. pensar que o relógio mede o tempo. essas unidades de referência adquirem a significação de unidades de tempo” (ELIAS. 268). p. não haveria tempo futuro. que se não houvesse os acontecimentos. 2002. p. 1998. não haveria tempo presente (AGOSTINHO. No mundo moderno a resposta é obviamente diferente. igual à fração 1/ 315569259747 do ano tópico de 1900” (FERREIRA. Sob esse ponto de vista. Segundo Elias (1998. Ele é na verdade. Para isso recorrem a uma segunda sucessão de acontecimentos que obedeçam a certos modelos seqüenciais regulares e obedientes a uma mesma lei de repetibilidade. a marcação do tempo atende às necessidades dos homens de comparar processos sociais ou seqüências de acontecimentos que ocorrem no fluxo ininterrupto do devir.passado. A última reflexão de Kant exposta neste texto. no sistema internacional. 1562). apenas um processo físico socialmente padronizado pelos homens para comparar elementos que se relacionam na duração. à intuição interna do sujeito que percebe os objetos que o cercam destaca um problema fundamental 151 . p. Orienta e harmoniza os comportamentos humanos.13). 1997. demonstra apenas o nível de desenvolvimento das instituições sociais que difundem seu conhecimento. O movimento aparente do sol e o movimento dos ponteiros de um relógio são exemplos dessa espécie de mecanismo seqüencial que age como unidade de referência e meio de comparação para seqüências de acontecimentos que não podem ser diretamente relacionados em função de seu caráter sucessivo e irreversível: “Em sua qualidade de símbolos reguladores e cognitivos. p. porém. assim como das experiências que o indivíduo agrega à sua personalidade desde a infância. portanto. Se ao sujeito que intui. no esquecimento. por um lado. portanto. a indivíduos e organizações que podem apresentar concepções temporais diferentes (convergentes. mas que são operados concomitantemente. na distração e de acordo com o seu próprio tempo. Mais do que uma segunda natureza. uma das mais fundamentais criações da humanidade e que pode ser identificada nos objetos culturais produzidos pela sociedade. a realização de uma ação é feita na duração e sofre influência direta das condições estruturais e conjunturais do momento de sua ação. as qualidades temporais de um objeto também podem ser pensadas sob o critério do produto de uma ação. mas também mensurado. divididos seja por seu caráter qualitativo (como 152 . na expectativa. visto que. sente e percebe. na lembrança. Essa reavaliação não é somente uma expansão. como um objeto temporal. o tempo torna-se. portanto. de instrumento de ordem metódica. pensar que todos os tipos de vestígios do passado preservam esta mesma característica. segundo o autor. sendo possível. mas uma transformação no conceito de tempo. não problematizável. Desnaturalizado e desuniversalizado. ele pode ser agora conjugado no plural. refletindo-se na forma como vivemos o tempo: na angústia. Isto porque sob essa nova ótica. na pressa. sensação e percepção serão afetadas. Ao mesmo tempo. são proporcionadas as mais diversas formas de estar-no-mundo. nesta interpretação. superpostos ou conflitantes). Daí a insistência de Pomian (1984) em pensar o conceito de tempo em sua pluralidade. captados em sua temporalidade. então podemos concluir que sua intuição. É o que Ricoeur (1994) quer dizer ao afirmar que não existe tempo que não é narrado: a narrativa é a condição de possibilidade de existência de um tempo que possa ser. a priori. esses vestígios são percebidos sob a ótica do “antes” e do “depois” e. o conceito de tempo abrese aos historiadores a possibilidade de apreender determinados tipos de problemas que não são acessíveis às concepções históricas que consideram o tempo como uma constante independente e. Teríamos. não somente sentido. uma enorme diversidade de tempos.para nossos objetivos. o conceito de tempo passa a estar atrelado a unidades políticas e sociais de ação. no tédio. Como afirma Koselleck (1993:148) “qualquer acontecimento histórico encerra qualidades temporais tanto em sua realização quanto em sua recepção”. Isso porque. Transformados em narrativa através da recepção analítica do historiador. p. uma nova distorção do passado e cujo efeito cumulativo é tão importante quanto o passado mais longínquo e coberto por um número cada vez maior de sucessivas camadas. 1984. ignora a separação entre natureza e história. Estabelecido por meio do entrecruzamento.o tempo político ou o tempo litúrgico) ou quantitativo (do relógio. por si mesma. sofrem a ação ou narram um evento. Mais importante nas reflexões daquele autor é o fato de procurar realçar o caráter construtivo do sentido do tempo a partir do que chama de “Arquitetura Temporal”. aliás. fazendo com que ao mesmo tempo. ao recorrer ao termo “regime de historicidade”. ao tomar o tempo como objeto de reflexão incide em três equívocos. a atenção aos regimes de historicidade 5 Para Ricoeur. não sobre sua forma original. Duas importantes acepções são aqui elaboradas: por regime de historicidade entende-se a forma como uma sociedade trata seu passado e o representa. ele é. um objeto temporal. Por meio da comparação entre os diferentes modos de produção do sentido do tempo. história humana se transforme em apenas um de seus segmentos. o núcleo central do trabalho de Pomian possui uma ação enriquecedora em relação à problemática do tempo. Segundo. uma entidade metafísica. não é. Numa acepção mais complexa. O que o autoriza a falar de uma história cósmica. por fim. ou cosmológico). Primeiro. E toda arquitetura temporal contém em si um presente que foi seu passado. regime de historicidade serve para designar a modalidade de consciência que uma comunidade humana tem de si mesma: Um regime de historicidade. que desce do céu e que possui alcance universal. 1118). Constituindo de diferentes regimes de temporalidade. 331). Apesar das críticas qualificadas feitas por Ricoeur àquela obra5. mas sob aquilo que recebeu no curso de sucessivas reintegrações de formas posteriormente reunidas que provocaram. o autor ignora que uma das propriedades do tempo é sua amorfidade: sua forma e conteúdo são dados pelos indivíduos que agem. 2003. Ele não é a expressão de uma ordem dominante do tempo. a idéia de tempo torna-se. p. Esse enriquecimento é comprovado na influência exercida em Hartog (2003). Por último. superpostos uns aos outros à medida em que a sociedade se desenvolve. neste caso. de uma história da terra. Pomian suprime a idéia de um tempo 153 . presente e futuro – e produzir sentido (HARTOG. cada vez mais recentes (POMIAN. Pomian. da acomodação de diversos componentes. uma forma de traduzir e ordenar as experiências do tempo – de maneira a articular passado. cada uma. a aceleração ou o atraso. neste caso. como conseqüência das mudanças técnicas. continuidade e futuridade de uma conjuntura histórica – o mundo social dos indivíduos do passado: “cada palavra. uma mudança no conteúdo experiencial dos atores envolvidos nessa mudança de significado. portanto. por exemplo. p. por exemplo. revelando. É o que fica claro. 2004)6 . p. a repetibilidade dos acontecimentos (sensação dos “retornos” de conjunturas passadas. inerentes a suas formas de atuação. indica sua possibilidade lingüística para além do fenômeno particular que descreve ou domina” (KOSELLECK. conectores privilegiados para a investigação histórica. Disso resulta que De uma combinação destes três critérios formais é possível deduzir conceitualmente o progresso. Os registros lingüísticos são. momentos de mudança. organizações e sociedades (tanto do passado quanto do presente). e como se produz essa inovação. 2006. segundo os distintos sujeitos envolvidos numa ação). devemos observar a nova semântica introduzida na língua como resultado de novas experiências” (KOSELLECK apud JASMIN & JÚNIOR. mesmo em face da manutenção de sua estrutura escrituraria (KOSELLECK. permanência. 1993. a importância das reflexões da história conceitual. instituições. o ‘antes de’ ou o ‘depois de’. por exemplo. Daí. É que a linguagem pode codificar. Koselleck aponta três tipos de modalidades temporais da experiência: a irreversibilidade dos acontecimentos (identificada pela sensação de um “antes” e um “depois” de um acontecimento). por meio de sua cristalização. o ‘ainda não’ e o ‘não mais’. o ‘demasiadamente rápido’ ou o ‘demasiadamente tarde’. 6 “O que é preciso analisar é qual a capacidade de inovação existente numa língua que pode ter séculos de antiguidade. a situação e a permanência – e quantas determinações diferentes seja necessário – para poder tornar visíveis movimentos concretos (KOSELLECK. 130). 1993. E ao abordar essa relação entre antigas estruturas e novos significados. cada qual com ritmos temporais próprios. a decadência. ou a suposição de sua identidade) e a simultaneidade do anacronismo (percepções distintas sobre a duração do tempo. 154 . desde sua origem. p.garantiria acesso a indivíduos. nos múltiplos significados do termo “história”. 140-141). incluindo cada nome.123). No caso dos monumentos e de conjuntos arquitetônicos. os interesses por trás desses atos. que faz ao mesmo tempo. Mas esse potencial só é transformado em força dinâmica quando ocorre uma reclassificação de seu lugar. haja a necessidade de repensar os problemas relativos às categorias de expressão humana. seguindo esse percurso. esse ato de deslocamento possui uma especificidade visto que sua própria construção é a concretização de um fato-síntese (de atualização do passado ou de projeção do futuro). 1993). via reelaboração de sua pertinência de sentido no contexto presente (DAVIS. As grandes discussões em torno do significado de eventos como a Revolução Francesa e as polêmicas causadas ainda hoje por interpretações conflitantes sobre o tema do Holocausto (WHITE apud MALERBA. de mobilização das possibilidades cognitivas. são os exemplos mais evidentes desse movimento de remodelar o passado de acordo com as necessidades do presente7. Por meio da expansão do conceito de narrativa. participar do presente e do passado através de sua passagem para o nível de um local de memória. para além disso. Os elementos dessa reconstrução temporal podem ser percebidos na forma como os indivíduos do passado descrevem. 2006. Mas além do passado. 2004). por meio da manipulação das experiências coletivas. presente naqueles que se debruçam sobre o passado (WIEVIORKA. argumentativas e simbólicas da representação do tempo. ou seja. o presente e futuro são também elementos possíveis de sofrerem reconfiguração. da narrativa. analisam ou interpretam seu próprio tempo.191-210). por meio das mais diversas formas. quando ocorreu um deslocamento de sentido. 155 . p. A construção das histórias nacionais. conscientes ou inconscientes. podese acessar o tipo de representação do tempo predominante. 7 Por manifestarem um vínculo físico entre o hoje e o ontem. Hartog & Revel (2001). frustradas ou concorrentes em qualquer indício material legado pelo passado. cumpridas. as expectativas projetadas.Essa conclusão não está restrita às fontes escritas. procuram localizar dentro do discurso histórico certa suscetibilidade aos usos políticos. os monumentos possuem um grande potencial evocativo. de monumentos fundadores de um passado glorioso ou obras arquitetônicas evocando determinados nichos da memória nacional. Daí a necessidade de. concomitantemente à reformulação do problema do tempo. como veremos a seguir. confrontando-os com o problema das orientações éticas. E. inserem os historiadores num campo de debate que extrapola os limites da verificabilidade do passado. no drama. na fábula. O choro de Tucídides é emblemático. na corte do rei Alcino. Para sanar esta imprecisão lingüística. na lenda. 1971. no cinema. também 156 . tal solução. Pode-se afirmar. Felizmente. na história. no conto. ainda jovem. na novela. o famoso “pai da história”.. inclusive no português. ao ouvir Heródoto. produzindo um relato coerente e sedutor sobre as ações humanas do passado.. há uma imprecisão lingüística na diferenciação entre “história” como narrativa produzida por um historiador sobre acontecimentos do passado e “história”. quando ouviu as suas aventuras serem contadas por um aedo (uma mistura de poeta com contador de história). uma narrativa. na pintura (recorde-se a Santa Úrsula de Carpaccio). na comédia. Diz a lenda que Tucídides. o termo não é específico do conhecimento histórico. segundo Barthes. não foi bem recebida pelos lingüistas brasileiros. Essa constatação de Barthes fornece um pressuposto importante para se analisar a narrativa histórica: ela é parte de uma necessidade imemorial humana. a narrativa [. no fait divers. sobre qualquer acontecimento. nas histórias em quadrinhos. O exemplo maior é o de Heródoto. Os primeiros historiadores foram exímios contadores de história. sendo que hoje é praticamente desusada. que os seres humanos são animais que sabem e gostam de narrar.A narrativa como problema histórico A “narrativa” é uma categoria bastante atual nas reflexões teóricas e metodológicas da História. 19). na pantomima. p. em troca de algum dinheiro. A narrativa é uma necessidade ontológica e dá sentido ao mundo em que vivemos. pelo contrário. em muitas línguas. no vitral. lembrando Ulisses que. então. chorou de emoção. (BARTHES. Se os gregos pagavam para ouvir. realista ou ficcional. inspirada na língua inglesa. Até hoje. chegou-se a cogitar uma diferenciação entre “história” com “h” (a história “verdadeira”) e a “estória” com “e” (a história “falsa”).] está presente no mito. na conversação. na epopéia. No entanto. era porque consideravam excitantes as narrativas. na tragédia. que lia as suas histórias em praças públicas. A principal qualidade exigida dos primeiros historiadores era o manejo adequado das palavras. instado pelos príncipes dos Féaces. a de que ela possui um começo e um fim extremamente bem definidos e solidamente articulados entre si. denominada de “tradicional” possuía as seguintes características: a) Era mais descritiva do que analítica: sua preocupação básica era produzir um relato plausível sobre os acontecimentos do passado. 83). tirava o manto da cabeça e. As lágrimas de Tucídides e Ulisses ilustram algumas características da narrativa histórica: a história. as aventuras humanas são tão emocionantes como as aventuras dos deuses e dos heróis. para os romanos a história 8 De acordo com Homero (2003. a história narrava as ações humanas grandiosas. em um “objeto”. Heródoto e o aedo teceram a narrativa tocou o coração de ambos. 102). tomando nas vigorosas mãos uma aba de seu manto de púrpura. Ulisses também não havia se esquecido de suas aventuras. b) Enfocava mais o homem (o sujeito) do que as circunstâncias (o contexto. depois. um como que pressupondo a existência do outro. assim como a poesia e o teatro trágico. meio e fim9. p. fazia libação aos deuses. precisamente. depois em Roma e na Idade Média e Moderna.” 157 . enxugava as lágrimas. Para os gregos. com início. No entanto. “uma das características fundamentais da narrativa é. A história era feita em termos de erros e acertos. méritos e deméritos. envergonhado. foram transformadas em algo fora dele. 74).chorou de emoção8. as lágrimas de Tucídides e Ulisses não se explicam apenas pelo conteúdo da história. organizando esse material numa ordem seqüencial coerente. suas aventuras e sofrimento. respectivamente. mas. o choro de Ulisses é emblemático porque a sua vida. também provoca emoção. p. mas o modo como. Para Arendt (1997. de novo Ulisses cobria o rosto e soluçava”. eles descreviam as aventuras e as desventuras dos humanos no tempo. Podemos notar. a estrutura): as explicações sobre os fatos históricos eram feitas em termos de caráter e intenção dos indivíduos. porque as lágrimas lhe corriam dos olhos. na presença dos Féaces. mas principalmente pela maneira como essa história foi contada. Mesmo que os historiadores concebessem forças sobrenaturais agindo na história. portanto. quando o aedo recomeçava. a cada pausa no canto do divino aedo. equivalentes a dos heróis míticos. puxou-o para a cabeça e com ele ocultou seu belo rosto. a quem a narrativa deleitava. p.”Então Ulisses. tomando a taça de duas asas. 9 De acordo com Astor Diehl (1998. que a história produzida na Grécia. É muito provável que Tucídides já soubesse os fatos referentes às guerras entre gregos e persas antes de serem narrados por Heródoto. contendo ensinamentos para distinguir os diplomas autênticos daqueles totalmente ou parcialmente manipulados. Sobre isso. 158 . 73-89). de Tucídides). a filologia. como a numismática. MARTIN. um dos primeiros a fazer uma crítica histórica da Bíblia. (como O Declínio e Queda do Império Romano. a história de uma batalha ou de uma guerra (como a História da Guerra no Peloponeso. 51). Por muito tempo a História foi uma narrativa e nada mais. enche-se de alegria e exaltação. p. etc. dignas de serem imitadas. convencer-lhes da pertinência e da plausibilidade do conteúdo pelo uso premeditado das palavras. Mesmo obras amplas. p. dos filósofos e dos homens das letras (séculos XVII e XVIII)” (CARBONELL. “nossa alma se eleva e. ver os capítulos: “A história erudita de Mabillon a Fustel de Coulanges” (BOURDÉ. p. em 1681. 81-81) e “A história dos eruditos. mostrou que na presença de determinados discursos. 2001. publicou a De Re Diplomática. que mostrava as ações dos antepassados. um processo que se inicia a partir do final do século XVII. para os cristãos a história humana era um conjunto de desgraças. No entanto. o nascimento da história erudita10. 1987. d) Usava amplamente os procedimentos retóricos: o objetivo da narrativa histórica era suscitar nos ouvintes e leitores a emoção. que abrangiam a criação do mundo até os tempos contemporâneos aos escritores estavam permeadas de eventos. ou mesmo o fim de um império. do iluminista Edward Gibbon). como a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia e O Discurso da História Universal de JacquesBénigne Bossuet. 1983. “A historiografia cartesiana” (COLLINGWOOD. apoiando-se em novas técnicas. Um professor de retórica do século III. estes eruditos vão estar preocupados em utilizar textos mais confiáveis. os discursos sublimes. 61-81). mas que mostravam os desígnios divinos para a humanidade. Pós-cartesianos. preocupada com a crítica das fontes. c) Procurava tratar-se do particular e do específico e não do geral: a narrativa histórica geralmente tem como tema um evento específico: a vida de um rei. Outro nome de destaque e Spinoza. destacando-se Dom Mabillon que. como se ela mesma tivesse gerado o que ouviu” (Longino. Essa busca de empatia com o leitor (ou ouvinte) será uma característica da narrativa histórica no decorrer dos tempos. 10 Essa história crítica surgiu nos mosteiros beneditinos franceses. a epigrafia. p. 1996.era a “mestra da vida”. Cássio Longino. atingindo soberbos cumes. mas agora fortalecida com o adjetivo “cientifica”. No entanto. as revoluções. no século XIX. esses historiadores vão defender que a História é ciência. que ficou conhecido como o “Século da História” (CARBONELL. 159 . com uma obra de história: A Segunda Guerra Mundial. p. substituindo o Dezoito. influente historiador marxista britânico. entre a história como narrativa e a história como análise e síntese. é provável que o prêmio tenha sido motivado mais pela sua participação do que pela sua narração da guerra. a História produzida por esses historiadores. a história continuou sendo uma narrativa. Imbuídos do espírito positivista. No entanto. Não sendo um historiador profissional. também conhecida como Escola Histórica. “o século da filosofia”. 315). não apenas narrativa. não deixava de ter características bastante próximas da narrativa tradicional: valorizava os eventos. como a Revolução Bolchevique. alemães e franceses. era descritiva e não analítica e explicava os acontecimentos históricos pelas decisões individuais. não mais irão se contentar com a legitimação retórica do conhecimento histórico. foi o historiador prussiano Theodor Mommsen em 190211. O eclipse da narrativa A chamada “História Metódica”. 1983. As crises econômicas. 11 O ex-primeiro ministro britânico. É sintomático do prestígio da Escola Histórica o fato de o único historiador a ganhar um prêmio Nobel. Neste caso. no século XX. entre aqueles que consideravam impossível generalizar sobre os assuntos no passado e os que consideravam que isso era essencial” (HOBSBAWM. Graça a essa corrente.culminaria. a história se institucionalizou. vão tornar a análise das questões econômicas muito mais urgentes do que as análises das questões políticas. tanto no interior dos Estadosnações quanto em suas relações com outras. ganhou em 1953 o prêmio Nobel de Literatura. principalmente as histórias de reis e batalhas. definiu que esse foi o grande conflito que dividiu a História entre 1890 a 1970: “tratava-se da batalha da hipótese convencional de que ‘a história é a política do passado’. como a terrível Crise de 1929. Eric Hobsbawm. com o surgimento da História-DisciplinaCiência. 91). apesar dessa busca pela objetividade. p. 2002. garantindo a primazia intelectual dentro do campo das ciências humanas. Os chamados historiadores metódicos. porque possui um método objetivo de tratamento das fontes. Winston Churchil. a história metódica estava defasada. por méritos exclusivamente intelectuais. fez muito sucesso no século XIX. e a de que a história deve tratar das estruturas e mudanças das sociedades e culturas. Eric Hobsbawm. tanto no interior dos Estados-nações quanto em suas relações com outras. a influência marxista na História deu-se: na interpretação econômica da história. dando um forte viés estruturalista ao conhecimento histórico12. o patriotismo. p. na Europa. entre aqueles que consideravam impossível generalizar sobre os assuntos no passado e os que consideravam que isso era essencial” (HOBSBAWM. A metodologia da História Metódica era insuficiente para descrever estas transformações. Ela estava presa aos eventos. à política e à nação. definiu que esse foi o grande conflito que dividiu a História entre 1890 a 1970: “tratava-se da batalha da hipótese convencional de que ‘a história é a política do passado’. A sociedade queria uma nova História. Ambas renegaram a narrativa. a economia. teve o cuidado de separar as contribuições do chamado “marxismo vulgar” daquelas de um marxismo mais “sofisticado”. houve o surgimento e o desaparecimento de novos países. que se explica a expansão das duas mais importantes vertentes historiográficas da primeira metade do século XX: o marxismo e os Annales. a avalanche de mortos das guerras mundiais vai tornar os historiadores críticos do nacionalismo. o surgimento de movimentos revolucionários da direita (fascismo) e da esquerda (comunismo) e de novas tecnologias. na denúncia de interesses ideológicos presentes nas produções culturais. menos nacionalista e menos acelerada. No primeiro caso. menos política. procurando responder a indagação “o que os historiadores devem a Karl Marx?”. Já a contribuição mais vigorosa do marxismo para a História foi a de transformá-la numa 12 Eric Hobsbawm. 2002. As vestes de Clio estavam manchadas de sangue e muitos historiadores não queriam mais fazer uma história que glorificava as batalhas. artísticas e científicas. no modelo basesuperestrutura (interpretado quase sempre mecanicamente). Não é mero acaso que a década de 1920 nos EUA fosse chamada de os frenéticos anos 20. entre a história como narrativa e a história como análise e síntese. iria fatalmente perder espaço para as novas ciências sociais (como a sociologia.de 1917. na redução da História aos interesses de classes. É nesse contexto. Se a História não se renovasse metodologicamente. na crença em leis e na inevitabilidade histórica. a desagregação de antigos impérios (russo. e a de que a história deve tratar das estruturas e mudanças das sociedades e culturas. vão suscitar o interesse pela análise dos movimentos sociais. otomano e austro-húngaro). A partir de 1914. a antropologia). 315). influente historiador marxista britânico. 160 . os acordos diplomáticos e os grandes homens. para com isso possibilitar uma mudança no presente. o evento. para darem atenção à região não-acontecimental da história: o mundo mais durável e mais estruturado. há uma tentativa de transformar a História numa ciência social: Sob a influência das ciências sociais. O singular. 161 . a política. e dirigida numa determinada direção (PRADO JÚNIOR. Para Caio Prado. p. não deixará de perceber que ele se for ma de uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa. mas as forças estruturais. os indivíduos não são determinantes. da vida material econômico-social (REIS. Isso fica bem evidenciado na obra de um dos principais historiadores marxistas brasileiros. a história sofreu modificações no seu campo de análise. um certo ‘sentido’.162). a descrição e a retórica foram praticamente abandonados. O texto citado é bem esclarecedor da distância que separa o marxismo de uma história narrativa. insistindo na existência e na historicidade das estruturas sociais (HOBSBAWM. p. a biografia – campos dominados pela presença do indivíduo. numa bela metáfora. mais resistente à mudança. os trabalhadores (com seus martelos!) pudessem construir uma nova sociedade. desbastando-o do cipoal de incidentes secundários que o acompanham sempre e o fazem muitas vezes confuso e incompreensível. 2001. As forças estruturais também serão o principal objetivo dos historiadores dos Annales na explicação do passado. os historiadores. a história das idéias. Na história de Caio Prado Júnior. 124). 1987. Como no caso do marxismo. p. mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo. 19). Já para os historiadores partidários de uma concepção narrativa de história seriam justamente os “cipós verdejantes” o objeto de sua predileção. analítica e que utilizava a temporalidade na longa duração. deveriam limpar as insignificâncias e ideologias do passado e descobrir a sua estrutura. Caio Prado Júnior. afirmou que Todo povo tem na sua evolução. Quem observa aquele conjunto. o tempo curto. como livre e potente para produzir eventos. com uma foice na mão. o marxismo foi pioneiro numa história econômicosocial. 1994. quando. vista à distância. Com isso. Este se percebe não nos pormenores de sua história.ciência social. Os historiadores novos abandonaram os objetos tradicionais da história – a política. que faziam a história. totalizante. para que no futuro. em primeiro lugar. Haveria então essa concepção de uma história quase imóvel.Desse modo. havia apenas ignorado-a. O estruturalismo e o funcionalismo não se mostraram muitos melhores. das culturas. O determinismo econômico e demográfico faliu frente às evidências. abandonar a descrição e priorizar a problematização. na psicologia ou na cultura para ocupar seu lugar. abandonar o tempo curto e priorizar a média e longa duração. ao invés de eliminar a narrativa do trabalho do historiador. o movimento em direção à narrativa por parte dos ‘novos historiadores’ marca o fim de uma era: o fim da tentativa de criar uma explicação científica coerente sobre a transformação no passado. a crise do marxismo e a mudança de perspectiva dos Annales possibilitaram a narrativa retornar ao centro da reflexão e do fazer histórico. da empatia. das sensibilidades. A história se aproxima das ciências sociais. esse seria o grande dilema da concepção estruturalista que domina a ciência histórica neste período. com certo entusiasmado. A metodologia quantitativa se revelou um caniço bastante frágil. A história produzida pelos Annales. entre a década de 1930 e a de 1970. Levados 162 . Um dos primeiros a notar isso. baseado na política. foi o inglês Lawrence Stone. a partir da década de 1970. do historicismo. O retorno da narrativa No entanto. tornando sua idéia de “ciência histórica”. extinguido a narrativa de suas reflexões sobre a história? Para Ricoeur (1994). capaz de responder apenas a um leque restrito de problemas. Todas essas recusas visam acabar com presença da narrativa na História. da consciência. o qual num artigo que se tornou famoso – “O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma velha e nova história” – analisou os motivos desse retorno: Se estou certo em meu diagnóstico. visto que. as propostas de uma nova concepção de História levada a cabo pelos Annales podem ser resumidas em três pontos: abandonar a história dos acontecimentos e priorizar uma história econômica e social. mais frágil ante seus críticos. mas não surgiu nenhum modelo determinista completo. da retórica. notadamente a sociologia durkheimiana e a antropologia estruturalista de Lévi-strauss como forma de se manter atualizada teórica e metodologicamente e de preservar suas posições institucionais. afastou-se também da filosofia. 2. contrapondo a uma tendência de se pensar numa “história sem gente” ou numa “história imóvel”. A História não se sente mais envergonhada de ser narrativa. A história retoma as suas raízes humanistas. tais como: a micro-narrativa (história de pessoas comuns). esta narrativa que retorna não é a mesma narrativa tradicional.. 5. O retorno da narrativa recoloca os historiadores como “caçadores de carne humana” e como especialistas no tempo. Stone enumera cinco diferenças entre os historiadores narrativos atuais com os “tradicionais”13: 1. Estão abrindo novas fontes [. tentam utilizar o comportamento para revelar sentidos simbólicos. 163 .. a biografia de pessoas comuns e diferentes (o que favorecia a multivocalidade). e produziriam novas modalidades de escrita da história.. inspirado em Clifford Geertz propõe a utilização de uma narrativa revigorada pelos historiadores. ao invés de se aferrarem aos fatos em si.] 3. mas para lançar luz ao funcionamento interno de uma cultura ou sociedade do passado (STONE.] principalmente aquelas que] trazem por escrito o depoimento completo das testemunhas interrogadas e examinadas. Sob a influência do romance moderno e das idéias freudianas. 31-32).] 4. alguns dos novos historiadores agora tendem a recuar em direção à segunda modalidade de interpretação do passado (STONE.] interessados nas vidas. um julgamento ou um episódio dramático. [. A análise continua a ser tão essencial em seus métodos quanto a descrição [. não por ele mesmo. sentimentos e comportamentos dos pobres e obscuros. Contam suas estórias de maneira diferente da de Homero. na experiência. No entanto.. no julgamento e na intuição. a narrativa de dramas-sociais (acontecimentos que revela conflitos latentes e esclarece a estrutura sócias). 13 Peter Burke (1992: 339-345). uma “narrativa densa”. 1991. 32). 1991. E sob a influência dos antropólogos.. capaz de lidar não apenas com as intenções conscientes dos atores nos acontecimentos históricos. p.. que no dizer de Gadamer (1998: 14) distingue as ciências humanas da pretensão universalizante da metodologia científica. ao invés dos grandes e poderosos. pelo contrário passa orgulharse das suas características literárias.. Dickens ou Balzac. a narrativa de uma história de frente para trás. Nesta narrativa. mas também com as estruturas sociais.. os historiadores aprenderiam as técnicas dos romancistas modernos.a escolher entre modelos estatísticos a priori do comportamento humano e uma compreensão baseada na observação. estão [. Contam a estória de uma pessoa. p. eles exploram escrupulosamente o subconsciente. tinha 19 anos. Por isso.Um exemplo concreto desse retorno da narrativa é a obra da historiadora Mary del Priore. ‘me ocorreram muitas reflexões a salvar a minha vida e não ficar sepultado debaixo das ruínas da própria casa ou das vizinhas. um jovem de 19 anos. ao mesmo tempo estremecia a terra com um movimento violento. pois o terremoto que devastou Lisboa em 1755 é um acontecimento que durou menos de 10 minutos. Não percebeu a agitação dos animais de tração. Além disso. descreve o acontecimento a partir da perspectiva dos contemporâneos. Na história narrativa. Compartilhamos sua dor. fazendo com que o leitor tenha oportunidade – por meio do texto com aspas – de “ouvir” as pessoas que vivenciaram a tragédia. A história narrativa possibilita a empatia compreensiva com outro. quase impossível encontrar uma pesquisa de um evento tão breve. ou no que sobrara dela. Aguardava tranqüilamente um comprador para certa partida de papel avariado que ali se tinha posto a enxugar. ‘Na manha desse dia fatal’. O Mal Sobre a Terra: uma história do terremoto de Lisboa. as pessoas são importantes. era intensa também na casa de Ratton. mas tomei o partido de subir ao telhado nas vistas de que abatendo a casa eu ficasse superior às ruínas’. seu medo e a sua sorte. seu dilema (correr para a rua ou subir no telhado?). ‘Ao sentir o primeiro abalo’. ondulante. nem o ar se agitava lentamente’. é um texto agradável de se ler. Vejamos um trecho do livro: Jacome Ratton costumava assistir a missa na igreja do Carmo. cujo teto ou dorso de animal correspondia à pesada abóbada de pedra. A poeira. Nas águas-furtadas de sua casa. se descendo as escadas fugisse para a rua. os pássaros em louca revoada. O tema em si já é sugestivo. diz ele. Razão suficiente para ter suportado ser jogado contra os molhos de papel úmido antes de cair junto com o teto e as paredes que sustentavam a lucarna (DEL PRIORE. via da janela que ‘achava-se o céu risonho como quase sempre é nas felizes regiões da Europa do sul. Na cidade levantavam enormes colunas de poeira ao pé das ruas que caíam das ruínas’.109-110). 164 .. ‘a maneira de denso nevoeiro que impedia a vista a duas braças de distância’. p. os cães em disparada pelas ruas. possibilita trazer a emoção e a sensibilidade para o texto de História.. Ratton era jovem. ‘Três minutos porem antes das 10 horas ouviu-se um ruído como se corressem por elas numerosas carroças. 2003. os ratos que deixavam suas tocas. Estremece a terra e em menos de um minuto ela sor ve o cais (da alfândega). Ficamos conhecendo uma delas: Jacome Ratton. ele não foi. quando saem dos seus documentos e procedem a ‘síntese’?” (VEYNE. Destacamos dois dos mais importantes: Hayden White e Jörn Rüsen. 19). 165 . A primeira seria a crônica de eventos. este é o ponto principal da discussão da narrativa na história. Agora. p. 15 As colocações a seguir foram baseadas em White (1995). Como um discurso que fica entre a literatura e a ciência. É possível. 20-21). Muitos teóricos se propuseram a pensar a história nesta perspectiva ampla. Tucídides. suas perspectivas e escreviam seus textos. não se contenta apenas 14 Aliás. o conjunto de acontecimentos do passado à disposição do historiador. levantar inúmeras questões analíticas interessantes: como era mentalidade do povo português na época do Iluminismo. incorporando. p. Por isso. Este. realmente. como já havia demonstrado Carlo Ginzburg no famoso Queijo e os Vermes não é incompatível com a problematização. Marx – ainda são lidos. de Tucídides a Max Weber ou Marc Bloch. como a ciência e a religião da época explicaram o terremoto e em que sentido o terremoto contribuiu para a ascensão do futuro Marquês de Pombal? A presença da narrativa. para Sônia Lacerda (1993. apesar de saber a data da ocorrência desses eventos.08). positivismo.No entanto. isto é. 1993. mas modificou a maneira de pensar a própria teoria da História. etc). os historiadores. O retorno da narrativa não modificou apenas a maneira como os historiadores selecionavam seus temas. Antes. por meio dele. a construção discursiva” (LACERDA. 1995. a escrita da História nas suas reflexões teóricas e metodológicas14. p. o texto não é somente uma descrição de um fato pitoresco. As questões básicas do debate seriam ligadas “à natureza do conhecimento histórico e do lugar que nele tem a linguagem. descrição e análise está sujeita a “tantas ressalvas que acaba por anular a distinção entre as duas espécies de historiografia”. os livros de teoria da história eram um levantamento crítico das diferentes “escolas” históricas (marxismo. Gibbon. procurando realçar as diferenças entre elas. Essa nova postura foi bem colocada por Paul Veyne: “O que fazem. pois a oposição entre narrativa e estrutura. suas fontes. Hayden White15 acredita que a solidez das obras de História não advém de suas pretensas qualidades científicas. alguns autores antigos – Heródoto. mas literárias. a obra histórica seria composta por cinco etapas fundamentais. apesar de desatualizadas em muitos aspectos. Annales. como elemento importante. procura-se analisar os elementos estruturais presentes nos textos de história. 1995. mecanicismo. Na terceira etapa. Existem nesse aspecto quatro posições ideológicas: conservadora. resultante da combinação das anteriores. isto é tropológico. aquela que procura retardar ao máximo a mudança social. 24). um otimismo comedido de que haja um triunfo temporário do homem sobre o mundo. visa retornar um passado remoto de inocência natural humana. em última análise. A quarta etapa refere-se ao posicionamento do historiador em relação ao mundo em que vive. para identificar as características singulares dos fatos históricos. enredo caracterizado pela resignação do homem frente às desgraças do mundo. mostrando a sua relação com o espaço histórico circundante. radical. caracterizado “pelo reconhecimento de que. meio e fim. mostrando seu significado e sua finalidade. a comédia. um enredo pessimista. explicando como aconteceu o “espetáculo” ou o “processo”. a sátira. o historiador precisa “elaborar um enredo”. preconiza mudanças sociais rápidas e radicais. O primeiro passo do historiador é transformar a “crônica” em uma história. para buscar leis causais que expliquem o campo histórico. que tenha início. os historiadores procuram escolher os tipos de argumentos para explicar os acontecimentos. Para isso. mas num ritmo lento. p. Por isso. O historiador. liberal. pretende organizar os fatos em um “espetáculo” ou em um “processo”. para preservar a estrutura social. mudando completamente a estrutura social. anarquista. para colocar os fatos históricos dentro do contexto de sua ocorrência. ao contrário do cronista. aquela que procura fazer algumas mudanças. no qual predomina uma visão otimista em relação à humanidade poder vencer os desafios que lhe são propostos: as turbulências do mundo são resolvidas heroicamente no final da narrativa. o historiador conta com quatro possibilidades: ele pode escolher um enredo romanesco (épico). São quatro modos de argumentação: formismo. a consciência e a vontade humana são sempre inadequadas para a tarefa de sobrepujar em definitivo a força obscura da morte” (WHITE. A quinta e última etapa. para integrar os fatos históricos numa direção (meta ou fim). na segunda etapa. substituindo a atual “sociedade” por uma “comunidade”. organicismo. é o sentido poético. que o historiador 166 . e a tragédia. contextualismo.em classificá-los cronologicamente. fazendo com que os limites entre narrativa histórica e literária sejam bastante reduzidos em função das escolhas individuais que os autores-escritores fazem. Estão disponíveis quatro tropos de linguagem: a metáfora. Os historiadores. sinédoque. 16 Os parágrafos seguintes foram baseados em Rüsen (2001). isto é. de uma massa amorfa e indefinida. O primeiro deles seria o interesse. considerada mais importante. isto é. mas sua função é orientar o presente e gerar expectativas de futuro. pensa o trabalho histórico também a partir de cinco elementos. seriam aqueles que satisfariam as demandas de historicidade da sociedade. tendo em vista suas próprias consciências criadoras e as condições de sua época Jörn Rüsen16. Por meio dessa estrutura de composição da obra histórica. ironia. teórico da História alemão. Por idéias entende-se também a problematização do passado. quando se reduz o objeto histórico a uma de suas partes. perspectivas que possibilitam os historiadores escolherem o que e como analisar o passado. quando se procura integrar as diversas partes do objeto histórico no todo. escrevendo o tipo de história que ela precisa num determinado momento. quando se nega a possibilidade de conhecer os objetos históricos. que formariam a matriz disciplinar da ciência histórica. o pressuposto de que as pessoas precisam da História (variável a cada época) para enfrentar a contingencialidade do tempo e dar sentido as suas ações. 167 . caindo num relativismo ou ceticismo no pensamento. As narrativas históricas falam do passado.dará a sua obra. numa história plausível e relevante. quando se representa o objeto histórico na sua integridade e singularidade. metonímia. transformando-o. conceitos. O segundo elemento da matriz disciplinar seria as idéias. portanto. categorias. White enfatiza o critério estético na obra histórica. o dos valores (quando o posicionamento ético do historiador em relação à mudança social é relevante para o texto) e o da estética (quando escolhe um modo de enredo e um tropo de linguagem para escrever sua história). inclusive. Hayden White considera o trabalho histórico sob diversos prismas: o da pesquisa (quando o historiador disponibiliza a crônica de eventos). Como podemos perceber. o da epistemologia (quando escolhe uma forma de explicação). os historiadores precisam – para escrever sobre o passado – de materiais do passado: as fontes históricas. pois além de ser baseada em fatos reais. indispensáveis para que ela seja lida e apreciada pelas pessoas do presente. Escrever a História não significa fazer um “relatório de uma pesquisa” como nas ciências naturais. a arte. extraindo delas um conhecimento do passado. apreciado e utilizado na vida prática do dia-a-dia. Devido à sua tradição humanística. O trabalho histórico – sob a forma de narrativa – é lido.Porém. para as produções da moda. nas práticas culturais da memória histórica” (RÜSEN. Negar racionalidade à narrativa história seria negar racionalidade as outras produções culturais. para as obras literárias e poéticas. p. a poesia. para as obras arquitetônicas. úteis ao ensino da história. servindo de inspiração para filmes e novelas. ou seja. 168 . a escrita da História. para Rüsen. Característica essa que demonstraria a dinamicidade da matriz disciplinar da história e a constante reformulação do conceito de história. tais como a música. Por fim. para os discursos de políticos e religiosos e – o mais importante – para a produção de livros didáticos. O suprir de tais carências tem como conseqüência a geração de novas necessidades de orientação. 1996. a narratividade17 presente no trabalho histórico não seria um limitador da racionalidade. o passado é interpretado para que o presente seja compreendido e o futuro esperado. ela está inserida dentro das demandas culturais de uma determinada sociedade. A sua função é suprir as carências de orientação que suscitou o trabalho dos historiadores e sua conseqüência é a geração de novas carências. Na narrativa. etc. 75). 17 O que Rüsen chama de narratividade é a categoria que “aproxima os estudos históricos da literatura. Após o tratamento das fontes. o último elemento da obra história seria as suas funções dentro de uma determinada sociedade. plena de sentido e de significado. Portanto. a História requer a utilização de elementos estéticos e retóricos. Existe um conjunto de regras e exemplos – o método – que possibilita aos historiadores utilizarem proveitosamente os mais diversos tipos de fontes. ela proclama o caráter literário da historiografia e os procedimentos e princípios lingüísticos que constituem a ‘história’ como uma representação do passado. o historiador passa para a quarta etapa denominada formas de apresentação. Rüsen. a racionalidade estética. Seja por meio da seleção do material. pois o seu discurso – não formalizado – está longe das ciências naturais. é possível observar os conceitos e categorias existentes nos documentos. renascida e revigorada. A presença da narrativa possibilita ver a História como um texto cultural. tornando-a mais pertinente ao paradigma pós-moderno. no auxílio à interpretação ou através da influência de nossas projeções de futuro em nossa abordagem do passado. Como a inserção no tempo é característica de qualquer evento narrado e como a narrativa é uma característica própria do ser humano. inspirando-se em Lévi-Strauss e Roman Jakobson parte do pressuposto de que a história não é ciência. sendo que por isso utiliza a expressão “ciência histórica”. Daí advém a ligação entre a narrativa e as categorias referenciais da experiência da duração. Para eles. respectivamente. a narrativa não é apenas uma forma de escrever ou pesquisar sobre o passado que os historiadores poderiam escolher ou não.Enfim. a racionalidade metódica. a masculinidade (força) e o universalismo eurocêntrico. são elementos elaborados dentro do próprio ato produtor de conhecimento e interferem diretamente em todas as esferas de sua produção. é preciso ressaltar as diferenças substanciais entre eles. Assim. valorizava a unidade e a semelhança. contrapondo-se ao paradigma moderno que. como deve ser. partindo de uma tradição weberiana. enquanto Rüsen os concebe com a mesma importância dos demais componentes da matriz disciplinar. atender novas demandas. a narrativa é um elemento constituinte do trabalho do historiador. Considerações finais Tempo e narrativa: mais do que dados objetivos ou incorporados a posteriori. não vê uma incompatibilidade entre os valores e a cientificidade. 169 . White. a feminilidade (diálogo) e o relativismo cultural. da condução da informação do passado para o presente. a narrativa vem. nas fontes e na historiografia como elementos que expressam e podem 18 Apesar de White e Rüsen serem “narrativistas”. realizada por meio de sua necessidade de comunicar com outros homens e consigo mesmo em seu agir. não importando se ele goste ou não. pelo contrário. Hayden White e Jörn Rüsen18 colocam a narrativa como central para o entendimento teórico da História. Este paradigma valoriza a diversidade e a diferença. Além do mais White supervaloriza a presença dos elementos estéticos na obra histórica. dando um sopro humanista na disciplina histórica. por exemplo. É esta. Afetou a maneira como os historiadores pensavam a teoria da história. De comum às duas tradições está a centralidade do questionamento sobre os esquemas produtores de sentido e a objeção aos conceitos normatizadores da experiência histórica. este é ainda um conceito polêmico dentro da disciplina histórica. concentra-se no problema das múltiplas temporalidades existentes no interior de uma experiência histórica concreta deriva da aproximação entre os campos da história e da antropologia. Marx. de Heródoto a Braudel. a nova história política –. Porém a mudança foi mais profunda do que uma simples escolha de modalidade: narrativa ou estrutural. Nesse aspecto. individuais dos homens do passado.vir a construir os limites da própria experiência humana numa determinada época. recebeu inúmeros insultos: história positivista. pois Ginzburg situa sua atenção não somente na narrativa de um evento microscópico. com o surgimento de novas tendências historiográficas – como a História Cultural. a aproximação do pesquisador com as distintas experiências históricas é feita através da análise da dinâmica lingüística dentro da longa duração. Nietzche e 170 . etc. Narrativa passou a designar tudo aquilo que a história deveria abandonar para ser uma ciência social. de matriz germânica. Para os adeptos dessa tendência. a grande mudança foi a constatação de que todos os historiadores. Tocqueville e Burkhardt) e dos filósofos (Hegel. No entanto. Ranke. Quanto à narrativa. Hayden White mostrou que as obras de historiadores clássicos (Michelet. Vítima dos ataques marxistas e dos primeiros historiadores de Annales. fazem uso de procedimentos narrativos. a partir dos anos 1970. ingênua. Aproximação essa que garantiu àquela primeira disciplina um olhar mais voltado para as experiências cotidianas. uma das idéias que norteiam os trabalhos da história conceitual. retórica. descritiva. a micro-história. mas também numa dimensão temporal “anacrônica” e não submetida à uma concepção de mundo socialmente homogênea. observando os pontos de ruptura e continuidade entre presente e passado. Outra tendência que. O exemplo do moleiro Menochio de O Queijo e os Vermes deve ser novamente lembrado. factual. em certo sentido. a partir das décadas de 1970. ao invés de situá-los dentro de esquemas conceituais pré-formatados. os historiadores voltaram a pensar a história como uma modalidade narrativa. Petrópolis. ARENDT. ______. 19-60. Gramática das civilizações. COLLINGWOOD. que podem ser classificadas tendo por base os quatro tropos da linguagem. P. São Paulo: UNESP. assim como o tempo. Rio de Janeiro: Topbooks. F. Daí porque. Journal of urban history. capaz de satisfazer as demandas de historicidade de uma sociedade. 2003. Hannah. n. BARTHES. 2002.. G. BLOCH. GREIMAS et al. Análise estrutural da narrativa. DAVIS. 30. MARTIN.). Lisboa: Editorial Presença. Confissões.(Org. M. S. Lisboa: Editorial Teorema. não seria precipitado afirmar que a narrativa. pois é ela que faz da História um texto cultural. seria uma obra petrificada. 1983.O. DEL PRIORE. 2004. O mediterrâneo e o mundo mediterrânico à época de Felipe II. As escolas históricas. BURKE. In: BARTHES. Historiografia. Entre o passado e o futuro. 1987. USA. Referências AGOSTINHO. São Paulo: Martins Fontes. é um problema humano. O mal sobre a terra: uma história do terremoto de Lisboa. 4. G. São Paulo: Martin Claret. RJ: Vozes. 2001. BOURDÉ. 1983. p. 1989. 171 .. v. a título de conclusão. M. R. C. 1997. Lisboa: publicação Europa-América. Apologia da história. R. 1971. 2001. Se a História não fosse uma narrativa. São Paulo: Perspectiva. São Paulo: Martins Fontes. B. Jörn Rüsen também mostrou que a narrativa está presente e atuante na obra histórica. Monuments. São Paulo: Jorge Zahar. memory and the future of the past in modern urban Germany. H. A idéia de História. 1992. incapaz de fazer a ponte entre passadopresente-futuro. Introdução à análise estrutural da narrativa. longe de ser apenas um problema epistemológico. CARBONELL. R. A escrita da história. BRAUDEL.Croce) são narrativas. São Paulo: Martins Fontes. RJ: Vozes. Madrid: Editorial Trotta. 1997. A. T. LACERDA. J. Princípios matemáticos da filosofia natural. JÚNIOR. N. A. KANT. EHESS. (Org. Barcelona: Paidós. 2003. p. São Paulo: Renascença. 1981. A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930.) História dos conceitos: debates e perspectivas. 1998.-G. GADAMER. São Paulo: Nova Cultural. LONGINO. LANGLOIS. 6. Paris. 1998. São Paulo: Companhia das Letras. Futuro passado: para una semantica de los tiempos presentes. 1998. Ch. 1944. NEWTON. São Paulo: Companhia das Letras. São Paulo: Ediouro. I. 1983. Trad. ______. Introdução aos estudos históricos. Ch. Paris. Sobre o tempo. ______. E. HOMERO. Brasília: UnB. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural. ______. 9-42. 2004.DIEHL. FERREIRA. Temps et histoire: comment écrire l’histoire de France?. São Paulo: Nova Fronteira. França: Éditions EHESS. Annales: histoire. Petrópolis. 2002. PR: EdiUPF. R. História/história. HOBSBAWM. Passo Fundo. SWAIN. 172 . N. 2003. Do sublime. H. História. G. In. 1995. Novo dicionário da língua portuguesa. REVEL. KOSELLECK. JASMIN. História no plural. J. n. M. B. SEIGNOBOS. 1994. ______. 2001. Verdade e método.) Les usages politiques du passé. Antônio Pinto de Carvalho. Odisséia. A. H. F. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio. 2006. ELIAS. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Org. I. 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Inside of this argument. com quatro letras.A FUNÇÃO SOCIAL DO HISTORIADOR EXISTE? DOES THE SOCIAL ROLE OF THE HISTORIAN EXIST? Maria Clarice Rodrigues de Souza1 Resumo: A história. Abstract: The story. Sem o quê. has been passing for supposed “crises” as for from real existence of your social role. historiadores. Ou. com o financiamento da CAPES. para um grande número de homens. por quais razões teriam escolhido esse ofício? Aos olhos de qualquer um que não seja um tolo completo. incontestavelmente. pesquisa sobre a violência contra as mulheres em Montes Claros. função social. A good many are the questions on the subject of as theme what achieved directly the act a part historical. Descobri-la para a ela se dedicar é propriamente o que se chama vocação. Decerto. Vera Lúcia Puga. do mais remoto que me lembre. todas as ciências são interessantes. assim parece. Marc Bloch Licenciada em História pela Universidade Estadual de Montes Claros. Pessoalmente. on the last years. ela sempre me pareceu divertida. mesmo que a história fosse julgada incapaz de outros serviços. Dentro desse contexto. Mestranda em História Social na linha História e Cultura pela Universidade Federal de Uberlândia. com ênfase nas relações de gênero. Mas todo cientista só encontra uma única cuja prática o diverte. sob a orientação da Profª. Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa sobre a Mulher com apresentação de trabalhos e ministração de palestras e minicursos sobre o tema. keywords: history.com. eu penso. the feature social of the Historian is put in doubts: he should be the historian only one real function inside from society? Wherefore serve the story? Are questions what we want to go aboard into the elapse of this text. E-mail: mariaclarice1@yahoo. para ser mais exato – pois cada um busca seus passatempos onde mais lhe agrada –. Como todos os historiadores. historian. restaria dizer. que ela entretém. sociedade. a seu favor. a função social do Historiador é posta em dúvida: teria o Historiador uma real função dentro da sociedade? Para que ser ve a história? São questões que pretendemos abordar no decorrer deste texto. Participa do NEGUEM. Palavras-chave: história. social role. tem passado por supostas “crises” acerca da real existência de sua função social. Drª. society. portanto. por mais gerais que sejam. O autor deixa claro que não existem considerações. Acreditamos ser necessário aprofundar tal abordagem. Apesar de inúmeros debates. capazes de suprimir a particularidade do lugar de onde fala o historiador e do domínio em que o mesmo realiza uma investigação.Muito se tem questionado acerca de qual função o historiador teria na sociedade em que está inserido. O intuito. certa resistência em permitir que o historiador aproxime-se de seu objeto de estudo por tornar-se militante em sua pesquisa. Ao abordar a violência contra as mulheres em Montes Claros. se delineia uma topografia de interesses. enraizado em uma particularidade e é em função desse lugar que se instauram os métodos. A Escrita da História. das preocupações de sua realidade. nem leituras. o historiador está submetido a imposições. muitos questionamentos ainda persistem. percebemos. então. Teria o historiador uma real função social? Desde quando podemos detectar isso? Por que há uma ênfase na questão do distanciamento entre o historiador e o seu objeto de estudo? Para quem pesquisa e escreve o historiador? Quais são seus métodos recorrentes? São inquietudes levantadas diante de muitas discussões sobre a determinação da “função social” do historiador. mas obter respaldo teórico para tal pensamento. fazendo de sua fala um discurso no qual grande parte de suas posições políticas. não é obter respostas únicas ou permanentes. uma vez que o historiador produz seu trabalho a partir do presente. Essa marca é indelével e representa a relação do historiador com um lugar. O que nos levou a tantos questionamentos está diretamente ligado ao nosso objeto de pesquisa. que os documentos e as questões propostas 175 . ligado a privilégios. ideológicas e sociais está presente. encontramos uma alusão à questão do lugar do historiador na sua pesquisa. mais especificamente no capítulo sobre “A operação historiográfica”. Na obra clássica de Michel de Certeau. é o de nos direcionarmos no sentido de entender o papel do historiador frente aos desafios de sua profissão e a aplicabilidade desta na sociedade em que aquele se posiciona como indivíduo ativo. lugar este do qual o historiador faz parte e onde se localiza. Nesse lugar. Para tanto. sejam elas para a sociedade ou para um grupo específico. O que buscaremos. ocorrida no período de 1985 a 2006. dialogaremos com algumas obras de autores pesquisados. O escopo deste artigo não é responder a todas elas – isso seria extremamente difícil. dentro da própria academia. Compreendemos – ainda que não concordemos – a cumplicidade existente por parte das mulheres nas relações de violência. 67). Sobre o lugar do historiador dentro da prática histórica. Tornando-se. portanto. mas. uma vez que nesta está imbuída a “subjetividade” do autor (CERTEAU. mesmo que não vítima de violência. mas vivenciando todas as imposições sociais submetidas às mulheres. como mulher que foi criada dentro de um sistema ainda patriarcalista. construção de sistemas e empatia. p. que devem ser lidas com esse fato em mente. quase impossível o distanciamento. é a superação pela busca da “objetividade ou totalidade histórica”. Tal superação oportunizou aos historiadores trabalharem com a subjetividade e com a relatividade histórica. O que presenciamos na obra de Certeau. assim como em outras que iremos mencionar. permitindo visualizar sua pesquisa na realidade dos indivíduos que estão presentes na mesma. Em consonância com nossa visão. da função social da sua escrita e da pesquisa histórica. 1982. Reconhecendo. que a leitura nos vestígios do 176 .se organizam. e sim possuem também as suas próprias vozes individuais que colaboram e fazem parte do seu ofício. como há uma inserção do pesquisador nas mesmas e quanto sua realidade influi diretamente sobre todos esses pontos. entre o historiador e seu objeto de pesquisa. tão presente em outros tempos nas pesquisas históricas. uma vez que foram socializadas para se considerarem submissas. inferiores. O que temos nada mais é do que a presença da voz da mulher inerente ao seu ofício da pesquisa histórica. indivíduos que deixam as suas idéias e convicções pessoais nas suas obras. descobrimos na autora Miri Rubin uma apologia a essa perspectiva. Identificamos-nos com a pontuação de Carr. Os historiadores não se limitam a papaguear um discurso social mais amplo. tão exigido pela academia. Edward H. em sua obra Que é História? faz um excelente apontamento. A autora endossa que a função do historiador é conseguida não apenas entre a poeira dos arquivos. Carr. ganhando uma conotação social. hoje. mas mediante a mobilização de uma subjetividade informada. quando enfatiza que os historiadores não são canais neutros através dos quais a verdade sobre o passado é transferida dos documentos para o leitor. antes. dando uma maior visibilidade e função ao ofício do historiador. da sua escrita. com capacidades de categorização humanas e intelectuais. admitindo uma nova história. dos quais a história acadêmica nos distanciou. esperança e desejo é uma parte não apenas útil. de acordo com o olhar de quem escreve. um novo fazer histórico. Enrique Moradiellos. E. não mais com apenas uma versão pronta e acabada. em El Ofício de Historiador. O autor faz uma crítica à 177 . p. Outro autor que explicita de forma contundente os desafios lançados à função social do historiador atualmente é Josep Fontana. a partir disso. presente durante muito tempo na escrita da história. Moradiellos reafirma. é evidente que o trabalho do historiador não é uma mera descrição dos feitos do passado. sua experiência política e social e sua formação cultural. afirma que. em sua interpretação. pesquisa. Que é preciso renovar o instrumental teórico e metodológico para que ele sirva ao entrar em contato com os problemas reais dos homens e das mulheres de nosso tempo. O que temos encontrado é o rompimento com a proposição de que os fatos falam por si só. Em sua obra A História dos Homens. sofrimento. mediante um método interpretativo no qual é impossível eliminar do próprio sujeito seu conhecimento. questiona. mas tão somente as ferramentas que empregamos com o objetivo de melhor compreender o mundo em que vivemos e de ajudar outros a entendê-lo. Para Moradiellos. o autor deixa claro que teoria e método não são os objetivos de nosso ofício. auto-reflexiva e coloquial. a aceitação da subjetividade na escrita histórica nos permite versões do real. tornase impossível o historiador renunciar. Soma-se a isso um novo tipo de historiografia. seu sistema de valores filosóficos e ideológicos. a valorização da interpretação dos documentos e o diálogo com as fontes se tornaram imprescindíveis para o ofício do historiador. que emergiu. a fim de que façamos algo para melhorá-lo. mas algo que pode vir a ser superado. 2006. p. Hoje. das provas e fontes informativas legadas ao passado. ao contrário do que pregava o empirismo positivista do século XIX. 18). contribuindo de maneira singular para uma função ativa do historiador na sociedade (RUBIN. assim. que o trabalho interpretativo do historiador é essencial e impossível de se neutralizar (MORADIELLOS. 113). 2005. mas necessária da reflexão humana e do conhecimento do passado.passado de aspirações. trazendo consigo a exploração daquilo que ficou por dizer durante demasiado tempo. sua tarefa consiste na construção de um passado histórico em forma de relato narrativo e a partir de relíquias. a subjetividade. Não existe venda para os olhos mais perigosa que esta. os historiadores serão reconhecidos como parte integrante e necessária a essa sociedade (HOBSBAWM. Aproximamos-nos mais enfaticamente do pensamento de Hobsbawm que diz que todos os regimes fazem seus jovens estudarem alguma história na escola. mas para aprová-la. ainda que hesite em aprendê-las. 1998. A história. tem uma tendência embutida a se tornar mito de autojustificação. a neutralidade da pesquisa e escrita histórica. são pesquisas relevantes. uma história que é capaz de ajudar na sociedade contemporânea. Ressalta que nem sempre foi dessa forma. em grande parte. se desenvolveu como um agrupamento de pessoas para servir e justificar os regimes. não para compreenderem sua sociedade ou como ela muda. 47). na medida em que as universidades se tornarem os locais onde facilmente se poderá praticar uma história crítica. na maioria das vezes. como inspiração e ideologia. p. mas agora pretendemos retratar 178 . Mas. Isso não é mais. o repensar do fazer histórico. uma vez que compreendemos que muito ainda há para se fazer sobre a eficácia entre o que se produz na academia e o que se aplica na sociedade. a tentativa de melhorar a sociedade (FONTANA. 2004. é tarefa dos historiadores tentar remover essas vendas. serem ou se tornarem bons cidadãos. concordamos em parte. E. entretanto. 472).academia. não podemos fechar os olhos diante da tentativa de superação de tal fato por parte da academia. pois a profissão de historiador. E o mesmo é verdade para causas e movimentos. a aplicabilidade das nossas pesquisas na sociedade. como demonstram a história de nações e os nacionalismos modernos. Com relação à crítica feita por Fontana ao distanciamento existente entre a academia e sua função social. orgulhar-se dela. mas que ficam confinadas na mesma sem atingir o seu objetivo real. na medida em que o fazem. de modo algum. podem dizer à sociedade contemporânea algumas coisas das quais ela poderia se beneficiar. entendemos que há necessidade de uma maior integração entre sociedade e academia. Para o autor. que. produz para si mesma. tão universal assim. p. conclui que as universidades constituem a única parte do sistema educacional em que os historiadores foram autorizados e até encorajados a fazer isso. para tanto. ou pelo menos levantá-las um pouco ou de vez em quando e. Muito temos falado sobre a função social do historiador. a relação entre academia e sociedade. Ele é mais hermenêutico. modernidade. Bloch e Febvre foram os precursores de tal rompimento. 2003. enfatiza que o rompimento da história dita “tradicional” – na qual a objetividade e não interferência do historiador era essencial e que procurava se ater aos grandes homens e fatos excepcionais e. ainda que minimamente. Como ocorreram tais mudanças? Quais foram os processos históricos que nos permitiram estar aqui falando sobre a função social do historiador? Como a história deixou de ser um mito justificador dos grandes feitos sociais e tornou-se. dando-nos um breve relato sobre o surgimento da possibilidade de não neutralidade do historiador em sua escrita. em seu livro A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales. por isso expomos aqui. naquela que aponta criticamente tais feitos? José Carlos Reis. o pensamento de cada um desses historiadores (REIS. nas normas sociais. em seus modos concretos e repetitivos de comportamento. o indivíduo só pode ser compreendido em sua estrutura social.sobre o percurso para tais avanços. para que isso ocorresse. que é constr uída racionalmente. com mais freqüência. Diante da importância da Escola dos Annales para o fazer histórico. Para Bloch. o objetivo dos estudos históricos era a “compreensão da vida passada”. obser vável empiricamente e “explicável casualmente”. assumindo a importância de se fazer a história da sociedade e ao acreditar no papel do historiador dentro dessa sociedade. tal percurso. mas sem separá-la de suas condições globais. entre eles começava já a aparecer a complexidade do paradigma dos Annales. p. Na perspectiva de Bloch. fomos buscar em Peter Burke. mais culturalista e menos economicista. Para eles. 1929-1989. subjetivista. em História & Teoria : historicismo. Marc Bloch e Lucien Febvre. Já Febvre dá mais ênfase ao grande indivíduo e à consciência. que devem ser compreendidas. Entretanto. mais especificamente sobre a terceira geração dos Annales. quando necessário. políticos – foi alcançada com a criação da Escola dos Annales. mas em seus grupos. intenções e ações. a ciência da mudança perpétua das sociedades humanas”. Para tanto. cabe-nos abordar um pouco mais sobre seu processo. O autor nos mostra que foi na terceora geração dos Annales que tivemos uma 179 . o objeto do historiador são os homens. Seus fundadores. Podemos inferir que em muito contribuiu a Escola dos Annales para se romper com a história dita “positivista”. E. suas significações. temporalidade e verdade. 82). definiam a história como a “ciência dos homens no tempo. a inserção do nosso objeto de pesquisa e estudos. ligadas ao estudo da humanidade. o poder médico e a loucura. mas principalmente em relação a dimensões da vida social privilegiadas pelos estudos das mentalidades e da sensibilidade. com seu trabalho sobre O Mundo Social das Ruas de Paris no Século XVIII. Vemos a presença da interdisciplinaridade surgir. abrangendo áreas inesperadas do comportamento humano e grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais. a família. p.. pesquisadora da história do trabalho e história das mulheres. loucos. da economia à psicologia.79).contribuição mais expressiva para uma grande mudança no fazer histórico. Mona Ozouf. aproximadamente a partir dos anos de 1980. que passaram a incluir nos estudos científicos o trabalho de algumas mulheres como Chistiane Klapisch. crianças. assim como estão também associadas à colaboração com outras ciências. o que atualmente tem contribuído para a abrangência de possibilidades não só nos estudos históricos. nesse contexto. pois o campo da história expandiu-se por diversas áreas. afirmando-se como área de interesse na academia. negros. que pesquisava sobre os festivais durante a Revolução Francesa e Michele Perrot. Burke ressalta também que essas extensões do território histórico estavam vinculadas às descobertas de novas fontes e ao desenvolvimento de novos métodos para explorá-las. Arlette Farge. pois foi mais precisamente nessa década que se ampliou o leque temático não apenas em relação à incorporação de novos agentes sociais. as representações da mulher nos discursos médicos e jurídicos. mais precisamente a partir dos anos de 1968. que emerge dessas mudanças historiográficas. etc. os códigos da moralidade feminina são incorporados como objetos históricos. Temas como a história do corpo e da sexualidade. a “História de Gênero”. 1991. Outro fato ocorrido dentro da terceira geração dos Annales e que não poderíamos deixar de aqui mencionar por estar diretamente ligado ao nosso tema de pesquisa se refere à questão de que foi no contexto dessa geração. 180 . Percebemos. o amor e o pecado. e passa a participar mais intensamente da construção da noção de uma “cultura das mulheres”. com a História da Família. O estudo da história das mulheres adquire estatuto próprio. Para ele. da geografia à lingüística. prostitutas. essa geração dos Annales ampliou o território da história. mas em todas as outras disciplinas (BURKE. a sedução e o poder. como mulheres. sabemos que muito ficou por dizer. pretendeu discutir sobre a importância da pesquisa histórica e sua relevância na sociedade Todavia. A possibilidade de uma história total mostrou-se cada vez mais distante do horizonte dos historiadores. na qual o historiador adquire uma função na sociedade em que vive. talvez um pouco extensa. pensamos ser imprescindível a averiguação de como se dá a interação entre os historiadores e os fatos históricos pesquisados. mas qualquer abordagem considerada não globalizante. a história passou a trabalhar com recortes do todo social. Novos olhares e novas abordagens entram em cena a partir dessas mudanças. ressaltando os fatos através da interpretação do historiador. passam a ser objetos de interpretação subjetiva do pesquisador. em que a função do historiador nada mais era do que relatar os fatos. a interdisciplinaridade com as ciências vizinhas e estimulando a inovação temática. O que pretendemos. As fontes. já que o respaldo teórico é muito abrangente. O que vimos até agora nos mostra como o historiador conseguiu romper com muitas barreiras existentes em seu ofício. em especial.Ao trabalharmos com a violência de gênero. 181 . Muito foi feito para se romper com uma história de grandes fatos. como dito anteriormente. na sua escrita. Podemos perceber que a importância dada à interpretação dos fatos e às novas perspectivas teóricas e metodológicas contribuiu de maneira decisiva para uma nova Era na história. A abordagem feita até aqui. dos grandes heróis. uma história diplomática e dos grandes feitos. Enfatizamos que a Escola dos Annales foi primordial para essa ocorrência. estabelecer alguns pontos consensuais com alguns autores conhecidos que nos conduziram a reflexões sobre os questionamentos levantados. nesta primeira parte de nossa escrita. será abordar alguns pontos considerados por nós como relevantes no ofício do historiador e. a partir de agora e de forma mais reduzida. Assim. incentivando. apreciamos a importância que se deve dar aos historiadores que tanto fizeram para romper com paradigmas que antes excluíam da história não só as mulheres. ao invés de abordar uma história globalizante. antes tidas como provas objetivas dos fatos. uma vez que rompeu com a história tradicional com o objetivo explícito de fazer da história um instrumento de enriquecimento e colaboração para uma sociedade melhor. reduzindo a história a alguns fatos e indivíduos. tal qual tinham acontecido. Para tanto. procuramos. ocorrendo mudanças no fazer histórico. Com o surgimento da Escola dos Annales . mas não a sua função essencial. Sem dúvida é importante o ano. dos quais ‘todas as ciências oferecerem inúmeros exemplos’ (BLOCH. ideológicas e sociais. Portanto. 182 . assim como. Carr assevera que “não são os fatos que interessam primordialmente ao historiador”. pelo acontecimento’. mais precisamente em Leopold Von Ranke. Como se dá a escolha dos fatos que se tornam históricos? Qual a relação entre o historiador e os fatos? São questões recorrentes que suscitam questionamentos tanto no senso comum como dentro da própria academia. a priori. o lugar.69-87). a recorrer a procedimentos de ‘reconstrução’. a exatidão do fato acontecido. 2002. p. sem posições políticas. Afinal. Mas deveria também se resignar a não poder compreender tudo do passado. tudo isso é imprescindível ao trabalho do historiador. na ordem dos fatos. depois tire suas conclusões”. Assim. Diante de todas essas mudanças. a escolha dos fatos estudados repousa. 25). o historiador com suas escolhas e interpretações passa a ser tornar imprescindível à escrita da história. Essa corrente encontrava apoio nos “positivistas” do período. Essa linha ganhava força na medida em que se acreditava que os fatos falavam por si e não era tarefa do historiador interpretá-los. mas apenas descrevê-los. A função do historiador era apenas retratar o passado pelo passado. precisava deixar de ser. a tarefa do historiador era “apenas mostrar como realmente se passaram os fatos”. não deveria ignorar ‘a imensa massa dos testemunhos não-escritos’. na sua leitura. sem partir de questionamentos do presente e muito menos traçar uma ponte entre passado-presente e futuro. que reafirmavam com veemência “primeiro verifique os fatos. tal teoria pressupunha e enfatizava uma separação completa entre sujeito e objeto. 1982. ‘na ordem documentária. por volta de 1830. Os fatos falam apenas quando o historiador os aborda (CARR. tendo o historiador a liberdade de interpretação dos fatos. a partir de tais mudanças. aqueles da arqueologia em particular. ocorre uma inversão no fazer histórico: se antes os fatos preponderavam sobre o historiador. Diante disso. tal corrente denominada “positivista” é rompida. p. numa decisão do historiador. Edward H.O historiador e os fatos O historiador. obcecado pelo relato. Carr expõe que. a utilizar ‘um conhecimento através de pistas’. Portanto. antes de começar a escrever ou pesquisar a história. É claro que não podemos nos elevar ao ceticismo de que a interpretação é tudo e rejeitar todo e qualquer objetivo da história.] A relação do homem com seu meio é a relação do historiador com seu tema.] O dilema do historiador é o reflexo da natureza do homem. 1982. na visão de Carr. “capacitar o homem a entender a sociedade do passado e aumentar o seu domínio sobre a sociedade do presente é a dupla função da história” (CARR. O passado torna-se inteligível para nós somente à luz do presente. 1982. estaremos analisando a interpretação dada pelo historiador ao fato.. p.A partir de então.. necessitam caminhar juntos. Assim. 1982. A relação entre o historiador e seus fatos é de igualdade e reciprocidade. Nas palavras de Carr. 28). se ele pára para avaliar o que está fazendo enquanto pensa e escreve. p. o trabalho do historiador se reflete na sociedade em que trabalha. o autor nos alerta sobre a necessidade de estudar o historiador antes de começar a estudar os fatos. só podemos compreender o presente à luz do passado. mas dominá-lo e entendê-lo como a chave para a compreensão do presente (CARR. o historiador pertence a sua época e a ela se liga pelas condições da existência humana. portanto. o historiador sem seus fatos não tem raízes e é inútil. os fatos sem seu historiador são mortos e sem significado. É impossível determinar a primazia de um sobre o outro (CARR. o historiador e os fatos históricos são necessários um ao outro.. a função do historiador não é amar o passado ou emancipar-se dele. p. Compreendemos. com a qual corroboramos. diálogo este mais preciso quando visto entre a sociedade de hoje e a sociedade de ontem. Seus 183 . que o historiador. como fica explícito na consideração de Carr: [. A compreensão do passado se dá através dos olhos do presente. Assim. Haverá sempre um diálogo entre o presente e o passado que se converge para a pesquisa do historiador. O historiador não é um escravo humilde nem um senhor tirânico de seus fatos..49). [. 25). os historiados e os fatos dependem um do outro. torna-se produto da mesma. o historiador entra num processo contínuo de moldar seus fatos segundo sua interpretação e sua interpretação segundo seus fatos. Percebemos assim que. pois. tanto o fato como a interpretação. Como qualquer historiador ativo sabe. ao trabalharmos com determinado autor. mas que deve manter distintas uma da outra: a sua atitude científica de homem do ofício e o seu compromisso político como homem e cidadão. Assim. exemplificando que se um historiador se torna editor de um órgão de partido. E remete o historiador a papéis antes extremamente condenáveis. O importante a reter é que o historiador não deve mudar os rumos da sua pesquisa para emitir julgamentos morais sobre a vida dos pesquisados. precisamos penetrar nas formas de comportamentos humanos. Óbvio é que isso deve ser feito dentro de uma perspectiva histórica. p. não vemos como o historiador não possa delegar à escrita da história suas ideologias e suas angústias. entendemos que os fatos históricos já pressupõem certas doses de interpretações e essas interpretações históricas. em sua obra História e Memória. entre observadores e aquilo que é observado. Em perspectiva contrária. p. mas sua formação e interesse na história podem sim ali transparecer. Nós. parecem ser mais importantes. 145). Por exemplo. historiadores. explicita o cuidado que devemos ter com a integração do passado na luta revolucionária ou política. Hoje. Acreditamos que a fronteira existente entre o historiador-cidadão e o cidadão-historiador é por demais tênue. são modelados pelo ambiente do tempo e do lugar. o historiador dentro do seu ofício não deve emitir pareceres que seu ser cidadão participa (LE GOFF. Em contraposição a tal abordagem. Para o autor. nos quais a vontade é ativa. tomamos como 184 . para averiguar por que os seres humanos. sempre envolvem julgamentos de valores. como a questão dos julgamentos de valores e a moralidade. pode até não escrever seus editoriais como historiador. como os dos outros seres humanos. Se a história é feita pela interpretação dos fatos e esses fatos são aqueles que. que são o objeto dos nossos estudos. Pensamos ser essa uma discussão extremamente importante e abrangente que necessita de um estudo aprofundado. Hobsbawm refuta essa questão. que estabelece uma confusão entre as duas atitudes que o historiador deve ter perante o passado.pensamentos. (HOBSBAWM. partindo de inquietações do presente para buscar respostas no passado. resolveram agir como tal. Isso estabelece uma relação que é peculiar à história e às ciências sociais. para o historiador. Jacques Le Goff. O que podemos aqui fazer é reiterar a idéia exposta por Hobsbawm. 1998. não se torna mais necessário provar que o historiador não precisa emitir julgamentos morais sobre a sua pesquisa histórica. 223). 1994. queiramos ou não. quando na realidade não é. é antes uma questão historicamente necessária e de grande relevância para a sociedade como um todo.objeto de pesquisa a violência contra as mulheres por nos chocarmos com os altos índices desse tipo de violência situados no nosso presente. Acreditamos que. em grande parte. mas também do tempo. almeja a construção de uma sociedade futura menos patriarcal. Procuraremos observar que além do passado o ofício do historiador trabalha também com o presente e traça um perfil. como muitos preferem acreditar. pesquisar sobre mulheres torna-se uma questão de militância. 185 . o que nos levou a buscar explicações históricas para tais acontecimentos. como historiadores. mas de um grande número de grupos que hoje emergem como objetos necessários de pesquisas. entendemos que se torna necessário um grande cuidado com a questão não só dos fatos. entendemos sim que há uma necessidade de trabalhar não apenas como historiadora. que através das interpretações dos fatos passados. Assim. de vital importância para nossas pesquisas históricas. mas também como cidadã e mulher. queremos entender e refletir sobre os preconceitos socioculturais e outros do nosso ambiente e das nossas experiências específicas. somos fruto de nossa época. de vitimização das mulheres. com a luz do presente. Sabemos que não é função dos historiadores a previsão do futuro. para o futuro. mas coletivas. assim. do ponto de vista da nossa pesquisa. não só por posições individuais. utilizado como referência para um futuro próximo. ainda que superficialmente. Gostaríamos. O que ocorre e fica explícito no texto da já citada autora Miri Rubin é que estudos que abordam a mulher como objeto central das pesquisas são ainda majoritariamente realizados por historiadores do sexo feminino. O intuito preponderante é trazer à tona temas pertinentes à sociedade que antes não eram pesquisados pela marginalização histórica não só das mulheres. uma mulher. para tanto. e sim retratar como ocorreram as mudanças no decorrer do tempo acerca dos assuntos pesquisados sobre determinada sociedade. Mas acreditamos que o que agora pesquisamos poderá ser. e. não é simplesmente uma questão de militância. que o objetivo do nosso ofício não é interferir no futuro. E isso nos remete à idéia de que se o autor do estudo é uma historiadora. Isso ocorreu não apenas por fazermos parte do gênero. de abordar. que não quer dizer previsão. sobre a relação presente entre o ofício do historiador e o tempo. sua única advertência tangível. É inevitável fazer comparações entre o passado e o presente [. ela permite sim expor as origens do presente e iluminar as circunstâncias de sua gestação. Mais uma vez nos reportamos à obra já citada de Edward H. É inevitável que nos situemos no continuum de nossa própria existência. 186 . Podemos aprender coisas erradas – e.24). 2005.. É algo incompleto e em processo de vir a ser. mas se não aprendemos. 102-103). ou nos recusamos a aprender de algum passado algo que é relevante ao nosso propósito. no limite. 49-67). p. da família e do grupo a que pertencemos. não é algo no presente. mas de todos aqueles que querem trabalhar para a reformulação da sociedade (CARR. Carr para nosso estudo. ou não temos nenhuma oportunidade de aprender.. a demanda de prever ou montar um modelo para ele é forte demais para ser desconsiderada. 1998. A tarefa do historiador nessa questão é liberar e organizar as energias humanas no presente. p. presente e futuro não são apenas questões de interesse vital para todos: são indispensáveis. mas. funcionamento e transformação. é o que fazemos com freqüência. Ainda nesse sentido. O autor retrata que o absoluto na história não é algo no passado de onde partimos. A experiência histórica de uma sociedade é seu único referencial positivo. Enrique Moradiellos afirma que a história científica não pode “preceder” ao futuro. Aqui. nem proporcionar exemplos de conduta infalíveis. Nessa perspectiva. pois todo pensamento presente é necessariamente relativo. Entretanto. presente e futuro A postura que adotamos com respeito ao passado. nos ateremos a um ponto essencial que Carr retrata e tem uma fundamentação para nós imprescindível: a relação entre o tempo futuro e o historiador. Uma espécie de historicismo. positivamente. na prática. Hobsbawm afirma que é claro que não há nenhuma necessidade teórica de se especificar o futuro. ou seja. mentalmente anormais (HOBSBAWM. p. pois é o que a experiência significa. algo no futuro em direção ao qual nos movemos. 1982.]. evitando assim toda operação de salto no vazio e toda atuação às cegas ou por simples tato (MORADIELLOS. somos. Não podemos deixar de aprender com isso. para saber a que se ater e poder perfilar os planos e projetos que se propõe a executar no presente e de cara no porvir. tendo em vista o futuro não só do historiador.O historiador e o tempo passado. muitas vezes decepcionante. em algum tipo de inferência sobre o futuro a partir daquilo que aconteceu no passado. desde que estas sejam associadas a problemas modernos. É claro que isso se trata de uma atividade muito arriscada. Meramente reflete e. até o intelectualmente complexo e intenso. com ou sem investigação histórica. mais a história se torna essencial para descobrirmos como será. quanto mais esperamos inovação. Teoricamente. talvez em alguns casos. mas. Ao investigarmos sobre o rumo do desenvolvimento social. mas. mas uma grande parte é. as pessoas na sociedade contemporânea têm de confiar neles. pode ser uma mensuração necessária disso. implica em olharmos o futuro na medida do possível. unidade do passado. atenua a insuficiência presente. E. pode ser algo universalmente apreendido. a partir da história. também. paradoxalmente. uma atividade necessária. foi o método mais conveniente e popular de previsão. e o que podemos fazer a respeito. a visão do futuro como um presente maior e melhor. de mergulhar no passado para auxiliar a previsão do futuro requer uma análise maior do que a que tem recebido até hoje. E toda previsão sobre o mundo real repousa. Por si só. A história. Esse procedimento pode ir desde o muito ingênuo. toda e qualquer coisa que aconteceu até hoje. por mais deficiente que seja a capacidade humana de evocá-la e registrá-la. ou um presente maior e pior – tão características das extrapolações tecnológicas ou antiutopias sociais pessimistas –. a forma do futuro é vislumbrada mediante a procura de pistas no processo de desenvolvimento passado. de forma que. o passado. todo o passado. constitui a história. ainda que irreconhecível ou imprecisa segundo nossos critérios. não substitui a construção de modelos sociais adequados. ou seja. 1998.49-67). a história continua a ser a base de ambos (HOBSBAWM. Entretanto. A história não pode 187 .a extrapolação mais ou menos sofisticada e complexa de tendências passadas para o futuro. presente e futuro. essencialmente. a natureza desse processo. Uma boa parte dele não é da competência dos historiadores. muitas vezes arbitrário. delegando-lhes uma função social ativa na sociedade. Em todo caso. O valor da investigação histórica sobre “o que de fato aconteceu” para a solução deste ou daquele problema específico do presente e do futuro é inquestionável e tem dado novo alento a algumas atividades históricas um tanto quanto antiquadas. em grande parte. na medida em que compilam e constituem a memória coletiva do passado. e algum tipo de cronologia. p. 49-67). Como última exemplificação. remeter-nos-emos a nossa pesquisa: ao pesquisarmos violência contra mulheres. não só de quem escreve. 1986. progressivas ou com rupturas. como os demais seres humanos. através 188 . no mínimo porque não há nenhuma linha separando os dois. historiadores. Em consonância. Dentro desse continuum. Adaptando a frase de Auguste comte.se esquivar do futuro. Acreditamos que nós. p. ou pelo menos uma minoria. não podemos afirmar que isso não mais existirá no futuro. mas acreditamos que podem ajudá-lo a ser melhor. lutarmos por ele e nos animarmos quando descobrimos que a história parece estar seguindo o caminho que imaginamos. quais as transformações pelas quais passam dentro da sociedade. essa é sua essência (BORGES. temos o direito de projetarmos um futuro desejável para a humanidade. Por isso e para isso trabalham os historiadores. mas acreditamos que. Claro está que aqui mostramos nossas idéias de crença na função social extremamente necessária do historiador para com a sociedade da qual participa como membro ativo. mas também das idéias dos vários autores mencionados que tiveram nossa interpretação sobre os seus escritos. o presente e o futuro. A finalidade da história e do historiador é ter interesse dentro de uma perspectiva tripla que envolve o passado. presente e futuro constituem um continuum. mesmo que muitos historiadores possam até não mais levar adiante suas formulações. Passado. pode ou não ser desejável testar a previsão. dentro da qual nos incluímos. savoir não é pour prévoi. mas prévoir é parte do savoir. o que com eles ocorre concretamente. Sabemos que por certo se torna impossível chegar a uma conclusão sobre uma abordagem tão complexa a respeito de um tema tão profícuo. O que aqui foi exposto representa pensamentos repletos de subjetividade. enfatiza que a finalidade da história é estudar e analisar o que realmente aconteceu e acontece com os homens. que muitos outros estudos possam vir sobre um tema tão importante. em O que é história. O horizonte a se chegar sobre a “função social do historiador” permanecerá em aberto. p. prever faz parte do saber (HOBSBAWM. Compreendemos que nossos estudos não podem interferir diretamente no futuro. ou seja. 1998. estaremos sim trabalhando para colaborar. Vavy Pacheco Borges. 60-84). porque tal formulação implica referências ao futuro. sejam elas descontínuas. mas ela emerge automaticamente da formulação de proposições. como historiadoras. Enrique. Miri. São Paulo: Brasiliense. CERTEAU. Que é história? Rio de Janeiro: Paz e Terra. São Paulo: EdUNESP. O que é história. de. RUBIN. 3-31. Qué es la história?. SCOTT. História das mulheres. História &teoria : historicismo. 2006. p. El Ofício de historiado. LE GOFF. 189 . 203-231. São Paulo: EDUSC. a necessidade de distanciamento entre o historiador e o objeto estudado –. 2005. A escrita da história. In:______. com a existência de uma sociedade com índices menores de violência contra mulheres. Artigo recebido em de 2008 e aceito para publicação em outubro de 2008. (Coord. D. p. Josep. Rio de Janeiro: Forense Universitária. HOBSBAWM. Rio de Janeiro: Editora FGV. 3ª ed. P. p. (Org. V. p.) A escrita da história: novas perspectivas. M. In: ______. BURKE. REIS. historiadores. H. Jacques. E. São Paulo: Companhia das Letras.). Nossa escrita talvez não mencione tal fato tão explicitamente. temporalidade e verdade. ainda prepondera entre nós. Sobre a história. 1994. In:______. 1982. CARR. MORADIELLOS. Que é a história hoje? Lisboa: Gradativa. 1986. 2003. 65-119. por ser considerado por muitos um erro diante da nossa profissão – infelizmente.63-95. São Paulo: EdUNESP. J. 1982.de nossas pesquisas. In: BURKE. 1929-1989. A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales. Passado/Presente. P. Campinas: EdUNICAMP. J. 111-128. modernidade. A história dos homens. FONTANA.. 1991. p. Referências BORGES. Que é a história cultural hoje? In: CANNADINE. P. 2004. A operação historiográfica. História e memória. José Carlos. E. mas a cidadã presente na historiadora certamente o fará. Madrid: Siglo XXI. 1998. 1992. literature and society. Professor de Literatura Brasileira do Curso de Letras da Universidade Estadual de Goiás (UEG)/UnU de Campos Belos. Literatura e sociedade a) A responsabilidade social do artista Só escuta aquilo que o poema diz quem escuta. poetry and resistance. Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade. poesia e resistência. most importantly. escolhemos como corpus para nossa análise o livro A Rosa do Povo (1945). de Carlos Drummond de Andrade. literatura e sociedade. specifically poetry.com 190 . Theodor Adorno Antes de analisarmos a vertente social em A Rosa do Povo. Abstract: This article aims to make evident and examine several aspects related to the artist’s social responsibility and also to the social funcion of literature. responsabilidade social do artista. temos como objetivo evidenciar e examinar aspectos diversos relacionados à responsabilidade social do artista e à função social da literatura. por tratar-se de uma obra em que há o predomínio de uma vertente explicitamente social e. the artist’s social responsibility. a voz da humanidade. To do so. it brings up questions related to the context of modernity.com 2 Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Goiás (UEG)/UnU de Campos Belos. Keywords: Carlos Drummond de Andrade. Para tanto. E-mail: camargolitera@gmail. E-mail:
[email protected] E SEU TEMPO: A VERTENTE SOCIAL EM A ROSA DO POVO DRUMMOND AND HIS EPOCH: THE SOCIAL PERSPECTIVE IN A ROSA DO POVO Flávio Pereira Camargo1 Larissa Cardoso Beltrão2 Resumo: Neste artigo. por trazer questões referentes ao contexto da modernidade. em sua solidão. faremos uma breve explanação 1 Doutorando em Literatura pelo Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (TEL/UnB). de Carlos Drummond de Andrade. especificamente a da poesia. Carlos Drummond de Andrade’s A Rosa do Povo (1945) has been chosen as the subject of analysis since it is a work in which an explicitly social perspective is predominant and also because. sobretudo. como uma função cognitiva levando-se em consideração o seguinte aspecto: se não reconhecermos o artista como um “instrumento de visão”. afirma que os fatores sociais exercem influência concreta na manifestação artística. Portanto. obra e público: [a obra] pressupõe o jogo pertinente de relação entre os três [artista. O referido autor acredita não ser possível ao homem reproduzir aspectos da realidade sem uma reflexão crítica sobre os mesmos. De acordo com Merquior (1996. que é exatamente a condição cognitiva da arte que pode conferir aos artistas condições para tratarem de assuntos sérios. a ideologia do artista está. ser artista já é uma responsabilidade social. pois não haveria como o artista (re)produzir sem uma reflexão sobre um dado aspecto da sociedade. ou seja. 238). uma vez que. podemos verificar a existência de uma relação pertinente entre artista. cabe ao artista a responsabilidade pelo simples fato de fazer arte. à medida que a sociedade determina seus valores e suscita a necessidade de um gesto político. recorremos. o artista deveria colaborar na e para a formação de uma sociedade com uma visão crítica. o processo de reflexão é inerente à obra. um compromisso social com a sociedade e seus múltiplos aspectos sociais. Para analisarmos a responsabilidade social do artista. constantemente. p. tornando-se. a José Guilherme Merquior (1996). um instrumento de transformação social. enquanto um sistema simbólico de comunicação inter-humana. em dissonância com a realidade que se lhe apresenta. a partir de uma indagação estética. O público dá sentido e realidade à obra. em Literatura e Sociedade. políticos e econômicos. Antonio Cândido (2000). principalmente quando se trata das sociedades subdesenvolvidas econômica e culturalmente. Ademais. “não há como exigir dele uma responsabilidade” (MERQUIOR. 239). com enfoque sobre a responsabilidade social do artista e sobre a função social da literatura. pois ao analisarmos a arte. Nesse sentido. e sem ele o autor não se realiza. p. entre outros teóricos. 238).sobre a relação entre literatura e sociedade. acreditamos. assim. de acordo com Merquior. pois ele é de certo modo o espelho que 191 . que formam uma tríade indissolúvel. Devemos compreender a arte. p. 1996. com base nos pressupostos de Merquior (1996. obra e público]. Antonio Candido (2000) e Antônio Secchin (1996). portanto. assim.]. p. permeado por seus aspectos ideológicos. conforme assinala Antônio Secchin (1996. p. no interior do poema mecanismos de significação dificilmente localizáveis fora dele” (SECCHIN. A mudança de percepção no campo artístico transformou a poesia em um mecanismo capaz de trazer à tona uma pluralidade de verdades.. 18). Para o autor. pois. A maior parte da poesia engajada – incluindo a poesia engajada de Drummond – encontra-se à esquerda do espectro político. [. tanto os valores sociais. cada vez mais. o público é fator de ligação entre o autor e sua obra (CANDIDO. O público é o receptor da arte cabendo a ele a integração do conteúdo artístico nos seus diferentes aspectos. 1996. 2000. das quais a sociedade se dispõe. quanto as técnicas de comunicação. na nova ordem mundial. p. que literatura e sociedade mantêm uma estreita relação. 1996. Em relação a esse espaço de insubordinação da poesia na nova ordem mundial. Nesse contexto. 18). 33). Podemos dizer. exatamente pelo fato de desvincular-se das idéias do discurso normativo e abandonar a idéia de uma verdade única e incontestável. somos levados a considerar a poesia como um espaço de insubordinação. passando a conferir à nova produção poética tensões e atritos baseados nas diferenças tendo em vista que “a ordem do discurso poético se abastece sob o controle que a metáfora introduz: ela desencadeia.. p. Deste modo. 192 . o referido autor afirma que “[a] poesia não se compromete com a verdade.reflete a sua imagem enquanto criados. O discurso poético teria. permanecendo. a metáfora ocupa um lugar privilegiado. absorve e expressa as condições do contexto em que é produzida. À medida que o discurso poético desvincula-se. ela não está comprometida com uma verdade unívoca. pois a produção poética. como uma de suas funções retratar as fraturas resultantes da relação do homem com a sociedade. exercem certa influência sobre a obra de arte e contribuem para o reflexo da posição social do artista em relação a um determinado acontecimento. 19). haja vista que. das idéias do discurso normativo. por exemplo. pois um de seus atributos é exatamente o de provocar um circuito clandestino de sentido que faça oscilar o terreno sólido onde versões de verdade se sedimentaram” (SECCHIN. sujeita às variações que nele ocorrem. alguns aspectos relacionados à relação entre literatura e sociedade. particular. grifos nosso). pela angústia e pelo sofrimento. inicialmente. nos poemas de A Rosa do Povo. falsa consciência. sobretudo.] ideologia é inverdade. entre outros aspectos.b) “Poesia e resistência” [. Após essas considerações. Ela se manifesta no malogro das obras de arte. Não que aquilo que o poema lírico exprime tenha que ser imediatamente aquilo que todos vivenciam. conquistam sua participação no universal. Alfredo Bosi (2000) e Octavio Paz (1984). no que estas têm de falso em si mesmas. não é a mera comunicação daquilo que os outros simplesmente não são capazes de comunicar. o particular adquire universalidade tão logo adquire configuração poética. pois uma experiência única. que deve ser apontado pela crítica. ao tomar forma poética. pois o poema não é simplesmente a expressão de uma emoção pessoal.. como verificamos. Ao contrário. por antecipação. com base nos pressupostos teóricos de Theodor Adorno (2003). e.. individual. estas só se tornam artísticas quando.g. a presença do medo e dos horrores da guerra que afligiram toda a sociedade de uma época marcada. Sua universalidade não é uma volonté de tous. Conforme verificamos na citação anterior.. Theodor Adorno (2003) explora as relações entre lírica e sociedade. Adorno afirma que um poema não é mera expressão de emoções e experiências individuais. Em seu ensaio intitulado “Palestra sobre lírica e sociedade”. individual transcende o particular ao ganhar forma 193 . torna-se universal. de ainda não submisso. mentira. p. o mergulho no individuado eleva o poema lírico ao universal por tornar manifesto algo de não distorcido. Para o autor. 2003. expressa um sentimento coletivo. capaz de abranger toda uma coletividade. Em relação ao teor social presente na lírica. anunciando desse modo. de não captado. universal. no fundo algo particular. pelo contrário. passaremos a uma breve análise da relação entre lírica e sociedade. em que temos. Theodor Adorno Na primeira parte de nosso trabalho. esboçamos. acorrente o outro. toda e qualquer experiência individual. T. algo de um estado que nenhum universal ruim. o universal humano (ADORNO. justamente em virtude da especificação que adquirem ao ganhar forma estética. ou seja. Pelo contrário. 66. 68). tanto das geometrias clássicas como dos labirintos barrocos. Paixão vertiginosa. À medida que os anos passam. Ela se manifesta no malogro das obras de arte. p. Para Adorno (2003. explorado de variadas maneiras. Ademais. De acordo com Adorno. Desse modo. ao contexto socioeconômico da época e à situação do trabalhador – considerado um ser reificado pelo capitalismo – que ajusta seu relógio com o das fábricas. conforme assinala Octávio Paz no fragmento abaixo: Desde seu nascimento. 194 . Em um poema lírico também podemos verificar a presença de várias ideologias que se manifestam no interior da própria obra de arte. pois uma de suas funções é exatamente questionar as falsas ideologias que são veiculadas na e pela sociedade. grifos nosso). somente a poucos é dado o privilégio de apreender o universal no individual. falsa consciência. ao capitalismo crescente na década de 1940. o que está expresso na voz de um eu lírico particular pode ser estendido a toda uma sociedade. verificamos o predomínio de culto ao novo e as novidades que surgem a todo instante desencadeiam uma ruptura com os ideais estéticos. a “ideologia é inverdade. no que estas têm de falso em si mesmas”. como crítica e como paixão. sobretudo. assim. pressionado pelo capitalismo. As mudanças da história fizeram com que nos submetêssemos a ele. Outro aspecto a ser considerado é o fato de a subjetividade poética ser fruto dessa falta de acesso do “povo” ao universal.estética. observamos uma crítica. 1984. perde a sua sensibilidade de apreender o poético. uma dupla negação. p. pois culmina com a negação de si mesma: a modernidade é uma espécie de autodestruição criadora (PAZ. que resultaram em um tempo cíclico recorrente de um inexorável processo de ruptura. a imagem do tempo vem se transformando. as experiências consideradas particulares podem ser ampliadas a toda uma coletividade. mentira. a modernidade é uma paixão crítica e é. de forma que ele deixou de ser um acidente e transformou-se em momentos sucessivos. pois o homem moderno. 19. À medida que a resistência da poesia – considerada como uma técnica autônoma de linguagem – se afirma. Ao analisarmos a questão da arte e da poesia na modernidade. pois. Octávio Paz (1984) acredita que a heterogeneidade do tempo histórico opõe-se à unidade do tempo real. contudo. Octávio Paz (1984) defende a idéia de que a acelerada sucessão dos acontecimentos históricos. compreender a precedência da forma literária sobre a estrutura social. a tradição moderna é a primeira a fundamentarse na mudança. não o tempo em que é. história . que busca fundamentar-se na mudança.todos esses condensam-se em um: futuro. 19). é fruto de uma sociedade singular. mas porque as coisas passam neles e. mas o tempo que ainda não é que sempre está a ponto de ser (PAZ. evolução. segundo ele. Não importa a civilização à qual pertence determinada forma de expressão artística. desenvolvimento. conforme salienta o autor no fragmento abaixo: Diferença. segundo Octávio Paz (1984. A tradição da modernidade tende a eliminar a oposição entre passado e presente. sua aparição no campo estético provoca mudanças e uma ruptura com a tradição. grifos nosso). 34. Enfim. não se preocupa nem com o passado nem com a eternidade. p. haja vista que “a 195 . uma vez que a concepção moderna de tempo levanos a acreditar que a aceleração dos tempos ocorre não porque os dias passam rápido.Nesse sentido. No contexto da modernidade há uma ruptura de todas as formas de pensar dos povos da Antigüidade. consideraremos como tradição moderna aquela que rompe com as posições entre o antigo e o moderno. heterogeneidade. Não o passado. pluralidade. Um marco histórico que servirá de divisor de águas. desde que se apresente como negação da tradição da sociedade da época em que foi escrito. 1984. ainda que considerada ilusória. A época moderna. É necessário. É nesse sentido que o autor levanta a questão do temor com o qual os povos antigos olhavam o futuro e apresenta a modernidade como uma tradição voltada exatamente para o futuro. pois o velho de milênios pode ser considerado moderno. ou seja. novidade. uma produção de visão. p. revolução. confluindo para o processo de aceleração do tempo histórico. quase ao mesmo tempo. sua produção artística é baseada no que pode acontecer. simultaneamente. ao invés de se basear no passado e em princípios consolidados. no qual a tradição moderna é vista como uma ruptura radical entre passado e futuro. separação. A expressão “tradição moderna” é o reflexo de nossa civilização. Diante da situação de instabilidade instaurada entre o poeta moderno e a sociedade burguesa. verificamos que é crucial a construção de uma consciência social. 69). Acreditamos que este foi o início da desestabilidade da relação entre o poeta moderno e a burguesia.. o passado deixa de ser uma mera fotografia na parede. p. que pode ser vista como 196 . pois o artista não consegue estabelecer uma relação de analogia com essa sociedade. precisaram transformar sua linguagem em meio ao sentimento de caos e crise. voltada para a complexidade da experiência histórica e política. No campo poético. a explosão industrial do século XIX trouxe uma série de modificações no comportamento da humanidade. revestida por um fator social que se responsabiliza pelo todo. nega este contexto. ocasionando uma busca pela renovação de termos e da qualidade. no poema “Retrato de família” – e de Itabira. sobretudo. 2003. como podemos observar na passagem que segue: Na passagem do século XIX para o século XX as criações artísticas passaram a refletir as transformações estéticas ocasionadas pelas mudanças ocorridas nos elementos externos e internos. pois em alguns de seus poemas. devido às mudanças sociais ocasionadas pela pressão histórica da época. que resgata. Nesse contexto sócio-econômico. ao mesmo tempo. ao mesmo tempo. Adorno (2003) vê o poema como um transmissor histórico no qual a interpretação social está vinculada à contingência individual do poeta e. observamos o resgate de uma memória pessoal e coletiva. portanto. dessa linha temática. a agitação da vida nas metrópoles provocou uma abertura em relação à linguagem. Em decorrência do que expomos até o momento. estabelecendo uma relação de ironia entre o poeta e a sociedade. instaurado pelo clima de mudança (ADORNO. e. Os poetas sentiram o peso da evolução de uma forma mais acentuada. Nesse sentido. a idéia de passado e suas infinitas recordações surgem no campo poético como uma espécie de fuga.g. A poesia moderna. Podemos dizer que os pré-românticos abriram caminho para a luta entre o campo poético e a ordem burguesa.poesia moderna oficia no subsolo da sociedade e o pão que divide entre seus fiéis é uma hóstia envenenada: a negação e a crítica” (PAZ. 84). nasce no contexto da modernidade e. ao mesmo tempo. a memória da infância. sua cidade natal. p. 1984. da família – como. Na criação poética de Drummond. pois esse movimento representou o nascimento de uma nova forma de percepção do homem. Drumond e seu tempo a) A vertente social em A Rosa do Povo Obras de arte [. Eis um dos aspectos que passaremos a analisar em alguns poemas de A Rosa do Povo. Seu próprio êxito. Por um lado. No Brasil. a sensação de angústia e solidão. Os poemas refletem ainda a ideologia revolucionária do poeta e manifesta sua revolta em meio ao caos da década de 1940. Drummond. sentir e interpretar a sua existência. tinha seu foco poético centrado na subjetividade e no individualismo do eu lírico..reflexo dos novos paradigmas poéticos da modernidade. além de desenvolver uma nova forma de ver. de Drummond. Nesse contexto sócio-político. Portanto. 197 . o espírito moderno.] têm sua única grandeza em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde. é fruto das novas experiências que o ser humano vivencia na urbe moderna. as possibilidades de realização material e econômica. por outro. após a revolução artística. sua ordem e visão de mundo podem ser consideradas renovadoras. e. o Estado Novo perdia o apoio dos intelectuais provocando conflitos que levaram a população a circunstâncias dramáticas. Theodor Adorno Os poemas de A Rosa do Povo foram escritos entre 1943 e 1945. e da ditadura militar de Getúlio Vargas.. esse livro é considerado pela crítica literária uma obra-chave dentro da produção poética de Drummond. verificamos diversas referências aos acontecimentos sociais. até então. inerentes ao ser fragmentado em decorrência do desespero existencial diante de uma sociedade capitalista . políticos e econômicos daquela época. época na qual os horrores da Segunda Guerra Mundial afligiam toda a humanidade. Publicado em 1945. resultantes da relação entre literatura e sociedade. A estética moderna possui vários aspectos temáticos. Nos poemas que compõem o livro. voltou-se para o aspecto histórico-social. passa além da falsa consciência. quer elas queiram ou não. que. 49). p.Passando da teoria à prática. 49). Um inseto cava cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape. Contudo. o eu lírico é tomado por certa esperança. o nascimento da orquídea pode ser visto como uma situação antieuclidiana. A presença da metáfora da noite asfixia ainda mais a situação em que se encontra o inseto. Nos dois quartetos supracitados. p. antieuclidiana. em meio ao sentimento de desilusão pertinente ao ser cansado de procurar por algo sem encontrar uma resposta sequer. uma orquídea forma-se (ANDRADE. 1945. pois nos remetem a uma realidade subterrânea. Que fazer. haja vista que este fenômeno quebra a lógica convencional: uma orquídea que nasce em meio a um labirinto subterrâneo sem saída. em país bloqueado. no qual se encontra o inseto. O contexto histórico da produção desse poema nos dá margem a mais de uma interpretação. As palavras “raiz” e “minério” sugerem ainda uma vasta escuridão. de modo a examinar e a evidenciar a responsabilidade social do artista e a função social da literatura. sozinha. orquídea. representada pelo nascimento de uma orquídea: Eis que o labirinto (oh razão. 198 . enlace de noite raiz e minério? (ANDRADE. “A flor e a náusea” e “Nosso tempo”. Iniciaremos nossas reflexões com a análise do poema “Áporo”. situação sem saída. a princípio. Nestes dois tercetos. Para tanto. 1945. gostaríamos de destacar. passaremos à análise dos poemas “Áporo”. Drummond apresenta-nos um inseto que cava a terra inutilmente. algo sem passagem. à procura de uma saída. problema difícil. exausto. mistério) presto se desata: em verde. as acepções abordadas pelo dicionário Aurélio para a palavra áporo: inseto. Melancolias. Já em “A flor e a náusea”. e. eram ignoradas em função dos interesses políticos. Trata-se de um período que envolvia toda uma situação de censura e espionagem. como o mais celebre poema da vertente social de Carlos Drummond de Andrade. aqueles marcados pela 2ª Guerra Mundial. época da criação do Estado Novo. assim como em “Nosso tempo”. revoltar-me? (ANDRADE. 1945. melancólico. com suas roupas brancas. transforma-se em uma reles mercadoria. surja uma luz. Nos primeiros versos que abrem o poema. políticas e econômicas que começavam a germinar. com suas máquinas. deixando-o em estado de dilaceração. considerado por alguns críticos renomados. onde as liberdades individuais. como. “A flor e a náusea” foi escrito em 1945. Em vários versos desse poema observamos uma tentativa. Verificamos. Vejamos: Preso à minha classe e a algumas roupas. nesses versos. por parte do eu lírico. o eu lírico nos remete ao processo de coisificação do homem que. suas indústrias e fábricas que sugam a seiva que corre pelas veias do homem. uma imagem que nos remete à urbe moderna. É justamente em decorrência desse processo de coisificação que o eu lírico. Candido e Bosi. flana pelas ruas cinzentas da cidade modernizada e diante desse processo de modernização levanta o seguinte questionamento: como se revoltar contra a exploração do homem pela sociedade se ele nem mesmo 199 .. provavelmente. O homem moderno. a crítica em relação aos diversos aspectos da modernidade está mais acentuada. Devo seguir até o enjôo? Posso.Dessa forma. Nesse contexto de repressão política. sem armas. acreditamos que os versos de Drummond fazem alusão à situação do homem na década de 40. de expressar sua indignação face à situação sócio-econômica do Brasil e quiçá de outros paises. mercadorias espreitam-me. fragmentado. “em país bloqueado”.g. p. o nascimento de uma orquídea pode ser associado à esperança do eu lírico de que em meio ao labirinto. 13). que estaria sendo anunciada pelas sementes de futuras transformações sociais. explorado pela máquina. deu origem à militância poética de Carlos Drummond de Andrade. Vou de branco pela rua cinzenta. pela sociedade do espetáculo. sobretudo. Temos na cidade um relógio que. alucinações e espera. menos livres. Todos os homens voltam para casa. nos versos supracitados . marca. de tempos melhores. A Revolução Industrial incidiu sobre o comportamento da humanidade de forma avassaladora e. a marcha da história.possui armas. para saber um pouco mais sobre o mundo que estão perdendo. 1945. 13). podemos notar que o relógio. o seu tédio. o tempo não chegou de completa justiça. sobretudo. sobremaneira. Os homens coisificados voltam para casa em movimentos autômatos e. nos remete ao trabalho do operário que se encontra submisso à rotina imposta pelas fábricas. A responsabilidade social do artista também é questionada nos versos supracitados. mesmo que o tédio ainda permaneça sobre a cidade. como lemos nos versos seguintes: Olhos sujos no relógio da torre: Não. Pode não haver armas. Eis o dilema do poeta: o que fazer diante de tal situação? Qual a sua responsabilidade diante desse tempo que se lhe apresenta tão cruelmente? Associado a esse tempo avassalador está o sentimento de esperança do poeta. O poeta vaga sem rumo e pensa em vomitar. fruto do embate com o tempo 200 . Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo. pois ainda há uma perspectiva de mudança. maus poemas. além de marcar as horas. sabendo que o perdem (ANDRADE. irrecuperável. 1945. Quarenta anos e nenhum problema resolvido. Eles voltam levando consigo seus jornais. Nenhuma carta escrita nem recebida. sobre a sociedade. sequer colocado. p. As grandes multidões da cidade moderna possibilitaram ao poeta a descrição de cenas carregadas dos diversos problemas sociais da época. O tempo é ainda de fezes. nesse contexto. o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse (ANDRADE. símbolo do tempo avassalador. mas há a náusea e o enjôo diante de um tempo repleto de injustiças. 13). mas pode mudar. p. a sua náusea. assinalado pelo advérbio “ainda”: “o tempo ainda é de vezes”. como verificamos nos versos seguintes: Vomitar esse tédio sobre a cidade. O tempo pobre. que aceita a realidade à qual está sendo submetido e ainda continua preso a atos mecânicos. do fundo da superfície. É aquela que “furou o asfalto. Vejamos a última estrofe: Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura. o poeta vislumbra uma saída. aos ônibus e à multidão que passa apressada. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. assim. Furou o asfalto. rio de aço do tráfego. O nascimento de uma flor. símbolos de nossa modernidade. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia. 14). desobedecendo. rompe o asfalto. Em meio à clausura sócio-existencial da época. do desenvolvimento e progresso das grandes cidades. Mas é realmente uma flor (ANDRADE. 14). o homem reificado deveria estar trabalhando. que rompe o asfalto e surge em meio aos bondes. o nojo e 201 . da aceleração do tempo. que surge com a pré-determinação de romper com o processo de coisificação do homem. caracteriza a aparição de algo novo. Pequenos pontos brancos movem-se no mar. como lemos nos versos abaixo: Uma flor nasceu na rua! Passem de longe. Mas é uma flor. o tédio. Façam completo silêncio. 1945. em meio a esse caos e a essa descrença diante da modernidade ainda há uma esperança: eis que brota. É feia. dando sinais claros de que a mudança está para acontecer. o nojo e o ódio (ANDRADE. Entretanto. ainda desbotada. Todos estes. uma flor. O eu lírico deixa a condição da realidade alienada assumida pela massa na ordem capitalista e senta-se no chão da capital do país às cinco horas da tarde. ônibus. nesse horário.moderno. segundo a qual. É feia. 1945. paralisem os negócios. O nascimento da flor é responsável pelo desabrochar de um mundo novo. bondes. Sua cor não se percebe. galinhas em pânico. garanto que uma flor nasceu. p. nuvens maciças avolumam-se. ainda que feia e desbotada. O poeta é acometido por uma consciência moral que o faz julgar a suposta liberdade do citadino. Do lado das montanhas. o tédio. à dinâmica da vida moderna. p. abordaremos alguns destes aspectos apontados pelo poeta. o homem do “tempo de partido” é um homem que sofreu com a guerra e. explorados. condicionados às suas diversas implicações. e escreve-se na pedra (ANDRADE. cansados do trabalho exaustivo das fábricas. em uma sociedade cujas leis não são capazes de propiciar a devida segurança ao citadino. 1945. Drummond aborda. os crimes. É um tempo de violência. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. Em vão percorremos volumes. Em nossa análise. Trata-se de um tempo em que os homens. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. pois ainda hoje vivemos sob os auspícios da sociedade moderna. fragmentados. além do corpo. É tempo de “homens partidos”. Drummond retrata diversos aspectos relacionados ao homem e à cidade moderna. é esmagado por uma classe opressora que destrói. o tempo da modernidade. ou se eles têm. os assaltos. antes explorado. social e política? Eis uma reflexão que nos leva a afirmar a atualidade dos poemas de Drummond. trata-se de um tempo em que os homens sentem fome e frio. 202 . tempo de homens partidos. melhores condições de vida. não só de guerras. têm. mas. Sapatos. viajamos e nos colorimos. vagam pelas ruas da cidade moderna. Drummond apresenta a mutilação do ser. Além disso. Nesse poema. a violência do homem contra o próprio homem. 25). mesmo assim. Fogo. pois não têm onde morarem. Resta apenas o questionamento: será que chegamos a esse tempo? Será que nossa sociedade já se transformou e o homem. Nem tudo está perdido. Os homens pedem carne. nos momentos atuais. solitários. Eis o tempo da fragmentação apresentado por Drummond: Este é tempo de partido. passaremos à análise do poema “Nosso tempo”. para terem um mínimo de dignidade humana. Por fim. o que ganham não é o suficiente para alimentar a todos os membros da família. Composto por oito partes. sobretudo. há ainda uma esperança de dias melhores. sobretudo. incluindo aí aspectos de ordem econômica. a sua própria consciência. Meu nome é tumulto. de uma sociedade mais justa. a violência urbana.o ódio”. nesse poema. p. “irritadas. ainda é “tempo de viver e contar”. apenas querem explodir (ANDRADE. mas ainda é tempo de viver e contar. nossas memórias de tempos em que não havia essa fragmentação e tudo era tão mais calmo. pela esquerda sobe-se. Drummond reveste sua poética dos acontecimentos que assolavam o contexto histórico-cultural da época e afligiam toda humanidade: “Guerra. sufocadas. sentem a necessidade de explodirem. são roucas e duras. Certas histórias não se perderam. como vemos nos versos seguintes: Mas eu não sou as coisas e me revolto. Nos versos seguintes. As palavras do eu lírico. sem armas. irritadas. particulares do eu lírico vão assumindo uma dimensão coletiva e universal. de resgatar o nosso passado. pois seria através da palavra. verdade. rebelando-se contra a coisificação à qual homem é submetido. mais uma vez as flores aparecem em sua poética como o símbolo da esperança de que as guerras cessem dando origem há um novo tempo.Diante de tais problemas. enquanto detentor do poder de discurso. Entretanto. pela direita entra-se. revolta-se: “mas eu não sou as coisas”. consciente de sua responsabilidade social. nostálgicas de bailado. mais lento e mais singelo. enérgicas”. A responsabilidade social com a qual o poeta se comprometeu pode ser observada à medida que os elementos individuais. flores?”. enérgicas. 203 . p. ainda é tempo de viver um pouco mais. do discurso que o eu lírico poderia se rebelar contra a sociedade moderna. Conheço bem esta casa. comprimidas há tanto tempo. Tempo de mortos faladores e velhas paralíticas. perderam o sentido. nossas histórias de vida. É tempo de muletas. por vezes . 25-26). confirmamos a imersão do eu lírico em um sentimento de revolta. face aos acontecimentos da época e ao tempo da modernidade que leva à mutilação do homem moderno. 1945. nossas lembranças. o eu lírico. Tenho palavras em mim buscando canal. mas com um discurso que leva à reflexão e ao questionamento. Eis os versos do poeta: E continuamos. como verificamos nos versos que seguem: É tempo de meio silêncio. aparelhos de porcelana partidos.. colchetes no chão da costureira. ó surdo-mudo. cães errântes. 1945. E muitos de vós nunca se abriram (ANDRADE.a sala grande conduz a quartos terríveis. A consciência do tenso momento histórico faz o eu lírico oscilar. comprovamos que o eu lírico. moça presa na memória. abrete e conta. ossos na rua. que falem sobre os aleijões morais aos quais estão submetidas nesse “tempo de muletas”. pequeno historiador urbano. pede desesperadamente que as pessoas se manifestem em relação aos acontecimentos da época. como o do enterro que não foi feito. Tudo tão difícil depois que vos calastes. contai. O espião janta conosco (ANDRADE. fragmentos de jornal. ó jornalista. envolto em uma sensação de náusea profunda diante da modernidade. no contexto histórico-político da época. que contêm: papéis? crimes? moedas? ó conta. velho aleijado. luto no braço. Tempo de cinco sentidos num só. Nos versos transcritos anteriormente. ao claro jardim central. contai. não permaneçam silenciadas. depositário de meus desfalecimentos. p. 204 . animais caçados. palavra indireta. devia ser entendido como um imperativo de sobrevivência. contai. de boca gelada e murmúrio. portas rangentes. aviso na esquina. a bênção. contai. 27-28). pessoas e coisas enigmáticas. 1945. à água que goteja e segreda o incesto. conduz às celas fechadas. Entretanto. solidão e asco. baratas dos arquivos. poeta.. velha preta. que elas não se calem. rapidamente. do corpo esquecido na mesa. conduz à copa de frutas ácidas. capa de poeira dos pianos desmantelados. pombas. 26-27). do incentivo ao esporo à necessidade do silêncio. a partida. p. velhos selos do imperador. o eu lírico também reconhece que o silêncio. pois “O espião janta conosco”. pelo poeta. Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos! Os subterrâneos da tome choram caldo de sopa. alimenta-te. segundo o poeta. novamente. por trás da brisa do sul. a sociedade capitalista escraviza e massacra o homem pela rotina de seus empregos. 1945. é tempo de comida. 205 . Come. p. a uma repetição alienada e exaustiva dos mesmos gestos: “come braço mecânico. pois os escritórios lentamente retomam o seu ritmo acelerado. Para Drummond. toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem (ANDRADE. O citadino é condicionado. Há ainda o contraste entre aqueles que se fartam nos restaurantes com a realidade daqueles que vivem nos subterrâneos das grandes cidades e não têm o que comer. forma indecisa. levando-o. tempo de apurar todos os sentidos em apenas um em uma questão de sobrevivência. mão de papel. como necessária à sobrevivência. evoluem. uma denúncia contra a exploração do homem pelo homem: Escuta a hora formidável do almoço na cidade. vem na areia. olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso. Multidões que o cruzam não vêem. de pessoas neutras e/ou silenciadas. Era um “tempo de meio silêncio”. mais tarde será o de amor. As bocas sugam um rio de carne. num passe. braço mecânico. alimenta-te. ainda que considerada. e os negócios. período no qual o perigo de ser denunciado por algum motivo estava em todos os lugares. Está dissimulado no bonde. esvaziam-se. conforme podemos visualizar nos versos citados. na batalha de aviões. Eis os versos do poeta em que demonstra uma forte preocupação social e. É tempo de fome: “olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso”. no canto V. legumes e tortas vitaminosas. sobretudo. Lentamente os escritórios se recuperam. assolava a sua consciência. de correr. 27-28). pois as cidades estavam repletas de espiões e informantes. É sem cor e sem cheiro. mão de papel. é tempo de comida”. É tempo de fechar negócios. no telefone. é tempo de trabalhar. Esse verso remete ao contexto da época. Os escritórios. O esplêndido negócio insinua-se no tráfego. a resgatar variados aspectos relacionados à precária condição dos homens na sociedade moderna. A condição de coisificação do homem moderno. leituras. mulher. roupa. O homem volta para casa com seus gestos mecânicos. ou outra programação qualquer. mulher. roupa. errar em objetos remotos e. imaginam voltar para casa. sob eles soterrado sem dor. confiar-se ao que-bem-me-importa do sono (ANDRADE. envolto nos mesmos movimentos reserva um horário (aparentemente o mesmo todo dia) à leitura de jornais. homem. É tempo de solidão. passeio na praia” e. chapéu. possa recuperar as forças para mais um dia de trabalho e exploração. É justamente nesse contexto que homem e objetos são nivelados no universo materialista: Escuta a hora espandongada da volta. apelo ao cassino. refluir. homem. além de criticar a sua indiferença aos horrores da sociedade industrial. imaginam. É o tempo da modernidade. Nesse sentido. roupa. roupa. de multidões. homem. homem. mulher. de homens fragmentados. permanecendo envolto em uma rotina considerada normal. é o tempo do bonde que passa apressado rumo à modernidade e aquele que não correr ficará para trás. sobretudo. apelo ao cassino. mulher. “homem depois de homem. Ao assumir gestos mecânicos. roupa. 27-28). escuta o corpo ranger. últimos servos do negócio. leituras. e se quedam mudos. roupa”. homem imaginam esperar qualquer coisa. Drummond representa o massacre dos homens escravizados por seus empregos. nas estrofes do V canto o homem é apresentado como um ser reificado. que também nos é sugerida pelo poeta: “Escuta a pequena hora noturna de compensação. de competição. “afinal distendido”. roupa. 206 . o corpo ao lado do corpo. de clausura. chapéu.É tempo. come a mesma comida. roupa homem. mulher. o despir. entre muros apagados. renegado pelo progresso e pelo desenvolvimento. cigarro. como um ritual para que o corpo. o trabalhador age como se nada estivesse acontecendo ao seu redor. por fim. que se cruzam pelas ruas e não se vêem. 1945. enlaçar. roupa. p. Escuta a pequena hora noturna de compensação. escoam-se passo a passo. o deitar também é considerado pelo poeta. homem. afinal distendido. numa suposta cidade. com as calças despido o incômodo pensamento de escravo. já noite. passeio na praia. cigarro. criança. Homem depois de homem. roupa. sentam-se. visualizamos a preocupação de Drummond em relação à veracidade das informações contidas nos jornais da época: Escuta o horrível emprego do dia em todos os países de fala humana. orquídeas e opções de compra e desquite. grifos nosso). com precisão. A mesa reúne 207 . A gravidez elétrica já não traz delíquios. verificamos a indignação do poeta em relação aos homens que julgam estar em uma cidade acolhedora. o mau romance. de imagens poéticas para retratar a vida cotidiana do homem moderno: Nos porões da família. Drummond utiliza-se. O poeta deixa evidente a sua preocupação com a responsabilidade social dos detectores do discurso levando-nos a enxergar. novamente. Há uma implacável guerra às baratas. Drummond. A figura do operário é representada pela formiga. o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores. seu comprometimento com a sociedade. 29. passeando de bote num sinistro crepúsculo de sábado (ANDRADE. de mortal feiúra. reformam-se. os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar. os frágeis que se entregam à proteção do basilisco.Na estrofe seguinte. a falsificação das palavras pingando nos jornais. a constelação das formigas e usurários. 1945. questiona mais uma vez a opressão exercida pela burguesia sobre a massa: “os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar. No decorrer do poema. Crianças alérgicas trocam-se. na verdade. Enquanto isso. vivendo de forma quase vegetativa. a constelação de formigas e usuários”. ainda que por meio de metáforas. o homem feio. que trabalha somente para manter a própria subsistência. os bancos se esbaldam com os altos índices de lucros provenientes do plantio da cana-de-açúcar. quando. Contam-se histórias por correspondência. a má poesia. p. encontram-se soterrados. A sociedade retratada por Drummond é. em “a gravidez elétrica”. Para Theodor Adorno (2003). ao demonstrar uma preocupação com o homem inserido em uma sociedade moderna com suas variadas implicações. portanto. que Drummond explorou com eficácia em boa parte de sua produção poética. e. as cenas do cotidiano. políticos e econômicos da década de 1940. e a cama devora tua solidão. a interpretação social artística não deve mirar-se somente na posição social de seus autores. pelo contrário. reflete. consciente de seu papel e da função social da poesia. segundo Adorno (2003). devem tratar da sociedade como um todo. A produção poética drummondiana apresenta. Como podemos observar nos versos citados. Em meio a esse sentimento de caos e crise. como. sobre o drama do homem moderno e sobre o seu processo de coisificação imposto pela sociedade capitalista. 208 . Considerações finais Em A Rosa do Povo. portanto. 30). O poeta. um compromisso com a humanidade e com os aspectos sociais e políticos de uma dada época.um copo. uma faca. O homem aparece como um ser coisificado em variados aspectos. Salva-se a honra e a herança do gado (ANDRADE. observamos. Eis o que faz Drummond em seus poemas de A Rosa do Povo. Este verso nos remete à idéia de que o homem da época já era concebido com pré-destinação à exploração.. o que. Nesse livro. pois. p. ainda mais. revela a responsabilidade social do artista. remetendo o leitor aos diversos problemas sociais. resultantes da rotina imposta pela ordem capitalista eram consideradas normais pela grande massa. 1945. Drummond procura desvelar as ideologias vigentes na sociedade da época. Esse sentimento de conformidade despertou em Drummond uma grande inquietude. a consciência social de Drummond. a capacidade que o homem tem de declarar uma guerra contra as baratas aguçam.g. sem perspectivas para o trabalhador. sobremaneira. o predomínio de uma vertente social e uma preocupação com questões de ordem política e econômica de forma explícita. In: _____. 17-36. A tradição da ruptura. 1996. Rio de Janeiro: Artenova. Iumna Maria. p. Theodor. São Paulo: Publifolha. p. O ser e o tempo da poesia. Drummond: uma poética do risco. São Paulo: Companhia das Letras. Notas de literatura I. 1970. A responsabilidade social do artista. A razão do poema. _____. p. In: _____. p. S. Antonio. A literatura e a vida social. São Paulo: Ática. Poesia e desordem.Referências ADORNO. 65-89. _____. p. T. Palestra sobre lírica e sociedade. Poesia e resistência. São Paulo: Duas Cidades. In: _____. p. Rio de janeiro: Nova Fronteira. 83-103. p. 2000. 2000. G. In: _____. Vários escritos. A essência da poesia. 237-242. Poesia e desordem: escritos sobre poesia e alguma prosa. 163-227. Analogia e ironia. Inquietudes na poesia de Drummond. In: _____. In: _____. Rio de Janeiro: Topbooks. Editora 34. Os filhos do barro: do romantismo às vanguardas. 93-122. CANDIDO. p. 1945. MERQUIOR. Rio de janeiro: Nova Fronteira. 1984. 37-46. PAZ. Rio de Janeiro: Topbooks. Antônio Carlos. p. 209 . _____. A função social da poesia. São Paulo: Duas Cidades. A rosa do povo. In: _____. 28-42. Os filhos do barro: do romantismo às vanguardas. 1984. ANDRADE. SIMON. 2003. 2000. Carlos Drummond de. Alfredo. In: _____. Octávio. 1996. Artigo recebido em abril de 2008 e aceito para publicação em outubro de 2008. Literatura e sociedade. Literatura e sociedade. São Paulo: Círculo do livro. In: _____. 1978. São Paulo: Publifolha. SECCHIN. p. 1972. J. Estímulos da criação literária. ELIOT. 17-35. In: _____. BOSI. 17-20. Keywords : memory. Creio que a pergunta fundamental do historiador.com 210 . Abstract: This work aims to articulate the triad history / memory / literature in the masterpiece composed by Graciliano Ramos. De acordo com Otto Maria Carpeaux. The concept of literature of testimony appears as the articulator of the triad. a prática dos Cultural Studies voltou a tratar o texto literário como “variante da indústria cultural ou mero instrumento de lobbies” (BOSI. O testemunho do autor expõe o passado em sua face fragmentada: nas fissuras da história. E-mail: kbabreu@hotmail. Memórias do Cárcere. literature of testimony. 1 Mestre em História. Professora da Rede Municipal de Ensino em Goiânia. largo e profundo. 2002. Mesmo hoje.MEMÓRIAS DO CÁRCERE: HISTÓRIA. por muito tempo. literatura de testemunho. quando resolve ter como objeto de pesquisa uma obra literária. The testimony of the author exposes the past in its fragmented face: in the fissures of history. MEMORY AND LITERATURE Kamilly Barros de Abreu Silva1 Resumo: Este trabalho visa articular a tríade história / memória / literatura na obra-prima de Graciliano Ramos. que saiba fundar conceitualmente uma história da literatura como história das obras literárias. demanding a new treatment in the consideration of the relations between history and memory and history and literature. revela-se uma outra memória – uma memória que pode contribuir para o movimento de auto-reflexão da história. como mero documento informador de um contexto social. creio ser necessário buscar um historicismo aberto. A historiografia a tratou. exigindo um novo tratamento na consideração das relações entre história e memória e história e literatura. Memórias do Cárcere (Memories of prision). Memórias do Cárcere. many times not reached by the historian. O conceito de literatura de testemunho surge como elemento articulador. é como abordála. p. muitas vezes não alcançadas pelo historiador. Memórias do Cárcere (Memories of prision). another memory emerges – a memory capable of contributing to the movement of history’s self-reflection. Palavras-chave: memória.43). MEMÓRIA E LITERATURA MEMÓRIAS DO CÁRCERE: HISTORY. Seguindo as reflexões de Alfredo Bosi. para qual a história das expressões simbólicas se abra para dimensões existenciais e culturais múltiplas que não as reduzam à condição de alegorias ideológicas. o historicismo convencional. Uma interpretação social da obra literária deve revelar como a sociedade. mas não acompanhar. é um historicismo a meias. traz alterações profundas na concepção dos gêneros. 2002. aquela que lida com a falta de sentido presente em nosso tempo. A repercussão imediata dos acontecimentos políticos na literatura não vai muito além da superfície. tomada como unidade em si mesma contraditória. será preciso distinguir nitidamente entre as classes da sociedade e as correspondentes ‘classes literárias’. que obedece ao seu próprio ritmo dialético. A relação entre literatura e sociedade não é mera dependência: é uma relação complicada. p. Nesta perspectiva ampliada.a literatura não existe no ar. Cumpre fazer essa distinção algo sutil para evitar aquele erro de transformar a literatura em mero documento das situações e transições sociais. e sim no Tempo. A literatura da qual quero tratar. as relações entre literatura e sociedade recebem nova luz. de dependência recíproca e interdependência dos fatores espirituais (ideológicos e estílisticos) e dos fatores materiais (estrutura social e econômica) (CARPEAUX apud BOSI. respeitosa dos direitos da memória. da imaginação e da reflexão crítica.7). Pensando com Walter Benjamin.37). é preciso acessar uma nova historiografia. Não poderia haver palavras mais adequadas para marcar o caráter singular das obras de arte e a necessidade de entender a individualidade irredutível de cada autor e de cada texto para conjurar o risco de submergi-lo na história dos costumes ou na história das idéias. mas também o seu contraponto que assinala o momento de viragem. Sendo a contradição a tônica do mundo moderno. capenga (apud BOSI. aparece 211 . na estilização da frase: desdobramentos refinados da aspiração moderna de macerar a subjetividade no texto literário. Um texto literário traz em si não só a mimesis da cultura hegemônica. enquanto não se alarga nem se aprofunda para abranger o avesso das fables convenues de cada época. O centro nervoso dessa diferença e negatividade é a consciência que um autor tem do seu tempo e das variantes. no Tempo histórico. e quanto aos efeitos da situação social dos escritores sobre a atividade literária. A literatura não deixará de refletir esse ritmo – refletir. fraturas e limites do cotidiano que a sociedade lhe oferece como matéria-prima. p. 2002. o gesto resistente da diferença e da contradição. 2003. como arte.na obra de arte. 2003. 85). É necessário esclarecer a relação do próprio Graciliano com a literatura. p. Esta atitude desconsideraria a complexidade e a importância deste grande escritor e faria tábula rasa de sua obra. ele é fruto da dialética social que nega ao sujeito lírico a identificação com o status quo e seu repertório de formas. 1989. para ele. Graciliano exprime-se por meio da literatura. estão intrinsicamente ligados. Os pressupostos que orientam seus procedimentos estão assentados nas convenções literárias. p.78). quais os limites e possibilidades que entrevê. pois somente em virtude dessa interpenetração o texto literário captura realmente. Parece-me claro que o apoio mútuo destes dois instrumentos lança luzes na análise de sua obra. intelectual e artista em relação ao seu métier. Não basta mergulhar na história literária e tentar descobrir onde Graciliano e Memórias do Cárcere se “encaixam” (no sentido de periodização. em que lhe obedece e em que a ultrapassa. qual sua atitude como homem. além de desprezar uma preocupação fundamental de Graciliano e cerne de sua escrita: o papel que atribui à literatura. temas abordados). que sempre representa um sujeito coletivo muito mais universal. “as badaladas do tempo histórico” (ADORNO. que conta acontecimentos “presumivelmente verdadeiros” (RAMOS.78). em seus limites. p. nos limites que a literatura. Hermenegildo Bastos. justifica-se exatamente pela relação conflituosa que estabelece com a realidade. mantém com a realidade social que lhe é antitética” (ADORNO. p. Deve investigar “a relação que o sujeito poético. 2003. o registro não é historiográfico. recursos utilizados. em seu livro Memórias do Cárcere literatura e testemunho. pois arte e vida. Contudo. Diversos graus de uma relação tensa com a sociedade são expostos por intermédio do sujeito poético: por mais que seu gesto seja hostil à sociedade.9) a partir de sua lembrança. embora esse sujeito esteja intimamente ligado à realidade vigente: ele não pode falar de nenhum outro lugar (ADORNO. A escolha de Memórias do Cárcere como obra privilegiada para revelar sua ligação com a história e com a memória em um momento crítico. analisa as Memórias articulando-as a toda a 212 . impõe. Deve também enfatizar o modo como ambos se interpenetram. o sentido de sua prática artística – o sentido de sua própria existência. irremediavelmente 213 . a partir desta reflexão em conjunto. Não apenas os romances e seus personagens são revistos. deste ângulo.134). como fazia com os protagonistas de seus romances. Em termos de produção narrativa. p. O próprio autor converte-se em personagem para melhor conduzir um duro julgamento de si mesmo. Dessa forma. Momento negativo de um processo dialético no qual o sujeito. uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico. Avaliando seus livros. de desespero individual e esperança coletiva. uma intuição do verdadeiro e do falso. é “revolucionário chinfrim” (RAMOS. 1989. 2002. pequeno-burguês. da possibilidade de quebrar as barreiras da instituição literária.produção artística de Graciliano. Projeto de leitura e não mais de escrita. seu modo peculiar de inserir-se nele e de nele definir seu lugar. A literatura é “arma fraca de papel” (RAMOS. em suma. Sua escrita é resistente por obra de uma extrema tensão interna e decorre de um a priori ético. A resistência é um movimento interno ao foco narrativo. expõe-se. um sentimento do bem e do mal. dá um salto para uma posição de distância e.10) comprometida exatamente com o que quer denunciar. um projeto estético-político que delineia-se de trás para a frente. Elas aparecem como balanço de sua vida e obra.10). de escolha social arrancada do mais fundo sentimento da impotência individual. prepara a recepção de sua obra. mas sua própria condição de escritor inserido no mesmo mundo injusto em que aqueles tomam forma. o importante é ressaltar a coexistência de absurdo e construção de sentido. projetando-a no futuro. o autor analisa a si próprio. que já se pôs em conflito com o estilo e a mentalidade dominantes. E ele. Avulta-se a dimensão ética de Memórias. de criar uma literatura por intermédio da qual fizesse ouvir a voz dos vencidos. em sua implacável auto-crítica. disseca-se. 1989. sua maneira de manifestar uma reação contra o mundo das normas constritoras. se vê a si mesmo e reconhece e põe em crise os laços apertados que o prendem à teia das instituições (BOSI. em vez de reproduzir mecanicamente o esquema das interações onde se insere. Ela é seu protesto. Graciliano desconfia da capacidade da literatura de realizar-se como crítica da sociedade conservadora. Sua concepção de literatura vai aos poucos se mostrando. p. p. pois o desejo de sinceridade torna-se imperativo e leva-o a retratar-se no mundo real em que se articulam suas ações. Havia nele um desajuste profundo entre sua personalidade e os valores sociais que a formaram e deformaram. mas sem qualquer subterfúgio. o conjunto de sua obra pode ser entendido como “testemunho”. p. Opta pelo texto memorialístico. o que talvez explique que. A autobiografia foi um caminho que escolheu e para o qual passou naturalmente quando a ficção já não lhe bastava para exprimir-se. a forma e a função da escrita. Mas não é apenas este o sentido do “testemunho” que aparece na obra de Graciliano Ramos. Neste sentido. De acordo com Antonio Candido. em Ficção e Confissão. Wander Melo Miranda argumenta que a terceira pessoa narrativa reconstitui. vai parecendo um molde apertado e incompleto. julgando que a arma do testemunho poderia ser mais adequada na tentativa de quebrar as barreiras mencionadas. A ficção o constrange. 1989. não tenha encontrado no romance possibilidades que esgotassem sua necessidade de expressão. desenvolvendo-se como uma reflexão sobre o significado. É com esse espírito que retira-se do universo da ficção. narrado em terceira pessoa. embora essa visão ajude a compreender 214 . como que completando pela própria vivência o panorama que antes havia elaborado no plano do romance.11). como artifício literário e desliza para sua experiência real dentro da mesma perspectiva de narração. que torna sua obra testemunho de uma consciência mortificada pela iniqüidade e estimulada a manifestarse pela força dos conflitos entre a conduta e os imperativos íntimos. com todas as suas exigências formais. o “pronomezinho irritante” (RAMOS. o hiato entre seu saber de intelectual e a indigência dos retirantes – intervalo impossível de ser preenchido. Se atentamos para o conjunto de sua obra. Elege a primeira pessoa do singular.distanciado da massa a que procura dar cor e forma. pela via literária. Desajuste essencial. Há um nítido processo de descoberta do próximo e de revisão de si mesmo. Vidas Secas. percebemos que a recusa à ficção acontece já em Infância. sintomaticamente depois de seu último romance. Vidas Secas fecha o ciclo da ficção em primeira pessoa e abre espaço para a escrita autobiográfica de Infância e Memórias do Cárcere. O testemunho autoquestiona-se. o romance. sendo grande romancista. Não propõe que a testemunha dê um salto para o discurso da imaginação. p. 2002. “Há sempre alguma coisa de indistinto. não é absolutamente um beletrista. É o retrato da face negra do “pequenino fascismo tupinambá” (RAMOS. mas legitima um modo livre de tratar o fluxo da memória. mas não estetizante: Graciliano não “enfeita” a realidade. Os fatos são retrabalhados intencionalmente pelo autor. Sua escrita reflete difusamente o caráter aleatório da perseguição política movida contra ele. difíceis de penetrar. envolvê-las em gaze” (RAMOS.11). Testemunho de um terrível período da história do Brasil e da história do século XX. Graciliano esboça uma teoria da prosa memorialista (BOSI. Estético-literário. mas 215 . segundo a qual há uma larga distância entre o observador supostamente neutro e o escritor que contrai ou expande a seu critério a matéria recordada. 2002. “mas é delas que a vida é feita. O autor-testemunha mostra-se consciente de que o filtro subjetivo é tão relevante para a construção de seu texto quanto as situações objetivas que ele se propôs representar. 1989. ético e político de sua escrita. Enfrenta a realidade e escreve asperezas. marcada pela brutalidade do poder desmedido. p. o aspecto enigmático de sua condição de preso sem formação de processo. mas grande e poderoso na opressão e terror que foi capaz de engendrar. p. Em se tratando de um texto memorialístico. nos casos extremos. contorná-las. a intenção é narrar acontecimentos reais. em um processo de reaproveitamento artístico da experiência vivida. Seu testemunho recebe um tratamento estético-literário. pela banalização do mal. p.o sentido estético. Testemunho de uma experiência densa em que a cadeia é convertida em metáfora da sociedade brasileira e mundial. A perspectiva dominante é a que vai da interrogação à estranheza e. fecha-se na recusa. Para além deste “testemunho integral”. que tem parentesco tanto com a história quanto com a ficção. de mal aclarado e mal resolvido nos episódios lembrados” (BOSI.234).226). inútil negá-las. O autor concebe as situações vividas na cadeia como enleadas. há o testemunho específico que constitui Memórias.12) – pequeno na avaliação crítica de Graciliano acerca de seus dirigentes e ideologia medíocres. 1989. Ressalta sua firme convicção de que o testemunho não é documento histórico no sentido tradicional de espelho fiel da realidade e que a escrita testemunhal deve dispor de uma considerável margem de liberdade. p. termo utilizado para substituir a palavra Holocausto. memórias. De acordo com Hermenegildo Bastos. afetou a matéria básica do escritor – a totalidade e o potencial do comportamento humano – e oprime o cérebro com uma nova escuridão (STEINER. 216 . retomando mais uma vez a questão do sentido e garantindo uma extrema operacionalidade para a tessitura da reflexão proposta. Autobiografia.. A ruína sem precedente dos valores e esperanças humanos resultantes da brutalidade política é o ponto de partida de qualquer reflexão séria sobre literatura e seu lugar na sociedade. apesar de se dividir em duas concepções. Nas palavras de Steiner: não podemos agir agora.. como se nada de importância vital tivesse afetado nosso senso da possibilidade humana. [. entre 1917 e 1945. trata-se de testemunhos de uma história traumática onde se misturam a necessidade de testemunhar (no sentido de denúncia das atrocidades cometidas) e um limite para a apresentação das situações radicais. A literatura de testemunho apresenta-se como possibilidade de realizar a articulação da tríade história/memória/ literatura. Em ambos os casos. a partir da literatura de testemunho – embora admita esta diversidade de gêneros. Essa escolha liga-se diretamente à questão da maneira de acessar a literatura. 1988. em época muito recente. mas de um texto de criação literária. testemunho.. mulheres e crianças na Europa e na Rússia. como se o extermínio. a questão da ficção/ficcionalidade formula-se no interior do próprio texto. confissão. pala fome ou pela violência. Como não se trata de um texto teórico ou crítico. de cerca de 70 milhões de homens. donde o contraponto entre técnicas ficcionais e memorialísticas. seja como críticos ou como simples seres racionais. 22-23). A expressão “literatura de testemunho” remete sempre a uma relação entre literatura e violência. a outra é dominante no campo da reflexão sobre a Shoah. esclarece Bastos. não tivesse alterado de modo profundo a propriedade de nossa consciência.. Optei por operar com o conceito de testemunho. há um conjunto de ambigüidades de gênero com que deparamos na leitura das Memórias. refigurados literariamente. chegamos a inúmeros entrecruzamentos. A questão incorpora-se à escrita. Uma delas desenvolve-se no âmbito dos estudos sobre a literatura latino-americana. é a tematização da fronteira entre ficção e memórias. não pretendo me aprofundar nesta discussão.subjetivizados. Partindo-se das diferenças. O que se encontra.] O que o homem infligiu ao homem. “O poeta deveria parar? Em uma época em que os homens são obrigados a chiar e guinchar seus sofrimentos como besouros e ratos. repudiada e ameaçada pelo silêncio. Não é fácil repará-la quando é danificada – e danos quase irreparáveis ocorreram quando foi forçada a expressar as falsidades homicidas de modo inteligível e mesmo consagrá-las em alguns regimes totalitários. Falar. p. voz nacional 217 . a arte é trivial e impotente: frívola. Malgrado a desagregação e o esfacelamento do social é preciso insistir na necessidade de reconstruir a experiência a partir de uma nova forma de narratividade (BENJAMIN. salvaguardando ideais estéticos que já não têm qualquer raiz histórica real. definidora da humanidade do homem. Entretanto. de Joyce. Até mesmo para o escritor. 1988. há ações de retaguarda. será o discurso letrado. O ato de escrever transforma-se em um escândalo: usar palavras como se elas pudessem transmitir a pulsação e as dúvidas do sentimento humano. Graciliano é lido como voz que dialoga com o homem contemporâneo dos fascismos e da guerra. 1994). Falar com a força máxima da palavra. O reconhecimento lúcido dessa perda faz com que se lancem as bases de outra prática estética. acrescento. ainda possível?” (STEINER. nela sua identidade e presença histórica estão explicitadas de modo singular.Steiner associa essa crise do romance a uma crise da palavra. talvez mais do que para outros. também a de Graciliano Ramos.. e que remete à “escrita resistente” mencionada. da qual faz parte a literatura de Döblin. Declínio da arte de contar. Embora envolvido pela contingência brasileira. de todas as coisas a mais humana. de Kafka. em meio ao repúdio ou à fuga geral em relação à palavra na literatura. como faz o poeta. “confiar o cerne do espírito humano à moeda inflacionada da conversa social. de Broch e. Esta é apresentada como uma estrutura fantasticamente complexa e vulnerável. p. assumir a privilegiada singularidade e solidão do homem no silêncio da criação.. Esse duplo depauperamento é sentido como uma perda dolorosa. declínio de uma tradição e de uma memória comuns. a que permaneceu sempre ligado. São indícios de uma crise da própria linguagem. na presença de certas realidades. é perigoso. Mas ao mesmo tempo é reconhecido como um fato ineludível que seria falso querer negar. é perigoso. é enganar a si próprio e cometer uma ‘indecência’” (STEINER. o silêncio é uma tentação.71). Surge a convicção de que.161). 1988. Graciliano pode fazer-se voz gabaritada para dar testemunho da banalização do mal. pôde levá-lo a formular questões parecidas à atual situação e destino do homem. pois sua vivência não cabe no campo do finito. Na formação do menino Graciliano entraram muitos instrumentos de suplício. O trauma compreendido não apenas na acepção freudiana. p. mas como choque com a realidade exterior. de artista. choque que produz uma ferida que não quer cicatrizar. da fragilidade da literatura e da linguagem como um todo para dar conta de produzir sentido. A questão do trauma é especialmente relevante e pode realizar um movimento de aproximação entre as duas tendências da literatura de testemunho de que tratei acima. Como inscrever esse testemunho de aniquilamento do homem nas páginas da modernidade confiante em sua vocação civilizadora? Tento uma aproximação com a obra de Graciliano. ela escapa à compreensão porque está marcada pelo movimento do trauma. como os procedimentos de construção do texto aludem à catástrofe. como conciliar no discurso a atitude de não desistir do conhecimento e ser fiel à natureza do vivido? O testemunho tem que falar do que viu sem instalar-se no presente com a tranqüilidade de referir-se a um passado. Uma sensibilidade comum. “A infelicidade. trata-se de descrever como as marcas da convivência com o horror inscrevem-se na forma literária. onde fenômenos catastróficos e traumáticos são reconhecidos como resultados legítimos da tendência civilizadora e seu potencial constante. a última tentativa. de escritor.228). que fez calar a criança e recalcou a sua palavra. No âmbito da literatura de testemunho. Já no primeiro capítulo Graciliano nos dá mostras de que a escrita de Memórias é a tentativa de superar o trauma resultante do 218 . Penso que apesar da distância física e de uma experiência de vida inteiramente diversa. a relação truncada” (BOSI. também marcada pelo trauma e que postula uma concepção específica de modernidade. Graciliano Ramos trabalha nesse registro: palavra como a última fronteira. Perante a barbárie.e supranacional ao mesmo tempo. modernidade desencantada. que desafia as formas de pensar. do acabado. 2002. de ser humano sensível à tragicidade da existência. se mudaria na consciência de uma espinhenta solidão no adulto cuja escrita remoerá a percepção difícil. a resistência lúcida de sua impotência. a sensibilidade ferida a todo instante. p. Quer sim. “De repente nos surge a necessidade urgente de recompô-lo” (RAMOS. mais íntegro.253). É preciso escrever. com amarga retidão. p. p. mas são armas” (apud BASTOS. justificada de diferentes formas. ordená-los. emergimos lentamente daquele mundo horrível de treva e morte. O desejo de narrar torna-se imperioso: “a exigência se fixa. mas é também o balanço da vida e da obra de seu autor. aqueles lugares. sim. porém enterrar de vez o que o mantém encarcerado e o impede de tomar posse efetiva do presente: “Demais já podemos enxergar luz à distância. esperando o que for: a morte ronda Graciliano. faz toda a diferença. Com todas as suas contradições. Escrever é resistir à morte.10). o que deflagra o processo da escrita.1989. onde a violência desmedida do poder se enuncia em carne viva. A marca do trauma aparece também no próprio corpo de Graciliano. vitória contra a morte anunciada pelo encarregado dos presos da Ilha Grande: “Não vêm corrigir-se: vêm morrer” (RAMOS. com o indizível. Diante da morte. p. A própria distância temporal que separa o acontecido de sua narração. p. encarar a vida de frente. contar. É o desejo de fazer viver o que estaria morto para sempre. mas que ainda persiste em sua demanda. testemunhar – não adianta nada. Não quer fazer as pazes com o passado. domar o caos. sem subterfúgios. Escrever agora significa conviver com a mudez. Narrar converte-se em resistência e disposição para lidar com uma complexa pervivência. 1998. Esse movimento de tentativa de superação do trauma está conectado ao desejo de gerar sentido para uma vivência aparentemente sem sentido: dar sentido a “pedaços humanos” (RAMOS. pode ser indício da dificuldade de se lidar com o que houve.absurdo e da violência do que viveu. compor um quadro. diante da fragmentação. aquelas pessoas. mas é a única de que dispõe: “armas insignificantes. A literatura é arma fraca de papel. resta a palavra. inscrevendo-os no próprio texto.10). 1989.9). sente a necessidade de revisitar aqueles dias. com a vida. é a arma que escolheu e que consegue manejar. depurado. Na verdade estávamos mortos. vamos ressuscitando” (RAMOS. Na transmissão realista dos corpos degradados reside a força de resistência de seu relato.1989. domina-me”. 219 .33). Reviver o passado. 1989. Esse testemunho é a memória de acontecimentos que afetaram muitos. dar forma. Referências ADORNO. São Paulo: Duas Cidades. Antonio. talvez. p. 10. mesmo sob pena de contradizer a versão majoritária e corrente. BENJAMIN. São Paulo: Brasiliense. BOSI. Assume a tarefa literária de constituir memória por meio da recomposição do passado enquanto ruína. 220 . São Bernardo. atualizando esse passado no presente e fazendo ecoar seu grito no aqui e agora: modo da literatura opor-se tanto ao esquecimento forçado quanto a uma determinada perspectiva histórica. São Paulo: Livraria Martins Editora. 2002. CANDIDO. BASTOS. de opor a voz sufocada do oprimido à história triunfante e consolidada dos adversários que não cessam de vencer. a modernidade se afirma pelo reconhecimento da força e dos limites do sujeito. Ficção e confissão. Memórias do cárcere: literatura e testemunho. 2003. Hermenegildo. A. arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. A importância de Memórias descortinase também neste ponto: é uma possibilidade de reaver o sentido traumático e violento da experiência histórica brasileira. Notas de literatura I. 1994. Graciliano. lançado no universal. ed. Nelas. Graciliano consegue manter um espaço de atuação precário e limitado. Walter. Brasília: EdUnB. “uma verdade expressa de relance nas fisionomias” (BOSI. W. Literatura e resistência. no campo minado em que lhe é dado mover-se.Entre a sintaxe e a Delegacia de Ordem Política e Social. Busca uma “verdade superior”. São Paulo: Companhia Letras.236). In: RAMOS. Trata-se de encontrar uma memória distinta da história oficial. ed. evita ou repele. Sua voz faz parte de um coro não raro contraditório e desarmônico. T. 1969. 1998. O testemunho de Graciliano apresenta-se como uma contra-memória: a arte pode escolher tudo quanto a ideologia dominante esquece. 2002. 7. Magia e técnica. 34. mas suficiente para romper o cerco e introduzir vozes discrepantes na história do Brasil. Ed. ). 2 v. Angústia. Graciliano. São Paulo: Círculo do livro. MIRANDA. RAMOS. MARCO. Artigo recebido em abril de 2008 e aceito para publicação em outubro de 2008. SELIGMANN –SILVA. ed. São Paulo. Rio de Janeiro: Record. Folha explica Graciliano Ramos. In: RAMOS. literatura: o testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Publifolha. 2003. A literatura de testemunho e a violência de Estado. n.CARPEAUX. 1990. Márcio (Org. Visão de Graciliano Ramos. 221 . Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. 1988. George. Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. 62. 1989. STEINER. Memórias do cárcere. 1987. memória. Graciliano. 2004. George. Campinas: EdUNICAMP. STEINER. Lua Nova. Otto Maria. São Paulo. Valéria de. Wander Melo. 2004. São Paulo: Companhia das Letras. 24. São Paulo: Companhia das Letras. História. since it could not stop them completely. However understand how the new order sought won. education. Contudo. Keywords: voting. a presença crescente das mulheres nos espaços públicos. E-mail: tatianalsiqueira28@hotmail.“ALGUMA COISA ESTÁ FORA DA ORDEM”: A LUTA FEMININA PELO DIREITO AO VOTO. EDUCATION AND WORK IN THE HOME OF THE CENTURY XX Tatiana Lima de Siqueira1 Resumo: Este artigo busca pontuar ações de algumas mulheres que questionaram determinadas fronteiras de gênero e buscaram criar novos espaços de atuação na primeira metade do século XX. Professora de História do Ensino Médio da Rede Pública e Privada. Em contrapartida perceber como a nova ordem conquistada procurou. como também. em grande parte. enquadrar estas mulheres em novos padrões. However. these women fit into new patterns. so we must be remembered and valued. resultado da ação de algumas mulheres que vinham se organizando já há algum tempo. devido ao fato de que 1 Mestranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulher. Palavras-chaves : voto.com 222 . For mada em História pela UFPB . EDUCAÇÃO E TRABALHO NO INÍCIO DO SÉCULO XX “SOMETHING IS OUT OF ORDER”: THE FIGHT FOR WOMEN’S RIGHT TO VOTE. com espanto. labour. trabalho. gênero e feminismo. inventaram um cotidiano diferente daquele que a norma previa. A emergência deste fenômeno é. O início do século XX assiste. we want to show that the gaps that they caused. Abstract: This article aims scoring actions of some women who questioned certain boundaries of gender and sought to create new areas of activity in the first half of the twentieth century. educação. invented a routine that different from the standard expected. Professora da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana). gender and feminism. já que não podia detê-las por completo. por isso devem ser lembradas e valorizadas. Gênero e Feminismo pelo UFBA/PPGNEIM . queremos evidenciar que as brechas que elas provocaram. até então território marcadamente masculino. na disputa temerosa do pão.a partir do início desse século ocorreu uma maior absorção pelo comércio e pelas fábricas da mão de obra feminina. de predomínio do homem. A intenção deste artigo é acompanhar as ações de algumas mulheres que passaram a fazer das ruas espaços também seus. Assistiam abismados a rápida transformação que aquela sociedade vivenciava e apontavam na imprensa as diferenças percebidas entre o tempo da “ordem” em que as coisas aparentemente estavam em seus devidos lugares e o da “desordem” que se anunciava. 2003. A sociedade estava organizada seguindo um padrão patriarcal. por alguns. bem como alargavam as necessidades e oportunidades dos sujeitos daquela sociedade provocando o advento de hábitos. as mudanças que estavam ocorrendo passavam a ser interpretadas. isto é. por isso mesmo. exercendo as mais grosseiras atividades (VOZ DA BORBOREMA. p. se incomodaram e passaram a manifestar sua indignação e assombro a tais “modernisse”. acostumados a ditar os valores e “bons costumes” a serem seguidos. Dentre tais implicações. terminavam alterando padrões de comportamentos até ali pouco questionados.32). pensadas como intransponíveis. forçaram a criação de uma outra ordem 223 . do macho. a concorrer com o homem. costumes. inventaram novos espaços de sociabilidades. podemos citar o avanço da urbanização. a mulher para a rua. onde suas ações não poderiam ser objeto de contestação e que em torno desta figura se deveria estruturar a ordem social (ALBUQUERQUE JR. até então senhores quase que absolutos dos espaços públicos. alterando a disposição dos sujeitos no espaço. não havendo como hoje acontece. Diziam eles: Antigamente a função feminina se circunscrevia das portas para dentro do lar. do pai. comércio e industrialização que exigiam mão-de-obra e incorporavam cada vez mais o trabalho feminino. como uma ameaça ao domínio masculino e aqueles homens. trouxeram implicações que estavam sendo paulatinamente absorvidas na sociedade brasileira. Daí que. valores e práticas até então pouco experimentados e que. Mulheres que ao modificarem a ordem. Episódios como o da Abolição da Escravidão e Proclamação da República ocorridos no final do século XIX. 21/01/1939). e ao transgredir determinadas fronteiras de gênero. a idéia de que estas mulheres ao forçarem aberturas se utilizaram de recursos diversos e terminaram por provocar fissuras na teia de dominação patriarcal a que estavam submetidas. para ampliar seu poder e liberdade na família e em diferentes situações. Mapaear. Mesmo “voltando para casa”. a ação dessas mulheres. ao forçarem que a sociedade demandasse tamanho esforço. já que não podia deter completamente os avanços femininos. certamente se tornaram pessoas diferentes. 99-102). do qual fazemos parte. em grupos organizados ou individualmente. as brechas que elas taticamente2 provocaram. não passou despercebida. tanto aquelas feitas em organizações maiores como os movimentos que se apresentavam enquanto feministas. que lutavam de forma mais sistematizada pelo direito ao voto. buscando agir estrategicamente. p. 1994. 224 . cita por exemplo o fato de determinadas mulheres tirarem proveito das imagens de fraqueza e histeria que lhes eram atribuídas. tática é uma ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Convém pontuar que consideramos como resistências aos padrões dominantes. Em contrapartida perceber. algumas práticas trangressoras destas mulheres. queremos evidenciar que.283) aponta alguns flagrantes desse tipo de ação. Para ele. as mulheres pressupõe percebê-las como plural visto que suas condições. Rachel Soihet (1997. se por um lado registra-se uma estratégia de enquadramento. contextos e histórias são diversos. por outro. portanto. talvez seja um dos muitos caminhos que podemos trilhar neste momento para contribuir na composição do imenso e rico mosaico que se configura o sexo nada frágil. negação e questionamento das regras e convenções a elas impostas. Aberturas provocadas por grandes e pequenos golpes. cujas ferramentas principais eram a insubordinação. Defendemos. A tática é movimento dentro do campo de visão do inimigo e no espaço por ele controlado (CERTEAU. portanto. p. ou se adaptando aos novos padrões impostos. ela não tem por lugar senão o do outro e por isso joga com o terreno que lhe é imposto. enquadrar estas mulheres em novos padrões que não as liberassem demais.que pudesse absorvê-las. inventaram um cotidiano diferente daquele que a norma previa. Contudo. Como também aquelas atuações informais de resistências. 2 Manipulo aqui o conceito de tática inspirado na forma como Certeau instrumentaliza essa categoria. como esta nova ordem procurou. Estudar. educação e o trabalho feminino. ao adequar as mudanças em curso para quase nada trasnformar de fato. empreendidas por mulheres em seu duro cotidiano. É. ao estabelecer uma determinada ordem sobre as relações de gênero. Um primeiro lugar de questionamento e transgressão de fronteiras impostas às mulheres que chamamos atenção neste artigo é o movimento feminista. entendendo-o como um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e. p. participa da produção das representações sobre como os homens e mulheres devem incorporar e atuar no grande palco de suas vidas. utilizando Foucault. diz respeito com o tipo de relação que é socialmente esperada deles.Ao acompanharmos as práticas femininas examinamos também as relações que há entre homens e mulheres no contexto histórico em que nos propomos trabalhar. 1996. isto é. também. examinaremos as relações de gênero no contexto das primeiras décadas do século XX. 13). aqui neste texto. 1994. mas sempre relativo. que no início do século passado ganhou destaque por lutar pricipalmente pela extenção do direito de voto às mulheres. fundamental ao exercício desta análise um olhar que Joan Scott.12). não antecede a organização social. portanto. p. através da qual a figura feminina encontra-se em desvantagens em relação à masculina e que estas relações é um fenômeno social e histórico e sendo assim produzido. um segundo momento de destaque na luta pela emancipação feminina foi aquela empreendida pelo acesso à educação e por fim a batalha por 225 . pois consideramos que a forma como cada um desses sujeitos atua em um dado contexto. visto que todos constituem relações sociais. o modo como se lê as diferenças sexuais na sociedade tem a ver com o saber que se construiu historicamente sobre o corpo. mas é inseparável dela (SCOTT. práticas cotidianas e rituais especificos. a instituições. O saber é assim entendido como um modo de ordenar o mundo e. não absoluto ou verdadeiro. também. reproduzido e transformado em diferentes situações ao longo do tempo. por isso faz-se necessário estudar estas relações. a partir da noção que Scott defende de gênero. Saber este. mas. O saber. Sendo assim. Saber que não se refere apenas a idéias. estruturas. apresentamos e descutimos algumas situações em que estas relações de gênero foram postas em questão ao longo do período proposto. isto é. nos propõe. uma forma primeira de dar significado às relações de poder (SCOTT. considerando que na constituição destas relações ocorre assimetria de poder. com tal. Daí que. sob a liderança de Bertha Lutz.19). por ter fundado no Rio. a FBPF conseguiu sua primeira vitória. e passou a ditar as orientações que as sufragistas brasileiras deveriam empregar durante a sua campanha pela conquista do voto feminino. Ainda em 1922 a FBPF organizou o I Congresso Internacional Feminista. órgão filiado à Aliança Sufragista Feminina Internacional . quando por intervenção do governador do Rio Grande do Norte. que tinha como objetivo recomeçar no Congresso Nacional o debate sobre o voto da mulher abandonado desde a Assembléia Constituinte de 1891. p. educação e rabalho são três elementos de luta feminina que seriam evidenciadas neste texto. deu um caráter nacional ao movimento. aprofundando discussões e organizando manifestações em que exigiam a emancipação da mulher. p. 226 . Nomes como o da professora Leolinda Daltro e Gilka Machado se destacaram. não havia chegado ainda o momento e nem a luta terminado. No ano de 1919 outro passo significativo em prol do sufrágio feminino foi dado com a criação da Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher que. a Assembléia Legislativa aprovou uma resolução concedendo às mulheres daquele estado o direito de votar (COSTA. acabou por se transformar na FBPF – Federação Brasileira para o Progresso Feminino – considerada a primeira entidade de mulheres no Brasil (ALMEIDA. em 1917. June Hahner (2003. 1986. 297-300) afirma que a transformação da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher em Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF). SARDENBERG. 3 Referência à expressão título da obra de Simone de Beauvoir onde discute como historicamente à mulher coube o segundo lugar na sociedade.ter acesso ao direito de ir trabalhar fora de casa. em 1910. Em 1927. voto. refeltindo um pouco do percurso percorrido para que se tornassem direitos extendidos também ao “segundo sexo”3. 1998). Juvenal Lamartine. mas seus votos foram anulados. Assim. o Partido Republicano Feminino. Elas de fato compareceram às urnas. o Partido Republicano Feminino chegou a organizar uma passeata no Rio de Janeiro com o objetivo de reivindicar o direito ao voto feminino. As idéias e ação feminista foram ganhando notoriedade ao passo que as mulheres foram conquistando novos espaços. no ano de 1922. Sete anos após sua fundação. unidas. sua atuação não deixou de ser um enfrentamento ao modelo conservador e tradicional a que estavam submetidas. Tem notícia de núcleos em Minas Gerais. Elas participavam de eventos sociais. BRANDÃO. Disse Lili: [. ainda. São Paulo. que é na Capital Federal é por sua vez filiada à Federação Internacional de mulheres. solidárias e irmanadas aos mesmos ideais..158). obedecendo ao mesmo regulamento. certamente.. A composição social da Federação Bahiana pelo Progresso Feminino era basicamente de mulheres de classe média alta e de filhas das famílias mais tradicionais do estado. de uma instituição de caráter internacional de milhares de mulheres solteiras. Bahia. jornalista e membro da diretoria da entidade. p. Na Bahia. De fato a idéia de federação espalhou-se. Lili Tosta. trabalhando em favor do progresso e do aperfeiçoamento do seu sexo (DIÁRIO DA BAHIA. tendo em vista estarem circunscritas aos ditames daquela sociedade. casadas. de vários idiomas. recebendo o evento a mais ampla cobertura da imprensa local. nas palavras de Bertha Lutz. pois. Pernambuco. explicou a importância e organização da instituição. de caráter tanto nacional quanto internacional o que. Pará etc. realizavam conferências públicas (COSTA.] A sede brasileira.Fazia parte do plano de ação da FBPF inaugurar filiais no maior número de estados brasileiros. valorizava e despertava maior interesse perante aos leitores para o evento. passava a se inserir num movimento mais amplo. de todas as profissões. estratégia que visava. com essa inauguração. todas arregimentadas sob a mesma bandeira idealista. de todos os credos políticos e religiosos. 09/ 04/1931). 2000. Rio Grande do Norte. Trata-se. acompanhada de foto. Apesar de limitada a atuação dessas mulheres. numa reportagem de primeira página. viúvas de quarenta e quatro nacionalidades. Os jornais da época divulgavam esta atuação. “canalizar esforços isolados”. escreviam artigos para jornais e revistas. 227 . organizavam abaixo-assinados fazendo petições ao governo e. onde os estereótipos tradicionais de homens e mulheres eram reforçados constantemente. a FBPF inaugurou sua filial a 09 de abril de 1931. mostrando o quanto à Bahia. da qual fazem parte quarenta e quatro nações. Falando ao Diário da Bahia no dia da fundação da filial baiana. Em 1931 encontramos artigos do tipo: 228 . até mesmo por falta de meios para poderem estabelecer ligações entre eles. mas não pode ser negada..] Sempre se espera que uma reserva de bom senso nos salve de inovações perigosas. fora de nossa índole e de nossas tradições. Foi. 09/04/1931). o telefone. Escritas (de)anunciavam na imprensa o surgimento idéias que pregavam a possibilidade de se construir lugares antes insuspeitos para a figura feminina. na Bahia. 04/12/1927). nessa história de direito de voto às mulheres. despertaram a atenção das autoridades da época. estão querendo forçar nossas mulheres a votar. É importante lembrar. alguns representantes do sexo masculino apontavam na imprensa como deveria ser a ação feminista para poder ter espaço e credibilidade na sociedade. Mãos masculinas hábeis foram destinadas a codificar opiniões receosas. a crescente intromissão feminina. [. [. que pode ser discutida.O feminismo na sociedade contemporânea é uma realidade.. E. estas. o telégrafo e os meios de transporte foram desenvolvidos ou aperfeiçoados no final do século XIX e início do XX e foram esses meios de grande valia na divulgação de pensamentos. que buscaram num primeiro momento conter esse avanço. na primeira metade do século XX o momento de um movimento feminista mais sistematizado no Brasil.. Assim. antes daí. Ao passo que o movimento feminista foi se firmando o discurso masculino foi procurando “aceitá-lo” e aceitando procurava normatizálo. verdadeira macaqueação estrangeira (DIÁRIO DE PERNANBUCO. quanto às mudanças que o mundo moderno trazia para a sociedade em que viviam e alertavam para os perigos que isto significava. que os grandes veículos de circulação de informações e idéias tais como: a imprensa. Porque é coisa extravagante e requintadamente ridícula. não conseguiram representar mais do que “esforços isolados”. Diziam: Afinal sempre a voz do bom senso feminino falta à senhora Albertina Bertha. portanto. eventos e mesmo na instauração de debates sobre temas polêmicos dentre os quais aqueles que o movimento feminista propunha.. dia a dia. com sucesso (DIÁRIO DE NOTÍCIA. em todas as esferas de atividade. apesar de ter ocorrido outras manifestaçõe de cunho feminista. A existência do movimento feminista e principalmente o avanço de algumas de suas idéias de cunho emancipacionionista.] assistimos. dentre outros assuntos. [. eleger Bertha Lutz para a Assembléia Constituinte de 1934. Porém. constrói na mente o ideal da liberdade e lute pela conquista dos direitos que até então vos negaram.] Em geral. mas aspira a instrução da mulher. 229 . isto sem profetizar...] O Movimento feminista não visa conseguir que a mulher arremede ou iguale o homem em todas as suas ações.227-228). sem sucesso.. discutir estratégias para promover candidaturas femininas e eleger o maior número de mulheres a cargos políticos. que buscou. Bertha Lutz.. Os homens e as mulheres estão na obrigação de apoiar e ajudar a realização do verdadeiro. escolherão naturalmente. feministas baianas. família!!! Adeus lar!!! Quem tomará conta dos nossos filhos?!! Quem cuidará dos nossos pequenos confortos?! Não haverá perigo! Em primeiro lugar as leis naturais são imutáveis. A luta pelo direito ao voto da mulher chegou a seu fim em 1932. Alayde Borba em São Paulo. combatendo o falso feminismo (DIÁRIO DA BAHIA.. Lili Lages em alagoas. ação que ajudou a possibilitar a vitória de cinco mulheres a deputadas estaduais no Brasil nas eleições de 19344. assumiu o cargo de deputada federal e no mesmo ano a Federação promoveu o III Congresso Nacional 4 Foram elas: Maria Luiza Bittencourt na Bahia. p. [. E os nossos lares. quando o Código Eleitoral incluiu a mulher como detentora do direito de votar e de ser votada. nunca esquecendo os deveres inerentes ao vosso sexo. Coube também às mulheres do movimento feminista eliminar certos temores e buscar convencer e obter apoio de adversários. Em 1936. prevemos que a maioria das mulheres. como ficarão?!! Adeus. a profissão de mãe de família e de dona de casa (DIÁRIO DA BAHIA. que ficara na suplência na eleição para a Câmara Legislativa Nacional. pressionou parlamentares para incluírem na Constituição novos direitos para a mulher e organizou II Congresso Nacional Feminista na Bahia. a FBPF não diminuiu suas atividades.] Trabalhe. 22/09/1931). 1995. no futuro. como as de todos os séculos passados. Quintina Diniz de Oliveira em Sergipe e Maria Miranda Jordão em Amazonas (COSTA.O feminismo precisa ser bem compreendido para poder prosperar.. [. 05/04/1931). Nos primeiros anos da década de 1930 tentou. Argumentaram na imprensa: ‘Santo Deus!!’ Exclamarão os nossos adversários. a sua liberdade de pensamento e o direito ao voto. pois. mas. p. devido ao processo de rápida industrialização e urbanização. moral e mentalmente disciplinada. clamando: educai as mulheres!”. formá-las para a vida doméstica e familiar. Um segundo aspecto que chama atenção. “racional” e “científica”. também. estas pudessem se desviar de sua sagrada missão de mãe zelosa e esposa devotada. A educação se fazia necessário às mulheres tendo em vista que o projeto de modernização que a sociedade atravessava. que visava primeiro. que constava na pauta projetos para pressionar o Legislativo a aumentar os direitos das mulheres (PINTO.nossa débil voz se levanta na capital da Santa Cruz. onde oferecesse instrução e permitisse às mulheres atuar como trabalhadoras e cidadãs na sociedade burguesa moderna. possibilitando os estudos às mulheres. mantendo assim aquilo que era básico e 230 . As escolas procuravam assim. apesar de não ser extinta. preparasse as mulheres para o casamento e a maternidade. Nísia Floresta – professora norte riograndense autodidata e considerada a pioneira do feminismo no Brasil – se destacou nessa luta. tal padrão seria adquirido através de uma educação moderna. acreditavam ser esse o caminho necessário para se atingir a autonomia feminina. na trajetória de luta feminina em busca de sua emancipação. essa reivindicação já se tornava assunto recorrente nos discursos daquelas mulheres engajadas na causa emancipacionista. pois se temia que. é a conquista do acesso à educação. Dessa forma. as políticas educacionais daquele momento propuseram uma educação feminina “moderna”. dar às meninas uma educação “prática”. ao mesmo tempo.2) escreveu: “Enquanto pelo velho e novo mundo vai ressoando o brado .28). isto é. Em 1853 (FLORESTA. a FBPF. que instaurou a ditadura do Estado Novo no Brasil. Com o golpe político de 1937.emancipação da mulher . No decorrer da segunda metade do século XIX. dissolvendo a Câmara Federal. perdeu espaço e expressão no cenário brasileiro. extinguindo os partidos políticos e promovendo uma série de medidas restritivas. porém esta tinha de ser muito bem pensada. 1989. A indústria exigia mão-de-obra que fosse mais bem treinada e. p. 2003.Feminista. As pioneiras do feminismo brasileiro tiveram como principal bandeira de reivindicação a conquista de uma educação ampla e irrestrita às mulheres. Segundo Susan Besse (1999) no início do século XX a educação para as mulheres urbanas se tornou uma necessidade prática. p. se “libertando das opiniões antifeminista de que a mulher nasceu exclusivamente para ser mãe. doação. construir resistências e subverter comportamentos esperados. O terceiro elemento de luta feminina que merecer destaque é aquela empreendida em prol do direito das mulheres se inserirem e/ ou permanecer no mercado de trabalho remunerado. isso por volta de 1920. os quais chamou de “sérios”. depois dos 30 anos de idade. p. foram capazes de engendrar discursos discordantes. imprimir sérias críticas a este modelo de formação. a passagem da produção doméstica para o mercado e o conseqüente declínio do valor econômico do trabalho doméstico das mulheres. 1999.450-479) homens e mulheres constroem de formas próprias e diversas suas identidades. a situação 231 . p. que acusava aquele tipo de educação de “destruir as energias das alunas. para uma educação voltada para o aperfeiçoamento das características que eram consideradas “tipicamente femininas”. logo as que não subverteria a função feminina fundamental que era a maternidade. Muitas dessas mulheres. como afirma Guacira Louro (2000. pois. degradando seu caráter e combatendo toda idéia nova”. passando a escrever e se dedicando ao magistério e ao ativismo político e. Contudo. como paciência. ocorreu o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho. sendo alunas ou professoras. Apesar dos discursos. Daí essas mulheres. direcionaram as mulheres nas salas de aulas. segundo Susan Besse (1999. afetividade. quanto científicos ou pedagógicos. nem sempre cumpriram certas prescrições. segundo. apesar de terem todo um contexto contrário. tanto religiosos. 175) em seu trabalho aponta o exemplo da anarquista Maria Lacerda de Moura. p. começou a dedicar-se aos estudos. dentre outros. este objetivo nem sempre foi alcançado. se pensava que este estudo serviria também para possibilitar outros benefícios como realizações pessoal e profissional (BESSE. depois. Nas primeiras décadas do século XX. Besse (1999.122).143) foi resultado de uma associação de fatores: primeiro. ela mesma.indispensável a elas e. nem todas as mulheres se enquadraram nessa visão de (in)utilidade da educação e a buscaram. na verdade os sujeitos históricos ao viverem diferentes e intricadas relações estão sempre a sofrerem e exercerem poder. se dedicar ao lar e brincar e divertir o homem com quem convive”. enquanto sujeitos concretos. assim. comenta que apesar das greves e mobilizações políticas que as operárias realizavam. e.] ‘Na fábrica eu fui fiadeira. 1998. foi analisada. Eu sei operar aquelas máquinas todas. Tinha aquela amizade que você podia contar. eu voltava prá ali. cada vez maior. em estudo sobre o trabalho feminino em São Paulo no período já mencionado. segundo boa parte dos relatos de imprensa. especialmente nas fábricas nas primeiras décadas do século XX. estas eram quase sempre descritas como “mocinhas infelizes e frágeis” desprotegidas e emocionalmente vulneráveis aos rostos da sociedade (RAGO. do valor burguês do trabalho. Antes era bem melhor. de funcionárias no setor de serviço..’ [. esmagada pelas altas taxas de inflação e pela pressão para consumir os produtos e serviços da economia de mercado que se expandia rapidamente. terceiro. quando o povo tinha consideração com os outros. com também de seus trabalhos na fábrica. Cabe aqui refletir sobre algumas questões tipo: como alguém pode sentir saudades de momentos onde imperava. a procura. eu fazia tudo isso. Todo mundo aqui trabalhava na fábrica. o que promovia seu desejo de auto-suficiência econômica e realização profissional. p. p.150) sobre as lembranças de operárias e operários da época que eram empregadas(os) da Fábrica São Braz. 152). Em pesquisa realizada por Cecília Sanderberg (1998.] De fábrica eu conheço tudo! Se eu tivesse tempo. Margareth Rago. /eu conheço tudo. por último.. eu fazia algodão grosso.. indústria têxtil fundada em Salvador em 1875 e mantendo-se em funcionamento até 1959. podia contar com os vizinhos.. Em depoimentos recolhidos pela a autora alguns expressam esse sentimento: ‘Plataforma não é mais como era naquele tempo não. pela imprensa da época.econômica precária da crescente classe média urbana. 578). apud SADENBERG. Estas mulheres quase sempre apareciam como figuras vitimizadas e sem nenhuma possibilidade de resistência. não apenas da vida do bairro enquanto vila operária. constata que são as mulheres que recordam com maior nostalgia e saudade. [. pelas próprias mulheres. chegando mesmo a idealizar esse passado operário. p. sob o víeis da exploração e sofrimento causado pela sua condição de “sexo frágil”. A presença das mulheres no mercado de trabalho. Só não trabalhei na tecelagem. a adoção. eu opero’ (Dona Adelaide e dona Linda respectivamente. 2000. quase que exclusivamente a opressão e sofrimento? Será talvez que a rede discursiva que denunciava somente 232 . Apesar das imagens pintadas sobre as mulheres. isso porque se constatou escassez de fontes documentais referentes aos 233 .582). acentuou-se uma queda na percentagem de mulheres empregadas naquele setor. uma das primeiras associações dessa natureza no Brasil como parte integrante do Bloco Operário e Camponês (BOC). 2002. Em 1928 criou-se o Comitê de Mulheres Trabalhadoras.os abusos. chama atenção para as dificuldades em acompanhar a ação das mulheres trabalhadoras em sindicatos e greves. passaram a representa apenas 23%(RAGO. as revelarem apenas como “sofredoras” e “vítimas passivas do assédio dos patrões e supervisores”. mas. organização político-partidária operária ligada ao Partido Comunista de Brasil (PCB). nas portas das fábricas as trabalhadoras para participarem de organizações e lutas políticas operárias (SARDENBERGUE. por exemplo. Com o rápido crescimento da produção industrial dos anos 30. elas empreenderam múltiplas formas de resistências como. por exemplo. tendem a explicitar que elas não ficaram passivas e indefesas à mercê da exploração de seus superiores. entretanto. p. estas representam apenas um dos aspectos presentes no cotidiano daquelas operárias. Duas décadas mais tarde já existiam várias outras organizações de mulheres trabalhadoras que buscavam convocar. em 1950. Os estudos mais recentes sobre as operárias do início do século. Sardenberg. A saída destas mulheres não foi um fato espontâneo. aquele que mais interessavam mostrar no momento pelos jornais da época.143). a respeito de sua condição enquanto operárias. Em 1872 as mulheres representavam cerca de 76% da força de trabalho nas fábricas. muitas vezes. não estaria contando apenas uma parte do cotidiano fabril daquelas mulheres? Não seria esta uma forma de frear um pouco aquela invasão de mão-de-obra feminina naqueles espaços? Ou uma estratégia das relações de poder presentes na constituição das relações de gênero para impedir que estas fossem alteradas? Pesquisas apontam que no desenvolvimento das indústrias as mulheres foram progressivamente expulsas e substituídas pela mão-deobra masculina. entrando na luta organizada por melhores salários e condições de trabalho dignas. p. certamente uma retirada necessária e conduzidas por aqueles que desejavam a conservação dos lugares “naturais” de (atu)ação masculina. 2000. Alimentados por teorias de respaldo científico. no período analisado. ou seja. Daí o grande desafio de reconstruir tais caminhos percorridos por essas mulheres na vida sindical e. por razões biológicas são: a fragilidade. o recato. para que possamos discutir o mito da passividade feminina e falta de consciência operária entre as mulheres. também. 157). que vinham desde o século XIX. que contribuiu para a invisibilidade feminina naquelas instituições e atuações no cotidiano de lutas. Dessa forma. a necessidade de trilhá-lo. especialmente para o trabalho nas fábricas. freqüentar as universidades e participar diretamente na política. esses discursos justificavam e legitimavam as relações desiguais e hierárquicas estabelecidas entre homens e mulheres. p. seja através do voto. os discursos como “práticas discursivas” significa tratá-los como: um conjunto de regras anônimas. Nas palavras do próprio filósofo. não só como o um conjunto de signos. por exemplo. sempre determinadas no tempo e no espaço. reafirmando a crença da inferioridade da figura feminina perante a masculina. 2007. históricas. que definiram em uma determinada época e para uma determinada área social. econômica. Para cumprir esse papel faz-se preciso perceber os discursos a partir de como Foucault propõe. justificada por ela. da educação ou inserção no mercado de trabalho é um dos caminhos para se perceber como determinados mitos foram construídos e reatualizados ao longo da história. no que dizia respeito. Tais idéias asseguravam: Características femininas. primeiro. o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais e a subordinação da sexualidade à vocação 234 . para analisar a complexa relação entre gêneros naquele contexto (SARDENBERGUE. mas. as condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT. também. discursos que atestavam ser as mulheres biológica e emocionalmente incompatíveis para a vida pública. não só para preenchermos lacunas existentes. cabe perceber que circulavam. 135). pela repressão policial contra as organizações sindicais e. Analisar os discursos produzidos ao longo do tempo sobre os papéis e ação das mulheres no que diz respeito à sua capacidade e necessidade de participação da vida pública. à inteligência. p. segundo. 2002. mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que eles falam. geográfica ou lingüística.sindicatos do passado. devido o caráter patriarcal daquelas organizações. como 235 . não só observar e precisar como a violência da “ordem” atua. mais urgente ainda é descobrir como é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares(também minúsculos e cotidianos)jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não se para alterá-los. o homem. através das quais foram se firmando. mas.. pelo menos. Portanto. é necessário distinguir as operações quase “microbianas que proliferam no seio das estruturas” e “alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de ‘táticas’ articuladas sobre os detalhes do cotidiano”. resistiram à ordem imposta. como os sujeitos históricos criativamente dispersam. capazes de abrirem brechas. Teorias desse tipo tinham bastante força no período. os sujeitos que as incorporam não eram passivos diante de tais teorias. [.] trata-se de descobrir as operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de ‘táticas’ articuladas sobre os detalhes do cotidiano (CERTEAU. elas foram construindo suas redes de solidariedade e sociabilidades em lugares antes insuspeitos. Importa. portanto. p.41). desse modo. chamamos atenção ao fato de que tal incorporação não exclui a presença de variações e manipulações. que conjuga à sua força física. com vistas a reagir a opressão que sobre eles incidem. Em oposição. 1994. a olhar para além da norma e perceber as táticas mobilizadas por essas mulheres no sentido de transgredirem espaços definidos como únicos possíveis de transitarem..10). alteraram muitos dos significados e práticas que eram tidos por legítimos e intransponíveis e recriaram novos espaços. amadurecendo e aprendendo a lidar. mas. ignoram e transformam essa ordem. Concordamos com Certeau que ao falar sobre os modos de proceder da criatividade cotidiana diz: Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da ‘vigilância’. atitudes que fizeram com que suas lutas se não toda vitoriosa.maternal. recusaram certas fronteiras. racional e uma sexualidade sem freios (SHOIHET. tanto homens quanto mulheres acreditavam e as incorporavam. uma natureza autoritária. Muitas mulheres envolvidas com o processo de mudanças pelas quais passavam a sociedade brasileira no início do século passado. também. Instiganos. Dessa forma. 1997. p. torna-se necessário desvendar as sutilezas engendradas criativamente pelos dominados. Entretanto. empreendedora. especialmente. com as adversidades que qualquer novo espaço oferece. as feministas. acreditando que nos acercamos de um porto seguro e nos fortalecemos para enfrentar os inúmeros problemas do presente (RAGO. Muitas mulheres. É esse o desafio que a categoria de análise das diferenças sexuais.qualquer ser humano. Daí a importância do surgimento da categoria gênero como análise histórica. busca-se. Preocupações com sua participação na sociedade. 1998.]. visto que esta reivindica para si um território específico. ao fazer isso vá enfatizando os significados variáveis e contraditórios atribuídos às diferenças sexuais 236 . em face a insuficiência dos corpos teóricos existentes para explicar a persistência da desigualdade entre homens e mulheres. Ela ampliou-se e diversificou-se nos últimos anos. que ocorre processos históricos diferentes e simultâneos. têm lutado nas últimas décadas pela construção de uma esfera pública democrática. organização familiar. segundo Scoot (1994. Margareth Rago chama atenção quanto à importância de pontuarmos e lembrarmos as resistências femininas: Assustador é o perigo de esquecermos essa tradição de luta dos primórdios da nossa industrialização. 26) que ela historicize gênero e. O advento e crescimento desta produção não é apenas no sentido de incorporar as mulheres no interior de uma grande narrativa pronta. tendo em vista a multiplicidade do ser feminino. movimentos sociais. trouxe para a produção do conhecimento em geral. violência e imaginário feminino adquiriram notoriedade. isso seria muito pouco. é importante que possamos estabelecer as pontes que ligam as experiências da história recente com as do passado. Por isso mesmo. 605). Elas querem afirmar a questão feminina e assegurar a conquista dos direitos que se referem à condição da mulher. trabalho. sejam eles mulher ou homem. política. um desses foram as mulheres. como categoria de análise. passaram a ser investigadas numa perspectiva histórica. No que se refere especificamente à História. [. 73). p. trabalhadoras e.. gênero. destaca as diferenças a partir do reconhecimento de que as realidades são múltiplas. A produção historiográfica atual aponta justamente para o caminho descrito por Rago. abrindo a possibilidade de focos de análise diversas (MATOS.. quando passou a ser preocupação desse estudo sujeitos até então invisíveis na história. p. 2000. Gênero. 1994. 1995. Feminismos. A. de. Um diálogo com Simone de Beauvoir e outras falas. 2003. A.C. Redefinição do “trabalho das mulheres”. Tese (Doutorado) . Catavento. Salvador. p. ________. In: ______. BESSE. 1986. Educação sem emancipação. NEIM/UFBA. A. Salvador.M. Cecília M. Dissertação (Mestrado) – UFB. Alcântara. 237 . os processos políticos através dos quais esses significados foram criados e criticados.B. Modernizando a desigualdade. BINGEMER. GOMES. M. La mujer en el poder local en Bahia/ Brasil : La imbricación de lo público y lo privado. Reestruturação da ideologia de gênero no Brasil. 1914-1940. embora de maneira não consistente ou da mesma maneira em cada momento. Ed. Durval Muniz de. 1998. 1986. 1999. Maria Amélia Ferreira de. ALMEIDA. CERTEAU. feministas e movimentos sociais. São Paulo: AdUSP.). Ana Alice Alcântara. COSTA.R. Modernizando a desigualdade. 2000. a instabilidade e maleabilidade das categorias “mulheres” e “homens” e. SARDENBERG. SARDENBERG. Maceió: Ed. 1999. Mª Clara. In: BRANDÃO. Referências ALBUQUERQUE JR. Nordestino: uma invenção do “falo” . (Orgs. M.) Mulher e relações de gênero. B. 1995. L (Orgs.1. Loyola. por fim. Reestruturação da ideologia de gênero no Brasil. In: MOTTA. São Paulo: AdUSP.. os modos pelos quais essas categorias se articulam uma em termos da outra. 122-142. México. 19141940.. COSTA. Feminismo na Bahia: A Federação Bahiana Pelo Progresso Feminino no contexto da Revolução de 1930.. A. Alcântara.ao longo do tempo.J. Feminismo na Bahia 1930-1950. In:______. COSTA. Vozes. S. BRANDÃO. Petrópolis. A. Margarida L.Universidad Nacional Autônoma de Mexico. Susan. v. A invenção do cotidiano.uma história do gênero masculino no Brasil (1920-1940). INEP. Mary. 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Artigo recebido em agosto de 2008 e aceito para publicação em setembro de 2008. Salvador. História das mulheres. Salvador. Periódicos DIÁRIO DA BAHIA. In: CARDOSO. BA.). DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Salvador. 1997. 239 . São diferentes setores. os sindicatos do campo e da cidade. E-mail: mbiancaribeiro@yahoo. doutoranda em História pela UFG. in Brazil. in the context of the end of the civilmilitary dictatorship of 1964. articulados através de uma tática: a redemocratização do Professora da Faculdade de Educação da UFG. A sociedade brasileira vivia o ápice de um longo processo de reorganização dos movimentos sociais. We use the documentation as a source of national and local media produced in that period. Palavras-chave : morte. we discuss these issues with reference to the episode of the death of Tancredo Neves.com. no contexto do fim da ditadura civil-militar de 1964. press. in biologically equals in an efficient differentiator between those who are alive? As the social life can be influenced by the way that the editing process sickness. as associações de moradores e tantos outros espaços construídos ou reconstruídos no contexto das lutas contra a ditadura civil-militar implantada a partir de 1964. Introdução Brasil. diferentes projetos estratégicos. Abstract : As the ownership of death by the power games can turn an event which. Usamos como fonte a documentação da imprensa nacional e local produzida naquele período. discutimos essas questões tendo como referência o episódio da morte de Tancredo Neves. em 1985. poder. enterro? Neste texto. power. as escolas. que alcançou as universidades. burial? In this paper. no Brasil. Keywords: death. death. imprensa.br 1 240 . biologicamente nos iguala. 1985.A MORTE E A MORTE DE TANCREDO NEVES: CONTROLANDO MUITAS VIDAS ATRAVÉS DE UMA MORTE THE DEATH AND THE DEATH OF TANCREDO NEVES: CONTROLLING MANY LIVES THROUGH OF A DEATH Miriam Bianca Amaral Ribeiro1 Resumo: Como a apropriação da morte pelos jogos do poder pode transfor mar um evento que. pesquisa História Regional e Ensino de História. morte. in 1985. em um diferenciador eficiente entre os que estão vivos? Como a vida social pode ser influenciada pela forma com que edita o processo doença. Claro está que diferentes projetos estratégicos remetem a diferentes concepções de democracia. as bases políticas de sustentação da ditadura militar percebem o esgotamento da política de contrainsurgência estabelecida a partir de 1964 e passam a transitar pela frente democrática. na campanha pelas eleições diretas. e não de poder. unificadoras. mas sua configuração se limita a essa bandeira conjuntural. nas diferentes abordagens dadas por esses diferentes setores a essas bandeiras. anistia. Mesmo setores que compuseram. Ocorre que as conquistas democráticas vão acentuando as contradições entre esses setores da sociedade. por exemplo. sob controle burguês. para os setores dominantes é: a transição lenta. por exemplo. Era preciso. reforma agrária. posto que os consensos vão também se reduzindo. reforma agrária com confisco do latifúndio. Para citar alguns deles: setores progressistas querem as liberdades democráticas e a queda da inflação. Nesta lógica. construir uma transição também segura. o povo brasileiro está visivelmente mobilizado. deveria capitalizar 241 . segura e gradual não pode perder o controle sobre esses amplos setores da população. esse sim. versus uma candidatura. na medida em que as lutas em torno do que se convencionou chamar de “liberdades democráticas” já não são suficientes para garantir essa frágil unidade. Em meio a esse emaranhado de alianças táticas e projetos estratégicos. entre outras.Paulo Maluf. que recolha tais movimentos aos limites da substituição de governo. então. nesta ótica. É então que se constrói o processo de transferência das eleições para presidente das ruas para o Colégio Eleitoral. eleições diretas para presidente da república. Uma frente ampla se constitui. setores mais radicalizados da esquerda querem liberdades democráticas. setores da esquerda nacionalista querem as liberdades democráticas. até então. Isso se evidencia. as eleições diretas não poderiam se transformar em uma luta que ultrapasse o limite das liberdades democráticas. moratória da dívida externa e menor influência do capital estrangeiro.país. até então. totalmente sob controle. hoje ocupando as ruas. O problema que se coloca. È então que se constrói a caricatura de uma candidatura dos militares . que supostamente. A luta por essa redemocratização havia se materializado em bandeiras: convocação da Assembléia Nacional Constituinte. rompimento com o FMI e não pagamento da dívida externa. enterro e celebrações subseqüentes. E agora. disposto a enfrentar o representante da ditadura. Jornais. no belo A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água. um homem que não deixasse dúvidas de sua atitude heróica. em que comícios eram realizados com milhares de pessoas. não só brasileira. morte. antes de desmontar o projeto de transição democrática burguesa. Ele deveria ser o representante o catalisador das esperanças e o fiel depositário das mudanças. Como fontes primárias utilizamos a imprensa. Sim. Mas. porque nossa intenção é exatamente exercitar a discussão em torno dos diferentes significados que a morte pode apresentar a partir dos também diferentes significados que a vida social e as contradições a ela inerentes podem nos trazer. parafraseamos Jorge Amado. passam a compor essa transição. era preciso garantir que candidatura Tancredo Neves materializasse todo o esforço do povo na lutas pelas mudanças pretendidas. e. Intencionalmente. em cada uma das grandes cidades brasileiras. o que tudo isso tem a ver com a questão da morte como objeto da investigação do historiador? Ocorre que Tancredo Neves morreu antes de tomar posse e executar a redenção democrática do país. Esse seria o papel da candidatura Tancredo Neves. A história já demonstrou que a candidatura Tancredo era a candidatura preferencial do grande capital nacional e estrangeiro. em se tratando daquele momento ímpar da história do Brasil. E se os movimentos sociais retomam a história em suas mãos? Ocorre também que sua doença. não são raros os casos em que os movimentos sociais organizados são neutralizados por alguém que se faz passar por seu legítimo representante. derrotá-la. tanto nacionais como regionais. Ao longo da história. Esse breve texto tem como objetivo exatamente discutir como a morte e seus rituais podem se transformar em recurso político. pede-se de vez o controle da situação? O homem que personificou a esperança de mudança não existe mais. heroicamente. especialmente jornais de circulação diária. 242 . posto que os governos dela derivados efetivassem regiamente seus interesses. A apropriação da morte e seu significado pelos interesses mais do que vivos de quem permanece conduzindo a política nacional nos fez buscar a imprensa como principal fonte documental. por ser esse um instrumento que cumpriu intensamente essa tarefa.todas as forças mobilizadas pelo fim da ditadura. Mas. ao longo da história e das culturas. em vida. Escolhemos tratar a questão da morte como objeto da investigação do historiador por que consideramos a produção social da morte um campo de investigação das contradições históricas e culturais da vida em sociedade. são documentos dos quais podemos levantar as interpretações da realidade social que se pretende oficiais. nas visões religiosas de mundo. tratamos os ornais como fontes de uma produção dos acontecimentos em torno da morte de Tancredo Neves. na UFG. então. A morte biológica e a morte social Morremos e temos consciência disso.principalmente os de grande circulação e pertencentes a grandes redes de comunicação. sem dúvida. está absolutamente presente na vida social. no quadro das relações de dominação hegemônicas. As fontes históricas não são arquivos da verdade ou esclarecedora dos fatos. Na sociedade burguesa. Todo mundo. passíveis da interpretação do historiador. mas já é um campo consolidado internacionalmente. por exemplo. Mas. Alguns (a grande maioria. isso não é a mesma coisa para todo mundo.quadro revelador de seu significado em vida. Um campo fértil deste emaranhado de significados. uma das precursoras desta temática no Brasil. Por isso. produzidas pelos grupos hegemônicos. a morte não é igual para quem permanece vivo. Os vivos construíram um sem número de significados para a morte. Isso nos torna iguais. Mas. As diferenças entre o significado das mortes. não é sobre isso que nos deteremos. Esse trabalho originou-se de uma experiência disciplinar no curso de doutorado em História. na verdade) vivem e morrem sem serem lembrados e até a morte passa despercebida . Esse é um objeto novo no campo da produção científica da história no Brasil. promovida pela professora Maria Elízia Borges. Morrer morre-se mesmo. está presente. como de resto nenhuma fonte histórica o é. Mas. Outros têm sua morte 243 . então. São fontes de investigação das contradições que movem a realidade. que pretendemos discutir. Não são expressão da verdade. diferenciada pelo papel do morto. se definem muito antes de sua consumação. essas diferenças são cada vez mais evidenciadas. Todas as mortes podem ser iguais para quem morre. pelo menos ao final do processo. O significado da morte. a criação jornalística da realidade compõe a atividade da imprensa. Impressiona. Observando Fausto Neto (2004).. [.. como já se disse. p. tendo. mas a forma como o faz. criticará tais postulados. 244 . enfim. a ser favor. isto é. Não que ‘comuns’ – vida e morte . tentando dar conta do discurso jornalístico como produtor da realidade (FAUSTO NETO. modelando toda a existência deles. Consideramos que a imprensa não só noticia o fato. porém. p. 2004. [. segundo outro tipo de argumentação teórica. as mensagens que ganham formas de matéria.enterro de Tancredo Neves. fica evidenciada a impossibilidade da conduta supostamente neutra da imprensa: A terminalidade do trabalho discursivo jornalístico se constitui. efetivamente.. Lembrando Rodrigues (1983. Neste contexto é que pretendemos discutir o significado conjuntural da morte de Tancredo Neves. [.] O poder se introjeta nos indivíduos e rentabiliza suas mortes.. afirma-se que o dito corresponde ao fato em si.tornou isso possível. pelo seu significado contemporâneo na construção de consensos.] e eu produzem dimensões classificatórias da realidade. no recorte político hegemônico. A escolha da imprensa se deu por dois motivos: primeiro. a imprensa como fonte primária. numa espécie de dito.] De um lado. neste caso. Mas. provavelmente. Isso... algum significado. sempre..apropriada por um conjunto de interesses que as qualifica como objeto de propaganda e afirmação de projetos hegemônicos. Outro elemento. o evento terminal de seus súditos e por esse caminho. não só escrita. foi a absolutização deste episódio nos espaços da imprensa brasileira. foi o que se deu no episódio doença – morte .] Nossa hipótese é de que ambas as afirmações estejam corretas.não possam também ser apropriados por artifícios e interesses assim. nada que tivesse. algo de excêntrico. ao longo do processo. Parece que nada mais estava acontecendo no Brasil e no mundo. 105): O poder se apropria da morte construindo mártires e heróis de definindo modelos de morrer – rentabilizando. [. pitoresco – particularizante por alguma razão .. Ou seja. a nosso ver. complementa e reafirma o anterior. que na verdade. também constrói o fato.29). Ou pelo menos. pela primeira vez. Um dirigente do MDB. derrubado pela ditadura civil-militar. 2 245 . Nunca é demais lembrar que essa frase foi enunciada. constituído a partir de informações autorizadas pelo próprio Tancredo Neves. Ocupou todos os cargos parlamentares da estrutura política brasileira. um mineiro com longa ficha de serviços prestados ao projeto nacionalista. nos anos 19602. chamem Tancredo.simultâneas). em meados dos anos 1980. que ele apazigua os ânimos. nós nos demos muito mal” (JORNAL DO BRASIL. em 1964. Assim é que Tancredo foi um homem condecorado como Grande Oficial das Ordens de Mérito Naval. e também. presença catalisadora do conglomerado político presente nos comícios pelas diretas para presidente. não é difícil constatar a atitude conciliadora como característica de sua prática política. fazer o país transitar sem sobressaltos da ditadura à democracia formal burguesa. Ou seja. 16/01/1985). o volume de páginas publicadas para dar conta da morte do quase presidente. período mais violento de repressivo da ditadura militar no Brasil. estabeleceu-se o conflito. Militar e Aeronáutico (são três condecorações distintas e não . Tancredo Neves. Tancredo: vida e morte “a serviço do Brasil” Retomando a biografia de Tancredo de Almeida Neves. Aqui é preciso lembrar que essa breve explicitação do perfil e da trajetória política de Tancredo tem como objetivo demonstrar como ele cabe perfeitamente no papel derradeiro que cumpriu nesta trajetória: apaziguar. conciliar. em 1972. construiu uma frase que se tornou emblemática de si mesmo e sua visão das contradições no mundo da política: “A experiência nos mostra que todas as vezes que tentamos radicalizar nosso comportamento. Um militante do PSD. algum tempo e algumas conjunturas políticas depois. Para se ter uma idéia desta capacidade de se colocar como enviado da conciliação. Foi alguém que fez pós-graduação na Escola Superior de Guerra e foi primeiro-ministro no governo parlamentarista de João Goulart. Todos os dados aqui mencionados foram retirados do arquivo do Senado Federal – Diretoria de Pessoal. em maio de 1979.de fato. em todos os níveis. nenhum processo de esgotamento da ditadura. restaurado a democracia no Brasil. o fim da ditadura foi uma transição natural. 16/01/1985. pela capacidade conciliatória de Tancredo – o homem capaz que aglutinar todo o país em torno do Colégio Eleitoral: Com a eleição indireta. do candidato paisano e oposicionista Tancredo Neves.. 9). a transição foi realizada por uma deliberação do poder instalado e só por isso. Em seguida. a quem podemos considerar Tancredo Neves herdeiro e sucessor. A ilustração traz os generais risonhos e descontraídos. Nada mais aconteceu que levasse a essa mudança nas orientações políticas do grande capital nacional e estrangeiro que levasse a essa “devolução do poder à nação”. [. As ilustrações da matéria mostram Ernesto Geisel e João Figueiredo como sendo os dois generais que “nos últimos 11 anos comandaram. sobre controle permaneceria. especialmente. em grande parte. p.] 246 . construiuse a idéia de que a eleição de Tancredo Neves havia. na mesma página. sucessivamente.Mais adiante veremos como o uso jornalístico do percurso doença . seu percurso. o processo de devolução do Poder à nação” (JORNAL DO BRASIL. p. finalmente. capitalizado. 9). intencionalmente. Outra vez. Isso teria se dado. seu neto e atual governador de Minas Gerais. Nenhum movimento. a restauração” Um encarte especial do Jornal do Brasil. publicado em 16 de janeiro de 1985. Claro está que Tancredo não for mulou esse final. consensuada. A “nação” sob controle estava. e a posse. pelo Colégio Eleitoral. Ao longo de todo o caderno. Aécio Neves. em 15 de Março. Não só a eleição em si. Mas. na Presidência da República. o título da matéria reafirma essa avaliação: “A Revolução morreu ontem de morte natural” (JORNAL DO BRASIL.morte – enterro completam esse trajeto de conciliação nacional. nenhuma pressão. 16/01/1985. encerram-se o mais longo ciclo revolucionário da história brasileira. “Tancredo. mas a pessoa de Tancredo. tem esse título. ao longo da vida. possibilitou tal uso da morte.. Ou seja. inclusive por seus próprios sucessores. como já o fizera Getúlio Vargas. ontem. A doença e mais uma vez. de seu filho mais ilustre: o homem que acabou com a ditadura e se transformou na corporificação das expectativas de mudanças pretendidas por todo o povo brasileiro: A tancredomania Os sineiros de São João Del Rei. consolidado. antes que a posse se consume. Enfim. o quadro da doença fortalece a estratégia através de alguns recursos largamente proclamados pela imprensa. A doença e a vida de Tancredo. mobilizar. pressionar. na presidência da República. vamos para casa em paz. quando a cidade tinha menos de Um milhão de habitantes.A Revolução de 31 de Março de 1964 morre de morte natural. No dia anterior à posse. agora sim. p. o filho mais ilustre da São João Del Rei será aclamado o novo presidente da República (VEJA. em 1984.. Em São João Del Rei. ainda permanecem não só o discurso de que não se tratou de uma ditadura e sim de uma revolução. escapando de um desfecho violento que se prenunciava nos altos índices de rejeição popular (JORNAL DO BRASIL. faria as mudanças. então. cerca de 400 mil pessoas. porque a ditadura acabou. cidade natal de Tancredo. têm caprichado nos repiques [. como também a idéia de isso se deu com a eleição de um não-militar e oposicionista. 9). que levou a uma 247 . dos poucos que restam na Minas antiga. 25/12/1984). sem nenhum sobressalto. Tancredo cai doente. articulados pelos mesmos setores que articularam a transição. significariam capital político. a população se prepara para acompanhar a posse. Tancredo. Agora. Ou seja. não são mais necessários comícios como o que reuniu em Goiânia. Tancredo foi acometido por uma dor aguda no abdômen e uma febre alta resistente. A esperança de mudança está literalmente transferida para a pessoa do presidente quase empossado. Então. 16/01/1985. ele sim. o povo brasileiro não precisaria mais ir para as ruas reivindicar.] e há bons motivos para isso: Daqui a três semanas. a doação Mas.. é o quadro do herói arregimentador das esperanças. O que se tem. Longe de todo o circo da transição consensuada e pacífica ruir. é mesmo contagiante. orientações e informações políticas desencontradas. declarações de figurões procuram retomar o controle da situação. especialmente quando associada a um desfecho de doença e eminência de morte. caso alguma exaltação popular aconteça: “Democracia será garantida. O livro do jornalista oficial do processo. Não podemos ignorar que isso fosse possível. Ao sinal de qualquer dúvida pública do quadro de franca melhora do paciente. então porta-voz da Presidência da República. o consenso em torno do heroísmo.internação imediata e uma cirurgia a cada semana seguinte. Assim. porque manifestava sua decisão em cumprir as tarefas históricas que seu país lhe destinava. fotografias montadas. pretendendo a tranqüilidade da população. manchetes potencializam a tensão. ainda no processo da campanha pelas diretas. exatamente “em respeito” ao seu sacrifício e ao seu sofrimento. há pelo menos a ano antes da eleição no Colégio Eleitoral. intensas e desgastantes. “É hora de garantir a transição” (O POPULAR. A doença de Tancredo ocupa quase todas as páginas de quase todos os jornais do país. não é hora de fazer nada. seria a única salvação do país. no contexto da não posse do presidente. transfere para São Paulo ou não. pois a atividade política. Em torno da doença de Tancredo e da sua garantia de vida parece residir toda a esperança de mudança esperada pelo país. a não ser. negava-se a recuar das tarefas políticas. As manchetes constroem um clima de ameaça eminente ao retorno da ditadura. As notícias de jornal. Mas. a comoção nacional. segundo o livro. orientações a avaliações médicas em disputa: opera ou não. trataram de garantir o papel da candidatura de Tancredo como algo que. Mas. que. 17/03/1985). boletins médicos. rezar por sua melhora. O jornal O Popular noticia que os líderes nacionais democratas se reúnem incessantemente para garantir a posse do eleito e seu vice. afirma que a família já sabia que Tancredo sentia dores e tinha febres. 18/03/1985). de fato enfrentava a ditadura. dizem as lideranças” (O POPULAR. Tancredo. mas explicitando a contradição: 248 . Internamente. Dramáticas. O problema é o uso político desta disposição. o jornal O Popular noticia uma nova cirurgia. em última instância. ainda mãos quando intensificada por comícios e passeatas de milhares de pessoas. símbolos das liberdades democráticas no país. na atualidade. “lugares onde se operam grandes milagres do nosso tempo” (RODRIGUES. mas.. o doente e sua esposa..]. do Oiapoque ao Chuí.Tancredo vai à nova cirurgia mas reage bem O presidente Tancredo Neves resistiu muito bem a uma segunda cirurgia [. é que. enquanto um enfermeiro segurava os frascos de plasma e soro ligados ao corpo do presidente enfermo (VEJA. doença. fotografar a equipe médica. p. inevitável morte.] Milhares de paulistanos que iam pára o trabalho na manhã de terça-feira debaixo de um emocionado silêncio a cidade ser cortada por uma caravana de vinte automóveis e uma ambulância acompanhada por batedores. mas todos os brasileiros.222) aponta. mesmo que por trás do sofá esteja uma verdadeira UTI móvel. não só alguns poucos paulistas que presenciaram o cortejo são tomados pela consternação. O problema que se coloca então. morte: a ligação é inevitável. Assim. no começo da tarde ele entrou novamente para a sala de cirurgia (O POPULAR. 3/04/1985). então. 21/03/1985). é também o espaço da contradição entre as conquistas da ciência na luta pela vida e a adiável. Rodrigues (1983.] Foi um dia de muita expectativa. por exemplo. p. O país.. que por toda a sociedade moderna tenta incutir em seus membros. 249 . que fora dormir com a imagem deixada pelas fotografias de um Tancredo sorridente – as primeiras feitas desde ele foi operado dia 14 . escondido. levando Tancredo do aeroporto para o hospital. como acontece com aqueles que vão morrer... que. Estas instituições são gigantescos aparelhos de fazer desaparecer a dor e a morte – o que. Mas. Então. 1983. fantasiar a saúde. 221). Os hospitais. pois de manhã o Presidente havia sido dado em bom estado [. são segundo Rodrigues. o que se deve fazer é negociar com as contradições. O hospital é o lugar para onde se transporta aqueles que sentem dor. todos sorridentes. Mas. o sofrimento não poderá obscurecer a imagem de felicidade e bem-estar. desta forma: [. A capitalização política da doença se dá. esse papel do hospital não vai ser abolido das representações próprias da modernidade só porque a pessoa doente tem que corporificar a virada política do país e para isso precisa estar viva.. Dito assim. fundamentalmente vem ser a mesma coisa. Não tem jeito: hospital.acordou com a visão da maca descendo do Boeing. se não fosse trágico. mas cabia alguém estudar o que essa conduta representa nas relações entre o homem moderno e a morte. [.] A dosagem de creatina avalia a função renal. reforças a idéia de que isso acontece com os outros. isso acontecia massivamente.. O que seria engraçado. As pessoas queriam. saber passo a passo dos procedimentos. então. As matérias de jornais e revistas se transformam em livros de medicina . 250 . Prepara-se o herói. [.aqueles que quanto menos se entende mais dramático parecem.] Os médicos combateram a anemia com a transfusão de 300 ml de papa de glóbulos vermelhos e ainda assim a hemoglobina não regularizou. essa atividade.] A protrombina é segregada pelo fígado (VEJA.. temporariamente substituída pela de médico. 3/04/1985). Mas. As pessoas cometam os boletins médicos nas ruas. Não é o caso. doou-se até o fim. Quem somos nós.Ao mesmo tempo vai se construindo a pacificação social pela comoção coletiva. (reles mortais mais mortais que ele. Detalhes dos procedimentos parecem transformar todos nós em médicos: As linhas da vida de Tancredo Os leucócitos ou glóbulos brancos do sangue são uma tropa de choque contra os microorganismos.. 3 É de uma morbidez assustadora essa conduta que se assemelha à multidão que cerca o acidentado na rua. inclusive.. como se pudessem opinar. [. Parece. é que ninguém perdia nenhum detalhe da descrição. [.se que o Brasil tem 130 milhões de técnicos de futebol.. glossários médicos. aquele que resistiu. Diz-se . ao que parece) para não a avalizarmos esse governo surgido de tamanho sacrifício? É através do martírio que constrói o mártir. foi.3 Essa grande arquitetura da preocupação médica coletiva também compôs a construção e manutenção do consenso político e do esforço/sacrifício/ prioridade da paz social convertida em oração. decidir e ajudar a salvar o presidente quase empossado. ao longo da agonia de Tancredo.. Aqui temos citado apenas alguns exemplos coletados na imprensa produzida no período. em todos os órgãos de imprensa do país.. pela transição consensuada.. desenhos dos órgãos atingidos. É bom lembrar que nesta obra faraônica todos os instrumentos são usados: gráficos.] O aumento da taxa de uréia é um indício de que o paciente sofre de insuficiência renal. muito 251 . admitindo sempre com má vontade os casos em que nada mais pode fazer (RODRIGUES. apropriando-se da tarefa de administrar a vida e a morte dos indivíduos”. como a de Tancredo. o controle da vida e da morte tem que fazer com esse papel seja garantido. Mas. mesmo com o país preparado para a notícia final. p. morreu Tancredo Neves: Martírio chega ao fim no Dia de Tiradentes A Nova República perdeu seu mais importante líder e. neste caso. Quando chegou o dia. é única morte ‘normal’. p. Quando os dirigentes do processo avaliassem que o país estava suficientemente preparado para ficar sem o homem a que se deu o cheque em branco da democratização. Rodrigues (1983. A morte do velho. sem que esse mesmo país lhe sustasse o pagamento. Tancredo perde até o direito de morrer. 225). Trata-se da morte menos natural da história do Brasil.] É a esse ideal de morte natural que responde essencialmente a instituição médica contemporânea (RODRIGUES. Foi exatamente isso o que se assistiu em relação à morte de Tancredo Neves. 223) também coloca a oportuna idéia de que a medicina contemporânea transforma-se em “instrumentos de controle social. 1983. 221). autoriza-se morrer. mesmo que o “natural” não seja assim tão natural. o moribundo perde a liberdade de renunciar à vida e o médico se apropria cada vez mais da vida e da morte. a morte Sabia-se que a morte era inevitável e imediata.. a ela agregando-se a conjuntura política já discutida. compondo uma gigantesca articulação política. Não só no caso de Tancredo. no tempo da propaganda oficial da morte natural: A presença do velho é indispensável em uma sociedade que cultua a ‘morte natural’. explica-se essa conduta na contemporaneidade. enfim. mas é claro que o contexto político do caso em discussão aprofunda essa condição: Em Face De esse ritual obsessivo de negação da morte. [. p.. mesmo que contra ela se lute com todo o esforço. 1983.A preparação da morte e. Quando a morte e a vida assumem um significado político central nas relações de dominação. Só morreria quando fosse conveniente e oportuno. Os movimentos reivindicatórios são substituídos pela comoção nacional: Populares cantam Hino Nacional Um coro com Hino Nacional cantado por 300 pessoas misturando as lágrimas ampliou às 22h30min o clima de emoção próximo ao Instituto do Coração.desespero foi registrado ontem à noite. semi-vivo. que quer dizer semi-morto. 252 . No minuto seguinte ao anúncio. Ele era como se fosse da cozinha da gente. a não ser que a medicina use seus recursos para criar essa. se é que estava mesmo vivo. Mas.] . 52 anos. Não existe essa condição. há dias. Senti a morte de Getúlio. hoje. lá pelas 22: 35. disse Alzira Araújo.que impediu a posse tão esperada pela população brasileira – e depois de passar por sete intervenções cirúrgicas. Note-se que.. 22/04/1985). mas com Tancredo era diferente. Muitos ainda se lembram da exata hora da notícia. Fafá de Belém . [.. vivendo por aparelhos. Ou se está vivo ou se está morto. um grupo de jovens gritou palavras de ordem como ‘ Diretas já’.Tancredo era minha esperança. 22/04/1985). perto da meia. na noite de 21 de abril.cantora musa das Diretas Já . 21 de abril. não se sabe desde que dia. O problema é que a paisagem ao fundo. o Hino Nacional. 22/04/1985). Dia de Tiradentes (O POPULAR. Foi isso que ela fez.noite. que veio com a filha. no momento em que ela cantava o hino. o genro e o neto de 9 anos (JORNAL DE BRASÍLIA. ‘Fora militares’. posto que Tancredo estivesse. Todo mundo reconhece. de Juscelino.] Tancredo Neves morreu exatamente às 22h23min de ontem.. no mesmo dia.. ninguém fica semi-morto. sofri com a renúncia de Jânio.cantou. pela lógica de Dona Alzira (que não lhe é particular e sim generalizada). neste caso. Às 23 horas. Populares davamse as mãos e as estendiam para o alto. no meio da pequena multidão. telefonista. Trinta e nove dias depois de sua internação no Hospital de Base de Brasília . a impossibilidade da coincidência do fim da vida de dois sacrificados mártires mineiros. a comoção pela perda de um líder é uma constante razão para a consternação. chorando. Saga lembra mártir de Inconfidência Mineira (JORNAL DE BRASÍLIA. “vegetação política”. [. era de um sol brilhante. tudo já estava preparado para o desenlace coincidente. Ou seja. Construído o mártir. segura e gradual está garantida. porque era um projeto de transição sem sobressalto e com total garantia de manutenção das mesmas bases sociais. Segue-se ritualizados momentos de descrição de autópsia e definição de causa da morte. usineiro até então pró-ditadura. “Na máscara mortuária. na cena nacional de fato. expresso nas manchetes. os choques elétricos e os últimos minutos de vida (O POPULAR. 23/04/ 1985). A agonia Todos olhavam fixamente para o monitor que registrava os batimentos cardíacos do Presidente. assume o governo e tem a missão de “honrar as idéias” do presidente morto. “Septicemia e tumor benigno foram causas da morte” (O POPULAR. Assim é que José Sarney. Pronto. os parentes demonstravam estar torcendo para que os batimentos ficassem acima de 60. garante-se o projeto supostamente por ele pensado. eles viram a vida indo embora (O POPULAR. em sua solidão de líder e herói. a expressão do rosto mostra tranqüilidade” (O POPULAR. A transição lenta. era preciso garantir que tudo o que ele pensou em fazer para mudar o país seria respeitado e cumprido pelo seu sucessor. não porque fora pensado por Tancredo e sim. 32 [. 23/04/1985). era o que foi estabelecido como tarefa pós-ditadura. A eles se associam novas demonstrações de heroísmo: “Tancredo esteve consciente pouco antes da morte. Um elemento que bem exemplifica o papel da elaboração política que se fez em torno da doença e da morte do presidente é o burburinho fomentado de que ele teria sido envenenado. 18/05/1985). 23/04/1985). Voltam os repasses médicos de infor mação. “Médico explica evolução da doença” (O POPULAR. como os conhecidos “entenda passo a passo”. sobre os medicamentos usados. Foi uma espécie de luta muda em que cada um observava as alterações do mostrador que saltava de 57 para 40. as massagens. revela anestesista” (FOLHA DE SÃO PAULO. Mas. que tinha Tancredo como elemento chave. 23/ 04/1985).. Garantido o mártir.. Sabe-se que o que vem a seguir. Computador montou dossiê da crise e da morte Um dossiê sobre todos os problemas surgidos no corpo do Presidente foi montado a partir de revelações familiares. 23/0f4/1985). Embora aparentemente resignados.] até a parada cardíaca. assassinado 253 . porque o projeto político em andamento via Tancredo. adequavase aos interesses hegemônicos. 23/04/1985). uma semana inteira. A TV ficava horas com as câmeras paradas. Mas.pelos que não queriam o fim da ditadura. “Entre um e quatro milhões.. na sua cidade natal: “Multidão acompanha até avião desaparecer no ar” (FOLHA DE SÃO PAULO. ficava sem ar diante da falência múltipla da esperança de mudanças nos órgãos políticos. Essa manchete do Jornal de Brasília. acompanhando o processo do funeral que percorre São Paulo. Resignação é a palavra. cassações de carteira de CRM de médicos responsáveis pelo presidente. o convite à reverência ao morto é também a propaganda da aceitação. “Multidão acompanha Tancredo nas ruas” (FOLHA DE SÃO PAULO. Anunciam-se processos. após a morte de Tancredo. não porque soluções médicas teriam sido elaboradas para “acobertar a realidade” e sim. Morre Tancredo. Tudo na mais perfeita ordem. 22/04/1985). 254 . a imprensa faz sua parte. Também se avolumam as discussões em torno do erro médico. antes de confrontar-se. a estimativa de São Paulo” (FOLHA DE SÃO PAULO. 23/04/1985). O povo chorava como se tivéssemos perdido o oxigênio. com a resignação demonstrada pelo mártir. afirma comandante do 2º Exército” (JORNAL DO BRASIL. Todo esse choro avalizava o governo que se instalava. com calma e paciência. por pelo menos. onde Tancredo Neves é enterrado. no seu calvário. própria da modernidade capitalista (RODRIGUES. segundo a idéia de negação da morte. 23/04/1985). “Trezentos mil acompanham o féretro até o Planalto” (FOLHA DE SÃO PAULO. Literalmente. Ao seu vice. Quer dizer. filmando e transmitindo os passos dos cadetes do exército carregando o caixão. Claro que isso não tem a menor possibilidade de ter se dado.. É o que se comprova pelas manchetes de jornal: “Respeito às leis prevalecerá. sintetiza o caos emocional que tomou conta do país. De novo. 23/04/1985). praticamente imóveis. em 22 de abril de 1985. Brasília e Minas Gerais. 1983). nasce o tancredismo “Esperança dá lugar a choro e resignação”. o país parou e chorou. Os locutores não tinham mais assunto para preencher horas e horas de nada. Nem precisava falar mesmo. no centro de São Paulo. É claro que toda essa “participação” da população. diz a comerciária (FOLHA DE SÃO PAULO. mais de 30 mil pessoas foram ao velório” (FOLHA DE SÃO PAULO. que participa intensamente do momento político sem que se reconheça como participante. não só deste processo como da idéia geral de participação política. mais a imprensa o noticia. Na cidade. Uma bola de neve. 24/04/1985). A construção política em andamento não abre mão do morto. está sob controle: 255 . 24/04/1985). 24/04/1985). 21. Note-se que a diferença entre um e quatro milhões é gigantesca e seria facilmente perceptível por quem está acostumado a essas estimativas. 23/04/1985). mais gente vai ao cortejo. quando a Terra se transformará em um paraíso. “O esquife é lacrado. mesmo que tomada pela comoção. A apropriação da visão religiosa de mundo por esse projeto também é reveladora de sua eficiência. enfim. Brasília se despede” (FOLHA DE SÃO PAULO. A garantia foi dada ontem pela caixa de loja e testemunha de Jeová Marta Aparecida. “No Palácio do Planalto. 23/04/1985). “Procura de passagens para São João Del Rey aumenta” (FOLHA DE SÃO PAULO. que sustenta a apropriação política da imagem constituída intencionalmente. Segundo ela.Todos os cálculos feitos pela imprensa e por autoridades sobre o número de pessoas que acompanharam o cortejo fúnebre do presidente eleito Tancredo Neves. Tancredo ressuscitará depois do julgamento do juízo final. ao longo do trajeto de doze quilômetros levam ao comentário: “Nunca vi uma coisa dessas na minha vida” (FOLHA DE SÃO PAULO. Quanto mais gente vai ao cortejo. O percurso continua sendo narrado passo a passo. Quanto mais a imprensa fala do cortejo. por exemplo. através da orfandade política assumida pela população que ‘não aceita’ a morte de Tancredo. nem mesmo dias após a morte. A eficácia deste procedimento de apropriação política da morte se denuncia. É o que se constata na fala de uma pessoa portadora de uma destas visões religiosas de mundo. Só não sabe se será presidente porque ‘a gente não se mete em política’. tudo pode explicar o inaceitável Não se preocupe: Tancredo Neves voltará. literalmente. ‘Perdemos um grande líder e agora é entregar para Deus dirigir porque nós não sabemos o que vai acontecer’. por apropriação indébita de autoria de um trabalho.Forte policiamento impede manifestações populares A forte presença policial exigida por questões cerimoniais. sintetiza-se a tarefa de Tancredo na luta do povo brasileiro (FOLHA DE SÃO PAULO. nem em todos os tempos. o diferencia dos comuns. O limite entre a vida e a morte. 24/04/1985). Desde 1954 a caneta tem sido usada por Tancredo (FOLHA DE SÃO PAULO. ‘Ele nem pôs a mão no cadáver. Para o mártir e herói. “Um grande anseio de conciliação”. alguma consciência da eternidade revivida na memória socialmente construída. 24/04/1985).enterro como um recurso político a serviço de um determinado projeto. secretário-geral da CNBB. diz o médico que requer a autoria da obra’ (FOLHA DE SÃO PAULO.. A disputa pelos símbolos da vida e da morte do mártir acontece publicamente: Desapareceu a caneta que foi de Vargas As pessoas consultadas ontem não sabiam informar onde está a caneta que pertenceu a Getúlio Vargas e que foi dada a Tancredo Neves. para além do evento biológico. As missas são evocadas como componente oficial deste movimento.. Ambos participaram da feitura da máscara mortuária de Tancredo Neves. durante a missa de réquiem para o presidente morto. 57. Com essa frase pronunciada por D. [. Para o comum. vai processar o artista plástico Nicolas. segundo explicação oficial. usada para assinar a carta-testamento. Máscara mortuária pode causar processo O médico Gino Lasco.] Policiais armados de cassetete guardavam toda a área próxima ao aeroporto (FOLHA DE SÃO PAULO. não mesmo igual para todos.. “Em Brasília. 24/04/1985). 63. 24/04/1985). enfim. 256 . Considerações finais O que se tem. no caso de Tancredo a escolha de um sucessor. [. Quem fez o molde fui eu’. 24/04/1985). afastou a participação do público na despedida de Tancredo.. manter-se vivo é uma batalha diária e o fim da vida é o fim mesmo. 24/04/1985). Luciano Mendes de Almeida. só autoridades assistem à missa de réquiem” (FOLHA DE SÃO PAULO.] A caneta de Vargas. representou. é a apropriação do processo doença – morte . Coveiro quer vender sua pá por 10 mil (FOLHA DE SÃO PAULO. mereceu destaque. DF. O tabu da morte . 23 abr. 18 mai. 1985. Tancredinho morreu pagão e o sepultamento não foi assistido pela mãe. 22 abr. JORNAL DE BRASÍLIA. 1985. 16 jan. 18 mar. FOLHA DE SÃO PAULO. 1984. 22 abr. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua.. 2004. Rio Fundo. 1985. [. Morte em derrapagem – os casos Corona e Cazuza no discurso da comunicação de massa. 23 abr. a doméstica Terezinha Lima. O POPULAR. citamos uma morte comum. 17 mar. Goiânia.Achiamé. FAUSTO NETO. morreu no Hospital do INAMPS. 25 dez. mas.. 257 . que viajou para o Nordeste com os Cr$ 500 mil que Dona Risoleta Neves havia doado à criança (O POPULAR. 1985. 1985. São Paulo. 1985. 03 mar. Brasília.] e foi sepultado ontem no Cemitério do Catumbi. Artigo recebido em agosto de 2008 e aceito para publicação em setembro de 2008. VEJA. 1985. José Carlos. São Paulo. Jorge. efêmero quanto sua própria existência: Morre Tancredinho O menino Adriano Tancredo de Lima. 1985. Referências AMADO. Rio de Janeiro: Ed. 24 abr. 08 mar. 08/03/1985). 1983. RODRIGUES. Rio de Janeiro: Ed. 21 mar. JORNAL DO BRASIL. 1985.Só para confirmar essa idéia. 1985. que só porque se vincula a uma vida/morte politicamente capitalizada. Rio de Janeiro. 1985. Antônio. Rio de Janeiro: Record. a primeira criança a nascer no rio este ano. 22 abr. 1976. 1985. 1985. o Tancredinho. com 1 258 . e tenham. de matiz rural. pois. Os elementos lingüísticos. uma vez que não há um perfeito paralelo entre estas duas estruturas da sociedade. rápidas mudanças. as reading hypothesis. que servem de maneira mais definida às necessidades imediatas da sociedade e entram mais claramente no campo da consciência. mas não a coincidência. devido ao caráter subconsciente da classificação gramatical. Professora Adjunta do Curso de Letras – Campus Catalão/UFG. não só hão de mudar mais rapidamente do que os elementos lingüísticos. na região de Catalão-GO.. Keywords: rural culture. há de ficar num processo contínuo de remodelação. É uma investigação que intenta interrelacionar os aspectos lingüísticos configurados na cultura e a cultura em sua manifestação lingüística. não se prestam facilmente a reformulações. this paper brings about cultural and linguistic configurations defined by their interrelations. popular culture. cultura popular.[. presenting fragments of the rural popular culture in Catalão-GO. sob a perspectiva da Lingüística Antropológica.CONSIDERAÇÕES BREVES SOBRE CULTURA RURAL BRIEF CONSIDERATIONS ABOUT RURAL CULTURE Maria Helena de Paula1 Resumo : Numa perspectiva transdisciplinar. por outro lado. CatalãoGO.] Em Doutora em Lingüística e Língua Portuguesa pela FCL-Ar/UNESP. Catalão-GO. embora em si mesmos possam ter. mas a própria forma da cultura.. E-mail: mhpcat@gmail. a sua interrelação. Palavras-chave : cultura roceira. apresentando recortes da cultura popular rural em Catalão-GO. Defende-se. Primeiras considerações Este estudo reúne algumas considerações sobre cultura popular. que dá a cada elemento a sua significação relativa. pois: Os elementos culturais. este estudo traz como hipótese de leitura as configurações cultural e lingüística intimamente definidas por suas interrelações. Abstract : In a transdisciplinar perspective. as chamadas “festas de roça” na região de Catalão-GO. p. São as ações diárias eivadas de significação simbólica. a tendência conservadora se faz sentir muito mais profundamente nos lineamentos essenciais da língua do que na cultura (SAPIR. Abordaremos. 1969. matizada por seus atores e sua situação história nas relações de poder (a produção e a circulação do poder). situadas historicamente. que ambas são formas e conteúdos diferentes de expressão de uma dada realidade social e histórica. Então. então. os modos de nomear e categorizar os elementos da natureza e outros tantos. diferentes modos construídos pelos atores sociais de estabelecer valor às suas relações cotidianas. hábitos. 60-61). De modo geral. Por uma definição de cultura O conceito de cultura com que se operam as considerações neste estudo demonstra quão difícil é definir este aspecto das relações humanas. os meios para se curar. Baseia-se na construção social de sentidos a ações. a cultura é pensada numa visão polarizante. os remédios. porém. crenças.outras palavras. como sendo cultura popular ou cultura erudita. todavia. Cultura é o conjunto de práticas sociais. como enfrentamento ao espetáculo que avassala as comemorações coletivas no que discutiremos adiante. que se referem a uma sociedade e que a fazem diferente de outra. Convém dizer. Construída socialmente no cotidiano das relações humanas demanda que seja definida no seio das relações sociais e históricas que a amparam e por ela são caracterizadas. A prática de reza do terço rural e seus entornos festivos e de solidariedade do grupo resistem. tais que os modos de vestir. objetos que passam a simbolizar aspectos da vivência humana em coletividade. caracteriza-se a cultura de um país ou de um lugar conforme se agrupam as suas expressões de poder. de cultivar e colher. os modos de plantar. de comer. Por isto. não devem ser vistas como 259 . pois. São. mais marcadamente a religiosidade rural enquanto prática coletiva da fé – que se faz e se justifica por ser motivada e sustentada pelas demandas coletivas de crenças providenciais. Outros aspectos e sistemas integram o conjunto de práticas identificadoras e de pertença de um povo ou grupo. hábitos. sentir e expressar a realidade conforme se situam seus atores na produção e circulação do poder. como não parece haver entre nós a possibilidade de grupos e pessoas absolutamente isentos deste racionalismo. Neste aspecto. Cada grupo de sujeitos sociais. 260 . porém não é unicamente definida nem é imune a elementos da chamada cultura popular. menos complexa e mais restrita. conhecimento” (MACHADO. Marcada pela presença do domínio e acesso irrestrito a categorias científicas de ordenar. sentir. como forma de recriação do seu universo: crenças. p. as práticas culturais são representações discursivas das quais constantemente emergem outras práticas na representação que as pessoas têm de que são participantes de uma ou de outra cultura. Todavia. comer. não participem delas como sujeitos nem conheçam seu funcionamento.opostas ou excludentes. Assim. no entanto. a cultura popular é entendida como a expressão de vida em que sobrepujam “todas aquelas práticas e representações culturais vivenciadas no cotidiano de atores sociais específicos. 2002. mais elaborada e funcional ou pior. supõe-se que a definição de cultura popular deverá considerar mais as condições de acesso às formas de saber que necessariamente a distância em que está delas. o que lhe é válido para expressar o seu modo de ver. trabalhar. conforme suas necessidades e vivências. Isto porque é possível que representantes da cultura popular saibam da existência destas práticas eruditas de representação e até convivam com elas. elege tacitamente no decorrer de suas inter-relações. Formas de expressão de grupos de pessoas detentoras de habilidades de letramento e com acesso a formas científicas dos saberes constituídos pela humanidade são conhecidas como cultura erudita. Ainda que possa ser elaborada em meios tidos como autênticos palcos da civilização e letramento. nem uma nem outra é melhor. distantes do racionalismo científico. 335). constituir família. Conforme as pessoas entendem que participam de uma cultura esforçam-se para agir e expressar dentro do que julgam ser pertinente a ela. mas como maneiras específicas de ver. se relacionar com divindades etc. legitimar e repassar o saber esta cultura tem suas peculiaridades. costumes. nestas 261 . expressões das relações de trabalho etc. é exemplo deste continuum de limites entre o que é popular e o que é erudito nas expressões de cultura. por isso. sob a denominação de técnicas de preservação de alimentos. entremeados à cultura erudita. a carpideira e as plantadeiras manuais são remodelados em potentes tratores e máquinas que plantam e colhem. os regos d’água. significar e expressar a realidade. ou seja. Podemos ver em organizações não governamentais ou outras instituições de solidariedade e filantropia outras denominações. A prática de salgar carnes. por isto. como as treições e os mutirões. Ou. não delimitam sozinhas o popular e o não popular. No entanto. elas se interpenetram e se reelaboram e. Tais formas e princípios são as expressões de fronteira. 46). com códigos específicos de realização para a chamada cultura erudita e para a popular (BOSI. Os arados manuais e de tração animal. em outros espaços e tempos. não se pode dizer que tais expressões constituem força para delimitar com precisão as fronteiras das culturas. mas não com estatuto bastante para alçar às culturas esta diferenciação. São expressões diferenciadas. Comumente. entre representantes da chamada cultura letrada erudita.Convém. por razões históricas e sociais. então. do que se chama cultura popular. 1995. o que insistentemente se separa como particular da cultura popular e da cultura erudita se reconfigura. Há. dadas por outros atores a práticas já comuns em comunidades rurais do interior do Brasil. não é raro encontrar crenças. Na dinâmica da vida social. São formas marcadas de vivenciar. em meios urbanos. p. entre pessoas de reconhecido labor intelectual. Não são apenas a escrita e a oralidade que identificam uma prática cultural como erudita ou popular. Elas são aspectos que estão no continuum da Cultura e. contudo. cozinhá-las até secar-lhes a água e conservá-las por meses em gordura natural. princípios e formas de lidar com o mundo que são marcadamente encontrados em culturas populares. compreender que cultura popular e cultura erudita são rótulos que servem a uma vontade de delimitar o que é continuidade. com ar de inovação. ainda. eruditamente transformados em reservatórios e encanamento de água. então. sob a luz da escrita e sob a luz da oralidade. procedimento semelhante adotado pela cultura erudita. é sempre um risco precisar limites entre o que é popular e o que é erudito. Esta consideração nos conduz a pensar que muitas vezes. a cultura do povo. Por isso. uma pluralidade de elementos sociais reclamada (BOSI. Quando participam de missas oficiais da Igreja Católica são apenas alguns entre os fiéis a quem o padre dirige ensinamentos e sermões. Por esta razão.formas de cultura. como maneiras diferentes de significar e conceder valor às relações sociais de poder nelas embutidas. são a continuação de outras e. se reelaboram a cada necessidade de seus atores. diz-se que a cultura não é única e exclusiva. 1993) são hierarquicamente os maiores enunciadores de 262 . crenças e modos de vida daqueles excluídos na divisão social do trabalho e do poder. desejando negar a dinamicidade que as sustém. Ainda que haja comunidade bastante isolada e impenetrada por outras. a cultura de expressão popular. 1994) de fé. a serviço dos valores. inseridos na prática de resistência e invenção do cotidiano (CERTEAU. No entanto. não raras vezes. Há. no seu locus diário e cotidiano de cultura. Vejamos o caso de senhores cantadores de terços rurais. a cultura distante do universo científico-racional (mas não absolutamente separada da ciência e da razão) é conhecida como cultura popular. É uma cultura de expressão peculiar porque serve a um específico modo de viver. é a expressão da resistência e do enfrentamento a uma lógica cultural estabelecida. participantes essenciais em muitas novenas e festas religiosas no município de Catalão. suas práticas culturais não terão se mantido sempre as mesmas nem nasceram do nada. Se entendemos que a cultura são meios diversos e distintos de expressar a vivência humana e a ela dar sentidos entende-se que a cada modo de expressão tem-se uma forma de cultura também distinta. mas não necessariamente pura e intacta a outras formas e conteúdos de expressão da vida humana. nas roças do interior do Brasil Central (BRANDÃO. no constante de suas inter-relações. pois a cultura é caracteristicamente traço da dinamicidade das relações entre as pessoas. 1987). Recortes da cultura popular roceira em Catalão Pelo seu distanciamento das relações instituídas do poder dominante. entrelaçadas. em qualquer intenção de tipologias de cultura. É a necessidade de rotular que as põe como distintas e opostas. pois se não fossem dinâmicas não se fariam entremeadas. mas não os criam como outros. mas não a anulação. quer por meio da escola. Para Bosi. Bosi (1995. não haveria razão para enfrentá-las e resistir a elas. restando-lhe apenas o estatuto de folclore e tradição. não as reconhecendo. aprendidas graças à tradição oral familiar. em relato carregado de poeticidade e encantamento. 2 263 . passado em 13 de junho de 1975. Neste evento. Neste caso. Segundo ele: Essa cultura basicamente oral. negar os que reinventam os caminhos da fé.um saber religioso que reinventa a reza do terço. é julgada sem poder e sem legitimidade. Não anulam porque isto seria deixar de reconhecê-las e. aqueles dotados de um saber e modo de manifestação do saber que podem subverter sem. muitas vezes. estas práticas simbólicas e espontâneas que acenariam para a identidade destas pessoas sobrevivem. quer por meio da Igreja e do Estado (desde os tempos coloniais). Os rezadores e demais da comunidade estão configurando os caminhos da fé diferentemente. Assim. assim fazendo. a legitimidade de qualquer prática cultural está assegurada na sua propriedade de expressar os conteúdos e os modos de ser. a seu modo e nos seus limites. 1996) são o enfrentamento. 48-50) chama de litania cabocla na grande metrópole. 1995. 51). contudo. a cultura popular é vista como subversiva ou prática de desordem. absorve. como temem os saudosistas e almejam os modernizadores: apenas deixa que algumas coisas e alguns símbolos mudem de aparência (BOSI. a manifestação de religiosidade popular distinta da que a Igreja Católica oficialmente realiza. das múltiplas agências da indústria cultural. da propaganda. sujeitos comuns no dia a dia da comunidade. latinórios secretos e oferendas e pedidos que não seriam permitidos no espaço eclesiástico2. o enfrentamento e a invenção de práticas de cultura consideradas eruditas. p. noções e valores de outras faixas da sociedade. viver. p. em São Paulo. não negam a fé da Igreja . Isto aponta que estas práticas carnavalizantes (BAKHTIN. resistindo e se reelaborando. mas a realizam diferentemente daqueles a quem é dado convencionalmente pela Igreja realizar. não se destrói definitivamente. mas. O grupo necessita do reforço da fé que os inter-relaciona e vê nos rezadores de terço. o autor assiste a trabalhadores urbanos entoarem ladainhas e orações em latim. Por representar. e caracterizam a cultura popular da qual são atores. acrescentando-lhe ladainhas. Ora. terços e suas canções imperativas. apresenta-se dotada de dinamicidade. provavelmente. 2001). Se ela serve a este grupo é. estática e regular das práticas culturais. 264 . o fabrico de remédios caseiros a partir da fauna e da flora locais. manifesta no material de nosso estudo. Também não é o presente absoluto: é o presente cuja característica maior é ser o passado remexido e refundado pelas demandas do hoje. é comprometer-se a concebê-la como inserida na dinâmica social e histórica e que. Tampouco as alterações advindas destas inter-relações culturais devem ser vistas como deterioração ou conspurcação. religiosas etc. cultivar e colher são algumas das formas de expressão da cultura popular no sudeste goiano. por isto. O que se nota nesta busca por definir cultura é a necessidade de se desvencilhar de qualquer visão monológica. o uso de ferramentas para plantar. a grupos que não representar. Por isso. Também não é pertinente defender que haja culturas impenetráveis. treições e mutirões. são necessidades impostas pelas relações sociais dinâmicas na sua historicidade. a cultura não se obriga a ser a máxima da tradição conservada ou do folclore. do grupo. pois. Por isto. Misticismos como a crença em assombrações e benzições. econômicas. rememorar de um grupo. Não será. Entender a cultura popular como uma resistência. As práticas da cultura popular são parte do mundo real do grupo a que serve porque estão inseridas nas suas relações sociais. do irrestritamente peculiar. Todas estas formas estão evidenciadas na expressão máxima da cultura popular: a memória enunciada em narrativas orais e de caráter pessoal. antes. Tais práticas se manifestam material e lingüisticamente em ações. na maioria das vezes tácitas. Ela não aceita na sua composição e definição a rigidez do passado e da singularidade. legítima para ele. Ela não é o passado apenas: é o passado reinventado e reinventável no presente. diz-se que a cultura é plural e presente (CERTEAU. crenças e objetos da vivência diária de seus atores. ou como uma invenção cotidiana de conteúdos e formas de significar as vivências humanas. puras e que se fecham a quaisquer interferências e diálogos de outros modos de expressão.trabalhar. Isto quer dizer que as práticas se reelaboram e se adaptam conforme as necessidades. Para não servir à espetacularização que faz dos atores meros expectadores. órgãos oficiais ritualizam práticas de cultura como folclore. Muito comumente. bailes e reza do terço”.. ela se reinventa. ocorrem nos últimos anos as chamadas festas de roça. animação com bandas musicais. resgatadas em narrativas) para ter claramente capacidade de sobreviver à sociedade do espetáculo. Introduzidas inicialmente como festejo a um santo devoto a quem a comunidade já realizava novenas.]. na sazonalidade própria das culturas populares em que oralmente se noticiavam as novenas. a partir destas memórias (institucionalizadas ou apenas pessoais. Quando circunscritas apenas à comunidade da qual cada membro participava e tinha suas funções definidas claramente pelas relações sociais que estabelecia no grupo.. hoje. Devem ter. São anunciadas em cartazes de divulgação pública onde se lê “Tradicional festa em louvor a [. leilões. com datas que contemplem a calendários de seus interesses. O calendário de tais festas não obedece mais aos dias dos santos. Por isto.A pluralidade da cultura poderá ser reconstituída através da memória. muitas vezes guardada apenas na lembrança das pessoas. Haverá leilões. danças e até estacionamentos. pois ao se fixarem em calendários e programações externos aos interesses do grupo deixam de ser a sua expressão e este não se verá mais representado através delas. a cultura se reelabora e se refaz numa luta constante para não se fixar como data e ação comemorativas. as festas têm. Na zona rural de Catalão. Nota-se que a intenção de que pessoas externas à comunidade participem das festas se evidencia não mais no ritual. As práticas que estão sujeitas às alterações sociais do meio em que se inserem não se podem fixar. obrigatoriamente. Hoje. as novenas (ou festas religiosas a santos) eram a expressão evidente da religiosidade popular rural em Catalão. carecem de autorização policial e bênção da Igreja Católica figurada em algumas participações de seus representantes oficiais (padres ou ministros). como espetáculos. 265 . função de espetacularizar aquela expressão de religiosidade. mas a datas compreendidas entre maio e julho. mas no espetáculo do popular que se institucionalizou como tradicional. Duarte (2008) investiga três “festas de roça” no sudeste goiano: duas no município de Catalão e uma em Goiandira.Quer dizer. as associações se organizaram legalmente e instituíram como espetáculo suas festas religiosas. mas também pessoas da cidade. basta participar de algumas práticas mais enraizadas desta manifestação de cultura para saber que não se diria hasteamento de bandeira. realizam-se leilões e bailes de arrecadação não nos parece a interpretação mais acertada. Em pesquisa sobre a preservação de uma “identidade sociocultural” através dos terços rurais. principalmente. segundo seu estudo. Muitas têm estatutos e votação para a escolha do festeiro que melhor possa comandar a festa no ano. Para a autora: poder-se-ia dizer que a festa de roça enquanto espetáculo se origina de uma prática coletiva de comportamento independente na sociedade e que. Ora. Querem imprimir a eles um enraizamento que também as pessoas da comunidade sentem estar perdendo. por meio da reza do terço. 3 Já se encontram leiloeiros que anunciam ao microfone pausas no espetáculo para o hasteamento da bandeira ao santo. a memória de uma religiosidade. Querem. é que o caráter de espetáculo se sobrepõe ao primeiro e motivador desta prática. com a crescente necessidade de espaços coletivos para a convivência não apenas da comunidade. por alguma necessidade. acreditam que nesta reelaboração de cultura popular se façam mais fortes representantes dela. não cabe entender como profanação o que estamos chamando de desenraizamento. Certamente. Parece que no intento de encontrar suas raízes estão evidenciando mais fortemente seu desenraizamento3. os organizadores querem resgatar nestas festas não apenas pessoas que viveram muito tempo nas roças e que. O que se nota. Brandão (2004) entende que o sincrético festejar e rezar é identificador desta cultura e que o religioso e o festivo celebram o mesmo desejo de coletividade. O terço. porém. expressão demais oficial a uma prática religiosa. Normalmente diz-se levantamento do mastro ou levantamento da bandeira do santo a quem se devota. é o elo que faz manter as práticas rurais. trazer para suas raízes aqueles que nunca participaram delas. foram para a cidade. mas não as isenta totalmente da espetacularização das chamadas “festas de roça”. mas colocar sob a mesma rubrica uma reza de terço seguida de comida servida gratuitamente aos presentes e uma festa de roça que se reza o terço. 266 . Provavelmente. Certamente. repartidas e reforçadas pelo grupo. p. de viver. derrubou a mata. Salienta-se. a reza do terço durante o ano. 1987. seja para reformas de quadras e escolas ou para compra de tratores e insumos agrícolas. as águas. na verdade. [.] No campo brasileiro a conquista acontece sob as formas de monocultura e pastagens. 17). estará resguardada na intenção primeira da cultura popular: representar vivências e crenças cotidianas dos roceiros. 83).preserva e mantém. que em algumas festas os terços são rezados antes da festa em si. O arrozal em Goiás despojou o pequeno lavrador.. Suas múltiplas raízes se partem (BOSI. fora dele. ainda. o entoado nativo de falar. estão. a caça. certamente. O arroz. a cana provocam tão forte migração de lavradores que constituem genocídio pelo número dos que vêm morrendo no caminho para o Sul. formas de vida incompatíveis com a monotonia exclusiva do arroz. em casas alternadas de moradores. destruiu sua roça.. Quando colocamos as palavras de Ecléa Bosi a serviço de nosso propósito de entender a cultura catalana devemos esclarecer que as localidades no município em que a monocultura acelerou a ocupação das terras dos pequenos produtores roceiros não há mais as práticas de cultura popular..] O migrante perde a paisagem natal. os animais. as matas. a soja. os vizinhos. logo 267 . Elas têm como função maior angariar fundos para a Igreja e para a comunidade. Prática de enraizamento é. p. Não há mais os antigos moradores dantes. Quando se distanciam. As práticas reinventadas da cultura não podem se distanciar das raízes de seus atores. Assim. Convém trazer à baila o que Ecléa Bosi considera cultura em desenraizamento. extinguiu a caça e a lenha. à parte no espetáculo. dentro de uma sociedade fragmentada. a roça.. se desenraizando e servindo a outros interesses como pode ocorrer com as festas de roças de Catalão a que nos referimos. Para ela: A conquista colonial causa desenraizamento e morte com a supressão brutal das tradições. 2008. a cultura dos dominados como forma de resgatar a função ativa do indivíduo (DUARTE. sem a obrigatoriedade de festa. [. a sua maneira de vestir. no fim da tarde. invadiu seu cercado de galinhas e criações. a lenha. isto é. a casa. de louvar a seu Deus. secou o olho-d’água. Avançando. as festas. embora já o realizasse antes entre os seus. a doença aliviada e. diante das enfermidades por que passava o marido e as dificuldades financeiras para cuidar da família com filhos pequenos prometeu ao santo que se ele a guiasse no campo e no mato para que encontrasse raízes. também devotos. No conjunto dos narradores sujeitos deste nosso estudo4 apenas dois afirmaram conhecer festas locais e delas participar e três são participantes ativos e centrais de prática de terço rural. Então. ela ainda se sentia obrigada a gastar grande parte de suas economias para realizar o terço ela foi veemente em dizer que já lhe era devota antes da promessa e que. depois da morte do marido. Também não há os mutirões. Ou seja. a rezar-lhe o terço e oferecer uma janta àqueles vizinhos que. Indagada se após a morte do marido. esta prática completou setenta anos de realização. faz parte deste pelo menos há vinte anos ininterruptos. Satisfeito o pedido.não há mais os laços de compadrio e a solidariedade necessários entre os vizinhos. razão pela qual não se pode 4 Parte das discussões aqui empreendidas origina-se de nossa pesquisa de doutorado (PAULA. o terço a São Sebastião acontece anualmente. 5 A gravação foi feita em 2003 e nos anos seguintes o terço realizou-se normalmente. todavia. As festas de roça a que nos referimos. a dona da casa em que por décadas ininterruptas esta prática religiosa acontece. se localizam em comunidades. anos mais tarde pela mesma doença para a qual o santo a teria guiado no encontro da ervas curativas. já que máquinas diuturnamente plantam e colhem imensas lavouras. folhas ou qualquer coisa que aliviasse o marido da doença ela se prestaria a. continua devedora do santo porque ela ainda está viva. comparecessem. um deles. as agregações rurais em que pequenos produtores geograficamente vizinhos se unem no mesmo interesse de resistir ao êxodo e de permanecer nas suas roças plantando e colhendo diversidade de culturas. todo ano. rezador também em outros terços. 268 . Também argumentou que os vários pedidos que se fazem ao santo a cada terço só reforçam a sua dívida e fé. há sessenta e seis anos5 o realiza em sua casa. Sua devoção se deve porque. Segundo a senhora. até o fim de sua vida. uma senhora e dois senhores são os fazedores do terço: ela. 2007). em 2007. rezador deste terço desde a primeira vez que se realizou e o outro. desde então. tampouco as treições. suas festas e representações. quase sempre uma festa. porquanto. Esta prática cultural. cumpre os rituais da cultura popular. nosso interlocutor. tampouco. o terço é o reforçador e a memória das raízes. que filhos ou netos de familiares sejam dispensados de servir ao Exército. não divulga cartazes. O que se nota no momento dos pedidos no ritual religioso é a mistura de solicitações de natureza diversa e característica dos medos e necessidades dos crentes ao santo: pede-se que as águas e as estiagens sejam boas para as plantações. demanda meses de economia. que as mulheres grávidas tenham bom parto. Porque permite o convívio social . Sazonalmente6. compadres e parentes não se encontrariam e não reforçariam suas crenças. a religiosidade coletivamente repartida. permite a esse outro. A sua adaptação de data se deve porque. vizinhos. em caso contrário. Ele é o momento em que os vizinhos. A dona da casa. sempre é rezado e se tornou referência nas comunidades vizinhas. solidarizar-se com os outros. O terço. que outras doenças também se curem. que a alma de parentes ou amigos descanse em paz. descobrir-se no outro. compadres.abandonar a promessa pois o santo pode não atender mais os outros pedidos que se realizam anualmente a ele ou até desfazer outros já atendidos. vale lembrar. a festa é um dos momentos 6 Nos últimos sete anos o terço não está sendo rezado no dia de São Sebastião porque é época de chuvas na região. devotos. parentes e pessoas que se mudaram para a cidade se reencontram e refazem seus laços. reaver sua identidade. reconhecer-se na coletividade. perde o seu motivador inicial. Isto impedia parentes e vizinhos de comparecerem. Esta realização do terço. As despesas são custeadas pela dona da casa e a festa não aconteceu nos anos em que haviam morrido recentemente parentes ou amigos da senhora. não tem a obrigatoriedade da festa e. porém. nas palavras de Machado: Por essa ótica. uma vez que o acesso à casa da senhora é por estrada de terra.amálgama comunitário -. 269 . rearticular uma memória social esfacelada. Os preparos para o terço ao qual seguem uma janta oferecida aos presentes e. prometera ao santo fazer-lhe o terço e oferecer janta aos vizinhos em sua devoção o que torna essencial que eles estejam presentes: eles são a representação de que a senhora devota está cumprindo a promessa. então. as fés e necessidades se interpenetram e constituem a massa de religiosidade particular à cultura das pessoas que participam do terço. a religiosidade popular. diferentemente das festas de roça a que já nos referimos em páginas anteriores. Quer dizer. que à parte do que considera e define a Igreja. de estabelecer parcerias. p. reelaborada do catolicismo popular. estas práticas de religiosidade dos oprimidos. o rezador de terços ou o curandeiro são vistos como quem reza e tende a praticar o bem com as benzeções e os terços ou as garrafadas e rezas que curam. segundo Brandão (1993) tem razões históricas. no seu íntimo. assim. Outros porque. estamos tratando de sujeitos que enfrentam o desenraizamento por outros modos. Muitos deles se sentem isolados. Para ele. tais manifestaçõs têm. No entanto. esta manifestação de cultura popular existe e persiste porque é a demanda de significação e expressão das crenças e fés dos que a fazem. porém regada pelas necessidades e particularidades do povo que a realiza e. apesar de alguns narradores sugerirem que também poderiam praticar o mal. porém. 203) diz que no Brasil. Depreende-se. pátria de “populações fortemente compósitas”.de realizar o reencontro com as raízes fundantes. aquelas. em Catalão. especialmente o benzedor. de (re)construir uma humanização perdida (MACHADO. não segue o que o autor chama de profetismo (como Padre Cícero ou Antônio Conselheiro). Outros se supõem sem a relevância social que outrora tinham no grupo porque já não representam força de trabalho de que se possa valer. sozinhos e distantes dos poucos vizinhos que restaram do êxodo rural naregião em estudo. são apreciadas como profanas. a prática de terços etc. antes de tudo. O benzedor. comuns no Brasil no regime militar e que já não existem mais em Catalão. visitavam escolas rurais para realizar missas trimestralmente às quais seguiam fartos lanches feitos pelos moradores do lugar. a fé católica. com a oferta de alimentos beneficiados e a 7 Vittorio Lanternari (1974. Então. 2002. 344). com os rendimentos das aposentadorias rurais. sob o olhar urbano e centralizador da Igreja. Especialmente em função da formação histórica do lugar em que o padre que teria dado nome à cidade era. nas décadas de setenta e oitenta do século passado. um plantador de roças deve considerarse que padres. percebe-se uma nuança de resistência à religião oficializada que. p. Esta prática reinventada. 270 . O que se percebe é que circunscritas às suas tradições. continuam inabaladas pela entrada e saída da oficialização da Igreja em seus palcos7. o catolicismo é a prática religiosa predominante nas comunidades rurais: seus processos míticos e seus fundamentos de fé circunscrevem-se no âmbito do catolicismo como a devoção a santos. em Catalão. foram ratificadas com a presença das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). As que ainda exercitam a 271 . nem a de tropeiro. Não foram substituídas por máquinas ou grandes monoculturas. As doenças que hoje conhecem e enfrentam não são tratadas apenas com os emplastos. feijão. As mulheres não fiam e tecem as vestimentas para a sobrevivência da família como antes. isolados da coletividade que lhes assegurava aquela pertença cultural. mas colhem suas roças em bancadas de bater arroz. mas ainda participam de mutirões. não carecem mais de plantar e colher ou labutar nos engenhos como antes. anteriormente. que os narradores enfrentam o desenraizamento porque algumas das práticas culturais “de primeiro” ainda persistem. ainda há a porcentagem. emplastos e pós para curar doenças. rezam terços. Muitas ferramentas de trabalho deram lugar a máquinas porque não há mais o trabalho a ser realizado com elas: não há mais a profissão de carreiro e candieiro. mas contam suas colheitas nas medidas em quartas (arroz. As roupas grossas e pesadas tecidas do algodão que plantavam tornaram-se raridades ante à facilidade de deslocamento à cidade e à condição para comprar peças industrialmente tecidas. Dissemos. mas plantam as roças de arroz. fazem os “batizados de casa”. a meiagem e até agregados. mas compram remédios nas farmácias. milho e feijão nas matas roçadas e socam o arroz no pilão ou na máquina de arroz. Ainda carpidam suas roças de milho. quebras do milho e com pilungues nas bandeiras de feijão. guardam o milho no paiol e o feijão ensacado. Mesmo com os financiamentos em bancos e aluguel de terras para o plantio. Compram o arroz e feijão beneficiados. Isto significa que suas relações sociais e econômicas são outras. polvilho) e jacás e carro (milho). mas aram suas terras com o trator. ainda fazem chás. chás e garrafadas ou benzições.diminuição de pessoas que dependem de seus esforços para sobrevier (muitos filhos se casaram e/ou se mudaram). mas estão cercadas por elas. reúnem pessoas para o preparo das carnes enlatadas ou para a pamonhada. em seu lugar. o tratorista e o motorista de caminhão boiadeiro. Há. Têm televisão e geladeiras. Sabem que na cidade a compra de alimentos baseia-se no peso. profissionais que trabalham sozinhos. Conhecem as colheitadeiras. por isto suas práticas tendem a ser também outras ou em processo de adaptação. Há os remédios de farmácia ou doados por planos assistenciais dos governos. Há. porque não é a posse da terra que os torna roceiros. Elas representam a dinâmica do continuum: são aqueles saberes. Há. os atrasos que se acumulam na espessura das mentalidades. Por outro. Todos os narradores que disseram ser donos de pedaços de terra já foram ou ainda são meieiros ou arrendatários porque suas terras são fracas para plantio ou criação de gado e lhes faltam recursos para melhorá-las. por regra. Para ele. do outro. as latências.] a cultura oscila mais essencialmente entre duas formas. as irrupções. crenças e modos de viver. o estudioso querer calar as vozes múltiplas e facetas várias da cultura. porque estão assentados em memórias do fazer e do saber e. mas também que se alteram no cotidiano do fazer sentido às vidas destes roceiros. ela é aquilo que ‘permanece’. os desvios. o dono da terra em que se fazem roças. ainda. falar.tecelagem artesanal o fazem para a confecção de cobertas e lençóis para uso próprio ou venda ou tecem cortes encomendados de peças avulsas. sentir e curar que permanecem. Isto reforça a certeza de que o roceiro não precisa ser. dissimulada nos gestos cotidianos. Michel de Certeau (2001) discute a pluralidade da cultura e o efeito conceitual que ela implica: a ausência de limites e impossibilidades do silêncio ou da voz única.. aqueles que perderam a condição de pequenos proprietários ou nunca tiveram terra: estes têm a memória da lida com a terra. todas 272 . ao mesmo tempo os mais atuais e milenares. Este fato. é uma opção teóricometodológica. mas a vivência nela e a sobrevivência graças ao saber sobre ela. não impede que todos se situem como partícipes de uma cultura marcadamente rural. Porém. portanto de relação com o poder da institucionalização. via opaca. Estas práticas de cultura ainda persistem porque fazem sentido aos narradores. inflexível. principalmente. das quais uma sempre faz com que se esqueça da outra.. aquilo que se inventa. por um lado. porém. as lentidões. Acerca disto. mas não a da sua posse. porque permanecem ligados à terra como pequenos sitiantes. ele considera que: [. agregados ou meieiros se reforçam na sua expressão popular de cultura. Nota-se que os narradores convivem com situações e objetos que tendem a desenraizá-los. mas o que dela vive e apreende e desenvolve relações sociais e culturais da sua lida nela. De um lado. certezas e ritualizações sociais. De igual resistência são as práticas de plantio e colheita. mas assentados na fé e na confiança de dar ao outro a casa para nela entoar ladainhas e abençoar-lhe a família. ressaltar que neste estudo que empreendemos da relação estabelecida pela língua e a cultura escolhemos o caminho do múltiplo nas muitas memórias e nos muitos sentidos que elas apontam. Cumpre a nós. com quem se divide filhos nos batismos rurais.essas margens de uma inventividade de onde as gerações futuras extrairão sucessivamente sua ‘cultura erudita’. uma vez os terços geralmente são cantados por quem e a quem é solidário. p. mas se reinventar para continuar – este é o paradoxo desta expressão de cultura rural no sudeste goiano. por exemplo). o engendramento dos meios de comunicação de massa. de preparo da alimentação e dos remédios. pirilampos e grandes pássaros estão a delinear a possibilidade de reinventar o novo. O desafio é permanecer. Afinal. porém. então. ao apelo do tradicional e do folclórico. é. de benzeções e curanderias. de solidariedade e compadrio. Considerações Finais A necessidade de público. atravessam-na. de nomear. 273 . engessados na fixidez de também se esptacualrizar para uma memória fixa no tempo. mas não a única. faceta da cultura rural popular mais evidenciada neste estudo. pois sobreviver ao espetáculo e a outros arranjos da fé (avanço de outras religiões por meio de ondas de rádio e da televisão no mundo rural. e por vezes grandes pássaros noturnos. com ou sem “festa de roça”. Continuar enquanto prática de fé. às vezes distantes e desconhecedores dos rituais da Igreja. 2001. categorizar e repassar saberes sobre a terra. A grande luta dos rezadores de terços. Todo este continuum de pertença para se permanecer enraizado precisa não sucumbir. de modos de criar filhos. invisíveis. encerradas nas práticas -. 239). mas pirilampos. na grande noite em que dormem as revoluções. aparecimentos e criações que delineiam a chance de outro dia (CERTEAU. A cultura é uma noite escura em que dormem as revoluções de há pouco. o imediatismo visual são algumas das caraterizações da chamada sociedade do espetáculo. Universidade de Brasília. V. São Paulo: Ática. 1996. A. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Instituto de Letras. cultura. 2008. 1987. BOSI. GONZALÉZ. III. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica. BOSI.. 1974. A. ______. C. 200f. As religiões dos oprimidos. Cultura e desenraizamento. Uberlândia-MG: Asppectus. M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. D. 2008. Brasília. Lingüística como ciência. R. A. il. de. PAULA. t. L. 1993. 3. LANTERNARI. E. A. Cultura brasileira . SAPIR. DUARTE. São Paulo: Ática. 2007. Universidade Estadual Paulista. MACHADO. Campinas-SP: Papirus. 1987. J. CERTEAU. T. São Paulo: Companhia das Letras. M. Rastros de velhos falares – léxico e cultura no vernáculo catalano. N. De tão longe eu venho vindo: símbolos. M. gestos e rituais do catolicismo popular em Goiás. 274 .temas e situações. [1921]. In: PATRIOTA. 2004. ed. A preservação da identidade sociocultural por meio de práticas discursivo-religiosas em contextos rurais. Petrópolis. In: BOSI..). 16-41. 1969.Referências BAKHTIN. E. A cultura no plural. Goiânia: EdUFG. Catolicismo popular: história. 2007. R. 3. p. H. Brasília: EDUNB. 2. (Orgs. C. São Paulo: Perspectiva. ed. História e cultura: espaços plurais. dialética da colonização. Cultura popular: um contínuo refazer de práticas e representações. RJ: Vozes. 335-345. Cultura brasileira . 522f. Artigo recebido em setembro de 2008 e aceito para publicação em outubro de 2008. RAMOS. p. IRARRÁZAVAL. 2001. BOSI. teologia. Araraquara-SP. Tese (Doutorado em Lingüística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras. 1995.temas e situações. F. 2002. São Paulo: Hucitec. A. ed. BRANDÃO. além disso. labour market. 2 Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Keyword : urban poverty. instituições assistenciais. as autoridades policiais se desdobravam para manter a ordem no espaço público da cidade de Juiz de Fora. 1870-1930)1 “A DONATION FOR GOD’S SAKE!”: CHARITY. contava com um grande contingente de imigrantes como italianos. alemães e portugueses. a maior população escrava da antiga província de Minas Gerais e. Abstract: This article analyzes the discussions around the charity and their consequences for the labour market in face of the crisis of the slave system in the last decades of the century XIX. care institutions. Palavras-chave : pobreza urbana. Em seu entendimento. Nas últimas décadas do século XIX.“UMA ESMOLA PELO AMOR DE DEUS!”: CARIDADE. que também faziam parte do setor produtivo.com.br 275 . mercado de trabalho. aprofundam-se os debates em torno da reforma das práticas assistenciais e das instituições voltadas para o socorro aos pobres e desvalidos. Ver Pinto (2004). the debates are deepened around the reform care practices and of the institutions gone back to the help to the poor and destitute. FILANTROPIA E CONTROLE SOCIAL (JUIZ DE FORA. essa era uma providência urgente para controlar o mercado de trabalho. realizado de 27 a 29 de maio de 2005 no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES-JF). Inúmeros outros problemas 1 Este artigo trata-se de uma versão do terceiro capítulo de nossa dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). 1870-1930) Jefferson de Almeida Pinto2 Resumo : Este artigo analisa as discussões em torno da caridade e suas conseqüências para o mercado de trabalho em face da crise do sistema escravista nas últimas décadas do século XIX. Foi apresentado também no formato de comunicação coordenada no I Seminário de História Econômica e Social da Zona da Mata Mineira. uma vez que o município possuía. In this context. E-mail: jeffal@ig. Neste contexto. até a década da abolição. PHILANTHROPY AND SOCIAL CONTROL (JUIZ DE FORA. a análise de alguns dados referentes aos óbitos no início do século XX nos permite também verificar a existência de uma pobreza realmente necessitada. o recorte temporal que elegemos engloba um conjunto de discussões que vão. 2000. “infestando” as ruas da cidade há muitos anos. 497-98) constata que das 914 mortes registrados no distrito da cidade. 499 eram de indigentes. identificamos um discurso constante em relação às posturas a serem assumidas no tocante ao socorro aos pobres e a quem caberia a função de socorrê-los. Entre esses. na estação e próximos aos mercados. Neste intervalo. uma pobreza que engrossava as fileiras de pedintes. mostravam suas “chagas” expostas nas calçadas. muitos artigos na imprensa expõem a situação da pobreza de uma forma que nos permite analisála numa perspectiva das idéias políticas e sociais no Brasil no tocante as práticas relativas à assistência social. O Anuário Estatístico de Minas Gerais (BN. desde a crise do sistema escravista. nos finais de semana e. inclusive de muitos municípios vizinhos. Esta discussão pode ser ampliada se levarmos em consideração a mudança no regime político brasileiro a partir de 1889 e a conseqüente discussão em relação à mudança na legislação penal e civil. ou seja. Não obstante. no excesso de caridade praticada pela população. para as ruas da cidade que em dias santos e feriados. sem ter autorização para esmolar e com plenas condições para o trabalho. principalmente. Uma das principais causas identificadas para esse aumento de pedintes estaria. aproximadamente 54% do total dos registros. Tal atitude acabava atraindo inúmeros pobres. 276 . p. 354). 1913. o que nos leva a pensar na responsabilidade do Estado em garantir direitos àqueles cujas limitações físicas ou as condições de momento não lhe eram total ou parcialmente favoráveis. além do abandono de libertos idosos e doentes por seus antigos senhores. na tentativa de arrecadar o máximo possível em esmolas que lhe garantiriam o sustento por alguns dias sem o “sacrifício” do trabalho. até o fim da dependência do mercado de trabalho no Brasil da importação de mão-de-obra (ALENCASTRO. aos sábados. Neste sentido.sociais também se materializavam em seu espaço público contribuindo para o agravamento dessa situação. p. Por outro lado. “válidos” e “inválidos”. dizia-se naquela época. por exemplo. passaram a auxiliar a regulamentação dos sistemas de assistência social e a contribuir também para deixar à mostra toda a pobreza que se chamava de “viciosa”. Por sua vez. que aos cristãos coube uma importante parcela deste processo. atestando a vida caritativa e generosa de quem se preparava para a viagem eterna. P. para contornar esta situação? Neste artigo. Thompson (2001. portanto. tornava-se um perigo para o controle do mercado de trabalho que. procuraremos observar um destes caminhos por meio da ação de instituições de caridade ligadas à Igreja Católica que. tornava-se cada vez mais próxima. em que o pedinte era visto como um ser sagrado e se utilizava disto para despertar o sentimento de piedade naquele que tinha melhores condições de vida. 244-46). segundo E. naquele tempo. uma conotação sagrada. neste contexto. Na Idade Média. a opção pela pobreza chegava 277 . Tal situação começou a se confrontar. sobretudo com o advento da República no Brasil. Em muitos inventários post-mortem poderiam ser verificadas sua presença como um dos pré-requisitos que garantiriam a boa partida. Quais caminhos deveriam ser seguidos a partir de então. esmolando. p. conseguia se manter sem trabalho. assim. Em outras palavras. como dissemos.Até meados do século passado. A caridade revestia-se de um aspecto que. Como isto se deu e quais as suas principais conseqüências é o que passaremos a enfocar a seguir. na passagem do século XIX ao XX. com o aspecto moderno e higiênico que muitas cidades buscavam imprimir ao seu setor urbano e. se via às voltas com a crise do sistema escravista. a relação “trabalho” e “progresso”. mesmo em um momento histórico em que Igreja e Estado republicano se separavam. doar esmolas tinha uma importância muito grande para uma sociedade que via nesta prática uma forma de aliviar o peso de seus pecados tendo. acabava por levar para as ruas todo tipo de gente que. o olhar sobre ela nem sempre fora o mesmo. a envolvia em uma simbologia e uma mística muito forte. Este tipo de prática. Veremos. Novas concepções de auxílio e socorro aos pobres na passagem à modernidade O fluxo de pobres pelos caminhos e cidades da Europa sempre foi uma constante. a se constituir em uma via perfeita para a salvação, onde muitos renunciavam a seus bens materiais e passavam a viver das orações e esmolas, ajudando aos miseráveis e aos doentes. Naquele contexto, o papa Honório III acabou por reconhecer e aprovar as chamadas ordens mendicantes, sendo as mais conhecidas, a Ordem dos Irmãos Pregadores – os dominicanos – e a Ordem dos Frades Menores – os franciscanos. Hora e outra, quando havia uma redução na produtividade agrícola e/ou nas atividades comerciais – tal como “a grande peste” ou “a grande fome” – a pobreza realmente necessitada tendia a aumentar, mas mesmo em períodos de expansão, não deixava de ser visível. As cidades, assim como hoje, exerciam uma atração muito grande sobre o pobre, sendo por vias materiais – alimentos, leitos, abrigos, esmolas, entre outros – ou por vias imateriais – as peregrinações religiosas, por exemplo – em que Roma e o caminho de Santiago de Compostela eram os grandes destaques (GEREMEK, 1995, p. 19-22). Ocorre que, com as transformações na estrutura econômica européia do século XVI ao século XVIII a tolerância em relação ao pobre foi gradativamente diminuindo e, conseqüentemente, as reações políticas e sociais em relação a ela foram também se transformando (GEREMEK, 1986, p. 13). Geremek ao se utilizar das palavras “piedade” e “forca” consegue sintetizar bem esta passagem, uma vez que os sistemas penais, neste contexto, também passaram a se preocupar com a necessidade de se punir os pobres que, podendo trabalhar não se inseriam no mercado de trabalho. Somente os “velhos indigentes, crianças sem pais, estropiados de todos os tipos, cegos, paralíticos, escrofulosos, idiotas [...] por isso, isentos da obrigação de trabalhar” caberia a piedade (CASTEL, 2005, p. 41). Mas a quem caberia a função da piedade? Na península ibérica e em suas extensões ultramarinas, esta função acabou direcionando-se para a Igreja Católica, que chegava a se constituir em um braço do sistema político. De acordo com Caio Prado Júnior (2000, p. 337), na América portuguesa, a Igreja atuava neste período como integrante do quadro burocrático e administrativo colonial e a ela caberia “[...] a assistência social ao pauperismo e indigência, à velhice e à infância desamparadas; aos enfermos etc.” Atuava, principalmente, através das misericórdias que, pela manutenção de um hospital, em muito contribuíam para o socorro aos pobres. 278 Misericórdias como as de Salvador e do Rio de Janeiro mantinham junto aos seus hospitais uma Casa da Roda – também conhecida como a “roda dos enjeitados” – as quais muitas mães pobres e sem condições de criar seus filhos, em sua maioria frutos de uma gravidez indevida, recorriam para que as crianças fossem amparadas e pudessem sobreviver, entendendo-se esta prática como um ato de amor e não de desamor dessas mães, como muitos poderiam vir a crer. Assim, as misericórdias acabavam exercendo uma função solidária para com uma população que vivia, muitas vezes, em meio ao sofrimento e à violência da sociedade escravista (VENÂNCIO, 1999, p. 126). Em Minas Gerais, embora tardiamente, se levarmos em consideração outras capitanias, a Misericórdia assentou suas primeiras estruturas por volta de 1735 com a Santa Casa de Vila Rica. Em Juiz de Fora, já na década do ano de 1850, quando ainda poucas instituições, como a Câmara Municipal, o Fórum e a Cadeia, ainda assentavam suas bases, a Misericórdia também se fazia presente. Em 1854, em terrenos comprados de Antônio Dias Tostes, onde já haveria uma pequena capela em devoção ao Senhor dos Passos, foi instalada a Irmandade Nosso de Senhor dos Passos e fundado o Hospital da Misericórdia, tendo a sua frente o comendador José Antônio da Silva Pinto. O objetivo do hospital, além do socorro aos irmãos, voltarse-ia também para o atendimento aos mais necessitados daquela sociedade. Contudo, segundo Riolando Azzi (2000, p. 35-6), a ação da caridade cristã em Juiz de Fora, por meio destas associações religiosas, se fez sentir durante o período imperial de forma muito mais limitada do que em áreas de antiga colonização como na região mineradora, nas cidades do nordeste ou ainda no Rio de Janeiro. Não nos esqueçamos também de que no período colonial as confrarias e irmandades religiosas assentaram-se em Minas Gerais muito em função da impossibilidade de atuação do clero regular na capitania do ouro. Somente com o fim do período minerador é que as ordens regulares foram aos poucos edificando suas casas no território mineiro a exemplo do Oratório e, sobretudo, da Congregação da Missão. Desse modo, durante o período imperial, registra-se apenas a existência de quatro irmandades em Juiz de Fora: a Irmandade do Senhor dos Passos, a Irmandade do Glorioso Santo Antônio, a Irmandade do Santíssimo 279 Sacramento e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Esta, com a abolição da escravidão em 1888 e com a separação entre Estado e Igreja que se faria no ano seguinte, logo esvaziou-se. Segundo Anderson Machado de Oliveira (1996, p. 249-57), na Corte, as associações religiosas leigas tiveram importante papel no auxílio aos mais necessitados da cidade. De certa forma, elas acabavam chegando onde o governo não atuava – na saúde, na educação e assistência à infância, entre outros – tendo para isso a permissão para tirar esmolas entre os que melhores condições de vida apresentassem. Identificamos também que este tipo de instituição tinha outro aspecto que ultrapassava os limites da caridade, tornando-se uma forma de obter prestígio político e social. Segundo Charles Boxer (1981), de uma for ma análoga, a Câmara Municipal e as Misericórdias eram instituições que, ao longo da história do Império Ultramarino português, revelavam uma forma de inserção e prestígio de fidalgos na intrincada estrutura burocrática colonial. Observandose este aspecto é interessante notar que ela ainda cumpria uma função de distinção social no século XIX. Assim, após a fundação da Irmandade e do Hospital da Misericórdia de Juiz de Fora, José Antônio da Silva Pinto recebeu, já em 1861, o título de “Barão da Bertioga” das mãos do imperador D. Pedro II, quando este esteve em visita à capela da Irmandade do Senhor dos Passos. Além de Barão, José Antônio da Silva Pinto era Comendador da Ordem da Rosa e da Imperial Ordem de Cristo, irmão da Ordem Terceira do Carmo do Rio de Janeiro, da Ordem de São Francisco de Paula e Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, do Santíssimo Sacramento da Freguesia de Santa Rita do Caraça, do Senhor Bom Jesus do Matosinhos de Congonhas do Campo, e Instituidor Perpétuo da Irmandade Nosso Senhor dos Passos de Santo Antônio do Paraibuna (TRAVASSOS, 1993, p. 35-6). O quadro a seguir retrata o Barão no interior de sua residência que ficava em frente ao terreno onde se edificara o Hospital da Misericórdia . Em sua mão direita lê-se “Charitas” e ao fundo, aproveitando-se da vista da janela de seu casarão, vê-se o edifício onde começou a funcionar a instituição hospitalar e a antiga capela do Senhor dos Passos. 280 Por sua vez, os dados coletados em nossas fontes nos levam a pensar num questionamento das práticas adotadas no socorro aos pobres neste período. Muito embora a cidade de Juiz de Fora venha se constituindo já na segunda metade do século XIX numa perspectiva moderna, sobretudo se comparadas às antigas vilas e cidades dos tempos em que a exploração aurífera era a atividade econômica predominante nas minas, é importante destacar que a ação da Misericórdia e as posturas assumidas em relação à assistência social aos pobres revelavam a predominância de práticas tradicionais que pouco contribuíam para a sua Barão da Bertioga (1785-1870). erradicação ou pelo menos redução. Autor Rocha Fragoso, 1856 Tais práticas são perceptíveis principalmente se levarmos em consideração as novas necessidades em relação ao controle do espaço público, tal como apontamos anteriormente. Essas novas necessidades passariam a exigir uma nova ordem, sobretudo, em relação à assistência social: a segregação entre os pobres “válidos” e “inválidos” exigiria, para estes, uma solução que não fosse meramente passageira, como até então vinha se apresentando para o caso do Hospital da Misericórdia. Desse modo, se para esta instituição somente eram encaminhados os que realmente não tinham recurso para se tratar, a grande questão era responder de onde tirariam seu sustento após serem curados. Onde iriam morar? Como iriam ter acesso aos medicamentos? Estes problemas levavam a uma discussão sobre a necessidade de se consolidar um mecanismo de beneficência na cidade, em que os pobres “remediados”, isto é, aqueles que tinham alguma condição melhor de vida, pudessem, através de donativos regulares, contribuir para assistir aos irmãos em momentos de dificuldade financeira. Em 1877, um artigo do jornal O Pharol relatava justamente isto. Dizia-se que a existência de uma Casa de Misericórdia não excluía 281 a necessidade de se construir um estabelecimento beneficente, uma vez que tal instituição pouco serviço vinha prestando à população. Assim sendo, a idéia da beneficência era diferente da idéia de caridade ligada às tradicionais misericórdias. Nestas, somente se tratava o doente pobre que uma vez curado e devido à natureza de sua moléstia acabasse ficando impossibilitado de ganhar a vida, não tinha outro remédio senão recorrer à caridade pública, isto é, às esmolas, para obter os meios de sua subsistência. Segundo o artigo, nas associações de beneficência, o doente poderia, à sua vontade, tratar-se em sua casa, recebendo uma quantia diária que lhe permitiria fazer frente às despesas acarretadas pela moléstia, e o médico da associação far-lhe-ia as visitas precisas. Se a moléstia o impossibilitasse de trabalhar, a associação o tomaria a seu cargo e lhe forneceria meios necessários de subsistência (BMMMSM, O Pharol, 06/05/1877). Muitas associações beneficentes se constituíam nas décadas seguintes, mas voltaram-se, sobretudo, para o auxílio de imigrantes e a profissões ligadas, por exemplo, às artes e ofícios, tendo, portanto, um caráter excludente em relação a uma grande parcela da população que não se enquadrava em seus estatutos (VISCARDI, 2004, p. 99-113). Mas, e o restante dos pobres? Quem se responsabilizaria pela elaboração e condução dos mecanismos de assistência a eles destinados? Segundo a Chefia de Polícia do Estado de Minas Gerais, regulamentar as ações de caridade era importantíssimo para uma mudança nos hábitos sociais, principalmente em relação ao trabalho, ou melhor, à recusa ao trabalho e, conseqüentemente, ao combate à vadiagem. A idéia das autoridades ligadas ao Estado era oferecer algum benefício para que o necessitado pudesse sobreviver, tendo como recursos aquelas esmolas então doadas de forma indiscriminada. Aqueles que não aceitassem este socorro e preferissem viver nas ruas seriam considerados vadios e, assim, combatidos pela autoridade policial. Contudo, os modelos europeus identificados nos Relatórios da Chefia de Polícia (APM, 1895, p. 19) chamavam a atenção para a responsabilidade dos Estados em relação à organização destes sistemas de caridade, contando-se, para isso, com a criação de instituições, onde vadios adultos a elas recolhidos pudessem ser separados de crianças para que, dessa forma, estas crescessem habituadas ao mundo do trabalho. 282 No conjunto destas discussões é que acabamos por perceber uma ação da cristandade, sobretudo da Igreja Católica, em projetos que, na verdade, refletiam os anseios das autoridades republicanas, bem como da sociedade em geral, no controle social da pobreza. Tratavase também de um momento em que as ações da Igreja passavam por um processo de reforma, reforçando seu caráter tridentino e fazendo uma “leitura” conservadora em relação aos novos valores da modernidade oitocentista. Passemos à análise de alguns pontos deste processo. A ação dos leigos e do clero regular frente à pobreza nas minas oitocentistas Conforme argumenta Riolando Azzi (1987, p. 130-36), na passagem do século XVIII ao XIX, a cristandade ocidental vivia um momento de crise. Em meio ao progresso e ao avanço científico provocado pela difusão dos ideais liberais burgueses, principalmente da Revolução Francesa (1789), houve uma substituição do pessimismo típico do escolasticismo para o otimismo que expressava as mudanças da nova época. Neste quadro, o desenrolar do processo de modernização, verificado no Brasil a partir do século XIX, fez com que uma parte da elite brasileira, na qual havia representantes da maçonaria e do positivismo, sobretudo ligados aos ideais republicanos, entrassem em confronto com o aspecto clericalista do Estado imperial brasileiro, buscando uma nova forma de condução da política nacional, como se pode perceber em muitos intelectuais daquele tempo (AZZI, 1987, p. 138). Assim, em um processo que envolve a separação entre Igreja e Estado e que inauguraria também o período republicano, o clero mineiro passou a aprofundar a reforma de sua estrutura e ação em diferentes pontos da Arquidiocese de Mariana , que assumia uma postura ultramontana, a cargo, principalmente, da Congregação da Missão, em que bispos como D. Viçoso e D. Silvério serão os grandes expoentes mineiros (AZZI, 2000, p. 16). Este processo voltava-se para um projeto de moralização do clero diocesano e também sobre o “rebanho” católico que, na concepção dos reformistas, encontrava-se perdido, numa época em que a proclamação da República, separando 283 Igreja e Estado, contribuía para o avanço do positivismo, da maçonaria, bem como do protestantismo e do espiritismo. É neste contexto que podemos perceber uma presença maior de congregações e associações religiosas leigas em Minas Gerais e na cidade de Juiz de Fora oriundas da Europa (PEREIRA, 2002). Por sua vez, estas organizações, como notamos, passaram a influenciar também na regulamentação da indiscriminada caridade que tanto se questionava. Nessa época, começaram a ser articuladas estratégias, para que o clero se aproximasse dos fiéis, principalmente dos mais pobres, buscando inserí-los nos padrões de cristandade romanizados. Esta linha de ação, em que a mudança do ideal de caridade também estava presente, se fez sentir na organização do espaço público, marcado por uma grande controvérsia em relação ao destino dos pobres, como afirmamos anteriormente. Entretanto, as dificuldades para essa empreitada foram enormes, pois, conforme veremos, os recursos materiais e humanos se mostravam muito limitados. Podemos começar a refletir sobre estas mudanças, observando as atitudes deste mesmo clero sobre a organização das famílias. Desde o período colonial, a historiografia relata a existência na sociedade mineradora de uma grande presença de uniões consensuais sem o aval da Igreja (FIGUEIREDO, 1997). Assim, de acordo com o historiador Robert Slenes (1999, p. 141), na Europa e nos Estados Unidos no século XIX, um novo discurso começou a se formar, enfocando a necessidade de intervenção e mudanças na organização destes tipos de lares. Desse modo, os grupos dominantes passaram a elaborar estratégias para levar a “disciplina ao domicílio”, como parte de uma tentativa de criar novos valores sobre as classes populares, permitindo, dessa forma, o controle mais eficaz sobre o seu trabalho. Ainda de acordo com suas observações, na década de 1890, crescia o discurso da grande imprensa em relação a libertos “vadios” e, segundo este discurso, a sua recusa ao trabalho era causada por sua “degenerescência moral”, sendo a principal delas a ausência de uma instituição familiar estável. Tomando por referência este contexto, percebemos que, entre as investidas do clero na cidade de Juiz de Fora, estava uma imperiosa necessidade de agir sobre essas uniões sem o aval da Igreja. Vejamos os registros abaixo: 284 Movimento Religioso no Curato da Glória – Matrimônio Ano 1911 1912 1913 1914 Total % Registros 83 102 134 115 434 100% 12 12 42 13 79 18.20% Amancebados Fonte: CMIJF/ AHPHO. Livro de Tombo do Curato da Glória (1894/1925), p. 106, 112, 113 e 121. Movimento Religioso da Paróquia de Santo Antônio do Juiz de Fora – Matrimônio Ano 1911 1912 1913 1914 Registros 164 165 - (*) 216 (*) O movimento religioso foi mais favorável que no ano anterior. Não há especificação de amancebados. Fonte: CMIJF/ AHPHO. Livro de Tombo da Paróquia de Santo Antônio de Juiz de Fora (1900/1925), p. 50, 54, 58 e 62. É possível pensar, desse modo, que estas congregações e seus religiosos ao atuarem através de sua pastoral na organização das famílias, cristianizando-as, acabavam também contribuindo para a formação da imagem de um indivíduo ideal, moral e higiênico e, de toda forma, contribuindo para discipliná-lo no mercado de trabalho. Neste contexto, é preciso destacar ainda que no Rio de Janeiro o Congresso Nacional discutia o projeto de Código Civil Brasileiro. Entre as discussões polêmicas que eram levantadas a fim de se passar a regular a vida civil dos brasileiros – algo que, ainda naquela época, era feita por um dispositivo colonial, qual seja, as Ordenações Filipinas – estava a possibilidade de se estabelecer o divórcio. Muitos juristas e políticos brasileiros naquela conjuntura, mesmo se dizendo republicanos, acabaram sendo influenciados por uma tradição cristã que combatia a possibilidade de haver um “destrato” em um contrato que, embora sendo feito pelo registro civil desde 1890, entendia-se ainda como um 285 sacramento, que o homem não deveria e nem poderia separar-se (GRINBERG, 2002). Não obstante, a ação da cristandade também se voltava para as crianças pobres e sua educação. Os relatos em torno do grande número de crianças “vadias” nas ruas alertavam para necessidade de seu recolhimento em algum tipo de instituição que se voltasse para a sua formação. Em 1914, por exemplo, Arminda Luíza da Conceição, residente à rua da Gratidão, dirigiu-se à delegacia de polícia para pedir ao delegado que coagisse seu filho, o menor de nome Manoel Francisco, de quinze anos, a sujeitar-se ao trabalho em que ela o empregara. Manoel foi preso pelo delegado entendendo-se que ele era um tipo de vagabundo perfeitamente caracterizado em que a ociosidade o dominava. O delegado mandou interná-lo junto aos oficiais sapateiros da cadeia a fim de que aprendesse a trabalhar (BMMMSM, Jornal do Commércio, 7/05/1914). Escolas, asilos e/ou colônias agrícolas eram sempre aventadas como solução para estes menores, podendo dessa forma, vir a aprender algum ofício. Neste contexto, algumas escolas paroquiais foram fundadas, como foi o caso da escola paroquial “Menino Jesus” ligada à Congregação do Verbo Divino e a escola paroquial do “Curato da Glória”, cujas aulas eram ministradas pelas Irmãs de Santa Catarina no Salão São Geraldo e no bairro da Tapera, aonde chegaram a receber matrículas até para o ensino noturno. Nessas escolas, verifica-se a manutenção de crianças pobres da paróquia sem o pagamento de mensalidades. Nas cartas pastorais de 1901 a 1904, os bispos diziam que os párocos deveriam se esforçar para fundar cada vez mais escolas, “nas quais a nascente mocidade pudesse encontrar pasto espiritual e outros conhecimentos úteis para a vida prática”. Para tanto, caberia àqueles cristãos de melhor condição financeira, que se vinculassem em associações como a Sociedade Propagadora do Ensino Primário a fim de que, com a ajuda de suas mensalidades, tal projeto tivesse êxito. Outra instituição cuja ação voltava-se para a ação em relação às crianças pobres foi o Asilo Nosso Senhor do Patrocínio. Segundo o documento intitulado Memoradum, no Congresso Mineiro, D. Silvério Gomes Pimenta, arcebispo de Mariana, pretendia fundar vários colégios e asilos, para a educação dos numerosos meninos pobres do Estado de Minas Gerais, em cidades como Sete Lagoas, Ubá, Ponte Nova, 286 Manhuaçu e Caratinga, tornando-os, dizia, cidadãos úteis à pátria e à religião, que por falta de educação conveniente desaproveitavam-se para o país, quando não tornavam seu flagelo. Para essa empreitada, o bispo buscou contar mais uma vez com o auxílio do Estado, o que não conseguiu. Segundo os Anais do Congresso Mineiro, este pedido devia ser tratado com “um brado inequívoco de alerta e tomada de consciência de homens responsáveis, na promoção do bem estar dos pobres e humildes habitantes do interior do Estado” (OLIVEIRA, 1976, p. 78-80). Em conversas com ex-alunos, D. Silvério divulgava suas idéias, que acabaram se concretizando com a compra da fazenda do Patrocínio pelo padre Manoel Nogueira Duarte ao preço de 34 contos de réis, por 61 alqueires de terra, com porta fechada e todas as dependências e utensílios, pertencentes ao espólio da finada senhora D. Maria Tereza de Barros. O cotidiano no asilo, como narra o cônego Francisco de Oliveira, era dividido entre a oração, o trabalho e o estudo. Em 1898, lá conviviam 64 moços de diferentes procedências, na sua maior parte sertanejos de boas e más índoles e até elementos nocivos e perigosos. D. Silvério sempre recebia mais pedidos para internamentos de alunos, o que aumentava as despesas do asilo. Com o tempo, o asilo passou a ser colégio de estudantes pobres e patrocinados, desde que manifestassem sinais de vocação ao sacerdócio eclesiástico (OLIVEIRA, 1976, p. 79-95). Não nos esqueçamos também de que a fundação de instituições escolares inseria-se numa estratégia de reação da Igreja em relação à retirada do ensino religioso das escolas públicas com o advento da República. De toda forma, em todo este período, as reclamações em relação à criança pobre não cessaram. Estigmatizada: negras, vagabundas, vândalos, alcoolizadas, fadada ao crime. Imagem ruim para um conjunto da população que deveria estar diretamente ligada ao futuro do Estado nacional brasileiro. Na década de 1890, Juiz de Fora também se viu envolvida em um debate relativo à construção de seu asilo da mendicidade. Campanhas para a edificação de asilos tornaram-se recorrentes no Brasil do século XIX muito em função da necessidade de se abrigar escravos que foram abandonados por seus antigos senhores após a Guerra do Paraguai (1865-1869) ou ainda após o advento da lei dos sexagenários 287 (1885). Anderson Machado de Oliveira (1995, p. 244-5) diz que já em meados do século XIX a idéia de caridade já fazia empréstimos a ação filantrópica no Rio de Janeiro. Desse modo, a idéia de construção de um albergue para mendigos na cidade, além de recolher os indigentes da Corte, buscaria também identificar quem eram os seus verdadeiros pobres. A idéia era que se identificassem claramente aqueles que deveriam ser encaminhados para a cadeia, portanto os “válidos”, para a Santa Casa, os doentes e para o albergue de mendigos, os “inválidos”. Tanto no Rio de Janeiro quanto em outras capitais do Império notamos a distinção dada pelo governo imperial a estas instituições, seja por meio do Ministério de Justiça ou pelo próprio imperador D. Pedro II que, no caso da Corte, chegou a ir à inauguração de seu Asilo de Mendigos em 1879 (OLIVEIRA, 1995, p. 246; FRAGA FILHO, 1996, p. 106). Assim sendo, ao chegar a Juiz de Fora, o padre João Emílio Ferreira da Silva, que viria a presidir a Sociedade Promotora da Pobreza, fundada em 1890, cuidou de angariar fundos para a construção do “palácio dos mendigos” – o Asilo da Mendicidade – em terreno doado pelo comendador Gervásio Monteiro da Silva. O asilo era visto como a instituição que faltava à cidade para resolver o problema da pobreza “inválida”, uma vez que atenderia aos verdadeiros pobres e uma grande população necessitada de cuidados específicos os quais o Hospital da Misericórdia, como vimos, não dava conta de acolher. Era também considerado o primeiro estabelecimento do gênero no Estado de Minas Gerais e em visita ao asilo, David Campista, secretário estadual de agricultura, disse ter ficado maravilhado com as proporções daquele estabelecimento. De acordo com o Almanaque de Juiz de Fora (BMMMSM, 1892, p. 65), muitos achavam que a função do asilo, ao acolher os pobres e desvalidos, iria patrocinar ainda mais a vadiagem. Mas ao contrário, como afirmavam os seus idealizadores, a sua função seria dar trabalho aos asilados, respeitando os limites físicos dos internos. Depois de iniciadas suas atividades, pretendia-se programar também um recolhimento para órfãos. Podemos notar, dessa forma que, tal como o asilo de mendigos no Rio de Janeiro, o asilo da mendicidade de Juiz de Fora também buscava fazer seus “empréstimos” à noção de filantropia. 288 a grande dificuldade em administrar o asilo dos mendigos. 1955. Muito embora fosse bem intencionado. levaram-no a se tornar um asilo para meninas órfãs. e a instigante não investida policial nesta obra. Segundo essas memórias. 68). a reerguer a instituição que naquela época encontrava-se em grave crise. em 1898. as Irmãs viveram durante quatro anos com grandes dificuldades e necessidades. registramos dados que revelam este drama. Nas memórias das irmãs da Congregação de Santa Catarina. 2003. São Paulo: Habitat. quando souberam que iriam entregar a obra do asilo. Segundo as cartas da Província (Petrópolis). é a disposição da Igreja em se atrelar a este tipo de obra cujo retorno nem sempre era satisfatório. quando foi entregue pela Arquidiocese de Mariana às religiosas da Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor. que tinham a missão de auxiliar o provedor da Santa Casa de Misericórdia. 2000. Prefeitura Municipal. Já em relação à Santa Casa. o projeto de João Emílio acabou não vingando como asilo para mendigos. quando surgia qualquer ninharia. queria logo abandonar tudo e as irmãs se desgastaram sem receber nenhuma remuneração”. mais uma vez. na França. após sua inauguração em 1895. Braz Bernardino. havia dezoito internos 289 . Antes. p. O que nos chama a atenção. 160-61). O abandono dos mendigos. de 1898 a 1901. entre outros. algumas irmãs chegaram a chorar lágrimas de felicidade (PETRY. que. em 1902 (AZZI. seus principais moradores. porém. na dependência de “um senhor leigo e caprichoso.Asilo João Emílio Fonte: JUIZ DE FORA. s/d. dizia a Irmã Beata Heinrich que. oriunda de Angers. o asilo abrigou algumas religiosas da Congregação de Santa Catarina. conforme constatamos. p. Destaca-se. É ela a mãe e assim continua sendo. p. 70). da qual não podemos nos desligar sem deixarmos de ser vicentinos. as necessidades de nossa cidade.. Irmã Beata dizia também que a maioria dos atendidos eram negros. É deste contato com o pobre em seu domicílio que o confrade e sua conferência. A Sociedade começou suas atividades em 15 de março de 1894 com a conferência de Santo Antônio. 1994. mas ajudando-lhe a dirigir e orientar os seus. Começamos a visita em seu domicílio. obra essencial. etc. A Sociedade São Vicente de Paulo foi outra instituição estabelecida em Juiz de Fora voltada para o trabalho com os pobres. e que vai fazer com que nossa obra se irradie. É ele o chefe e assim continua sendo. p. É um servir ao pobre em tudo aquilo quanto ele necessite. Esta instituição foi fundada em Paris no século XIX pelo hoje beato Antônio Frederico Ozanan e passou a atuar junto a jovens burgueses daquele país. A ação da Sociedade São Vicente de Paulo se dava através de confrades que formavam as conferências para atuar nas bases da comunidade. vítimas do processo de industrialização pelo qual passava a França naquele período. tendo ela realizado seu rico desejo de “ir aos negros”.(MENEZES. Não um serviço à distância. É este contato com o pobre em seu domicílio.em suas enfermarias e somente um deles pagava suas despesas. de nosso povo. através dele. vai descobrir que é preciso ser feito um trabalho nas prisões. Esta visita ao domicílio. na igreja matriz. Não ajudamos ao chefe da família substituindo-o em suas responsabilidades junto aos seus. sem contudo entrarmos no assunto que ele mesmo nos apresente. mas um serviço próximo. nos hospitais. Entre as obras da Sociedade São Vicente de Paulo na cidade de Juiz de Fora pode-se destacar: a Vila das Viúvas (1895) e Recolhimento 290 . 2003. 41-3. A nossa vocação vicentina se caracteriza fundamentalmente pelo serviço dos pobres. As palavras do confrade Furtado de Menezes indicam bem a vocação vicentina e com ela podemos perceber a importância de sua ação para amenizar os problemas sociais. desde quando deixou a Alemanha em direção ao Brasil (PETRY. de contato pessoal. onde ouvimos tudo o que ele tem a nos dizer.. que é preciso criar creches para as mães poderem trabalhar durante o dia. grifos nosso). sinal de vocação verdadeiramente vicentina. que nos vai daí despertar para nossas necessidades. Este contacto em que vemos suas necessidades e procuramos ajuda-lo. auxiliando os miseráveis que se avolumavam nas ruas. Estas se ligavam a um Conselho Particular e este a um Conselho Central. tiveram boas condições de vida. entre eles o socialismo. havia na cidade 48 confrades ativos. Em seu conjunto. em outros tempos. De acordo com dados divulgados pelo “Pão dos Pobres” em um ano chegavam a distribuir quase 20 mil pães o que por dia daria para alimentar 50 bocas (BMMMSM. Em 1912. em que a modernidade e seus males. 176-77). evitando-se. 10/12/1912). Diário Mercantil. Não obstante. p. assombravam o espírito burguês. naquela ocasião. Em 1927. totalizando 83 pessoas (AZZI. o jornal procurava ser também um veículo de difusão da doutrina social católica do pontificado do papa Leão XIII. providências em relação às dificuldades enfrentadas pela polícia para a manutenção da ordem. ainda recolhia donativos para que pudesse entrar em funcionamento. por volta de 1912. de 40 a 50 famílias socorridas e uma obra especial chamada Casa da Avenida. muitos deles realizadas no Jardim Municipal em datas de referência para os cristãos. tal como a Páscoa ou o Natal. Além dos vicentinos. Em 1910. alertando a sociedade para a importância de se dar esmolas somente aos que dela necessitassem. 291 . atuava também na cidade as “Damas da Caridade”. cobrava-se das autoridades políticas. teve sua primeira sessão presidida pelo padre Júlio Maria e secretariada por João Nunes Lima e Antônio Fernandes de Oliveira. 05/01/1909). Aos vicentinos estava também ligada uma associação chamada União Católica Pão de Santo Antônio – também conhecida como “Pão dos Pobres” – instalada em 1898. O Pharol. Entre as atividades desenvolvidas por estas senhoras podemos destacar os festivais da caridade.dos Pobres e Enfermos São Vicente de Paulo que. O Pobre. mas que naquele tempo constituíam a chamada pobreza envergonhada (AHCJF. que circulou em números esparsos de 1899 a 1901 e que divulgava as idéias da associação. na residência de Francisco Batista de Oliveira que. confortáveis e higiênicas. assim. registramos a entrega de 10 casas para as viúvas na chamada “Vila Evangelista”. tem-se uma campanha contra a vadiagem. Mais uma vez. Como epígrafe o jornal trazia a expressão: “A esmola é capital do pobre e o juro do rico” (BN. Jornal do Commércio. a revolta dos pobres contra os ricos. A associação Pão de Santo Antônio também foi responsável pela edição do jornal O Pobre. elas inauguraram no largo do Cruzeiro a “Vila Santa Isabel”. Destaca-se que a entrega destas casas deveria ser feita àquelas senhoras que. que foram doadas aos pobres protegidos pela associação (BMMMSM. um conjunto de seis casas. 30/07/1927). 08/01/1900). onde viviam 27 viúvas com as famílias. 2000. nos deparamos com algumas reclamações no início do século XX quantos a muitos pedidos (e concessões) de isenção de impostos a esta instituição (assim como outras organizações caritativas ligadas à Igreja) junto à Câmara Municipal em um momento em que. por exemplo. a Santa Casa. revelam uma profunda participação dos organismos cristãos no tratamento para com a pobreza. entre outros. Se para a Santa Casa. assumindo claramente uma postura republicana em relação a este assunto 292 . Em resposta a estas críticas. voltada para a assistência social na cidade. em diversos artigos publicados nos jornais do início do século passado as reclamações em relação ao aumento do número de pedintes continuavam constantes.Casos como estes. (BMMMSM. deveriam ser enviados os pobres doentes. chamou a atenção também para o fato de ser ela o melhor meio de se resolver a questão social do proletariado. quando não fora esquecido em alguma cela da prisão. O Pharol. entendendo que as missivas preliminares publicadas na imprensa embora reconhecessem sua importância no tratamento com a pobreza. Onde estariam os inúmeros diretores destas associações de caridade. Esta situação gerou também discussões em relação às responsabilidades do poder público em relação à questão da assistência social. estar em boa saúde financeira e em vigoroso processo de expansão de seu patrimônio. Tomando mais uma vez o exemplo da Santa Casa. asilos e albergues que não vêm os mendigos morrendo de frio à plataforma da estação? – perguntava Alencar. a necessidade de se estabelecer uma instituição pública. diz-se. Hora e outra também os delegados de polícia contactavam a provedoria do hospital solicitando o internamento de algum indigente que encontrava-se abandonado em alguma rua da cidade e região. O escritor Gilberto de Alencar em sua coluna no jornal O Pharol também criticava a postura da administração pública em relação às suas responsabilidades sobre os inúmeros mendigos que hora e outra morriam ao relento. que tomaram para si a função da assistência social. competindo aos Estados auxiliar estas instituições cristãs. entre tantos outros que por hora não nos foi oportuno enfocar neste texto. esta nem sempre tinha condições de receber os mesmos em seus pavilhões. Estas constantes isenções acabariam por provocar o aumento de impostos para outros setores produtivos do município em virtude da redução na arrecadação municipal. 16 e 17/04/1901). Cobrava. Por sua vez. portanto consideramos a mesma quantia para o ano seguinte. portanto consideramos a mesma quantia para o ano seguinte.(BMMMSM. * Trata-se da concessão de auxílio anual. com a obrigação de fornecer medicamentos a pobres e fazendo-se efetiva elevação do duplo auxílio concedido no anterior exercício. somente na década de 1930 é que a municipalidade atenderia as expectativas da população pobre ao inaugurar a Policlínica da cidade. Verbas destinadas às instituições de caridade e auxílios aos pobres pela municipalidade Ano Asilo de Mendigos e Órfãs Asilo João Emílio 1:000$000* 1:000$000 1:500$000 1:500$000 1:500$000 1:500$000 3:000$000 3:000$000 3:000$000 3:000$000 1:200$000 1:200$000 Santa Casa Medicamentos aos Pobres 1:000$000 1:000$000 1:000$000 1:000$000 Socorros Públicos Orçamento Anual 206:000$000 550:000$000 550:000$000 572:000$000 602:000$000 532:000$000 564:000$000 455:000$000 448:000$000 443:000$000 405:610$000 448:710$000 - 1892 1893 1894 1895 1896 1897 1898 1899 1900 1901 1902 1903 1904 1905 1906 1907 1:500$000** 1:500$000 3:000$000 6:000$000 12:000$000*** 12:000$000 12:000$000 12:000$000 12:000$000 12:000$000 8:000$000 6:000$000 3:000$000 - 10:000$000 10:000$000 10:000$000 10:00$000 10:000$000 15:000$000 10:000$000 4:000$000 2:000$000 3:000$000 5:000$000 4:000$000 4:000$000 4:000$000 Fonte: BMMMSM. 293 . O quadro a seguir trás alguns registros relativos a doações feitas pela municipalidade às instituições de assistência. *** Resolução nº 354 de 10/10/1895 parágrafo 15: Auxílio à Santa Casa de Misericórdia. O problema da falta de uma assistência pública na cidade levava a imprensa a registrar ainda inúmeras outras mortes de homens e mulheres que se encontravam em estado de abandono. as fontes destas receitas seriam verbas especiais e (na falta) retiradas dos socorros públicos. embora não informada. para cumprir a obrigação. O Pharol. 1892/1907. Entretanto. desde que tenha. Livro de Resoluções da Câmara Municipal de Juiz de Fora. 10/06/1911). ** Trata-se de concessão de subvenção anual. farmacêutico e farmácia no estabelecimento ou se mostre habilitada por contrato com alguma farmácia estabelecida na cidade. embora não informada. tem-se percebido as dificuldades que as instituições governamentais vêm tendo para definir quais são os pobres que deverão ser aceitos em programas sociais do Estado. o auxílio às instituições de caridade ainda mantinha certa constância. Atualmente. por congregações e associações religiosas que já combinavam caridade e filantropia. Encontramos apenas um ofício da conferência de São Vicente de Paulo. Estas seqüências de dados nos fazem refletir sobre a ação da cristandade em relação à política de assistência social no Brasil. neste sentido. neste período. até então. orfanatos. principalmente se levarmos em consideração que. vinculou-se oportunamente ao projeto cristão de assistência social encampado. a situação dos pobres fora agravada com o processo abolicionista. a idéia de ordem pensada na passagem à modernidade – trabalho. as dificuldades em se definir os verdadeiros pobres. asilos. sabermos se ela foi atendida. do distrito de São José do Rio Preto. Na passagem do século XIX ao XX. Deste modo. vislumbrado pelo pensamento político e social brasileiro daquela época. Percebese que sua ação ultrapassa as simples obrigações de arrebanhar fiéis. tal como acreditamos ter ocorrido também em outras cidades. higiene – com vistas à formação de um ideal de progresso. informando as precárias condições dos jornaleiros daquela área e pedindo auxílio pecuniário à Câmara Municipal para fins prescritos no regulamento da mesma sociedade sem. somente a Sociedade São Vicente de Paulo não teve seu nome incluído no rol de benefícios da municipalidade. Destas associações. enfim. Escolas. muitas destas instituições eram (e de certa forma ainda são) administradas por homens e mulheres que buscavam de alguma maneira amenizar a miséria e suas funestas conseqüências para a organização da sociedade. educação.Notamos que na primeira década republicana. hospitais. segurança pública. Além disso. albergues. entidades que distribuem alimentos. em Juiz de Fora. As instituições citadas neste texto cumpriram assim uma função social que não havia similar. a cidade passava por um incremento no processo de higienização e urbanização e. contudo. embora não tenha chegado a promover uma maior transformação em sua estrutura. a 294 . era preciso contar com a sua colaboração para livrar o espaço público dos mendigos que possivelmente poderiam prejudicar o bom andamento deste processo. como já descrevemos. São Paulo. moleques e vadios na Bahia do século XIX.que Walter Fraga Filho (1996) chamou de “pobres da paróquia”. A cristandade colonial: mito e ideologia. BOXER. p. Keila. ______. AZZI. In: ______. Referências ALENCASTRO. nos ocuparemos a fim de que as conexões apontadas neste estudo possam ser melhor refletidas e analisadas. Neste sentido. também eram imensas. Riolando. ed. GEREMEK. 2005. São Paulo: Hucitec. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. ed. Os filhos de Caim: vagabundos e miseráveis na literatura européia (1400-1700). 267-286. 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Livro de Tombo da Paróquia de Santo Antônio de Juiz de Fora (1900/1925). 298 . Juiz de Fora. Juiz de Fora. Livro de Crônicas da Casa dos Redentoristas (1894/1925). Juiz de Fora. Maria Izilda Santos de Matos 1 Doutorando em História Social – PUC/SP. uma das primeiras vias a delinear a cidade enquanto questão foi a higiênico-sanitarista. Desde o final do século XIX e início do XX. Palavras-chaves : sanitarismo. Essas transformações foram ditadas. O olhar médico conjugado à ação/observação/transformação do engenheiro e à política de intervenção de um Estado planejador/reformador. Abstract: This text approaches the urban transformations why passed the city of Manaus during the peak of the period of the eraser. Those transformations were dictated above all by a concern doctor-hygienist that sought to control the daily of the city in a series of aspects.br 299 . culture. E-mail:
[email protected] evaluated some prohibitions of the permanence of popular habits that privileged the maintenance of the public health and rules of sanitary pattern imposed. intervenção. pretendia de todas as formas neutralizar o espaço. Keywords : systems sanitation. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (FAPEAM). culturas. intervention.VIVÊNCIAS URBANAS E CONFLITOS CULTURAIS: INTERVENÇÕES E AÇÕES NA MEDICALIZAÇÃO DA SOCIEDADE MANAUARA DA BÉLLE ÉPOQUE URBAN EXPERIENCES AND CULTURAL CONFLICTS: INTERVENTIONS AN ACTIONS OF THE MEDICALIZATION OF SOCIETY MANAUARA OF BÉLLE ÉPOQUE Paulo Marreiro dos Santos Júnior1 Resumo : Este texto aborda as transformações urbanas por que passou a cidade de Manaus durante o auge do período da borracha. São avaliadas algumas proibições da permanência de hábitos populares que privilegiavam a manutenção da saúde pública e regras de padrão sanitário impostas. sobretudo por uma preocupação médico-higienista que visava controlar o cotidiano da cidade em uma série de aspectos. Sobre a Manaus da Belle Époque. o fluxo dos cidadãos e seus impactos na saúde pública. deixando à História as dúvidas sobre os objetivos nas entrelinhas das políticas sanitárias. debater o urbano. 2005. os empreendimentos propostos pelas autoridades públicas contrapunhamse a tudo que era considerado ultrapassado e rural. Assim. principalmente no XIX que a influência médica adquiriu força de interferência. segmentos populares resistiram a tais modelos. no período conhecido como Belle Époque (entre 1890 a 1915). vincula-se ainda no imaginário hegemônico coletivo a idéia de que as transformações urbanas realizadas na cidade. no que tange a ótica higiênico-sanitária. os conhecimentos e ações dos médicos passaram a ter grande relevância na construção da sociedade. momento da expansão e queda do extrativismo e comercialização da borracha. Foi principalmente na implantação da Primeira República que estratégias disciplinares – expressas nos discursos médicos – passaram a ser impostas como práticas que deveriam ser vivenciadas.Foi no final do século XVIII e. os citadinos seriam estimulados a desenvolver práticas sociais que se adaptassem à modernidade e à higiene. de intervenções e ações carregadas de sentido em direção à medicalização da sociedade” (MATOS. a medicina se institucionalizou para propor soluções. Nesse período. O médico passa a ser a “autoridade reguladora da vida urbana. de caráter higiênico-sanitarista. estava sob a ótica da transformação urbana. As obras de Pereira Passos no Rio de Janeiro e as intervenções de Oswaldo Cruz no cotidiano urbano são alguns exemplos que podem ser lembrados do processo de metamorfoseamento realizado em cidades brasileiras. No trabalho aqui apresentado. analisar-se-á a cidade de Manaus. como boa parte das cidades em expansão na Primeira República. passaram a ser focos de discussão. Manaus. que os citadinos de Manaus – independente do local de morada na 300 . as famílias e as cidades. No contraponto dessas imposições. ou reacendeu a análise de antigos enfoques. 33). Com o processo de expansão urbana da Primeira República brasileira. p. Ou seja. foram homogêneas. Os corpos. Essa perspectiva possibilitou a discussão de novos temas entre as autoridades. tinham espaços-alvo definidos. não atendendo de forma plural os intuitos de saúde pública. Depois. no contexto do século XIX para o XX. mas que foram suprimidas . nas proporções devidas.por normas de comportamento social que se auto intitulavam “modernas”. fiscalização sanitarista nas casas. é considerar duas questões que convergem para uma releitura do discurso homogenizador de sanitaristas: Inicialmente. Como também é importante afirmar que hábitos e costumes locais já privilegiavam a assepsia. como: encanamento de água. Logo. Mas. seria um equívoco pensar que as transformações realizadas em Manaus. torna-se uma releitura de um processo histórico que foi consolidado como apologético.e até vistas como delituosas . diferentes das proferidas pelas autoridades e elites. a proposta não é condenar de toda forma as ações realizadas pelas autoridades no processo de consolidação da Belle Époque manauara. proibições de hábitos e costumes milenares. 301 . entre outras foram ações públicas importantes que trouxeram transformações positivas na higienização cotidiana da população da cidade. Tais intervenções. proliferação do sistema de esgoto. a proibição da criação de víveres e hortifrutigranjeiros no perímetro urbano. quer dizer. a imposição no uso da água encanada. via processo de remodelamento urbano. conseguiram abarcar todos os espaços da cidade. Quanto ao cotidiano da cidade no período da borracha. Esse artigo. portanto. a retirada de moradores de suas moradias palustres. a assepsia (e. drenagem de águas paradas. calçamento de ruas e outros tinham espaços definidos para serem erigidos pelos poderes públicos. as imposições de ações assépticas no remodelamento do parque urbano. percebendo outras nuances ao longo da história da Belle Époque manauara. apontar o paradoxo existente entre o discurso higiênicosanitarista e as normatizações contrárias às culturas populares locais que já privilegiavam. com isso.cidade – foram plenamente beneficiados no que tange à saúde pública. portanto a saúde) mediante hábitos e costumes milenares. mediante estratégias do cotidiano dos populares da cidade. o alargamento das ruas. No entanto. afirmar que as propostas higiênicos-sanitaristas – definidas pelas autoridades manauaras . do interior do Amazonas e do estrangeiro.Tratemos inicialmente do primeiro ponto. iluminação pública.o intenso fluxo migratório. como: transporte. sonhavam com novas oportunidades e em fazer fortunas. Além de outras questões. tamanho aumento populacional.] É um horror! A cidade está cheia de indigentes. 302 . oriundas da extração e comercialização da goma elástica. faziam desse espaço o lugar preferencial para a população da cidade. que vivem ao sol e à chuva. que vieram adensar a população da capital em busca de trabalho. água encanada.. muitos atacados de febre e beribéri! (DIAS. Esses. p. Com o processo de expansão econômica. foi o que contribuiu para que Manaus se tornasse uma cidade insalubre. pelos jardins e por todos os cantos da cidade.. No processo de transformação de Manaus em sede da economia da borracha. esgotos. para receber . advinda da extração e comercialização da goma elástica. atesta-se que a Manaus anterior ao período da borracha não sofria com insalubridades. somadas à proximidade do local de trabalho. motivado pela economia da borracha. O fato da transformação arquitetônicourbanística da cidade. Os problemas a serem resolvidos. Pela ótica das autoridades. benfeitorias urbanas que. alguns setores da sociedade exigiam transformações urbanas e interferências de autoridades sanitaristas. moderna e – acima de tudo – salubre.com ares modernos . os aumentos da mendicância e doenças de toda ordem contradiziam o ideal de cidade ordeira. Enfim. como abastecimento. 1999. Investimentos de ordem pública. a principal área de investimento durante as décadas de 1890 a 1910 foi o centro da cidade. arruamento e pavimentação. como afirma o observador: [.. Através das fontes pesquisadas e dos comparativos cronológicos. Foram brasileiros de outras regiões. e principalmente imigratório. 167).. ameaçava a harmonia e a beleza da cidade. As testemunhas oculares chocavam-se com o grau de insalubridade que permeava a cidade. a cidade foi palco da chegada de inúmeras levas de migrantes. habitação e principalmente higiene multiplicavam-se no espaço urbano. atraídos pelas notícias de riquezas. De certa forma. Aterros. Tais doenças infecto-contagiosas eram vistas como problemas para a modernização de Manaus e para os objetivos das elites.A forma como foi desenvolvido o processo de saneamento nesta fase é que teria provocado um desequilíbrio. retirada do lixo desse. escavações de solo para nivelamento de ruas e construções de prédios. Pelo mesmo Decreto. passa a interferir na vida privada. Em 1906. passaram a se exigir desinfecção das casas. a diretoria do Serviço Sanitário. O risco de males infecto-contagiosos eram cada vez mais manifestos: tuberculose. principalmente os casos de impaludismo. desestimulando até o intenso fluxo migratório. 303 . Em 1910. De acordo com o artigo 138 do citado (Decreto). 1999. 168). Como o fabrico da borracha era sazonal. expediu cartas para os médicos solicitando-os a notificação dos casos de doenças transmissíveis nas suas clínicas particulares. a maior parte dos trabalhadores dos seringais deslocava-se para a cidade de Manaus. com o seu término. o doente seria imediatamente isolado em hospital adequado ou na própria casa de habitação. o Serviço Sanitário e a polícia impõem uma política de interferência no cotidiano popular. pondo em prática medidas de grande controle sobre a vida do cidadão. a Seção de Higiene do Município não dispunha de equipamentos necessários para atender os problemas crescentes de epidemias e endemias que afetavam a população. com um cartaz afixado indicando o nome da moléstia em letras bem grandes e a permanência de uma grade para impedir a saída ou entrada de qualquer pessoa. a não ser médicos e autoridades sanitárias (DIAS. a febre amarela assumiu características de verdadeira epidemia. Nessa feita. Houve um alto número de mortes pela doença. pelo Decreto nº 649. varíola. sarampo e impaludismo. escavações para remoção de cemitérios (DIAS. p. caiação de quintais. febre amarela. O Serviço Sanitário do Estado do Amazonas. desaterros. pinturas. Com os adensamentos populares cada vez maiores. ficando esta interditada. 168). de 30 de dezembro de 1903. quando se trata de moléstia pestibucial. provocando um aumento populacional e o inchaço do perímetro urbano. 1999. asseio das habitações. p. sarjetas. A atitude ou prática pseudo-ilegal. autoridades e elites intervieram nas moradias populares. Conferir em “teoria do etiquetamento” (BARATA. eram consideradas propagadoras de doenças.entre outras. somente poderiam realugar após 40 dias. sendo vinculado à ação compreendida pelo policial como ilegal. ambientes onde se reuniam para promoverem atos nefastos. sendo um perigo à saúde pública. principalmente as de caráter coletivo. Contudo. 1999). utilizando como motivação ato condenável pelo Código Penal. A criminalização também é constituída sob a égide dos estigmas. motivados por outras óticas que estavam além das de caráter sanitário. As habitações populares. tinham a função de zelar pela higiene e a saúde de particulares. Nos primeiros anos do século XX. com o avançar das ondas migratórias. suspeita ou perigosa . sob pena de 100$000 reis de multa. 1997. Sendo esta moradia desinfetada. Passaram a identificar as habitações coletivas como esconderijos. As fiscalizações domiciliares. A busca pelo controle das epidemias chega a ponto de instituir multas de 100$000 ou cinco dias de prisão a todos que não comunicarem à Superintendência ou a Repartição de Higiene do Estado a presença de infectados com doença epidêmica ou contagiosa em sua casa. as intervenções públicas sobre moradias populares no centro atendiam à ótica sanitária. caiada. Com o decorrer dos anos o policiamento sanitário foi intensificado com visitas domiciliares feitas pela Secção de Higiene. A Secção de Higiene promovia desinfecção de ruas.124-125). história de vida. p. 304 . com o estranhamento ao outro e com o aumento da criminalidade e das criminalizações2. quintais e poças de água. as habitações populares eram os principais alvos. ocupadas por locatários infectados. como construção de fossas. pintada e lavado o assoalho.torna-se discutível. pois depende de conceitos de moralidade. a critério da Diretoria de Higiene. com imposição de medidas sanitárias.não estipulada nos códigos da legalidade . Os proprietários de moradias locadas. através da remoção de enfermos para os isolamentos. sendo esse quem aborda e quem executa a persecução criminal. suspeita ou socialmente perigosa. espaços 2 Criminalização ou criminalizar é o enquadramento por via da percepção policial. representações e ideologias que formam a personalidade do policial. banheiros ou até mesmo a demolição de hospedarias (COSTA. Mas. alto valor do imposto predial. seriam espaços que deveriam privilegiar o comércio. tornava-se necessário também a reestruturação sociocultural das áreas centrais. os serviços. a mesma exigência não tinha a mesma força em áreas de moradia prioritariamente popular: os arrabaldes. Tal imposição buscava acabar com a concentração de insetos nocivos à saúde que havia nas casas de palha e taipa das áreas centrais. que insistiam em permanecerem habitando nas áreas centrais. 305 . Moradias. Muitas famílias populares sitiam-se forçadas a se mudarem por não terem renda suficiente para cumprir com as exigências de higienização. eram comuns nos arrabaldes. imposta pelo Código de Posturas do Município. como a explicitada abaixo. Muitos desses seriam retirados através de desapropriações de suas moradias nas áreas centrais.da promiscuidade. ou seriam encorajados a buscarem outras áreas da cidade para moradia. era passivo para as autoridades públicas que tais áreas da cidade eram impróprias para moradias populares. Mas para que tal empreitada fosse efetivada. por exemplo. Pois. Porém. Quanto aos moradores populares. locais que serviam como emboscadas para os incautos. Nesse caso. os populares habitantes do centro eram considerados empecilhos. inadmissíveis nas áreas centrais. houve um considerável aumento no processo de fiscalização de inspetores sanitaristas na área em questão. teriam que ser substituídas por moradias cobertas por telhas e emparedadas de alvenaria. Como era objetivo das autoridades tornar o centro de Manaus ordeiro. intervenções dos fiscais sanitários tornavam-se uma constante nas áreas centrais. moderno e salubre. As casas com cobertura de palha e paredes de taipa. multas pelo Código de Posturas . Todavia. mesmo com os riscos – pela ótica sanitarista – que representavam à saúde de seu morador. uma vez que a intimidação policial. as sedes das Instituições públicas e privadas o lazer e moradia das elites. imigrantes e despossuídos que tinham suas moradias interferidas. Fonte: Dias (1999. as táticas de intervenção sanitárias eram diferenciadas quando se tratava de espaços diferenciados da cidade. além de. 306 . p. [. 1997. p. Quanto às moradias coletivas populares nas áreas centrais.. As classes pobres não passaram a ser vistas como classes perigosas apenas porque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem pública. as que mais sofriam intervenção dos inspetores de Higiene Pública eram os porões. locados por seus proprietários. Por isso. 93. naturalmente. 97).] E houve então o diagnóstico de que os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade. principalmente quando tais espaços figuravam moradias coletivas das camadas populares. Logo.. pode-se listar uma série de segmentos sociais que ocupavam sazonal ou permanentemente o centro: migrantes. 1865. Os pobres também ofereciam perigo de contágio.Moradia tapuia em Manaus. terrenos férteis para a propagação de vícios de todos os tipos (COSTA.) Pobres urbanos ocupavam as áreas centrais por serem mais próximas dos seus postos de trabalho e demais comodidades. e isto porque as habitações coletivas seriam focos de irradiação de epidemias. uma vez que as parcas condições de ganho desses trabalhadores nem sempre supria o valor exigido por um quarto de cortiço. 115). 307 .. o acusado Francisco José Affonso. utilizavam seus porões como aposentos para seus trabalhadores. pensão ou outro. serviam de renda extra para seus proprietários. ou seja. 50. A grande demanda por moradias centrais. A partir do Código de Posturas de 1910. Porém. 1997. parágrafo 1º. p. além de utilizarem os porões (moradia) como estratégia de controle sobre seus empregados.. como outros cômodos vagos. sem luz. Inquéritos policiais pesquisados revelaram a prática de moradia dos empregados com seus patrões.. art. Estes custavam “não menos que 50$00. a construção de porões torna-se obrigatória. No que tange às casas comerciais. contida no Art. Dessa forma. Estes . eram necessários 09 dias de trabalho para pagar um mês de aluguel” (COSTA. Para as residências particulares. Trabalhadores dormiam amontoados em condições subumanas e insalubres. 114).] a facilidade de proteção ao solo. Sanitaristas denunciaram os porões como “espaços estrangulados. para uma renda diária (em média) de 6$00. associando-se à deficiência habitacional e especulação imobiliária. sendo tais práticas de formas múltiplas.]” (MANAUS. Mais vantajoso ainda era para os patrões. 1997.. Código de Posturas. No inquérito sobre o furto de várias caixas de sernamby (lâminas de borracha). esse compartimento foi largamente locado por proprietários de residências e casas comerciais localizados no centro. 50) sendo proibido o seu uso como dormitório. os porões. após uma jornada de trabalho exaustiva” (COSTA. alem de aumentos de comodidade [. sem renovação de ar e úmidos. p. tinham nesses cômodos uma alternativa de lucro e o barateamento da força de trabalho. fazia dos porões de casas comerciais uma alternativa viável para trabalhadores. arejamento das madeiras. os patrões mantinham maior controle sobre seus empregados.Nos Código de Posturas de 1896. havia uma previsão para a construção de porões. A construção de imóveis com porões objetivava “[. 1896. pois eram incluídos como parte do salário os gastos com “moradia”. 308 . 14). da casa commercial de Bernard Bochris e Companhia.. é sempre burlado o seu justo intento pelos construtores de Manaus. Código de Posturas. alguns proprietários não atendem a boa qualidade do material a empregar nem as condições higiênicas do prédio a construir. a contento do Código de Posturas. Todavia era uma prática muito recorrente na cidade e envolvendo diversas categorias: garçonetes. p.[. mas que tinham fachadas a contento do Código de Posturas4. Em 1897. comerciante estabelecido à Rua Ramalho Junior numero doze [. a rua dos Andradas. 3 “Inquérito policial procedido ex-officio... respondeu que dormem todos. como forma de inspecionar a saúde e a higiene do indivíduo. lavadeiras e as convencionais domésticas. estabeleceu dispositivo para a adoção de medidas preventivas em defesa da “Salubridade Pública”. os construtores pouco se incomodavam com as divisões internas das habitações e respectiva confortabilidade para os inquilinos (COSTA. do Código de Posturas de 1890..portuguez. o Inspetor de Hgiene Pública demonstra a rapidez da significativa transformação do parque residencial de Manaus e a falta de controle por parte da Intendência no que se refere à qualidade das novas habitações que se iam construindo: Por maior cuidado que procure ter o poder municipal em observar rigorosamente o dispositivo legal sobre tal assunto. estivadores. sendo uma estratégia de manutenção de moradias populares (MANAUS. com vinte e dois annos de idade.] perguntado se dormem na sua casa de negocio os seus empregados. p. 1997.. Juízo de Direito do 1º Districto Criminal. 4 O artigo 80. O inquérito em questão não estabelece com exatidão a forma como os empregados dormem na casa do patrão. via sanitaristas.... na noute de vinte e quatro de dezembro de mil novecentos e seis. Auto de declarações. s/d. com relação ao furto de duas caixas de sernamby. Outros documentos oficiais atestam que as fachadas de alvenaria.] Preocupando o espírito com um rendilhado exterior. caixeiros. Na faina inglória de rapidamente construir. solteiro. na qual o respondente também reside3 (INQUÉRITO POLICIAL. Nos textos oriundos de fontes primárias objetivou-se manter a fidelidade da escrita da época. era ecessário demolir prédios que eram insalubres no seu interior. tornaram-se uma necessidade para o próprio funcionamento da cidade. A salubridade disfarçada por fachadas era condenada pelo poder público.. Auto de declarações que faz Francisco José Affonso” (INQUÉRITO POLICIAL. s/d). Auto de declarações. 1890). As visitas domiciliares. atenuava ou demonstrava falta de necessidade de visitas domiciliares pelos fiscais sanitários. Conforme a fiscalização. 109).. pelo Inspetor de Higiene. havia o reconhecimento que nesses cortiços e casebres insalubres estavam a solução mais viável e mais imediata à necessidade de alojamento da força de trabalho migrante: Com um contingente que o ilustre comandante geral das forças do Estado tem me proporcionado tenho assistido à demolição de choupanas anti-higiênicas. O Porto era um dos principais espaços da cidade. Dr. outros espaços no centro da cidade eram merecedores da atenção diferenciada do fiscal sanitário: o Porto. Localizado no centro. Para proteger as demais áreas centrais da cidade da ameaça do surto de peste bubônica. Ou seja. p. se mais não tenho feito é tão somente porque a população cada vez mais se condensa e o numero das casas ainda não é suficiente para facilitar a mudança rápida de inquilinos que habitam casebres sentenciados a cair (COSTA. 110). era merecedor de maiores cuidados por parte do poder público. responsável por entrada e saída de produtos e pessoas em Manaus.Contudo. Além das moradias populares nas áreas centrais. a Superintendência ou a Repartição de Higiene do Estado criou um grupo de trabalhadores para desobstruir. limpar e desinfetar bueiros. Governador do Amazonas. Mas. Segundo o relatório apresentado ao Exmo. 1997. desde que a presença de habitações palustres não se conservassem no centro da cidade. Fileto Pires Ferreira. poderia haver ponderação do Inspetor de higiene ou ainda se a permanência de um casebre atendesse aos interesses do patronato. compra de moderno aparelho para desinfetar porões de embarcações e fiscalização da área portuária por parte do Serviço de Inspetoria da Saúde do Porto. O risco de peste bubônica. era praticado rigidamente quando se tratava do cotidiano e dos espaços de vivência e trânsito das elites. se. Sr. foi determinante para a contratação de profissionais da área médica. o discurso hiênico-sanitarista. tão em voga. na medida que servia de habitação para trabalhadores e o maior controle desses pelos seus patrões. vinda do Pará. 309 . o mesmo discurso era relativizado quando se tratava de espaços populares ou quando a relatividade atendia aos interesses daqueles que possuíam o poder de mando. ampliar a fiscalização da higiene domiciliar e de casas comerciais. Parcos tratamentos que não traziam resultados imunológicos. p. Para essas áreas foi designado um médico para uma média de 3. indigentes e enfermos. às vezes pelas raízes da sua miséria mesma hereditária. distribuição de medicamento e alimentação para os atingidos. Superintendente Municipal. alquebrada. descreve a situação dos moradores da Colônia Oliveira Machado: Mais afastada da cidade do que os demais subúrbios. tê-la-ia naquele subúrbio” (DIAS. dos quais alguns já se acham de há muito fugindo aquele solo ingrato. arrabaldes que intermediavam o centro e estavam na fronteira da área rural da cidade. No entanto. o impaludismo afetava os arrabaldes mais pobres. O Dr. 310 . constata in loco a gravidade da desatenção com a saúde pública nesses bairros: “Se fosse possível. 1999. p. 157). apresenta essa malfadada colônia o quadro da verdadeira metrópole da fome e indigência mórbida. Oferece assim a chamada colônia. a vazante trouxe o impaludismo com resultados muito mais trágicos que os anteriores. a existência de uma necrópole de vivos. em visita aos arrabaldes mencionados. 157). A população miserável e desassistida pelo poder público teve a epidemia daquele ano agravada pela suspensão da distribuição de medicamentos por parte da Santa Casa de Misericórdia. São Raimundo e Colônia Oliveira Machado. 1999. Em 1914. esquiada e decadente (DIAS. se é verdade que só assim se a possa chamar por ser uma colônia de enfermos e miseráveis em cujo seio se cultiva uma raça de inferiores e incapazes. nos bairros da Cachoeirinha.000 (três mil) atendimentos. vencidos na luta bravia dos sertões do alto Amazonas. pois as ações oficiais eram provisórias: visitas médicas. sacrificada na mais rude topografia. Dorval Pires Porto. e outros são adventícios. o número de infectados por impaludismo aumentava. como maioria da sua população. José Francisco de Araújo Lima. Mocó. encarregado da Assistência Médica Municipal. Uma das maiores epidemias de impaludismo ocorreu nas vazantes entre 1904 e 1906. conta. aniquilados que foram pelos golpes adversos da fortuna madrasta. quase sem população tributaria da metrópole manaura.As doenças com características epidêmicas ocorriam com menor incidência nas áreas centrais da cidade. com registro de vários óbitos. e cadáveres ambulantes. a Colônia Oliveira Machado. Nos anos seguintes. XIX). e o problema de transporte de passageiros. por parte das autoridades. apesar de tentar recriar uma atmosfera europeizada. No Mercado em questão. as carnes eram provenientes do matadouro municipal. de tipo carroçável. principalmente das categorias mais pobres. “Art. era inevitável o acúmulo de dejetos de animais nas ruas. resultaram na piora da saúde pública de citadinos. Dessa forma. sustentado por tração animal. cap. O que se percebeu na trajetória dessa pesquisa foi que tais imposições. 311 . ficam sujeitos á multa estipulada no artigo precedente (MANAUS. e práticas populares milenares que já privilegiavam a higienização. bem assim. a Manaus Tamways Ltda. permanecia o transporte de tração animal e seus incômodos insalubres. em quase sua totalidade. apresentava uma estrutura de transporte de carga. Código de Posturas. Manaus. Aos bairros populares. Uma das imposições salientadas foi a proibição da grande quantidade de vacarias. pela má conservação do produto. “em nome da saúde pública”. as famílias que outrora eram criadoras e detentoras de todo processo de produção de alguns de seus alimentos mais elementares. Para resolver essa questão. havia uma preocupação das autoridades com a contaminação do consumidor com peixes mortos por venenos ou dinamites. 275 – os que forem encontrados vendendo peixes mortos por explosivos ou toxicos. de quaesquer toxicos vegetaes ou mineraes. foi implantada em Manaus uma companhia inglesa de bondes elétricos. consideradas relevantes ao sanitarismo. chiqueiros e hortas em pleno perímetro urbano. passariam comprá-los no Mercado Municipal. A fiscalização denunciava e multava criatórios destinados à subsistência familiar em vários pontos centrais do perímetro urbano. associado ao mau cheiro peculiar e a proliferação de insetos nocivos.A higienização do espaço urbano esbarrou em alguns problemas relativos ao funcionamento da cidade. como os riscos de doenças por contaminação. passíveis de infestações microbianas. O outro aspecto que deve ser considerado foi o paradoxo entre imposições normativas por parte das autoridades.” “Art. que circundava a parte central da cidade e alguns prolongamentos da periferia. A imprensa e toda uma legislação 5 discutiam as 5 Conforme pressupostos de saúde pública. Com tais proibições. 1910. O mesmo era utilizado para tracionar passageiros e carga. Havia reclamações constantes da qualidade do peixe vendido nesse Mercado. 268 – É expressamente prohibida a pesca por meio de dynamite ou de outro qualquer explosivo. O fiscal da Intendência. Outro fator das culturas populares que passa a ser normatizado em nome da moralidade. conforme os fiscais da Intendência Municipal. eram os banhos de rios. e continuam sendo. no início do século XX. Fonte: Dias(1999. o que constituindo uma infracçao ás posturas municipaes. uma prática milenar das populações amazônicas. 115) Nas crônicas policiais do Jornal do Comércio do Amazonas. de há dias. às vezes “com grande perigo para a saúde dos consumidores”.qualidades do pescado comercializado. Nos 312 . eram apresentados alguns casos de autuações por parte de fiscais do Mercado Público a feirantes que vendiam mercadorias deterioradas. p. Em Manaus. 20/08/1916). observando o peixeiro Joaquim Lopes de Souza. Os banhos de rio eram. As hortaliças eram consideradas de má qualidade e. É que este cidadão tinha o péssimo habito de aproveitar para venda o peixe condemnado pelo medico inspector do mercado publico. ao mesmo tempo. um grande perigo para a saúde dos consumidores do gênero deteriorado (JORNAL DO COMÉRCIO. Trabalhadores no Matadouro municipal em serviço de abate. Antonio Cavalcante. representava. mas que era intimamente ligado à assepsia popular. vinha. infectadas pelo manuseio constante. água encanada era uma possibilidade para as áreas urbanizadas da cidade e para famílias com renda suficiente para tal investimento. como já se tem dado factos bastante desagradáveis. na proibição da perpetuação de hábitos populares houve certo regresso no padrão sanitário da população local. que todos tivessem água encanada em suas casas. onde tem cerca de duas mil pessoas. Em São Raimundo N’este bairro.. nove casas de commercio. Dr. com palavras indecentes sem o mínimo respeito a moral publica. O paradoxo atestado neste ensaio se deu pela ausência de políticas sanitárias que – de fato – atendessem a pluralidade da população. Chefe de Segurança Publica para attender as nossas supplicas. São desrespeitados com suas famílias. Sr.] Pedimos ao Exm. nos dias de sabbados e domingos os quaes fazem afluir para maiores desatinos. principalmente de sanitaristas. principalmente as camadas mais pobres. cortados por rios e igarapés. e algumas quitandas. costume. Porém. Na carta abaixo. é um dos logares de Manáos. Não se pretendeu abominar a busca pela higienização. e possivelmente. a prática mais usual era a utilização das águas desses leitos ou – nas áreas mais distantes dos rios – o uso de cacimbas. tais hábitos não eram bem quistos pelo poder público. com a maior indecência. Tudo em nome do progresso. que se intitulam “comerciantes moradores de São Raimundo”. na meia enchente e vasante desse rio. para tanto. Ainda havia proibições da construção de tanques para armazenamento de água proveniente dos rios. Alguns commerciantes moradores em S. Esses solicitam ação policial contra moradores do mesmo arrabalde. com capacidade de recursos para canalização de água em suas casas. homens virem tomar banhos de dia e as vezes com mulheres de vida alegre. nem siquer um policiamento. e – portanto – membros de um segmento social abastado de um arrabalde. pois era objetivo das autoridades públicas.arrabaldes. da moral e dos bons costumes. nem tampouco pelas convenções sociais normatizadoras. Todavia. que se banham no rio que corta o bairro. 313 . É também. 1906). Raymudo (JORNAL DO COMÉRCIO. [.. Quer dizer. era necessário desprender grandes somas que a camada popular não possuía. dos mais esquecidos da policia. há o reclame de moradores. tornase notório que práticas sanitárias objetivam o aumento do nível de saúde pública. Dá-se qualquer coincidência. as autoridades tinham ciência dessas questões. conheciam parte dos problemas urbanos europeus de meados do século XIX. Antes do processo de reconfiguração urbana. as prioridades de saúde pública estavam restritas ao centro da cidade e suas elites. que prega uma qualidade de vida homogênea na cidade. estava sendo percebida como um corpo doente. No entanto. desconstruir espaços considerados pútridos para construir espaços sadios. 157). “o higienismo era o remédio mais adequado” (DIAS.estavam nas áreas centrais: a higienização de bueiros. Manaus se adensava às margens do rio Negro. após a intervenção da política higiênico-sanitarista em Manaus. buscando a melhora das condições de saúde da população daqueles bairros. um marco que deveria ser seguido. traços para o direcionamento das soluções urbanas aplicadas em Manaus. canalização de águas servidas. desarticular para rearticular. de certa forma. Partindo do pressuposto de que as elites intelectual e administradora de Manaus consumiam obras de vanguarda européias e viajando de tempos em tempos para o Velho Mundo. p. Da mesma forma. buscando nas soluções empregadas. A cidade. A rede de circulação da cidade e a desarticulação do amontoamento das atividades citadinas significavam 314 . antes do processo de remodelamento. assustava alguns pesquisadores do urbanismo de época (GEDDES. o que se teve não foi uma cidade livre dos miasmas ou de infecto-contágios. entre outras. Para que tal empreitada fosse possível era necessário destruir para construir. o maior índice de médicos por habitante obedecia espacialidades definidas. O amontoado que apresentava ser as principais cidades européias. desestruturar para estruturar. mas uma cidade padrão. Pelas falas oficiais. na virada dos séculos XIX para o XX. canalização de água.Relendo a historiografia ufanista da Manaus da Borracha. fiscalização em moradias. porém normatizados e segmentados socialmente. 1999. p. 1994. Na Manaus dos arrabaldes. mas não eram feitas intervenções concretas para acabar com as mazelas endêmicas e epidêmicas. as ações oficiais mais enfáticas – objetivando prevenção de endemias e epidemias . antes das intervenções urbano-sanitaristas da virada do século XIX para o XX. 43-44). um referencial para outras cidades. os problemas de saúde pública exigiam maiores ações. era fundamental acabar com os adensamentos. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. higienismo – e na sua extensão – urbanismo significavam também disciplinamento e controle para os habitantes da cidade. quartos de aluguel. principalmente os aglomerados de habitações populares do centro. 390). ed. 1999. 2002. como os Relatórios do Chefe do Serviço Sanitário do Estado do Amazonas quanto aos cortiços. 04 fev. Instituto Carioca de Criminologia. os adensamentos já faziam parte da prática cotidiana principalmente da camada mais pobre6. Foi nesse aspecto heterogêneo que se afirmou que o higienismo na sua dupla dimensão de pôr em movimento e de ligar conjuntos diferenciados. propiciando a circulação. expressavam suas indignações contra os adensamentos populares nas áreas centrais. ou seja. Porém. Cel. 1905. AM). encontra sua natureza intrínseca (PECHMAN. diferentemente da cultura citadina de muitos outros habitantes. 2. Ver mensagem lida pelo Governador do Estado. n. 391). 2002. onde o urbano é banalizado em proveito de novas configurações operatórias” (PECHMAN. Pode-se perceber que as intervenções urbanas em Manaus. através de Relatórios e Legislações. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. na virada dos séculos XIX/XX. contra o adensamento de moradias populares no centro. nº 3234. em 04 fev. Para a concretização do ordenamento higiênico-sanitário da cidade. p. e recomendações ao prefeito para tomada de atitudes contra os adensamentos populares no centro da cidade no Diário Oficial do Estado. hotéis de baixa categoria. Logo. 315 . BARATA. 3234. Diário Oficial do Estado. Essa fluidez fazia parte dos objetivos do higienismo que por conseqüência possibilitaria uma nova urbanidade. Referências ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO AMAZONAS (Manaus. Antonio Clemente Ribeiro Bittencourt. Introdução à Sociologia do Direito Penal. 6 Os administradores públicos da cidade. finalmente. 1905. realiza-se a homogeneidade estrutural concreta entre domínios heterogêneos e a cidade. Alessandro Barata. presente no Arquivo Público do Estado do AM – Manaus. houve um “conseqüente desprezo pelo saber e sensibilidade do habitante da cidade. p. em 10 jun.um maior fluxo urbano. casas de cômodos e pensões. 1909. MANAUS. p. ______. Manaus. A outra História – algumas reflexões. AM. 1890-1910. MATOS. Projeto História. 10. Âncora de Emoções: corpos. 1999. Maria Izilda Santos de. Manaus: Imprensa Official. HOBSBAWM. Depósito Público do Tribunal de Justiça do AM. Trama e Poder. Manaus. Projeto História. de 13 de set. 18-33. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Simone Petraglia. MANAUS. JORNAL DO COMÉRCIO. ______. Código de postura do município de Manáos. São Paulo. n° 13. São Paulo. subjetividades e sensibilidades. 7-28. 2005. NORA. SP: EdUSC. n. p. 1996. 1906 e 20 ago. Encontro Regional da Associação Nacional de História. Auto de declarações de Francisco José Affonso. 1910. MANAUS. 639. A outra História: ideologia e protesto popular nos séculos XVII a XIX. Lei n. n. LIMA. Roberto Kant de. Cotidiano e cultura. O discurso dos engenheiros sobre o Rio de Janeiro no final do século XIX. Rio de Janeiro. São Paulo. hoje. 1993. INQUÉRIDO POLICIAL. Bauru. Projeto História. Eric. p. 1890. 13. 1º Districto Criminal.DIAS. ______. In: KRANTZ. 2002. 1996. junho. Práticas judiciárias e violência. AM. Na trama urbana. 1910. 179-188. Os construtores da cidade. 1896. KROPF. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro: Sette Letras. Bauru.). Manaus: Valer. jun. Código de postura do município de Manáos. A ilusão do Fausto: Manaus. 1996. Código de postura do município de Manáos. Ednéa Mascarenhas. SP: EDUSC. dez. Pierre. 1996. de 1916. p. 67. F. 316 . s/d. 1990. (Org. Manaus: s/d. Manaus. Encontro Regional da Associação Nacional de História. EdUA. 1999. Rio de Janeiro: Tempo. Sandra Jatahy. Gizlene. PINHEIRO. 1997. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. Maria Luiza Ugarte. 1996. O Detetive e o Urbanista. Cultura da violência. Cidade. ______. identidade e exclusão social. 317 . PESAVENTO. 113. Artigo recebido em junho de 2007 e aceito para publicação em outubro de 2007. Rio de Janeiro. PECHMAN. Robert Moses.NEDER. _____. exclusão e medo do outro. Rio de Janeiro. Encontro Regional da Associação Nacional de História. Rio de janeiro: Casa da Palavra. suspeição e imaginário do terror. Manaus. 2001. 1996. p. p. Cidades estreitamente vigiadas. São Paulo: Companhia Editora Nacional. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus (1899-1925). 75. 2002. Os estrangeiros. missivas por eles endereçadas ao Conselho Ultramarino. irmandade. aiming at to trace the social profile of two of its controllers.C.1800) THE PARDO MAN IN LININGS AND FREEDOM IN VILA RICA: CONFRARIAL SOCIABILITY AND SEARCHS FOR SOCIAL RECOGNITION (C. recuperamos os testamentos e os inventários dos confrades. A descoberta do ouro no Sertão dos Catagüases reconfigurou a geografia política do Império Português ao dar novas nuances a colonização portuguesa nos trópicos. social mobility.C. E-mail: daniel. O lócus de análise será a Confraria de São José dos Bem Casados dos Homens Pardos de Vila Rica. tais como a honra e Mestrando em História pela UNESP -Franca e bolsista CNPq . A sociedade mineira “brotou” violenta e improvisadamente no Centro-Sul da América portuguesa. to obtain the social recognition. ora alcançado em decorrência de aspectos relacionados diretamente ao nascimento. bem como os estatutos e os livros da irmandade. brotherhood. letters for addressed them to the Overseas Advice. linings or free.com 1 318 . as well as the statutes and books of the brotherhood. Locus of analysis will be the Brotherhood of São José dos Bem Casados dos Homens Pardos de Vila Rica.1746 . mobilidade social. tornou-se mais ambígua a relação entre os parâmetros que imprimiam prestígio aos colonos. forros ou livres. For in such a way. Abstract: This article consists of the analysis of some aspects of the social fight of the pardos.precioso@gmail. Para tanto. visando traçar o perfil social de dois de seus dirigentes. Keywords : pardos (brown men). para lograrem o reconhecimento social.OS PARDOS FORROS E LIVRES EM VILA RICA: SOCIABILIDADE CONFRARIAL E BUSCA POR RECONHECIMENTOS SOCIAL (C. we recoup wills and the inventories of confrades.1800) Daniel Precioso1 Resumo: Esse artigo consiste na análise de alguns aspectos da luta social dos pardos. 1746 . Palavras-chaves: homens pardos. Em Minas Gerais. do que a das próprias jazidas. o dos libertos e. a urbanização e o dinamismo econômico criaram condições mais favoráveis para a mobilidade social de egressos do cativeiro. 14). abundantemente documentadas nas devassas cíveis dos arquivos notariais de Vila Rica. 1985) . ex-escravos e seus descendentes (SILVEIRA. de atas e deliberações.sobretudo os africanos. 3 Como sugeriu Wilson Cano (1977. recuperamos os testamentos e os inventários dos confrades. o produto delas”. por sua vez. Deste modo. assinalou o “aparecimento de atividades produtivas novas. conflituosos e indefinidos (SOUZA apud SILVEIRA. o dos pardos é o que melhor exemplifica o grande impacto sofrido pela estratificação social com a formação de um importante mercado regional.levou às últimas conseqüências a busca por distinção pelos colonos mineiros. o renomado carpinteiro Manuel Rodrigues Graça e o quartel-mestre Euzébio da Costa Ataíde. Outrossim. assinalando a posse de bens. José de Vila Rica. uma vez que atraem. p. mas trespassada por valores ligados ao acúmulo de riquezas. mas também os brancos pobres . Sérgio Buarque de Hollanda (1977. por vias diferentes. livres ou libertos. de óbitos e de eleições) da Confraria de S. 319 . Dentre os grupos que lutavam para alcançar reconhecimento na sociedade mineira do século XVIII. “foi reduzido o número de pessoas que enriqueceram com o ouro”. não menos rendosas. 1997. engendrando uma miríade de conflitos e contendas jurídicas. de recibos. 1997). que atendiam pela denominação de pardos. principalmente. bem como os estatutos e os livros (de receita e despesa. 102). p.a pureza de sangue. p. muitas vezes. a esperança de ascensão social.2 A relação paradoxal advinda da coexistência do fausto do ouro com a carestia que assolava a maioria da população (SOUZA. 292). procuraremos traçar o perfil social de dois de seus dirigentes. aos comerciantes. ora em conseqüência da crescente importância assumida pela riqueza na estratificação social.3 Visando o estudo dos limites e das possibilidades de mobilidade social abertas aos indivíduos de ascendência africana. ostentação de signos que denotavam status social etc. a diversidade de formas assumidas pela economia aurífera abriu aos lavradores. isto é. em uma sociedade herdeira de critérios estamentais de Antigo Regime. de entrada. Grosso modo. desempenho de atividades profissionais e de funções administrativas na irmandade. os crioulos e os mulatos. 2 A migração de contingentes populacionais diversos para o território mineiro e a criação de inúmeros aglomerados urbanos ligados a uma economia de mineração tornaram mais exacerbadas as “contradições do viver em colônias” em uma sociedade cujo processo de formação foi modelado por padrões de sociabilidade diversos. aos artesãos e aos letrados. malíssima sem dúvida” (BLUTEAU. Bluteau diz que o mestiço tinha “cor duvidosa. II. 66.347 mulheres).4% pardos. 265).298 mulheres) (AHU.441 homens e 23. p. “cabras” e “pardos”. Na proporção em que o século avançava. Entre os pretos. 511). a mestiçagem consistia no fator norteador do emprego dos vocábulos cabra. significando o “filho de branca e negro ou de negro e de mulher branca” (BLUTEAU.135).183 indivíduos) era do sexo masculino. com pequena maioria feminina: 41.501 do feminino. forras ou livres. Bluteau assinala que. engendrando uma ampla camada de mulatos e negros forros.497 eram mulheres. o padre R. Para dar conta dos frutos desses encontros foi usada uma infinidade de qualitativos para a designação dos mestiços. RAPM.317 mulheres e 40. Segundo o censo de 1786. do Caribe e do sul dos Estados Unidos” (FURTADO. tidos como imperfeitos por consistirem em resultados malignos6. 117. 1712. Fazendo uso de alguns adágios portugueses do pardo. no início do século XVIII. RAPM. as designações de qualidade aparecerão no texto sem aspas. predominavam as mulheres (entre os mulatos livres. 5 Em diante. dentre os quais. havia 19. 320 . Entre os escravos (174. durante o século XVIII. donde parece lhe veio o nome” (BLUTEAU.4 Como observou Júnia F.4% eram homens. em um total de 249. p.793 homens (AHU.A qualidade parda: entre a cor e a reputação social Em Minas Gerais. 628).105 indivíduos de ascendência africana. os mais freqüentes eram “mulatos”. entre os indivíduos de ascendência africana. p.8% eram homens. no grupo dos negros livres. Em uma sociedade composta majoritariamente por homens. entre os mulatos escravos. IV. própria do pardal. 58. 2001. 63. p. 4 De acordo com o censo de 1776. Bluteau conclui que pardo refere a uma “cor entre branco e preto. o concubinato foi uma prática corriqueira.7% (16.5 No Vocabulario Portuguez e Latino (1712). 81).171 (70. mulato e pardo. neutra entre as duas. Citando Leucophaeus e Plínio. Bluteau endossa as visões da infâmia dos “nascidos de pais de diferentes nações”. crescia a população de cor livre ou liberta. 47.1%) eram do sexo masculino. 1899. 1712. 6 Tomando de empréstimo os versos de Camões. 455 e 628). que informa também a condição civil. Excetuando-se a categoria dos escravos negros (106. 9. Furtado. 38.879 eram homens e 10. a escassez da mulher branca acarretou uma generalização dos “tratos ilícitos” entre homens brancos e mulheres de cor escravas.808 eram do sexo masculino e 41. O padre nos informa ainda que a expressão homem pardo era utilizada como sinônimo de mulato. 42. No grupo dos pardos havia certo equilíbrio entre os sexos. a sociedade mineira “apresentou uma diversidade e uma miscigenação muito maior do que as sociedades escravistas do litoral brasileiro. 1712. 1897. p. 294-6).3% pretos) da população de ascendência africana (297.412 homens. p. fossem ou não efetivamente mestiços. 269-270). Sob essa ótica. No caso dos pardos. Como salientou Russell-Wood. que trouxesse a marca de sua ascendência africana . No mesmo caminho. 47). na condição mais geral de não-branco. mesmo exclusivamente dentro dos parâmetros estreitos da raça. além dos ‘mistos entre as duas cores’. os homens e as mulheres livres de cor nascidos no espaço colonial (VIANA. que consultou a coleção de processos cíveis e criminais do Sudeste escravista referentes ao século XIX. 29-30). estudando as alforrias em Campinas no século XIX. como forma de registrar uma diferenciação social. p. para determinar a posição de uma pessoa.fosse mestiço ou não (MATTOS. antes. Sheila de Castro Faria. bem como todo homem nascido livre. os rebentos de ventre forro seriam livres e atenderiam pela qualidade parda (EISENBERG. 1989. sendo provável que a designação pardo tenha sofrido alterações semânticas no avançar do Dezoito. pelo menos a partir da segunda metade do século XVIII. porém ampliouse ao longo dos séculos XVII e XVIII para contemplar. posição social.É valido lembrar que o dicionário de Bluteau foi publicado em 1712. 210-211). supõe que o contraste entre irmandades cariocas que agregavam homens de cor nascidos na colônia e aquelas que reuniam africanos de diversas procedências e grupos étnicos tinha inicialmente servido mais aos mestiços. conforme se dizia na época. 1998. p. variável conforme o caso. consultando os registros paroquiais 321 . uma inserção intermediária. 2007. 2005. era essencial levar em conta fatores adicionais de grau variável de tangibilidade: riqueza. ressaltou que as designações mulato e pardo não aludiam sempre à cor da pele. Peter Eisenberg. a hierarquia social reservava aos pardos. a mestiçagem não era o único aspecto levado em conta para o emprego da terminologia. que estudou a identidade parda através das irmandades cariocas e procurou decifrar o “idioma da mestiçagem” na América portuguesa. Assim. mas também serviam para identificar o indivíduo livre de ascendência africana. comportamento (RUSSELL-WOOD. p. p. Assim. todo escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo. Na concepção de Hebe Mattos. Larissa Viana. a designação de pardo era usada. Os dois autores priorizaram as listas nominativas dessas regiões. um movimento na historiografia de revisão da idéia de que o termo pardo era utilizado (no período colonial e no século XIX) apenas como referência à cor da pele mais clara do mestiço. Para Roberto Guedes. Observa-se. procuraram desenvolver essas assertivas para as vilas de Porto Feliz (SP) e São José dos Pinhais (PR). p. R.7 Cacilda Machado. mas o reconhecimento social. sobretudo. Portanto. segundo o autor. 32). Guedes diferencia mapas populacionais e listas nominativas. sobretudo durante a primeira metade do século XIX. afirmou que. não são apenas e. 2004. derivaria do exame preciso das relações sociais estabelecidas no local e na data em que foram lançados os dados nas listas (GUEDES. 25). a partir da primeira geração de filhos de uma escrava forra. o casamento e a família. enquanto as segundas derivam de uma “observação pontual” de cada um dos fogos. fruto do acaso ou pouco criteriosa. as proles atendiam pela denominação de pardos (FARIA. portanto. a oscilação da terminologia empregada entre um censo e outro para designar um mesmo indivíduo não é lida pelo autor como desprovida de sentido. respectivamente. tal como a historiografia geralmente a aborda. os caracteres somáticos que pesam na qualificação dos forros e de seus descendentes como pardos. Em outras palavras. perseguindo nomes e montando extensos bancos de dados que contemplam as trajetórias familiares dos forros e de seus descendentes. a mobilidade social desses agentes históricos era preferencialmente geracional e não individual. Os primeiros. os primeiros expressam uma “coletividade abstrata”. 135). chama atenção para o fato de que a mobilidade nem sempre era “para cima”. 7 Visando a mobilidade social de forros e seus descendentes no interior de seu próprio grupo (e não o “salto” para estamentos superiores da hierarquia). os estudos de Roberto Guedes (2005) e Cacilda Machado (2006). Ao contrário. 1998. e ao que nos interessa. Mais recentemente.de Campo dos Goitacazes realizados durante o período colonial. resultam das segundas. por sua vez. 78 – n. para a qual se usava preferencialmente a designação de mulato. o que explica a opção do autor em estabelecer genealogias das famílias de libertos e de seus descendentes. de forma que se pode falar não apenas em branqueamento. 322 . p. com especial atenção à oscilação da terminologia empregada nas listas nominativas (GUEDES. 2005. p. mas também em empardecimento (MACHADO. além dos laços rituais de parentesco (compadrio) passam a constituir os elementos que se situam no primeiro plano analítico desses estudos. o desempenho de atividades profissionais reputadas. 2005). Assim. Essa vertente historiográfica. cabe menos à vista e à fisiologia do que à legislação e à administração resolver sobre a cor de tal ou qual indivíduo. esse relato interessa mais por evidenciar a possibilidade de ocorrência do que chamou de fenômeno da “mudança de cor”. ao passo que foi justamente a oscilação das qualidades atribuídas aos indivíduos no feitio dos censos de Porto Feliz que o autor procurou rastrear. 8 Embasado nesse testemunho. 4ª edição. 2002. hoje generalizada. no estudo de Roberto Guedes. 2006. Koster indagou se um capitão-mor seria mulato. capitão-mor pode lá ser mulato?” (KOSTER. Freyre já destacava que a qualidade de sangue não expressava apenas os caracteres somáticos. 771-2 –n. circunscrevendo o fenômeno ao século XIX e àqueles mulatos (os “bastardinhos”. Perplexo diante do que ouviu. ao discorrer sobre a ascensão do bacharel e do mulato no Brasil Imperial. 323 . não são necessariamente homens de cor. tributária das conjecturas de P. 1910. desde 1935. desvelando assim a mobilidade social de forros e seus descendentes (GUEDES. porém. questionando como seria possível tal coisa. 215). 2006. p. Em Sobrados e Mocambos. obtendo a seguinte resposta: “Era. 727). mas também a condição social. São Paulo. de Sérgio Milliet). p. 1949. Rugendas que escreveu em trabalho aparecido em 1835: ‘Por mais estranha que pareça a afirmação que vamos fazer. p. 19). filhos de brancos com suas escravas ou mulheres negras livres ou libertas) que conseguiam angariar uma alta patente no regimento militar dos pardos ou seguir carreira de bacharel. além de Debret e Koster. É oportuno recordar-se aqui a ‘expressão chula de abençoar: ‘Deus te faça branco para honra dos teus parentes!’” (FREYRE. podem de acordo com as circunstâncias ser considerados brancos’ (Viagem pitoresca através do Brasil (trad. Sobre o assunto. O empregado então respondeu: “pois. já não é”. Freyre parece mais cauteloso ao falar em mudança de cor. antecipou-se em inteligentes reparos. em vez de se dificultar ao indivíduo essa alteração social (South América. Os que não são de um negro muito pronunciado e não revelam de uma maneira incontestável os caracteres de raça africana. p. na realidade deitou suas raízes na década de 1930. senhor. o escritor pernambucano recupera um famoso relato do viajante inglês Henry Koster. M. 598) 9 Segundo Freyre (2006). Por outro lado. mais precisamente. o viajante replicou. p. Eisenberg. “James Bruce reparou que no Brasil facilitava-se ao negróide passar por branco. Londres. foi por nós esboçada neste ensaio em 1936 e em cursos de Antropologia e de Sociologia na Faculdade de Direito do Recife e na Universidade do Distrito Federal. durante sua passagem pelo Nordeste na primeira metade do século XIX (FREYRE. O painel pintado pelo escritor 8 O relato consiste em um diálogo entre o viajante inglês e um empregado.9 Ao que pese no debate ensejado nessas linhas. por um lado. 94). A idéia. 2005). de que influem sobre o status do brasileiro menos a raça do que a classe e a região. J. quando Gilberto Freyre redigiu sua tese sobre a decadência do patriarcado rural e a emergência do urbano. nas Minas setecentistas. mulato. Eisenberg (trabalhada posteriormente por Mattos. isto é. de observador para observador e de fonte para fonte. que. por isso. Partindo de suas condições sociais e deixando de lado o que era chamado de qualidade naquela época (branco. Cabe destacar que a idéia de P. Guedes e Machado focam a primeira metade do século XIX. pardo. na esteira de Sheila Faria. cabra. entre outras designações) é possível dividi-los em três grandes grupamentos: livres. pardo era uma designação da cor e não uma categoria social hierarquizada para conformar ex-escravos ou seus descendentes em uma ordem social estratificada. Os diversos pontos de vista elucidados até aqui demonstram que o termo pardo era polissêmico. realça o “movimento”. aos laços advindos dos apadrinhamentos de seus filhos. além de abordarem regiões distintas daquela que analisamos nesse artigo. Contudo. Guedes e Machado) de que a designação pardo caracterizava o último degrau na qualificação de indivíduos de ascendência africana. nas fontes. libertos (incluindo os negros e os mestiços nascidos livres) e escravos. ou seja. estavam sujeitos às restrições sociais impostas aos exescravos e. variava de região em região. o autor não as identifica com a condição civil. das designações atinentes a egressos do cativeiro. motivos para o estabelecimento de um quarto agrupamento social (PAIVA. estiveram muito mais próximos ao mundo dos libertos e de seus descendentes cativos que da liberdade ostentada pelos brancos. portanto. É preciso frisar ainda que os estudos de Eisenberg. Procurar-se-á adiante precisar a validade das hipóteses desses autores 324 . 2001. Segundo o historiador. é questão controversa na historiografia.pernambucano parece transparecer uma sociedade mais “estática” que aquela apresentada por Guedes. as etapas sucessivas que partem do ingresso ao cativeiro à formação de famílias escravas. à alforria e à aceitação social. visão que encontra amparo também nas formulações de Hebe Mattos. preto. crioulo. Autores como Eduardo França Paiva salientam que. ao “deixar de lado” as qualidades. Assim. que culminaria com o desaparecimento. matizando as nuances dos livres ou libertos de cor. Faria. Mattos. 66-7). de época em época. p. Os descendentes de libertos nascidos após as alforrias das mães eram juridicamente livres. Não há. Isso justifica a inclusão desses indivíduos entre os libertos. tendo perdurado os primeiros estatutos associativos até 1823. segundo o qual se distinguem as irmandades “de devoção” (ou seja. congregação criada em 1721 (AGUIAR. Francisco Curt Lange (1979) e Marília Andrés Ribeiro (1989). 2003) . apenas uma associação religiosa de pardos antecedeu o advento da Confraria do Patriarca S.11 Muito requisitados. cronológicas e do corpus documental. Sociabilidade confrarial parda em Vila Rica: a Confraria de S. sem deixar de levar em conta as especificidades espaciais. ereta por volta de meados da segunda década do século XVIII.os serviços banais (MENESES. em virtude da doação de terreno pelo Senado da Câmara para a construção de uma capela dedicada ao seu orago de devoção. José A Confraria de São José dos Bem Casados. José. religiosas e particulares. a Confraria de São José dos Bem Casados dos Homens Pardos de Vila Rica. como parece sugerir a tradição lusitana dos ofícios mecânicos. durante a segunda metade do século XVIII. 1956). 325 .e às construções civis. 1727 ainda marca a trasladação da irmandade da Matriz de Antônio Dias para a Paróquia do Pilar.para Vila Rica. que foi conjeturada por Germain Bazin (1956) e trabalhada por Fritz Teixeira Salles (1982). das “de obrigação” (isto é. p. com vida administrativa regulamentada em compromisso entre confrades) (AGUIAR. A proibição da instalação de Ordens Religiosas Regulares na Capitania 10 Adotamos o critério de classificação das irmandades proposto por Francisco Curt Lange e elaborado por Marcos Magalhães de Aguiar. data de aprovação do novo compromisso. Curt Lange e Marília Ribeiro. não reunia exclusivamente carpinteiros. José: a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. quando foi reunida a primeira mesa administrativa. sem vida administrativa). bem como a variada gama de artesãos ou artífices que se dedicavam ao atendimento dos artefatos concernentes à materialidade do cotidiano . 19). os músicos abundaram em Vila Rica ao longo do século XVIII. 11 É preciso esclarecer que a Confraria não era corporativa. 110). Desta forma. que estudaram a composição sócio-profissional da irmandade. assinalaram igualmente a presença marcante de oficiais mecânicos e artistas liberais nas fileiras dos seus associados. 1956. 1993. consiste em uma das primeiras irmandades a reunir homens pardos em Vila Rica (TRINDADE. tornou-se uma irmandade “de compromisso” apenas a partir de 1727. pedreiros e violeiros sob a bandeira de S. p. 2003). Segundo Marcos Magalhães de Aguiar. no Morro de São Sebastião (TRINDADE. Raimundo Trindade (1956). ou seja. descartaram essa hipótese. com estudos empíricos.10 A primeira mesa administrativa da irmandade reuniu-se em 1727. tais como a dos beneditinos e dos carmelitas. a mobilidade econômica e social ao liberto.das Minas do Ouro lançou nas mãos dos leigos a construção dos templos dos arraiais e das vilas. examinando os estatutos portugueses de “limpeza de sangue” entre os séculos XVI e XVIII e o ponto de vista dos letrados portugueses do Antigo Regime acerca da população de cor. 326 . Tendo em vista que a conquista da alforria não acarretava.independentemente da condição civil -. Se as cartas trocadas entre os governadores da Capitania de Minas Gerais e o Conselho Ultramarino durante o século XVIII não deixam dúvidas quanto ao fato de que as autoridades locais e metropolitanas estigmatizavam indissociavelmente africanos. O brasilianista inglês. Assim. necessariamente. A mobilidade social de ex-escravos e de seus descendentes ocorria. porém. ficavam à mercê das restrições sociais impostas aos ex-escravos e. os indivíduos livres e libertos de ascendência africana esforçavam-se para suplantar a fria exclusão social que lhes recaía. concluiu que os portugueses figuravam entre os povos mais racistas da época. contratadores e arrematadores de obras dos templos mineiros coloniais não seguiam liceus de escolas arquitetônicas de ordens religiosas. 1967). na medida em que engendraram inabilitações e estigmas diversos contra os descendentes de negros e “outras raças infectas” (BOXER. mas marcados pela mancha indelével da escravidão. em termos percentuais. Da mesma forma. possibilitando que leigos que se dedicavam aos afazeres mecânicos pudessem arrematar obras do projeto de construção e de ornamentação dos templos .12 12 Charles Ralph Boxer combateu veementemente a concepção freyreana de “democracia racial” aplicada à América portuguesa. por esse motivo. mulatos e bastardos . estavam mais aparentados à liberdade dos forros do que daquela gozada pelos brancos (BOXER. era provavelmente muito restrita face ao contingente total de indivíduos considerados juridicamente livres. a existência de um pai reputado e o desempenho de uma atividade profissional prestigiada norteavam as melhores formas de atingir reconhecimento e aceitação social.o que favoreceu a criação de um amplo mercado de contratação de artistas e artífices em Vila Rica. que amparou seus estudos em aspectos institucionais e ideológicos da antiga sociedade portuguesa. o estabelecimento de laços rituais de parentescos (compadrio) ou conjugais (um bom casamento). 1967). os descendentes de libertos nascidos após as alforrias das mães. Mesmo os indivíduos livres de ascendência africana distantes em até quatro gerações da experiência do cativeiro viam-se proibidos de ocupar assentos no Senado da Câmara das vilas coloniais. pois havia outros. os terços. pardo e preto eram as mais freqüentes na correspondência oficial. principalmente durante a segunda metade do século XVIII. ocupações de direção que conferiam prestígio. eram os próprios confrades que adotavam essa designação. Devido à existência de uma hierarquia interior ao grupo dos confrades irmanados. sendo que a expressão pardo poderia ser alterada para mulato. cuja carga semântica denota a vileza e o defeito do mestiço (RUSSELL-WOOD. podemos aludir ao enterro em foro privilegiado na capela. da região e do observador. no caso das irmandades de pardos. Ademais.Nas Minas Setecentistas. contudo. à Confraria do “Glorioso Patriarca” S. assim. 14 Nesse sentido. milícias ou tropas auxiliares -. 15 Á guisa de exemplo. nos ocuparemos apenas com os que desempenharam cargos de oficiais e mesários. à ocupação de lugar de destaque nas procissões e à ostentação da opa e do capote em dias festivos. ser oficial ou mesário conferia por si só distinção perante os demais confrades. 327 . bem como da época. ambígua e oscilante durante todo o período colonial. É digno de nota o fato de que. salientando as estratégias adotadas pelos confrades a fim de superarem a fria exclusão social que a marca da escravidão provocava naquele contexto sócio-cultural da América portuguesa. 1998. tais como. a posição dos libertos de cor foi mal definida.15 além de revelar a existência de pecúlios para arcar com as mesadas e com os anuais pagos à irmandade. 2005. Embora o ambiente confrarial não fosse o único locus de aglutinação dos pardos . caracterizado pelo seu caráter vago ou excepcional em uma sociedade estratificada em pólos opostos do espectro da cor: branco e preto.14 Deste modo. trilhando as pegadas deixadas 13 Essa perspectiva é verificada também nos estudos de Marco Antônio Silveira (1997) e Laura de Mello e Souza (1985). analisaremos a sociabilidade confrarial dos pardos de Vila Rica. 49). entendemos que “os grupos étnicos são categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores e.13 Partindo da premissa de que a designação da qualidade de uma pessoa dependia do próprio indivíduo. serão discutidas as questões que envolvem a hierarquização social de libertos e livres de cor em Vila Rica. circunscreveremos nossa análise. A ambigüidade e a fluidez da terminologia empregada para designar a qualidade das pessoas livres de ascendência africana demonstra que a palavra pardo marcava um lugar social intermediário. as denominações branco. Em outras palavras. 189). têm a característica de organizar a interação entre as pessoas” (BARTH. p. José. p. .16 No que diz respeito ao método de tratamento do corpus documental utilizado para o presente estudo. José: a riqueza e os símbolos de distinção Na luta social que os agentes históricos de nosso estudo travaram para flexibilizar uma hierarquização baseada no binômio senhor/escravo estava em jogo tanto a ostentação de signos de status social como o acúmulo de cabedal. que. Fredrik Barth (1998). Ao reduzirmos nossa escala de análise. irmãos da Confraria do Senhor São José. consistia também em um símbolo de distinção. para além das montanhas das Gerais. 1988. Fica patente. portanto. procurando.. O porte de armas. Ginzburg & Poni (1991) e Giovanni Levi (2000). que concebe essas associações de caridade e auxílio como canais privilegiados para a formação de uma identidade sócio-religiosa dos diversos grupos étnicos. 350-351). que excluía negros e pessoas de baixa condição. reverberou também em outras regiões. quando sair composto” (LARA. além de garantir a superioridade de defesa e ataque. os homens pardos polemizaram em torno de uma imprecisão surgida com a publicação da Pragmática de 24 de maio de 1749 na América portuguesa. Manoel apresentou-se como Mestre de Capela e de meninas na vila de São Salvador. pronunciar-se expressamente no caso dos pardos. 18 Em Campo da Violência. p.18 Considerando-se escusos da proibição decorrente do capítulo 14 da Pragmática. Para uma discussão dos métodos de pesquisa Cf.17 As estratégias dos pardos confrades de S. Em 1758. os irmãos do Patriarca São José de Vila Rica enviaram uma petição ao rei solicitando o direito de usar espadim à cinta. na qual alegavam que “os homens pardos. Na petição. a princípio derivamos dos livros de eleições da irmandade uma amostragem dos oficiais/mesários eleitos entre 1727 e 1830 para um estudo prosopográfico. que sempre o criou com estimação. em seguida. e pedia ao Vice-Rei que lhe concedesse a “faculdade para poder usar [. Lara traz a lume a história de Manoel de Carvalho e Melo. como vimos. que a publicação da Pragmática de 1749 na América portuguesa não ocorreu sem que houvesse protestos dos pardos.pelo estudo de Larissa Viana (2007). enviaram ao Conselho Ultramarino uma missiva. pistas em inventários e testamentos acerca da trajetória e do perfil social dos confrades e de suas famílias.] do ornato da espada ou espadim. na qual afirmava ser “homem pardo e filho de homem branco senhor de engenho. de Vila Rica 16 17 Para uma definição de grupos étnicos Cf. tanto nos estudos da gramática como também das artes liberais”. resgatada a partir de uma carta por ele dirigida ao Vice-Rei. aproximamo-nos das formulações da microhistória italiana. sem. Sílvia H. 328 . porém. se acham mestres em gramática. o que aponta a grande incidência. sendo muitos destes filhos de homens nobres.das Minas Gerais” não estavam inclusos no grupo das “pessoas de baixa condição. como os músicos. Nesta missiva. Esse dado relativiza. portanto. tais como a música (arte liberal). O documento confirma ainda que. Além da mostra de valorização dos preceitos morais e do “reto procedimento”. 329 . quando desfilavam em procissão com seus capotes e conduziam o estandarte. de uma consciência. já em 1758. que o seu efetivo exercício é pelos templos do Senhor e procissões públicas. demonstrando a existência de fronteiras entre ofícios regulamentados pela legislação corporativista do Senado da Câmara e outros alheios a ela.19 a gramática. a cirurgia e a mineração. que outros se vem constituídos mestres em artes liberais. aonde certamente é grande indecência irem de capote. já era disseminado o uso do espadim à cinta. principalmente nas ocasiões solenes. 1975. aqueles que se dedicavam aos ofícios manuais eram “mestres aprovados pela Câmara”. destas categorias profissionais. do estatuto de arte liberal atribuída à música. p. atuavam de 19 A missiva não deixa dúvidas quanto à existência. como eram os aprendizes de ofícios mecânicos. Demonstra também que a proibição decorrente da publicação da pragmática ocorreu por exercerem ofícios mecânicos. Revista do Arquivo Público Mimeiro. com que sempre se trataram e que. lacaios marinheiros. Aviltante que era no imaginário setecentista o “defeito mecânico”. ou seja. também figurou como argumento favorável. tais como as de comemoração da festa do santo (19 de março). entre os oficiais e mesários da irmandade. onde vivem com reto procedimento. a visão presente na historiografia de referência acerca do estatuto social do artista e artífice mineiro colonial. 223-4). nos quadros de filiação da irmandade. sendo uns mestres aprovados pela Câmara da dita Vila em seus ofícios mecânicos e subordinados a estes trabalham vários oficiais e aprendizes. finalmente. cirurgia e na honrosa ocupação de mineiros. nacionais das Minas”. negros e outros de igual ou inferior condição”. não se atrevendo a vestirem corpo por se verem privados do adorno e compostura dos seus espadins. o desempenho de atividades reputadas. por parte dos peticionários. do enquadramento social e da ascendência nobre na argumentação dos peticionários. Intitularamse como “legítimos vassalos. outros aspirando a mais. fica manifesto o papel da profissão. que como tais são reconhecidos (AHU. provavelmente. a melhor trajetória de mobilidade social. No décimo sexto capítulo dos estatutos de 1823.18) Os homens pardos de S. pobres e humildes. Constata-se. na qual eram os juízes que. assim.s desta Irm.modo regular. que se afastar das atividades manuais e tornar-se um proprietário bem sucedido. demonstra também a clivagem existente no interior da confraria.. 73. 330 . Segundo Marcos Magalhães de Aguiar. A posição do Conselho Ultramarino acerca do caso foi a de que para os pardos a cor da pele não era o fator determinante para o porte do espadim à cinta. nas fileiras de associados à irmandade não predominavam os indivíduos com cabedal. Certamente. objetivos mais facilmente alcançados sob o patrocínio de um pai branco e reputado. 1822-1823. estando os Cadaveres sobre a terra dias inteiros” (APNSP/CC. 20 O valor do anual cobrado dos irmãos era de uma oitava de ouro paga ao fim de cada ano. p. as duas Mercês e S.. em termos gerais. eram as irmandades mais pobres de Vila Rica (AGUIAR. segundo os preceitos da Pragmática. 27). ascendência nobre e ocupações profissionais prestigiadas. José eram. José. em semelhante caso devia-se “permitir ou negar o uso da espada segundo a vida e exercício que tiverem. fls. e decorrentes obrigações como compromisso a ser cumprido” (AGUIAR. v. encaravam suas eleições. A falta generalizada dos confrades do patriarca no cumprimento das suas obrigações pecuniárias decorrentes do pagamento pela entrada e dos anuais. além de manterem “subordinados” oficiais e aprendizes. argumentavam os pardos que “os Irm. “em geral. cx. balizavam.de são pobres” e que “tem succedido custar a terem jazigo onde recolhão as suas sinzas por lhes faltar com que pagar as Expensas da Frabrica que sem ellas lhe renegão as sepulturas. de sorte que se reputem como os brancos e tragam espada os que não exercem ofício e emprego vil” (AHU.20 Diante disto é que a irmandade teria proposto em seus novos estatutos a abertura de tumbas livres para alocar as cinzas dos mais carentes e privar a população do horror que consistia a permanência de cadáveres ao céu aberto dias inteiros.. 145. portanto. Avulsos. 179). pois mal tinham com o que pagar seus anuais e viam-se privados dos sufrágios. De acordo com os conselheiros. 1993. no qual se suplica a abertura de 40 covas livres no interior da capela ou em cemitério anexo para enterrar as cinzas dos irmãos desvalidos. doc. artistas liberais (pintor ou músico). dos quais 31 ocuparam cargos de direção. quartel-mestre e tenente). O cruzamento da listagem com os catálogos de inventários e testamentos resultou no seguinte: encontramos 21 testamentos e 24 inventários de irmãos de S. Estes exerciam profissões diversas. 1989). oficiais mecânicos. as relações sociais intra-grupal. ano que foi adotado como ponto de partida para o limite cronológico dessa pesquisa. capitão. percorremos os arquivos mineiros. José. José. porém. a naturalidade.21 Foram identificados 36 irmãos da Confraria. a filiação. em 1758. Ribeiro está incompleto (RIBEIRO. 1989. 181). a posse de bens e de escravos. preta Mina. professores de primeiras letras. p. chamando atenção ainda para a influência gozada na arrematação de obras do projeto de reconstrução e de ornamentação da capela de S. Embora poucos tivessem ascendência nobre ou largo cabedal. resultante da transcrição dos livros de eleição da irmandade dos anos de 1727 a 1830. cuja provisão é de 1746. mineiros e padres. Com o intuito de mapear o grupo dirigente da irmandade oficiais e mesários -. certamente assinaram como irmãos do Patriarca para melhor apresentarse aos conselheiros do rei. boticários. 451). procuraremos “dar corpo” a algumas daquelas “vozes descontentes” ecoadas em virtude do impedimento de portar espadim à cinta através da publicação da Pragmática de 1749 na América portuguesa. a presença dos oficiais mecânicos. conforme haviam constatado os estudos anteriores sobre a irmandade realizados por Curt Lange (1979) e Marília Ribeiro (1989): eram militares (alferes. A. Constata-se assim que os peticionários que enviaram a missiva debatendo as regras da Pragmática não se enquadravam nesse perfil. Filho de pai incógnito e de Francisca de Mendonça. O quartel-mestre Eusébio da Costa Ataíde matriculou-se na irmandade em março de 1750 (RIBEIRO. p. José feito por M. faleceu solteiro e 21 Constatamos que o arrolamento dos irmãos de S.1993. bem como a constituição de famílias por parte dos homens pardos de Vila Rica. 331 . Assinalaremos a condição civil. Atentos à composição do diretório da irmandade. a profissão. ano em que os confrades enviaram a missiva mencionada ainda há pouco. Munidos de uma listagem fundamental. que geralmente conjugavam a estas profissões alguma patente militar. dirigimo-nos ao Arquivo do Museu da Inconfidência de Ouro Preto e da Casa Setecentista de Mariana. Destaca-se. dos quais alforriou cinco e quartou seis. 18). sendo apenas declarado como oficial Francisco crioulo de idade de 50 anos. fls. Preso e levado para a cadeia da então Imperial Cidade do Ouro Preto em 1825. 98). 340. 22 anos.. legou oito moradas de casas cobertas de telhas (seis na ladeira de Ouro Preto. 18). residindo na Freguesia do Ouro Preto no perímetro do beco que vai para a Barra até a Chácara (MATHIAS. oficial de ferreiro (AHMI. que ficou quartado). Conforme observado. Francisco pardo (aprendiz de serralheiro. 98). com seus ranchos e carros. ou Paropeba”. p. inclusive as de sua morada. era oficial de ferreiro. 1969. Seu plantel de escravos contava com 11 cativos. 22 Em 1804. fls. e a lenha. e duas na Rua do Carmo). o fornecimento de pedra e ferragem e o aluguel de suas casas lhe permitiram amealhar todos os bens descritos. e como captivo.. Adão crioulo. contava segundo os avaliadores dos bens móveis.. nascido após a escritura do testamento. no recenseamento realizado em Vila Rica. Inventário.22 Eusébio atuou em diversos ramos. quando da morte do seu senhor. 332 . todavia nem todos com liberdade imediata. onde sempre assistiu.tes da Boa Morte. 1823. introduzido no aprendizado do ofício possivelmente por Francisco.”) e Adão Crioulo. três figuram com especialização em ofícios mecânicos: Francisco Crioulo (oficial de ferreiro. 11 escravos. ficando os demais ocupados “em hir ao carvam. fugiu com seus pais para “as p. um “serviço de tirar pedras de Topázio no morro do Saramenha e duas tendas de ferreiro”. tudo adquirido pela “indústria e trabalho”. Além de ser do sexo masculino e ter. seu pai. auto 7107. LRT 1805-7. todos os escravos do testador foram agraciados.23 Este último. q’ nasceu em vida de Seu Testador” (AHMI. Dentre os escravos quartados em seu testamento. O trabalho de ferreiro e serralheiro. 1969.] que se acha aprendendo. e tam bem em tirar no morro algua pedra” (MATHIAS. por não ter sido “contemplado na graça facultada a Seos Pais. Pedro Congo e José Benguela legaram o serviço de extração de topázio em Saramenha. e não por herança (AHMI. Natural da Freguesia do Ouro Preto de Vila Rica. diversificando as fontes de renda. a quem seria passada Carta de Liberdade quando se achasse “com suficiência completa de poder trabalhar pelo seu ofício [. Euzébio figura como serralheiro. 23 No recenseamento de 1804. fls.sem herdeiros forçados em 1806. nove homens e duas mulheres. cód. 20 anos quando fugiu. não foi contemplado e fugiu acompanhado dos pais antes de ser avaliado. aproximadamente. LRT 1805-7.. foram notificados os mesmos 11 escravos observados no seu testamento. p. 19). ] p. LE 1727-1854. Prova disso é que. v. 1956.ª a capella do partriarca S. tanto na extração e desbaste de pedras como na fabricação de ferragem e nas obras para as quais foi contratado.Eusébio da Costa Ataíde. Dentre aqueles que foram apresentados na carta aos conselheiros do rei como mestres de ofício. foi juiz outras quatro e uma vez escrivão (APNSP/CC.” (VASCONCELLOS. Logo após sua entrada na Confraria. Manoel Rodrigues Graça é outro caso exemplar. Apesar de estar estabelecido comercialmente. Eusébio beneficiou-se com as encomendas “de ferages [.. Na segunda metade do século XVIII. foi revertida em prol de homens como o analisado. utilizou mão-deobra escrava em seus empreendimentos. não deixaram de iniciá-los em seus ofícios no canteiro de obras ou comprá-los com conhecimentos técnicos trazidos com a travessia atlântica.24 foi morador na Rua do Rosário da Freguesia do Ouro Preto. etc. respectivamente. de 1762 e 1755-56 (TRINDADE. preta Cabo Verde. teve importante participação na direção da Confraria dos Pardos de S. que tinham subordinados oficiais e aprendizes. participou seis vezes da composição da mesa administrativa. homem de bens e proprietário de escravos. foi esse Manuel Rodrigues da Graça o principal oficial de carpinteiro de Vila Rica. data do envio da petição para uso do espadim à cinta. cujos recibos são. que. foi casado em face da igreja com Maria Gomes do 24 Na consulta que realizou nos 130 livros da Seção Colonial de Ouro Preto do Arquivo Público Mineiro. com “logea aberta” no dizer da época. José Do seu ingresso em 1750 à sua morte em 1806. p. 182). 333 . Joze” e o “comcerto do Sino” da mesma capela. ainda que seu testamento silencie o nome do seu pai. talvez principal entrave à regulamentação corporativista dos ofícios mecânicos na colônia. desde pelo menos 1740. Eusébio foi irmão de mesa da irmandade. uma vez proprietários de escravos. É consagrada a visão de que os artesãos se beneficiaram com as construções que transformaram Vila Rica. p. No ano de 1758. figurando o seu nome em quase todos os trabalhos de construção e consertos de edifícios.. ocupou o cargo de mesário. provando que já gozava de prestígio e tinha pecúlios para arcar com as mesadas. Carpinteiro de grande atividade em Vila Rica. muitas irmandades estavam construindo seus templos. apenas dois anos após assentar-se como irmão. 1940. 158-60). Salomão de Vasconcellos constatou que no período de 17701771 “e ainda antes e depois. A escravidão. em um canteiro de obras. incluia-se este irmão. 357). pontes. É provável que Eusébio tivesse ascendência nobre. Filho natural de Gracia Rodrigues Graça. p. Cabeça do fogo. apenas dois escravos foram arrolados: Lourenço. p. 27 No momento do recenseamento de 1804. Luiz Rodrigues Graça.26 Os seus filhos também atuaram no campo dos ofícios. APNSP/CC. na das Mercês e Perdões. Em seu testamento. 64). “para servir em quanto [. LE 1727-1854. além de sua filha Ana Ferreira de 13 anos e sua sogra Adriana Maria da Costa. 4). p. casada com o alferes José Pereira Dessa (alfaiate.Espírito Santo. Satisfasendo Se porem primeiro aos officiais que me ajudam a dita Obra a que elles tiverem vencido”. 1974. 26 No recenseamento de 1804.. Antônio e Luís. p. Realizou obras para a Casa de Fundição. matriculando-se igualmente na irmandade do Patriarca: José (carpinteiro) foi mesário da irmandade em 1806 (AHMI. fls. aparece como cabeça do fogo. Manuel rogou aos seus filhos e ao escravo João Carpinteiro que acabassem a reidificação de uma morada de casas na rua Direita de Vila Rica “para com o produto della pagarem Suas dividas do meu Casal athe onde chegar. de seis anos (MATHIAS. auto 7230. seu filho. 97). crioula forra de 60 anos (MATHIAS.. a então viúva Maria Gomes do Espírito Santo. 1969. 317-319). Manuel Rodrigues Graça possuía quatro escravos: Antônia. Estes dados comprovam que as disposições testamentárias foram concretizadas. 64). 188-196).] fosse vivo”. vivendo do seu ofício de carapina. Inventário. 25 No recenseamento de 1804. parda de 70 anos moradora na rua do Rosário. com marcante presença na mesa administrativa). de cujo matrimônio teve oito filhos: Ana. 347. Manuel. porta bandeira e irmão de S. Manuel dispõe que a carta de doação passada por Domingos fosse entregue a João.. p. no Palácio dos Governadores. 1969.25 Segundo Judith Martins. Testamento. de 25 anos (MATHIAS. Antônio Rodrigues Graça. José. a quem estavam agregados os filhos Manuel Rodrigues Graça. v. pedindo que ao “Referido Crioullo [.] deixem gosar da Sua Liberdade” (AHMI. Domingas e Lourenço crioulos. cód.. na Casa da Junta da Fazenda. pardo carapina de 34 anos. Luzia. João (marceneiro) e Antônio (latoeiro) realizaram obras na capela (TRINDADE. 334 . 1969. Em 1791. p. Francisco de Assis. 317). 1956. oficial de carpinteiro de 22 anos. que lhe “foi dado por Domingos Rodrigues Graça”. e João Carpinteiro. quando escreveu seu testamento. Manuel Rodrigues figura no “Livro de Exames e Ofício de Vila Rica (1776-1788)”. latueiro de 24 anos. José. 80. 158-60) e Joaquim (carpinteiro)27. e Luiza. Joaquim sustentava Ana Ferreira. na Igreja de S. Joaquim Rodrigues Graça tinha 40 anos. na Casa da Câmara e Cadeia e na construção da Ponte Seca (MARTINS. Aparece também no “Livro de Arrematações (1750-1760)” com indicação de ofício (MARTINS. com idade de oito anos e Antônio. sua mulher de idade de 34 anos. 1974. Joaquim. cód. João. auto 974. 1778.As transcrições dos Livros de recibos da Irmandade (1745-1785) realizadas pelo cônego Raimundo Trindade revelam que Manuel arrematou a obra de emadeiramento da capela. A avaliação de bens demonstra que os aluguéis eram uma fonte suplementar de renda de Manuel. dos pintores Feliciano Manuel da Costa e Marcelino da Costa Pereira. Daniel Precioso(2007). sendo sua alma sufragada pela irmandade.3 v). Ao que parecem.29 Manuel Rodrigues Graça faleceu em 1799. p. 1781. 1771. cód. vivendo de sua loja de alfaiate com sua mulher Ana Rodrigues do Espirito Santo. 1784 e 1785 (TRINDADE. Joaquina (oito anos) e Francisca (quatro anos) (MATHIAS. Esta lista de nomes poderia contemplar ainda casos como os dos carpinteiros Manuel da Conceição e Lourenço Rodrigues de Souza. Manuel Rodrigues possuía ainda duas moradas de casas assobradadas de telhas na rua do Rosário. 1780. que pertenciam à fileira dos associados à Confraria. LE 1727-1854. 29 Corroborando com o que foi declarado no testamento. 106. também irmão de São José e seu contemporâneo. p. em 1815. 1969. Maria (14 anos). 139-140). em igual parte e inventariantes. que a irmandade de S. do ferrador João Rodrigues Braga e do sapateiro Manoel José da Silva. Inventário. do ferreiro Manuel Rodrigues Rosa. perseguir a trajetória de 28 Foi irmão de mesa em 1755. “por um recibo de Ana Leocádia”. OS filhos do casal eram os seguintes: José (15 anos). dos alfaiates Francisco de Araújo Corrêa e João Gonçalves Santiago. 455). v. 1758. residindo na casa vizinha à da falecida Maria Gomes do Espírito Santo cita na rua do Rosário com 62 anos. 1772 e 1776. sem falar dos músicos Bernardo dos Santos e Francisco Gomes da Rocha. 30 Para uma apresentação completa dos resultados aferidos com a pesquisa proposográfica Cf. p. 1784. cujo tempo de execução pode ser observado no intervalo temporal entre o primeiro e o último recibo assinado. e tesoureiro nos anos de 1763. homem pardo. Quando do inventário dos seus bens. auto 1328. 1989. fls. José lhe devia. 1779. 64). 1783. contudo. declararam seus filhos herdeiros. Uma era sua morada e a outra foi dada ao alferes José Pereira Dessa como dote pelo casamento com sua filha Ana. 1956. 1767. 158-60)28 chegando a passar recibo a ele mesmo nos anos de 1779. 335 . arrematou a vasta obra de emadeiramento da capela. de 54 anos. no recenseamento de 1804. aparece. Ocupou a mesa administrativa da irmandade cinco vezes e foi tesoureiro outras nove (APNSP/CC. ingresso na irmandade em 1753 (RIBEIRO. treze mil e duzentos réis” (AHMI. assinando recibos de 1756 a 1785. o alferes José Pereira Dessa. mulher de Gonçalo da Silva Minas. 1782.30 Preferimos. os aluguéis mencionados referiam-se à morada de casas térreas cobertas de telha da rua Monjahi. Manuel. incluindo o racial”. porém expressivo. à moda do século XIX e inícios do XX. ou seja. 1999. Embora nossa amostragem seja pequena e a nossa abordagem realizada antes qualitativa que quantitativamente. a mestiçagem era um importante. como nos diz Vainfas. 11). alguns dos mais influentes irmãos de S. senão como social e ideologicamente construído [. “Mestres de obras”. Como demonstraram as trajetórias de Euzébio da Costa Ataíde e de Manuel Rodrigues Graça. além de ocuparem assentos na mesa administrativa quando do envio da missiva de 1758. no caso dos homens pardos confrades de S.. naturais das Minas”. crioula ou de nação africana.foram empreendidas pelos mesários e oficiais da associação. Durante longo tempo analisada como miscigenação ou mistura de raças.possivelmente o concubino e o proprietário da primeira. durante a segunda metade do século XVIII. com pai incógnito . José eram filhos de escrava forra. como a eles se referiam os documentos da irmandade. muitos indivíduos livres de cor eram filhos de homens brancos. alvos da análise aqui empreendida. estratégias individuais . José. sugerindo que. embora a maioria dos confrades da Irmandade de S. mas se ele “for tomado não como fundamentalmente biológico. na Vila Rica colonial. mestiçagem étnica e mescla cultural são problemáticas afins. mas deixam intacto o terreno da mestiçagem. tidos como nobres. de escravos especializados em ofícios mecânicos.e mesmo grupais (como no caso da carta de 1758) . Palavras finais Procuramos matizar a luta social empreendida pelos pardos para atingirem reconhecimento e aceitação na Vila Rica Setecentista. “no sentido o mais amplo possível. testamentos etc.] talvez seja possível superar os constrangimentos que a matéria tem causado no âmbito dos historiadores” (VAINFAS.).31 Em contrapartida ao quadro da Vila 31 Segundo Ronaldo Vainfas. José fosse pobre. abordagem que permitiu cotejar o perfil social dos pardos de Vila Rica expresso por eles mesmos com aquele vislumbrado através da consulta das demais fontes (inventários. esses dados apontam que. 336 .. O que é compreensível diante do constrangimento dos historiadores em operar o conceito de raça. os estudos recentes miram a mescla cultural.vida de dois homens que exerceram ofícios mecânicos e beneficiaramse com a arrematação de obras do projeto construtivo e de ornamentação da capela. descendentes dos conquistadores. gerenciaram obras e tiveram a si atrelados um número pequeno. apresentando-se como “legítimos vassalos. Concluímos que. p. São Paulo. BOXER. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. v. 1. Philippe. Relações raciais no império colonial português. que.91-109. livrando a prole dos augúrios da vida em cativeiro. a mobilidade ocorria de forma mais abrupta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. pesasse o fato de ter um pai branco e rico. Vocabulario portuguez e latino. In: ______. em Vila Rica. São Paulo. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil . Arquitetos.de Porto Feliz apresentado por Roberto Guedes (2005). 1956. A economia do ouro em Minas Gerais (século XVIII). ser casado in facie eclesia e ser membro do regimento militar dos pardos consistiam nos fatores. Peter L. Grupos étnicos e suas fronteiras. 1993. Teorias da etnicidade. Sheila de Castro. 1977. jul. Contexto. 1712. Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX. Rio de Janeiro: Record. 1998. p. A aquitetura religiosa Barroca no Brasil . 1998.º3. In: EISENBERG. Charles Ralph. Raphael. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. XVIII e XIX. ser membro de uma irmandade. 1989. STREIFF-FENART. In: POUTIGNAT. Fredrik.fortuna e família no cotidiano colonial. Campinas: Editora da Unicamp. 1993. BAZIN. perfaziam o melhor caminho ou a melhor estratégia para lograr distinção e reconhecimento. Dissertação (Mestrado em História) .A sociabilidade confrarial entre negros e mulatos no século XIX. p. quando agregados. 1967. Peter L. 255-314. São Paulo: EdUNESP. Wilson. n. Refêrencias AGUIAR. 337 . BARTH. FARIA. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu. Germain. BLUTEAU. D. artesãos e operários. que alforriasse a escrava concubina. Em resumo. CANO.FFLCH/USP. Talvez mais que a cor híbrida. A colônia em movimento . Marcos Magalhães de.séc. EISENBERG. Vila Rica dos Confrades . 1798 . A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piomonte do século XVII. p. Um Recenseamento na Capitania de Minas Gerais: Vila Rica – 1804. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. A trama das vontades. v. 1988.). Giovanni. passagem do XVIII para o XIX). São Paulo: Global. 2006. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados. 2. HOLLANDA. Negros. pardos e brancos na produção da hierarquia social. Pérolas negras: mulheres livres de cor no Distrito Diamantino.). 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AHMIARQUIVO HISTORICO DO MUSEU DA INCONFIDÊNCIA (Ouro Preto. Belo Horizonte: Imprensa Oficial. 1º ofício. 4. fls. AHMI (Ouro Preto. microfilme. vol. AHMI (Ouro Preto. as 1 Mestranda pelo Programa de pós-graduação em História Social e da Cultura pela Universidade Estadual Paulista – UNESP/Franca. [. century XIX. very important. As circunstâncias que.]. Abstract: In 1808. foram de enorme importância para o Brasil e. durante a estada do monarca lusitano. João VI. a começar pela imediata abertura dos portos às nações amigas. D. attempting. para o Rio de Janeiro.O RIO DE JANEIRO NO TEMPO DE D. Besides... João VI. Além disso.com. foram criadas escolas. Palavras-chave: Rio de Janeiro.. decisão que favoreceu o aumento das transações comerciais e um maior intercâmbio cultural. para certas dimensões da vida dos habitantes da capital fluminense. here. JOÃO VI RIO DE JANEIRO AT THE EPOCH OF D. important transformations. this article intends to elucidate some of the a lot of changes happened in the everyday of the capital of the Luso-Brazilian Empire. for certain dimensions of the inhabitants’ life. aqui. the political crisis that it forced the arrival of the Portuguese Cut to Rio de Janeiro. D. principalmente.br 341 . Bolsista CAPES. especially. desencadeou.. em princípios do século XIX. during the Portuguese monarch’s stay. teve início a circulação da imprensa nacional. Keywords: Rio de Janeiro. depois de 1808. atentando. she proceeded to the urbanization of the capital and. decision that it favored the increase of the commercial transactions and a larger cultural exchange. a crise política que forçou a vinda da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro. [. to begin for the immediate opening of the ports to the nations friends. Em meio às comemorações do bicentenário da vinda da Família Real para o Brasil. it unchained. museums and libraries were created. Amid the commemorations of the bicentennial of the arrival of the Royal family to Brazil. forçaram a Casa de Bragança a procurar refúgio no Novo Mundo. it had begin to the circulation of the national press.]. onde bacharelou e licenciou em História. muito importante. das muitas mudanças ocorridas no quotidiano da capital do Império luso-brasileiro. especialmente. século XIX. este artigo pretende elucidar algumas. É em 1808 que começa realmente a história do Brasil e do Rio de Janeiro. JOÃO VI Carollina Carvalho Ramos de Lima1 Resumo: Em 1808. E-mail: carolunespiana@yahoo. procedeu-se à urbanização da capital e. schools. museus e bibliotecas. importantes transformações. tão pouco propício que estava revelando às velhas casas reinantes” (LIMA. 1996. as dinastias de Toscana e Parma. os Braganças não podiam “[. esta proposta já circulava entre os áulicos do reino. D. e principalmente da capital.. quando parecia eminente a invasão espanhola depois da Restauração. os arquivos do governo e a Biblioteca Real e cerca de 15 mil pessoas.199) – o príncipe regente. embarcaram para a América portuguesa: 2 Oliveira Lima (1996.49).] pretender fatos mais clementes.. p. a mudança da corte para o Brasil não foi uma idéia “[. p. numa frota de 36 navios. Rodrigo de Souza Coutinho a sugestão de mudar-se com a família real para o Brasil. em novembro do mesmo ano. p. D. refugiado em Londres. fugindo de suas capitais ou então implorando a proteção francesa. No ano de 1803. 1996. errantes. o Stathouder. como uma “nobre” forma de resistir à tirania napoleônica. Pedro – marquês de Alorna – chegou também a cogitar essa alternativa. 2 decerto. No entanto. Naquele momento. quase rei da Holanda. Em meio ao tumulto – “um espetáculo ao mesmo tempo triste e grotesco” (MALERBA. o rei da Prússia foragido da sua capital ocupada pelos soldados franceses. e via seus reis serem destronados.. a transferência da família real era a melhor alternativa para se escapar das tropas napoleônicas que ameaçavam invadir Portugal.43). João VI recebeu de D.49).modificações que ocorreram no estado intelectual e material da antiga colônia.. p. o rei de Piemonte reduzido a mesquinha corte de Cagliari”. a notícia de que as tropas napoleônicas estavam em direção a Lisboa. entrava na Baía de Guanabara a frota que trazia a Corte portuguesa para se estabelecer na colônia. A Europa em 1807 assistia ao aumento do poder napoleônico sobre o continente. Johan Moritz Rugendas Em 8 de março de 1808. são da mais relevância. isso porque. por exemplo. nesta situação. Coutinho não era o único a aconselhar o monarca lusitano a deixar Portugal. fez com que os acontecimentos se precipitassem. sobre este momento escreveu: “O rei da Espanha mendigando em solo francês a proteção de Napoleão. E. Careciam de olhar friamente para o futuro.] adotada repentinamente como um recurso extremo e irrefletido” (LIMA. após projetar os dispêndios com uma possível guerra contra a França e perceber a fragilidade e a desorganização dos militares portugueses. 2000. no tempo do Marquês de Pombal. o rei das Duas Sicílias exilado da sua linda Nápoles. 342 . 1979. 1996. A este respeito. um empório do comércio mundial é. dependendo naturalmente a sua execução da atitude do governo imperial. uma vez que com a 343 . 1976. tentou-se embair a dinastia para obstar à sua deslocação para outro continente (LIMA. p. a comitiva real foi recebida com efusão e hospitalidade pela “boa gente fluminense”. passou a ter traços de civilidade e modernização. a transferência de Dom João VI para o Brasil reforçou as atribuições administrativas e comerciais da cidade carioca. A cidade fluminense. calcados nos exemplos europeus. p. costume. senão divulgada. (NORTON. panorama que foi intensificado depois da famosa abertura dos portos às nações amigas. assente em principio e até certo ponto preparada. p. MARTIUS. Apesar dos transtornos e desconfortos durante a travessia do Atlântico. na segunda metade do século XVIII. planejada. a Corte apresentou-se num estado de quase indigência por conta da longa viagem. p. p. 42). Não posso aqui reprimir essa observação. “língua. Havia longo tempo que a partida estava. que tanto só pouco antes da partida se transportou a família real de Mafra para Lisboa com parte do pessoal dependente da corte. O Rio de Janeiro após tornar-se a capital da colônia portuguesa. o Rio de Janeiro. O significativo contingente de estrangeiros em circulação na capital. por sua situação e condições naturais. em outras palavras. 31). No entanto. ao meu ver. foi porque eram sempre fulminantes as resoluções de Napoleão e. 2001.38) comentou: Se algum ponto do Novo Mundo merece. que até à última se procurava evitar ou pelo menos postergar. já apresentava rápido crescimento comercial e populacional (MARTINS. Recém chegada. 50). o viajante alemão Johann Pohl(1976. de cultura e organização citadina. um foco de civilização e cultura. no caso de Portugal. Se alguma precipitação houve na realização do projeto. insuflou novos padrões de convivência. audível e visivelmente. arquitetura e afluxo de produtos da indústria de todas as partes do mundo dão à praça do Rio de Janeiro aspecto europeu” (SPIX. Momento em que a cidade fluminense.Não há dúvida que o embarque foi apressado pela invasão. começou a adquirir feições europeizadas desencadeadas por um processo civilizador dos trópicos. 50). portanto. tornar-se um dia teatro de grandes acontecimentos. Fizeram parte das medidas joaninas: 3 Em 11 de março de 1808 iniciou-se a reorganização do Estado brasileiro. 2000. que no decorrer de três séculos impediram ou limitaram a transitoriedade de estrangeiros em solo brasileiro.presença da corte no Brasil. 141). mas também as portas para a entrada de estrangeiros (LISBOA. (MALERBA. Motivados por uma exuberante natureza – “guardada a sete chaves” até então – o Brasil passou a ser o destino preferencial de importantes missões científicas que. na estimativa do comerciante inglês John Luccock) novos moradores advindos com a mudança da Corte. p. em 1821. Tal era a novidade de estar nos trópicos que inúmeras espécies vegetais e animais foram transportadas para as Academias na Europa. Desembargo do Paço. 1997. A cidade fluminense teve sua dinâmica sensivelmente alterada após o desembarque do príncipe regente. com o incentivo da Coroa lusitana. da Guerra e Estrangeiros. Diante da condição de sede do governo metropolitano. as reformas que empreendeu buscaram implementar uma modernização parecida àquela que assistia a Europa. trouxeram viajantes naturalistas preocupados em realizar um inventário da fauna e da flora brasileira. era necessário criar condições para abrigar todos os (15 mil. A colônia assistia ao fim do exclusivismo português e a flexibilização das rigorosas restrições. então. como um vasto laboratório das ciências da terra. Já no primeiro ano de estadia no Brasil. atraídos pelo comércio. foram sendo recriados todos os Órgãos do Estado português: os Ministérios do Reino. mudou o nome para Ministério da Fazenda. A partir de então. 70). D. Também foram recriados os órgãos da administração e da justiça: Conselho de Estado. não só os portos se abriram para as “nações amigas”. João VI organizou um Ministério3. p. que. 29). O Brasil se configurava. Conselho Supremo Militar. João VI um ponto de encontro de estrangeiros distintos” (LIMA. com a nomeação dos ministros. pelos serviços no paço e pelos segredos naturais. num momento marcado pelo redescobrimento por meio da História Natural. da Marinha e Ultramar. “O Rio de Janeiro em particular tornou-se durante o reinado de D. a cidade carioca passou por uma importante reestruturação político-administrativa. 1996. além dos inúmeros estrangeiros que migraram depois da abertura dos portos. Assim. p. além disso. dando início à construção do aparato burocrático que lhe era necessário. Mesa da Conciliação e Ordens. 344 . . A iluminação noturna da cidade satisfaz a tudo o que se refere à mesma. especialmente solicitada pelo monarca em 1816 (LISBOA. 16). A Biblioteca Nacional e o Jardim Botânico também datam desse período. Neste processo de construção citadina faltou um plano organizativo de expansão da urbe.. 1976. características que foram apontadas pela maioria dos relatos estrangeiros desse período: As ruas. Na análise de Carlos Lessa (2002.As inovações urbanas. de forma que o resultado final foi uma cidade com ruas e quarteirões irregulares e sinuosos. 1966. [uma vez que] por toda parte torna-se necessário fazer saltar os rochedos para a abertura das novas ruas e dos cais para dar maior regularidade às que já existem” (RUGENDAS. O príncipe regente difundiu o gosto pela música erudita. o qual ao mesmo tempo combinou-se com a maior exposição à diplomacia e ao comércio com ingleses e franceses. a criação de colégios e a publicação de livros e periódicos. João VI para o Rio intensificou a circulação mercantil e reforçou a prosperidade da vida urbana na cidade. O 345 . 1997. estimulou as produções teatrais. como já ficou dito. Alojar a Corte despertou um componente de orgulho nos ex-coloniais. está instalado de maneira muito funcional (LEITHOLD. na maioria estreita.]. p. A fundação da Imprensa Régia [que] resultou na circulação de jornais e livros brasileiros. a convivência entre brasileiros e europeus levou os colonos a adotarem novos hábitos citadinos e elevou os bons modos de educação do povo carioca. arquitetônicas e institucionais [. 37-38): A Corte forneceu o padrão comportamental inspirador. As sarjetas correm pelo meio. p. De fato. além da Escola Real de Belas Artes. No entanto. [. ampliando o espectro de referências para as microelites. 12 -13). D. João VI e seus ministros trabalharam com grande afinco no embelezamento da cidade e na criação de uma infra-estrutura que atendesse as novas demandas trazidas com a Corte.]. p. podemos imaginar a precariedade da cidade nos primeiros anos do reinado joanino. como em Paris.. p. instalada graças à inédita assessoria de profissionais da Missão Francesa. são às vezes bem pavimentadas e supridas de calçadas. 29).. A vinda da Corte de D. Se considerarmos a escassez de recursos públicos direcionados para a criação de infra-estrutura na sede fluminense. o empenho do príncipe regente esbarrou em “grandes dificuldades. cães. A arquitetura do centro do Rio de Janeiro era composta de casas térreas e sobrados. Para os viajantes. p. não era uma virtude dos brasileiros (CALDCLEUGH. E ainda. Sendo assim. No conjunto.R (príncipe regente). deixava muito a desejar.. editais para o despejo sumário.101). 20. portanto. no qual prevalecia o aspecto de insalubridade. p. 1978. onde moravam. grifo nosso).110). “[. para que esta se tornasse o palácio sede do governo.82). construções que possuíam a parte da frente estreita e o fundo espaçoso. sobretudo os comerciantes e os artistas mecânicos” (SILVA. esta estrutura de casa aliada a assimetria das ruas tornava a via pública um espaço limitado. p. “Esse tipo de construção explica-se pelo elevado custo dos terrenos no centro da cidade. p. sombrio e pouco arejado. Nesse aspecto o espaço público da cidade carioca se assemelhava a Lisboa: 4 Era considerada uma casa nobre aquela que possuísse maior número de janelas na fachada e algumas regalias entendidas como fundamentais ao estilo de vida da nobreza (SILVA. gatos e mesmos outros animais mortos” (RUGENDAS.. MAWE. p.507). 1940. os habitantes do Rio haviam adotado um gênero de vida moroso para viverem sob o calor tropical.contingente de novos moradores exigia que a cidade se expandisse para os seus arredores. 1979. com poucas janelas na fachada e nenhuma lateral4. Para receber a Corte. 1976.20-21. 167. 2001. nos lugares mais freqüentados. 1986. p. o vice-rei Marcos de Noronha e Brito. 346 . 44). a urbe carioca. 1978. e este modo de vida parecia ter abdicado dos princípios básicos de asseio pessoal e do lugar onde habitavam. foi solicitado aos proprietários das melhores casas que as desocupassem. LUCOCCK. p. nesses prédios. às vezes durante dias inteiros. O Conde Arcos: Logo intimou os proprietários e inquilinos que ocupavam as melhores casas a largar mão delas aos fidalgos e demais senhores da comitiva real ordenando que fixassem. p. Conde de Arcos. 1825. que por ironia popular imediatamente converteu essa expressão mais claramente imperativa: Ponha-se na Rua! (NORTON. nos primeiros anos oitocentistas. A higiene. para alojar o restante da comitiva real. contendo as inicias P.] a ponto de se verem. ocupou-se de remodelar sua residência. uma vez que as casas estavam coladas umas nas outras. ocorre que em meio ao cenário natural avançava a expansão urbana (SCHULTZ. LEITHOLD. A instituição policial no Brasil tornou-se peça fundamental para o controle e ordenação da sociedade ao longo de todo o século XIX. 149). as moradias abastadas começaram a adquirir o gosto sofisticado que caracterizava então as casas européias (SILVA. 15). A imprensa é um veículo no qual podemos encontrar vestígios deste “comércio de luxo”. à cidade um aspecto mais salubre que valorizava seus atributos naturais. p. sobretudo. Esse requinte europeu também se fez presente no interior das casas. Com freqüência os jornais traziam ofertas de objetos de adorno . 1986. 512). lentamente. Era de responsabilidade da polícia o governo e a administração interna. 1979. Um dos destinos preferenciais de estrangeiros.. espelhos. p. Para fugir do centro populoso e suas moradias. o que nos fica claro é: Que à medida que a sociabilidade brasileira ia deixando de se circunscrever aos parentes e amigos íntimos e que a vida social se ampliava com a convivência com o estrangeiro. Estes eram atraídos à região. p. p.“[. aliada ao fortalecimento dos órgãos policiais. não nos permitem conhecer claramente os grupos que efetivamente os adquiria.131).. a melhoria do espaço público. atraiu os moradores para as ruas: em passeios. a partir de 1816 que as modas européias começam a se impor no Rio de Janeiro em matéria de mobiliário e decoração” (SILVA. 1976. nobres e altos funcionários da Corte era a praia de Botafogo. vasos.] um território caracterizado pelo acúmulo de imundícies. os vice-reis e ouvidores gerais eram os responsáveis 347 . Os documentos da época permitem concluir que o comércio mobiliário foi dominado pelos estrangeiros. porque o lugar possuía uma arquitetura aprazível e elegante.90.biombos. (DEBRET. Até então no Brasil. No entanto. conseqüência do ordenamento harmonioso de uma série de construções novas e de bom gosto. Além disso. RUGENDAS. p.13. p. “É. As reformas urbanísticas implementadas no Rio de Janeiro ofereceram. principalmente os franceses e os ingleses (MALERBA. eram vendidos por estrangeiros. caixas e utensílios de cozinha – que. 2000. 2000. 1966. todavia. p. 1972.51). em geral. os homens abonados procuravam se estabelecer nos arredores da cidade. dotadas de certo requinte europeu em consonância com as belezas naturais circundantes. festejos e cerimônias da Corte. águas pútridas estagnadas a exalar fortes miasmas” (MALERBA. pelas funções policiais, sendo que não se dispunha de efetivo de profissionais eficientes. Preocupado com a manutenção da ordem e a da segurança dos novos moradores do Rio de Janeiro, D. João, em decreto de 1808, organizou a polícia brasileira aos moldes da de Lisboa, criando o cargo de Intendente Geral da Polícia. Paulo Fernandes Viana - ouvidor e desembargador da corte - foi o designado para este cargo, posto que ocupou por cerca de doze anos. Possuindo jurisdição ampla e ilimitada, o intendente geral atuava como uma espécie de ministro da segurança pública, controlando todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive os ouvidores gerais, os alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estrada e assaltos (NORTON, 1978, p.34; SCHULTZ, 2001, p.98). O alvo preferencial do efetivo policial eram as tavernas, lugares onde se podia vender bebidas alcoólicas legalmente, e, por isso, nos quais se supunha a presença de arruaceiros inclinados a arranjarem confusões e brigas. Era igualmente da alçada da polícia ações envolvendo escravos (fugas, revoltas, alforrias e a prática da capoeira), bem como o controle da circulação negra pela cidade, a mendicância e os movimentos políticos; ou seja, praticamente tudo que envolvesse a ordenação e o funcionamento da sociedade carioca oitocentista, incluindo, até mesmo, o combate ao desleixo dos cidadãos quanto à higiene dos espaços públicos. A Intendência agiu, nesse período, como uma “polícia de costumes” (FRANÇA, 1999, p.53). Iluminar a cidade também era uma forma de manter a ordem citadina, o que melhorou seus aspectos estéticos e criou lugares de convivência. Até então levava-se uma vida monótona, poucas eram as opções de lazer e quase não haviam reuniões sociais. A vida social na capital fluminense restringia-se as festividades religiosas, aparições da Família Real, apresentações de concertos musicais e peças teatrais, além das raras reuniões (jantares) na casa da fidalguia portuguesa. Aqueles que queriam se divertir o faziam por iniciativa própria. Nas palavras do viajante Leithold (1966, p.72): [...] para se sentir feliz no Rio de Janeiro e suas vizinhanças, pois não há vida mundana ou reuniões sociais, excluindo o teatro; fica-se como isolado e morto para o resto do mundo, a perder o melhor de seu tempo, transpirando incessantemente, como num banho turco, à cata de uma brisa ou a combater os insetos, até com bofetadas, para ter 348 paz. E em compensação de tantos sacrifícios, apenas a bela natureza, os rochedos selvagens que acabam por nos deixar indiferentes, nas condições lamentáveis em que se vive, como entre nós as dunas e os monturos. No Rio de Janeiro joanino, mesmo os lugares destinados à sociabilidade, como praças, chafarizes e praias, não eram visitados com freqüência: Não é o português muito amigo de passear. A praia de Botafogo serve de corso; ali se passeia de carro. O Passeio Público é pouco visitado. Alias, não é muito grande e, com a sua ornamentação de mangueiras apresenta um aspecto monótono (POHL, 1976, p.41). Diante disso, todo acontecimento na capital era um pretexto para se fazer festa e iluminar a cidade - foi assim na Aclamação do rei; na chegada de D. Leopoldina (arquiduquesa austríaca que aportou no Rio para se casar com D. Pedro); nas inaugurações de monumentos e dos espaços públicos. Ao analisar a sociedade e suas diversões, Maria Beatriz Nizza da Silva (1978, p. 57) salienta que “[...] não se pode encarar a noção de festejo público apenas como uma forma de mistificação política ou social. O povo aprende a respeitar o soberano, mas ao mesmo tempo diverte-se”. As procissões e cultos religiosos, que aconteciam regularmente, eram a ocasião e um bom pretexto para as elegâncias femininas e as pompas das irmandades. Os cortejos contavam com a participação dos membros da Corte, dos soldados, das congregações e irmandades, dos músicos e cantores da Real Capela, dos eclesiásticos e leigos, estes últimos que carregavam bordões e estandartes. Faziam parte das procissões “[...] as noitadas já tradicionais e um tanto abandonadas do passeio Público e as representações no teatro, as grandes para não dizer únicas distrações fluminenses no tempo d’el-rei D João VI” (LIMA,1996, p. 596). Outras festas populares animaram as ruas da sede carioca, como, por exemplo, os arraiais portugueses, com foguetes ruidosos que causavam um alvoroço entre os foliões, e os animados leilões e bazares, geralmente em favor de alguma causa religiosa. Tais préstitos, envolvendo danças e músicas congregavam gentes de todas as partes, desde os mais paupérrimos até os áulicos do reino. Enquanto alguns desfilavam, outros ficavam na janela de suas casas esperando o cortejo passar. A procissão 349 da corte, portanto, “[...] possuía todos os atrativos visuais e sonoros suscetíveis de agradar à multidão” (SILVA, 1978, p. 58). As damas esperavam ansiosamente por estes acontecimentos. Eram, pois, nestas ocasiões, que elas poderiam desfilar seus novos “modelitos”, importados, em geral, da França e da Inglaterra, bem como ostentar jóias e outros acessórios. Sem contar que para as solteiras poderia aquele ser o momento do início de um namorico. Cabe lembrar que as mulheres, tidas como rainhas do lar, pouco eram vistas circulando pelas ruas, cabendo a elas a supervisão dos afazeres domésticos e da educação dos filhos. Os viajantes ressaltaram em suas narrativas esta imagem das mulheres brancas enclausuradas em casa; “viviam a maior parte do tempo nos aposentos” (LEITHOLD, 1976, p.27; POHL, 1976, p.45; ROBERTSON, 1820, p.67). As mulheres no cumprimento dos deveres com a fé podiam ser vistas nas missas, fora isso as únicas ocasiões que se admitia a presença feminina, com a condição de estarem devidamente acompanhadas dos maridos, eram as cerimônias da Corte, bem como nos espetáculos de teatro ou música. Rose de Freycinet (2007, p.32) observou que: As mulheres, proibidas de ir a espetáculos, cuidam de substituí-los por essas festas religiosas, às quais comparecem sempre muito enfeitadas e decotadas, como se estivessem em um baile, tratando mais de se divertirem do que de rezar a Deus. Vi algumas muito bonitas: são realmente umas morenas atraentes. Há de se destacar também que nesses dias de festas as ruas do Rio de Janeiro eram tomadas por negros, ciganos, estrangeiros e palacianos (LEITHOLD, 1966, p.27). Entre “os nacionais da melhor classe a vista era interessante pela variedade de modas, espelho de variedade de opiniões, trajando uns à antiga [...] outros à inglesa” (LIMA, 1996, p. 599). Apesar das poucas distrações que a cidade oferecia, o que se pode observar é que o período joanino trouxe mais pessoas para as ruas e mais opções de lazer, tornando estas situações não apenas momentos de diversão e descontração, mas também uma vitrine onde se poderia ver os tipos sociais e seus trejeitos. A partir de D. João VI o que se vê circular nas ruas cariocas são os modelos europeus de vestir; mesmo entre as classes menos favorecidas reinava uma profusão de adornos e adereços (BRACKENRIGE, 1819, p.18; HENDERSON, 1821, p.53; 350 RUGENDAS, 1976, p.81). E apesar do clima tropical, a moda importada do Velho Mundo foi sendo incorporada ao vestuário brasileiro, resultando em algo exótico, tanto para os europeus quanto para os colonos, não havendo, portanto, um traje tipicamente nacional. Nas palavras de Pohl (1976, p. 44), “veste-se no Rio à moda francesa e inglesa, havendo bastante luxo, que, às vezes, se mostra de maneira inteiramente exótica”. Apesar do calor e mesmo com tempo bom, a gente do povo, brasileiros e mulatos, usa uns casacos pesados e felpudos. O mesmo fazem as mulheres, que ainda se cobrem de véus pretos. Doutro modo, vestem-se elas, brasileiras e portuguesas, de sedas e tafetás, enquanto as negras e mulatas usam tecidos grosseiros de lã em cor preta. Mesmo num clima tão quente, muitas famílias tomam chá e ainda comem as onze da noite (LEITHOLD, 1966, p. 28). Malgrado o clima tropical, a moda importada, sobretudo da Europa, foi sendo incorporada ao vestuário brasileiro. Para Jurandir Malerba (2000, p.167) isto reflete a organização social vigente na época, uma vez que “[...] numa sociedade estamental, onde se identifica o individuo pelos signos que ostenta no seu corpo-manequim, não foi pequeno o impacto das vitrines que se abriram na rua do Ouvidor”. Sendo assim, a sociedade do primeiro quartel do século XIX prezava pela ostentação do luxo, que também se manifestava, com já apontamos, nos mobiliários das casas. A entrada de tantos artigos importados no Brasil deve-se ao fortalecimento das relações comerciais, entre a ainda colônia portuguesa e as nações européias, e, em grande medida, ao porto carioca, considerado por muitos o mais bem situado do mundo (DEBRET, 1972, p.91): Ele goza, mais do que qualquer outro, das facilidades de intercâmbio com a Europa, América, África e Índias Orientais e as Ilhas dos mares do Sul, e parece ter sido criado pela natureza para se constituir o grande elo de união entre o comércio dessas grandes regiões do Globo. (MAWE, 1812, p.107). No Rio de Janeiro, principal empório do Brasil: [...] é natural que o viajante note por toda parte atividade e burburinho de negócios. Particularmente o porto, a Bolsa, os mercados e as ruas mais próximas do mar, na maioria providas de depósitos para as mercadorias da Europa, estão 351 cheios de negociantes, marinheiros e negros. Os diferentes idiomas da multidão dessa gente, de todas as cores e vestuários se cruzam; o vozerio é interrompido e sempre repetido, com que os negros levam de um lado para outro as cargas sobre varas, o chiado de um tosco carro de bois de duas rodas, em que as mercadorias são conduzidas pela cidade, os freqüentes tiros de canhão dos castelos e dos navios de todos os países do mundo, que entram, e o estrondo de foguetes com que os habitantes quase diariamente e já de manhã cedo festejam os dias santos – confundem-se num estardalhaço ensurdecedor (SPIX; MARTIUS, 1976, p. 44-45). No que tange a instrução pública podemos caracterizá-la como deficiente e quase inexistente (LIMA, 1996, p.18). O melhor que se tinha no Rio de Janeiro eram dois seminários que estavam a serviço da Igreja e do Estado, eram eles: São José e São Joaquim, fundados em 1739 e unificados em 1817. Porém, a transladação da Corte rasgou novos horizontes ao ensino através do esforço conjunto do príncipe regente e seus ministros. Sobre este esforço, o comerciante inglês John Luccock (1976, p.107) fez o seguinte comentário: “Desde a chegada de D. João VI ao Rio, o governo português fez várias tentativas louváveis para introduzir no Brasil, além das instituições civis, os estabelecimentos de instrução pública da Metrópole”. Não se pode dizer que as medidas tomadas por D. João VI surtiram efeito de uma mudança radical dos parcos estabelecimentos que se dispunham às vésperas de sua chegada, mas inaugurou ações que ganharam força ao longo de todo o Império. Seus empreendimentos “civilizatórios”, a rigor, tinham como objetivo suprir, num primeiro momento, as demandas de crescimento do setor comercial, além das necessidades cotidianas de sua corte. A presença do monarca e a conjunta assistência das autoridades supremas do Estado na sua influência ordeira e metódica no país novo foram efetivamente apoiadas pelo grande número de estrangeiros que mais cedo ou mais tarde acompanharam a corte ao Rio de Janeiro. Maquinistas e construtores navais ingleses, operários em ferro, suecos, engenheiros alemães, artistas e fabricantes franceses foram convidados pelo governo para desenvolverem a indústria nacional e os conhecimentos úteis. Essas tentativas do governo, para desde logo implantar no novo solo as atividades e experiências européias são tão mais dignas de louvor, quanto maiores foram as dificuldades a enfrentar no principio (SPIX; MARTIUS, 1976, p. 46-47). 352 A nova demanda de moradores incitou a preocupação com os serviços de saúde, fomentando a abertura de aulas de cirurgia, com duração de cinco anos, no intuito de formarem cirurgiões práticos que substituíssem o trabalho dos curandeiros. Até então, as operações cirúrgicas tidas como fácies eram executadas por barbeiros sangradores, já para aquelas consideradas mais complexas eram atribuídas aos “homens presunçosos” que, no fundo, pouco entendiam de anatomia (FRANÇA, 1999, p.76-77). Apesar da insuficiente formação destes “aspirantes a médicos”, tais “profissionais da saúde” eram submetidos a uma prova para ocuparem estes cargos. A verdade é que sem dispor de infra-estrutura “[...] a medicina e a cirurgia mereceram logo depois da corte se fixar, a atenção dos governantes” (NORTON, 1979, p. 102). Por vezes, a precariedade nos atendimentos médicos colocou os viajantes estrangeiros que visitavam o país, em situações curiosas, era comum que ao chegarem e uma determinada vila, pessoas os abordassem rogando-lhes auxílio médico e prescrição de remédios. (LIMA, 1996, p. 160; NORTON, 1979, p.103). Entre as medidas tomadas por D.João VI para a melhoria da saúde, a Carta Régia de 1810 previa que três hábeis e aplicados estudantes do curso de medicina do hospital do Rio fossem aperfeiçoar seus estudos em Edimburgo e Londres, para que ao retornarem passassem o conhecimento adquirido para os outros alunos, contribuindo, assim, para o desenvolvimento das ciências médicas no país: Quer o médico, quer o cirurgião, além de dominarem o sistema classificatório das moléstias internas e das cirurgias, precisavam conhecer na perfeição a “arte de formular”, ou seja, a arte de prescrever remédios necessários para a cura das enfermidades (SILVA, 1978, p. 133). O governo atentou também para outras áreas deficitárias. No âmbito do ensino militar, o projeto de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares, era estabelecer no Rio de Janeiro uma Academia de Guardas-Marinhas. Para o cumprimento desta tarefa, o ministro conseguiu espaço no hospício do mosteiro de São Bento, onde organizou todos os instrumentos, livros, modelos, máquinas, cartas e planos que trouxe de Portugal. Em 1809, para uso da academia, foi criado um observatório astronômico , em seguida, fundou-se a Academia Militar, “[...] agregando-se deste modo por completo ao 353 cultivo das ciências exatas o ensino dos profissionais, a técnica da guerra e arte da defesa” (LIMA, 1996, p. 162). O militarismo no tempo de D. João VI era tido como uma arte, “[...] arte que ocupava então o lugar de relevo, [...], que exigia o conhecimento prévio de várias ciências” (SILVA, 1978, p.157). Com o intuito de oferecer este leque variado de saberes, o governo imperial em 1810 estabeleceu um curso de “ciências exatas e observação”, que incluía disciplinas consideradas fundamentais no estudo teórico e prático da ciência militar5. Em síntese, “o conhecimento científico necessário à ciência militar apresentava duas facetas complementares; uma parte teórica e uma parte prática, igualmente acentuada nos estatutos da Academia Militar” (SILVA, 1978, p. 161). Posteriormente, a Academia de GuardasMarinhas e a Academia Militar deram origem a Escola Politécnica. Outro evento importante foi estabelecimento da Impressão Régia em 1808. Não se passaram nem dois meses do desembarque da Coroa no Rio de Janeiro e D. João VI emitiu uma carta régia que autorizava a impressão no Brasil. Antes deste decreto, qualquer escrito que surgisse na colônia deveria ser publicado na Europa ou permanecer na forma de manuscrito - restrição que pode em parte ser atribuída ao conservadorismo da administração do marquês de Pombal (17501777), para quem a impressão na colônia significava fonte de poder e influência dos jesuítas. Durante a estada do monarca português nos trópicos (1808-1821) as prensas estavam sob o monopólio do governo; o órgão real detinha a exclusividade de tudo que se publicava na Corte.6 Pouco tempo depois do aparecimento da imprensa oficial, foi fundada a Gazeta do Rio de Janeiro, veículo que dava conta dos atos do governo e da vida da Família Real (NORTON, 1979, p. 104). Com o fim do monopólio real, decretado em 2 de março de 1821, instalaramse na cidade as primeiras oficinas tipográficas particulares - às vésperas da Independência, eram cerca de sete (RIZZINI, 1988, p.322). 5 Compreende-se por ciência exata as ciências matemáticas; no que tange as ciências de observação, fazem parte disciplinas como a física, química, mineralogia, metalurgia e a história natural; e por fim, fazem parte da ciência militar a tática e a fortificação (SILVA, 1978, p. 1157-163). 6 O primeiro concorrente da Imprensa Régia estava localizado em Salvador, Manuel Antônio da Silva Serva, antigo comerciante de Lisboa, foi quem instalou em 1811 sua tipografia na cidade baiana. Como os preços cobrados pela Imprensa Régia eram demasiadamente altos, era fácil para ele conseguir encomendas na capital. 354 O incentivo à leitura.. Marquês de Marinalva. Neste sentido. Dentre alguns nomes que integraram a conhecida Missão Francesa estão: Jean-Baptiste Debret. João..] a entrada na Biblioteca é facultada ao público durante grande parte do dia. ambos procuraram implementar um plano de ensino científico. em 13 de maio de 1811. Incentivando o cultivo das letras. Porém. pintor de paisagens e batalhas.. MARTIUS. Sobre seu funcionamento: “[. que o rei trouxe consigo de Portugal. João VI e de seus ministros. alguns dos quais procuraram promover imediatamente a emancipação intelectual do novo Estado. artísticas e comerciais. aqui é tão pouco sentida a necessidade das ocupações científicas que as salas permanecem. foi uma preocupação constante de D. Rodrigo de Souza Coutinho (1080-1812) e seu sucessor Antonio de Araújo de Azevedo. Há de se destacar que Coutinho foi “[. Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny. literário e artístico no Brasil. O que se percebe. Em 1816. Inicialmente o acervo contava com cerca de setenta mil volumes. influente nas mais importantes agências da coroa portuguesa no país” (MALERBA. o príncipe regente visava introduzir na colônia a modernização que a Europa vivia naquele momento. em 1816.. 47-48). 95) ao entendermos que “[. 255).] arquitetou-se toda uma construção européia de vida civilizada no continente americano”. o embaixador de Portugal em Paris. Nicolas-Antoine Taunay. à cultura e às ciências foram também estimulados pela criação do Jardim Botânico em 1810. conde da Barca (1814-1817). vazias” (SPIX. por assim dizer. é que colocar o Brasil nos trilhos do progresso científico. endossado pelo Conde da Barca.. foram eles: D. portanto. p. das expedições cientificas.] incontestavelmente um dos maiores estadistas do período. Charles 355 . p. Artes e Ofícios (depois Academia de Belas Artes). secretário destituído do Institut de France. Para tanto.. a corte portuguesa trouxe para o Brasil homens de superior sensibilidade e cultura. da erudição e do gosto pelas artes. Dois ministros foram fundamentais neste processo de emancipação intelectual brasileira. entretanto. p. que na ocasião era Ministro dos Assuntos Estrangeiros de D. convidou um grupo de artistas franceses para virem até o Brasil sob a liderança de Joachim Lebreton. 1976. 2000.A primeira Biblioteca Pública do país (atual Biblioteca Nacional) foi fundada no Rio de Janeiro. pintor de história. e da Escola Real de Ciências. concordamos com Luís Norton (1979. ] the crown then moved to consolidate Rio de Janeiro’s cosmopolitan legance and ‘growing splendor’ by recruting and subsiding a number of the artists from France.125). o Brasil ficava à frente do país lusitano. Para mais. 2001. progress and order inspired by French neoclassicism 7 (SCHULTZ. não chegou a funcionar. sendo que. escultura e medalha. carpinteiros. p. Era o início da Academia Imperial de Belas Artes. Para as comemorações da chegada de D. João VI. o que em termos políticos interessava ao monarca.. Aqueles que por aqui passaram no tempo de D.. Nicolas Magliori Enout. escultores. Com chegada desta missão à América portuguesa: [. Louis Jean Roy e seu filho Hypolite. aquele que pelo seu aspecto material e moral apresentava as maiores garantias de um rico porvir – 7 Por ocasião da aclamação de D. inserindo o país no mundo desenvolvido. François Ovide. Charles Simon Pradier. Na concepção dos áulicos o ensino das artes seria fundamental para o progresso do reino brasileiro. é que inicia os trabalhos. um templo grego e um Obelisco egípcio. Grandjean de Montigny. Artes e Ofícios. p. arquitetos.. o príncipe regente assinou o Decreto de criação de uma Escola Real das Ciências. com aulas de desenho. serralheiro. pintura. tido sob muitos aspectos. em 12 de outubro de 1820. 356 . quatro anos mais tarde. como um dos lugares mais interessantes do Novo Mundo. mecânico. mas infelizmente a escola continuava sem funcionar. João se encontrava em terras brasileiras. gravador.] During the brazilian reing of D. Favorável aos projetos dos viajantes franceses. uma vez que em 1815 elevou o Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal. Jean Baptiste Leve. sobretudo para o Rio de Janeiro. João VI these artists provided the crown with the creation a vision of civilization. Artes e Ofícios8. e como Portugal não tinha ainda este padrão de ensino. a Escola Real de Ciências. Pelite e Fabre.João VI acreditaram num porvir próspero para o Brasil. D. Pintura. 104). em 12 de agosto de 1816. A implantação dessa academia representava um avanço cultural significativo. mantendo a sede imperial na América (SCHULTZ. recebe nova denominação — Real Academia de Desenho.Lavasseur e Louis Ueier. Talvez. [. Leopoldina criou outro Arco do triunfo. August Marie Taunay e François Bonrepos. Somente em 23 de novembro de 1820. 2001.. construiu um Arco do Triunfo romano. 8 Apesar de criada em 12 de agosto de 1816. ferreiro. Escultura e Arquitetura Civil. com a criação de uma escola de ensino artístico com o nome de Academia de Belas Artes. curtidores. triunfada em Portugal do absolutismo inglês da regência de Beresford. deixaram o Brasil. deflagrada com a presença da Corte lusitana nos trópicos. Ao partir. 136). É desta forma que. a independência do Brasil. em pouco mais de um ano depois da partida de seu pai. Corte essa. D. 357 . o objetivo era o de manter a união entre os reinos. em 1822. tida como retrograda. que se viu obrigada a voltar para Portugal em decorrência do movimento liberal iniciado no Porto. em 1820. vestido de rei constitucional”. os brasileiros não poderiam aceitar tal imposição. com intuito de adquirir qualidades intelectuais e físicas necessárias para gozar os dotes de uma natureza tão pródiga: Certamente não exagero quando te digo que cá não se conhece. João VI. levando o próprio Regente a proclamar.um belo porto da terra que. entre os anos de 1808 e 1821. com raras exceções. assumia o governo brasileiro. Sendo assim. Pedro. capaz de implementar as bases da modernidade e que abdicasse da educação tradicional. o que desencadeou um descontentamento e acelerou o processo de independência do país. impôs o regresso de D. como se a religião se tivesse refugiado dentro deles (LEITHOLD. João e sua Corte. 1966. perspicaz. o que seja arte ou ciência nem mesmo gosto pelas matérias. na visão oitocentista. Nas palavras de Norton. porém. Todavia. p. 116): “A revolução liberal de 1820. em 26 de abril de 1821. Embrutecidos pelo calor e por certos hábitos adquiridos na educação. já que depois das inúmeras transformações e progressos ocorridos no Brasil. cedendo então as pressões que vinham dos revolucionários vintistas. como se tentou demonstrar neste artigo. o Rio de Janeiro certamente viveu uma revolução cultural. estava situado num país que produzia tudo o que exigiam as necessidades físicas do homem. bem como tudo o que o Estado poderia precisar da natureza para a sua propriedade. D. (1979. p. a apreciada generosidade da mãe natureza carecia de um povo sábio. RANGO. quase não se sentem o estimulo de fazer algo mais do que se deixar enfeitiçar ou embair pela hipocrisia de estranhos. seu filho. união esta que foi ameaçada depois das tentativas do governo constitucional de Lisboa de fazer o Reino reverter o Brasil à condição de colônia. CALDCLEUGH. 15311800. 2. Baltimore. Viagem pitoresca e histórica do Brasil. Lisboa: Francisco Xavier de Sousa. perfomed by order f the governmente in the years 1817 and 1818. BERGER. Victor Athanase. José Olimpio. Belo Horizonte: Itatiaia. Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oitocentista. 2007. Henry Marie. Produção de uma cidade: a transformação do Rio de Janeiro em metrópole. Lisboa: Casa da Moeda/Imprensa Nacional. Jacques Etienne Vitor. av chili. Rio de Janeiro: EdUERJ. Danielle M. 1531-1900. 2000. London : John Murray. par mer et par terre. Jean Baptiste. DEBRET. ______. São Paulo. E. Dissertação (Mestrado) – USP. exact et sincere. Paulo. D’um a outro pólo. Mulheres viajantes no Brasil (1773-1820). 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Lilia Schwarcz. Lilia Moritz. até hoje. suscitam polêmica. E-mail: dionisio@unb. O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. mas também quase um continente misterioso. até então. um “país da flora exuberante e da enorme fauna. a existência de um grupo articulado de artistas oriundos da França. São Paulo: Companhia das Letras. nos primeiros quatro capítulos do livro. caracterizado por gentes de hábitos estranhos” (SCHWARCZ. a autora lembra de como o imaginário francês estava habituado a “pensar” o Brasil por meio de uma série de relatos de viajantes que descreviam. Mestre em História da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas ( UNICAMP ). p. Schwarcz apresenta. João. Doutorando do Programa de Pós-Graduação de História da Universidade de Brasília. questões importantes que. um panorama do ambiente cultural. tempo suficiente para instituir. grupo conhecido pelo nome de “missão francesa”. como. ao mesmo tempo em que nos oferece novas respostas sobre a passagem do francês por terras brasileiras. João. sobre a história da arte brasileira. 2008.br 1 363 . por exemplo. que teria vindo ao Brasil por meio de um convite do príncipe regente D. político e artístico que influenciou a formação da carreira de Taunay antes de sua chegada ao Brasil. 2008. Em O Sol do Brasil. com o apoio do CNPq.O LEGADO ARTÍSTICO DE NICOLASANTOINE TAUNAY E A POLÊMICA “MISSÃO FRANCESA” THE ARTISTIC LEGACY OF NICOLASANTOINE TAUNAY AND THE CONTROVERSIAL “FRENCH MISSION” Emerson Dionísio Gomes de Oliveira1 SCHWARCZ. abre outras questões que interferem em proposições há muito debatidas pela historiografia brasileira. Antes de entrar nas questões próprias da existência ou não da “missão”. Para tanto.13). ainda. Os artistas. a Academia (Instituto) e Jacques-Louis David. O salão manteve-se quase que inalterado mesmo com as mudanças políticas que marcaram o período revolucionário francês. Como baluarte dessa arte. cronistas e cientistas que aqui chegaram nesse período tinham como base a visão da América Espanhola ofertada por Humboldt. já no final do século XVIII. Além deles. inspirado por teses como a de Buffon. austera. de 1749. acreditava na “imaturidade” do continente americano. Oposto ao aristocrático rococó. O desconhecimento era. Schwarcz abre uma narrativa que terá três componentes fundamentais: o neoclassicismo. que representou. graças à proibição de acesso às terras brasileiras. um instrumento surge como crucial: o salão. Uma arte econômica. o neoclassicismo foi o modelo estético e estilístico adaptado à nova realidade política. mas pouco conheciam sobre a “exótica” terra dos portugueses que. Evento quase cênico. um pintor que “encarnou” o modelo neoclássico como poucas vezes na história recente da arte ocidental algum artista tivera feito diante de um programa estético. pronta para oferecer ao público uma pedagogia da civilidade inspirada na república romana – que derrubara seus reis – e na Grécia. em 1815. acolhia em seu solo uma família real européia. ainda estavam sob a influência dessa literatura. apto aos investimentos da madura civilização européia. a afirmação da Academia e sua “legislação” sobre a arte produzida e consumida. paradoxalmente. que. virial e didática. em seu Histoire naturelle. logo após a chegada da família real portuguesa em 1808. Continente inóspito e. Para isso. o qual.Os estrangeiros que começaram a entrar no Brasil. paradoxalmente. “Tal modelo chegaria a requintes com o Império de Napoleão. Seu mais importante agente político fora David. o Instituto (a antiga Academia de Artes) instaura-se como instituição motriz para a construção de uma política artística voltada para o Estado napoleônico e sua propaganda. Aos franceses só fora permitido aportar no Brasil depois da derrota de Napoleão. ainda espelhava um forte componente de mistério. Outro ponto importante para a autora recaiu sobre a composição da cena política e artística na França desde a revolução de 1789. visto como uma terra infantil. desde aqueles anos. com suas cidades-estado democráticas. que. 364 . na Academia Real de Pintura e com a viagem-residência a Roma (uma “obrigação” para aqueles que almejavam postos de sucesso nas artes da época). Nesse ambiente é que Taunay fora formado. Ela nos mostra que ambos tinham tomado a iniciativa de oferecer seus serviços ao príncipe regente e que a vinda estava marcada por uma séria de incertezas.paradoxalmente.84). nem mesmo apresentava-se como uma unidade. que publicou o estudo “A Missão Artística de 1816” na revista do Instituto Histórico e 365 . bisneto do pintor francês. apropriou-se de uma arte criada. a produção mais intensa de pinturas históricas. mais difícil foi superar a restauração dos Bourbon em 1814. por exemplo. 148). numa família dedicada às artes aplicadas e acostumada a prestar serviços à corte francesa. não teria viajado ao Brasil por iniciativa da corte portuguesa. que soube afastar-se da cena política nos momentos certos e cortejá-la em outros. Entre 1777 e 1784. que havia desembarcado no Rio Janeiro em 1816. o primeiro e mais importante advogado da tese de uma “missão” organizada e desejada pela corte foi Afonso d’Escragnolle Taunay. p. ele recebeu uma formação destinada a prepará-lo para o mundo da pintura. É nesse ponto que O Sol do Brasil manifesta seu lado mais polêmico. uma vez que as garantias dadas pelo governo de D. do qual Taunay fazia parte. com sua aceitação no ambiente artístico parisiense. Desde a introdução até o final. p. prêmios. que aguçara sua predileção pela pintura de paisagem. constata a autora “a associação de Taunay com as lides oficiais – em comissões. Nascido em 1755.” (SCHWARCZ. Quanto mais comprometido com o Estado napoleônico. uma vez que autora debate as diferentes intenções de Joachim Lebreton – compreendido como o líder da empreitada – e Taunay junto à corte. Nesse novo ambiente. Já em 1799. Os anos que se seguiram à revolução foram relativamente tranqüilos para Taunay. como. originalmente para consagrar a monarquia dos Bourbon” (SCHWARCZ. a carreira do pintor tomava forma. a viagem ao Brasil parecia uma espécie de exílio necessário ou uma “missão” lucrativa. a autora explicita sua discordância com a expressão “missão francesa”. João eram vagas. O grupo de artistas ligado ao regime napoleônico deposto. 2008. obras e até em decorações – era crescente. Para Schwarcz. adaptadas às necessidades propagandistas do neoclássico francês em voga. 2008. ] havia no mercado pintores italianos. Em sua pesquisa. E.Geográfico Brasileiro. como Afonso Taunay. e até mesmo alguns artistas portugueses. para os descendentes. comumente tido como o intermediário responsável pela negociação e criação da “missão”. as quais também enunciam a viagem como uma medida articulada pelos franceses.. os escritos originais de Lebreton sobre a viagem ao Brasil. pois ele “dialogou com o que viu.. como a autora demonstra a partir de uma carta de Lebreton. e a interpretação que o acompanha. em 1957. e a experiência brasileira 366 . A desmistificação da “missão” é parte considerável do livro. indaga a autora: “[. Outro crítico. não é nova. Em 1980 foi a vez de Donato Mello Júnior publicar duas cartas escritas por Nicolas Taunay. trariam menos embaraços políticos do que nossos artistas franceses” (SCHWARCZ.. melhor seria louvar os artistas civilizadores convidados às terras brasileiras que vê-los como auto-exilados.] os políticos brasileiros não possuíam instrução ou ordem da corte que pudesse atender às demandas dos franceses ou ajudar no financiamento de tal viagem. A tese que desconfia da engenharia narrativa que consagrou o termo “missão”. pois Schwarcz defende que a paisagem do Rio de Janeiro marcara o trabalho do artista francês até o fim de sua vida. igualmente à disposição. p. em 1912. Assunto bem tratado pela autora. expondo-a como evidente iniciativa do artista francês e não da corte. em 1830. fica patente que a viagem não fora um convite do conde da Barca. 2008. ex-devotos do governo inimigo dos portugueses. três anos depois.” (SCHWARCZ. chamou a missão de “lenda”.. na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mário Barata. O crítico de arte Mário Pedrosa. p. brigando pelos favores de uma corte que em muito desconfiava dos artistas do grupo. mas o foco central pretendido foi a experiência artística de Taunay em solo brasileiro. como certeza. ou seja. os quais. como uma iniciativa do Estado. paisagistas holandeses e famosos retratistas ingleses. chamados mesmo de “regicidas”. 2008. e Schwarcz não se furtou a demonstrar isso. o que tinha caráter especulativo passou a vigorar com o estatuto de verdade. “[. Afinal. Pelo contrário. publicou.185). Nas cartas do pintor. mas que também toma rumos controversos. uma vez que era conveniente para a historiografia oficial “ler” o grupo como mais um dos feitos da corte no país.176). 367 . O livro não parece tão bem sucedido na defesa dessa tese. deixando no Brasil quatro dos cinco filhos. não deixou de ter escravos em sua casa e ansiava por adquirir outros. Ao retornar à França. A pintura estava agora tomada pelos ares românticos e a arte neoclássica. Taunay retomou suas atividades na cena artística parisiense. Ele não encontrou aqui os resultados e a distinção que procurava. em especial. já não gozava do mesmo prestígio. sua relação com o Brasil oscilou entre o lamento e o fascínio. que muito lembrava as paisagens italianas produzidas pelo artista anos antes. marcada pela decepção e melancolia. do modo como Taunay viu o Brasil da propriedade da Tijuca. Taunay. Personalidade ambivalente. De fato. Uma paisagem que revela bem mais que apenas o sol do Brasil. ao mesmo tempo. um tanto exagerada. representavam. o cotidiano brasileiro. a partir dela. o modo particular de sua pintura. com sua indisfarçável escravidão. com uma atmosfera pitoresca. na disputa por cargos de uma Academia que ele nunca viu sair do papel enquanto esteve por aqui. que o acolheu naqueles anos. Da mesma forma. em 1821. p. segundo a autora.307).deixaria um traço expressivo em sua obra” (SCHWARCZ. ainda. 2008. mas com dificuldades de retomar o sucesso que havia experimentado nos anos anteriores à partida para o Brasil. Acabou por desentender-se com os demais artistas vindos da França. e as formas européias. O Sol do Brasil produziu uma síntese que aponta para o fato de que o artista pintou os “trópicos” que imaginava e desejava encontrar. mas todo uma sociedade de contrastes sociais. à critica da paisagem e. a partir de sua luz atípica. miniaturas diante da grande paisagem. Os personagens. embora fosse contra a escravidão. a autora atentou-se. Precisa no trato da biografia do artista. as paisagens brasileiras de Taunay são o resultado da união do que ele via nos trópicos. Resenha recebida em agosto de 2008 e aceita para publicação em outubro de 2008. A experiência de Taunay no Brasil fora. que tomavam pescadores cariocas pelos napolitanos. na medida de um típico iluminista. tipo de letra 11. atividades exercidas. . caso haver um parecer contrário à publicação.5. em branco e preto. espaço 1.Os artigos deverão ser encaminhados em 2(duas) vias impressas.Os artigos serão examinados por dois pareceristas membros do Conselho Editorial e. e vir acompanhadas da referência. O(s) autor(es) será(ão) comunicado(s) sobre a aceitação do seu trabalho. . instituição a que se filia e trabalhos principais. como no exemplo acima. dos dados de identificação. 2005. francês ou espanhol.0 ou compatível. entre 15 a 20 páginas.O texto deve ser antecedido por um Resumo de no máximo cinco linhas em português e inglês. francês ou espanhol. . formação acadêmica. deverão ser colocadas 4 cm à esq..Os artigos deverão ser digitados no Programa Word for Windows 6. com a indicação. Exemplo: (COSTA. .Ilustrações devem ser originais ou cópias nítidas passíveis de reprodução e. .br .Após o título em português e inglês.As notas explicativas deverão ser mantidas o mínimo possível e serem colocadas ao pé da página. em Cd e para o e-mail: revistaopsis@yahoo. . deverá vir o nome do autor. tipo Time New Roman 12.As citações acima de três linhas.Normas para o envio de artigos para revista OPSIS .212).0 ou 7. em asterisco.A remessa do artigo à Revista implica na autorização para sua publicação. 368 .As citações deverão ser feitas no corpo do texto pelo sistema autordata e página. as fotografias. . p.com. encaminhados a um consultor.Abaixo do Resumo deverá vir até cinco palavras-chave em português e inglês. . . .Todos os artigos serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial. 2006. 369 . p. Pena de Aluguel: escritores jornalistas no Brasil – 1904 a 2004. cf. São Paulo: Companhia das Letras. 2005. 7. (Org. em ordem alfabética. .A posteriori poderão ser feitas alterações nessas normas desde que o Conselho Editorial assim o decida no sentido de acrescentar ou alterar algum item. jan/jun.202. caso houverem. do texto deverão ser elencadas nas “Referências”. v. 2007. • Capítulo: ALBERTI. C. com dados completos de acordo com as normas da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. Catalão. NBR 6023. .216. no rodapé da primeira página indicará todos os detalhes bibliográficos do trabalho que está sendo resenhado. p.Todas as citações. documenntais e bibliográficas. Poesia e comunicação. 2ed.) Fontes Históricas. B. n. • Artigo de periódico: VECCHIONI. . Resenhas não devem ultrapassar quatro laudas. 155. Roberto. Histórias dentro da História.Os artigos deverão ser revisados por profissional da área antes de enviados para publicação e após alterações realizadas por sugestão do conselho editorial.As normas tipográficas são de responsabilidade da revista.. Ex: • Livro: COSTA.As resenhas devem ter título próprio que seja diferente do título do trabalho resenhado. O título da resenha deve ser seguido de um asterisco que. . 8. Cristiane. 203. In: PINSKY. Verena. Opsis – Revista do Curso de História/UFG/CAC. São Paulo: Contexto.