#Revista Le Monde Diplomatique Brasil - Edição 127 - (Fevereiro 2018)

April 2, 2018 | Author: Lucas A Santo | Category: Democracy, Brazil, University, Neoliberalism, Dilma Rousseff


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ANO 11 / NÚMERO 127 R$ 14,902 10 14 ESCALADA NUCLEAR ARTIGO ESPECIAL EPIDEMIA DE OPIÁCEOS “INOCENTES ÚTEIS” DESAFIOS DA ESQUERDA VÍCIO COMEÇA NOS DO PENTÁGONO LATINO-AMERICANA CONSULTÓRIOS POR SERGE HALIMI POR RAFAEL CORREA POR MAXIME ROBIN 00127 LE MONDE 9 771981 752004 BRASIL diplomatique UM NOVO OLHAR SOBRE O MUNDO. UM NOVO OLHAR SOBRE O BRASIL. UNIVERSIDADES PÚBLICAS ABANDONADAS 24 O ACORDO DE PARIS E O BRASIL RETROCESSOS AMBIENTAIS POR CARLOS RITTL 30 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA A ROTINA DO PARTO POR LUCIANA MOTOKI 32 ESQUERDA E MACHISMO HARVEY WEINSTEIN POR THOMAS FRANK 2 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 ESTADOS UNIDOS © Sandra Javera Os “inocentes úteis” do Pentágono POR SERGE HALIMI* m Washington, democratas e re- para que possam servir contra um le- do orçamento militar norte-america- tume, a jornalista pop star Rachel E publicanos se entendem, pelo menos, quando se trata de com- bater a Rússia. Segundo eles, Vladimir Putin duvida da determina- ção dos Estados Unidos de defender que mais amplo de ameaças. Ameaças, inclusive, “não nucleares”: destruição de redes de comunicação, “armas quí- micas, biológicas, ciberataques” etc. Em 2016, sem saber muito bem no destinado às armas nucleares. Esse alarmismo geopolítico a ser- viço de uma nova corrida armamen- tista suscitaria oposição nos Estados Unidos se, há um ano, a chamada es- Maddow, porta-voz da “resistência” a Trump na cadeia NBC, replicou sem demora: “Nosso presidente não ape- nas deixou de extinguir esse incêndio como ficou observando o avanço das seus aliados e quer preservar seu regi- quais eram os próprios fundamentos querda norte-americana não viesse se chamas!”. Ela pode dormir tranquila: me autoritário do contágio democráti- da dissuasão, o candidato Donald esforçando para apresentar Trump co- o Pentágono saberá defendê-la. co e liberal. Por isso, teria se decidido Trump teria perguntado a um de seus mo uma marionete de Moscou.3 Ela pela agressão ao Ocidente. Então, a fim consultores: “Para que possuímos ar- chegou a ponto de obrigá-lo a entregar *Serge Halimi é diretor do Le Monde de garantir a paz e a democracia, o mas nucleares se não as usamos?”.2 O armas à Ucrânia (coisa que seu prede- Diplomatique. Exército norte-americano e os parla- documento do Pentágono dá uma res- cessor democrata se recusou a fazer) e mentares dos dois partidos resolve- posta à sua maneira. Diante das “am- a aumentar as sanções contra a Rússia. ram contra-atacar... bições geopolíticas” da Rússia (e tam- O ex-vice-presidente Joe Biden há pou- Primeiro, o Exército norte-ameri- bém da China), o desejo de Moscou de co se rejubilou num artigo que é um 1 Ashley Feinberg, “Exclusive: here is a draft of Trump’s cano. Obedecendo a uma ordem da “modificar pela força o mapa da Euro- primor de sutileza já no título: “Defen- nuclear review. He wants a lot more nukes” [Exclusi- vo: eis um esboço da avaliação nuclear de Trump. Ele Casa Branca, o Pentágono acaba de pa” e “questionar a ordem internacio- der a democracia contra seus inimi- quer muito mais bombas nucleares], 11 jan. 2018. completar um estudo que preconiza nal instaurada após o fim da Guerra gos: como resistir ao Kremlin”.4 Disponível em: <www.huffingtonpost.com>. um emprego mais generoso das armas Fria”, os Estados Unidos devem apres- Ao mesmo tempo, os senadores de- 2 Matthew J. Belvedere, “Trump asks why US can’t use nukes: MSNBC” [Trump pergunta por que os nucleares.1 Estas, atualmente destruti- sar a “modernização de suas forças mocratas da Comissão de Política Ex- Estados Unidos não podem usar bombas nuclea- vas demais para que sua utilização seja nucleares”, a fim de continuar no pa- terna publicavam um relatório que res: MSNBC], 3 ago. 2016. Disponível em: sequer imaginável, não desempe- pel de “sentinelas fiéis da liberdade”. analisava “o ataque assimétrico de Pu- <www.cnbc.com>. 3 Ver “Trump acuado pelo partido anti-Rússia”, Le nham, portanto, seu papel de dissua- Essa abnegação democrática não tem tin à democracia na Rússia e na Euro- Monde Diplomatique Brasil, set. 2017. são; conviria, pois, miniaturizá-las, preço – ou melhor, tem: a triplicação pa”. Ainda mais indignada que de cos- 4 Foreign Affairs, Nova York, jan.-fev. 2018. FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 3 EDITORIAL E agora? POR SILVIO CACCIA BAVA © Claudius om a condenação de Lula fica ca- aqueles que não são militantes, as nas de Lula e por sua crescente prefe- essa cadeia de conhecimentos e pro- C da vez mais evidente a falência das instituições democráticas. A politização do Judiciário trans- formou-o num poderoso instrumento de perseguição política. Os demais po- maiorias espoliadas, as periferias das grandes cidades, continuam em silên- cio. Há perplexidade e desesperança por toda parte. A proposta de reforma política se rência eleitoral, já batendo nos 45%2 em dezembro passado. Mas a crise política não se resolve nem com a reabilitação do PT nem com a partici- pação de Lula nas eleições. Ela é uma paganda funciona. Entre os principais desafios para os próximos anos está estimular o pensamento crítico, produzir análises e debates que contribuam para a for- deres da República se alinham e se ca- mantinha em pé enquanto era possível crise sistêmica. O que precisa mudar mação e instiguem os jovens e todos lam, em cumplicidade de classe social. imaginar a possibilidade de uma Cons- é o sistema político, são as regras que os setores discriminados a construir O que vai acontecer com o Brasil, tituinte independente. Mas o atual permitem às elites controlar e repri- uma nova frente política e enfrentar o agora que nossa democracia foi sus- Congresso, com os parlamentares em mir as maiorias. regime autoritário que se configura e pensa, que nossos três poderes – Exe- sua maioria organizados em lobbies Na história, essas mudanças se dão a nova forma de espoliação dos traba- cutivo, Legislativo e Judiciário – foram para a defesa de interesses corporati- por mobilização dos setores popula- lhadores, isto é, de todos aqueles que capturados e são controlados por gru- vos, muitos indiciados em crimes de res, quando os cidadãos buscam se vivem de seu trabalho. pos de interesse e quadrilhas que agem corrupção, não aceita essa possibilida- reapropriar do poder de decidir sobre É difícil prever a evolução da con- contra a democracia e contra os inte- de nem sob pressão popular. a própria vida, coletivamente. Em al- juntura, mas com o acirramento dos resses das maiorias? Esse Judiciário, que assume seu la- guns casos, fortes movimentos de movimentos sociais e da repressão co- Vale a pena legitimar esta falsa do conservador e de direita, tem hoje a massa impuseram sua agenda e refor- meça a existir a necessidade de os que democracia? Vale a pena votar nas última palavra na política nacional. mas às instituições políticas; em ou- lutam pela democracia se organiza- eleições deste ano? Qual caminho so- Ignora provas e se omite em casos fla- tros, esses movimentos foram às ar- rem, cada grupo em seu território, seja bra para defendermos nossos direitos grantes, como o do senador Aécio Ne- mas, como o exemplo das lutas contra pela ativação de entidades locais, seja de cidadãos e cidadãs, para defender- ves, mas considera legítimo “intuir” a o colonizador europeu na África. pela criação de organismos de base, mos uma democracia que nos repre- culpa de Lula. A construção das frentes Brasil Po- coletivos horizontais, suprapartidá- sente? As ruas? A desobediência civil? Esse Executivo criminoso e entre- pular e Povo Sem Medo são importan- rios, formando núcleos de resistência. A insurreição? guista, o governo Temer, acaba de dar tes iniciativas para organizar mais a re- A aposta é refundar a democracia Os protestos contra as violações de isenção tributária às grandes empre- sistência democrática e a defesa de em bases populares, para a defesa dos direitos crescem, assim como crescem sas petrolíferas internacionais que direitos. Essa resistência, porém, preci- interesses das maiorias. Se as eleições os grupos provocadores de direita. compraram, a preço de banana, nos- sa ser mais ampla, convocar os cidadãos de 2018 ainda são um importante mar- Mas todos eles ainda se restringem ao sas reservas do pré-sal. Há estimativas comuns a se organizarem em coletivos, co dessa disputa, é preciso olhar para mundo da militância, muitos osten- de que essas isenções possam chegar a comitês de luta pela democracia, tor- um horizonte mais amplo, organizar a tando seus cabelos brancos. As novas R$ 1 trilhão. Quem autorizou o presi- nar-se cada vez mais pública. resistência e entender que a constru- gerações não conquistaram muito es- dente Temer a dar esse presente às A disputa política na sociedade se ção de um pensamento hegemônico paço. Movimentos como os de juven- multinacionais?1 dá pela disputa das narrativas. E os se- se faz no dia a dia, disputando ideias e tude, o movimento contra o genocídio De um lado, o governo corta dinhei- tores neoliberais e conservadores se políticas, fazendo a crítica das políti- da juventude negra, o movimento das ro da saúde, da educação e das políticas armaram para essa disputa. São pes- cas atuais e apresentando alternativas jovens mulheres negras, necessitavam sociais; de outro, concede enormes quisas, palestras, cursos, seminários, para disputar corações e mentes. ter um protagonismo maior. isenções de impostos a multinacionais, livros, filmes, programas de televisão e Mesmo que o governo Temer tenha deixando de receber impostos que po- notícias que vão apresentando uma vi- 97% de reprovação e a vida tenha se deria repassar às políticas sociais, algo são de mundo e as vantagens de suas tornado mais difícil, a sociedade civil estimado em R$ 40 bilhões por ano. crenças. Nem todos dispõem de recur- 1 Eduardo Militão, “Estudos apontam perda de R$ 1 tri em renúncia fiscal após leilão do pré-sal”, UOL, ainda está relativamente quieta. As A polarização do cenário político sos para atuar em tantas frentes, mas é 31 out. 2017. marchas e passeatas são diárias, mas revigora o PT, reforçado pelas carava- preciso estar alerta para o fato de que 2 Pesquisa do Instituto Ipsos, dez. 2017. 4 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 UNIVERSIDADES PÚBLICAS Sobre o caráter da burguesia brasileira No projeto-programa em vigor no governo Temer, comandado por uma burguesia cosmopolita com “complexo de vira-latas”, não existe uma nação nem interesses nacionais. Assim, ele não necessita de universidades públicas que pratiquem, de forma integrada, o ensino, a pesquisa e a extensão – e ajudem a formar uma nação POR LUIZ FILGUEIRAS, GRAÇA DRUCK E UALLACE MOREIRA* m 2017, as universidades públi- A parte do “estudo” dedicada à crí- E cas brasileiras, em especial as tica às universidades públicas federais © Renato Alarcão federais, entraram na mira do é de um primarismo e uma grosseria governo Temer, tornando-se, sem par, evidenciando a ligeireza e a concomitantemente, a “bola da vez” má-fé com que foi realizada. O objetivo dos ataques da grande mídia corporati- é um só: desqualificar essas institui- va. A ofensiva orquestrada, de tentativa ções taxando-as de ineficientes, in- de desqualificação e desmoralização competentes e injustas, pois desperdi- dessas instituições, contou com a parti- çam dinheiro público e favorecem os cipação do Banco Mundial (Bird), do alunos pertencentes às famílias de ní- Poder Judiciário, do Ministério Público vel de renda mais elevado. O corolário e da Polícia Federal – os três últimos ins- daí resultante é a defesa da instituição pirados pela Operação Lava Jato. do ensino pago e da redução do finan- No plano do financiamento do Es- ciamento das universidades públicas. tado para as universidades federais, o Para demonstrar a ineficiência, o governo Temer, apoiado na “PEC da Bird compara o gasto por aluno das morte”, que congelou os gastos corren- universidades federais com o das uni- tes federais por vinte anos, reduziu o versidades privadas, apontando uma repasse de recursos para essas institui- diferença enorme entre ambos: segun- ções – tanto os gastos com investimen- do ele, entre 2013 e 2015, o custo médio tos, com a paralisação de inúmeras anual por estudante foi de R$ 40.900 obras que vinham sendo executadas, nas universidades públicas federais e como os gastos correntes ordinários apenas R$ 14.850 nas universidades que garantem o funcionamento coti- privadas com fins lucrativos. Por outro diano das universidades federais. lado, para evidenciar o caráter regres- Na esfera do Ministério Público, do sivo dos gastos públicos, aponta que Poder Judiciário e da Polícia Federal, 65% dos estudantes das universidades as universidades federais foram agre- federais pertencem aos 40% mais ricos didas duplamente, numa tentativa de da população, enquanto apenas 20% criminalização e desmoralização de fazem parte dos 40% dos mais pobres. sua comunidade e de seus dirigentes, dade que dirigia –, suicidou-se, jogan- gasta ineficiente e injustamente”. Por- Com base nessas duas supostas cons- no mesmo estilo e com o mesmo mo- do-se de cima de um andar de um tanto, deve-se, e pode-se, cortar esses tatações, o Bird propõe a redução dos dus operandi empregado pela Opera- shopping de Florianópolis. Toda a gastos, tornando-os, supostamente, recursos destinados às universidades ção Lava Jato. Tendo por justificativa a operação foi executada sob a respon- mais eficientes, equitativos e justos. federais, o que as obrigaria a “redefinir investigação de supostos desvios de sabilidade de uma delegada que havia No entanto, a parte dedicada ao sua estrutura de custo e/ou buscar re- recursos, foram invadidas as instala- trabalhado na Operação Lava Jato, ensino superior, em particular às uni- cursos em outras fontes”, e a introdu- ções de duas universidades federais, a com as mesmas arbitrariedades e uti- versidades federais, resume-se a sete ção do ensino pago. de Santa Catarina (UFSC) e a de Minas lizando os mesmos métodos de exce- páginas, pois o foco do documento é a Em suma, o “estudo” do Bird é a ve- Gerais (UFMG), com a “condução ção da “República de Curitiba”. Previdência Social,2 tida pelo capital lha cantilena da necessidade de um coercitiva” de dirigentes e professores, Para completar as agressões às uni- financeiro como “a joia da coroa” por ajuste fiscal, defendido desde sempre o uso de enorme aparato policial – ho- versidades públicas, no final de 2017 um motivo compreensível: depois dos pelo capital financeiro e vocalizado mens mascarados portando armas de apareceu na cena política um “estudo” gastos com o pagamento dos juros e pela grande mídia corporativa apoia- grosso calibre – e grande mobilização (assim denominado para dar impres- amortizações da dívida pública, que da em “especialistas” (economistas midiática, como se houvesse organi- são de ser científico e, portanto, irrefu- consomem mais de 50% do orçamen- ortodoxos) e editoriais focados no te- zações criminosas agindo no interior tável) do Banco Mundial.1 Com 160 pá- to do governo federal, a Previdência ma. Nesse contexto, os gastos públicos dessas instituições, e professores e rei- ginas e encomendado pelo então Social é o segundo maior gasto, cor- com o ensino superior, assim como to- tores fossem bandidos e operadores ministro da Fazenda do governo Dil- respondendo a pouco mais de 25%. dos os demais gastos sociais, também dessas supostas organizações. Tudo ma, Joaquim Levy, trata-se na verdade Por sua vez, os gastos com saúde e devem se adequar e ser reduzidos, fa- isso feito sem nenhuma convocação de um documento político de apoio às educação representam de 3% a 4%, vorecendo o aumento do superávit fis- anterior desses servidores públicos contrarreformas neoliberais e ao ajus- enquanto as demais rubricas, como cal para o pagamento dos juros e para prestar esclarecimentos e sem te fiscal permanente que vêm sendo habitação, saneamento, ciência e tec- amortizações da dívida pública. nenhuma acusação formal. colocados em prática pelo governo Te- nologia etc., não chegam, cada uma, a Antes de demonstrar o caráter frau- No caso mais dramático, o da mer. Seu objeto central é o gasto cor- 1%.3 Portanto, é a Previdência Social dulento desse “estudo” do Bird, é ne- UFSC, seu reitor, abalado psicologica- rente (primário) do governo federal, que mais pode transferir recursos pa- cessário esclarecer pelo menos três mente – depois de conduzido arbitra- em especial os gastos sociais com a ra o capital financeiro – diretamente, pontos acerca da dívida pública do Es- riamente às instalações da Polícia Fe- Previdência e a seguridade social, a ao aumentar o superávit fiscal primá- tado brasileiro e do “ajuste fiscal” do deral e de ter sido vítima de violência e saúde pública, a educação pública e os rio, e indiretamente, ao “empurrar” governo Temer, colocando em evidên- humilhação em revista íntima, além salários dos servidores públicos – na li- parte de seus beneficiários para os cia os argumentos falaciosos dos “es- de ficar proibido de entrar na universi- nha de que “o governo gasta demais e fundos de pensão privados. pecialistas” do mercado. FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 5 Primeiro: a enorme dívida pública superávit. No entanto, o ajuste fiscal, mente, ou a maior parte dele, em esco- segmentos sociais – que não sejam as atual não resultou do excesso de gastos como seria de esperar, não inclui o las públicas e, em sentido oposto, 36% características superficiais (a maior correntes em relação às receitas dos su- ajuste dos gastos financeiros. cursaram em escolas particulares. parte negativa) que supostamente de- cessivos governos. Na verdade, ela de- Com relação à suposta ineficiência A violência contra as universidades finiria um brasileiro genérico. correu de sucessivas políticas macroe- e ao desperdício das universidades fe- públicas, assim como as demais ini- Por tudo isso, a finalização da tare- conômicas executadas nas últimas derais, o Bird rebaixa a complexidade ciativas do governo Temer, expressa fa de constituição de uma nação brasi- quatro décadas, em especial o chama- delas ao compará-las às instituições de um projeto-programa político claro e leira completa, articulada e coesa e de do “ajuste monetário do balanço de ensino privado que, com raríssimas ex- coerente de natureza neoliberal, tal uma universidade pública que expres- pagamento” – adotado pelo governo ceções, limitam-se ao ensino, contan- como efetivado nos países capitalistas se e sirva a essa urgência não pode Figueiredo na década de 1980, por do, para isso, com um corpo docente periféricos e dependentes, que ocu- mais ser realizada por suas classes do- pressão do FMI, durante a crise da dívi- bem menos qualificado/titulado, em pam uma posição subordinada na di- minantes alienadas. Resta saber se, no da externa dos países periféricos – e “o tempo parcial, mal remunerado e car- visão internacional do trabalho. Nes- contexto de uma (des)ordem mundia- Plano Real e a abertura comercial-fi- regado de turmas para dar aulas.6 ses países, a superexploração do lizada, as classes subalternas ainda te- nanceira” dos anos 1990 e 2000, postos As universidades federais têm co- trabalho é regra e a concentração de rão a capacidade política de levar em prática quando do aprofundamen- mo regra, além do ensino, atividades renda e riqueza é indecente: no Brasil adiante essa tarefa histórica. to do projeto-programa político neoli- de pesquisa e extensão, hospitais uni- de hoje, os cinco indivíduos mais ricos beral no país.4 versitários de alta complexidade, clíni- (cinco!) detêm um patrimônio equiva- *Luiz Filgueiras, Graça Druck e Uallace Essas políticas acarretaram o endi- cas e laboratórios, museus, orquestras, lente ao da metade mais pobre do país Moreira são, respectivamente, professor titu- vidamento do Estado aceleradamente; teatros, cinemas, escritórios de assis- (mais de 100 milhões de pessoas!).8 lar de Economia, professora titular de Socio- no primeiro caso, com a transforma- tência jurídica à população mais po- Nesse projeto-programa coman- logia e professor adjunto de Economia da ção da dívida externa privada em dívi- bre etc., contando, para isso, com um dado por uma burguesia cosmopolita Universidade Federal da Bahia (UFBA). da externa pública, cujo pagamento, corpo docente altamente qualificado/ com “complexo de vira-latas”, subor- posteriormente, exigiu do Estado a titulado e, na maior parte, trabalhan- dinada e subserviente ao imperialis- emissão de títulos de dívida interna do em tempo integral. mo, não existe uma nação nem inte- como contrapartida para a compra Como consequência dessa enorme resses nacionais; não há a pretensão 1 Bird, “Um ajuste justo: análise da eficiência e equi- dade do gasto público no Brasil”, nov. 2017. dos dólares gerados pelos exportado- diferença, afirmar que as universida- de modificar a posição subalterna do 2 Aqui também a estratégia do capital financeiro e res privados. No segundo caso, a sus- des federais têm um custo por estu- país (exportador de commodities) na do Bird, com amplo apoio midiático, é desqualificar tentação da âncora cambial como ins- dante maior do que as universidades divisão internacional do trabalho; não e desmoralizar a Previdência Social pública, ven- dendo a mentira da existência de um déficit estru- trumento de combate à inflação, ao privadas não tem a menor credibilida- cabem a defesa, a reserva e o uso dos tural insustentável – com base em manipulação sobrevalorizar o real, implicou eleva- de, se não forem separados dos gastos recursos naturais do país em favor da metodológica que a retira da rubrica maior da se- das taxas de juros e grande emissão de totais realizados pelas primeiras os maioria da população; tudo é avaliado guridade social, composta ainda pela assistência social e a saúde, e some com parte significativa de títulos de dívida pública interna – co- gastos com todas as outras atividades pela lógica e a métrica do capital fi- suas fontes de financiamento –, além de taxá-la mo forma de atrair capitais externos listadas anteriormente. Além disso, é nanceiro; não se admite distribuição como injusta. de curtíssimo prazo, condição para preciso abater o pagamento das apo- de renda e da propriedade, com a efeti- 3 Essas informações constam no site do Tesouro Nacional, particularmente quando se considera a evitar uma crise cambial que, contu- sentadorias e pensões que, absurda- vação de uma reforma agrária e a taxa- consolidação das contas públicas, segundo as do, acabou eclodindo em fins de 1998 e mente, também faz parte e compõe o ção da riqueza, da herança e dos mais despesas por função da União. começo de 1999. orçamento das universidades federais. ricos; não se necessita de grandes 4 Ver Luiz Filgueiras, História do Plano Real, Boitem- po, São Paulo, 2000, 2004 e 2016. Ambas as políticas aumentaram ra- Apenas depois dessa operação de sub- empresas nacionais e estatais que de- 5 Em novembro de 1999, primeiro ano do segundo dicalmente o montante da dívida pú- tração é que se pode fazer uma com- senvolvam tecnologia própria, nem governo FHC, a dívida interna mobiliária federal já blica, além de autonomizarem sua evo- paração do custo por estudante entre de instituições públicas de pesquisa era de R$ 415 bilhões, ainda que durante o gover- no Collor e o primeiro de FHC 44 empresas esta- lução com relação aos gastos correntes os dois tipos de instituição. e inovação; em suma, não se necessi- tais tenham sido privatizadas com o intuito de pagá- dos sucessivos governos; ou seja, a dívi- Estudo do professor Nelson Cardo- ta de universidades públicas que pra- -la. Catorze anos depois, em 2013, e após da pública cresceu mesmo com equilí- so Amaral7 evidencia que, depois de tiquem, de forma integrada, o ensino, sucessivos superávits fiscais primários, essa dívida atingiu R$ 1,9 trilhão. A partir da crise eclodida em brio orçamentário ou superávit primá- realizada a devida subtração mencio- a pesquisa e a extensão – e ajudem a 2014, ela evoluiu para R$ 3,3 trilhões em setembro rio. De 1999 a 2013 – portanto, durante nada, o custo médio anual do ensino, formar uma nação. Estas podem res- de 2017 (Banco Central do Brasil). catorze anos –, os sucessivos governos por aluno, nas universidades federais, tringir sua atuação apenas ao ensino 6 No ano passado, estimuladas pela entrada em vi- gor da reforma trabalhista, várias dessas institui- obtiveram superávits primários e, as- para o ano de 2015, foi de R$ 13.875 – (pago) e, assim mesmo, em posição ções promoveram demissões em massa de profes- sim mesmo, a dívida cresceu em ter- menor do que a média da Organização minoritária, pois atualmente as insti- sores com titulação e salários mais elevados, com mos absolutos e, em alguns anos, até para a Cooperação e o Desenvolvi- tuições privadas de ensino superior o objetivo de recontratá-los de forma precária: a Estácio de Sá anunciou a demissão de 1,2 mil pro- mesmo como proporção do PIB.5 mento Econômico (OCDE), de R$ já absorvem 75% dos estudantes uni- fessores; a Faculdades Metropolitanas Unidas Segundo: os déficits que passaram 15.772. Esse mesmo estudo, baseado versitários do país – embora, em ge- (FMU) demitiu pelo menos duzentos professores; a ocorrer a partir de 2014 decorreram em uma pesquisa socioeconômica ral, ofereçam um “serviço” de péssi- a Anhembi Morumbi, que integra o mesmo grupo da FMU, demitiu ao menos 150; e a Universidade inicialmente da desaceleração da eco- realizada com os estudantes, eviden- ma qualidade. UniRitter, que atua na região sul do Brasil, demitiu nomia e posteriormente da política cia que pouco mais de 51% tem renda Na verdade, a maior tragédia do mais de cem professores. equivocada de desoneração fiscal pa- familiar de até três salários mínimos Brasil é o caráter de sua grande bur- 7 Andifes, “A hora da verdade para as universidades federais brasileiras: metas do PNE (2014-2024) e trocinada pelo primeiro governo Dil- (R$ 2.811), tendo por base o valor do guesia. Constituída frágil e tardiamen- 10 mitos a serem debatidos e desvendados”, 2017. ma, seguida pelo início de um ajuste salário mínimo de 2017; se considerar- te no contexto da expansão do capita- 8 Segundo a Oxfam, confederação de ONGs pre- fiscal em seu segundo governo, radi- mos todos aqueles cuja família tem lismo no plano mundial, ela não sente em 94 países que trabalha para a redução da desigualdade. Relatório de 2018. calizado violentamente pela “PEC da renda de até seis salários mínimos (R$ conseguiu fazer uma revolução demo- 9 Segundo a colunista social Hildegard Angel, em morte” do governo Temer. Em ambos 5.622), atingiremos 76% do total de es- crática nem se defrontar com o impe- texto publicado pela Revista Fórum, “o rico brasilei- os casos, o resultado foi a queda da ar- tudantes das universidades federais. rialismo e dele se distinguir. Mais re- ro de verdade já desistiu do Brasil. Está pouco se lixando se tem gente pobre, vivendo e defecando recadação federal e o aparecimento Apenas 10% deles estão no topo da dis- centemente, aderiu de corpo e alma à nas ruas. Não é que ele seja insensível, é que ele dos déficits – portanto, um problema tribuição, isto é, pertencem a famílias lógica da financeirização difundida não vive aqui. Ele está por aqui. Tem seu aparta- pelo lado da receita –; enquanto a eco- com renda acima de dez salários míni- pela globalização, constituindo-se, so- mento à beira-mar, frequenta seu clube, onde joga tênis, convive com seu reduzido círculo de amigos nomia cresceu, a regra foi a existência mos (R$ 9.370). bretudo, como uma burguesia rentista e ponto. Depois, embarca no seu jato para a resi- de superávit primário. O estudo de Amaral desmente tam- e de negócio.9 O resultado final é que, dência lá fora. O Brasil é para ganhar dinheiro e Terceiro: na verdade, o problema bém a afirmação do Bird de que os es- diferentemente das burguesias dos remeter dinheiro. Esse rico não tem mais o embara- ço da língua, como alguns ricos de gerações ante- das contas públicas são os gastos fi- tudantes das universidades federais países imperialistas, ela não conse- riores, pois os filhos e netos já dominam o inglês nanceiros, com o pagamento de juros são egressos principalmente de escolas guiu construir e liderar uma nação em desde que nascem e [nem] sequer conhecem a e amortizações da dívida, que absor- privadas de nível médio: em 2014, 64% sua plenitude. De fato, o Brasil é uma nossa História. O rico brasileiro é globalizado, não tem brio patriótico, ao contrário, sente bastante vem mais de 50% do orçamento e cres- dos estudantes das universidades fede- nação incompleta, desarticulada e sem preconceito e desprezo em relação ao nosso país, cem permanentemente, mesmo com rais cursaram o ensino médio integral- coesão e identidade entre seus diversos onde lamenta ter nascido”. 6 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 NEOLIBERALISMO E A COLONIALIDADE DO SABER A Unilab e o desmonte © Renato Alarcão da educação A educação é uma frente bastante visada pelo movimento neoliberal. Projetos como o Escola sem Partido e os cortes maciços no orçamento têm o intuito de mantê-la sob as rédeas da colonialidade do saber, na qual o conhecimento possa continuar sendo privilégio de alguns grupos. Nesse contexto de ataques diretos, estão em jogo os projetos Unila e Unilab POR JACQUELINE COSTA E VICO MELO* omo já dizia Wallerstein em seu combate à fome e à desigualdade social São Tomé e Príncipe, Moçambique) e lugares que “nunca foram destinados C livro Capitalismo histórico e ci- vilização capitalista, o capitalis- mo é o processo da mercantili- zação de tudo – desde o objeto até a própria vida, humana ou não. O capi- era o mote do debate nos fóruns inter- nacionais, exigindo-se dos países mais ricos que realmente colocassem “as mãos na massa” para modificar o qua- dro de alta desigualdade existente em do Sudeste Asiático (Timor-Leste). Criada pela Lei n. 12.289, de 20 de julho de 2010, possui quatro campi: Malês (São Francisco do Conde/BA), Palmares (Acarape/CE), Liberdade e a tais grupos”, a exemplo das universi- dades públicas. A tais grupos sempre se destinou, ao imaginário e ao real, o lugar do trabalho, da exploração e da acumulação: os corpos-máquina. talismo, desde sua ascensão no século nível global. Nesse contexto destaca- Auroras (Redenção/CE), onde tam- A educação, portanto, é uma frente XIV com a expansão europeia por mos as universidades públicas brasi- bém funciona sua sede administrati- bastante visada por esse movimento meio da exploração dos recursos natu- leiras (estaduais, federais e institutos va. Dados quantitativos da Diretoria neoliberal, em que projetos como o Es- rais no continente americano e a es- federais) e o importante investimento de Registro e Controle Acadêmico(DR- cola sem Partido e os cortes maciços no cravização em massa de corpos ame- feitos pelos governos dos ex-presiden- CA), de outubro de 2017, registram um orçamento têm o intuito de mantê-la ríndios e africanos, baseou-se no tes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma total de 6.803 estudantes matriculados sob as rédeas da colonialidade do saber, processo de transformar o mundo da Rousseff. É possível afirmar que se nos cursos de graduação, pós-gradua- na qual o acesso e a transmissão do co- vida nas colônias num mundo da mor- criou um ambiente favorável para rei- ção, presencial e a distância. Nos cur- nhecimento possam continuar sendo te e da não existência. O colonialismo vindicações por cidadania, pelo direito sos presenciais, foram registrados privilégios de alguns grupos. Nesse é parte integrante do capitalismo, e é à educação formal e pela promoção da 3.995 estudantes, por nacionalidade: contexto de ataques diretos à educação por meio dele que este último põe em igualdade de oportunidades concreti- Brasil, 2.964; Guiné-Bissau, 622; Angola, estão em jogo os projetos Unila e Uni- prática toda a sua “potencialidade”. zadas por meio de uma agenda de 151; Cabo Verde, 91; São Tomé e Prínci- lab, que concentram corpos (negros/as, A consolidação do capitalismo no ações positivas, que possibilitou a cria- pe, 84; Timor-Leste, 51; e Moçambique, indígenas, pobres, LGBTT+) e currícu- sistema internacional não ocorre so- ção de espaços institucionais de pro- 32. Na pós-graduação stricto sensu pre- los que contestam o status quo atual. mente por vias econômicas, como dução do conhecimento salvaguarda- sencial: 102. E em cursos a distância: A Unila e a Unilab representam muitas vezes somos levados a crer, im- dos pelas políticas afirmativas e de pós-graduação lato sensu, 914; e pós- projetos importantes de desenvolvi- buídos tanto de uma ótica liberal ou reparação, interiorização e internacio- -graduação lato sensu a distância, 1.792. mento, de sociedade, de descoloniza- marxista ocidental determinista, mas nalização do ensino. Diante da conquista de ter como ção do saber e de redefinição do proje- ocorre, sobretudo, pelo fato de ser um Estamos nos referindo à criação da sede duas universidades estratégicas to de sociedade. Esse cenário de projeto para além do econômico, sen- Universidade Federal da Integração do ponto de vista da produção do co- ataques diretos requer de nós um en- do político, cultural (e de pensamen- Latino-Americana (Unila) e da Uni- nhecimento e da promoção da justiça volvimento conjunto entre a comuni- to) e social. O processo de legitimação versidade da Integração Internacional social, hoje vemos o Brasil diante de dade acadêmica, a sociedade civil e por esses meios permitiu (e permite) da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), um quadro bastante desafiador. Desde movimentos sociais em defesa de uma ao capitalismo promover toda a sua como resultado concreto de deman- agosto de 2016, após um golpe parla- universidade pública que garanta a in- violência e exploração contra diversas das dos movimentos sociais. Aqui des- mentar-jurídico e de cunho profunda- tegração, a interiorização e a interna- sociedades, tornando-as espaços va- tacamos os movimentos negro, indí- mente neoliberal/colonial, vem se im- cionalização do ensino superior, e que, zios homogêneos. gena e dos(as) trabalhadores(as) rurais pondo um conjunto de propostas que acima de tudo, possamos transgredir O neoliberalismo que está a pleno sem terra e os Núcleos de Estudos Afro- não foram referendadas pelo voto di- e transformar as fronteiras do saber, vapor neste momento nada mais é que -Brasileiros e Indígenas das universi- reto, colocando-se em perigo tudo o como bem nos convocava a ativista uma das várias faces do próprio capi- dades públicas brasileiras (Neab/Nea- que se conquistou até este momento. norte-americana bell hooks. talismo. Na América Latina, após uma bi), que do ponto de vista estatístico e Um exemplo concreto é a PEC 95, apre- década de governos abertamente neo- em razão de pautas históricas de rei- sentada pelo governo federal e aprova- *Jacqueline Costa é professora do IHL/ liberais, o século XXI via em seu início vindicação lutaram pelo aumento e da pelo Congresso Nacional, a qual Unilab, coordenadora do Bacharelado de Hu- o surgimento de governos de centro- aprimoramento do acesso e da perma- congela por vinte anos os gastos públi- manidades e Letras (BHU) e doutora em So- -esquerda e esquerda, modificando as nência no ensino superior. cos com saúde e educação. ciologia (Universidade Federal de São Car- relações entre o Estado e a sociedade, A Unilab, um projeto político dese- O país como um todo sofre com o los); e Vico Melo é professor do IHL/Unilab assim como entre o Sul global e o Nor- nhado por Lula e continuado por Dilma, impacto do projeto neoliberal e colo- e doutor em Pós-Colonialismos e Cidadania te global. É importante ressaltar que, foi pensada para promover a integração, nialista que mudou a prioridade das Global (Universidade de Coimbra). mesmo estando fora do poder, esses a interiorização1 e a internacionalização políticas públicas e externa, colocan- grupos que apoiavam o modelo neo- do ensino superior, assim como para do-a nos Estados Unidos e no conti- 1 Durante os governos Lula e Dilma, esse conceito foi pensado em razão da expansão das instituições de liberal tiveram uma apropriação de possibilitar a aproximação e um amplo nente europeu, deixando em segundo nível superior nas cidades e nos municípios distan- riqueza sem comparação na história diálogo com os países da cooperação plano a relação com os países da Amé- tes dos grandes centros e das grandes capitais. democrática brasileira, graças à alta Sul-Sul, pertencentes à Comunidade rica Latina e do continente africano. O Entre 2002 a 2014 foram criadas dezoito novas universidades federais, elevando o número de cur- das commodities no mercado inter- dos Países de Língua Portuguesa projeto colonial/neoliberal age de for- sos presenciais ofertados no país de 2.047 a nacional, ao tripé macroeconômico (CPLP), com o objetivo de atender es- ma brutal, invisibilizando e silencian- 4.867; o número de institutos federais foi ampliado e a empréstimos a fundo perdido tudantes oriundos do Brasil, dos paí- do grupos não conformados (indíge- em 31%, o de cursos de graduação, em 86%, e o de pós-graduação, em 316%. Esses dados eleva- concedidos ao agronegócio. ses africanos de língua portuguesa nas, pobres, negros/as, LGBTT+), ram o número de municípios atendidos por universi- O discurso da justiça social e do (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, assim como por meio de expulsões de dades federais de 114 para 289. Fonte: Inep, 2013. FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 7 ESFORÇOS DO BRASIL E DE SEUS VIZINHOS PARA GARANTIR O DIREITO À EDUCAÇÃO O dramático panorama do financiamento do ensino Contra postulados que veem a educação como um investimento como outro qualquer, aspecto reforçado na gestão Meirelles-Temer com o congelamento de gastos para os próximos vinte anos, é importante olhar os dados desse financiamento no Brasil e na América Latina e Caribe POR JOSÉ MARCELINO DE REZENDE PINTO* ma das poucas coisas sobre as é sinônimo de notas em testes padro- nha Latino-Americana pelo Direito à tal e da riqueza produzida no país U quais há um consenso mundial é a importância da educação. As famílias esforçam-se para garantir a melhor instrução possível para suas crianças e jovens. Já as pes- nizados, como a Prova Brasil, o Enem, o Programa Internacional de Avalia- ção de Alunos (Pisa) e tantos outros aos quais são submetidos os estudan- tes do Brasil e do mundo. Para melho- Educação (Clade) lançou em setembro de 2017 o Sistema de Monitoramento do Financiamento do Direito Humano à Educação na América Latina e no Ca- ribe (http://monitoreo.campanadere- (PIB). A segunda dimensão (disponibi- lidade de recursos) centra-se nos recur- sos públicos disponíveis para cada pessoa em idade escolar. Esse indica- dor é um avanço em relação às medi- quisas acadêmicas mostram o direito rar a qualidade, ou seja, a nota obtida choeducacion.org), que reúne dados das utilizadas por organismos como à educação como a porta de acesso pa- nesses testes, receitam pouco dinhei- do financiamento educativo público Unesco e Organização para a Coope- ra a garantia dos demais direitos. E até ro e muita competição entre as esco- em vinte países da região referentes ao ração e o Desenvolvimento Econômi- mesmo economistas que só pensam las. Ou seja, mais mercado, mais “li- período de 1998 a 2015. Com esse ins- co (OCDE), que consideram apenas o em lucros e dividendos reforçam o pa- vre” barganha entre pais e escolas. E, trumento, a Clade procura dotar os valor gasto com estudantes incluídos pel do ensino como fator de desenvol- mais uma vez, o Chile é o grande timo- segmentos da sociedade civil que lu- no sistema escolar. A Clade, por sua vimento econômico e aumento da ren- neiro, por meio do sistema de “vou- tam por uma escola pública de quali- vez, considera todas as pessoas matri- da. Em outras palavras, para estes chers”, em que, em tese, a família esco- dade de uma ferramenta útil de reivin- culadas na escola (pré-escola, ensino últimos, com base na Teoria do Capital lhe a escola em que vai matricular seu dicação e pressão política junto aos fundamental e ensino médio) e tam- Humano,1 a educação é um investi- filho ou filha. É importante lembrar governos nacionais com base em indi- bém aquelas da faixa etária correspon- mento como qualquer outro, que deve que todas essas reformas educacio- cadores concretos sobre o financia- dente que estão fora do sistema educa- ser realizado caso haja a possibilidade nais foram colocadas em prática em mento da educação. A Clade é uma re- tivo. A terceira dimensão aborda a de retorno. plena ditadura de Augusto Pinochet e de plural de organizações da sociedade equidade no acesso escolar, observan- Nessa perspectiva, ela deixa de ser até hoje o regime que lhe seguiu tenta civil, com presença em dezesseis paí- do-se em particular a diferença entre um direito universal, a ser assegurado lidar com suas consequências, como o ses da América Latina e do Caribe, que as taxas de acesso à escola do quintil pelo Estado, e passa a ser entendida aumento da desigualdade no acesso à tem como missão defender o direito de renda mais alta e do quintil de ren- como um serviço, mais uma mercado- educação e a incapacidade das famí- humano a uma educação transforma- da mais baixa da população de 13 a 19 ria a ser regulada pelo “deus mercado”. lias de pagar o financiamento estu- dora pública, laica e gratuita para to- anos de idade em cada país. Essa di- E aqui começam os problemas: em um dantil no ensino superior. Aliás, o das e todos, durante toda a vida e como mensão traça as desigualdades histó- mundo em que o setor financeiro am- mesmo acontece nos Estados Unidos, responsabilidade do Estado. ricas que operam nos sistemas públi- plia seu poder na definição das políti- onde se vive uma “bolha” de inadim- cos de educação no que diz respeito ao cas públicas, a visão da educação co- plência. Já o Brasil caminha celere- acesso escolar para jovens de famílias mo um investimento econômico passa mente nessa direção com o Fundo de com diferentes níveis de renda. a ser hegemônica. Segundo essa abor- Financiamento Estudantil (Fies), cuja O custo do Fies Além de apresentar o valor dos in- dagem, quando muito, deve-se garan- inadimplência supera os 50% e cujo aos cofres públicos dicadores, o sistema de monitoramen- tir a gratuidade nos anos iniciais do custo aos cofres públicos é superior a é superior a tudo o to mostra, para cada país, o quanto ele ensino fundamental; para os anos se- tudo o que se gasta com a folha de pa- se distancia de um parâmetro de refe- guintes, em especial na educação su- gamento das universidades federais.3 que se gasta com rência considerado adequado. Assim, perior, propõe-se a cobrança de men- Outra característica interessante é a folha de pagamento para o componente do gasto público salidades e, no caso daqueles que não que todas essas teorias, que trazem re- das universidades em educação em relação à despesa to- podem pagar, a receita é o financia- ceitas de mercado para a educação, se federais tal dos Estados, o parâmetro utilizado mento estudantil, como acontece no originam em países ricos, onde, curio- é de 20%, valor estabelecido no Marco Chile, onde não existe ensino superior samente, não fazem muito sucesso. de Ação para a Educação 20304 e acor- público gratuito. Aliás, esse princípio Nesses locais, a gratuidade do ensino é dado entre os Estados da região na Re- já constava na Constituição Federal a regra e os valores gastos por estudan- As informações do Sistema de Mo- união Regional de Ministros da Edu- brasileira de 1967, da ditadura militar, te no sistema público são muito supe- nitoramento podem ser consultadas cação da América Latina e do Caribe quando tal abordagem econômica co- riores àqueles praticados nos países de maneira individual para cada país que aconteceu em Lima, Peru, em mandava o país. com menos recursos, ou remediados, ou de modo comparativo para toda a 2014. Nessa mesma reunião, os Esta- Outro ponto de honra nesse tipo de como o Brasil. Aqui, seus discípulos lo- região e estão organizadas em três di- dos da região definiram como meta al- abordagem despontou nos anos FHC e cais, com enorme espaço na mídia, mensões de análise: esforço financei- cançar um gasto público de 6% do PIB agora retoma com força redobrada na sempre afirmando que o país gasta o ro público, disponibilidade de recur- em educação. Portanto, para a dimen- gestão Temer-Meirelles: é o postulado suficiente na rede pública de educação sos por pessoa em idade escolar e são esforço financeiro público, os parâ- de que mais recursos (melhores salá- básica, não se envergonham em matri- equidade no acesso escolar. metros são 20% do gasto público total rios aos profissionais da educação, cular seus filhos em escolas particula- A primeira dimensão (esforço fi- e 6% do PIB. Já para a dimensão dispo- equipamentos, redução no número de res, cujas mensalidades superam R$ 4 nanceiro público) refere-se à quantida- nibilidade de recursos, o parâmetro estudantes por turma etc.) não fazem mil, um valor dez vezes superior ao de total de recursos que cada Estado utilizado foi de US$ 7.221,60 anuais diferença na qualidade do ensino.2 E gasto médio da rede pública de ensino. destina ao sistema educativo público, por pessoa em idade escolar, que é o “qualidade de ensino” para essa turma Para jogar luz nesse campo, a Campa- como parte do orçamento nacional to- valor médio investido por estudante 8 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 pela metade dos países da OCDE com o valor desse PIB é pequeno quando menor PIB por habitante.5 Por fim, pa- comparado à sua população e, princi- ra a dimensão equidade no acesso esco- palmente, quando confrontado com lar, o parâmetro seria uma diferença seus desafios educacionais. E é nesse igual a zero entre os níveis de acesso aspecto que a situação se configura escolar dos quintis de jovens de 13 a 19 dramática para os países da região, co- anos, com maiores e menores recursos mo mostra o Gráfico 3. Este apresenta da população urbana (os detalhes me- o valor disponível por criança ou jo- todológicos de cada uma das dimen- vem em faixa de escolarização (pré-es- sões do sistema de monitoramento es- cola, ensino fundamental e ensino tão explicados no site). médio) medido em dólares PPP (Poder Nos gráficos 1, 2 e 3 encontramos de Paridade de Compra, na sigla em in- uma visão geral dos indicadores rela- glês), um indicador que busca tornar cionados ao esforço dos países e aos comparável os gastos nos diferentes recursos disponíveis por pessoa em países. idade escolar. Por limitação de espaço Lembrando que para esse indicador não será discutida a dimensão equi- o valor desejável adotado pela Clade é dade, mas as informações encon- de US$ 7.221,60 por criança ou jovem tram-se no site. em faixa de escolarização, percebe-se o O Gráfico 1 apresenta quanto o quão distante os países da região estão gasto público em educação representa do valor gasto por estudante dos países Obs.: Maior valor entre 2013 e 2015, com exceção dos seguintes países, em que se usou o dado mais recente da despesa total dos governos. Consta- com menor renda per capita da OCDE. disponível: Venezuela (2009), Cuba e Nicarágua (2010), Uruguai (2011) e República Dominicana (2012). ta-se que apenas seis países atingem o Apenas Costa Rica e Chile estão ligeira- parâmetro dos 20% do gasto público mente acima da metade do valor de re- total como investimento em educação ferência, e doze países estão abaixo de (Guatemala, Costa Rica, Paraguai, Ni- um terço desse parâmetro. No Brasil, é carágua, Venezuela e Chile), ficando a comum ouvir de diferentes governos Guatemala com uma participação de que o país gasta em educação um per- 24,1%, em uma melhor situação, e o centual do PIB equivalente ao dos paí- Equador, no polo extremo, com 12,8%. ses ricos, o que é verdade, mas, quando O Brasil, com 16%, situa-se 20% abaixo se analisa o recurso disponível, infor- da meta estabelecida. mação que de fato importa, constata- Contudo, de pouco adianta um -se um valor inferior à metade daquele grande comprometimento do gasto disponível nos países com menos re- público total com a educação se o país cursos da OCDE. Por isso, é fundamen- apresenta uma carga tributária baixa tal, nas análises comparativas, consi- em relação ao PIB. Por isso, no Gráfico derar o conjunto dos três indicadores, 2, analisa-se quanto esse gasto público ressaltando-se que aquele que real- em educação representa do PIB de ca- mente impacta no dia a dia das escolas da país. E aqui o exemplo da Guatema- é o recurso disponível (Gráfico 3). Fonte dos gráficos: Sistema de Monitoramento do Financiamento do Direito Humano à Educação na América Latina e Caribe. la volta a ser interessante, pois, muito Os dados apresentados mostram a embora esse país destine 24,1% de sua importância do tamanho da econo- despesa total para a educação pública, mia, medida em especial por meio de esse esforço representa apenas 2,96% seu PIB por habitante, para a garantia do PIB, ou seja, menos da metade dos de recursos adequados para suas polí- Obs.: Maior valor entre 2013 e 2015, com exceção dos seguintes países, em que se usou o dado mais recente 6% do PIB, que são o valor de referên- ticas públicas. Por exemplo, a conside- disponível: Venezuela (2009), Cuba e Nicarágua (2010), Uruguai (2011) e República Dominicana (2012). cia. Apenas cinco países (Cuba, Bolí- rada baixa carga tributária de 26% do via, Costa Rica, Venezuela e Brasil) PIB dos Estados Unidos propicia aos atingem essa meta, ficando Cuba na governos cerca de US$ PPP 14,5 mil melhor posição. por habitante; já a carga tributária de Ainda sobre o Gráfico 2, chama 32% do PIB no Brasil, considerada alta atenção o fato de dez países não atingi- pelos economistas neoliberais, signifi- rem 5% do PIB e de dois deles não atin- ca apenas US$ PPP 5 mil por habitante. girem nem 3% do PIB aplicados em Fica evidente, assim, o mal que fazem, educação pública (Guatemala e Repú- aos países da região, as políticas reces- blica Dominicana). Esse indicador sivas que estão sendo colocadas em mostra a importância da existência de prática em vários deles. No caso do sistemas tributários que permitam aos Brasil, retroagiu-se em 2016 ao PIB por Estados dispor de recursos para a apli- habitante de 2008; em outras palavras, cação de políticas públicas. Países co- nove anos de crescimento perdidos. mo Dinamarca, Finlândia e Suécia, O sistema de monitoramento lan- que conseguiram construir um Estado çado pela Clade também permite ana- de bem-estar social, possuem uma lisar a evolução das diferentes dimen- carga tributária acima de 40% do PIB. sões para o conjunto da região. Um Já a maioria dos países da América La- fato bastante positivo, por exemplo, é tina e do Caribe apresenta uma carga que Argentina, Brasil, Chile, Costa Ri- abaixo de 20% do PIB. O Brasil fica em ca, México, Uruguai e Venezuela au- uma faixa intermediária, com uma mentaram significativamente a dispo- carga tributária de 32% do PIB.6 nibilidade de recursos por pessoa em Finalmente, não basta um país idade escolar desde 1998. Nos casos de Obs.: Maior valor em US$ PPP entre 2013 e 2015, com exceção dos seguintes países, em que se usou o dado destinar à educação pública um per- Argentina e Brasil, surpreende que os mais recente disponível: Venezuela (2009), Nicarágua (2010), Uruguai (2011) e República Dominicana (2012). centual adequado em relação ao PIB se montantes disponíveis por pessoa em Não há informação para Cuba. FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 9 idade escolar praticamente duplica- Temer-Meirelles, por meio da Emenda ram entre o fim dos anos 1990 e os dois Constitucional n. 95/2016, que congela últimos triênios disponíveis (2010- os gastos primários do governo federal 2012 e 2013-2015 para a Argentina; por vinte anos, jogou por terra qual- 2007-2009 e 2010-2012 para o Brasil). quer possibilidade de efetivação do No entanto, como já comentado, atual PNE, uma vez que as despesas mesmo os países que apresentaram os com educação, assim como com as de- maiores investimentos no período es- mais políticas sociais, não terão ne- tudado ainda estão longe de atingir o nhum crescimento real, podendo in- valor de referência. O país mais bem clusive sofrer redução. Além disso, colocado é a Costa Rica, que dedicou estimulados pelo governo federal, es- US$ 3.860,11 para cada pessoa em ida- tados e municípios estão colocando de escolar, por ano, no triênio 2013- em prática suas versões locais da EC 2015, valor que é praticamente a meta- 95, particularmente porque a aderên- de da referência. cia a suas normas draconianas é con- dição para a rolagem de suas dívidas UM RÁPIDO OLHAR SOBRE O BRASIL junto à União. Essas medidas acabam O Brasil, como se pode ver no item com a vigência do artigo 212 da Cons- anterior, não faz bonito no que se refe- Fonte: Autor, com base em dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Deflator IPCA. tituição Federal, que estabelece a vin- re ao esforço no financiamento da culação de uma parcela da receita de educação. Um resultado que sur- TABELA 1. EVOLUÇÃO DOS VALORES DOS RECURSOS DO FIES (R$ BI CORRENTES) impostos para a manutenção e o de- preende, considerando que já estamos senvolvimento do ensino. Somente a no segundo Plano Nacional de Educa- Fies (R$ bi correntes) 2011 2012 2013 2014 2015 2016 ditadura de Getúlio Vargas e a militar ção (PNE) aprovado no período pós- Despesas financeiras 1,8 4,5 7,6 13,7 14 19,3 fizeram o mesmo. -ditadura. O primeiro deles (Lei n. Aportes ao FGEDUC 0 0,1 0 1,3 0,5 0,6 Para os milhões de pessoas jovens 10.172/2001) determinava a ampliação e adultas que têm o direito constitu- Despesas administrativas 0,05 0,2 0,1 0,07 0,7 1 dos gastos públicos no ensino público cional à educação pública de qualida- para 7% do PIB. Contudo, o veto do Subsídio implícito 0 0,5 0,6 1,8 6,7 11,4 de e veem seu futuro negado não há presidente Fernando Henrique Cardo- Custo Total 1,9 5,3 8,3 16,9 21,9 32,3 outra saída que não passe pela revoga- so inviabilizou o cumprimento dessa Fonte: Diagnóstico Fies. Ministério da Fazenda, jun. 2017. ção da EC 95 e pela luta contra a reces- meta. Já o atual PNE (Lei n. 13.005/2014) são econômica. Luta que é também da estabelece um compromisso ainda população brasileira que atuou pela maior com o financiamento da educa- aprovação do PNE 2014-2024 e agora ção: atingir 7% do PIB até 2017 e 10% vê esse projeto de mudança sustentá- em 2024 (meta 20 do PNE). Além disso, vel da educação ser destruído por um determinava a criação, até 2016, do governo que não tem legitimidade e Custo Aluno Qualidade inicial (CAQi), está comprometido com as forças um parâmetro de financiamento que mais retrógradas do país. Mas 2018 es- visa assegurar condições básicas de fi- tá só no começo. nanciamento para todas as escolas públicas do Brasil.7 Se não houve veto à *José Marcelino de Rezende Pinto é pro- meta de financiamento do atual PNE, fessor da Faculdade de Filosofia, Ciências e as políticas recessivas do início do se- Letras de Ribeirão Preto da Universidade de gundo governo Dilma, acentuadas ao São Paulo (USP) e vice-diretor da Campanha extremo pela gestão Temer-Meirelles, Latino-Americana pelo Direito à Educação têm inviabilizado o avanço esperado (Clade) Brasil. no financiamento educativo público. O Gráfico 4 mostra a evolução, em termos reais, das despesas totais da 1 Theodore W. Schultz, O valor econômico da edu- cação, trad. Paulo Sérgio Werneck, Zahar, Rio de União com a manutenção e o desen- Janeiro, 1967; e Theodore W. Schultz, O capital volvimento do ensino, assim como os humano: investimentos em educação e pesquisa, gastos com a educação superior. trad. Marco Aurélio de Moura Matos, Zahar, Rio de Janeiro, 1973. Os dados indicam que, desde 2012, Fonte: Autor, com base nos dados consolidados divulgados pela Secretaria do Tesouro Nacional. 2 Nigel Brooke e José Francisco Soares (orgs.), Pes- a despesa total com educação vem quisa em eficácia escolar: origem e trajetórias, caindo em termos reais e, no caso da UFMG, Belo Horizonte, 2008; e José Marcelino Rezende Pinto, “Dinheiro traz felicidade? A relação educação superior, essa queda aconte- sídios, uma vez que o governo federal uma queda justamente quando as ma- entre insumos e qualidade na educação”, Archivos ce desde 2014. No total, de 2012 a 2016 obtém esses recursos a juros de merca- trículas de estudantes que se benefi- Analíticos de Políticas Educativas/Education Poli- houve redução de R$ 14,2 bilhões, do e cobra de estudantes em valores re- ciam do fundo deveriam estar cres- cy Analysis Archives, v.22, p.19, 2014. 3 Ministério da Fazenda, “Fundo de financiamento atingindo mais a educação básica. No duzidos. Impressiona o total de recur- cendo em função das metas do PNE estudantil: ausência de sustentabilidade e suas caso da educação superior, a queda foi sos mobilizados pelo Fies; em 2016, este 2014-2024, que implicam a ampliação causas”, jun. 2017. menor, mas seus efeitos são igualmen- já superou o gasto da União com manu- da oferta em todas as etapas e modali- 4 Unesco, “Educação 2030: Declaração de Incheon e Marco de Ação – Rumo a uma educação de qua- te graves, pois a rede federal se encon- tenção e desenvolvimento do ensino na dades, assim como a melhoria nas lidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo tra em um momento de crescimento. educação superior. De forma análoga, a condições de oferta. Ou seja, são mais da vida para todos”, 2016. Por outro lado, como indica a Tabela 1, partir de 2014 começou-se a reduzir os estudantes, para um bolo total de re- 5 Os dezessete países de menor PIB per capita da OCDE, em 2010, são: França, Itália, Nova Zelân- no mesmo período assistiu-se a um recursos do Fundo de Manutenção e cursos em queda. Na prática, estados e dia, Espanha, Coreia do Sul, Israel, Grécia, Eslovê- crescimento impressionante dos re- Desenvolvimento da Educação Básica e municípios não estão ampliando suas nia, Portugal, Eslováquia, República Tcheca, Hun- cursos públicos destinados às univer- de Valorização dos Profissionais da matrículas e, para reduzir custos, fe- gria, Estônia, Polônia, Chile, México e Turquia. 6 Receita Federal do Brasil, Carga Tributária no Bra- sidades privadas por meio do Fies. Educação (Fundeb), principal fonte de cham-se escolas e aumenta-se o nú- sil, Brasília, set. 2016. Os dados apontam para a mobiliza- financiamento da educação básica, co- mero de estudantes por turma. 7 Para conhecer mais sobre o CAQi, visite a página ção de recursos públicos ao sistema pri- mo mostra o Gráfico 5. Não bastassem os efeitos predató- da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, idealizadora desse mecanismo, que inverte a lógi- vado de educação superior, seja por O que preocupa em relação ao Fun- rios da recessão econômica para o fi- ca do financiamento das políticas educacionais no despesas diretas, seja com base em sub- deb é que seus recursos apresentam nanciamento da educação, o governo Brasil: <www.custoalunoqualidade.org.br>. 10 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 OS DESAFIOS ESTRATÉGICOS DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA Governar sob bombas... midiáticas A ruptura com seu sucessor e antigo colaborador Lenín Moreno fez Rafael Correa, presidente equatoriano entre 2007 e 2017, retomar o combate. Para além desse enfrentamento singular, ele testemunha conquistas e refluxos da esquerda latino-americana, e revela até que ponto a grande mídia se tornou uma arma a serviço dos partidos conservadores POR RAFAEL CORREA* epois da longa noite neoliberal D dos anos 1990 e a partir da elei- ção de Hugo Chávez na Vene- zuela em 1998, os bastiões da direita latino-americana ruíram como um castelo de cartas. No apogeu do fe- nômeno, em 2009, oito de dez países da América do Sul eram governados pela esquerda. Sem mencionar El Sal- vador, Nicarágua, Honduras, Repúbli- ca Dominicana e Guatemala. Neste úl- timo, assim como no Paraguai, era a primeira vez que líderes progressistas chegavam ao poder. Os primeiros anos do século XXI foram marcados por grandes avanços econômicos, sociais e políticos, em um contexto de soberania, dignidade e autonomia geopolítica. Essas con- quistas foram facilitadas pela alta dos preços das matérias-primas, mas ain- da é necessário que essas riquezas se- jam investidas no “bem viver” de nos- © Jamil Bittar sos povos (ler reportagem na pág. 12).1 A América, assim, não conheceu uma época de mudança, mas uma mudança de época. Para os poderes de Costa do Sauípe, dezembro de 2008: à época, oito dos dez presidentes sul-americanos eram de esquerda: Rafael Correa, outrora e para os Estados hegemôni- Hugo Chávez, Cristina Kirchner, Evo Morales, Luiz Inácio Lula da Silva, Michelle Bachelet, Fernando Lugo e Tabaré Vázquez cos, tornou-se urgente acabar com as dinâmicas que anunciavam a segunda etapa: a da independência regional. Se excluirmos o golpe de Estado nômico da esquerda teria fracassado; cutivos, perda equivalente a 10% de moto de quase 8 pontos na escala (frustrado) contra Chávez em 2002, as os governos progressistas teriam de- nossa produção anual. Em 2016, o valor Richter, com centenas de vítimas. A tentativas de desestabilização come- monstrado sua falta de moral. de nossas exportações alcançou ape- catástrofe e suas 4 mil réplicas provo- çam no fim dos anos 2000: Bolívia Desde o fim de 2014, a região em nas 64% do montante registrado dois caram uma queda de 0,7% no cresci- (2008), Honduras (2009), Equador seu conjunto sofre o contragolpe de anos antes. No primeiro trimestre des- mento e acarretaram perdas equiva- (2010) e Paraguai (2012).2 A partir de um contexto econômico internacio- se mesmo ano, o preço do barril de pe- lentes a 3% do PIB. Por essas razões 2014, essas forças antes dispersas se nal desfavorável. Apesar da recessão, tróleo equatoriano baixou para US$ 20, passamos de um crescimento vigoro- aproveitaram da reviravolta do ciclo as dificuldades específicas do Brasil e cifra que não permite cobrir os custos so de 4% em 2014 a somente 0,2% em econômico para operar uma restaura- da Venezuela ilustrariam a falência de produção. Ao mesmo tempo, o dólar 2015, e tivemos um recuo de 1,5% em ção conservadora com apoio interna- do socialismo. Mas o Uruguai, go- passou de 0,734 euro para 0,948 euro 2016. Contudo, apesar de dificuldades cional, financiamento estrangeiro etc. vernado pela esquerda, não é o país entre janeiro de 2014 e dezembro de tão severas e da ausência de uma moe- A reação não conhece limites nem es- mais desenvolvido ao sul do Rio Bra- 2016, um salto de 30%, enquanto a da nacional, superamos a recessão em crúpulos: hoje, toma a forma de sufo- vo? E a Bolívia não figura entre os moeda de nossos vizinhos colombia- tempo recorde, com custos reduzidos: camento econômico na Venezuela, melhores indicadores macroeconô- nos se depreciava em mais de 70%, tor- não houve recrudescimento da pobre- golpe de Estado parlamentar no Brasil micos do planeta? nando suas exportações mais compe- za nem aumento das desigualdades – e ainda judicialização da política, com O Equador, de seu lado, enfrentou o titivas. Manchete: o fluxo de capital se proeza inédita na América Latina. as ameaças contra os ex-presidentes que chamamos de “a tempestade per- inverteu entre o Estado e as empresas No Equador, as políticas heterodo- Luiz Inácio Lula da Silva e Cristina Fer- feita”: a queda de nossas exportações públicas petroleiras; o governo preci- xas demonstraram, assim, sua eficácia nández de Kirchner (Argentina), mas foi agravada por uma forte valorização sou investir US$ 1,6 bilhão nessas em- tanto em período de expansão quanto igualmente contra o vice-presidente do dólar, moeda que utilizamos desde presas para salvá-las da falência. Sem de recessão. Entre 2007 e 2017, a eco- Jorge Glas, no Equador.3 De modo que 2000. Os choques externos que nos de- contar os litígios perdidos diante dos nomia do país mais que dobrou, gra- agora restam apenas três governos sestabilizaram em 2015-2016 não tive- tribunais de arbitragem que nos obri- ças a um crescimento superior ao da progressistas na América do Sul: na Ve- ram precedente na história contempo- garam a pagar mais de 1% do PIB às região. Os menos favorecidos tiveram nezuela, na Bolívia e no Uruguai. rânea do país. Pela primeira vez em empresas Oxy e Chevron.4 o maior aumento da renda da história A estratégia reacionária repousa trinta anos experimentamos queda E para coroar, em 16 de abril de do país, e 2 milhões de pessoas saíram sobre dois argumentos: o modelo eco- das exportações por dois anos conse- 2016, a zona costeira sofreu um terre- da linha de pobreza. FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 11 O PRETEXTO DA CORRUPÇÃO Falam em ausência de regulação, lhões), muitos pobres e grande parte “desafio estratégico” da esquerda la- Essas análises econômicas, porém, permissividade, corrupção sistemáti- da classe média se manifestaram con- tino-americana consiste talvez em se contam pouco para a população. As ca. Mas que controles autorizam con- tra um dispositivo do qual eles pode- lembrar das contradições e dos erros pessoas percebem principalmente tas secretas em paraísos fiscais, por riam se beneficiar. que fazem parte do processo político: que, nos últimos anos, seus negócios exemplo? No Equador, os controles são eles não podem conseguir que baixe- não vão tão bem, seus filhos têm difi- estritos: é preciso declarar a origem de mos a guarda. culdade de encontrar trabalho e os sa- qualquer depósito superior a US$ 10 lários não aumentam no mesmo ritmo mil – obrigação que os paraísos fiscais A imprensa *Rafael Correa é ex-presidente da Repúbli- do custo de vida – sentimento do qual não impõem... O Equador é o primeiro às vezes desempenha ca do Equador (2007-2017). se aproveita a mídia, que prefere a ma- país do mundo a instaurar uma lei um papel mais nipulação à informação. Uma parte proibindo funcionários públicos de es- dos meios de comunicação apresenta tabelecer qualquer tipo de interação importante que essa recessão continental como o re- privada com os paraísos fiscais. os partidos políticos 1 No campo da saúde, por exemplo, as despesas do Estado equatoriano passaram de 0,6% do PIB em sultado de nossas opções políticas, e Para a imprensa, não há dúvida: a durante os processos 2000 para 7,5% em 2013. (Todas as notas são da não como um fenômeno ligado às pró- corrupção nasce no coração do Esta- eleitorais redação.) 2 Ler Maurice Lemoine, “América Latina: ‘golpes prias estruturas de nossa economia. do, do sistema público. Mas a realida- light’ e desestabilização moderna”, Le Monde Di- Outras sugerem, ao contrário, que po- de mostra que ela provém em grande plomatique Brasil, ago. 2014. deríamos ter empreendido transfor- medida do setor privado, como de- 3 Vice-presidente de Rafael Correa a partir de 2013, Jorge Glas ocupou as mesmas funções sob a pre- mações mais profundas e que dessa monstra o escândalo da Odebrecht6 e Nossas democracias deveriam ser sidência de Lenín Moreno, eleito em abril de 2017 forma não teríamos assinado nossa este fato: há até pouco tempo, as em- rebatizadas como “democracias mi- com o apoio do chefe de Estado que deixava o po- própria condenação. Enquanto repro- presas alemãs tinham isenção fiscal diatizadas”. A imprensa às vezes de- der. Glas foi parar em 2 de outubro de 2017 no âmbito de uma investigação ligada ao escândalo vam os governos de direita por não te- sobre os depósitos ilícitos destinados sempenha um papel mais importante de corrupção implicando a empresa Odebrecht. rem feito nada, fustigam-nos por não ao nosso país. que os partidos políticos durante os Os apoiadores de Correa analisaram o episódio termos feito tudo. Sem dúvida, a esquerda também processos eleitorais: convertida em como uma ilustração do conflito político que opu- nha o ex-presidente a seu sucessor, o primeiro acu- sofre o contragolpe paradoxal de suas principal força de oposição enquanto sando o segundo de romper com a herança que conquistas. Segundo a Comissão Eco- a esquerda governa, ela encarna o po- ele havia se comprometido a defender. nômica das Nações Unidas para a der dos conservadores e do setor priva- 4 Ler Hernando Calvo Ospina, “A Chevron polui, mas não quer pagar suas multas no Equador”, Le Não se trata mais América Latina e o Caribe (Cepalc), do. A imprensa transformou o estado Monde Diplomatique Brasil, mar. 2014. de condenar com base cerca de 94 milhões de pessoas saíram de direito em estado de opinião. 5 Ler Laurent Delcourt, “Movimento contra a corrup- da pobreza para integrar a classe mé- ção ou golpe de Estado disfarçado?”, Le Monde em provas que eles dia durante a última década, em gran- PODEROSOS INIMIGOS Diplomatique Brasil, maio 2016. teriam identificado, de parte graças às políticas dos gover- A esquerda também enfrentou o 6 Ler Anne Vigna, “As ramificações do escândalo Odebrecht”, Le Monde Diplomatique Brasil, set. e sim de identificar nos de esquerda. esgotamento do exercício de poder, 2017. provas que possam Contudo, entre os 37,5 milhões de mesmo que sua passagem tenha sido pessoas que o Partido dos Trabalhado- coroada de sucessos. Nenhum gover- condená-lo res (PT) tirou da pobreza, poucos se no pode satisfazer a todos, ainda mais mobilizaram para apoiar a presidenta quando a dívida social é tão aguda co- Dilma Rousseff quando esta estava mo no caso do Equador. Recuperar a UM FILME DE O segundo eixo da crítica aos go- ameaçada de destituição. É possível voz dos mais humildes, dar oportuni- OL I V I E R PE Y ON vernos progressistas se dá no plano conhecer a prosperidade objetiva e dades aos mais pobres, direitos aos ESTRELANDO moral. O tema da corrupção fornece a ainda assim se sentir em um estado de trabalhadores, dignidade aos campo- I SA B E L L E C A R R É ferramenta eficaz para fragilizar os pobreza subjetivo: apesar das melho- neses, tirar poder dos bancos, da mí- RAMZY BEDIA processos nacionais populares. Evi- rias no nível de vida, as pessoas conti- dia e dos velhos partidos: tudo isso M A R Í A D U PL Á A dentemente, o Brasil5 aparece como nuam se sentindo pobres, não em rela- nos custou poderosos inimigos, que “Um dilema moral ilmado com sutileza. Uma interpretação sensível e delicada dos atores.” exemplo, mas um fenômeno similar se ção ao que possuem (ou em relação ao nos acusaram de “polarizar” o país. Studio Ciné Live observa atualmente no Equador. que possuíam antes), mas em relação Eles esquecem que alcançar metade Tudo começa por uma acusação ao que aspiram. do que realizamos teria causado uma “Uma viagem existencial tratada com uma encenação suave, iluminada mais espetaculosa que fundamenta- Não raro, as exigências da nova guerra civil há algumas décadas. pela luz da América Latina.” da. Depois aparecem os bombardeios classe média se revelam não apenas A esquerda que se contenta em re- Télérama midiáticos, que privam a vítima esco- distintas das dos pobres: muitas vezes presentar uma pequena minoria dos lhida de seus apoios políticos. A culpa- são antagônicas, alimentadas pelo eleitores ignora o que implica gover- bilidade presumida do dirigente per- canto da sereia da direita, pelos meios nar: responder às tempestades eco- seguido passa então para segundo de comunicação e por estilos de vida nômicas, submeter-se às traições dos plano entre os juízes, suscetíveis à imaginados em Nova York. A esquerda que sucumbem à tentação do poder pressão da direita e da mídia: não se sempre lutou contra a corrente, pelo ou do capital etc. Não há dúvida de trata mais de, para eles, condenar com menos no mundo ocidental. Lutara que um revolucionário não tem o di- base em provas que eles teriam identi- ela contra a natureza humana? reito de perder a batalha moral. Um ficado, e sim de identificar provas que O problema se complica se tam- governo honesto não é aquele que possam condená-lo. bém forem levados em conta os esfor- desconhece casos de corrupção, e Quem pode se opor à luta contra a ços da direita para forjar uma cultura sim aquele que luta para erradicá-la. corrupção? Esse combate é uma de hegemônica – no sentido gramsciano Parte dos militantes sofre ao não per- nossas primeiras vitórias no Equador: –, de modo que os desejos da maioria ceber essa diferença e se deixa afetar ao longo dos dez últimos anos, erradi- servem aos interesses da direita. Um pela desmoralização que satisfaz os camos a corrupção institucionalizada exemplo dramático: a rejeição da lei adversários. 8 DE FEVEREIRO que havíamos herdado. Mas, para a di- sobre sucessão e herança que tenta- É preciso sempre demonstrar au- NOS CINEMAS reita, a “luta contra a corrupção” re- mos instaurar no Equador. Enquanto tocrítica. Mas também precisamos presenta hábitos novos de uma mesma apenas três em cada mil equatorianos ter confiança em nós mesmos. Os go- V I R GI N I A M É N D E Z D Y L A N C ORT E S preocupação: seja contra o narcotráfi- recebem herança e a incidência do no- vernos progressistas sofrem ataques LUCAS BARREIRO co nos anos 1990, seja no caso da guer- vo imposto se daria apenas pelos mon- constantes das elites e dos meios de ra contra o comunismo nos anos 1970, tantes mais importantes (menos de comunicação, que se baseiam no me- DISTRIBUIÇÃO APOIO trata-se sempre de, na realidade, orga- 0,5% das sucessões, ou 172 pessoas por nor dos equívocos para nos enfra- nizar uma ofensiva política. ano, em uma população de 16 mi- quecer. Por essa razão, o principal 12 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 CONQUISTAS E REFLUXOS No Equador, a difícil construção de um serviço público de saúde Nos últimos dez anos, o governo equatoriano vem tentando restaurar o poder do Estado, em particular para garantir a todos os cidadãos acesso aos cuidados médicos – uma empreitada bastante auspiciosa, mas por vezes um tanto quanto inábil POR LOÏC RAMIREZ*, ENVIADO ESPECIAL “S igchos nos dá boas-vindas”, ex- clama o doutor César Molina apontando o dedo para o pico nevado que se revela ao longe sob a luz do sol. A subida demoraria uma hora, entre montanhas e encos- tas, até nosso veículo chegar ao hospi- tal tinindo de novo. Desde sua abertu- ra, em janeiro de 2017, cerca de cem pessoas estão trabalhando nesse esta- belecimento de arquitetura sóbria, minimalista, moderna. Na fachada, fi- gura o símbolo nacional instaurado pelo governo do ex-presidente Rafael Correa (2007-2017): um círculo cromá- tico, ou a “marca do país”. “Antes da eleição de Rafael Correa, mais de um terço do orçamento nacio- nal era destinado diretamente a ONGs”, contava Carlos Jativa em 2010, quando © Rafael Correa ocupava o cargo de embaixador do Equador em Paris. O presidente e seu movimento político, Alianza País, pro- metiam uma virada de 180° e o restabe- lecimento do papel “fundamental” do Estado. As obras não faltaram, mas pa- recia um jogo de pega-varetas: quando se manipulavam algumas peças, ou- tras podiam colapsar. Por exemplo, no campo da saúde. “Durante os trinta anos que prece- deram a eleição de Correa, nenhum hospital público foi construído”, ressal- ta Maria Verónica Espinosa, ministra da blica, coexistem quatro entidades: o carência antes de admitir um pacien- mista José Martinez. Incapaz de aten- Saúde. “Isso ilustra a importância que Ministério de Saúde Pública (MSP), o te. Sem possibilidade de negociação. der a essa demanda, o organismo pre- era dada à saúde pública neste país”, Instituto Equatoriano de Segurança Desde 2008, a Constituição impõe a cisa transferir pacientes a clínicas, completa. A Constituição de 2008 mar- Social (Iess), o Instituto de Segurança busca de uma solução para essa difi- hospitais, laboratórios e profissionais ca uma ruptura: o texto afirma a res- Social da Polícia Nacional (Isspol) e o culdade. Graças às receitas ligadas ao privados. Entre 2008 e 2015, o instituto ponsabilidade do Estado de assegurar o Instituto de Segurança Social das For- setor petroleiro, o novo poder instaura firmou 846 contratos com prestadores acesso gratuito a cuidados e medica- ças Armadas (Issfa). “São quatro sub- uma cobertura de saúde universal e de serviço, por um montante de US$ mentos. E, quando se fala em dever, sistemas no setor público, aos quais obrigatória, assim como uma rede pú- 3,2 bilhões.3 “O Iess se tornou o cliente também se fala em recursos: entre convém somar o setor privado, as blica integral de saúde que assegura a mais rentável do setor privado”, con- 2008 e 2016, o governo investiu mais de ONGs. E cada um tem suas próprias admissão de pacientes e o reembolso clui Martinez. US$ 15 bilhões (a moeda utilizada no normas, regras e limitações”, continua de gastos médicos, independentemen- Trata-se de um problema de fato? país desde 2000), multiplicando por Espinosa. Imaginemos um cidadão te do instituto de saúde pública ao qual “Para uma pessoa que descobre o cinco a média anual de gastos de saúde equatoriano médio antes da eleição de o cidadão se apresente. Não contente acesso aos cuidados, qual é a diferença no período de 2000 a 2006. Já o número Correa, em 2006. Por falta de recursos, em tornar a afiliação ao Iess obrigató- se eles são oferecidos pelo Estado ou de funcionários atuando no ministério ele desiste de se filiar ao Iess (financia- ria para os assalariados (e voluntária pelo setor privado?”, questiona-se passou de 11.201 para mais de 33 mil en- do por um sistema opcional de cotas para os trabalhadores informais),2 dois Juan Cuvi, diretor da Fundação Do- tre 2008 e 2015, um salto acompanhado patronais e salariais). De repente, anos depois o poder público estendeu a num. “A dificuldade é que grande par- de aumentos salariais1 (ver boxe). adoece e deve se submeter a uma ci- cobertura aos cônjuges e crianças sem te dos investimentos realizados em rurgia delicada que os hospitais do Mi- custos adicionais. “O Iess conta hoje saúde nos últimos dez anos terminou COBERTURA SOCIAL UNIVERSAL nistério da Saúde não realizam. Sem com mais de 3,5 milhões de inscritos nos bolsos do setor privado, que, em O governo de Correa, porém, her- chance: as portas dos hospitais do Iess [contra 2,5 milhões anteriormente], geral, superfatura seus serviços. Dessa dou dificuldades estruturais, como a estão fechadas para ele, pois a entida- mas deve efetivamente cobrir cerca de forma, atrasa-se o processo de tornar o segmentação do sistema. Na esfera pú- de exige um mínimo de três meses de 9 milhões de pessoas”, indica o econo- Estado capaz de responder diretamen- FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 13 te às demandas de saúde e também se o que não estava funcionando tão mal. partidárias”, desestabilizar “a paz pú- facilita a corrupção”, analisa. Pela tele- Para ilustrar sua crítica, ela conta a blica” ou “ingerir-se em políticas públi- PULSAÇÕES visão, em 2 de janeiro de 2016, Correa história do Instituto Nacional de Hi- cas”. Em 2014, a medida conduziu à ex- chamava atenção para a enorme dife- giene e Medicina Tropical Leopoldo pulsão da sulfurosa organização Esperança de vida rença entre o número de “complica- Izquieta Pérez. Em 2012, por decreto Agência dos Estados Unidos para o De- 2005: 74,2 anos ções” (com custos adicionais exorbi- presidencial, ele foi substituído pelo senvolvimento Internacional (Usaid), 2015: 75,8 anos tantes) durante cirurgias realizadas Instituto Nacional de Saúde Pública e conhecida como um dos carros-chefe no setor público e as registradas no Pesquisa (Inspi), sob controle do Mi- do intervencionismo norte-america- Mortalidade infantil privado: “Cerca de 20% nos estabeleci- nistério da Saúde. “Sem dúvida, nem no. Mas também atravancou a ação de (por mil nascidos vivos) mentos do Iess, e quantas no setor pri- tudo era perfeito no Izquieta Pérez. ONGs que o Estado neoliberal havia re- 2005: 33,3 2015: 17,6 vado? Cerca de 80%. Há algo nisso, Mas veja, um médico que exerceu 25 crutado com o convite de “entrar” para meus queridos compatriotas!”. So- anos de profissão, mesmo não sendo o campo das políticas públicas. Investimentos em saúde bressalto? A transferência de pacientes um bom médico, tem 25 anos de expe- Daí as tensões e certa desorganiza- (porcentagem do PIB) diminuiu em um quarto entre 2015 e riência.” O Instituto Izquieta Pérez ti- ção, às vezes em detrimento dos pa- 2005: 6,6 2016 (últimos números disponíveis). nha setenta profissionais com esse cientes. “Antes da chegada de Correa, 2014 (último número disponível): 9,2 Poderia passar por uma estufa on- perfil. Seu sucessor de bochechas ro- nossa colaboração com o ministério de repousariam plantas exóticas, em sadas ainda não demonstrou eficiên- funcionava melhor, estávamos mais Fonte: Comissão Econômica das Nações Uni- das para a América Latina e o Caribe (Cepal). vez de pacientes. Estendendo-se por cia. Segundo uma publicação científi- implicados na tomada de decisão”, uma superfície de 36 mil metros qua- ca da Fundação Donum, o Izquieta conta a médica Maria Elena Acosta nas drados, o hospital geral da cidade de Pérez produzia, por exemplo, um soro instalações da associação Kimirina, Puyo revela sua arquitetura particular antiofídico eficiente, enquanto atual- que trabalha com HIV e doenças se- ções, notadamente indígenas. Chug- à beira da floresta amazônica, no leste mente esse tipo de medicamento está xualmente transmissíveis. “E mais: chilán, província de Cotopaxi. O dou- equatoriano. “Abrimos em março de sendo importado da Costa Rica. eles estão centralizando tudo”, acres- tor Molina e o funcionário Segundo 2013 e dispomos de uma capacidade centa. Posição antiestatal de nossa in- Pilatasig nos conduzem pelo topo de 125 leitos”, anuncia Christian Ruiz, terlocutora? “De modo algum. Tudo enevoado de uma montanha onde re- que gere a instituição. A entonação de isso poderia ser positivo, mas essa side uma minúscula comunidade in- nosso anfitrião evoca a do presidente “A equipe de Correa reestruturação é acompanhada de dígena. Homem de pequena estatura, Correa na inauguração do estabeleci- precisou correr para uma vontade de obter resultados ime- Pilatasig é também indígena da co- mento: na ocasião, ele convidou a po- resolver os problemas diatos. Ora, nesse campo da saúde, is- munidade Guayama Grande. Traba- pulação a visitar o hospital para “sen- so é impossível. Quando uma medida lha no “desenvolvimento da intercul- tir orgulho da nova pátria”. mais visíveis e assim não funcionava imediatamente, ela turalidade no campo da saúde”. assegurar a permanência era modificada. Continuamente. Essa Ao chegarmos ao destino, somos ONGs SOB VIGILÂNCIA no poder nas eleições maneira de proceder nos impediu de acolhidos por uma velha senhora com Durante nossa visita, contudo, os seguintes” vislumbrar um trabalho de longo pra- um chapéu e rodeada de crianças. “É a serviços destinados aos bebês prema- zo com o ministério”, explica. parteira do vilarejo”, explica. Agente turos estavam comprometidos por A isso, somam-se algumas diver- de intermediação entre o ministério e uma pane no ventilador neonatal, o gências políticas. Quando pergunta- as populações indígenas da região, Pi- único disponível. A responsável, inco- Reconstruir o Estado equatoriano mos se poderia dar um exemplo de latasig fala espanhol, quéchua e vários modada por constatar o problema implicava principalmente restaurar o uma “medida considerada negativa dialetos. Seu trabalho consiste em diante de um jornalista estrangeiro, controle sobre setores dos quais ele es- que tenha sido desfeita”, nossa interlo- “desenvolver a articulação entre as pediu a transferência do pequeno pa- tava afastado. No ápice do período libe- cutora evocou o programa Estratégia técnicas modernas de medicina e os ciente a outro hospital público, a duas ral, essa retração do Estado era priori- Intersetorial de Prevenção de Gravidez saberes ancestrais das comunidades. horas dali. “Infelizmente, essas coisas dade, tanto no Equador como em outros entre Adolescentes (Enipla). Criado No caso das parteiras, entramos em acontecem em qualquer lugar”, co- lugares. Depois de organizar a incapa- em 2011, o programa se traduziu – en- contato com elas desde sua designa- menta Ruiz. Qualquer pessoa que visi- cidade de atender os pobres (com 45% tre outros elementos – pela abertura ção pela comunidade e com elas reali- tasse alguns hospitais franceses con- da população em situação de pobreza de uma linha telefônica gratuita com zamos formações sobre medidas bási- cordaria, sem hesitar. Mas o caso não é extrema em 1990), Quito apelou às nome explícito: “Falemos seriamente, cas de higiene e detecção de sinais de isolado. Para alguns observadores, ao ONGs para terceirizar a política social. a sexualidade sem mistérios”. Em no- complicação durante a gestação, para contrário, esse tipo de falha revela um O número de organizações desse tipo vembro de 2014, o presidente Correa que nesses casos possamos eventual- problema maior. passou de 104 entre 1960 e 1980 para nomeou para a direção do programa mente assumir os cuidados da pacien- Antes da eleição de Correa, o Equa- 376 nos quinze anos subsequentes.4 Mónica Hernández. Religiosa, próxi- te”. Estado centralizador? Estado erra- dor conheceu um período de extrema Essa lógica desagradava a Correa, ma ao Opus Dei, ela redefiniu a relação dicador de diferenças? “Pela primeira instabilidade política. Entre 2000 e que, jacobino de espírito, criou em das autoridades com os temas da pre- vez, a cultura indígena e suas práticas 2007, o país viu desfilar quatro presi- 2007 a Secretaria Técnica de Coopera- venção: acabou com a linha telefônica são reconhecidas e protegidas oficial- dentes, dos quais apenas dois termina- ção Internacional (Seteci), “um exem- e criou o programa Plano Família mente. E atualmente isso está inscrito ram seu mandato. “A equipe de Correa plo inédito de regulação de atividades Equador, que visa “restaurar o papel na Constituição”, responde ele. precisou correr para resolver os proble- de ONGs estrangeiras”, entusiasma-se da família”. Foi uma reviravolta em re- mas mais visíveis e assim assegurar a Gabriela Rosero, secretária de Infraes- lação às medidas anteriores, explica *Loïc Ramirez é jornalista. permanência no poder e a vitória nas trutura entre 2009 e 2016. “Tínhamos Acosta, pontuando ainda que, “aqui, eleições seguintes. Foram tomadas casos de ONGs internacionais que ter- as primeiras experiências sexuais medidas, como construir novos hospi- ceirizavam certas atividades a ONGs acontecem cedo, aos 12, 13 anos”. Na 1 “La reforma en salud en Ecuador” [A reforma da tais, que, embora tenham sido exibi- nacionais e transferiam fundos. A que época, várias associações, como a saúde no Equador], Pan American Journal of Pu- dos, ainda não dispõem de recursos eram destinados esses recursos? Era Frente Equatoriana de Defesa dos Di- blic Health, n.41, Washington, maio 2017. Disponí- materiais ou especialistas necessários quase impossível determinar. Era pre- reitos Sexuais e Reprodutivos, denun- vel em: <http://iris.paho.org>. 2 Cerca de 35% da população ativa em março de para funcionamento”, explica Ivan Ce- ciso criar um marco, instaurar formas ciaram uma política de saúde carrega- 2017. vallos, ex-chefe do serviço de cirurgia de controle”, explica. da de “visão religiosa” e longe das 3 “Los últimos 5 presidentes diagnostican al IESS” do Hospital Carlos Andrade Marin (es- Entre as ferramentas jurídicas utili- “realidades científicas”.5 [Os últimos cinco presidentes diagnosticam o Iess], El Telégrafo, Quito, 2 fev. 2016. tabelecimento do Iess), em Quito. zadas, o decreto de 16 de junho de 2013 4 “Las ONGs y el modelo neoliberal” [As ONGs e o Pediatra no setor privado, Beatriz cristaliza as tensões. Ele enuncia uma AUTONOMIA DOS POVOS INDÍGENAS modelo neoliberal], Instituto Equatoriano para o León tem uma posição mais dura: série de motivos que justificam a disso- Por outro lado, também acontece Desenvolvimento Social (Inedes), Quito, 2001. 5 O decreto foi anulado pelo novo presidente, Lenín “Definiu-se a necessidade de refazer lução de associações, entre os quais: de a máquina estatal se transformar Moreno, integrante da Alianza País, em maio de tudo, do zero”, ironiza. Abandonar até “Consagrar-se a atividades políticas em guardiã da autonomia das popula- 2017, logo após assumir suas funções. 14 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 200 MIL MORTES NOS ESTADOS UNIDOS Overdoses de opiáceos com receita médica Eles matam mais que os acidentes de trânsito ou as armas de fogo. Após devastar os guetos negros nos anos 1990, os opiáceos dizimam os subúrbios e a baixa classe média norte-americana. Além da amplitude e do perfil das vítimas, essa epidemia de overdoses é inédita por sua origem: os consumidores tornaram-se dependentes tomando analgésicos prescritos por médicos POR MAXIME ROBIN*, ENVIADO ESPECIAL conseguiu da Corte Suprema de Ohio, há três anos, licença para criar um tri- bunal especial, reservado aos toxicô- manos. Nesta manhã de terça-feira, no fim de novembro, véspera da festa de Ação de Graças, os trinta participantes se encontram diante da sala 702 do tri- bunal penal de Elyria, rebatizado de “tribunal da droga”. Esses jovens adul- tos – homens e mulheres em propor- ção quase igual – se conhecem bem, pois sempre se cruzam nessa convoca- ção semanal. Eles dão rosto à pandemia que a imprensa do país, amante dos superla- tivos, qualifica de a mais grave da his- tória: um rosto branco, suburbano ou rural, que tem teto para dormir e es- trutura familiar. O retrato-padrão de um drogado não é o de um astro do rock’n’roll ou de um negro pobre do © Bruno Maron Harlem, como sucedia durante a onda de opiáceos dos anos 1970. A morte golpeia a América dos condomínios e dos campos, aquela que possui gara- gem e às vezes dois carros. O consumo de heroína explodiu em todas as cate- xistem dezenas de maneiras de dida que avança para o sul. Após um gundo ano consecutivo.2 Com 65 mil gorias sociais, mas o aumento maior E morrer, mas no necrotério do Condado de Lorain, uma área suburbana de Ohio, só se regis- tram cinco: “morte natural, homicí- dio, suicídio, acidente e causa indeter- primeiro pico de overdoses em 2012, a polícia pensou de início em um pro- blema de droga adulterada, mas as análises toxicológicas não revelaram nada de surpreendente. Os consumi- mortes por ano, “ou seja, mais que a totalidade dos soldados abatidos no Vietnã”, lembra Evans, os derivados de ópio matam mais que os acidentes nas estradas (37 mil mortos) ou que as ar- (77% de 2002 a 2013) foi constatado nos lares da classe média baixa, com renda entre US$ 20 mil e US$ 50 mil por ano.4 Uma vez nas mãos da justiça, os jo- minada”. As overdoses são consideradas dores de opioides por via intravenosa mas de fogo (39 mil). Em comparação, vens do Condado de Lorain são trans- acidentes. Aqui, elas triplicaram em tinham, pura e simplesmente, se tor- 243 pessoas morreram de overdose na feridos dos centros de acolhimento de quatro anos, matando 132 pessoas em nado mais numerosos no condado. O França em 2014, 2.655 no Reino Unido toxicômanos para as prisões. O acordo 2016. “São coquetéis de opiáceos em problema não se limitava mais aos em 2015 e 1.226 na Alemanha no mes- que o juiz John Miraldi lhes propõe é 95% dos casos”, revela o médico legista bairros pobres e aos guetos negros de mo ano.3 O presidente Donald Trump, simples: se eles se emendarem, evita- Stephen Evans, que às vezes classifica Cleveland e Cincinnati, mas contami- que durante sua campanha promete- rão a cadeia e retomarão a vida normal. uma overdose como suicídio, quando nava agora os pequenos enclaves da ra agir, erigindo esse problema em Essa parece, claramente, ser a escolha as doses são muito grandes. “Entre- classe média branca. símbolo dos sofrimentos da “América mais racional, mas a dependência es- tanto, outros condados as classificam Com mais de 4 mil mortes por profunda”, declarou em outubro de tabelece sua própria lógica. “O usuário como homicídio, quando os trafican- overdose em 2016 (contra 365 em 2017 “estado de emergência sanitária”. não consegue, literalmente, funcionar tes vendem o pó misturado com fen- 2003), Ohio ocupa o segundo lugar no Mas, no Condado de Lorain, essas pa- sem sua dose. As crises de abstinência tanil, um narcótico cem vezes mais quadro norte-americano das devasta- lavras são acolhidas com um dar de são muito violentas”, relata Stuber, que poderoso que a heroína. Os usuários ções da droga, atrás apenas da Virgí- ombros. “Os fundos federais de emer- após 38 anos no ramo exibe um pessi- pensam que estão injetando heroína, nia Ocidental. Os brancos constituem gência sanitária possuem uma reser- mismo profundo. Para escapar da en- mas absorvem cem vezes a dose...” 90% das vítimas, enquanto os negros va de US$ 156 mil”, suspira Thomas grenagem é necessária uma força so- O Condado de Lorain, que agrupa e hispânicos (16,5% da população do Stuber, que dirige a LCADA Way, uma bre-humana, mas nem assim “a pessoa cerca de 300 mil habitantes, situa-se Estado) estão sub-representados: 8%.1 rede local de clínicas e centros de aco- se cura realmente”, observa Ed Barrett, na região de Cleveland. Delimitado ao Na escala do país, a epidemia de lhimento para toxicômanos. ex-toxicômano e dirigente do Primary norte pelas praias do Lago Erie, o terri- overdoses contribuiu para a queda da Na área penal, a situação se tornou Purpose Center, um centro de acolhi- tório vai se tornando mais rural à me- expectativa de vida em 2016, pelo se- tão crítica que um magistrado local mento em Elyria. FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 15 Largar o vício sozinho parece im- No ano seguinte, a Purdue lançou o veram 793 milhões de doses, isto é, 68 você for um bom cliente, é como enco- possível. É preciso estar acompanha- OxyContin no mercado com sinal ver- comprimidos por habitante.6 Para mendar uma pizza”, explica Barrett. do o tempo todo durante pelo menos de da Food and Drug Administration crescer, a Purdue Pharma teria agido Quando o consumidor tenta se abster cem dias e mudar por completo os há- (FDA). O laboratório pôs em campo como um cartel, identificando as re- e não telefona mais para o vendedor, o bitos, “esquecer a vida anterior e fugir um exército de mais de setecentos re- giões mais vulneráveis do país, onde se vendedor telefona para ele ou bate à dos velhos amigos”, explica Meghan presentantes comerciais para propa- concentram o desemprego de operá- sua porta, oferecendo-lhe doses. Kaple, jovem que ficou “limpa” por 31 gandear os méritos do produto junto à rios, os acidentes de trabalho e a po- Após a entrada no mercado do dias e se deixou voluntariamente re- classe médica do país. Divulgou ví- breza. Além das prescrições dos médi- OxyContin, as ondas de drogas se su- vistar pela polícia há três semanas, deos, folhetos e jingles dedicados ao cos honestos, mas inconscientes da perpõem como sedimentos nas mar- “cansada de droga, cansada de tudo”. remédio miraculoso, além de impri- capacidade do produto de causar de- gens do Lago Erie, sem que uma ja- Está agora num centro de acolhimento mir 34 mil cupons oferecendo receitas pendência, vazamentos de documen- mais desloque completamente a outra. para mulheres, onde segue um regime gratuitas. Em 1996, as vendas do tos internos revelaram que a empresa Aos comprimidos com receita médica, rigoroso, bem diferente da corrida diá- OxyContin renderam US$ 45 milhões. havia, conscientemente, encorajado a como o OxyContin, depois à heroína, ria aos opioides: “Levantar cedo, prati- Quatro anos depois, chegaram a US$ proliferação de clínicas duvidosas, es- acrescentam-se agora outras substân- car ioga, terapia em grupo. Telefone 1 bilhão, ultrapassando o recorde do tabelecimentos-fantoche destinados cias sintéticas de poder aterrador. As proibido”. Ela começou a se drogar há Viagra. Dos gabinetes de Washington apenas ao escoamento do OxyContin.7 autoridades enfrentam um monstro onze anos: “Depois que meu médico ao consultório do médico de zona ru- de várias cabeças e nenhuma delas de família me prescreveu analgésicos ral, todos os dispositivos de segurança ainda foi cortada. para uma dor nas costas...”. foram ignorados. Indefesa, a população assume dois Como a senhora Kaple, a maior A carreira dupla de Evans – ele foi tipos de atitude. “Metade está afetada A maior parte das parte das vítimas não descobriu os paramédico antes de se tornar legista pelo vício de um parente”, explica Stu- opiáceos por meio de uma injeção, – lhe oferece uma perspectiva histórica vítimas não descobriu ber. “Sabe que a dependência é uma mas tomando medicamentos receita- do fenômeno. “Quando saí da faculda- os opiáceos por meio doença e necessita que se encontre dos por seu médico. A pandemia teve de de medicina, no início dos anos de uma injeção, mas uma solução. A outra metade acha que início nos consultórios, camuflada pe- 1980, jamais se ministravam analgési- as drogas não têm desculpa. Estes, en- tomando medicamentos la melhor das intenções: eliminar a cos tão poderosos quanto o OxyContin quanto não veem seu próprio filho es- dor dos pacientes dando-lhes analgé- para aliviar dores em ambulatório. No receitados tendido sobre o tapete do quarto, pen- sicos poderosos. “Pouquíssimos toxi- fim da década de 1990, começou-se a por seu médico sam que o problema é dos outros.” Nas cômanos começaram diretamente pe- prescrever narcóticos para a extração conferências de prevenção organiza- la heroína”, confirma Stuber. “Com de dentes do siso, para torções de tor- das nas cidades, os profissionais ou- frequência, foi um médico que pres- nozelo... Dores fracas davam direito a Os poderes públicos tardaram a vem com frequência que os traficantes creveu a primeira dose, para uma dor uma dose de OxyContin ou de Perco- reagir, pois a classe média baixa bran- devem morrer. “Mas o primeiro trafi- pequena qualquer. Eles então se tor- cet.” Os pacientes desenvolvem rapida- ca, principal vítima do fenômeno, não cante é o médico de família ou a gave- naram dependentes e só depois passa- mente tolerância a essas doses cavala- figurava entre as prioridades dos diri- ta de remédios dos pais”, protesta ram a usar heroína.” Nas epidemias res. Evans evoca uma época delirante, gentes políticos. Quando o governo Evans. “Oitenta por cento de nossas anteriores de overdose, nos anos 1970 em que pessoas comuns, “com uma percebeu o problema e iniciou a caça crianças se envolvem ao encontrar e 1990, cerca de 80% dos usuários de dorzinha qualquer”, corriam ao pron- às receitas complacentes, já numero- uma receita do papai ou da mamãe... drogas pesadas eram homens. Na cri- to-socorro para pedir comprimidos, sos cidadãos, privados dos comprimi- Você tem 15 anos, seus amigos vêm se atual, a proporção é praticamente a como se fossem bombons. “Quando o dos, estavam procurando satisfazer dormir em sua casa, você rouba um mesma. Homem ou mulher, “todo médico não lhes dava Percocet, amea- sua dependência na rua. “Depois que Percocet. Papai e mamãe devem ser mundo vai ao médico. O vício começa çavam denunciá-lo! Fingiam estar o paciente se vicia e a validade da re- fuzilados por isso?” com uma visita ao médico de família, doentes. Algumas cortavam os pulsos ceita termina, ele tem de achar sua do- ao dentista, ao especialista em medici- só para receber os comprimidos.” In- se em algum lugar”, explica Evans. *Maxime Robin é jornalista. na esportiva. Muitas mulheres que junções do governo, exigências dos pa- “Um Percocet, no mercado negro, praticaram esporte no colégio e na cientes e política do satisfaction client custa US$ 50 o comprimido. Um sa- universidade estão em tratamento”. (cliente satisfeito) do hospital: “A pres- quinho de heroína, de US$ 5 a US$ 10. A caixa de Pandora foi aberta há são vinha de todos os lados”. Mais barato que uma caixa de cerveja. 1 “Opioid overdose death by race/ethnicity” [Mortes vinte anos por diversos laboratórios O OxyContin está bem instalado Eis como convertemos toda uma po- por overdose de opioides por raça/etnia], The farmacêuticos. Sobretudo pela Pur- em Ohio, seguindo a corrente dos anos pulação ao culto da heroína.” Henry J. Kaiser Family Foundation, Menlo Park (Ca- lifórnia). Disponível em: <www.kff.org>. due Pharma e seu famoso medica- 2000. Em certas cidades deprimidas A mudança do consumo de medi- 2 Passou de 78 anos e 9 meses em 2014 para 78 mento, o OxyContin, considerado res- pelo fechamento de fábricas, o comér- camentos para a heroína se fez pro- anos e 7 meses em 2016. Cf. “Soaring overdose ponsável pela catástrofe por todos os cio desse medicamento reanimou por gressiva e furtivamente. Os vendedo- deaths cut US life expectancy for a second conse- cutive year, CDC says” [O aumento de mortes por profissionais interrogados. Analgési- algum tempo a área central, graças à res de heroína mexicanos – quase overdose diminui a expectativa de vida nos Estados co classificado como opioide antálgi- multiplicação dos pontos de distribui- sempre oriundos da região de Jalisco, Unidos pelo segundo ano consecutivo, dizem os co dos mais fortes (nível III), o ção. As falcatruas se generalizaram especializada na cultura da papoula – CDCs], Los Angeles Times, 20 dez. 2017. 3 Segundo os últimos números oficiais publicados OxyContin é composto de oxicodona, por causa da precariedade da assistên- investiram nesse imenso mercado ru- pelos departamentos francês e europeus de com- um derivado da síntese do ópio. Era cia social. Cidadãos pobres, beneficiá- ral, modernizaram suas técnicas de bate às drogas e à toxicomania. originalmente reservado aos doentes rios do auxílio-doença, pegavam gra- venda e agiram mais discretamente 4 “Today’s Heroin Epidemic Infographics” [Infográfi- cos da epidemia de heroína hoje], Centers for Di- com câncer em fase terminal e às ci- tuitamente comprimidos em clínicas que os traficantes das grandes cida- sease Control and Prevention, Atlanta. Disponível rurgias de grande porte – um mercado duvidosas, conhecidas como pill mills des. Apesar da forte concorrência, que em: <www.cdc.gov>. bem modesto. A fim de ampliá-lo, o la- (literalmente “moinhos de pílulas”), e explica o baixo preço da heroína no 5 Sam Quinones, Dreamland: The True Tale of Ame- rica’s Opiate Epidemic [Terra dos sonhos: a verda- boratório lançou em 1995 uma cam- depois os revendiam no mercado ne- varejo, os traficantes do interior não deira história da epidemia de opiáceos na Améri- panha de lobby agressivo, que propu- gro, enriquecendo paralelamente os precisam de armas de fogo para acer- ca], Bloomsbury Press, Londres-Nova York, 2015. nha repensar por completo a relação médicos cúmplices com o dinheiro do tar suas contas ou defender seu terri- 6 “Opioids prescribed to Ohio patients decrease by 162 million doses since 2012” [Doses de opioides com o sofrimento do paciente. A dor, contribuinte. Em várias cidades do su- tório. O pó é encomendado por SMS e prescritas a pacientes em Ohio diminuem em 162 não importa sua intensidade, tornou- deste de Ohio, como Portsmouth, o a entrega se faz de carro pelos vende- milhões desde 2012], Board of Pharmacy, Estado -se o novo inimigo do corpo médico. “Oxy” se tornou moeda corrente de dores, que adotaram o conceito de de Ohio, 25 jan. 2017. 7 Harriet Ryan, Lisa Girion e Scott Glover, “More Estudos financiados pela empresa re- troca: trocava-se com o vizinho um “cliente satisfeito”, distribuem cartões than 1 million OxyContin pills ended up in the comendavam aos profissionais consi- comprimido por todo tipo de artigo.5 de visita e oferecem programas de fi- hands of criminals and addicts. What the drugma- derá-la um “quinto sinal vital”, tanto O número de receitas para opioides delidade... “No começo, talvez você ker knew” [Mais de 1 milhão de comprimidos de OxyContin terminaram nas mãos de criminosos e quanto a pulsação, a temperatura, a acabou atingindo índices absurdos. precise correr o risco de ir a lugares dependentes. O que o fabricante sabia], Los An- pressão sanguínea e a respiração. Em 2012, os médicos de Ohio prescre- perigosos. Mas, feitas as conexões e se geles Times, 10 jul. 2016. 16 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 RENOVAÇÃO DO ENGAJAMENTO POLÍTICO Juventude palestina não se vê como vencida A decisão de Donald Trump de reconhecer Jerusalém como capital de Israel agravou o fracasso do “processo de paz” e provocou grandes protestos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza – uma contestação duramente reprimida pelos israelenses. Os jovens palestinos, inclusive os menores de idade, são os mais visados. Vários deles rompem com as velhas fórmulas de militância POR AKRAM BELKAÏD E OLIVIER PIRONET*, ENVIADOS ESPECIAIS s bandeiras palestinas se agi- Esportes, uma instância ligada à Orga- leva três horas por dia para fazer o tra- civil, a lei visa calar e punir os jornalis- A tam ao vento no corredor prin- cipal da Universidade Birzeit, na periferia de Ramallah, cida- de que é a sede da Autoridade Palesti- na. Não muito longe da estrela que ho- nização de Libertação da Palestina (OLP), que garantia a formação ideoló- gica, sobretudo por meio da organiza- ção de campos de férias e de volunta- riado. Em 1993, um Ministério da jeto de ida e volta entre a universidade e a Cidade Santa, distante 6 quilôme- tros, em razão dos bloqueios israelen- ses. Ela descreve uma situação que não para de se deteriorar. “A ocupação tas adversários do regime e os oposito- res, mas também os ativistas e os jo- vens, muito ativos nas redes sociais, em que chovem críticas contra o poder. Exemplo disso é a interpelação pelos menageia os 28 estudantes “mártires” Juventude e dos Esportes surgiu para pesa sobre nossa vida de estudantes. serviços de segurança palestinos, em da instituição, todos mortos pelo Exér- “dar aos jovens o poder de agir no pla- Ela dita nossas escolhas, como a da setembro passado, de Issa Amro, líder cito israelense, um cortejo começa. no econômico, social e político”. Ao universidade em que queremos estu- da Juventude contra as Colônias, movi- Um responsável pela organização vai longo do tempo, as ações de enquadra- dar. Se moramos em Jerusalém, vamos mento sediado em Hebron (Al-Khalil), de uma ponta a outra. Encapuzado e mento foram abandonadas e, em 2013, pensar duas vezes antes de nos inscre- que tinha denunciado no Facebook a sob um capacete de assalto, vestindo o ministério foi suspenso, com o Alto vermos em Birzeit ou Nablus, simples- prisão de um jornalista que havia pedi- traje de combate camuflado com gra- Conselho tendo retomado o serviço mente por causa das restrições da li- do a demissão de Mahmoud Abbas. nadas e cinto de explosivos, ele dita o sob a égide de Abbas. berdade de movimento impostas por Amro já havia sido preso pelo Exército ritmo para moças e rapazes de unifor- Para Youssef, de 22 anos, também Israel.5 Mas a universidade permanece israelense em fevereiro de 2016, após me verde-oliva, o rosto oculto por um estudante de Sociologia, “a Autoridade um casulo que não nos forma no plano organizar uma manifestação pacífica keffiyeh. Todos gritam slogans em lou- Palestina quer distanciar os jovens de político para enfrentar essa situação. contra a colonização...7 vor da resistência armada. Agitam um ativismo autêntico, presente no Para nossos irmãos mais velhos, en- bandeiras coloridas do Fatah em ho- campo, e impedi-los de elaborar novas trar aqui significava escolher um par- MOVIMENTO CONTRA A OCUPAÇÃO menagem ao falecido presidente Yas- maneiras de agir no plano político. Ora, tido e se engajar no ativismo. Não é E A COLONIZAÇÃO ser Arafat (1929-2004), e bandeirolas desde o início dos anos 2000 e do fra- mais o caso hoje em dia.” Muitos alu- Yassir D., de 23 anos, inscrito no que saúdam a memória do xeque Ah- casso do processo de Oslo, a juventude nos e professores entrevistados la- curso de Jornalismo, é um dos inicia- med Yassine (1937-2004), o fundador carece de balizamentos. Estamos com mentam que nem o Fatah nem o Ha- dores desse debate. Ele também pouco do Movimento da Resistência Islâmica raiva. Não houve nenhum ganho políti- mas tenham um projeto político que se surpreende com a falta de interesse (Hamas). Os organizadores desse des- co para o nosso povo. A divisão entre o possa mobilizar a juventude e favore- dos estudantes por um tema que, no file pertencem ao Movimento da Ju- Fatah e o Hamas nos deixa indignados. cer a emergência de elites capazes de entanto, tem tudo a ver com eles, nem ventude do Fatah (Chabiba), o partido A ocupação é uma realidade perma- assumir a liderança de um movimento com a ausência de mobilização contra do presidente Mahmoud Abbas. Eles nente. Vivemos sua violência no dia a nacional exaurido. uma legislação que desrespeita tanto a tomaram cuidado para que a reunião dia. Nossa situação social e econômica Ouvimos essa reclamação repeti- liberdade de expressão como a priva- celebrasse as duas grandes facções po- permanece precária. Todas as condi- damente. Por exemplo, na Universida- cidade. “Nossos pais são incentivados líticas palestinas, que têm dificuldade ções estão reunidas para que nasça de de Belém, onde assistir a uma ma- pelo governo a contrair dívidas para para pôr em prática seu acordo de “re- uma mobilização em grande escala”. nhã de atividades livres permite tomar consumir8 e, por esse fato, hesitam em conciliação”, assinado em outubro de a medida da ambiguidade da situação. contestar a ordem estabelecida. Quan- 2017. Espera-se que ele vire a página de FOCINHEIRA NA CONTESTAÇÃO De um lado, num pátio sombreado, to aos jovens, suas condições de vida mais de dez anos de rivalidade e en- Os jovens são “as primeiras vítimas cerca de duzentos estudantes joviais e são tais que também querem se diver- frentamentos fratricidas. da luta contra a ocupação [israelense] barulhentos participam de um jogo de tir. Então, é oferecida a eles a ilusão de De fora, os estudantes de Sociolo- em termos de mortos, feridos, prisões perguntas e respostas anunciadas ao que podem fazer isso como em qual- gia observam a cena com ar de repro- e detenções”, indica um recente estu- som de canções ocidentais ou de músi- quer outro lugar. Isso não quer dizer vação. “Isso é só folclore”, dispara Ra- do,2 e, dos 95 palestinos mortos pelo cas pop libanesas. Do outro lado, num que eles não tenham consciência polí- mi T.,1 de 20 anos. “Eis o que o Fatah e Exército israelense ou pelos colonos anfiteatro pouco ocupado, com um ar tica, mas é justo que não se reconhe- a Autoridade Palestina oferecem à ju- em 2017, cinquenta tinham menos de de local voltado para os estudos, cerca çam em nenhuma dessas forças exis- ventude: gestos simbólicos. Isso é tudo 25 anos.3 Mas também são afetados de trinta pessoas acompanham um tentes.” Segundo um estudo, 73% dos menos ação política séria. O regime duramente pelas dificuldades enfren- debate sobre a controversa Lei de Cri- palestinos de 15 a 29 anos afirmam não pretende promover uma mobili- tadas pela economia, com uma taxa de me Eletrônico, adotada pela Autorida- não ser afiliados a nenhum partido e zação coletiva que possa realmente desemprego estimada em 27% (18% na de Palestina em junho de 2017. Desti- exprimem grande desconfiança em dar frutos. Teme que uma politização Cisjordânia, 42% em Gaza), ou seja, nado oficialmente a regulamentar o relação às instituições.9 dos jovens conduza a uma revolta con- uma das “mais elevadas do mundo”, uso da internet e das redes sociais, esse Manal J., de 22 anos, aluna de Ciên- tra ele.” Como 70% da população tem “de uma amplitude raramente atingi- texto permite prender qualquer cida- cias da Comunicação, acompanha to- menos de 30 anos, a politização da ju- da [...] desde a Grande Depressão”, se- dão cujos escritos atentem contra “a do o debate. Sente-se pronta para se ventude constitui tema muito delicado gundo as Nações Unidas.4 integridade do Estado, a ordem públi- envolver no plano político? Constran- para líderes palestinos, com a legitimi- Houda A., de 20 anos, estuda Jorna- ca, assim como a segurança interna ou gida, ela dá uma resposta: “Estou deci- dade cada vez mais contestada. Antes lismo na Universidade de Belém. Ori- externa do país”, ou ameacem “a uni- dida a fazer isso, mas não é simples. Há dos Acordos de Oslo, em 1993, e da ginária de Jerusalém Oriental, onde os dade nacional e a paz social”.6 Conside- uma regra que todos os jovens conhe- criação da Autoridade Palestina, era o estabelecimentos de ensino superior rada contrária aos direitos fundamen- cem: fazer política é, cedo ou tarde, ir Alto Conselho para a Juventude e os palestinos são proibidos por Israel, ela tais por uma ampla parte da sociedade para a prisão, seja israelense ou pales- FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 17 tina. Para uma mulher, isso pode ter UM HORIZONTE COLETIVO PARA nas”), que convida jovens artistas, 13 mil moradores estão desemprega- efeitos drásticos. Além das conse- A “GERAÇÃO OSLO” pesquisadores e escritores, palestinos dos. Quando criança, ela conheceu a quências físicas e morais do encarce- “Esses ativistas parecem fazer polí- ou estrangeiros, para trabalhar e viver ofensiva israelense de abril de 2002 ramento, corremos o risco de jamais tica de ‘outro jeito’”, analisa Sbeih Sbeih, em Jericó, está convencido de que o re- contra o campo, que fez oficialmente encontrar um marido, porque nossa sociólogo palestino e professor da Uni- curso à criação “faz parte de novos 52 mortos palestinos (pelo menos du- sociedade permanece sendo muito versidade de Aix-Marselha, que acom- modos de mobilização”. Isso permite zentos, segundo os moradores). Sem conservadora, e todo tipo de boato po- panha de perto a evolução desse movi- também, segundo ele, repensar os la- qualificação, ela trabalha como faxi- de prejudicar a reputação de uma mu- mento. “Ao discurso de nossos líderes ços de solidariedade entre ocidentais neira num complexo hoteleiro do nor- lher que esteve na prisão”. Desde 1967, sobre o ‘desenvolvimento da economia’, – mais particularmente franceses – e te da cidade cuja clientela é composta cerca de 800 mil palestinos dos territó- a ‘construção do Estado’ e a ‘paz’, eles palestinos. “O tempo das ONGs que essencialmente de palestinos de Is- rios ocupados foram encarcerados pe- opõem um modelo de resistência – con- vêm passar três meses entre nós e vão rael. Ela admite que muitas vezes pen- los israelenses, ou seja, dois homens tra Israel, mas também no plano econô- embora com o sentimento de dever sa em recorrer à violência. “Eu penso adultos em cada cinco – com frequên- mico, político, educacional e cultural – cumprido acabou. Os estrangeiros não um pouco, porque sei que os israelen- cia sob o regime de prisão administra- em nome de um objetivo supremo, a devem mais vir ‘tomar conta’ de nós, ses vão punir toda a minha família e tiva, sem acusação nem processo. Nes- libertação da Palestina. Essa é razão pe- mas trabalhar conosco. E aprender co- que cada uma de nossas revoltas cus- se total, contam-se 15 mil mulheres. la qual eles estão na mira das autorida- nosco como aprendemos com eles.” tou um alto preço, mas não suporto o Próximo da extrema esquerda, Wis- des israelenses, mas também na dos destino do meu povo. Não posso me sam J., de 26 anos, na faculdade de So- serviços de segurança da Autoridade conformar. Admiro aqueles que de- ciologia em Birzeit, também foi preso. Palestina, como todos aqueles que ram a vida por nossa causa.” Para Hou- Ele foi liberado em 2015, após ter passa- questionam a ordem estabelecida.” Os “Os ataques da, estudante de Jornalismo em Be- do três anos nas prisões israelenses – o israelenses não se enganaram em rela- lém, “os ataques individuais dirigidos que lhe custou um atraso equivalente ção a isso: um dos fundadores do Nabd, individuais dirigidos aos soldados nos bloqueios são um em seus estudos. Por que motivo ele foi preso no ano passado, continua a sete aos soldados nos meio como outro qualquer de resistir à preso? “Fui preso e condenado por ‘ati- chaves, com o status de “preso admi- bloqueios são um ocupação, de opor a força à violência vismo’”, responde com um sorriso tími- nistrativo”. Basil al-Araj, por sua vez, meio como outro exercida por Israel”. Youssef, de Birzeit, do, sem entrar nos detalhes. Como seus uma das figuras do movimento, foi aba- estima por seu lado que “essas ações companheiros Rami e Youssef, Wissam tido pelo Exército israelense em Al-Bi- qualquer de resistir extremas são fruto de uma imensa milita no Nabd (“Ritmo”, em árabe), reh (Ramallah) em 6 de março de 2017, à ocupação” frustração diante da perpetuação da um movimento de jovens em luta con- ao final de uma longa caçada. Esse far- colonização, dos constrangimentos tra a ocupação e a colonização israelen- macêutico de 33 anos originário de Al- sofridos todos os dias nos postos de se, “mas também contra a Autoridade -Walajah (Belém), muito ativo no cam- Mas qual é a influência desses mo- controle e de um horizonte completa- Palestina, a divisão política interpales- po da contestação, mas também em vimentos, seu peso na sociedade? Co- mente fechado” – ponto de vista que é tina e a “normalização” com Tel Aviv oficinas de educação popular, tinha si- mo diz Abaher el-Sakka, professor de expresso de maneira mais direta por promovida por certas ONGs e por auto- do libertado pouco tempo antes pelas Sociologia em Birzeit, “com certeza um servidor de cerca de 20 anos em- ridades do regime”, dispara Youssef. forças de segurança palestinas, que o não se pode supervalorizar sua in- pregado num café na cidade velha de Nascido em Ramallah em 2011, na es- haviam acusado em abril de 2016 de fluência, relativamente limitada tendo Nablus: “Desde que nasci, os israelen- teira do movimento de protesto popu- “preparação de ação terrorista”, depois em vista o espaço restrito no qual eles ses só me autorizaram a ir uma única lar lançado pelo Coletivo de 15 de mar- encarcerado durante seis meses. Para podem agir, os bloqueios ligados às es- vez a Jerusalém, e eu me sinto asfixia- ço para chamar à unidade nacional muitos, sua morte é fruto da coordena- truturas de poder e, é claro, a repres- do aqui, trancado em meu próprio diante de Israel, o Nabd se proclama ção de segurança entre os serviços de são israelense. Mas movimentos como país. Não tenho poupança, não tenho “independente dos grandes partidos”, informação palestinos e seus equiva- o Nabd podem criar uma nova dinâ- mulher e não me formei. Sacrifiquei- nos explica ele, acrescentando: “mas lentes israelenses, muito criticada pela mica e preparar o terreno, a longo pra- -me pela pátria ficando aqui, mas ago- não agimos contra eles, mesmo que es- população dos territórios...10 zo, para importantes mudanças no ra só quero uma coisa: ir embora para tejamos fora do quadro político tradi- O Nabd está longe de ser a única or- plano sociopolítico. O que é certo é o estrangeiro. É isso, ou então me jogar cional, que mostrou seus limites”. ganização de jovens ativa na Palesti- que eles oferecem uma solução em sobre um soldado num bloqueio...”. Marcado “à esquerda”, como nos na. Cerca de 40% dos que têm de 15 a matéria de envolvimento coletivo aos diz Rami, o movimento do qual alguns 29 anos fazem parte de um movimen- jovens palestinos, vítimas do desen- MUROS DE CONCRETO, POSTOS DE CONTROLE membros são igualmente oriundos da to semelhante. Eles viram surgir vá- canto diante da falta de perspectivas Outros escolhem uma via diferen- corrente islâmica espalhou-se por vá- rios coletivos, comissões e associações de futuro e da impossibilidade de de- te, como Majdi A., uma figura do cam- rias cidades da Cisjordânia e tenta es- cuja palavra-chave é “a unidade do po- sempenhar um papel de decisão na po de refugiados de Dheisheh, em Be- tabelecer laços com os jovens de Gaza. vo palestino”, como o Gaza Youth sociedade. Muitos desses jovens, sen- lém. Esse campo, um dos mais Ele também se centra na educação po- Breaks Out (Gybo) e o Jabal al-Muka- tindo que foram postos de lado, rejei- importantes da Cisjordânia, onde vi- pular e trabalha com a “reapropriação bir Local Youth Initiative. Criado em tam todos os partidos em bloco e se vem 15 mil pessoas, permite que se te- da identidade, da história e da memó- 2011 por blogueiros de Gaza, o primei- recolhem em si mesmos, com o risco nha uma boa ideia da ociosidade da ria coletiva palestinas, ameaçadas pe- ro denuncia ao mesmo tempo a ocu- de que alguns se voltem para a ação juventude. “Dheisheh está na mira do la atomização da sociedade que favo- pação israelense, a corrupção dos líde- violenta”. Esse foi o caso, sobretudo, da Exército israelense, que o invadiu mui- rece a política neoliberal da Autoridade res políticos e a negligência dos revolta de 2015-2016, em que se multi- tas vezes, como a maior parte dos Palestina, sob influência do Banco principais partidos. O segundo, basea- plicaram os ataques isolados, muitas campos de refugiados”, explica-nos Mundial e dos ocidentais”. Os ativistas do em Jerusalém Oriental, tornou-se vezes com uma simples faca, contra os Majdi. A maioria das pessoas detidas é do Nabd também têm a intenção de lu- conhecido por organizar, em 16 de soldados israelenses e os colonos nos jovem, acusada de apelar para a vio- tar contra a fragmentação do território março de 2014, uma corrente humana territórios ocupados. Esses ataques fo- lência no Facebook ou de lançar pe- e evitar que a separação entre as gran- em torno das muralhas da Cidade San- ram essencialmente obra de jovens de dras contra os soldados. Mais de uma des cidades da Cisjordânia – sem es- ta para protestar contra a colonização menos de 25 anos, independentes dos centena foi ferida em confrontos ao quecer o isolamento de Gaza – firme judaica e reafirmar a identidade pales- partidos e sem reivindicações.11 Eles longo dos seis últimos meses. Há tam- definitivamente a imagem de “arqui- tina. “Nossa geração quer inovar. Ela deram origem a uma feroz repressão, bém dois mortos de 21 e 18 anos neste pélago de cidades autônomas” no ima- pretende repensar o discurso político com 175 mortos palestinos entre outu- ano, e cerca de 84 crianças aleijadas, ginário palestino. “Oferecemos ainda tradicional, e isso explica a profusão bro de 2015 e fevereiro de 2016. que foram propositalmente atingidas atividades culturais e artísticas. Por de iniciativas que misturam cultura, Muitos de nossos interlocutores di- nas pernas. Quando lhe perguntamos exemplo, um grupo de teatro foi criado aspecto social, envolvimento político zem compreender esses atos desespe- sobre as ameaças que pesam sobre os nos campos de refugiados para insu- e artes”, analisa Karim Kattan, pesqui- rados e se recusam a condená-los. jovens que se opõem à ocupação ou à flar nova vida na cultura popular do sador e escritor originário de Belém. Anissa D., de 25 anos, vive no campo política da Autoridade Palestina, ele país”, acrescenta Wissam. Membro do projeto El-Atlal (“As ruí- de refugiados de Jenin, onde 70% dos nos responde sem rodeios: “Não pode- 18 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 mos protestar nem ter atividades polí- soldados. Muros de concreto, postos pras em nossas lojas. Mas não vou ven- relativo a crimes cibernéticos], artigos 20 e 51, Ra- ticas outras que não aquelas controla- de controle, catracas para filtrar as der nunca e vou ficar aqui, aconteça o mallah, 24 jun. 2017. De seu lado, o Parlamento is- raelense adotou em primeira leitura, no início de das pelo poder; sofremos pressões de passagens, câmeras de vigilância e que acontecer. Eu espero. O tempo não 2017, uma lei que permite obrigar o Facebook a um lado e de outro. A única solução é pórticos de detecção de metais insta- é nosso inimigo.” suprimir qualquer texto que incite à “violência” ou se envolver de maneira pacífica. Eu, lados pelo Exército israelense, redes de ao “terrorismo”. 7 Cf. “Farid Al-Atrash et Issa Amro”, La Chronique por exemplo, escolhi ficar aqui, não ir malha colocadas pelos comerciantes *Akram Belkaïd e Olivier Pironet são jorna- d’Amnesty, Paris, nov. 2017. para o estrangeiro e trabalhar em fa- para proteger as raras lojas ainda aber- listas do Le Monde Diplomatique. 8 Salam Fayyad, primeiro-ministro da Autoridade Pa- vor da comunidade por meio de ações tas de projéteis e de lixo lançados pelos lestina de 2007 a 2013, colocou em prática em 1 Todos os nomes de nossos interlocutores foram 2008 medidas que facilitam empréstimos para o sociais e culturais. Permanecerei aqui colonos dos prédios, casas palestinas modificados, com exceção dos dois sociólogos e consumo. Estima-se, por exemplo, que dois terços para defender nossos direitos, mesmo degradadas por estes últimos: viver do escritor. das famílias de Ramallah estejam endividadas. Cf. que tenha de aqui deixar minha vida”. aqui é um inferno. Com o rosto marca- 2 “Palestinian Youth” [Juventude palestina], Palesti- “Palestinian workers campaign for social justice” nian Academic Society for the Study of Internatio- [Trabalhadores palestinos fazem campanha por Se permanecer na Palestina é um do, Maher reconhece, mas afirma que nal Affairs (Passia), Jerusalém, abr. 2017. Disponí- justiça social], Middle East Report, Richmond (Es- ato de resistência que exige soumoud não quer mais deixar seu país depois vel em: <www.passia.org>. tados Unidos), n.281, inverno de 2016. (“tenacidade”, em árabe), voltar tam- de ter morado no estrangeiro por três 3 Cf. “Deaths in 2017” [Mortes em 2017], Israel-Pa- 9 “The Status of Youth in Palestine 2013” [A condi- lestine Timeline. Disponível em: <www.israelpales- ção da juventude palestina em 2013], Sharek bém o é. É a opinião de Maher L., de 26 anos. “Eu me exilei na Alemanha, mas tinetimeline.org>. Youth Forum, Ramallah, 2013. anos, comerciante na cidade velha de o chamado de minha terra natal foi 4 “Rapport sur l’assistance de la Cnuced au peuple 10 Cf. Shatha Hammad e Zena Tahhan, “Basil al-Araj Hebron, perto do Túmulo dos Patriar- mais forte. Poderia ir embora de novo. palestinien” [Relatório sobre a assistência da Unctad was a beacon for Palestinian youth” [Basil al-Araj foi cas (ou Mesquita de Ibrahim). Trinta e Os colonos e as organizações que os ao povo palestino], Unctad, Genebra, 10 jul.2017. um ídolo para a juventude palestina], Al-Jazeera, 7 5 Sobre os atentados à liberdade de movimento dos mar. 2017. Quanto à cooperação de segurança entre cinco mil palestinos moravam aqui apoiam nos estimulam a fazer isso: al- palestinos na Cisjordânia, cf. o mapa-pôster inseri- Israel e a Palestina, ler “Na Cisjordânia, o espectro da em 1997. Hoje eles não passam de 8 guns até oferecem dinheiro. Seria uma do em “Palestine. Un peuple, une colonisation” Intifada”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2014. mil, submetidos à pressão permanen- vantagem: meu comércio está mori- [Palestina. Um povo, uma colonização], Manière 11 Cf. Sylvain Cypel, “Pourquoi l’‘Intifada des cou- de Voir, n.157, fev.-mar. 2018. teaux’ continue” [Por que a “Intifada das facas” te de oitocentos colonos particular- bundo, porque são poucos os ousados 6 “Presidential Decree No. 16 of 2017 Regarding continua], Orient XXI, 24 fev. 2016. Disponível em: mente agressivos e de cerca de 3 mil que assumem o risco de vir fazer com- Cybercrime” [Decreto presidencial n. 16 de 2017 <http://orientxxi.info>. RESISTÊNCIA, ABERTURA E PODER O Irã se reinventa como potência local Na guerra fria que o opõe à Arábia Saudita, o Irã pode apoiar-se num arquipélago de minorias xiitas. A República Islâmica lhes ofereceu apoio decisivo, especialmente para combater os jihadistas na Síria e no Iraque. Entretanto, a origem da rivalidade entre as duas potências do Golfo parece muito mais política do que étnica ou religiosa POR BERNARD HOURCADE* om a intervenção da Guarda cional e ameaças de guerra, o Irã está arianos – iranzamin –, que soube man- nos de guerra que defenderam o Irã e a C Revolucionária na Síria e no Ira- que, o Irã, pela primeira vez em sua história moderna, venceu uma batalha militar fora de suas fron- teiras. No dia 21 de novembro de 2017, longe de ser reconhecido como uma potência regional “normal”. O país se acostumou a viver separado, “resistir à agressão estrangeira” e estar à mar- gem da globalização. ter sua identidade, se não sua indepen- dência, resistindo às invasões de gre- gos, árabes, turcos e mongóis, além das ameaças dos impérios Otomano, Russo e Britânico.1 Paradoxalmente, a jovem República Islâmica. O nacionalismo iraniano cultiva o espírito de “resistência”, mas não o de conquista. Durante sua longa história, o Irã foi diversas vezes invadido. E, o presidente Hassan Rohani procla- República Islâmica do Irã assumiu to- desde sua criação como Estado mo- mou o fim da Organização do Estado O ISLÃ CAPTURADO PELO NACIONALISMO talmente esse legado. Ela consolidou o derno, no século XVI, perdeu guerras Islâmico, enquanto o general Ghas- Muitos analistas procuram a expli- Estado central,2 nos primeiros anos da contra seus vizinhos, bem como terri- sem Soleimani, comandante da força cação de tal isolamento em um passado revolução, combatendo três forças tórios. Ele só conseguiu vencer algu- especial Al-Quds, celebrava essa “vitó- muitas vezes distante, evocando o Im- aliadas: o Iraque, as monarquias do mas incursões, algumas razias, por ria decisiva”. O sucesso contra os jiha- pério Aquemênida, do século V a.C., a petróleo e os países ocidentais. exemplo, contra Délhi, em 1739, e Tbi- distas faz parte do renascimento do cultura persa, o xiismo e seu clero. Com O ataque iraquiano de setembro de lisi, em 1795. Por ser ao mesmo tempo Irã no exterior, que inclui sua vitória exagerada frequência, negligenciam-se 1980 selou a imbricação entre o nacio- iraniano e xiita, cercado por popula- diplomática de 14 de julho de 2015, as profundas transformações observa- nalismo e o islamismo. As ambições ções turcas e árabes, sunitas e cristãs, com a assinatura, ao lado de seis gran- das na sociedade e na vida política des- universalistas da Revolução Islâmica o reino da Pérsia não tentou conquis- des potências, de um acordo sobre a de a revolução de 1979. Nacionalismo, rapidamente foram superadas pela tar territórios exteriores, apenas man- questão nuclear capaz de permitir que islamismo, abertura: esses componen- necessidade de defender as fronteiras. ter influência sobre as zonas-tampão o país saia de seu isolamento diplomá- tes estão o tempo todo em mudança, Os guardas revolucionários e os mili- que cercam o Planalto Iraniano: a tico e comercial. concorrência, composição. Nenhum cianos (bassijis) tornaram-se heróis da margem oriental do Tigre, o Cáucaso Na verdade, porém, o Irã não ga- deles desaparece, e seu exato equilíbrio pátria. A vitória de Khorramshahr e a do Sul, o Mar Cáspio, a estepe turco- nha quase nada com essas vitórias. Ao é o que anima a vida política. retomada da cidade, em 22 de maio de mana, as províncias afegãs de Herat e mesmo tempo que o país é acusado de Apesar da oposição dos religiosos, 1982, marcam a libertação do territó- Helmand e, claro, o Golfo Pérsico. ambições hegemônicas, o governo o sentimento nacional – que esteve no rio nacional, e não a vitória do islamis- Após a Segunda Guerra Mundial, a norte-americano de Donald Trump auge durante a dinastia Pahlevi (1925- mo político, do qual ela representa, na principal vocação do Exército do xá era dificulta a renovação econômica tão 1941), a qual glorificava o passado pré- verdade, um primeiro apagamento. A enfrentar uma hipotética agressão so- esperada, recusando-se a suspender -islâmico, e depois durante a naciona- força do poder político do clero xiita e viética. A política militar do Irã confor- de fato as sanções. Claramente, após lização do petróleo, em 1953 – nunca do líder supremo continua sendo uma mou-se a essa estratégia defensiva por quase quatro décadas de marginali- enfraqueceu. Há um consenso em tor- realidade, mas se baseia na possibili- necessidade – o embargo sobre os ar- zação, isolamento, embargo interna- no do mito do belo Irã eterno, terra dos dade de mobilizar milhões de vetera- mamentos privava o país de qualquer 18 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 mos protestar nem ter atividades polí- soldados. Muros de concreto, postos pras em nossas lojas. Mas não vou ven- relativo a crimes cibernéticos], artigos 20 e 51, Ra- ticas outras que não aquelas controla- de controle, catracas para filtrar as der nunca e vou ficar aqui, aconteça o mallah, 24 jun. 2017. De seu lado, o Parlamento is- raelense adotou em primeira leitura, no início de das pelo poder; sofremos pressões de passagens, câmeras de vigilância e que acontecer. Eu espero. O tempo não 2017, uma lei que permite obrigar o Facebook a um lado e de outro. A única solução é pórticos de detecção de metais insta- é nosso inimigo.” suprimir qualquer texto que incite à “violência” ou se envolver de maneira pacífica. Eu, lados pelo Exército israelense, redes de ao “terrorismo”. 7 Cf. “Farid Al-Atrash et Issa Amro”, La Chronique por exemplo, escolhi ficar aqui, não ir malha colocadas pelos comerciantes *Akram Belkaïd e Olivier Pironet são jorna- d’Amnesty, Paris, nov. 2017. para o estrangeiro e trabalhar em fa- para proteger as raras lojas ainda aber- listas do Le Monde Diplomatique. 8 Salam Fayyad, primeiro-ministro da Autoridade Pa- vor da comunidade por meio de ações tas de projéteis e de lixo lançados pelos lestina de 2007 a 2013, colocou em prática em 1 Todos os nomes de nossos interlocutores foram 2008 medidas que facilitam empréstimos para o sociais e culturais. Permanecerei aqui colonos dos prédios, casas palestinas modificados, com exceção dos dois sociólogos e consumo. Estima-se, por exemplo, que dois terços para defender nossos direitos, mesmo degradadas por estes últimos: viver do escritor. das famílias de Ramallah estejam endividadas. Cf. que tenha de aqui deixar minha vida”. aqui é um inferno. Com o rosto marca- 2 “Palestinian Youth” [Juventude palestina], Palesti- “Palestinian workers campaign for social justice” nian Academic Society for the Study of Internatio- [Trabalhadores palestinos fazem campanha por Se permanecer na Palestina é um do, Maher reconhece, mas afirma que nal Affairs (Passia), Jerusalém, abr. 2017. Disponí- justiça social], Middle East Report, Richmond (Es- ato de resistência que exige soumoud não quer mais deixar seu país depois vel em: <www.passia.org>. tados Unidos), n.281, inverno de 2016. (“tenacidade”, em árabe), voltar tam- de ter morado no estrangeiro por três 3 Cf. “Deaths in 2017” [Mortes em 2017], Israel-Pa- 9 “The Status of Youth in Palestine 2013” [A condi- lestine Timeline. Disponível em: <www.israelpales- ção da juventude palestina em 2013], Sharek bém o é. É a opinião de Maher L., de 26 anos. “Eu me exilei na Alemanha, mas tinetimeline.org>. Youth Forum, Ramallah, 2013. anos, comerciante na cidade velha de o chamado de minha terra natal foi 4 “Rapport sur l’assistance de la Cnuced au peuple 10 Cf. Shatha Hammad e Zena Tahhan, “Basil al-Araj Hebron, perto do Túmulo dos Patriar- mais forte. Poderia ir embora de novo. palestinien” [Relatório sobre a assistência da Unctad was a beacon for Palestinian youth” [Basil al-Araj foi cas (ou Mesquita de Ibrahim). Trinta e Os colonos e as organizações que os ao povo palestino], Unctad, Genebra, 10 jul.2017. um ídolo para a juventude palestina], Al-Jazeera, 7 5 Sobre os atentados à liberdade de movimento dos mar. 2017. Quanto à cooperação de segurança entre cinco mil palestinos moravam aqui apoiam nos estimulam a fazer isso: al- palestinos na Cisjordânia, cf. o mapa-pôster inseri- Israel e a Palestina, ler “Na Cisjordânia, o espectro da em 1997. Hoje eles não passam de 8 guns até oferecem dinheiro. Seria uma do em “Palestine. Un peuple, une colonisation” Intifada”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2014. mil, submetidos à pressão permanen- vantagem: meu comércio está mori- [Palestina. Um povo, uma colonização], Manière 11 Cf. Sylvain Cypel, “Pourquoi l’‘Intifada des cou- de Voir, n.157, fev.-mar. 2018. teaux’ continue” [Por que a “Intifada das facas” te de oitocentos colonos particular- bundo, porque são poucos os ousados 6 “Presidential Decree No. 16 of 2017 Regarding continua], Orient XXI, 24 fev. 2016. Disponível em: mente agressivos e de cerca de 3 mil que assumem o risco de vir fazer com- Cybercrime” [Decreto presidencial n. 16 de 2017 <http://orientxxi.info>. RESISTÊNCIA, ABERTURA E PODER O Irã se reinventa como potência local Na guerra fria que o opõe à Arábia Saudita, o Irã pode apoiar-se num arquipélago de minorias xiitas. A República Islâmica lhes ofereceu apoio decisivo, especialmente para combater os jihadistas na Síria e no Iraque. Entretanto, a origem da rivalidade entre as duas potências do Golfo parece muito mais política do que étnica ou religiosa POR BERNARD HOURCADE* om a intervenção da Guarda cional e ameaças de guerra, o Irã está arianos – iranzamin –, que soube man- nos de guerra que defenderam o Irã e a C Revolucionária na Síria e no Ira- que, o Irã, pela primeira vez em sua história moderna, venceu uma batalha militar fora de suas fron- teiras. No dia 21 de novembro de 2017, longe de ser reconhecido como uma potência regional “normal”. O país se acostumou a viver separado, “resistir à agressão estrangeira” e estar à mar- gem da globalização. ter sua identidade, se não sua indepen- dência, resistindo às invasões de gre- gos, árabes, turcos e mongóis, além das ameaças dos impérios Otomano, Russo e Britânico.1 Paradoxalmente, a jovem República Islâmica. O nacionalismo iraniano cultiva o espírito de “resistência”, mas não o de conquista. Durante sua longa história, o Irã foi diversas vezes invadido. E, o presidente Hassan Rohani procla- República Islâmica do Irã assumiu to- desde sua criação como Estado mo- mou o fim da Organização do Estado O ISLÃ CAPTURADO PELO NACIONALISMO talmente esse legado. Ela consolidou o derno, no século XVI, perdeu guerras Islâmico, enquanto o general Ghas- Muitos analistas procuram a expli- Estado central,2 nos primeiros anos da contra seus vizinhos, bem como terri- sem Soleimani, comandante da força cação de tal isolamento em um passado revolução, combatendo três forças tórios. Ele só conseguiu vencer algu- especial Al-Quds, celebrava essa “vitó- muitas vezes distante, evocando o Im- aliadas: o Iraque, as monarquias do mas incursões, algumas razias, por ria decisiva”. O sucesso contra os jiha- pério Aquemênida, do século V a.C., a petróleo e os países ocidentais. exemplo, contra Délhi, em 1739, e Tbi- distas faz parte do renascimento do cultura persa, o xiismo e seu clero. Com O ataque iraquiano de setembro de lisi, em 1795. Por ser ao mesmo tempo Irã no exterior, que inclui sua vitória exagerada frequência, negligenciam-se 1980 selou a imbricação entre o nacio- iraniano e xiita, cercado por popula- diplomática de 14 de julho de 2015, as profundas transformações observa- nalismo e o islamismo. As ambições ções turcas e árabes, sunitas e cristãs, com a assinatura, ao lado de seis gran- das na sociedade e na vida política des- universalistas da Revolução Islâmica o reino da Pérsia não tentou conquis- des potências, de um acordo sobre a de a revolução de 1979. Nacionalismo, rapidamente foram superadas pela tar territórios exteriores, apenas man- questão nuclear capaz de permitir que islamismo, abertura: esses componen- necessidade de defender as fronteiras. ter influência sobre as zonas-tampão o país saia de seu isolamento diplomá- tes estão o tempo todo em mudança, Os guardas revolucionários e os mili- que cercam o Planalto Iraniano: a tico e comercial. concorrência, composição. Nenhum cianos (bassijis) tornaram-se heróis da margem oriental do Tigre, o Cáucaso Na verdade, porém, o Irã não ga- deles desaparece, e seu exato equilíbrio pátria. A vitória de Khorramshahr e a do Sul, o Mar Cáspio, a estepe turco- nha quase nada com essas vitórias. Ao é o que anima a vida política. retomada da cidade, em 22 de maio de mana, as províncias afegãs de Herat e mesmo tempo que o país é acusado de Apesar da oposição dos religiosos, 1982, marcam a libertação do territó- Helmand e, claro, o Golfo Pérsico. ambições hegemônicas, o governo o sentimento nacional – que esteve no rio nacional, e não a vitória do islamis- Após a Segunda Guerra Mundial, a norte-americano de Donald Trump auge durante a dinastia Pahlevi (1925- mo político, do qual ela representa, na principal vocação do Exército do xá era dificulta a renovação econômica tão 1941), a qual glorificava o passado pré- verdade, um primeiro apagamento. A enfrentar uma hipotética agressão so- esperada, recusando-se a suspender -islâmico, e depois durante a naciona- força do poder político do clero xiita e viética. A política militar do Irã confor- de fato as sanções. Claramente, após lização do petróleo, em 1953 – nunca do líder supremo continua sendo uma mou-se a essa estratégia defensiva por quase quatro décadas de marginali- enfraqueceu. Há um consenso em tor- realidade, mas se baseia na possibili- necessidade – o embargo sobre os ar- zação, isolamento, embargo interna- no do mito do belo Irã eterno, terra dos dade de mobilizar milhões de vetera- mamentos privava o país de qualquer FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 19 equipamento moderno: mísseis, avia- ção, tanques, artilharia –, mas espe- cialmente por coerência com a tradi- ção nacional. As Forças Armadas, concebidas para uma guerra assimé- trica defensiva, em torno de forças po- pulares e milícias, não tinha condições de se projetar de forma sustentável no exterior. Assim, o Irã é nacionalista, porém não imperialista. Os veteranos da guerra contra o Iraque, que hoje detêm o poder e con- trolam as administrações, guardam a lembrança dos danos causados pelos mísseis iraquianos nos centros urba- nos. É por isso que fizeram da produ- ção de mísseis balísticos uma priori- dade, ainda menos negociável quando se sabe que os países vizinhos contam com um arsenal infinitamente mais poderoso e eficaz, fornecido pelos paí- ses ocidentais. O consenso nacional a respeito desse assunto é ainda mais © Ali Hashisho forte do que sobre a questão nuclear. Apesar dos desentendimentos quan- to à necessidade de possuir arma atômi- ca, a população concorda que o país Durante funeral em Nabatie (Líbano) de três combatentes do Hezbollah que lutavam na Síria, garotas carregam retratos dos aiatolás tem o direito de decidir sobre isso. A es- Khomeini e Khamenei colha da diplomacia para resolver a cri- se nuclear ampliou com sucesso o al- dos crentes, para não bloquear as am- ocorreu no momento em que o Irã, vi- tas de língua persa para conter a in- cance do espírito de “resistência”. O Irã bições universalistas da revolução. A torioso na frente iraquiana, exigia – fluência dos talibãs. Todavia, os xiitas está orgulhoso de ter forçado grandes oposição radical a Israel foi imediata- em vão – que a ONU reconhecesse o afegãos, bem como os paquistaneses, poderes a negociar com ele em pé de mente privilegiada como meio para Iraque como agressor. Ela foi determi- forneceram numerosos milicianos na igualdade, sobre um assunto de gran- ser aceito no mundo muçulmano. nante para incitar o Irã a fortalecer Síria, com todas as forças estrangeiras de importância. As autoridades não se Na verdade, nada disso funcionou. suas posições no Líbano, com a pers- representando cerca de 10 mil homens, cansam de afirmar seu compromisso Para defender o Estado e resistir à in- pectiva óbvia de prolongar a Guerra sendo 2 mil a 3 mil deles iranianos, vin- com o direito internacional, buscando vasão iraquiana, o Irã logo teve de vol- Irã-Iraque. dos principalmente da força especial o apoio da União Europeia, da Rússia e tar-se para sua identidade ao mesmo O Hezbollah foi então construído Al-Quds. No Iêmen, a minoria xiita he- da China, a fim de frustrar a reviravolta tempo iraniana e xiita, a fim de encon- para ser um aliado estável, de três ma- terodoxa zaidita não tinha nenhuma dos Estados Unidos. trar aliados em um arquipélago de ter- neiras: como ator político fundamental relação com o Irã xiita duodecimano, ritórios dispersos, povoados por mino- em um país árabe; como força armada mas a revolta dos houthis, que os une ANTIGUIDADE DAS REDES LIBANESAS rias étnicas ou religiosas. Armênios, capaz de ações militares ou não con- contra os interesses sauditas, dava ao O principal adversário da nova po- tadjiques de língua persa do Afeganis- vencionais; e como ponta de lança da Irã uma oportunidade de contrariar a lítica de abertura continua sendo esse tão e até curdos do Iraque contrários frente contrária a Israel. O sucesso des- política da Arábia Saudita na Síria. velho nacionalismo que faz a derrota, ao domínio baathista do poder ira- sa estratégia fica claro com o fim da As relações com o Iraque são de o “martírio” e a retirada serem preferí- quiano nos anos 1970 compunham es- ocupação israelense no sul do Líbano uma natureza diferente e muito mais veis a uma vitória que envolva o conta- se arquipélago, constituído essencial- em maio de 2000, a participação do complexa. A rivalidade entre os xiismos to com outros mundos. Mas o medo da mente por minorias xiitas, às vezes Hezbollah no governo libanês desde persa e árabe acentua-se pelo antago- desordem e da guerra que devastam os heterodoxas, espalhadas por todo o 2005 e seu papel central na guerra da Sí- nismo entre o Estado iraniano e o ira- países vizinhos, bem como a memória mundo árabe sunita ou turco. Essa ria, ao lado das forças especiais irania- quiano, especialmente pela oposição dos dramas da revolução, favorecem a geografia de ilhotas impede qualquer nas e das milícias xiitas, em apoio ao re- do aiatolá Ali al-Sistani – muito influen- estabilidade do sistema. Desde sua continuidade territorial, elevando o gime de Bashar al-Assad. Esse é o único te no Iraque – à doutrina iraniana do lí- eleição, em 2013, Rohani encarna esse risco de cerco. sucesso de fato alcançado pelo Irã. der supremo (doutrina do velayat-e fa- espírito de moderação que permite O Hezbollah libanês é, sem dúvida, Os xiitas do Kuwait, da Arábia Sau- qih), que confere ao clero um papel preservar um jogo eleitoral certamen- o carro-chefe desse arquipélago xiita. dita e do Bahrein têm uma forte e lon- preponderante. A derrubada de Sad- te muito limitado, mas real, e o predo- Por séculos, a forte comunidade xiita ga tradição de oposição política nacio- dam Hussein pelos Estados Unidos em mínio institucional do clero.3 libanesa manteve laços estreitos com nal, exemplificada sobretudo pelos 2003 permitiu ao Irã construir uma de- O Estado iraniano moderno foi o Irã.4 A polícia do xá, a Savak, já era apoiadores do aiatolá kuwaitiano licada relação de boa vizinhança: apoio fundado no século XVI, em torno do muito ativa no Líbano, na década de Mohammad al-Shirazi. Mas, ainda ao novo governo de maioria xiita, rela- xiismo, pela dinastia de língua turca 1970, para apoiar o partido xiita mode- que tenham contado com o apoio do ções comerciais intensas, manutenção safávida, mas o islã tornou-se um fator rado Amal, mas principalmente para Irã revolucionário, eles logo se distan- de poderosas redes de influência e milí- político marginal no Irã dos Pahlevi. controlar os membros do clero xiita li- ciaram do novo Estado iraniano, cuja cias. Muitas vezes invasiva, essa pre- Definindo-se como “islâmica”, a jo- banês, como o aiatolá Musa al-Sadr, ingerência enfraquecia sua constru- sença iraniana choca-se com um na- vem república reatava com uma he- que tinha relações com Khomeini. Es- ção de uma oposição nacional unifica- cionalismo iraquiano, ainda forte. rança que facilitava a unidade contra o sas redes libanesas foram imediata- da.5 No Afeganistão, o Irã sempre O primeiro-ministro iraquiano, xá. E, embora o clero e o aiatolá Ruhol- mente utilizadas pela República Islâ- apoiou os xiitas hazara, oferecendo Haider al-Abadi, aprecia o desenvolvi- lah Khomeini tenham capturado o mica do Irã para atacar, por meio de formação religiosa e militar, bem como mento das relações econômicas com o processo revolucionário em seu bene- tomadas de reféns e atentados, os paí- ajuda humanitária, em um contexto Irã e o apoio tanto da força Al-Quds co- fício, eles tiveram de levar em conside- ses que apoiavam o Iraque e cujas tro- sempre instável; no entanto, essa po- mo das milícias xiitas sustentadas ou ração a marginalidade dos xiitas ira- pas ficaram no Líbano, como a França pulação, muito minoritária, não passa controladas pelo país para lutar contra nianos no oceano sunita, afirmando a e os Estados Unidos. A invasão is- de um aliado marginal. Ele precisou o Estado Islâmico, mas agora procura unidade da ummah, a comunidade raelense do Líbano, em julho de 1982, contar também com os tadjiques suni- defender sua independência. A liberta- 20 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 ção de Mossul foi inicialmente um fei- nente islâmico do sistema. Ele também quem estão ligados. Para eles, a ques- verdade que a República Islâmica está to da Legião de Ouro do Exército ira- preocupa os veteranos da Guerra Irã-I- tão não é mudar o regime – ambição se tornando um ator importante no quiano, deixando pouco espaço para raque e os revolucionários de 1979, que até o momento inconcebível, por falta Oriente Médio e perturba a ordem re- as forças diretamente controladas pe- veem surgir rivais. de solução alternativa –, mas, primei- gional, mas a força atual do país não lo Irã. A realpolitik e a prioridade da de- Hoje, vemos que a socialização das ro, melhorar as condições de vida. estaria na capacidade de atração da re- fesa nacional do Irã impõem cautela; o mulheres, a ascensão de gerações mais A gritante necessidade de um de- pública, na socialização das mulheres, Iraque não tem outra escolha a não ser jovens e o progresso da educação senvolvimento econômico mais rápi- na capacidade de desenvolvimento consolidar sua influência na zona- transformaram profundamente o Irã, do enfrenta dois obstáculos. O primei- econômico, na influência de artistas e -tampão ao longo da fronteira, de Bas- que paradoxalmente se tornou um dos ro, que impede qualquer abertura cineastas? ra ao Curdistão, nas cidades sagradas países mais secularizados da região. internacional, é a ausência de uma re- A exportação da Revolução Islâmi- do xiismo, tentando ao mesmo tempo Embora o islã institucional continue forma profunda das estruturas finan- ca, que também portava ambições de fortalecer um Estado iraquiano unifi- bastante visível e repressivo, ele agora ceiras e bancárias e especialmente o independência, liberdade e república, cado e estável. precisa responder às exigências de peso de uma elite econômica corrup- foi contida no início da década de 1980, Na Síria praticamente não existe uma sociedade na qual a modernidade ta. Durante muito tempo, esse proble- mas a dinâmica atual de abertura in- uma população verdadeiramente xii- não é mais prerrogativa de uma mino- ma pareceu insuperável para Rohani. ternacional dá nova vida a suas pala- ta. Os alauitas foram oficialmente cha- ria ocidentalizada.6 Após quatro déca- Mas os protestos das novas classes vras de ordem, especialmente entre o mados de “xiitas” na época do presi- das, o Irã busca sair sem grande crise médias e populares estão mudando as Afeganistão e o Líbano, nesse conjun- dente Hafez al-Assad (1971-2000), para da experiência do islamismo político, relações de forças, provocando acalo- to de “repúblicas” onde, sem precisar- consolidar a aliança entre a Síria e o no momento em que muitos de seus rados debates entre aqueles que ainda mos remontar à época abássida, o Irã Irã. O ex-presidente sírio foi, depois de vizinhos, especialmente após a Pri- querem resistir às mudanças e os que sempre teve influência. Já entre Omã e Yasser Arafat, o primeiro chefe de Es- mavera Árabe, procuram em variantes julgam preferível fazer concessões pa- a Jordânia, em compensação, reinam tado a visitar o Irã após a vitória da Re- desse movimento a solução para seus ra manter o poder. monarquias sobre as quais o Irã real- pública Islâmica, a fim de tirar o país problemas. O outro obstáculo à abertura eco- mente nunca teve ascendência. Após do isolamento. Depois, essa aliança foi A originalidade do caso iraniano nômica vem dos Estados Unidos. É resistir afirmando sua identidade islâ- mantida em todas as guerras regio- está na existência de uma classe média verdade que Trump não denunciou mica e nacional, e em seguida organi- nais, inclusive a luta contra as forças ampla e diversa, que o Irã muitas vezes formalmente o acordo sobre a questão zar sua rede regional de influência, o jihadistas. O Irã temia uma vitória tem fortalecido à sua própria custa. nuclear: ele até o validou novamente Irã, ou mais exatamente sua popula- jihadista na Síria e no Iraque, o que te- Grande parte da população, entregue em meados de janeiro, mas anunciou ção, busca afirmar sua originalidade ria criado em sua fronteira um imenso a si mesma na época do xá, viu sua si- que seria a última vez. O Congresso como potência econômica, industrial território sob o domínio direto ou in- tuação melhorar. A Guerra Irã-Iraque dos Estados Unidos manteve e acen- e cultural. direto da Arábia Saudita e das monar- acelerou a promoção social nas peque- tuou outras sanções, não reconheci- A rivalidade com a Arábia Saudita quias do petróleo. nas cidades das periferias e do campo, das pela ONU ou pela União Europeia, provavelmente será duradoura, muito mobilizando milhões de pessoas: qua- justificadas pela situação dos direitos embora, para evitar uma escalada mi- REVOLTA DA NOVA CLASSE MÉDIA dros do Exército, guardas revolucioná- humanos e pelo “terrorismo” (nesse litar, fale-se cada vez mais, sobretudo As relações com o arquipélago xiita rios e sobretudo simples milicianos caso, apoio ao Hezbollah). Violando as em Paris, na busca por um pacto de ganham importância no contexto de (bassijis). Todos esses veteranos tive- leis internacionais, os Estados Unidos não agressão comparável aos Acordos uma rivalidade exacerbada com a Ará- ram vantagens financeiras, sociais ou proíbem as empresas europeias com de Helsinque, de 1975, entre ocidentais bia Saudita, preocupada com a reno- políticas que os fizeram entrar na nova interesses em seu país de investir no e soviéticos. Isso porque essas duas vada influência iraniana. O Irã se be- classe média, e até na elite, em decor- Irã ou comercializar com ele. Assim, potências emergentes, opostas em tu- neficiou, sem ter buscado isso, com a rência principalmente da educação impedem uma decolagem real das re- do, são também as únicas capazes de política de intervenção norte-ameri- pública e da democratização do ensi- lações comerciais do Irã com o Oci- impor um mínimo de segurança na cana na região – derrubada do Talibã no superior. Mesmo permanecendo li- dente, avivando a impaciência da po- região, não mais apenas com o objeti- afegão em 2001 e de Saddam Hussein gada ao poder islâmico do qual emer- pulação iraniana. Como as sanções vo de assegurar as exportações de pe- em 2003 – e depois com as derrotas giu, essa nova classe média popular norte-americanas são motivadas prin- tróleo e gás do Golfo Pérsico, mas tam- jihadistas. Aos olhos dos iranianos, a começou a descobrir – e a apreciar – o cipalmente pelo apoio do Irã ao Hez- bém para responder às aspirações de Arábia Saudita simboliza a arrogância mundo exterior. bollah e por sua hostilidade a Israel, suas sociedades. de regimes monárquicos que aprovei- Os tumultos de janeiro de 2018 nas numerosas vozes se levantam, espe- taram a marginalização do Irã desde pequenas cidades tornaram visível es- cialmente entre as gerações que não *Bernard Hourcade é diretor de pesquisa 1979 para construir um império eco- sa população que durante muito tem- conheceram a revolução e a guerra, emérito do Centro Nacional de Pesquisa nômico, midiático e político que im- po esteve oculta. A revolta mobilizou o para que essa política apoiada no ar- Científica (CNRS), Mundo Iraniano, Paris. põe seus pontos de vista a toda a re- Irã profundo. Os veteranos da revolu- quipélago xiita fique em segundo pla- gião, com o apoio incondicional dos ção e da Guerra Irã-Iraque têm hoje no. No entanto, não há força constituí- 1 Xavier de Planhol, Les Nations du Prophète. Ma- Estados ocidentais. O conflito com a mais de 60 anos. Eles não são contrá- da nem autoridades capazes de fazer nuel géographique de politique musulmane [As Arábia Saudita e a luta contra os takfiri rios à abertura, mas, como pediu o lí- tal mudança. nações do Profeta. Manual geográfico de política (“excomungadores”) do Estado Islâmi- der supremo Ali Khamenei após acei- muçulmana], Fayard, Paris, 1993. 2 Bernard Hourcade, “Nationalism and the Islamic co e da Al-Qaeda provocam um amplo tar o acordo sobre a questão nuclear, UMA DINÂMICA DE ABERTURA Republic” [Nacionalismo e a República Islâmica]. consenso, não para apoiar o regime de querem continuar “resistindo” a uma Conforme previsto por Olivier In: Meir Litvak (org.), Constructing Nationalism in Al-Assad, considerado incompetente, abertura que não controlam e que car- Roy,7 o islã foi pouco a pouco margina- Iran: from the Qajars to the Islamic Republic [Construindo o nacionalismo no Irã: da dinastia mas para evitar o cerco saudita, rega o risco de tirar seu poder. Seus fi- lizado pela política. Os iranianos per- Qajar à República Islâmica], Routledge, Abingdon, apoiando um poder amigável, inde- lhos continuam inseridos na cultura manecem fiéis à sua fé, mas se torna- 2017. pendente e estável na Síria. da República Islâmica e sofrem seu ram republicanos. Um novo consenso 3 Ver Philippe Descamps e Cécile Marin, “Une mol- lahrchie constitutionnelle” [Uma mularquia consti- Uma nova geração de guardas revo- controle social, muito mais forte nas em favor da abertura do país aproxi- tucional], Le Monde Diplomatique, maio 2016. lucionários e milicianos, vitoriosos em cidades pequenas e médias do que nas ma hoje os diversos componentes da 4 Houchang Chehabi e Hassan Mneimneh (orgs.), uma guerra proativa e não mais de “re- grandes. Maciçamente escolarizados, classe média, inclusive e principal- Distant Relations: Iran and Lebanon in the Last 500 Years [Relações distantes: Irã e Líbano nos sistência”, parece estar se formando. O eles também formam as mais nume- mente aqueles que respeitam a heran- últimos quinhentos anos], I. B. Tauris, Londres, arquipélago xiita, novo instrumento de rosas gerações do país, com idade en- ça da revolução, da resistência duran- 2006. política externa, coloca questões não tre 25 e 40 anos. Conhecem o mundo te a guerra e do islã. 5 Laurence Louër, Sunnites et chiites. Histoire politi- que d’une discorde [Sunitas e xiitas. História políti- apenas aos países vizinhos, mas tam- exterior melhor do que seus pais e se Ver o Irã atual sob a dimensão ex- ca de uma discórdia], Seuil, Paris, 2017. bém aos iranianos partidários da estri- atrevem a exigir mais justiça social e clusiva do xiismo e de um ativismo en- 6 Amélie Myriam Chelly, Iran, autopsie du chiisme ta tradição nacionalista e sobretudo econômica. E começam a contestar o carnado pelo Hezbollah seria um erro. politique [Irã, autópsia do xiismo político], Le Cerf, Paris, 2017. aos partidários da abertura, que te- poder, os métodos e a corrupção da- Seria ignorar as mudanças sociais e 7 Olivier Roy, L’Échec de l’islam politique [O fracas- mem um fortalecimento do compo- queles que governam o país, mas a políticas dos últimos quarenta anos. É so do islã político], Seuil, 1992. FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 21 A URGÊNCIA DE REFUNDAR O MULTILATERALISMO Bombeiros piromaníacos da ordem internacional Ao transgredirem as resoluções da ONU sobre Jerusalém, os Estados Unidos ilustram um dos principais perigos da geopolítica atual: o enfraquecimento dos fundamentos da legalidade internacional, nascida em 1945. Com o fim da Guerra Fria, surgiu a oportunidade de reafirmar uma regra aceita por todos, mas os ocidentais privilegiaram seus próprios interesses POR ANNE-CÉCILE ROBERT* xiste uma ladainha da mídia riamente forjar novas regras. O labora- AMPLAS MARGENS DE INTERPRETAÇÃO do pouca oposição, ela parece ter che- E que acostuma as pessoas a de- terminada visão da sociedade internacional que parece resu- mir-se a um caos crescente (microcon- flitos, ondas migratórias etc.), marca- tório disso foi a Guerra do Kosovo, com seus promotores tentando formalizar um direito de ingerência nos assuntos internos dos Estados. Essa visão, tem- porariamente tornada possível pelo De 1945 até os anos 1990, as regras do jogo eram claras, inscritas em pe- dra na Carta das Nações Unidas. Na- turalmente, os países mais fortes, usando seu direito de veto ou o de gado ao limite com a intervenção na Líbia, em 2011, e depois com o conflito na Síria – sem, contudo, desenhar-se nem um retorno à ordem de 1945 nem a instalação de uma nova ordem clara- do por manifestações de violência apagamento da Rússia e pela reserva uma potência protetora, sempre con- mente definida. cega (atentados, massacres de civis), chinesa, teve seu apogeu com a inter- tornavam essas regras a fim de inter- Em um primeiro momento, o co- no qual se afirmam potências cínicas, venção na Líbia, em 2011, revelando vir militarmente em suas respectivas lapso da União Soviética permitiu um como a Rússia, a Turquia e até mesmo perigosas contradições. zonas de influência: a Rússia na Euro- exercício consensual do direito da os Estados Unidos de Donald Trump. Desde 1945, a ordem internacional pa oriental, os Estados Unidos na guerra, pondo fim aos domínios da Esse caos, muito evidente nos dias é abalada de tempos em tempos por América Central, Paris na África, Israel Guerra Fria. Assim, o Conselho de Se- atuais, já estava latente desde o início crises e guerras. Porém, seus funda- em sua vizinhança. No entanto, e este é gurança da ONU autorizou por unani- dos anos 1990. A queda do Muro de mentos oficiais continuavam sendo os o ponto-chave, tais potências não ten- midade, em nome da segurança coleti- Berlim gerou a crença no início de uma princípios humanistas e sociais oriun- tavam abertamente modificar as re- va, a intervenção militar de 35 países era totalmente nova, uma “globaliza- dos das grandes conferências do pós- gras da Carta nem inventar outras. Elas contra o Iraque (2 de agosto de 1990-28 ção feliz” sob a égide protetora dos Es- -guerra – a da Filadélfia, sobre os direi- tinham, inclusive, um cuidado espe- de fevereiro de 1991). Era quase um es- tados Unidos, ilustrada pela Guerra do tos sociais; e a de São Francisco, que cial em manter as aparências e não tudo de caso para um estudante de Di- Golfo em 1990. Embora essa interven- criou a ONU, sobre a proibição da guer- criar um enfrentamento aberto. A Car- reito Internacional, com a anexação de ção ainda estivesse circunscrita às ba- ra. Mas a instabilidade que se desen- ta das Nações Unidas não apenas ser- um país inteiro por outro – no caso, o lizas definidas pela ONU, a década de volveu diante de nossos olhos é global, via de ponto de referência, mas tam- Kuwait pelo Iraque – constituindo uma 1990 revelou a tentativa, por parte do tanto ideológica como econômica. bém atuava como uma espécie de violação flagrante das regras mais soli- poder norte-americano, de autorita- Ainda que se tenha conseguido apre- contrato de confiança internacional. damente ancoradas desde a Liga das sentar os crashs financeiros de 1998 e As críticas mais fortes a ela (como o ge- Nações, que serviram de base para a de 2008 como acidentes de percurso, a neral De Gaulle denunciando o “troço” Carta das Nações Unidas. Falava-se, eleição de Trump ilustra uma contesta- que contestava o neocolonialismo então, com um entusiasmo inequívo- ção paradoxal, porém emblemática, do francês na África, ou Ronald Reagan co, em uma “nova ordem internacio- dogma do livre-comércio desde seu praguejando contra uma burocracia nal” e no advento de uma verdadeira epicentro, ao mesmo tempo que con- anti-Estados Unidos) foram sempre “comunidade internacional”, que fi- clui o enterro dos direitos sociais. A im- pontuais, sem resultar na demolição nalmente faria reinar o direito contra a pressão de caos provém ainda da re- de um edifício que – por meio do direi- força, o bem contra o mal. composição de forças (novas potências to de veto – validava o status de grande Emblemática do universo político se afirmam, ao passo que outras pati- potência. Assim, havia regras oficiais dos anos 1990, a intervenção da Orga- nam) e da mudança das regras do pró- regendo o uso da força, mesmo sob o nização do Tratado do Atlântico Norte prio jogo internacional, iniciada na dé- risco de permitir interpretações exten- (Otan) no Kosovo em 1999 marca uma cada de 1990 e hoje criticada. sivas, por exemplo, ao invocar-se uma fratura, quase não percebida como tal,1 legítima defesa “preventiva”, contrária das relações internacionais – uma fra- à própria noção de legítima defesa, ne- tura ainda aberta. A propaganda de cessariamente reativa. Aliás, nenhum guerra, transmitida pela mídia, que organismo da ONU validou esse desvio acompanhou o bombardeio de Belgra- semântico, utilizado sobretudo por Is- do, sem mandato das Nações Unidas e rael para justificar o bombardeio de violando o direito da guerra,2 marca o uma usina nuclear iraquiana em 1980. surgimento de um consenso ideológico A partir dos anos 1990, as coisas destinado a minar o que fora penosa- mudaram: vemos a tentativa de modi- mente adquirido em 1945. O orquestra- ficar as regras do jogo internacional, do fracasso da Conferência de Ram- especialmente aquelas relacionadas bouillet – durante a qual a diplomacia ao direito da guerra. Imposta pelo Oci- norte-americana literalmente manipu- dente, sob a presidência de Bill Clinton lou, com o apoio alemão, as chancela- (1993-2001), essa mudança é uma das rias europeias (em primeiro lugar a da causas da profunda instabilidade hoje França, aliada histórica da Iugoslávia) © Suryara verificada nas relações internacionais. – significou uma escolha consciente Embora inicialmente tenha encontra- pela alternativa militar, quando as vias 22 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 pacíficas ainda poderiam ser utilizadas geral, da força. Apesar das tensões da das sanções”: dominado pelo “P3” (os modados. A proclamação de uma “co- para impedir massacres que infeliz- Guerra Fria, o sistema das Nações Uni- três membros permanentes ocidentais munidade internacional” pouco es- mente eram muito reais.3 das continuava oficialmente assentado do Conselho de Segurança: Estados conde o fato de que a virtude é imposta no banimento da guerra e na promul- Unidos, Reino Unido e França), o Con- a alguns, enquanto o cinismo da real- DO KOSOVO À LÍBIA gação de princípios destinados a limi- selho de Segurança adotou, com resul- politik continua sendo prerrogativa de A reunião de Rambouillet falhou tar suas causas. Essa ordem também tados às vezes questionáveis, uma série outros. Aliás, pouca atenção se dá à em um, e somente um, ponto: o presi- correspondia aos interesses dos países de medidas coercivas contra os Esta- natureza e à legitimidade daqueles dente Slobodan Milosevic havia aceita- pequenos, na medida em que proibia a dos que “ameaçam a paz ou a seguran- que definem os valores em questão e do o envio para a Sérvia de observado- ingerência de que os Estados, sobretu- ça internacional”. Por exemplo, a proi- seus contornos precisos: a maioria, res internacionais da Organização para do os colonizadores, usavam e abusa- bição de todo o comércio internacional ocidentais. Impulsionada pela neces- a Segurança e Cooperação na Europa vam para impor seus pontos de vista a imposta ao Iraque durante a Primeira sária luta contra a impunidade, a pro- (OSCE) ou da Comunidade Europeia, populações mais fracas. Ao limitar as Guerra do Golfo, em 1990, teve conse- liferação de tribunais penais interna- mas recusou-se a admitir os enviados condições do uso da força às “amea- quências não justificadas para a popu- cionais também coincide com as da Otan, de cuja imparcialidade ele ti- ças” à paz, a Carta das Nações Unidas lação civil (alimentação, saúde). fronteiras difusas do intervencionis- nha boas razões para duvidar. Com es- priva as potências de argumentos mais Aprendendo com a experiência e com mo de geometria variável da “comuni- se pretexto e sem mandato do Conse- subjetivos. No século XIX, os europeus as críticas, o Conselho de Segurança dade internacional”: Iugoslávia, Serra lho de Segurança da ONU, mas com a alegavam, por exemplo, intervir no Im- passou a especificar o alcance das san- Leoa, Ruanda e Camboja. Mas é espe- participação da França e do Reino Uni- pério Otomano com o pretexto de pro- ções e sua duração, e a prever isenções cialmente a adoção do estatuto do Tri- do, os Estados Unidos lançaram uma teger as minorias cristãs perseguidas por motivos humanitários.9 Mas a ten- bunal Penal Internacional (TPI), em vasta operação de bombardeio aéreo, (“intervenções humanitárias”).5 dência é alargar as missões do órgão, Roma, em 1998, que deve consagrar o em março de 1999, que culminou na A década de 1990 abriu o caminho da assistência técnica à adoção de san- triunfo dos valores comuns de justiça rendição iugoslava três meses depois. para uma mudança no equilíbrio polí- ções pessoais, fora dos quadros legais e reparação, com o objetivo de curar as Esse “uso da força” em condições não tico e jurídico ao ampliar as circuns- previstos. “Essas interpretações exten- feridas de populações martirizadas. previstas pela Carta das Nações Unidas tâncias legítimas de entrada em guer- sivas, até artificiais, das resoluções do Daí a possibilidade, confiada a tais foi replicado na agressão dos Estados ra (jus ad bellum). Essa época foi Conselho”, observam os juristas Anaïs cortes, de julgar inclusive dirigentes Unidos contra o Iraque em 2003, dessa marcada pela disseminação de ideias Schill e Mouloud Boumghar a respeito em exercício, derrotando assim o prin- vez sem o apoio da França.4 como o dever ou o direito de ingerên- do Kosovo e do Iraque, “refletem [...] si- cípio da imunidade diplomática. Mas, A intervenção da Otan no Kosovo cia, caros ao cientista político italiano tuações de contorno do sistema de se- quando se faz isso, postula-se a visão parecia ainda menos justificável por Mario Bettati e ao fundador da entida- gurança coletiva que enfraquecem a de uma justiça apartada tanto das rea- resultar em uma contralimpeza étnica de Médicos Sem Fronteiras (MSF), autoridade e a credibilidade desse ór- lidades locais como das relações de contra os sérvios do Kosovo e, de ma- Bernard Kouchner.6 O poder de Estado gão e, em última análise, ao multipli- força internacionais. neira geral, porque a explosão da Iu- e seus líderes deveriam submeter-se carem as exceções à proibição do uso É desse momento ideológico “clin- goslávia em 1991 levou, com o apoio da aos valores da ordem internacional. da força, levam ao questionamento de toniano” que a sociedade internacio- “comunidade internacional”, princi- Produto desse universo ideológico, “a todo o edifício criado pela Carta [das nal está, diante de nossos olhos, dolo- palmente da União Europeia, à consti- Guerra do Kosovo é lugar de uma prá- Nações Unidas]”.10 rosamente saindo. Em primeiro lugar, tuição de microestados sobre bases tica de ingerência, sem dúvida nenhu- os países ditos emergentes reivindi- nacionalistas ou mafiosas, como o ma”, destaca o ex-presidente do MSF UM RETORNO FRACASSADO cam seu espaço no grande banquete atual Kosovo. Enquanto os dirigentes Rony Brauman, que aprovou a inter- Essas inovações institucionais e da ordem mundial: por que os donos sérvios foram, com razão, julgados na venção na época. “Foi a manifestação políticas destilam a ideia de que a so- da caneta das resoluções da ONU de- década de 2010 pelo Tribunal Penal In- de um direito de ingerência armada? berania é um princípio ultrapassado veriam ser sempre os mesmos? É fato ternacional para a ex-Iugoslávia por Podemos afirmar isso, e é isso que fa- tanto do ponto de vista geopolítico que 70% das resoluções do Conselho violação dos direitos fundamentais, os zem os defensores do ‘direito’ de inge- quanto econômico. A década de 1990 são redigidas pelo “P3”. Bom menino, crimes de guerra da Otan ficaram im- rência que o veem reaparecer triunfal- viu, assim, o apogeu de uma ideologia o Conselho está abrindo seus corredo- punes. O bombardeio intencional de mente na ONU”.7 globalista baseada no triunfo da de- res para a “sociedade civil” e seus gru- alvos civis, inclusive o da Rádio Televi- Em 2005, uma resolução da Assem- mocracia liberal de mercado, que de- pos de trabalho para mais Estados, a são da Sérvia, não foi punido. Essa bleia Geral das Nações Unidas reco- veria reger todo o planeta sob a direção fim de ampliar o consenso presidindo conduta de “dois pesos e duas medi- nheceu um novo princípio não previs- norte-americana. A União Europeia a adoção de seus textos sem que as re- das” recai mais fortemente sobre as re- to na Carta de 1946: a “responsabilidade seria um dos postos avançados de tal lações de forças sejam profundamente lações internacionais pelo fato de que de proteger”. Isso significa que um go- regime, encarregando-se de estender modificadas. Além disso, a Rússia está a intervenção tinha o objetivo de vali- verno, mesmo sendo formalmente so- seus benefícios para toda a Europa fazendo um ruidoso retorno ao cená- dar, com base em informações falsas berano, tem obrigações para com seus central e oriental, pela mecânica da rio internacional. A intervenção russa (como o chamado “Plano Ferradura” cidadãos, obrigações que a “comuni- ampliação do bloco, bem como à Áfri- na Ossétia e na Abcázia em 2008 revela de Milosevic, inventado pela Alema- dade internacional” pode definir e das ca, por meio dos Acordos de Parceria sua determinação em afirmar-se pela nha), o questionamento de um princí- quais pode lembrá-lo manu militari. Econômica.11 A Organização Mundial oposição a um adversário simbolica- pio fundador da Carta das Nações Uni- Não é por acaso que esse princípio foi do Comércio foi criada em 1995 com o mente fácil de criticar: a Geórgia, que das, a inviolabilidade das fronteiras e o criado pela comissão de “personalida- objetivo de estender o Acordo Geral de quer de todo modo juntar-se a uma he- desmantelamento de um Estado- des de alto nível” que redigiu suas Tarifas e Comércio de Mercadorias aos sitante Otan. -membro da ONU (a República Fede- conclusões no momento da Guerra do serviços e à propriedade intelectual. Os Em terceiro lugar – e este é, sem dú- rativa da Iugoslávia). A atual diploma- Kosovo.8 Essa intervenção militar países industrializados assentaram a vida, o ponto de inflexão rumo à saída cia russa fica, assim, muito à vontade “certamente não era estranha a suas autoridade de seu diretório neolibe- do universo ideológico dos anos 1990 e para destacar, sempre que pode, a du- reflexões e propostas finais”, observa ral cooptando países do Sul, reduzi- 2000 –, a intervenção franco-britânica plicidade dos ocidentais, que negam a Brauman. A intervenção na Líbia em dos ao papel dos espectadores (G5, na Líbia em 2011 minou de maneira Moscou o direito de fazer na Abcázia, 2011, única ação militar oficialmente G6, G7, G20). profunda o consenso do “P5” (os cinco na Ossétia e na Crimeia a mesma coisa decidida pelo Conselho de Segurança De aparência estável, essa nova or- membros permanentes do Conselho de que permitiram que outrora fosse feita com base na “responsabilidade de dem carrega as grandes tempestades Segurança). A abstenção construtiva da no Kosovo. Naturalmente, os ociden- proteger”, é, portanto, filha daquela atuais. Celebrada pela mídia e pelos Rússia e da China permitiu adotar uma tais refutam esse paralelo. feita do Kosovo. pensadores dominantes, o questiona- resolução do Conselho de Segurança Em 1945, as grandes potências esta- A operação da Otan no Kosovo foi mento do poder estatal westfaliano12 que autoriza os Estados-membros a to- vam de acordo sobre as regras do jogo, possível graças à ausência transitória poupa as grandes potências, como os mar “todas as medidas necessárias” pa- especialmente quanto ao principal fa- de contrapoderes no cenário interna- Estados Unidos e a França na África, ra “proteger as populações e zonas ci- tor de problemas na cena internacio- cional. No universo da ONU, a década mas também países como Israel, que vis”, incluindo estabelecer uma “zona nal: o uso da guerra e, de maneira mais de 1990 é conhecida como “a década violam abertamente a lei sem ser inco- de exclusão aérea”, “excluindo-se a ins- FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 23 talação de uma força de ocupação es- são “internos internacionalizados”, ou vão uma grande conferência interna- trangeira”. Seja qual for o interesse do seja, disputas locais que degeneram, cional para reconstruir um consenso princípio da “responsabilidade de pro- envolvendo uma multidão de atores – sobre bases claramente discutidas e teger”, sua aplicação constitui uma im- às vezes Estados, mas também grupos consentidas por todos os atores, condi- portante revisão da Carta das Nações transfronteiriços, mafiosos e terroris- ção de sua confiança mútua. Hoje essa Unidas, com todas as incertezas que is- tas. A proteção dos civis, que muitas necessidade se faz sentir cruelmente, à so implica. Esse texto, a fortiori em seus vezes pagam um preço alto em relação medida que os focos de tensão se mul- O olhar da cidadania elementos estruturais, não pode ser re- às unidades de combate, tornou-se tiplicam. A questão do direito de guer- visto sem respeitar os procedimentos uma grande preocupação, que justifi- ra, do uso da força e da proteção dos previstos, sob pena de suscitar uma cri- ca, por exemplo, a extensão do manda- direitos humanos, cada vez mais desfi- se de confiança entre os Estados, inclu- to de algumas operações de manuten- gurada, inclusive pelos europeus em sive os mais poderosos. Na prática, a ção da paz a medidas “ofensivas” em seu tratamento dos refugiados, seria Otan ultrapassou o mandato conferido pelo Conselho de Segurança. A inter- um perímetro limitado. Mas os guar- diões da ordem internacional muitas um dos pontos essenciais. Em seu primeiro discurso na As- Na luta venção também resultou na queda de vezes acabam desconcertados por es- sembleia Geral da ONU, em setembro Muamar Kadafi, violando o direito in- sas crises de um novo tipo. “Ficamos de 2017, Macron elogiou o multilatera- ternacional que proíbe a derrubada de um governo como propósito de guerra. sem saber se devemos garantir ajuda humanitária, conseguir um cessar-fo- lismo, diante de seu belicista colega norte-americano. Ele está pronto para pela O curso dos acontecimentos cho- go ou encontrar uma solução política”, arcar com as consequências disso, in- cou a Rússia e a China, que se conside- constata o professor Alvaro de Soto. clusive na África? “Se a reforma [da raram ludibriadas e não cairiam nova- “Essa abordagem não pode ter outro ONU] não estiver ligada a uma visão mente nessa situação. As discussões no Conselho de Segurança estão mar- resultado além de aumentar as expec- tativas e, portanto, diante do fracasso estratégica do futuro do multilateralis- mo, há um grande risco de que se perca construção cadas por esse evento, com os dois paí- esperado, desvalorizar a moeda da uma transformação profunda e clara- ses se exibindo – com razão – no papel negociação.”13 mente desejada”, adverte Michèle Grif- de lembrar os ocidentais das regras da Carta das Nações Unidas, sobretudo o VISÃO ESTRATÉGICA NECESSÁRIA fin, diretora de planejamento de políti- cas junto ao secretário-geral da ONU. de uma princípio da não ingerência nos assun- Se a ONU está na berlinda, a União “A próxima geração é que terá de con- tos internos do Estados, embora eles Europeia – cuja arquitetura moderna sertar o estrago.” Hoje, conclui ela, “a mesmos façam pouco caso dos direi- tos fundamentais. Aderindo com es- foi projetada na década de 1990 (Trata- do de Maastricht em 1992) – encontra- confiança nas instituições multilate- rais está em seu ponto mais baixo”.14 sociedade tardalhaço ao acordo das Nações Uni- -se duravelmente fragilizada: um das sobre o clima, a China coloca-se exemplo disso é a fratura entre sua *Anne-Cécile Robert é jornalista do Le em um lugar proeminente no cenário internacional, desviando oportuna- parte oriental e os países fundadores sobre a questão da democracia; outro é Monde Diplomatique. mais justa, mente a atenção, por exemplo, de sua a saída do Reino Unido, talvez anteci- recusa em aplicar a decisão do Tribu- pando o apagamento de uma União 1 André Bellon, “Dieu, que la guerre est jolie!” [Deus, como é bela a guerra!], Le Monde, 27-28 mar. 1999. nal Permanente de Arbitragem sobre a disputa com as Filipinas a respeito do Europeia inadequada à nova geopolíti- ca. Mais profundamente, é o status in- 2 Ler Serge Halimi, Dominique Vidal, Henri Maler e Mathias Reymond, L’opinion, ça se travaille! Les solidária e Mar da China. O fim do mundo unipo- ternacional do Estado que se coloca: a médias, les “guerres justes” et les “justes cau- ses” [A opinião, isso se constrói! Mídia, “guerras lar, tão cômodo para os ocidentais, re- União Europeia continua professando justas” e “justas causas”], Agone, Marselha, vela-se na Síria, onde França e Estados Unidos, que bancavam os valentões a superação da soberania nacional, quando potências estabelecidas ou 2014 (1. ed.: 2000). 3 Ler Xavier Bougarel, “Dans les Balkans, dix années d’erreurs et d’arrière-pensées” [Nos Bálcãs, dez sustentável. contra o regime criminoso de Bashar emergentes carregam a bandeira opos- anos de erros e segundas intenções], Le Monde al-Assad em 2012, viram a paz se dese- ta (Estados Unidos, Rússia, Irã, Tur- Diplomatique, set. 1999. nhar sem eles. quia). Quando recebeu Recep Tayyip 4 Cf. Jean-Marc de La Sablière, Dans les coulisses du monde. Du Rwanda à la guerre d’Irak, un grand Enquanto a Carta das Nações Uni- Erdogan em Paris, no dia 5 de janeiro négociateur révèle le dessous des cartes [Nos das tenta limitar e até proibir a guerra, de 2018, o presidente francês, Emma- bastidores do mundo. De Ruanda à Guerra do Ira- as intervenções militares que defor- nuel Macron, lembrou que a integrida- que, um grande negociador revela as cartas ocul- tas], Robert Laffont, Paris, 2013. mam ou violam o direito internacio- de e a estabilidade dos Estados, sejam 5 Ler “As vicissitudes do ‘direito de ingerência’”, Quartas, às 17h, nal (“guerras humanitárias”) são mui- eles amigos dos direitos humanos ou Dossiê, jan-fev. 2012. Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM tas vezes criticadas, seja por seu não, eram elementos fundamentais da 6 Cf. Mario Bettati e Bernard Kouchner, Le Devoir d’ingérence. Peut-on les laisser mourir? [O dever Ribeirão Preto: 107,9 FM) caráter arbitrário, seja porque pare- ordem internacional. Isso anuncia o fe- de ingerência. Podemos deixá-los morrer?], De- cem um elefante numa loja de cristais, chamento dos parênteses abertos na noël, Paris, 1987. 7 Cf. Rony Brauman, Guerres justes? Mensonges et jogando mais lenha na fogueira de década de 1990? É a responsabilidade intox [Guerras justas? Mentiras e manipulação], Quartas, à meia-noite uma ordem instável. de proteger sendo enterrada pelo país Textuel, Paris, 2018. TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da Embora o Conselho de Segurança que tanto agiu para que ela fosse posta 8 Comissão Internacional sobre Intervenção e Sobe- rania Estatal (Iciss), 2000. Vivo Fibra e 186 da Vivo. ainda ocupe um lugar central na ges- em prática na Líbia, em 2011? Um sinal 9 Cf. Alexandra Novosseloff (coord.), Le Conseil de tão da segurança coletiva, como con- de retorno ao espírito da Carta das Na- sécurité des Nations unies. Entre impuissance et firma sua agenda bastante cheia, esta- ções Unidas? toute-puissance [Conselho de Segurança das Na- beleceu-se uma perigosa imprecisão De qualquer modo, falta à socieda- ções Unidas: entre impotência e onipotência], CNRS Éditions, Paris, 2016. quanto às regras do jogo internacio- de internacional a visão estratégica de 10 Ibidem. nal. Para além do teatro hipócrita e de- seu próprio futuro. Como resume o ex- 11 Ler Jacques Berthelot, “Comércio ameaça agricul- sestabilizador dos atores envolvidos, -ministro francês dos Assuntos Estran- tura africana”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2017. observatorio3setor especialmente o “P5”, a sociedade in- geiros Hubert Védrine: “O mundo está 12 O Tratado de Vestfália (1648) reúne, pela primeira ternacional confronta-se com novas em uma situação comparável à do sé- vez, os grandes Estados da Europa que se reco- ameaças e problemáticas, que a Carta culo XIX, sem o Congresso de Viena” – nhecem mutuamente soberanos e concordam de 1945 não havia previsto e que cha- ou seja, sem o momento em que os ato- com princípios para reger suas relações. observatorio3setor 13 Alvaro de Soto, “Les nouveaux enjeux de la diplo- mam os senhores do jogo à reflexão e à res se reúnem para estabelecer seus matie” [Os novos desafios da diplomacia], France responsabilidade. Muitos conflitos papéis. Após o fim da União Soviética, Forum, n.62, Paris, jul. 2016. 1 Michèle Griffin, “Un paysage mondial en mutation” www. observatorio3setor.org.br não cabem nos casos previstos. Eles o secretário-geral da ONU Boutros [Uma paisagem mundial em mudança], France Fo- não são internacionais nem internos: Boutros-Ghali (1992-1996) pediu em rum, n.62, Paris, jul. 2016. 24 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 DE PROTAGONISTA A “FÓSSIL DO DIA” O Acordo de Paris e o Brasil Perante o sobe e desce no entusiasmo sobre o tema mudanças climáticas, é preciso entender o que é o Acordo de Paris, como ele surge, quais são os grandes desafios e obstáculos à sua aplicação, e qual é o papel e a responsabilidade do Brasil na agenda global de clima POR CARLOS RITTL* m 12 de dezembro de 2015, cida- ma, desde que responsáveis por 55% E dãos de todo o planeta, reunidos na França, celebraram a conclu- são de um longo processo de ne- gociação multilateral para um grande acordo global sobre mudanças climá- das emissões globais de gases de efeito estufa, ratificassem o instrumento. Os Estados Unidos, que negociaram du- ramente o protocolo, nunca viriam a ratificá-lo. Mas em 2004, após a União ticas. Emocionado, o ministro francês Europeia retirar objeções à entrada da de Relações Exteriores, Laurent Fa- Rússia na Organização Mundial do bius, batia o martelo que selava o nas- Comércio, seu então presidente, Vladi- cimento do Acordo de Paris. mir Putin, decidiu levar adiante o pro- Muitos governos ratificaram o cesso de ratificação do protocolo. A acordo já no início de 2016, estimulan- adesão russa, em 2005, permitiu que do outros a fazer o mesmo. No dia 4 de Kyoto entrasse em vigor. novembro desse ano, menos de um Esses oito anos de atraso foram ano após sua aprovação, o novo trata- péssimos para o clima. As emissões do do clima entrou em vigor. Nunca globais subiram 23%, enquanto o Pro- antes um acordo sobre qualquer tema, tocolo de Kyoto definia, em média, negociado no âmbito das Nações Uni- uma redução de emissões de 5,2% em das, tinha iniciado sua vigência tão ra- relação a índices de 1990. Dois anos pidamente. Parecia que finalmente os depois, em Bali, Indonésia, na COP13, políticos mundiais haviam tomado o mundo se deu dois anos para nego- juízo e a agenda de clima virara priori- ciar um acordo em “dois trilhos” para dade. Mesmo com metas iniciais tími- Floresta queimada em Apuí, no sul do Amazonas: Brasil é um país totalmente diferente rodar a partir de 2013. Um deles era das ou insuficientes para limitar o daquele que arrancou aplausos do mundo nove anos atrás em Copenhague formado por países industrializados e aquecimento global dentro dos limites seguiria o mesmo esquema de Kyoto. definidos no Acordo de Paris, o mundo O outro era formado pelos Estados ganhava uma chance de colocar, ao das as indicações de que não atingirá no sistema climático global ultrapasse Unidos (ausente de Kyoto) e por países longo do tempo, as emissões globais sua meta de redução de 40% de suas limites considerados perigosos. As ne- emergentes, cujas emissões já atin- de gases de efeito estufa no caminho emissões em 2020 em relação aos ní- gociações para sua introdução inicia- giam patamares significativos e vi- da segurança climática. veis de 1990. E o Brasil, muitas vezes ram-se em 1995, com a primeira COP, a riam a superar as dos países ricos. A No entanto, a onda de otimismo visto como líder entre os países em de- Conferência das Partes (países) signa- proposta era que os países nesse se- não duraria muito tempo. Apenas cin- senvolvimento nas negociações de cli- tárias da convenção, sendo realizada gundo trilho adotassem metas de re- co dias depois, veio o baque: o negacio- ma e em redução de emissões, pela em Berlim. Dois anos depois, em 1997, dução de emissões voluntárias. Num nista climático Donald Trump era elei- queda nas taxas de desmatamento, viu em Kyoto, no Japão, a COP3 aprovou o cambalacho diplomático, ficou acer- to presidente dos Estados Unidos, com o presidente Michel Temer levar adian- primeiro grande instrumento para re- tado que as metas voluntárias dos Es- a promessa de reverter políticas regu- te uma agenda voltada ao atendimento gulação de emissões de gases de efeito tados Unidos não poderiam ser infe- latórias sobre carvão, petróleo e gás na- de demandas da retrógrada bancada estufa, o Protocolo de Kyoto. riores às dos países do primeiro trilho. tural estabelecidas por seu antecessor, ruralista e do setor de petróleo e gás. Na época em que o Protocolo de A intenção foi boa, mas a proposta Barack Obama, de abandonar o Acordo Perante esse sobe e desce no entu- Kyoto foi negociado, a imensa maioria naufragou. Em 2009, na Conferência de Paris e de formar um gabinete reple- siasmo sobre o tema mudanças climá- das emissões de gases de efeito estufa de Copenhague (COP15), o aguardado to de representantes da indústria fóssil. ticas, é preciso entender o que é o vinha dos países industrializados, que acordo internacional que enfim salva- O mundo voltava a temer pelo fracasso Acordo de Paris, como ele surge, quais tinham também a responsabilidade ria o planeta foi soterrado na neve da do multilateralismo em enfrentar a cri- são os grandes desafios e obstáculos à histórica pelo aquecimento observado capital dinamarquesa, numa sabota- se climática com a urgência e a respon- sua aplicação, e qual é o papel e a res- até então. Países em desenvolvimento, gem conjunta de Estados Unidos e sabilidade necessárias. ponsabilidade do Brasil na agenda maiores vítimas da mudança do clima, China, os dois maiores poluidores do Em 2017, Trump cumpriu suas pro- global de clima. não tinham, até ali, grande responsa- mundo. Para o Brasil, porém, Cope- messas. Apoiado por um Congresso O Acordo de Paris é um tratado es- bilidade sobre o problema. Portanto, nhague teve efeito positivo e duradou- dominado por republicanos, jogou por tabelecido entre os 196 países signatá- não deveriam assumir o ônus de con- ro, graças ao oportunismo e ao talento terra as regulações da era Obama que rios da Convenção-Quadro das Na- tribuir para sua solução. O Protocolo político do então presidente Lula. visavam controlar a eficiência e as ções Unidas sobre Mudança do Clima, de Kyoto então definiu limites e metas No começo da conferência, o Brasil emissões de termelétricas a carvão, cuja sigla em inglês é UNFCCC. A con- de redução para as emissões de gases apresentou uma meta voluntária de concedeu incentivos à indústria fóssil e venção de clima da ONU é uma das de efeito estufa de todos os países de- reduzir as emissões de gases de efeito anunciou a saída dos Estados Unidos chamadas Convenções do Rio. Ela senvolvidos e dos países das então cha- estufa de 36,1% a 38,9% até 2020 em re- do Acordo de Paris. nasceu na Eco-92, juntamente com madas economias em transição para a lação ao cenário tendencial. Embora As más notícias para o clima da duas “irmãs”, a Convenção sobre Di- economia de mercado (países da ex-U- com um cenário tendencial bastante Terra em 2017, porém, não vieram ape- versidade Biológica e a Convenção so- nião Soviética e do Leste Europeu). inflado – no setor de energia, por © Bruno Kelly nas da Casa Branca. A Alemanha, anfi- bre Combate à Desertificação. O Protocolo de Kyoto só entraria exemplo, o governo considerou que to- triã da COP23, realizada ano passado A UNFCCC tem por grande objeti- em vigor quando pelo menos 55% dos da energia nova viria de fontes fósseis sob a presidência das Ilhas Fiji, deu to- vo evitar que a interferência humana países signatários da convenção de cli- a partir de 2009, uma ficção –, era a pri- FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 25 meira vez que um país emergente co- cinco anos serão feitas revisões glo- em 2015 e 9% em 2016. Hoje o país é o quer que estivesse a agenda de Michel locava um compromisso significativo bais para balizar o aumento de ambi- sétimo maior emissor de gases-estufa Temer, ela não passava pela proteção de limitação de suas emissões na me- ção. Assim, Paris não tem um “prazo do mundo, com 2,2 bilhões de tonela- das florestas e do clima. sa, pressionando outras grandes eco- de validade”: enquanto houver o pro- das jogadas na atmosfera no ano retra- Ao mesmo tempo, o governo dese- nomias. A meta vinha sendo proposta blema (as emissões de carbono), o sado, segundo o Sistema de Estimativas nhava uma visão para o futuro energé- pelo Ministério do Meio Ambiente, acordo estará de pé. de Emissões de Gases de Efeito Estufa tico do país com ênfase no petróleo, co- mas enfrentava forte oposição da mi- O Brasil chegou a Paris numa situa- do Observatório do Clima (Seeg). Pior mo sua antecessora. Durante o governo nistra da Casa Civil, Dilma Rousseff. ção paradoxal. Por um lado, a gover- ainda, isso aconteceu enquanto a eco- Temer foi aprovada a quebra da exclusi- Lula atropelou sua escolhida e bancou nança climática nacional estabelecida nomia afundava em uma das piores re- vidade obrigatória da Petrobras no pré- a proposta, sabendo que Dilma ficaria no governo Lula foi na prática des- cessões da história nacional, dando ao -sal, o que atraiu forte interesse de em- fragilizada na eleição de 2010 diante mantelada por Dilma. A petista se con- Brasil a honraria duvidosa de ser o úni- presas estrangeiras e tende a acelerar a de Marina Silva e José Serra (então go- tentou em usar o poder de polícia para co grande país do mundo com emis- exploração. No final do ano, o pacote vernador de São Paulo, que tinha aca- conter o desmatamento na Amazônia, sões em expansão e PIB em retração. de boas-vindas ao setor foi finalizado bado de aprovar uma política de clima enquanto planejava extensas obras de A disparada se deveu ao descontro- com a sanção da Lei do Repetro, co- com metas de redução de emissões), infraestrutura (causadoras de desma- le do desmatamento, na esteira da cri- nhecida como “MP do trilhão”, que caso o Brasil fosse para Copenhague tamento) para a região e entregava o se fiscal que fez secar a verba do Ibama concede subsídios multibilionários ao de mãos abanando. Cerrado à expansão do agronegócio. e da crise política que sinalizou aos setor de petróleo até 2040 – quando as A COP15 foi importante para o Entre 2011 e 2015, o Brasil perdeu pro- criminosos ambientais que qualquer petroleiras estimam que a demanda Brasil também por outra razão: foi a tagonismo nas relações internacio- ato ilegal seria anistiado. A chegada de mundial por essa commodity atingirá última vez que o país brilhou na cena nais, e na cena climática não foi dife- Michel Temer ao poder deu razão a seu pico. A MP fez a rede internacional internacional. O segundo discurso de rente. Por outro lado, o país apresentou quem pensava assim. de ONGs Climate Action Network con- Lula em Copenhague, criticando a a NDC mais robusta entre os países ceder o antiprêmio “Fóssil do Dia” ao falta de ação dos ricos e se compro- emergentes, com metas de corte abso- Brasil no ano passado, na COP23. metendo a botar dinheiro para o fi- luto de emissões para 2025 – 37% em A agenda de retrocessos continua nanciamento climático global, foi relação aos níveis de 2005, o que faria o A COP15 foi em 2018, agora com ameaças ao licen- aplaudido de pé por líderes mundiais, país chegar àquele ano emitindo 1,3 importante para ciamento ambiental, a ser votado em delegados e até jornalistas. De volta bilhão de toneladas de gás carbônico fevereiro. Cereja do bolo, avança na Câ- ao Brasil, ainda para fazer frente a equivalente (CO2e). o Brasil também mara um projeto do deputado gover- Marina, o presidente mandou inscre- A pressão da sociedade civil foi de- por outra razão: foi nista Heráclito Fortes (o “Boca Mole” ver as metas voluntárias de Copenha- cisiva para isso: em junho de 2015, o a última vez que o país da planilha da Odebrecht) para cobrar gue na lei de mudanças climáticas Observatório do Clima apresentou brilhou na cena royalties do vento, o que seria um de- em votação no Congresso. Os com- uma proposta de meta e um cálculo sastre para a competitividade da ener- promissos brasileiros no clima pas- consistente demonstrando que o país internacional gia eólica. Não fosse a recessão, que saram, assim, a ser obrigatórios do- poderia fazer mais e limitar suas emis- derrubou as projeções futuras de emis- mesticamente – algo também inédito sões a 1 bilhão de toneladas brutas de são do país, a NDC estaria em risco. entre países em desenvolvimento. CO2 equivalente em 2030. A proposta Um dos primeiros atos de Temer, Enquanto isso, China e Índia, par- Em 2011, na Conferência de Dur- do Observatório do Clima pôs um sar- após ser oficializado na Presidência, ceiros de Brics (com a Rússia e a Áfri- ban, o Brasil continuou demonstrando rafo no nível de ambição e evitou que o em setembro, foi ratificar o Acordo de ca do Sul) e de Basic (com a África do liderança ao ajudar a quebrar a resis- país adotasse uma meta frágil como a Paris. Seu ministro do Meio Ambiente, Sul), tomam uma dianteira que o tência do grupo de países em desenvol- de Copenhague, de reduções relativas. Sarney Filho, conseguiu recompor o or- Brasil poderia partilhar na economia vimento em torno de uma proposta de Ironicamente para um país que no çamento do Ibama e botar a fiscaliza- descarbonizada deste século. A Chi- um novo acordo do clima “aplicável a passado tentou manter as florestas fo- ção no mato outra vez, o que ajudou a na possivelmente está perto de cum- todos”. Essa expressão formaria a es- ra dos mecanismos de Kyoto em nome reduzir a taxa de desmatamento em prir antecipadamente sua meta de sência daquilo que viria a ser o Acordo do “direito soberano a desmatar”, a 2017 em relação à disparada de quase atingir o pico de suas emissões em de Paris: um regime climático interna- NDC brasileira é fortemente baseada 30% do ano anterior. Mas as boas notí- 2030. A Índia vem usando a energia cional no qual todos os países teriam em políticas no setor florestal. Entre cias para o meio ambiente acabaram aí. solar para ampliar o acesso de sua de apresentar metas, embora as dos ri- elas está a proposta – cuja falta de am- Buscando no Congresso a legitimi- imensa população pobre à luz elétri- cos fossem mais estritas. bição é chocante – de zerar apenas o dade que não conquistou pelo voto, Te- ca. Juntos, os dois países devem ins- Pode-se dizer que o Acordo de Pa- desmatamento ilegal e apenas na mer costurou sua governabilidade com talar quase 140 gigawatts (GW) – qua- ris leva a convenção de clima da ONU Amazônia em 2030. Há também um a numerosa bancada ruralista e outras se um Brasil inteiro (160 GW de a uma fase de plena aplicação. Primei- compromisso de restaurar ou reflores- forças do atraso social e econômico. capacidade instalada) – em energia ro, foi estabelecido um objetivo de tar 12 milhões de hectares e, no setor Teve início um movimento, ainda lon- solar entre 2016 e 2020. O último pla- longo prazo: limitar o aquecimento agropecuário, de recuperar 15 milhões ge de acabar, de desmonte de salva- no oficial do Brasil fala em 3,7 GW em global a bem abaixo de 2 °C neste sé- de hectares de pastagens degradadas. guardas socioambientais: redução de 2020 e 9,7 GW em 2026. culo e fazer esforços para limitá-lo a Uma coisa, porém, é ter uma meta. unidades de conservação, anistia à gri- O Brasil, candidato a hospedar a 1,5 °C. Depois, foi criado um jeito dife- Outra, bem diferente, é colocá-la em lagem de terras em grandes proprieda- COP25 em 2019 e em via de eleger seu rente de lidar com as metas nacionais. prática. O sucesso do Acordo de Paris des (de até 2.500 hectares) e uma inves- próximo presidente em 2018, é, em re- Em vez de obrigatórias, como em Kyo- depende essencialmente do compro- tida sem precedentes sobre as terras sumo, um país totalmente diferente da- to, elas se dariam no esquema chama- misso de cada um dos países com suas indígenas, com o desmonte da Funai e quele que arrancou aplausos do mundo do pledge and review: cada país propo- políticas domésticas e com o aumento a incorporação pela administração fe- nove anos atrás em Copenhague. Se al- ria um compromisso, conhecido no nível de ambição climática. As me- deral da tese ruralista do “marco tem- gum candidato espera recuperar algo como NDC (Contribuição Nacional- tas atuais, no melhor dos cenários, se- poral” – segundo a qual índios expul- do prestígio internacional do país e ao mente Determinada), de acordo com riam suficientes apenas para limitar o sos de suas terras antes de 1988 perdem mesmo tempo inseri-lo numa agenda suas circunstâncias nacionais. Ao fi- aquecimento global a 3 °C até o fim do para sempre o direito a elas. Dado que de desenvolvimento do século XXI, a nal de um dado período, estas seriam século. Retrocessos em grandes emis- boa parte do carbono da Amazônia se área de mudança climática seria um verificadas pela comunidade interna- sores, sejam os Estados Unidos, a Ale- encontra armazenado de forma segura excelente lugar para começar. cional. Por fim, Paris inovou decisiva- manha ou o Brasil, tornam cada vez em terras indígenas e unidades de con- mente na maneira de fazer cumprir mais difícil colocar o mundo em um servação, as concessões aos ruralistas *Carlos Rittl é doutor em Ecologia e Recur- seu objetivo. Em vez de determinar caminho de segurança climática. têm impacto direto na proteção do cli- sos Naturais pelo Instituto Nacional de Pes- períodos de compromisso e reabrir o Desde a adoção da NDC, o Brasil viu ma. O corte de 43% no já pífio orça- quisas da Amazônia (Inpa) e secretário exe- acordo para negociação constante- suas emissões de gases de efeito estufa mento do Ministério do Meio Ambien- cutivo do Observatório do Clima, uma rede de mente, ficou determinado que a cada aumentar, na contramão de Paris: 3,5% te em 2017 foi a prova final de que, onde 43 organizações da sociedade civil. 26 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 À PROCURA DE MÃO DE OBRA BARATA O sacro império econômico alemão A fratura leste/oeste da União Europeia não se resume à oposição entre governos autoritários e democracias liberais. Ela reflete uma dominação econômica das grandes potências sobre os países do antigo bloco oriental, utilizados como reserva de mão de obra barata. Desde os anos 1990, as indústrias alemãs foram para a Polônia, a República Tcheca, a Eslováquia e a Hungria POR PIERRE RIMBERT* © Mauricio Planel onsiderada em 1999 o “homem batizado de “Grupo de Visegrado”. das num ambiente de apocalipse in- perspectivas euforizantes. Confiar a C doente da zona do euro” (The Economist, 3 jun. 1999), a Ale- manha estaria miraculosamen- te curada graças às leis de precariza- ção dos assalariados (Leis Hartz), Com efeito, após 25 anos, a rica Alema- nha pratica com seus vizinhos o que os Estados Unidos fizeram com suas fábricas instaladas no México: a deslo- calização (a transferência de plantas dustrial. Se a retomada da fábrica de automóveis tchecoslovaca Škoda pela Volkswagen, em 1991, agitou os espíri- tos, o vizinho capitalista utilizou de início as instalações existentes como cromagem de torneiras ou o polimen- to de banheiras a operários tchecos superqualificados, mas que não recla- mam? Entregar pano aos dedos ágeis de polonesas pagas em zlotys e receber votadas entre 2003 e 2005. Essas refor- produtivas para o exterior) industrial plataformas de terceirização. de volta roupas a seguir vendidas com mas teriam, sozinhas, restabelecido a para a vizinhança. Ela se aproveita, para isso, de um o nome de uma marca berlinense? competitividade das empresas, reani- Solidamente estabelecidas entre o velho mecanismo de deslocalização Descascar crustáceos num país vizi- mando as vendas da Mercedes ao es- II Reich de Otto von Bismarck e o Im- tão discreto quanto pouco conhecido: nho? Isso é possível desde 1990, como trangeiro, e convencido Emmanuel pério dos Habsburgo, no final do sécu- o tráfico de aperfeiçoamento passivo se as fronteiras da União Europeia já Macron a aplicar a receita na França. lo XIX, as trocas econômicas privile- (TAP). Esse procedimento, codificado houvessem desaparecido. Erro fatal. “Para compreender o suces- giadas entre a Alemanha e a Europa no direito europeu em 1986, autoriza a so da Alemanha como exportadora central não são de hoje. Limitadas pela exportação temporária de bens inter- DA CORTINA DE FERRO ÀS MAQUILADORAS mundial”, explica o historiador da eco- Guerra Fria, elas reapareceram nos mediários (ou de peças avulsas) para “O tráfico de aperfeiçoamento pas- nomia Stephen Gross, “é preciso olhar anos 1970 sob a forma de parcerias in- um país não membro onde serão sivo é a versão europeia da medida para além de suas fronteiras, pois o dustriais, tecnológicas e bancárias, fa- transformados e moldados – “aperfei- norte-americana que abriu caminho modelo repousa, em grau decisivo, na vorecendo a Ostpolitik (1969-1974) çoados” – antes de voltarem para o para o desenvolvimento das maquila- urdidura de uma rede de comércio inaugurada pelo chanceler social-de- país de origem, beneficiando-se de doras na região fronteiriça do México com os países da Europa central e mocrata Willy Brandt. A queda do Mu- uma isenção parcial ou total de taxas com os Estados Unidos”,3 explica a oriental”.1 Mais precisamente, nas tro- ro de Berlim chamou para o banquete aduaneiras.2 Após a ruína do Bloco do economista Julie Pellegrin. Mais que cas econômicas desiguais estabeleci- das bestas. Desde o início dos anos Leste, a ampliação das cotas de impor- qualquer outro país-membro, a Ale- das com a Polônia, a República Tcheca, 1990, as multinacionais alemãs se ser- tação oriunda dos países da Europa manha se vale dessa terceirização de a Hungria e a Eslováquia, um quarteto vem das empresas estatais privatiza- central abriu ao patronato alemão acabamento, sobretudo nos têxteis, FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 27 mas também na eletrônica e no setor pública Tcheca, da Eslováquia e da mais fácil imaginar, tomando nosso Essa alienação veio à tona no final automobilístico: em 1996, as empresas Hungria. Esses países representam, emprego, antes um tcheco próximo do de junho de 2017, quando uma greve renanas reimportaram 27 vezes mais para Berlim, um quintal de 60 milhões que um vietnamita longínquo, as des- eclodiu pela primeira vez, desde 1992, (em valor) produtos aperfeiçoados na de habitantes transformado em plata- localizações de vizinhança exercem o numa fábrica gigante da Volkswagen Polônia, República Tcheca, Hungria e forma de produção deslocalizada. Sem poderoso efeito disciplinar descrito em Bratislava.8 O governo eslovaco Eslováquia que suas congêneres fran- dúvida, italianos, franceses e britâni- por uma equipe de economistas que apoiou então a reivindicação de au- cesas. Nesse ano, o tráfico de aperfei- cos também se aproveitam desse co- ninguém pode acusar de esquerdismo: mento de 16% nos salários. “Por que a çoamento passivo representou 13% mércio assimétrico, mas em escala “As novas possibilidades de transferir a empresa que fabrica um dos carros das exportações do Grupo de Visegra- menor. O sucesso dos Audi e dos Mer- produção ao estrangeiro, sem ir muito mais luxuosos e da maior qualidade, do para a União Europeia e 16% das cedes junto às classes superiores chi- longe, modificaram a relação de forças com elevada produtividade do traba- importações alemãs oriundas dessa nesas seria talvez menor se seu preço entre assalariados e patrões alemães. lho, deve pagar a seus empregados es- zona. Alguns setores vão mais longe: não incorporasse os baixos salários Sindicatos e/ou comitês de empresas lovacos metade ou um terço do que 86,1% das importações alemãs de têx- poloneses e húngaros. se viram obrigados a aceitar o descum- paga aos mesmos empregados na Eu- teis e roupas da Polônia seguem esse primento de acordos setoriais, que ropa ocidental?”, interrogou-se o pri- regime. Em menos de uma década, muitas vezes acarretou a diminuição meiro-ministro Robert Fico, um so- constata Julie Pellegrin, “as empresas dos salários dos trabalhadores”. Os re- cial-democrata que governa com os dos países da Europa central e oriental “As novas possibilidades presentantes dos assalariados “perce- nacionalistas.9 Um mês antes, seu co- se integraram a cadeias de produção de transferir a beram que deviam fazer concessões”.6 lega tcheco Bohuslav Sobotka pôs em controladas principalmente pelas fir- produção ao estrangeiro Resultado: a oposição às leis de flexibi- guarda os investidores estrangeiros mas alemãs”. Esse apresamento de na- lização do emprego foi inconsistente. em termos quase iguais.10 Renunciar ções, ainda ontem ancoradas ao leste modificaram a Os salários, então, baixaram. Diretor ao papel de montadores, desenvolver pelo Conselho de Assistência Econô- relação de forças entre do Instituto Alemão para a Pesquisa produções soberanas para o grande mica Mútua, dirigido por Moscou (Co- assalariados e patrões Econômica, Marcel Fratzscher consta- mercado europeu: tal é a vertente eco- mecon, 1949-1991), foi tanto mais rápi- alemães” tou em 2017 que, “para as pessoas pou- nômica do contraprojeto europeu, au- do quanto a exaltação do “consumidor co qualificadas, a taxa horária passou toritário e conservador, concebido pe- liberado” pelo acesso aos produtos de 12 para 9 euros desde 1990” (Finan- los dirigentes do Visegrado.11 Sem isso, ocidentais compensou, durante al- cial Times, 12 jun. 2017). ainda que os salários locais subam gum tempo, o desespero do trabalha- Quando, em 2004, a União Euro- vertiginosamente, essa prosperidade dor subcontratado para dar acaba- peia acolheu os países da Europa cen- UMA HEGEMONIA CONTESTADA relativa só favorecerá a compra... de mento a esses produtos. tral, graças ao empenho incansável da A administração de um quintal automóveis alemães. À medida que os acordos de livre- Alemanha, o processo de anexação da econômico se tornou, sob todos os as- -comércio iam aplanando as tarifas região ao espaço industrial renano já pectos, um bom negócio para os in- *Pierre Rimbert é jornalista do Le Monde aduaneiras, na segunda metade dos estava bastante avançado e acelerou- dustriais alemães. Sucede que uma Diplomatique. anos 1990, o tráfico de aperfeiçoamen- -se ainda mais depois de 2009, com a parte significativa dos fundos euro- to passivo ia perdendo interesse em indústria automobilística alemã mul- peus destinados aos novos países- proveito de investimentos estrangei- tiplicando suas deslocações para os -membros foi parar, como por mágica, 1 Stephen Gross, “The German economy and East- ros diretos (IED). As multinacionais já países do Grupo de Visegrado a fim de em Berlim. “A Alemanha é, de longe, a -Central Europe” [A economia alemã e a Europa centro-oriental], German Politics and Society, v.31, não se contentam em deslocalizar um compensar a perda de lucros por causa maior beneficiária dos investimentos n.108, Nova York, outono de 2013. pequeno segmento de sua produção, da crise financeira. “É um paradoxo da realizados nos países do Visegrado, 2 Cf. o dossiê coordenado por Wladimir Andreff, mas financiam a construção de fábri- história”, observa o pesquisador Vladi- conforme a política de coesão da “Union Européenne: sous-traiter en Europe de l’Est” [União Europeia: terceirizações no Leste Eu- cas filiais onde o trabalho custa me- mir Handl, “o fato de justamente a in- União Europeia”, explica o economis- ropeu], Revue d’Études Comparatives Est-Ouest, nos. De 1991 a 1999, o fluxo de IED ale- tegração europeia, projetada para do- ta polonês Konrad Poplawski. “Tais v.32, n.2, Paris, 2001. mães para os países do Leste Europeu mar o gigante econômico alemão do somas propiciaram exportações su- 3 Julie Pellegrin, “German production networks in Central/Eastern Europe: between dependency se multiplicou por 23.4 No início dos pós-Guerra Fria, ter conferido à Ale- plementares para esses países da or- and globalisation” [Redes de produção alemãs na anos 2000, a Alemanha foi, sozinha, manha um papel hegemônico.”5 dem de 30 bilhões de euros no período Europa central/oriental: entre dependência e glo- responsável por mais de um terço dos A sombra que esse poderio projeta de 2004 a 2015. O benefício acabou balização], Wissenschaftszentrum Berlin für So- zialforschung, 1999, de onde foram tirados os nú- IEDs destinados aos países do Grupo sobre o mapa do continente desenha sendo tanto direto (os contratos assi- meros deste parágrafo. de Visegrado e vem estendendo seu um sacro império industrial cujo cen- nados) quanto indireto: grande parte 4 Fabienne Boudier-Bensebaa e Horst Brezinski, “La empreendimento capitalista à Eslovê- tro compra o trabalho mais ou menos dos fundos foi para as infraestrutu- sous-traitance de façonnage entre l’Allemagne et les pays est-européens” [A terceirização de acabamen- nia, à Croácia e à Romênia. As fábricas qualificado de suas províncias. No no- ras, o que facilitou o trânsito de mer- to entre a Alemanha e os países do Leste Europeu], de autopeças (Bosch, Draexlmaier, roeste, a Holanda (principal platafor- cadorias entre a Alemanha e a Euro- Revue d’Études Comparatives Est-Ouest, op. cit. Continental, Benteler), de plásticos e ma logística da indústria renana), a pa central e oriental. Ponto decisivo 5 Vladimir Handl, “The Visegrád Four and German hegemony in the euro zone” [O Quarteto de Vise- de eletrônica brotam como cogume- Bélgica e a Dinamarca têm esse gran- para as empresas automobilísticas grado e a hegemonia alemã na zona do euro], Vise- los. É que, de Varsóvia a Budapeste, os de vizinho como principal escoadouro alemãs, que precisavam de uma boa grádexperts.eu, 2014. salários médios equivaliam a um déci- comercial, mas suas indústrias de for- rede de transportes a fim de cons- 6 Christian Dustmann, Bernd Fitzenberger, Uta Schönberg e Alexandra Spitz-Oener, “From sick mo dos vigentes em Berlim em 1990 e a te valor agregado e seus Estados de- truir instalações modernas entre man of Europe to economic superstar: Germany’s um quarto em 2010. senvolvidos lhes garantem uma relati- seus vizinhos orientais.”7 resurgent economy” [De homem doente da Europa Esses trabalhadores se beneficia- va autonomia. Ocorre o mesmo com a No caso dos países do Visegrado, o a superstar econômico: o ressurgimento da eco- nomia alemã], Journal of Economic Perspectives, ram do sólido sistema de ensino pro- Áustria, ao sul, também integrada às desequilíbrio é maior. Por um lado, os v.28, n.1, Nashville, inverno de 2014. fissional e técnico adotado no Leste. cadeias produtivas e aos interesses investimentos alemães renovaram a 7 Konrad Poplawski, “The role of Central Europe in Bem mais qualificados que seus cole- alemães, ainda que tenha seus pró- base industrial, provocaram uma the German economy. The political consequen- ces” [O papel da Europa central na economia ale- gas asiáticos, eles estão, além disso, prios pontos altos, sobretudo nas áreas transferência maciça de tecnologia, mã. As consequências políticas], Centre d’Études mais perto: são necessárias quatro se- de serviços e seguros. Mas, a leste, em aumentaram a produtividade e as re- Orientales, Varsóvia, jun. 2016. manas para um contêiner chegar de posição subalterna, quando não colo- munerações e criaram inúmeros em- 8 Ler Philippe Descamps, “Victoire ouvrière chez Volkswagen” [Vitória operária na Volkswagen] Le Xangai a Roterdã, mas bastam cinco nial, as indústrias polonesas, tchecas, pregos secundários, por vezes qualifi- Monde Diplomatique, set. 2017. horas para uma carga volumosa de eslovacas, húngaras, romenas e búlga- cados, a ponto de alarmar o patronato, 9 Citado por Financial Times, Londres, 27 jun. 2017. peças fabricadas nas oficinas de Mla- ras dependem de seu primeiro e prin- que agora teme uma redução da mão 10 Ladka Mortkowitz Bauerova, “Czech leader vows more pressure on foreign investors over wages” dá Boleslav, a nordeste de Praga, al- cipal cliente: Berlim. de obra. Entretanto, essa relação con- [Líder tcheco pressiona investidores estrangeiros cançar a matriz da Volkswagen em Sem essa China bem às portas, os fina a região a uma economia subcon- por melhores salários], Bloomberg, Nova York, 18 Wolfsburg. Assim, a Alemanha se tor- industriais e dirigentes alemães teriam tratada e subordinada: a máquina in- abr. 2017. 11 Ver “De Varsovie à Washington, un Mai 68 à l’en- nou, na virada do milênio, o principal imensas dificuldades em impingir as dustrial pertence ao capital europeu vers” [De Varsóvia a Washington, um Maio de 1968 parceiro comercial da Polônia, da Re- Leis Hartz a seus assalariados. Como é do oeste, alemão em particular. às avessas], Le Monde Diplomatique, jan. 2018. 28 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 ANSIEDADE IDENTITÁRIA NA FRANÇA Integração, a grande obsessão No incessante debate sobre a integração de árabes e africanos na França, alguns preferem se referir a uma época mítica em que italianos, portugueses, poloneses – que seriam “menos diferentes” – eram assimilados sem contratempos. Tomando a questão como essencialmente cultural, essa leitura negligencia as lições de mais de um século de história da imigração POR BENOÎT BRÉVILLE* © Daniel Kondo fanfarra da identidade deseja Trappes que se assusta com o comuni- os africanos? “Os combates em torno niais e pós-coloniais”, analisa o diretor A um feliz 2018. Desde o réveillon, o espancamento de uma poli- cial nas proximidades de uma festa em Champigny-sur-Marne, na região de Paris, deu início a uma con- tarismo muçulmano. Enquanto isso, o ministro da Educação Nacional, Jean- -Michel Blanquer, anuncia a criação de um “conselho dos sábios da laicida- de”, do qual participaria principal- da laicidade são apenas cortinas de fu- maça que dissimulam a verdadeira questão de fundo, a da assimilação”, admite até mesmo o editorialista do Le Figaro, do Le Figaro Magazine e da rá- do Mediapart, Edwy Plenel, que situa o bloqueio na “inconsciência ainda re- calcada da relação colonial, inclusive no seio da esquerda francesa”.3 Laurent Bouvet refere-se também a uma “inte- trovérsia sobre violência na periferia. mente Laurent Bouvet. Já Marlène dio RTL Éric Zemmour, nostálgico do gração que funciona e que permitiu, O caso se transformou em polêmica Schiappa, secretária de Estado para a tempo em que os imigrantes se dobra- geração após geração, a milhões de es- sobre a integração dos imigrantes Igualdade das Mulheres e dos Ho- vam ao “antigo ditado: ‘Em Roma, faça trangeiros se tornarem franceses e, quando um jornalista do Le Figaro pu- mens, publicou o livrinho La Laïcité, como os romanos’”.2 consequentemente, se tornarem a blicou em sua conta no Twitter foto- point! [A laicidade e ponto!] (Éditions França”.4 Mas, se ele fustiga a esquerda, grafias de crianças brincando na la- de l’Aube), que lhe valeu uma longa en- POLONESES REBELDES é por razões opostas às de Plenel: ele a ma, com o seguinte comentário: “O trevista na revista Marianne. “Três Comparar a integração das diver- critica por ter promovido desde os anos bairro pobre de Champigny, que aco- anos após os atentados, ser ‘sempre sas ondas de imigração sempre foi um 1980 o tema do “direito à diferença”, lhia mais de 10 mil portugueses. Sem Charlie’ é ser ‘sempre laico’?”, pergun- jogo muito apreciado por especialistas. abrindo assim caminho para as reivin- ódio nem violência”. Essa ideia foi rapi- ta Reanud Dély (7 jan.). Ao final dessa Nos anos 1930, os demógrafos se diver- dicações comunitárias e o encerra- damente reciclada na televisão por primeira semana, a mídia descobriu tiam em medir o “nível de assimilabili- mento identitário. Laurent Bouvet, cientista político e com estupor e desolação um dado do dade” dos estrangeiros; depois da Essa encenação da história conjuga fundador do coletivo Primavera Repu- instituto de pesquisa Ifop: 48% dos guerra, analistas louvavam o mérito dois pressupostos. O primeiro consiste blicana. “Nos anos 1960, como em franceses consideram a imigração dos nórdicos em detrimento dos euro- em pensar que os estrangeiros se inte- muitas cidades de periferia, em Cham- “um projeto político de substituição peus da bacia mediterrânea. Há trinta grariam mais fácil e rapidamente on- pigny existiam bairros pobres de por- de uma civilização por outra”. Por que anos, um consenso parece surgir para tem do que hoje. Não há dúvidas, os tugueses, e não havia agressão de poli- será...? diagnosticar uma “crise da integração” descendentes de imigrantes muçul- ciais”, afirma em um programa Por trás das múltiplas e longas dis- inédita na história da França. “O que manos sofrem atualmente importan- consagrado à “Laicidade, um valor cussões sobre a laicidade, a religião ou tinha funcionado – com voluntarismo, tes discriminações em matéria de em- ameaçado?” – um tema a priori sem o comunitarismo se escondem fre- apesar do racismo, do antissemitismo prego, alojamento, controles policiais. grande relação com este assunto.1 quentemente as mesmas questões: os e da xenofobia – para os belgas, os polo- Mas enfrentam de fato uma rejeição Em 3 de janeiro, as jornalistas do Le muçulmanos podem se dissolver no neses, os judeus da Europa central e mais significativa do que seus prede- Monde Raphaëlle Bacqué e Ariane caldeirão francês? O islã é compatível oriental, os espanhóis, os italianos, os cessores? Parece inútil estabelecer Chemin começaram um vasto tour com a República? O “modelo republi- portugueses etc. como que se entravou uma gradação da xenofobia, e nenhum midiático para promover La Commu- cano”, que permitiu a integração de assim que se começou a acolher, pro- historiador se arriscaria a fazê-lo. Po- nauté [A Comunidade] (Albin Michel), italianos, poloneses, espanhóis etc., mover e reivindicar os trabalhadores rém, diversos pesquisadores dão des- uma investigação sobre a cidade de pode funcionar com os magrebinos e oriundos de nossas imigrações colo- taque à permanência dos mecanismos FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 29 de exclusão (social, urbana, simbólica) seus emigrados pela França. O gover- dado em 1922 que pretende “conservar pular antiga, que oferecia certa mistu- e aos estigmas que atingem as pessoas no de Roma se empenhou então em um lugar de convívio, trocas intercul- ra social e étnica e cujas ruas anima- de origem estrangeira. Brutais, sujos, tornar vivo o sentimento de vínculo turais e intergeracionais, e permite à das favoreciam os encontros entre ladrões de emprego, agentes do exte- patriótico, criando mais de duzentas comunidade espanhola reforçar uma pessoas de todas as origens. rior: italianos, poloneses, portugueses seções da Associação Nacional dos vida social rica”. Em julho de 2016, na A maioria dessas trilhas hoje está e espanhóis também tiveram de pas- Antigos Combatentes Italianos nas ci- noite da final da Eurocopa, centenas fechada. Em um contexto de desem- sar por isso e, mesmo sendo cristãos, dades francesas, colocando as asso- de pessoas celebraram na Avenida prego em massa e concorrência gene- eram considerados religiosos demais, ciações italianas sob o controle dos Champs-Élysées a vitória de Portugal ralizada no seio das classes populares, supersticiosos, místicos.5 A rejeição, consulados e reagrupando os cultiva- contra a França. Ninguém viu nessa o trabalho tem um papel de divisão em por vezes, durou diversas décadas. dores no seio de cooperativas que de- inundação de bandeiras vermelhas e vez de aproximação. Os bancos das Surgido no último quarto do século pendiam dos bancos italianos. Diante verdes uma ameaça à coesão nacional. igrejas ficaram desertos, as organiza- XIX, o racismo anti-italianos só se apa- disso, os antifascistas encorajavam, ao Assim como ninguém se constrange ções progressistas se esvaziaram e as gou realmente depois da Segunda contrário, os imigrantes a se integra- com o fato de que Matteo, Enzo, Este- periferias populares conhecem uma Guerra Mundial.6 rem na sociedade francesa participan- ban ou ainda Giulia e Elena figurem segregação socioétnica cada vez mais do das lutas sociais e políticas ao lado entre os cinquenta nomes mais dados importante, que repercute na escola das forças populares.7 em 2017 na França – uma lista que não por meio da distribuição dos alunos no Os poloneses chegados após a Pri- contém nenhum nome de origem ára- mapa (ou pela evasão pelas famílias Brutais, sujos, meira Guerra Mundial queriam ainda be, exceto Adam e Inès, que transcen- menos favorecidas). Fazer da origem ladrões de emprego, mais preservar sua “polonesidade”. dem as culturas. dos descendentes dos imigrantes a agentes do exterior: Eles se casavam entre si, recusavam Longe da assimilação fantasiada única fonte de seus “problemas de in- qualquer naturalização e proibiam por alguns, a “integração à francesa” tegração” leva a negligenciar o contex- italianos, poloneses, seus filhos de falar francês dentro de se parece mais com um caminho em to social dessa integração e a transfor- portugueses e espanhóis casa. Algumas cidades do Pas-de-Ca- direção à “invisibilidade, o que não mar em questões de identidade também tiveram de lais contavam com dois times de fute- quer dizer o fim das diferenças, mas a demandas que são, em sua maioria, passar por isso bol: um para os poloneses e outro para aceitação pelo meio de acolhida, quan- profundamente sociais: a igualdade os franceses e demais estrangeiros.8 do ninguém se preocupa mais com as diante do emprego, a escola, a polícia, a Nas grandes festas religiosas, durante diferenças”.10 Esse “caminho em dire- justiça, a habitação, o direito de prati- o período entreguerras, os membros ção à transparência”11 não foi traçado car (ou não) sua religião. De acordo com o segundo pressu- da comunidade se vestiam com as rou- por circulares ministeriais, seminá- posto, discutido com menos frequên- pas tradicionais, depois desfilavam rios universitários ou tribunas sonoras *Benoît Bréville é jornalista do Le Monde cia, os migrantes europeus seriam em procissão entoando cânticos, o que na imprensa: foi o resultado de conta- Diplomatique. mais inclinados a “se assimilar”, a não deixava de desagradar à popula- tos e trocas cotidianas entre as popu- abandonar sua identidade de origem ção local. lações minoritárias e seu meio de in- para abraçar plenamente a cultura O clero polonês, que considerava a serção, na maior parte das vezes um 1 “28 minutes”, Arte, 4 jan. 2018. 2 Éric Zemmour, “Prêchi-prêcha Plenel” [Pregando francesa, do que seus homólogos origi- França uma terra ímpia, encorajava meio urbano, popular, operário. Plenel], Le Figaro, Paris, 1º out. 2014. nários das colônias. Nada é mais falso. seus fiéis a cultivar sua identidade cul- 3 Edwy Plenel, Dire non [Dizer não], Don Quichotte, Cada geração de migrantes teve a preo- tural, sob o olhar benevolente do pa- Paris, 2014. 4 Laurent Bouvet, L’Insécurité culturelle [A insegu- cupação de preservar sua identidade tronato francês, que financiava a cons- rança cultural], Fayard, Paris, 2015. de origem e transmiti-la a seus filhos; trução de presbitérios e igrejas, e até Com desemprego em 5 Cf. sobre esse assunto “Étrangers, immigrés, Fran- cada geração foi atravessada pelas di- mesmo a viagem e o salário de cape- çais” [Estrangeiros, imigrantes, franceses], Ving- massa e concorrência tième Siècle, n.7, jul.-set. 1985; ou, mais recente- ferenças entre aqueles que queriam se lães vindos da Polônia. Que melhor assimilar e aqueles que continuavam proteção do que a de um padre contra generalizada no seio das mente, Gérard Noiriel, Immigration, antisémitisme et racisme en France (XIXe – XXe siècle). Discours vinculados a suas particularidades. a agitação operária e a pretendida de- classes populares, o publics, humiliations privées [Imigração, antisse- mitismo e racismo na França (séculos XIX-XX). No final do século XIX, não era raro pravação do proletariado? Quando trabalho tem um papel Discursos públicos, humilhações privadas], Fa- os italianos mandarem seus filhos pa- dos sermões (em polonês), os padres de divisão em vez de yard, 2007. ra seu país até os 12 anos, antes de tra- se entregavam à apologia de sua terra 6 Pierre Milza, Voyage en Ritalie [Viagem à Ritália], zê-los de volta para a França. Em Paris, natal. Além de qualificarem como trai- aproximação Payot, Paris, 2004. 7 Pierre Guillen, “L’antifascisme, facteur d’intégration Montreuil, Marselha, Nice e Nogent- dores aqueles que pediam a naturali- des Italiens en France dans l’entre-deux guerres” -sur-Marne, alguns bairros transbor- zação, eles nunca perdiam a oportuni- [O antifascismo, fator de integração dos italianos na França no período entreguerras]. In: L’Emigra- davam de lojas de produtos transalpi- dade de criticar a imoralidade da A história demarcou amplamente zione socialista nella lotta contro il fascismo (1926- nos, cafés-hotéis que acolhiam os França e seus objetivos assimiladores. as trilhas dessa integração: o trabalho, 1939) [A emigração socialista na luta contra o recém-chegados, bares onde os exila- Em 1926, conta o historiador Ralph em uma época em que a solidariedade fascismo (1926-1939)], Sansoni, Florença, 1982. 8 Janine Ponty, Polonais méconnus. Histoire des tra- dos se encontravam para jogar morra Schor, um capelão do Nord-Pas-de- operária, o sentimento de pertenci- vailleurs immigrés en France dans l’entre-deux – um jogo de cartas tradicional – ou -Calais “insuflou tanto seus paroquia- mento profissional e a consciência de guerres [Poloneses pouco conhecidos. História para escutar o acordeão, instrumento nos contra os professores franceses classe eram vivos; o serviço militar e dos trabalhadores imigrados na França no período entreguerras], Publications de la Sorbonne, Paris, tipicamente italiano. Graças ao libera- que os alunos começaram a insultar as duas guerras mundiais, que reuni- 2005. lismo da lei de 1º de julho de 1901, os seus mestres, o que deu início a um pe- ram sob a mesma bandeira franceses e 9 Ralph Schor, “Le facteur religieux et l’intégration italianos puderam cultivar esse “mun- queno escândalo”.9 descendentes de estrangeiros; a esco- des étrangers en France, 1919-1939” [O fator reli- gioso e a integração dos estrangeiros na França, dinho” fundando dezenas de associa- O vínculo identitário dos filhos de la, então lugar de aclimatação à cultu- 1919-1939], Vingtième Siècle, n.7, jul.-set. 1985. ções culturais, esportivas, recreativas, imigrantes diminuiu progressivamen- ra dominante e instrumento de ascen- 10 Marie-Claude Blanc-Chaléard, Pour en finir avec de assistência, reservadas a seus com- te, mas pode, no entanto, atravessar são social para os filhos de imigrantes; les bidonvilles. Immigration et politique du loge- ment dans la France des Trente Glorieuses [Para patriotas. Para satisfazer o estado civil gerações. Muitos netos dos poloneses a Igreja Católica, que tentava atrair pa- acabar com os bairros pobres. Imigração e política – que impunha que escolhessem no- chegados no período entreguerras ra si os fiéis estrangeiros propondo pa- de habitação na França dos Trinta Gloriosos], Pu- mes franceses –, os imigrantes nomea- manifestaram emoção quando João trocínio e serviços de auxílio; as lutas blications de la Sorbonne, 2016. 11 Judith Rainhorn, Paris, New York: des migrants ita- vam, é verdade, seus filhos Albert e Paulo II se tornou papa em 1978 e, dois sociais e a militância no seio das orga- liens, années 1880 – années 1930 [Paris, Nova Marie, mas, fora da escola, todo mun- anos depois, diante das esperanças nizações de esquerda, quando o Parti- York: migrantes italianos, anos 1880-anos 1930], do os chamava de Alberto e Maria. suscitadas pela Solidarnosc. Existem do Comunista Francês, a Confedera- CNRS Éditions, Paris, 2005. 12 Patrick R. Ireland, “Race, Immigration and the Poli- A partir de 1922, a preservação da ainda centros culturais espanhóis ção Geral do Trabalho (CGT) e suas tics of Hate” [Raça, imigração e as políticas do “italianidade” dos imigrantes, segun- abertos pelas primeiras gerações de associações-satélite (Socorro Popular, ódio]. In: Anthony Daley (dir.), The Mitterrand Era. do o vocabulário em uso na época, tor- migrantes, como a Colônia Espanhola União das Mulheres Francesas, Turis- Policy Alternatives and Political Mobilization in France [A era Mitterrand. Políticas alternativas e nou-se um objetivo do poder fascista, em Béziers e, em Saint-Denis, o El Ho- mo e Trabalho...) serviam ainda como mobilização política na França], Palgrave Macmil- que queria impedir a assimilação de gar de Los Españoles, um espaço fun- “máquinas de integrar”;12 a cidade po- lan, Basingstoke e Londres, 1996. 30 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 NASCIMENTO HUMANIZADO A violência obstétrica como rotina Figurando como o segundo país com maior número de cesáreas do mundo, o Brasil segue desencorajando mulheres sobre a escolha do parto. A humanização do nascimento é o respeito ao protagonismo feminino e à sua fisiologia POR LUCIANA MOTOKI* mulher engravidou. Conforme Essas iniciativas são de grupos in- A seu útero cresce, ela percebe que o corpo vai deixando de ser somente dela. Desconhecidos colocam a mão em seu ventre sem pe- dir licença, enquanto perguntam: “Pa- dependentes e não estão vinculadas a projetos governamentais. Infelizmente, essa assistência não é acessível a toda a população, já que a maioria das equipes que presta esse ra quando é?”. Algumas respondem: tipo de atendimento é particular. A “Está previsto para dia tal, mas vou usuária do SUS possui poucas opções aguardar o parto normal”. E escutam: de maternidades que oferecem aten- “Corajosa! Conheço uma mulher que dimento humanizado, e mesmo assim ficou aguardando o parto normal e o conta com a sorte de a equipe de plan- bebê passou da hora. Quando fizeram tão respeitar seu plano de parto. As ca- a cesárea foi tarde demais. Cuidado! Se sas de parto são poucas (duas na cidade eu fosse você, agendava logo a cesárea, de São Paulo), e há dificuldade de trans- para não correr esse risco”. ferência para um hospital que respeite Quantas grávidas passaram por si- e acolha as mulheres sem julgamentos. © Flavia Bomfim tuações semelhantes, em que alguém Em 2016, o Ministério da Saúde pu- coloca a cirurgia como a forma mais se- blicou o Protocolo Clínico de Diretrizes gura de nascer? Pode ser o médico que Terapêuticas para a Cesariana, com pa- acompanha o pré-natal, um familiar, râmetros que devem ser seguidos pelos um amigo ou até mesmo um estranho. serviços de saúde, visando reduzir o nú- Vivemos em um país em que a A assistência ao parto no Brasil é mente para estimular a amamentação. mero de cesarianas desnecessárias. Em maioria dos nascimentos ocorre por carregada de intervenções de rotina, Com esse tipo de assistência, é im- 2017, o Ministério da Saúde anunciou as via cirúrgica. O índice de cesarianas muitas vezes desnecessárias e sem possível que essa mulher fale da sua Diretrizes para o Parto Normal e Hu- no Brasil é o segundo maior em todo o embasamento científico. A mulher, experiência de parto de forma positi- manizado, com medidas que devem ser mundo, atrás apenas da Costa Rica.1 O quando entra em trabalho de parto e va. É bem provável que ela não deseje incorporadas por todas as maternida- percentual de cesáreas em 2016, se- procura assistência, tem de enfrentar um segundo parto normal. des, centros de parto normal e casas de gundo dados do Ministério da Saúde, um atendimento pouco empático nas Cada vez mais, mulheres têm bus- parto, visando ao respeito no acolhi- foi de 55,5%. Na rede pública, esse per- maternidades: são privadas da presen- cado informações para não sofrer vio- mento e dando mais informações para centual atingiu 40,2%, enquanto na ça de um acompanhante de sua esco- lência no parto ou serem submetidas a o empoderamento da mulher no pro- rede privada ficou em torno de alar- lha durante todo o processo ou parte cesarianas sem indicação. Existe um cesso de decisão ao qual tem direito. mantes 85% (segundo dados da Agên- dele (pré-parto, parto e pós-parto), fi- movimento, chamado humanização, Apesar de importantes, as medidas são cia Nacional de Saúde). A Organização cam impossibilitadas de ficar na posi- que apoia e ajuda as mulheres que pro- insuficientes para garantir assistência Mundial da Saúde (OMS) considera ção que lhes seja mais confortável pa- curam outra forma de dar à luz. humanizada a todas as usuárias do SUS. aceitável que de 10% a 15% dos nasci- ra lidar com a dor, são submetidas a Ao contrário do que muitos pensam, As más práticas de atenção ao parto mentos ocorram por cesariana. exames de toque excessivos e jejum a humanização não preconiza o parto e ao nascimento, com suas altíssimas A pesquisa “Nascer no Brasil”, di- prolongado. Além disso, escutam fra- natural a qualquer custo, tampouco ig- taxas de cesáreas e excesso de inter- vulgada pela Fiocruz em 2014, aponta ses violentas em vez de palavras de in- nora a segurança para mulher e bebê. É venções desnecessárias, contribuíram que quase 70% das mulheres brasilei- centivo. O exemplo clássico é: “Na ho- um modelo de assistência que respeita para que o Brasil não conseguisse atin- ras desejam um parto normal no iní- ra de fazer não gritou, né?”. Por fim, o protagonismo feminino e a fisiologia gir a meta da ONU de redução de mor- cio da gravidez. No entanto, uma mi- têm as pernas amarradas em posição do parto, e, caso haja necessidade de in- talidade materna. noria o tem como desfecho. O que leva ginecológica e o períneo cortado roti- tervir no processo, a mulher é informa- Há necessidade urgente de mudan- essas mulheres a terminar a gestação neiramente, enquanto alguém sobe da sobre os riscos e os benefícios da in- ça no sistema obstétrico do país para numa cesariana? com força em seu abdome para “aju- tervenção, sempre proposta com base melhoria da assistência ao nascimen- Muitas são as causas atribuídas. dar” o bebê a nascer porque “ela não em evidências científicas. A mulher to. Descentralizar da figura do médico Baixa remuneração dos planos de saú- está colaborando”. participa das decisões do parto e com- a assistência ao parto de risco habitual, de para o parto (que pode demandar Quando finalmente nasce, o bebê partilha responsabilidades. Parto hu- permitindo a atuação de obstetrizes e muitas horas de assistência) e comodi- não é colocado diretamente em seu co- manizado pode ser na água, de cócoras, enfermeiras obstetras, é uma medida dade para o médico (dia e hora marca- lo e é separado para passar por proce- deitada, natural ou com intervenções. eficaz para reduzir o número de inter- dos) estão entre as principais. Além dis- dimentos que poderiam aguardar, co- Atualmente, existem grupos de venções, com maior satisfação da mu- so, a visão equivocada de que a cesárea mo pesar e vacinar. O recém-nascido apoio a mulheres que desejam ser aten- lher no momento do parto e sem au- é mais segura e de que o parto normal também pode sofrer com o excesso de didas nesse modelo de assistência. Boa mentar o número de eventos adversos. envolve um sofrimento muito grande intervenções assim que nasce, como parte desses grupos são gratuitos e se- É preciso discutir o nascer. Deixar são fatores que influenciam o índice. ter suas vias aéreas aspiradas sem indi- manais. Neles são discutidos diversos que a mulher lute sozinha contra um No entanto, é bem estabelecido na lite- cação. Em muitas maternidades, esse temas relacionados a gestação, parto e sistema que oprime suas escolhas é ratura médica que a cesárea está asso- bebê é encaminhado para um berçário pós-parto, com ênfase maior na fisiolo- mais uma forma de violência. ciada a um maior número de complica- e por lá fica algumas horas (às vezes gia do parto, que acaba sendo o mo- ções (hemorragias e infecções na muitas) em observação, sem estar em mento de maior vulnerabilidade. Exis- *Luciana Motoki é médica. mulher; dificuldade respiratória e ne- contato com a mãe e estabelecer um tem ainda grupos virtuais que facilitam cessidade de UTI nos recém-nascidos). vínculo muito importante, especial- o acesso à informação sobre o tema. 1 Dados divulgados pela OMS em 2016. FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 31 LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA E DIREITO À CIDADE Por um 2018 mais seguro para as mulheres Relatório da ActionAid fornece subsídios para a luta das mulheres contra todas as formas de violência ao constatar que, em todo o mundo, elas ainda não desfrutam plenamente do direito à cidade, estando mais suscetíveis que os homens a sofrer agressões quando transitam nos espaços públicos POR ANA PAULA FERREIRA, INGRID FARIAS E JÉSSICA BARBOSA* m 2017, as mulheres brasileiras mulheres, um breve olhar pelo mundo namente do direito à cidade, estando Praticamente uma em cada dez mu- E promoveram inúmeras mobili- zações e denúncias sobre assé- dio, violência, retrocessos nos direitos e todas as formas de opressão sexista que, por muitos anos, perma- que nos rodeia revela o recrudescimen- to do conservadorismo, do neolibera- lismo e do fundamentalismo não só no Brasil, mas também em outros países. Diante dessa conjuntura mundial, mais suscetíveis que os homens a so- frer agressões quando transitam nos espaços públicos. Foram utilizados di- versos indicadores para medir a sensa- ção de segurança das mulheres no lheres já sofreu ataques sexuais de al- guém que não o parceiro. Um terço de todos os assassinatos de mulheres é cometido por seus parceiros íntimos.1 Gerar informações sobre as condi- neceram silenciadas no Brasil. Em di- a organização internacional de com- ambiente urbano, além do nível de ções de vida das mulheres é fundamen- versos momentos, elas se apoderaram bate à pobreza ActionAid lançou, em comprometimento dos governos com tal para cobrar do poder público e de de espaços até então ocupados majori- dezembro de 2017, um estudo compa- a garantia de uma vida sem violência toda a sociedade uma atuação pelo fim tariamente por homens, denunciando rativo sobre a segurança urbana para para nós. O estudo contém um ranking de todas as formas de opressão contra a atitudes machistas. Foram relatados as mulheres em dez países onde reali- dos países e recomenda medidas a se- mulher, tanto nos espaços públicos co- casos nos transportes públicos, nos za a campanha Cidades Seguras para rem adotadas pelos governos para mo nos privados. No que diz respeito ao ambientes de trabalho e, especial- as Mulheres – Brasil, África do Sul, Jor- tornar suas cidades livres da violên- direito à cidade, o relatório evidencia os mente, nas ruas. As mulheres não re- dânia, Nepal, Nigéria, Zimbábue, Ban- cia de gênero. efeitos da cultura machista, apresen- cuaram. Denunciaram a reforma tra- gladesh, República Democrática do O documento sistematiza também tando dados que confirmam a urgência balhista, as revogações de direitos Congo, Libéria e Senegal. O relatório, dados alarmantes. Em todo o mundo, de investir em políticas para que as mu- sexuais e reprodutivos, os altos índices denominado “De quem é a cidade?”, três em cada dez mulheres já levaram lheres tenham acesso a serviços públi- de violência e feminicídios, entre ou- fornece subsídios para a luta das mu- socos e empurrões, foram arrastadas, cos de qualidade, que devem ser sensí- tras violações contra seus direitos. lheres contra todas as formas de vio- ameaçadas com armas, estupradas ou veis e acessíveis a gênero. Esse movimento encontra eco in- lência ao constatar que, em todo o vítimas de outras formas de violência, Os impactos da violência na vida ternacional. Aconteceram mobiliza- mundo, elas ainda não desfrutam ple- principalmente por seus parceiros. das mulheres não são somente físicos. ções similares das mulheres em diver- sos lugares do mundo. A Greve Internacional de Mulheres (Interna- tional Women’s Strike) no dia 8 de março; o grito coletivo “Ni Una Me- nos”, nascido na Argentina e difundi- do por toda a América Latina; e as ações que se multiplicaram pelos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher, celebrados em todo o mundo, são exemplos da força de uma mobilização que ultrapassa fronteiras. Na Arábia Saudita, as mulheres final- mente conquistaram o direito de diri- gir veículos e ir a estádios de futebol. Na Islândia, foi promulgada a primeira lei do mundo de igualdade salarial en- tre homens e mulheres. Nos Estados Unidos, as denúncias de assédios so- fridos durante anos pelas mulheres fi- zeram tremer as estruturas da indús- tria audiovisual. Tudo isso mostra o fortalecimento e a consolidação da articulação feminis- ta. Não se trata tão somente de uma on- da de conscientização de mulheres, mas da transformação dessa consciên- cia em ação articulada para enfrentar os constantes ataques que sofremos © Silene Zepter nos contextos político, econômico e so- cial. No entanto, por mais animadas que esse retrospecto nos faça sentir, pe- la afirmação da força da união entre 32 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 Além das agressões em si, há o medo de blicos sejam universais, acessíveis e co. Em ações que aconteceram no âm- trutura e serviços públicos, afetando circular nos espaços públicos, um mal sensíveis a gênero, incluindo serviços bito da campanha Cidades Seguras pa- diretamente as mulheres, em especial que atinge a todas nós, independente- que previnam a violência contra a mu- ra as Mulheres, da ActionAid, foram as de baixa renda e mais vulneráveis. mente de onde vivemos. Isso impede lher e respondam a esse tipo de violên- desenvolvidas iniciativas articuladas Até mesmo os espaços de participação boa parte de nós de exercer uma cida- cia; colocar em prática políticas fiscais pelas secretarias de Mulheres dessas ci- popular estão em risco. dania plena. Um dos principais fatores progressivas para garantir que os ser- dades, que levaram iluminação pública O ano de 2018 será muito importante apontados no relatório para essa ocor- viços públicos sejam adequadamente de LED a 100% de bairros pobres, apro- para a luta feminista. Haverá eleições rência é a precariedade do transporte financiados; e remover incentivos que varam leis para garantir paradas de amplas e decisivas não apenas no Brasil, público. O estudo ainda aponta que de- empresas possam ter que enfraque- ônibus mais seguras e construíram mas em vários países latino-america- ficiências nos sistemas de educação e çam o respeito e a proteção dos direitos planos municipais de Cidades Seguras nos. Diante de uma onda conservadora, no acesso a alimentação digna, saúde da mulher. para as Mulheres. No município de Ca- neoliberal e com forte fundamentalis- pública, saneamento básico, lazer e Comparativamente aos países es- ruaru, foi criada uma Câmara Técnica mo religioso, os movimentos de mulhe- justiça também se configuram como tudados, o Brasil ficou em quarto lugar de Cidades Seguras para as Mulheres, res deverão desenvolver uma agenda fatores que perpetuam a discrimina- no ranking gerado pelo relatório – atrás aproximando a sociedade civil das de- ainda mais intensa, capaz de fazer fren- ção de gênero. Essa discriminação se de Nepal, Nigéria e Jordânia. O país cisões e orientações sobre as políticas te a qualquer tentativa de retrocesso agrava por elementos étnicos, de casta, ainda dispõe de dados, leis e planos públicas elaboradas. que ameace os direitos não só das mu- classe, idade e orientação sexual. destinados ao combate à violência Embora animadores, esses esforços lheres, mas de toda a população. O relatório dá um panorama sobre contra as mulheres. Nos outros locais, foram pontuais e aplicados por gestões Se considerarmos o enfraqueci- a forma como esses problemas têm si- há uma alarmante lacuna na produção municipais mais favoráveis e sensíveis mento brutal de nossa democracia, re- do, ou não, enfrentados e aponta reco- de informações sobre as condições de às pressões sociais, não chegando a se tomá-la significa defender radical- mendações aos governantes. Entre vida das mulheres. A existência de da- tornar políticas públicas permanentes. mente uma democracia participativa elas, estão coletar e sistematizar dados dos e leis é um passo importante para o As recentes alterações no cenário e representativa em diversidade. Nela, detalhados sobre a violência contra as fim das desigualdades. Apesar disso, político do Brasil estão levando a um as mulheres exercem um protagonis- mulheres em espaços públicos e usar ainda estamos distantes da superação retrocesso nos alcances obtidos em mo marcante, constituindo um poder essas informações para planejar pro- das injustiças sofridas pelas mulheres relação aos direitos das mulheres. O social capaz de transformar nossas gramas de prevenção e resposta rela- e da promoção de cidades mais segu- que se percebe atualmente é um ver- relações e pôr fim a todas as formas de cionados à segurança urbana; garantir ras para elas. dadeiro desmonte de todas as iniciati- opressão sexista, classista, LGBTfóbi- que grupos de mulheres e sobreviven- Essas iniciativas brasileiras de gera- vas de ampliação da nossa cidadania. ca e racista. tes de violência participem, em todas ção de dados e promulgação de leis têm Houve extinção de ministérios que as etapas e processos de elaboração, permitido que governos, principal- trabalhavam especificamente essa *Ana Paula Ferreira, Ingrid Farias e Jéssi- monitoramento e auditoria, desses mente locais, procurem pôr em prática pauta no Executivo federal. Além dis- ca Barbosa são responsáveis pelo Progra- programas; abordar o persistente ma- serviços para ampliar o direito das mu- so, com a redução de repasses de re- ma de Direitos das Mulheres da ActionAid no chismo institucional entre os princi- lheres à cidade. São projetos iniciais, e cursos públicos aos governos esta- Brasil. pais órgãos de implementação desses alguns deles são compartilhados no re- duais e municipais, agravada pela programas, como a força policial, o Ju- latório. Os exemplos brasileiros vêm de crise econômica, está em curso no 1 Monya Barker, “Violence Against Women at Epide- mic Proportions” [Violência contra mulheres em diciário e o setor público como um to- Heliópolis, na cidade de São Paulo, e de país um profundo enxugamento dos proporções epidêmicas], Scientific American, 20 do; garantir que todos os serviços pú- Garanhuns e Caruaru, em Pernambu- investimentos na melhoria de infraes- jun. 2013. DISCURSO PÚBLICO VS. VIDA PRIVADA O que a conduta de Harvey Weinstein nos diz sobre a esquerda POR THOMAS FRANK* té o escândalo Harvey Weins- Democrata e seu apoio generoso a o jornal francês Charlie Hebdo, ele ção que as boas obras anteriores de A tein surgir na primeira página dos jornais, eu jamais tinha ou- vido falar dessa figura. Sem dú- vida, era o único jornalista dos Estados Unidos a dar prova de tamanha e total uma série de personalidades e a diver- sas boas causas consideradas progres- sistas. Durante muito tempo, foi até mesmo considerado adversário inaba- lável do racismo, do sexismo e da cen- brandiu bem alto a tocha da liberdade de expressão: “Ninguém jamais pode- rá destruir a capacidade que têm os grandes artistas de nos retratar nosso mundo”, proclamou em 11 de janeiro Weinstein: a de uma câmara de com- pensação social na qual os novos parti- cipantes do belo mundo recebem seus títulos de nobreza – na França, outrora, isso era chamado de savonnette à vilain ignorância. Quem era, então, esse pro- sura. Deve-se a ele, por exemplo, uma de 2015 nas páginas da revista Variety. [literalmente, “sabonete para vilão”; dutor de cinema acusado de ter agre- grande quantidade de festas suntuo- Foi também um apoiador incondi- trata-se do título de nobreza vendido a dido sexualmente um número incal- sas destinadas a levantar fundos para cional de Barack Obama e Hillary Clin- plebeus no Antigo Regime]. culável de mulheres? Ao começar a me a luta contra o HIV e a aids. Em 2004, ton. Ninguém encarnou melhor do que Participar de um evento da Funda- inteirar do assunto, descobri que não ele havia manifestado seu apoio públi- ele as ambiguidades dessa elite demo- ção Clinton é novamente atingir o fazia muito tempo ele era famoso por co a um grupo de mulheres batizado crata representada pela Fundação maior índice da bondade. Ali se en- outro motivo completamente diferen- de “Mães que se opõem a Bush”.1 Na Clinton. As festas de caridade que esta contra uma grande quantidade de ce- te: sua íntima relação com o Partido sequência do ataque terrorista contra organizava garantiam a mesma fun- lebridades, um leque de personagens 32 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 Além das agressões em si, há o medo de blicos sejam universais, acessíveis e co. Em ações que aconteceram no âm- trutura e serviços públicos, afetando circular nos espaços públicos, um mal sensíveis a gênero, incluindo serviços bito da campanha Cidades Seguras pa- diretamente as mulheres, em especial que atinge a todas nós, independente- que previnam a violência contra a mu- ra as Mulheres, da ActionAid, foram as de baixa renda e mais vulneráveis. mente de onde vivemos. Isso impede lher e respondam a esse tipo de violên- desenvolvidas iniciativas articuladas Até mesmo os espaços de participação boa parte de nós de exercer uma cida- cia; colocar em prática políticas fiscais pelas secretarias de Mulheres dessas ci- popular estão em risco. dania plena. Um dos principais fatores progressivas para garantir que os ser- dades, que levaram iluminação pública O ano de 2018 será muito importante apontados no relatório para essa ocor- viços públicos sejam adequadamente de LED a 100% de bairros pobres, apro- para a luta feminista. Haverá eleições rência é a precariedade do transporte financiados; e remover incentivos que varam leis para garantir paradas de amplas e decisivas não apenas no Brasil, público. O estudo ainda aponta que de- empresas possam ter que enfraque- ônibus mais seguras e construíram mas em vários países latino-america- ficiências nos sistemas de educação e çam o respeito e a proteção dos direitos planos municipais de Cidades Seguras nos. Diante de uma onda conservadora, no acesso a alimentação digna, saúde da mulher. para as Mulheres. No município de Ca- neoliberal e com forte fundamentalis- pública, saneamento básico, lazer e Comparativamente aos países es- ruaru, foi criada uma Câmara Técnica mo religioso, os movimentos de mulhe- justiça também se configuram como tudados, o Brasil ficou em quarto lugar de Cidades Seguras para as Mulheres, res deverão desenvolver uma agenda fatores que perpetuam a discrimina- no ranking gerado pelo relatório – atrás aproximando a sociedade civil das de- ainda mais intensa, capaz de fazer fren- ção de gênero. Essa discriminação se de Nepal, Nigéria e Jordânia. O país cisões e orientações sobre as políticas te a qualquer tentativa de retrocesso agrava por elementos étnicos, de casta, ainda dispõe de dados, leis e planos públicas elaboradas. que ameace os direitos não só das mu- classe, idade e orientação sexual. destinados ao combate à violência Embora animadores, esses esforços lheres, mas de toda a população. O relatório dá um panorama sobre contra as mulheres. Nos outros locais, foram pontuais e aplicados por gestões Se considerarmos o enfraqueci- a forma como esses problemas têm si- há uma alarmante lacuna na produção municipais mais favoráveis e sensíveis mento brutal de nossa democracia, re- do, ou não, enfrentados e aponta reco- de informações sobre as condições de às pressões sociais, não chegando a se tomá-la significa defender radical- mendações aos governantes. Entre vida das mulheres. A existência de da- tornar políticas públicas permanentes. mente uma democracia participativa elas, estão coletar e sistematizar dados dos e leis é um passo importante para o As recentes alterações no cenário e representativa em diversidade. Nela, detalhados sobre a violência contra as fim das desigualdades. Apesar disso, político do Brasil estão levando a um as mulheres exercem um protagonis- mulheres em espaços públicos e usar ainda estamos distantes da superação retrocesso nos alcances obtidos em mo marcante, constituindo um poder essas informações para planejar pro- das injustiças sofridas pelas mulheres relação aos direitos das mulheres. O social capaz de transformar nossas gramas de prevenção e resposta rela- e da promoção de cidades mais segu- que se percebe atualmente é um ver- relações e pôr fim a todas as formas de cionados à segurança urbana; garantir ras para elas. dadeiro desmonte de todas as iniciati- opressão sexista, classista, LGBTfóbi- que grupos de mulheres e sobreviven- Essas iniciativas brasileiras de gera- vas de ampliação da nossa cidadania. ca e racista. tes de violência participem, em todas ção de dados e promulgação de leis têm Houve extinção de ministérios que as etapas e processos de elaboração, permitido que governos, principal- trabalhavam especificamente essa *Ana Paula Ferreira, Ingrid Farias e Jéssi- monitoramento e auditoria, desses mente locais, procurem pôr em prática pauta no Executivo federal. Além dis- ca Barbosa são responsáveis pelo Progra- programas; abordar o persistente ma- serviços para ampliar o direito das mu- so, com a redução de repasses de re- ma de Direitos das Mulheres da ActionAid no chismo institucional entre os princi- lheres à cidade. São projetos iniciais, e cursos públicos aos governos esta- Brasil. pais órgãos de implementação desses alguns deles são compartilhados no re- duais e municipais, agravada pela programas, como a força policial, o Ju- latório. Os exemplos brasileiros vêm de crise econômica, está em curso no 1 Monya Barker, “Violence Against Women at Epide- mic Proportions” [Violência contra mulheres em diciário e o setor público como um to- Heliópolis, na cidade de São Paulo, e de país um profundo enxugamento dos proporções epidêmicas], Scientific American, 20 do; garantir que todos os serviços pú- Garanhuns e Caruaru, em Pernambu- investimentos na melhoria de infraes- jun. 2013. DISCURSO PÚBLICO VS. VIDA PRIVADA O que a conduta de Harvey Weinstein nos diz sobre a esquerda POR THOMAS FRANK* té o escândalo Harvey Weins- Democrata e seu apoio generoso a o jornal francês Charlie Hebdo, ele ção que as boas obras anteriores de A tein surgir na primeira página dos jornais, eu jamais tinha ou- vido falar dessa figura. Sem dú- vida, era o único jornalista dos Estados Unidos a dar prova de tamanha e total uma série de personalidades e a diver- sas boas causas consideradas progres- sistas. Durante muito tempo, foi até mesmo considerado adversário inaba- lável do racismo, do sexismo e da cen- brandiu bem alto a tocha da liberdade de expressão: “Ninguém jamais pode- rá destruir a capacidade que têm os grandes artistas de nos retratar nosso mundo”, proclamou em 11 de janeiro Weinstein: a de uma câmara de com- pensação social na qual os novos parti- cipantes do belo mundo recebem seus títulos de nobreza – na França, outrora, isso era chamado de savonnette à vilain ignorância. Quem era, então, esse pro- sura. Deve-se a ele, por exemplo, uma de 2015 nas páginas da revista Variety. [literalmente, “sabonete para vilão”; dutor de cinema acusado de ter agre- grande quantidade de festas suntuo- Foi também um apoiador incondi- trata-se do título de nobreza vendido a dido sexualmente um número incal- sas destinadas a levantar fundos para cional de Barack Obama e Hillary Clin- plebeus no Antigo Regime]. culável de mulheres? Ao começar a me a luta contra o HIV e a aids. Em 2004, ton. Ninguém encarnou melhor do que Participar de um evento da Funda- inteirar do assunto, descobri que não ele havia manifestado seu apoio públi- ele as ambiguidades dessa elite demo- ção Clinton é novamente atingir o fazia muito tempo ele era famoso por co a um grupo de mulheres batizado crata representada pela Fundação maior índice da bondade. Ali se en- outro motivo completamente diferen- de “Mães que se opõem a Bush”.1 Na Clinton. As festas de caridade que esta contra uma grande quantidade de ce- te: sua íntima relação com o Partido sequência do ataque terrorista contra organizava garantiam a mesma fun- lebridades, um leque de personagens FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 33 glorificados por seu altruísmo e seu mento de Tobruque”), documentário democrata de 2016. Na noite da eleição tion), poderoso grupo de pressão nor- infalível valor moral e que, muitas ve- dirigido por um ensaísta francês, Ber- presidencial de novembro de 2008, ele te-americano dos amantes de armas zes, têm um nome simples, como o nard-Henri Lévy, elegantemente ves- aplaudiu a vitória de Obama porque as de fogo, e financiar bolsas de estudos cantor Bono e a jovem paquistanesa tido e obstinado em promover, no ce- “cotações na Bolsa de Valores [iam] su- reservadas às mulheres (The New York Malala, que ganhou o Prêmio Nobel. nário internacional, a destruição em bir em todo o mundo”. E seu humanis- Times, 5 out. 2017). Personagens santificados, beatifica- 2011 do regime de Muamar Kadafi – mo se tinge às vezes de azinhavre. No Com esse escândalo, sem dúvida dos, com os quais o contato gera uma mais conhecida nos Estados Unidos dia 5 de novembro de 2012, por ocasião trata-se também de algo mais profun- reciprocidade que permite aos gran- como “guerra de Hillary” e da qual a da estreia de Seal Team Six [no Brasil, O do. Muita gente de esquerda se consi- des peixes do mundo dos negócios ob- Líbia, sete anos depois, ainda não se homem mais procurado do mundo], fil- dera resistente à autoridade. Mas, aos ter, com a ajuda de contribuições finan- recuperou. A descrição que Weinstein me de exaltação ao comando norte-a- olhos de algumas de suas lideranças, a ceiras, um brevê de bom samaritano. faz disso ilustra o nível de afetação e mericano que matou Osama bin La- esquerda moderna é um meio de justi- No centro desse jogo de ilusionismo, de pedantismo que é possível alcançar den, coproduzido por sua produtora, ficar e exercitar um poder de classe – os Clinton são os mestres de cerimô- em um só parágrafo: “Este filme ma- ele decidiu prestar uma homenagem principalmente o da “classe criativa”, nia. Têm um pé em cada campo: o das ravilhoso mostra a coragem incrível inflamada a um dos artífices mais de- como alguns gostam de denominar a grandes almas virtuosas e o menos re- de BHL [Bernard-Henri Lévy] e a força preciados da Guerra do Iraque: “Colin fina flor dos investidores de Wall luzente dos negócios lucrativos em- do ex-presidente Nicolas Sarkozy, re- Powell, o maior gênio militar de nossos Street, e dos empresários do Vale do Si- presariais. Weinstein personificaria velando ao mesmo tempo a inestimá- tempos, apoia o presidente Obama. E lício e de Hollywood. A idolatria da melhor do que ninguém essa Bolsa de vel liderança do presidente Barack os militares o adoram. Fiz esse filme. qual esses ícones do capitalismo são Valores morais. Obama e da secretária de Estado, Hil- Conheço os militares. Eles respeitam objeto resulta de uma doutrina políti- É ele o campeão da humanidade lary Clinton. Ele permite ao público esse homem pelo que ele fez. Ele matou ca que permitiu aos democratas cap- acusado de violências sexuais com norte-americano mergulhar nos bas- mais terroristas em um breve exercício tar quase tanto dinheiro quanto seus uma frequência e gravidade inimagi- tidores em que o governo de nosso de sua função que George Bush em oito rivais republicanos e se impor como náveis. Eis que esse infatigável defen- país e o da França trabalharam juntos anos. É ele o verdadeiro falcão”. representantes naturais dos bairros sor da liberdade de imprensa se revela para cessar o massacre de civis ino- No mundo de Weinstein, o engaja- residenciais privilegiados. uma pessoa virtuosa na arte de mani- centes e conseguiram brilhantemente mento político se coloca sob o patrocí- Não há o menor motivo para nos pular os jornalistas, com imunidade abater um regime”. Isso lhe valeria a nio da indústria do luxo, em Martha’s espantarmos com o fato de essa es- para molestá-los fisicamente quando seguinte devolução de afeição de Ber- Vineyard assim como nos Hamptons – querda neoliberal mundana atrair eles insistem em fazer perguntas em- nard-Henri Lévy: “Tenho uma profun- dois lugares privilegiados do jet-set personagens como Weinstein, com baraçosas.2 Mas o produtor pop star de da estima por Harvey Weinstein. Além norte-americano –, para cerimônias de sua prodigiosa capacidade de levantar Hollywood soube também mostrar de seu êxito cinematográfico, ele é pa- apoio a um candidato e para uma festa fundos e sua reverência pelos “grandes uma imagem afável, tecer uma rede de ra mim antes de mais nada o homem beneficente. Roger Ebert, influente artistas”. Nesses círculos em que se contatos que lhe devem obrigações, que lançou a Amnesty International crítico de cinema, assim relatou uma mistura estar com a consciência tran- receber e recusar os que se encontram USA [Anistia Internacional Estados recepção que se deu em 2000, em Can- quila e ter um sentimento de superio- em ascensão. Unidos], lutou contra a pena de morte nes, a favor da pesquisa contra a aids: ridade social, e em que se cultiva a fic- Em 2012, ele comprou os direitos e um dos raros norte-americanos que “A venda privada nos leilões e o desfile ção de uma relação íntima entre de exploração no território norte-ame- conduziram a batalha contra os lin- de modas foram acompanhados de classes populares e celebridades do ricano do Serment de Tobrouk (“O jura- chadores de [Roman] Polanski” – dire- um jantar e de um leilão público diri- showbiz, o cofundador da Miramax tor de Chinatown e O bebê de Rose- gido pelo diretor da Miramax, Harvey estava como um peixe na água. mary, acusado de agressões sexuais e Weinstein, que este ano não só leiloou São numerosos os frequentadores de estupro de menores de idade (AFP, uma massagem pela top model Heidi desse tipo de ambiente que, muito 18 maio 2012). Klum, mas também convenceu [o ator bem informados, se mostram agora O progressismo de Weinstein se Kenneth] Branagh e [o ator James] escandalizados diante das baixezas media mais em louros que em dólares. Caan a tirar a camisa e servir de co- de um dos seus. Sua cegueira é da O prodígio de Hollywood tinha assen- baias para uma demonstração de seus mesma grandeza que a força de suas to no conselho de administração de di- talentos. A massagem foi arrematada reações. Ultimamente, perambulam versos órgãos sem fins lucrativos; os por US$ 33 mil. ‘Karl Marx morreu’, em um labirinto de espelhos morais filmes de sua produtora, a Miramax, observou o realizador James Gray”.3 deformantes derramando lágrimas de ganharam Oscars e Globos de Ouro Cada partido tem seus estratage- compaixão por suas próprias virtudes copiosamente; na França, ele chegou mas; Donald Trump está lá para nos e elegância. a receber a Legião de Honra. Em lembrar disso toda semana. Mesmo de junho de 2017, quatro meses acordo com essa regra, Harvey Weins- *Thomas Frank é jornalista e escritor. Autor antes de estourar o escânda- tein se destaca. Raramente um homem de Pourquoi les riches votent à gauche [Por lo de suas agressões e ma- que defendeu com tanta pompa as que os ricos votam na esquerda], Agone, nobras para silenciar as boas causas se dedicou com a mesma Marselha, a ser publicado no próximo dia 17 vítimas de sua tirania intensidade a desrespeitá-las. Como de março. sexual, o clube da im- compreender que ele tenha consegui- prensa de Los Angeles do se identificar com ideias de esquer- o premiou ainda com da? Talvez pelo gosto do poder, para o Truthteller Award, desfrutar da vibração de ter alguém co- o prêmio do “conta- mo Bill Clinton entre os amigos. Ou en- 1 O grupo Mothers Opposing Bush [Mães que se dor de verdade”. tão pelo desejo de absolvição moral, o opõem a Bush] se formou para impedir a reeleição desse presidente porque se supunha que seu go- Uma impostura mesmo que incita o Walmart, o Gold- verno constituía um risco aos “valores de honesti- grosseira? É certo man Sachs ou a ExxonMobil a patroci- dade, compaixão, comunidade e patriotismo” que que sua consciên- nar obras de caridade. No mundo das caracterizariam a América. 2 Foi o que fez em novembro de 2000 com o jornalis- cia política não bri- grandes fortunas, o liberalismo fun- ta Andrew Goldman, do Observer. Ver Rebecca lha nem por sua ciona como máquina de lavar para tor- Traister, “Why the Harvey Weinstein sexual-harass- consistência nem nar sua avidez mais apresentável. Não ment allegations didn’t come out until now” [Por que as alegações dos assédios sexuais por parte por sua profundida- foi por acaso que, à guisa de primeira © Daniel Kondo de Harvey Weinstein não tinham vindo à tona até de. Por exemplo, ele réplica desesperada às acusações acu- agora], The Cut, 5 out. 2017. foi fortemente contra muladas contra ele, Weinstein prome- 3 Roger Ebert, “Elizabeth Taylor helps host surreal AIDS benefit” [Elizabeth Taylor ajuda cerimônia be- a candidatura de Ber- teu lutar contra a Associação Nacional neficente surreal contra a aids], 21 maio 2000. nie Sanders à primária de Rifles (NRA – National Rifle Associa- Disponível em: <www.rogerebert.com>. 34 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 GÊNERO Mudanças na sexualidade, permanência do sexismo Libertada, a palavra das mulheres permitiu a conscientização a respeito da amplitude da violência e do assédio a que são submetidas cotidianamente. Por outro lado, como explicar essa proliferação de comportamentos sexistas em um cenário em que as práticas sexuais evoluíram no sentido de uma maior igualdade entre os parceiros? POR MICHEL BOZON* O sexismo brutal dos comporta- França), os poucos períodos de vida mentos do produtor Harvey em que se pratica uma sexualidade Weinstein, denunciados no fim destinada à reprodução e aqueles em de 2017 pelo jornalismo investi- que se pratica uma sexualidade não gativo após as revelações e mobiliza- voltada para a reprodução foram a ções das mulheres, principalmente partir daquela época nitidamente se- nas redes sociais, que tornaram visí- parados. Aliás, os momentos em que veis diversos atos de assédio, agressão as mulheres engravidam passam a e violência sexuais, instigam a análise ocupar apenas um lugar restrito em do sexismo como um sistema. Isso im- sua vida. A situação efetiva do período plica a ideia de uma hierarquia siste- da juventude, que se alongou a partir mática entre os sexos que permite a dos anos 1980, mudou. Ele passou a ser um dos dois impor sua dominação, de amplamente vivenciado como uma fa- modo que seja dada preferência e até se de formação, graças à generalização © Laura Erber mesmo exclusividade a seus interes- da escolaridade secundária e do gran- ses. O sexismo não é um estereótipo de desenvolvimento do ensino supe- ou um desequilíbrio presente em al- rior. Tornou-se também, a partir de guns homens que bastaria ser des- então, um momento da vida em que a montado intelectualmente ou subme- sexualidade, vivenciada sem contrato tido a tratamento. Trata-se de um nas relações entre os sexos, principal- concepção. Dada a importância das material, é lícita para os dois sexos, sistema cujas manifestações no âmbi- mente em matéria de sexualidade? mudanças em matéria de gênero e de tendo a idade da primeira relação das to da vida social são reforçadas pelas Uma resposta afirmativa poderia se sexualidade durante os últimos cin- mulheres diminuído nitidamente a desigualdades em outras esferas, o que basear nos trabalhos da saudosa Fran- quenta anos, torna-se necessário que a partir da década de 1960 (17,5 anos na lhes dá uma poderosa coerência e as çoise Héritier.1 Lembremos que, para a reflexão antropológica de Françoise França)2 e o horizonte do casamento torna difíceis de serem alteradas: a de- antropóloga, a desigualdade de gênero Héritier seja completada com uma lei- se distanciado: o número de casamen- sigualdade dos salários, a sobrecarga tem suas raízes em um pensamento tura mais contextualizada dos compor- tos passou de 416 mil em 1972 para 235 de trabalho doméstico das mulheres, diferencial original, fundamentado na tamentos sexuais contemporâneos e mil em 2016 (7 mil destes entre pes- sua maior precariedade profissional, observação dos corpos e da reprodu- das violências a eles associadas. Indis- soas do mesmo sexo) e, no caso das sua fraca presença na política, na cul- ção. Esse pensamento estabelece uma cutivelmente, abriram-se possibilida- mulheres, eles passaram a se dar em tura e no esporte, seu difícil acesso aos assimetria conceitual na qual o mas- des para as mulheres, mas as resistên- média aos 35 anos de idade.3 espaços públicos, o uso sexista da lín- culino e seus correlatos prevalecem so- cias à igualdade envolveram também Foi uma grande mudança em com- gua, o assédio sexual e muitas outras bre o feminino (maior/menor, primo- novas expressões entre os homens. paração com os anos 1950 e o início da assimetrias interligadas. gênito/caçula, seco/úmido, sol/lua, A denúncia dos comportamentos década de 1960: naquela época, as jo- Em suma, a força do sexismo é du- claro/sombrio...). Com base nessa assi- sexistas baseia-se em práticas cada vez vens eram obrigadas a se preservar pa- pla, pois ele se constrói por meio de di- metria, os homens, que não podem pa- mais igualitárias no que diz respeito à ra o casamento, enquanto os homens versos focos e se recompõe facilmente rir, atribuem-se direitos sobre a des- sexualidade. Relatemos as principais podiam desfrutar amplamente de sua quando a desigualdade se enfraquece cendência das mulheres e até mesmo etapas da evolução dos comportamen- juventude com mulheres mais velhas em um campo de ação (por exemplo, se apropriam deles. A dicotomia ativo/ tos sexuais desde os anos 1960, dei- que eles ou com prostitutas. Houve na educação). Além disso, ele conse- passivo na sexualidade decorre da “va- xando claro que elas se inscrevem em também um prolongamento da vida gue resistir ao progresso das ideias e lência diferencial dos sexos” e seria um conjunto de mudanças que afeta- sexual de pessoas com idade avança- das normas de igualdade formal entre uma das matrizes do que Françoise ram a situação das mulheres, tais co- da: enquanto em 1970 somente 50% os sexos, deslocando permanente- Héritier denomina a “licitude da pul- mo o grande aumento de seu nível de das mulheres casadas que tinham mente seus lugares e modos de justifi- são masculina”, que não pode ser dis- instrução, o crescimento de sua parti- mais de 50 anos de idade tinham ativi- cativa. Por isso, a luta contra o sexismo cutida nem contrariada. Haveria assim cipação no mercado de trabalho, as dade sexual, na década de 2000 isso também deve ser móvel. um desigualitarismo atávico e imutá- transformações da família e o estabe- passou a ocorrer com 90% das mulhe- vel da esfera sexual, enraizado na dife- lecimento de normas jurídicas de res casadas com a mesma idade.4 As- DESIGUALDADE ENRAIZADA NOS CORPOS? rença dos corpos e inscrito nas repre- igualdade. Esses avanços ampliaram sim, a menopausa deixou de marcar o Os comportamentos que suscita- sentações do masculino e do feminino. consideravelmente suas margens de fim da vida sexual. ram a indignação no outono de 2017 A luta contra esse “pensamento da di- manobra, sem recolocar em questão tocam na sexualidade de todos. Esta ferença” e suas consequências seria as principais relações de poder. PASSIVIDADE FEMININA DEIXOU DE SER NORMA última desempenha um papel parti- particularmente árdua. Como consequência da difusão Por outro lado, um dos efeitos do cular na gênese do sexismo? Ou have- No entanto, a prática da sexualida- maciça de formas de contracepção efi- declínio da instituição matrimonial a ria ocorrido uma degradação brutal de não é tão imutável como sugere essa caz (a partir da década de 1970 na partir dos anos 1980 foi a diversifica- FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 35 ção dos percursos de vida e, portanto, nham visto com regularidade.8 A alta sistematicamente os aspectos sexuais uma revolta ligada ao progresso de ce- dos limites de exercício da sexualida- extraordinária, entre os anos 1970 e a (presume-se que os “calhordas” não nários sexuais igualitários e a uma vol- de. A mudança é particularmente cla- década de 2000, da satisfação que elas têm nenhuma discrição). Violência se- ta histórica da tendência antiga de ra no caso das mulheres. Enquanto em expressam no que diz respeito à sua vi- xual, assédio sexista e injúrias sexuais “condenar as vítimas”. Defasada das 1970 apenas um terço delas tinha tido da sexual e a proporção elevada das não decorrem de pulsões sexuais mas- práticas interpessoais mais igualitá- mais de um parceiro na vida, em 2006 que declaram ter tido orgasmo na últi- culinas incontroláveis, mas são uma rias, a violência baseada na sexualida- essa proporção chegou a dois terços, e ma relação (81% nos anos 2000) estão estratégia ou uma linguagem utiliza- de ou em propostas sexuais não tem a das que tiveram relações com mu- ligadas à sua atitude, a partir de então, das para “recolocar as mulheres em acima de tudo objetivos sexuais. Ela é lheres aumentou. Após uma separa- mais ativa durante a interação sexual. seu devido lugar”, para censurá-las e praticada visando a um poder, a uma ção amorosa ou conjugal, experiência tentar preservar, assim, a posição dos lembrança de que há fronteiras e privi- a partir de então frequente, o número VIOLÊNCIA SERVE AOS OBJETIVOS DO PODER homens. De fato, as mulheres torna- légios de gênero, a uma depreciação das que encontram novos parceiros Embora tenhamos visto nas últi- ram-se influentes, ou simplesmente daquelas que se afirmam. Impedir es- com os quais formam ou não casais, mas décadas uma abertura dos com- mais presentes, nos novos espaços – sa violência é uma tarefa política que com os quais vivem ou não com jovens portamentos e uma aproximação dos no trabalho, na política, no espaço pú- nos diz respeito, que concerne a todos crianças é igual ao número de homens percursos e das práticas entre mulhe- blico, nas novas formas de comunica- e todas nós. na mesma situação. Nos anos 2000, a res e homens, na verdade suas condu- ção e mesmo na família. Violência e chegada das novas tecnologias de co- tas sexuais não são avaliadas nem jul- assédio (inclusive o assédio cibernéti- *Michel Bozon é coordenador de pesquisas municação contribuiu para modificar gadas de acordo com os mesmos co) são ao mesmo tempo um ato de do Institut National d’Études Démographi- o cenário de encontros afetivos e se- critérios. As pessoas entrevistadas nos poder tradicional e uma estratégia ques (Ined) e autor, fundamentalmente, de xuais, que podem passar despercebi- anos 2000 se limitam a uma percepção sexista renovada, adaptada aos conta- Pratique de l’amour. Le plaisir et l’inquiétude dos; são inúmeras as jovens que as uti- muito dicotômica de suas respectivas tos cotidianos entre mulheres e ho- [Prática do amor. O prazer e a inquietação], lizam em proporções comparáveis motivações. Assim, dois terços das mens nas sociedades contemporâ- Payot, Paris, 2016. com as dos homens (entre um terço e mulheres e dos homens continuam a neas. As violências denunciadas são 40% dos 18 aos 25 anos de idade).5 Sua dizer que “os homens têm, por nature- uma reação ao progresso em direção a atividade sexual não é mais limitada za, mais necessidades sexuais”. Além mais igualdade; essas violências são 1 Etnóloga e antropóloga, falecida em novembro de 2017, que publicou fundamentalmente Masculin/ ao âmbito do casamento na idade de disso, a frase “Podemos ter relações se- reacionárias. Servem para reafirmar Féminin. La pensée de la différence [Masculino/ ter filhos. Em todos os ambientes, o es- xuais com qualquer pessoa sem amá- hierarquias e posições. feminino. O pensamento da diferença], Odile Ja- paço e o tempo da sexualidade se abri- -la” é desaprovada (“não concordo”) Em um artigo que apresenta alguns cob, Paris, 1996. 2 Pesquisa Baromètre Santé [Barômetro Saúde], ram para elas. por 54% das mulheres, mas por apenas resultados da pesquisa Virage (acrôni- Santé Publique France, Paris, 2010. Nas próprias relações sexuais, as 30% dos homens. mo de Violence et rapports de genre) 3 Ver coleção Insee Première, Bilan démographique práticas mais assimétricas recuaram e [Violência e relações de gênero], feita 2016 [Balanço demográfico 2016], Institut Natio- nal de la Statistique et des Études Économiques emergiu um novo cenário mais iguali- pelo Instituto Nacional de Estudos De- (Insee), Paris. tário.6 Em 1970, a maioria das mulhe- mográficos (Ined),9 Amandine Lebugle 4 Salvo indicação particular, as cifras citadas são provenientes da pesquisa Contexte de la sexualité res e dos homens declarou que eram Dois terços das e sua equipe distinguem cinco tipos de en France [Contexto da sexualidade na França], estes últimos que tomavam a iniciati- violência nos espaços públicos: as injú- va das relações sexuais. Em suma, as mulheres e dos homens rias, a cantada inoportuna, a violência cujos resultados são apresentados na obra de Na- thalie Bajos e Michel Bozon intitulada Enquête sur relações aconteciam quando eles deci- continuam a dizer física, o assédio e os atentados sexuais, la sexualité en France. Pratiques, genre et santé [Pesquisa sobre a sexualidade na França. Práti- diam, sem que isso fosse considerado que “os homens têm, e a violência sexual. As jovens das gran- cas, gênero e saúde], La Découverte, Paris, 2008. uma violência. Na segunda metade por natureza, des cidades são as mais atingidas, prin- As que se referem a períodos mais antigos foram extraídas da obra de Pierre Simon e colaborado- dos anos 2000, quatro quintos das mu- cipalmente pelos tipos de violência lheres e dos homens declararam que, mais necessidades com conotação sexual: cantada ino- res, Rapport sur le comportement sexuel des Français [Relatório sobre o comportamento se- em sua última relação, o desejo era sexuais” portuna, assédio e violência. Esses atos xual dos franceses], René Julliard – Pierre Char- tanto de um quanto do outro. A passi- têm mais o objetivo de criar situações ron, Paris, 1972; assim como de Alfred Spira e Nathalie Bajos, L’Analyse des comportements vidade feminina deixou de ser a nor- intimidadoras, e até mesmo humi- sexuels en France (ACSF) [Análise dos compor- ma. O desejo mútuo se tornou, a partir Assim, mantém-se uma percepção lhantes, para lembrar que o espaço pú- tamentos sexuais na França (ACSF)], La Docu- de então, um componente usual e es- hierarquizada da interação sexual que blico é lugar dos homens, do que “satis- mentation Française, Paris, 1993. 5 Marie Bergström, “Sites de rencontres: qui les utili- perado da relação sexual. As relações já não corresponde mais à evolução fazer necessidades sexuais”. São atos se en France? Qui y trouve son conjoint?” [Sites que não correspondem a esse modelo das práticas. Haveria uma inadequa- de poder unilateral. O mesmo ocorre de encontros: quem os utiliza na França? Quem são consideradas insatisfatórias e até ção entre feminilidade e desejo sexual com as injúrias, que compreendem ge- encontra neles seu par?], Population et Sociétés, n.530, Institut National d’Études Démographiques mesmo violentas. sustentado. A ideia dominante, apro- ralmente qualificativos sexuais que (Ined), Paris, fev. 2016. O repertório das práticas se am- vada por alguns psicólogos, é que as desvalorizam as mulheres que fre- 6 “Cinquante ans de sociologie de la sexualité. Évolu- pliou, e o valor da reciprocidade entre mulheres manifestam antes de mais quentam o espaço público, contribuin- tion du regard et transformation des comporte- ments depuis les années 1960” [Cinquenta anos os parceiros progrediu. As grandes nada um desejo reativo ou subalterno do para distanciá-las desses espaços. de sociologia da sexualidade. Evolução do olhar e pesquisas conduzidas na França nos ativado pela demanda dos homens. No que se refere ao assédio sexista no transformação dos comportamentos a partir dos últimos quarenta anos revelam a im- Estes estariam sob a dependência de trabalho, muito evidente nas revela- anos 1960]. In: Paul Servais (org.), Regards sur la famille, le couple et la sexualité. Un demi-siècle de portância das carícias, da masturba- pulsões imperiosas. De acordo com ções do outono de 2017, ele utiliza tam- mutations [Olhar voltado para a família, o casal e a ção mútua e da sexualidade oral: nos essa percepção hierárquica da sexua- bém a sexualidade para lembrar às sexualidade. Meio século de mutações], Acade- anos 2000, 65% das mulheres de 25 a lidade, o desejo feminino continua a mulheres sua ilegitimidade profissio- mia/L’Harmattan, Louvain-la-Neuve/Paris, 2014. 7 Armelle Andro e Nathalie Bajos, “La sexualité sans 49 anos declararam praticar a felação maior parte do tempo adormecido en- nal ou sua subordinação aos homens. pénétration. Une réalité oubliée du répertoire com frequência ou às vezes, e 70% dos quanto um homem não o acorda. Essa Trata-se de uma forma de discrimina- sexuel” [A sexualidade sem penetração. Uma reali- homens a cunilíngua. Aliás, tornou-se concepção é, de fato, uma palavra de ção no trabalho. dade esquecida do repertório sexual]. In: Nathalie Bajos e Michel Bozon (org.), Enquête sur la sexua- usual realizar a cunilíngua e a felação ordem. Uma mulher que manifeste O fato de o sexismo se expressar no lité en France, op. cit. no mesmo ato. A atividade sexual to- um desejo explícito não inscrito nas campo da sexualidade não indica, 8 A propósito das inquietações adultas sobre a por- mou a forma também de relações sem aspirações amorosas ou na heterosse- portanto, que esta seria por natureza nografia e a juventude, ver “Autonomie sexuelle des jeunes et panique morale des adultes. Le garçon penetração, prática frequente que xualidade se vê severamente julgada e sexista, ou estaria na origem do sexis- sans frein et la fille responsable” [Autonomia sexual constitui uma fonte de prazer plena.7 questionada por sua má conduta. As mo, ou que as adolescentes e as jovens dos jovens e pânico moral dos adultos. O rapaz sem Há pouco tempo impensável, a mas- sanções relativas à reputação decor- deveriam se distanciar da sexualida- limites e a garota responsável], Agora Débats Jeu- nesse, n.60, Sciences Po Les Presses, Paris, 2012. turbação solitária aumentou conside- rentes do desejo em questão são temi- de, ou que nossa época teria se tornado 9 Amandine Lebugle e equipe da pesquisa Virage, ravelmente entre as mulheres. Da das pelas mulheres de todos os meios. sexualmente mais violenta. A indigna- “Les violences dans les espaces publics touchent mesma maneira, 73% delas viram fil- Enquanto o que está em jogo nos ção provocada pela revelação desses surtout les jeunes femmes des grandes villes” [As violências nos espaços públicos atingem sobretu- mes pornográficos na vida, ou seja, a comportamentos sexistas denuncia- comportamentos de assédio, de agres- do as jovens das grandes cidades], Population et maioria, ainda que apenas 20% os te- dos é totalmente diferente, alegam-se são e de violência indica, ao contrário, Sociétés, n.550, Ined, dez. 2017. 36 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 O DESGASTE DO ESPÍRITO OLÍMPICO Populações dos Alpes rejeitam os Jogos de Inverno Enquanto os XXIII Jogos Olímpicos de Inverno se iniciam em Pyeongchang, na Coreia do Sul, as populações dos Alpes não querem mais saber desses eventos, considerados artificiais, caros e destrutivos para o meio ambiente. O Comitê Olímpico Internacional se esforça para avaliar essa rejeição, expressa democraticamente, e para revisar seu modelo POR FRANÇOIS CARREL* o Tirol austríaco, os eleitores recursos. Isso gera instalações que se N rejeitaram por 53,5% dos votos, em 15 de outubro de 2017, o projeto de candidatura aos Jo- gos Olímpicos de Inverno de 2026. Em Innsbruck, sede dos Jogos em 1964 e tornam rapidamente obsoletas, con- forme Turim já demonstrou em 2006, levando ao paroxismo a lógica vigente nas estações: excesso e artificialismo. As pistas são artificiais, homogêneas, 1976, a humilhação foi ainda maior: as mesmas em toda parte, para todos 64,4% de “não”. Em fevereiro, os cida- os esquiadores”. Essa aberração cul- dãos do cantão suíço dos Grisões tam- minou nos Jogos de Sochi,1 os mais ca- bém haviam rejeitado o projeto de ros da história, onde verão e inverno se Saint-Moritz e Davos para os mesmos confundiram: 36 bilhões de euros, dos Jogos de 2026, com 60% dos sufrágios. quais 4,6 milhões apenas para a orga- Essa desconfiança não é nova. Apre- nização.2 O resto foi para a infraestru- sentada como um evento popular e tura de transporte e de esportes de in- universal, a Olimpíada é agora quase verno de rentabilidade hipotética, com sistematicamente recusada pelas po- forte impacto ecológico. Tudo isso sob pulações envolvidas quando sua opi- um pano de fundo de corrupção e do- nião é consultada. Em 2013 e 2014, isso pagem dos atletas russos... “Nosso so- aconteceu com três projetos para os nho? Os Alpes sem Olimpíadas, mos- Jogos de Inverno de 2022 em Cracóvia trando suas especificidades naturais, (Polônia) e Bavária e Munique (Alema- culturais, históricas, e não um volume nha), como já acontecera nos Grisões. exponencial de instalações padroni- © Daniel Kondo Pouco depois, a última candidatura zadas!”, conclui Neirinck. europeia para 2022, a de Oslo, foi reti- Albertville guarda a entrada do Va- rada após pesquisas desfavoráveis. le da Tarentaise, na região da Saboia, Devemos esses resultados a vigorosos França, e sua imensa rede de espaços movimentos de oposição – como a or- de esqui, o maior Lunapark europeu ganização Nolympia, da Bavária –, fre- ria, casa da cultura, alojamentos so- brilha nem por sua transparência fi- desse tipo, com 350 mil leitos turísti- quentemente liderados por ecologis- ciais na Vila Olímpica etc. São cons- nanceira nem por seu funcionamento cos para 53,5 mil habitantes perma- tas, mas que se estendem muito além, truções ainda utilizadas, ao contrário democrático ou suas preocupações nentes. No final de 2017, os anéis olím- até o quadro político, girando sobretu- da maior parte das instalações espor- ecológicas...”. A administração ante- picos ainda cintilavam por toda parte do em torno dos receios de desmandos tivas, que se tornaram mais ou menos rior esteve de olho nos Jogos de 2018, na cidadezinha que acabava de come- orçamentários. obsoletas com o tempo: pista de bobs- mas se viu às voltas com os imperati- morar o 25º aniversário da Olimpíada Os últimos Jogos alpinos foram os led, trampolim para saltos com esquis, vos olímpicos da era do gigantismo: de 1992. Na Casa dos Jogos, a diretora, de Turim, em 2006. Depois, ocorreram pista de velocidade ou ringue de pati- “Uma cidade como Grenoble [450 mil Claire Grangé, que foi membro do Co- em 2010 em Vancouver (Montanhas nação. A prefeitura decidiu celebrar o habitantes] já era muito pequena para mitê de Organização (Cojo), vela por Rochosas canadenses) e em 2014 em jubileu a fim de permitir que “todos os as exigências insanas do COI em ter- sua memória: “Nosso sucesso se deveu Sochi (Cáucaso russo). Os deste inver- habitantes de Grenoble retomem a mos de infraestrutura ou quantidade a três ideias, então inovadoras e depois no começam no dia 9 de fevereiro em posse de uma parte de seu patrimônio de alojamentos”, testemunha, apoiado generalizadas: instalações provisórias Pyeongchang (Montes Taebaek, Co- cultural, urbanístico e social”. No pré- no anonimato, um nome de destaque e reutilização dos locais existentes pa- reia do Sul); os próximos, em 2022, dio da prefeitura, em forma de um mo- dessa candidatura. “Isso agora só pode ra evitar seu abandono, valorização perto de Pequim – bem longe dos paí- derno castelo, também construído em ser um projeto de território apresenta- dos atletas e desenvolvimento do terri- ses alpinos, que sediaram os primei- 1968, Pierre Mériaux, encarregado do do por uma vontade estatal forte ou tório, que permitiu associar a popula- ros, em 1924, em Chamonix e se mos- turismo e da montanha, explica que uma capital urbana muito grande.” ção aos Jogos”. O ringue de patinação traram zelosos organizadores de mais esse patrimônio não é fácil de gerir: “A Com efeito, o porte dos Jogos de Inver- de Pralognan, os trampolins de Cour- onze edições de 22. grande dificuldade é o Palácio dos Es- no aumenta sem parar: em 1968, em chevel e a pista de bobsled de La Plag- portes, a que só conseguimos dar vida Grenoble, 1.158 atletas se inscreveram ne continuam em uso, mas são defici- DESVIOS E GIGANTISMO com muito esforço, promovendo even- para 35 provas; em Pyeongchang, se- tários (o departamento destina 110 mil Grenoble, na França, festeja este tos diferentes daqueles para os quais rão mais de 3 mil para 102 provas. euros anuais para a pista de bobsled e ano o 50º aniversário dos Jogos de ele foi concebido”. Codiretor da associação Mountain 150 mil para os trampolins): “Desde o 1968, que permitiram à cidade receber Grenoble poderia acolher de novo Wilderness, Vincent Neirinck denun- início, resolvemos pôr essas instala- ajuda maciça do Estado para a cons- os Jogos? O ecologista eleito sorri: “Isso cia esses Jogos desconectados da mon- ções em funcionamento, pois esse era trução de obras públicas: estradas de não é desejável nem possível. O Comi- tanha natural: “Eles dão aos gestores a o preço a pagar pela Olimpíada”, insis- rodagem, aeroporto, estação ferroviá- tê Olímpico Internacional (COI) não oportunidade de administrar vastos te Grangé. FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 37 Em se tratando de infraestrutura – e a “consolidação e adaptação dos infraestruturas de gelo...” Ele garante segue e nos diz: ‘Reagrupem, simplifi- turística, isso teria permitido, a seu princípios de bom governo e ética” do que os Jogos de Pequim, em 2022, serão quem, economizem’. Caso se afastem ver, “ganhar quinze anos” e reforçar a comitê. Princípios regularmente viola- menos dispendiosos. Vão se conformar dessa linha, desistiremos”. notoriedade internacional da Saboia. dos, a despeito das promessas.4 aos 3 bilhões de euros (dos quais 1,5 bi- O Conselho Federal suíço se dispõe “Aconteceu há trinta anos”, prossegue O COI adotou, em outubro último, lhão para a operação) anunciados? Seja a entregar 850 milhões de euros a Sion ela. “Os Alpes ainda hoje precisam dos uma variação expressa na Agenda 2020 como for, essa Olimpíada com sede em para os Jogos de 2026; o COI, 770 mi- Jogos? Não é mero acaso que os países para os Jogos de Inverno de 2026.5 O uma cidade que já organizou os Jogos lhões. O Parlamento tem lá suas dúvi- emergentes estejam organizando-os suíço Christophe Dubi, diretor do COI de Verão revela o abismo enorme entre das. Christophe Clivaz, parlamentar agora...” Nesses países, sobretudo na encarregado dos Jogos, resume: “Era Jogos de Inverno e montanha. Parte ecologista de Sion e professor do Insti- Ásia, a indústria dos esportes de inver- necessário flexibilizar o produto Olim- das provas ocorrerá no próprio seio da tuto de Geografia e Sustentabilidade no alimenta a esperança de um novo píada para que sua acolhida fosse sim- megalópole chinesa. Para as de esqui, da Universidade de Lausanne,7 não crescimento, enquanto a saturação plificada e possível em toda parte. Tra- previstas em colinas baixas e com pou- acredita nessa candidatura: “É um ganha os mercados alpinos, marcados balhamos no processo de atribuição e ca neve, as autoridades vão criar pistas, mau sinal, num mau momento. É in- pela estagnação ou pelo recuo do nú- na lista de encargos. Trata-se de uma algumas em sítios naturais vulnerá- sistir no esqui e no inverno quando mero de pacotes de esqui vendidos du- mudança profunda: já não temos um veis. Estas ficarão totalmente depen- cumpre diversificar”. O forte recuo da rante a última década.3 modelo único de Jogos. Há regiões com dentes da neve artificial, voraz consu- prática do esqui nos Alpes e o desafio necessidades prementes de infraestru- midora de água e energia. do aquecimento climático, agudo nes- “FLEXIBILIZAR O PRODUTO OLIMPÍADA” tura, e outras, como os Alpes, que já Sion, graciosa cidadezinha do Valais sas regiões, deveria induzir a repensar Na cidade suíça de Lausanne, a se- dispõem dela e sabem acolher grandes suíço situada no fundo de um vale, en- a abordagem da montanha e a “mudar de do COI se ergue às margens do Lago eventos com custo menor”. Ele insiste: tre as estações de Verbier e Crans Mon- de modelo”, insiste. Ora, os Jogos de Léman, de águas cinzentas e agitadas “Queremos que a cidade utilize os Jo- tana, é a última localidade alpina que Inverno se inscrevem no modelo anti- em meados de dezembro, enquanto os gos e, mais ainda, que os Jogos utilizem disputa os Jogos de 2026. Seu projeto go, o modelo do ouro branco, caro e Alpes, bem próximos, permanecem a cidade. Não desejamos mais que uma engloba lugares já existentes em vários em locais já fortemente congestiona- ocultos na névoa. A paisagem reflete a infraestrutura de esportes seja desen- cantões. Essa candidatura, de que o Co- dos. “A perda de confiança no COI é organização olímpica, sacudida pelas volvida se não tiver uma herança es- mitê Olímpico nacional suíço tomou as enorme. O sonho olímpico não existe investigações de corrupção nas quais portiva comprovada”. Dubi especifica rédeas, está avaliada em 1,7 bilhão de mais; é, em vez disso, um pesadelo em estão implicados alguns de seus mem- os esforços de “coconstrução” em- euros de orçamento operacional, mais potencial.” Os habitantes do Valais de- bros a propósito dos Jogos do Rio 2016 preendidos com as cidades candidatas 85 milhões de euros apenas em cons- cidirão nas urnas, em junho. e de Tóquio 2020, pelo dossiê dos atle- para reduzir o porte e o custo dos even- trução de infraestrutura e 225 milhões tas russos dopados e pela derrota das tos: limitação do público, do número para a segurança. Serão os Jogos menos *François Carrel é jornalista. candidaturas europeias. Essa derrota de técnicos de televisão, do tamanho caros depois dos de Salt Lake City, em diz respeito apenas aos Jogos de Inver- dos comitês de organização etc. 2002? Frédéric Favre, consultor de Esta- 1 Ver Guillaume Pitron, “Sochi, um elefante branco no: Hamburgo e Budapeste renuncia- Os Jogos de Pyeongchang ficarão do do Valais encarregado da segurança, no Mar Negro?”, Le Monde Diplomatique Brasil, fev. 2014. ram aos Jogos de Verão de 2024, aos bem longe desse “novo modelo”. Se- das instituições e do esporte, afirma: “O 2 Números oficiais do governo e do comitê organiza- quais a população se opôs. gundo o COI, o orçamento operacio- COI procura um candidato confiável dor russo em 2014. Em setembro, na sessão do COI em nal, inicialmente de 1,5 bilhão de eu- para pôr em prática sua Agenda 2020? A 3 Fonte: Domaines Skiables de France. 4 Yann Bouchez, “CIO: après le chantier de l’attribution Lima, dominada pela dupla atribuição ros, ultrapassará os 2 bilhões. É uma Suíça está em posição melhor de fazer des Jeux, celui de la corruption reste entier” [COI: dos Jogos de 2024 e 2028 a Paris e Los prova daquilo que o economista Wla- isso. Queremos os Jogos do futuro. Não após o escândalo da atribuição dos Jogos, o da cor- Angeles – candidatas únicas –, a insti- dimir Andreff chama de “anátema do se construirá quase nenhuma infraes- rupção continua intacto], Le Monde, 15 set. 2017. 5 “Le CIO adopte une nouvelle approche pour le pro- tuição se gabou: “Graças à Agenda 2020, vencedor do leilão” olímpico, que vê o trutura e nenhum alojamento específi- cessus de candidature aux Jeux Olympiques d’Hi- o Movimento Olímpico não descansa orçamento escapar ao controle de ma- co”. Nas ruas de Sion, reina o ceticismo. ver de 2026” [O COI adota uma nova abordagem sobre seus louros, mas continua a lutar neira sistemática.6 Pyeongchang apli- “Jogos, sim, mas de acordo com nossas para o processo de candidatura aos Jogos Olímpi- cos de Inverno de 2026], COI, 17 out. 2017. para permanecer um ator de mudan- cou 8 bilhões de euros em infraestru- condições, sem prejudicar o vale e com 6 Wladimir Andreff, “Pourquoi le coût des Jeux Olympi- ças positivo”, concluiu seu presidente, tura, sobretudo ferroviária. Esses Jogos dirigentes motivados não apenas por ques est-il toujours sous-estimé? La ‘malédiction du Thomas Bach. Entre as quarenta reco- de Inverno são anunciados como os glória e dinheiro”, adverte Dyonis Fu- vainqueur de l’enchère’ (winner’s curse)” [Por que os custos dos Jogos Olímpicos são sempre subestima- mendações da Agenda 2020, figuram mais caros depois dos de Sochi... meaux, vereador da câmara municipal dos? O ‘anátema do vencedor do leilão’ (maldição uma “nova filosofia” dos procedimen- “Não é o que queremos para o futu- de Sion. O presidente (prefeito) de Sion, do vencedor)], Papeles de Europa, Madri, 2012. tos de candidatura: a “redução de cus- ro”, reconhece Dubi. “O COI não foi ou- Philippe Varone, não esquece a prudên- 7 Autor, com Camille Gonseth e Cecilia Matasci, de Tourisme d’hiver. Le défi climatique [Turismo de tos” – sobretudo graças a uma “impor- vido pelos sul-coreanos, que preten- cia: “Queremos Jogos que acelerem inverno. O desafio climático], Presses Polytechni- tante contribuição financeira do COI” diam construir novos estádios e novas nossos projetos já existentes. O COI nos ques et Universitaires Romandes, Lausanne, 2015. 38 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 MISCELÂNEA livros internet NOVAS NARRATIVAS DA WEB Sites e projetos que merecem o seu tempo AUSTERIDADE: A forma de apresentar grandes histórias tem se ENSAIOS SOBRE A HISTÓRIA DE UMA modificado nos últimos anos, especialmente no BRECHT IDEIA PERIGOSA ambiente digital, incluindo aí a web. Abaixo, uma Walter Benjamin, Mark Blyth, seleção de grandes reportagens para conhecer Boitempo Autonomia Literária on-line. C onta-se que quando Bertolt Brecht e Walter Benjamin se conheceram, em 1929, por inter- médio da teatróloga letã Asja Lacis, ambos sabiam O instigante livro não é dirigido apenas a econo- mistas, ainda que, diante da corrente de pen- samento que se tornou dominante entre estes, sua PORTO DE SUAPE A ONG Repórter Brasil tem buscado narrativas que aquele era o encontro entre o maior poeta e leitura possa servir como uma verdadeira lufada de diferentes para contar histórias que impactam o o maior crítico da Alemanha. Nos anos seguintes, ar fresco no ambiente intelectualmente sufocan- meio ambiente e a sociedade. Utilizaram agora que os confrontariam com a ascensão do nazismo te da disciplina, ou mesmo como um empurrão de um modelo em 3D do Porto de Suape, com- e o exílio, desenvolveu-se uma relação de amizade bom senso diante do precipício de suas velhas e plexo industrial de Pernambuco. Moradores de e colaboração intelectual que, da parte de Benja- carcomidas visões ideológicas. comunidades tradicionais do local denunciam min, resultou num conjunto ímpar de ensaios sobre Como se verá, a fluida, didática e divertida (mas o governo por violações de direitos humanos, os diversos aspectos da produção brechtiana: a não por isso menos rigorosa) cruzada do autor como ameaças e expulsões, com acusações prosa, a poesia, a escrita dramatúrgica, a direção contra argumentações anticientíficas acaba nos que agora chegaram à ONU. cênica. Os Ensaios sobre Brecht, reunidos pela municiando a todos, leigos ou estudiosos, de ins- <http://reporterbrasil.org.br/2017/11/suape/> primeira vez em 1966 e publicados agora pela Boi- trumentos para realizarmos por nossa conta o “tes- tempo em tradução competente de Claudia Abe- te do olfato” diante da retórica apodrecida da aus- ling, fornecem ao leitor brasileiro a ocasião para teridade nos mais diversos ambientes de produção MAPA DO ÓDIO percorrer esse amplo e diversificado território. e circulação de ideias. Seu mérito é, por isso, no- O Southern Poverty Law Center, dos Estados O volume traz textos mais conhecidos, como “O tável. Ao fim de sua robusta “arqueologia”, além de Unidos, mapeou 917 grupos de ódio que ope- que é o teatro épico?” e “O autor como produtor”, entendermos por que as finanças do Estado são ram em território norte-americano atualmen- nos quais Benjamin avalia no calor da hora as ino- algo bastante diferente das finanças familiares e te. Anti-imigrantes, racistas, nacionalistas, Ku vações introduzidas por Brecht no aparelho teatral empresariais, saímos aptos a detectar e desmontar Klux Klan (KKK), anti-LGBT, católicos radicais, com o intuito de atender de modo consistente às as inúmeras premissas irreais e conclusões empi- antimuçulmanos, distribuidoras de músicas ra- exigências técnicas e políticas de uma produção ricamente falsas que sustentam o débil discurso cistas, entre outros, estão localizados e expli- artística verdadeiramente revolucionária. De quebra, mainstream em defesa da política da austeridade cados. Um gráfico mostra que, desde o início ele ainda situa Brecht no panorama contemporâneo onde quer que ele apareça: universidades, meios do registro, em 1999, o número de extremistas e desmonta oposições obsoletas como tendência de comunicação, movimentos sociais, partidos po- nas ruas tem aumentado, especialmente após política e qualidade artística. líticos e instituições de governo. a última campanha presidencial, que flertou O leitor também encontrará escritos menos co- Cumpre notar, seguindo a vastidão de dados com essas ideias. Em 2016 existiam 160 gru- mentados, como uma instigante abordagem de apresentados nesse livro, que a austeridade, mes- pos oficiais da KKK espalhados nos Estados um Brecht romancista, na resenha do Romance mo ignorando deliberadamente as incontornáveis Unidos, por exemplo. dos três vinténs, e um extenso comentário a duas necessidades da vida social e política, é contrapro- <www.splcenter.org/hate-map> décadas de produção lírica de Brecht, escrito nas ducente inclusive em alcançar o objetivo restrito a vésperas da catástrofe da Segunda Guerra Mun- que supostamente se coloca: o de sanar as finan- dial. Fechando o ciclo, as “Conversas com Brecht”, ças públicas. MUSEU DA INOCÊNCIA anotações de diário feitas por Benjamin durante Enganam-se, portanto, os que pensam ser esse Um par de brincos, um copo, um batom e um estadias na casa de Brecht na Dinamarca, eviden- um problema restrito a técnicos e especialistas. velocípede são objetos que compõem um mu- ciam que nem tudo era consenso entre os dois Fosse apenas um atentado à inteligência, essa seu organizado como lembrança de um caso de amigos. O debate em torno do ensaio de Benja- “ideia-zumbi” – morta diante dos fatos, mas feita amor vivido por um homem trinta anos antes, min sobre Kafka traz à tona pontos de discórdia a viva pelos perniciosos interesses políticos que a em Istambul, Turquia. Essa história, romance de respeito da literatura contemporânea que, de viés, patrocinam – já seria, em si, problemática. O que Orhan Pamuk, vencedor do Nobel de Literatu- iluminam tanto a obra de Brecht quanto a posição a torna perigosa, no entanto, conforme o livro de- ra, foi concebida ao mesmo tempo como livro de Benjamin perante o trabalho do amigo. Ao reco- monstra, são os estragos produzidos nas econo- e como museu – vencedor do prêmio Museu nhecer a importância de gestos e parábolas de di- mias e, junto destes, a erosão da coesão social, os Europeu do ano em 2014, inclusive. Numa nar- fícil tradução em ensinamentos práticos, não esta- danos traumáticos e os sofrimentos a que têm se rativa que mescla a realidade física com a his- ria Benjamin também apontando dificuldades nas submetido as maiorias sociais em todo o mundo, tória do livro, várias camadas de informação se posições mais manifestas do teatro épico? Essa é inclusive no Brasil. Por onde passa, a política da completam. O livro foi publicado em 2008, e o uma das muitas questões aguardando o leitor des- austeridade deixa um enorme rastro de destruição. museu foi inaugurado em 2012, em Istambul. ses ensaios de Benjamin. Mark Blyth, como poucos, persegue esse rastro <http://en.masumiyetmuzesi.org> para nos demonstrar, em suas origens e causas, [Luciano Gatti] Professor do Departamento de por que a austeridade é em primeiro lugar e acima Filosofia da Unifesp. Publicou Constelações: crí- de tudo um problema político de distribuição, e não [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab, tica e verdade em Benjamin e Adorno (Loyola, um problema econômico de contabilidade social. professor de Jornalismo na ESPM, mestre em 2009) e A peça de aprendizagem: Heiner Müller Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou- e o modelo brechtiano (Edusp/Fapesp, 2015). [Edemilson Paraná] Sociólogo. torando em Design na FAU-USP. FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 39 CANAL DIRETO SUMÁRIO LE MONDE BRASIL Our Revolution diplomatique Excelente teoria para o Brasil? Ano 11 – Número 127 – Fevereiro 2018 Pedro Marcos de Andrade www.diplomatique.org.br DIRETORIA A guarda pan-arábica de Al-Assad Diretor da edição brasileira e editor-chefe Assad ganhando a guerra contra o terrorismo. ESTADOS UNIDOS Silvio Caccia Bava João Castro Castro 2 Os “inocentes úteis” do Pentágono Diretores Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Por Serge Halimi Rubens Naves O que fazer do “brasil”? Editor EDITORIAL Somente sei de uma coisa: vai piorar; o tecido social 3 E agora? Luís Brasilino não conseguirá ser reconstruído, as oligarquias me- Por Silvio Caccia Bava Editor-web drosas de avanços sociais terão mais renda concen- Cristiano Navarro trada em suas mãos, os salários e o tempo de traba- CAPA lho vão piorar e a violência vai recrudescer. A saída? 4 Sobre o caráter da burguesia brasileira Editores de Arte Adriana Fernandes e Daniel Kondo O aeroporto. E estou sendo otimista. Por Luiz Filgueiras, Graça Druck e Uallace Moreira Estagiária A Unilab e o desmonte da educação Nadine Nascimento Eduardo Klein Fichtner Por Jacqueline Costa e Vico Melo O dramático panorama do financiamento do ensino Revisão As três batalhas de Raduan Nassar Lara Milani e Maitê Ribeiro Por José Marcelino de Rezende Pinto Muito bom ter acesso pelo Le Monde Diplomati- Gestão Administrativa e Financeira que a uma narrativa diversa da mídia majoritária. OS DESAFIOS ESTRATÉGICOS DA ESQUERDA Arlete Martins Pontos de vista diversos propiciam a reflexão. A 10 LATINO-AMERICANA Assinaturas unanimidade na divulgação de informações ape- Governar sob bombas... midiáticas Viviane Alves Por Rafael Correa nas propicia a formação de maniqueístas. Tradutores desta edição Cristiana Alvez Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, CONQUISTAS E REFLUXOS 12 No Equador, a difícil construção Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant O preço do inestimável de um serviço público de saúde Conselho Editorial Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles Mundinho fútil! Impossível observar tanta discre- Por Loïc Ramirez, enviado especial Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius pância social e de prioridades existenciais e não Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor 200 MIL MORTES NOS ESTADOS UNIDOS Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. ficar descrente de tudo isto aqui... 14 Overdoses de opiáceos com receita médica Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Abgail Serva Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, Por Maxime Robin, enviado especial Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles. México: a imprensa a serviço de uma tirania RENOVAÇÃO DO ENGAJAMENTO POLÍTICO invisível 16 Juventude palestina não se vê como vencida Assessoria Jurídica Rubens Naves, Santos Jr. Advogados Fiquei na dúvida se ainda chega a ser pior que no Por Akram Belkaïd e Olivier Pironet, enviados especiais Escritório Comercial Brasília Brasil. Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior RESISTÊNCIA, ABERTURA E PODER Sergio Luiz Bezerra 18 O Irã se reinventa como potência local Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – [email protected] Por Bernard Hourcade Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação Vamos repensar os caminhos da esquerda? da associação Palavra Livre, em parceria com o Instituto Pólis. São posicionamentos como esse que nos enchem de A URGÊNCIA DE REFUNDAR O MULTILATERALISMO orgulho. Enquanto muitos outros países, inclusive 21 Bombeiros piromaníacos da ordem internacional Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque Por Anne-Cécile Robert São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil europeus, sucumbiram, o Brasil mostra que há al- Tel.: 55 11 2174-2005 ternativas. Mas estas nunca virão de mão beijada! [email protected] DE PROTAGONISTA A “FÓSSIL DO DIA” Rogerio Lima Barbosa 24 O Acordo de Paris e o Brasil www.diplomatique.org.br Assinaturas Por Carlos Rittl [email protected] Corte de benefícios do INSS: o lucro com a miséria Tel.: 55 11 2174-2015 Minha amiga está nessa situação, está sem condi- À PROCURA DE MÃO DE OBRA BARATA ções de trabalhar devido a um acidente de traba- 26 O sacro império econômico alemão Impressão Plural Indústria Gráfica Ltda. lho, e o perito a mandou voltar a trabalhar. Por Pierre Rimbert Av. Marcos Penteado de Ulhôa Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001 Felipe Cardoso ANSIEDADE IDENTITÁRIA NA FRANÇA 28 Integração, a grande obsessão Distribuição nacional DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda. Vi um caso desses: corte unilateral do benefício, Por Benoît Bréville Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte – mesmo antes da perícia que analisaria sua continui- Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624 dade. Se continuar assim, o INSS vai acabar pagan- NASCIMENTO HUMANIZADO do indenização por danos morais e patrimoniais. 30 A violência obstétrica como rotina LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA) Ricardo Carneiro Por Luciana Motoki Fundador Hubert BEUVE-MÉRY LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA E DIREITO À CIDADE Desejo a morte para esse governo, lenta e dolorida. 31 Por um 2018 mais seguro para as mulheres Presidente, Diretor da Publicação Maria Angelina Marzochi Por Ana Paula Ferreira, Ingrid Farias e Jéssica Barbosa Serge HALIMI Redator-Chefe Não se vê o mesmo empenho em cobrar das empre- DISCURSO PÚBLICO VS. VIDA PRIVADA 32 O que a conduta de Harvey Weinstein nos diz Philippe DESCAMPS sas em débito com o INSS. Diretora de Relações e das sobre a esquerda Julio Gnap Edições Internacionais Por Thomas Frank Anne-Cécile ROBERT Le Monde diplomatique GÊNERO Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas 34 Mudanças na sexualidade, permanência do sexismo 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France [email protected] críticas e sugestões para [email protected] Por Michel Bozon www.monde-diplomatique.fr As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, se necessário, resumidas para a publicação. O DESGASTE DO ESPÍRITO OLÍMPICO Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus 36 Populações dos Alpes rejeitam os Jogos de Inverno Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37 edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação Por François Carrel e 5 eletrônicas. do periódico. MISCELÂNEA Capa: © Renato Alarcão 38 ISSN: 1981-7525
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