Resenha Sobre a Sociedade Do Cansaço

March 31, 2018 | Author: Ângela Mastella Coradini | Category: Immune System, Attention Deficit Hyperactivity Disorder, Communication, Society, Sociology


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Comunicação e Sociedade, vol. 28, 2015, pp.423 – 427 doi: http://dx.doi.org/10.17231/comsoc.28(2015).2289 Han, B.-C. (2014). A sociedade do cansaço. Lisboa: Relógio d’Água Diogo Silva da Cunha A Sociedade do Cansaço é uma tradução de Gilda Lopes Encarnação do livro alemão Müdigkeitsgesellschaft, no original de Byung-Chul Han. A monografia é percorrida pela disparidade, inspirada em Hegel, entre negatividade e positividade, isto é, entre a oposição de uma relação baseada na alteridade e uma relação assente na permissividade do idêntico. Por meio desta distinção, Han critica as implicações das transformações culturais e comunicacionais do nosso tempo, nomeadamente as novas configurações do trabalho, da atenção e da doença mental. A hipercomunicação, tratada por Han, enquanto modalidade da violência da sociedade positiva (por oposição à sociedade negativa), está ligada a vários excessos, particularmente a uma sobrecarga da produtividade e dos estímulos mediáticos. A experiência hodierna decorre num espaço percorrido por egos transbordantes, num espaço da permissividade do idêntico, a figura antagónica da alteridade. Apresentado pela primeira vez em português neste livro, o trabalho de Han comporta uma visão crítica das sociabilidades do século XXI, permitindo pensar as consequências culturais, existenciais e sociais da hiperatividade e hipermobilidade atuais. Estamos perante um texto muito curto, mas que faz um uso muito elaborado das poucas palavras que o compõem. Embora coreano, Han é um filósofo de orientação alemã, um caminhante nos percursos da ontologia fundamental. Han nasceu em Seoul, na Coreia do Sul, em 1959. Começou por estudar metalurgia e depois dirigiu-se, nos anos oitenta, para a Alemanha com o objetivo de estudar literatura. Estudou Literatura Alemã e Teologia na Universidade de Munique mas, dadas as dificuldades linguísticas, foi em Filosofia, na Universidade Freiburg, que se doutorou, em 1994, com uma tese sobre Martin Heidegger. Desde 2012 que Han é professor de Filosofia e de Estudos Culturais na Faculdade de Artes da Universidade de Berlim, onde dirige um programa de Estudos Gerais. Desde o primeiro capítulo d’ A Sociedade do Cansaço que Han coloca a possibilidade de diferenciação de épocas através de patologias. Esta prática de análise receberá o nome de “leitura patológica” no sexto capítulo (p. 45). Por meio desta prática, Han distingue a sucessão de várias épocas: bacteriana, viral, imunológica e, finalmente, neuronal. O contraste é feito principalmente através da transição entre a época imunológica e a época neuronal. Para Han, o século XX foi uma época imunológica, cuja terminologia foi dominada pela ideia de ataque e defesa da Guerra Fria. O princípio fundamental da negatividade está no seu carácter dialético, em o outro imunológico ser um negativo que nega o próprio depois de nele se introduzir. O modo imunológico de sujeito tem uma interioridade que o defende através da exclusão do outro. O objeto da defesa imunológica é, prisões. “sujeitos de obediência” (p. pressupõe-se a existência de um interior negativo. A positivação do mundo forma novas modalidades de violência. manicómios. Porém. 28. por formar “sujeitos de produção”. declara Han criticando Jean Baudrillard. o de disciplina.Comunicação e Sociedade. e perturbações de personalidade. não a proibição. Por conseguinte. as categorias imunológicas estão particularmente associadas ao discurso filosófico do existencialismo. ordens e leis foram substituídas por projetos. da alteridade pelo comportamento destrutivo enquanto objeto de defesa imunológico. vol. proibições. No âmbito social. torres de escritórios. Disciplina. Han vai 424 . e mesmo controlo. a alteridade. A manifestação desta violência através de sintomas a que Han chama “enfartes cardíacos”. O final da Guerra Fria acontece na sequência da mudança do paradigma imunológico para o neuronal. a leitura patológica do início do século XXI evidencia patologias neuronais. na satisfação e na exaustividade. porque. Surge uma rejeição não-imunológica. afirma Han. Para Han. e a profilaxia imunológica elimina o outro através da sujeição do próprio à violência da técnica vacinal. No segundo capítulo. organizações. o mundo torna-se pobre em negatividade e opulento em positividade. como o transtorno de personalidade borderline e a síndroma de burnout. a fadiga e a sensação de sufoco. como seriam o esgotamento. A sociedade do cansaço. iniciativas e motivações. Esse tipo de sociedade seria negativo porquanto o conceito que a define. 19). A afirmação do próprio decorre no outro. o início do século XXI caracteriza-se por um princípio neuronal. O mundo imunológico desenvolve. loucos e criminosos foram substituídos por deprimidos e frustrados. A rejeição. formando sujeitos que não podem. a alteridade é suprimida em favor da diferença e do exótico: o outro é transformado em idêntico e. por negação da sua negatividade. o que permite eliminar toda a alteridade por intermédio de uma clara diferenciação entre o que é interior e exterior. B. não conduz ao reforço de defesas. ligada a um excesso de positividade nos modelos biológicos e sociais. Neste contexto Han apresenta a tese de Alain Ehrenberg de que a depressão se acha na transição entre o modelo disciplinar e o modelo da iniciativa pessoal. 2015 Han. decorre do próprio sistema e desenvolve-se na permissividade.-C. pois não comporta negatividade. Lisboa: Relógio d’Água . Esta violência não tem origem na alteridade. aeroportos. O que rompe com esta obediência é o perfazimento da produtividade. 19). corresponde a uma reação a essa negatividade do outro. (2014). para excluir. Em termos biológicos. Segundo Han. 16). amigo e inimigo. como a depressão e o transtorno por défice de atenção e hiperatividade. próprio e estranho. é determinado pela proibição. como a sobreprodução e a hipercomunicação. normativa e individual: hospitais. no caso imunológico. deste modo. “empresários de si próprios” (p. A sociedade hodierna caracteriza-se assim pela ilimitação do verbo “poder”. Han procura mostrar que a sociedade atual não é uma sociedade disciplinar. Han refere-se à substituição. assim. O idêntico. expressa-se através do verbo “não poder”. centros comerciais e laboratórios genéticos. Diogo Silva da Cunha destarte. A rejeição não-imunológica não implica exclusão. que implica a permissão. limites que dificultam a troca universal. Han diagnostica uma transformação institucional. bancos. concomitantemente. quartéis e fábricas foram substituídos por ginásios. dá conta do seu carácter neuronal (p. conduzida pela imunologista americana Polly Matzinger. A negatividade do outro cria infeções. mas no idêntico. Da vita contemplativa Han passa a concentrar-se na pedagogia da visão que a contemplação pressupõe. Esta redução faz com que. Para isto. esta é análoga à atenção múltipla do animal selvagem. tal como em Heidegger. nesse contexto. A primeira é a de que. Ainda em Arendt. que. ao primado da ação. de tão débeis. informações e impulsos. no capítulo seguinte. nunquam minus solum esse quam cum solus esset. depende do poder do homem atuante. pois o animal laborans atual não é passivo. diz-nos Arendt através de Han. cuja função mais efetiva é a do pensamento. a vita ativa está associada.Comunicação e Sociedade. Em Arendt. A hiperatenção caracteriza-se pelo frenesim na mudança de foco de atenção: tal como o animal selvagem. pois. Lisboa: Relógio d’Água . por sua vez. a tradição cristã pressupõe um compromisso entre vita activa e vita contemplativa. Esta hiperatenção é intolerante a uma descontração que torne capaz a contemplação e o tédio profundo. Para Han. A humanidade. com a insensibilidade dos Muselmänner dos campos de concentração. O problema é que Arendt se refere involuntariamente à vita contemplativa sem concluir que a correspondência entre perda da capacidade contemplativa e absolutização da vida ativa conduz à histeria e ao nervosismo atuais. Para Han. A vinculação do homem à ação decorre do nascimento. transforma a estrutura e a economia da atenção. mas de o indivíduo conseguir um rendimento maior sendo ele mesmo. e Arendt as utiliza para elogiar a vita activa. Para Han. as formas da vita ativa sejam reduzidas ao trabalho. considera Han. A sociedade do cansaço. A segunda crítica é a de que o exame de Arendt ao triunfo do trabalho não resiste ao contexto atual. No capítulo quinto encontramos uma descrição dessa pedagogia 425 . responsável por depressões e transtornos de personalidade. pois ao nascer todo o homem é capaz de recomeçar a humanidade. vol. associada a essa dispersão. Han dedica-se. Neste sentido. Esta preocupação com a contemplação leva Han. Por causa da fragmentação e dispersão da perceção e da técnica do multitasking. citando São Gregório. O futuro da humanidade. não distinguiam entre a sensação de frio e a frieza de uma ordem. manifestado. ao contrário do que a autora defende. 28. B. A terceira crítica a Arendt dirige-se especificamente ao final do seu livro sobre a condição humana. mas hiperativo. a distinguir entre vita ativa e vita contemplativa. por seu turno. Diogo Silva da Cunha mais longe do que o autor que cita. a atenção profunda e contemplativa da vida cultural tem sido suplantada por uma “hiperatenção” (p. a sobrevivência do indivíduo atual depende de uma atenção de tipo? Multifocal. 2015 Han. no terceiro capítulo. o quarto. 25). a depressão não é apenas a expressão patológica do imperativo de o indivíduo ser ele mesmo. Han compara a histeria contemporânea da produtividade. (2014). retoma Hannah Arendt.-C. no excesso de estímulos. não é mais do que um mero fenómeno ou processo biológico. a possibilidade de ação é destruída através da redução do homem a um animal laborans passivo. a mostrar como o excesso de positividade. Por isso Han pode afirmar que o multitasking “não representa um progresso civilizacional” mas. estas palavras são contextualmente desfasadas visto que foram citadas originalmente por Cícero num elogio à vita contemplativa. “uma regressão” (p. Han faz três críticas a Arendt. pelo contrário. 26). o qual termina com uma citação de Catão – Numquam se plus agere quam nihil cum agere. na leitura feita por Han. essa tradição pensava que a vita activa conduzia à vita contemplativa e que a última reconduzia à primeira. a aprender a não reagir imediatamente a um impulso. um contraste com a morte. A sociedade do cansaço. A positivação geral transforma os homens em “máquinas autistas de produção” (p. 42). e a ação torna-se prolongamento do existente. da vida. parece. (2014). Bartleby ainda não tem de viver com o imperativo de ser ele mesmo. do termo “Wall”. induz a conversão do corpo e do ser humano numa “máquina de produção”: o doping permite o rendimento sem falhas nem interrupções no sentido da maximização produtiva. todos os escrivães da firma de advogados onde trabalha Bartleby sofrem de perturbações neuróticas. Só esta negatividade permite a ação da contemplação. pois apenas através da negatividade da recusa se alcança a possibilidade do oposto – neste caso. Lisboa: Relógio d’Água . 28. A reação imediata e a reação a qualquer impulso são sintomas de patologia. Han retoma Nietzsche. No último capítulo. Segundo Han. Esta evolução produz um “cansaço alienante”. 49). da correspondência não entregue. Esta leitura é contrastada com as interpretações ontoteológicas que Gilles Deleuze e Giorgio Agamben fizeram do mesmo texto. O doping. a autorrecriminação ou a autoagressão. Porém. como muros. O mesmo acontece para receber a alteridade: é necessário haver uma negatividade do deter-se. o que é evidenciado por símbolos arquitetónicos proibitivos. A vita contemplativa não é uma abertura passiva. que Agamben identificou como messiânica. é indispensável haver uma paragem. na leitura de Han. mas uma resistência aos impulsos externos via orientação da visão. pois ele é ainda um “sujeito da obediência”. com título homónimo ao livro. Para Han. é. tal como o positivamente chamado neuroenhancement. estes sinais de vida constituem uma falha da ilusão. logo no título. da interrupção. O seu caminho termina com a descoberta de que foi o funcionário do arquivo morto dos correios. A agitação geral faz contraponto com a apatia e a inércia de Bartleby. Contra o “novo Cristo” de Deleuze e a “potência pura” de Agamben.-C. A sociedade de Bartleby é disciplinar. Todavia. 2015 Han. enfim. Assim. É preciso negar. dizer não. O que caracteriza este Bartleby é a recusa. Bartleby ainda não apresenta sintomas de depressão. por isso o sujeito de produção suprime-a no sentido de maximizar a produção. devido às pausas a que obriga. Diogo Silva da Cunha e do seu desmoronamento na atualidade.Comunicação e Sociedade. Segundo Han. dispersa-se e transforma-se em pura atividade ou hiperatividade. para Han. de Herman Melville. como a falta de autoconfiança. A fórmula tantas vezes repetida por Bartleby de “I would prefer not to” expressa a inércia dessa sujeição. Han descreve a evolução da sociedade de produção para uma sociedade de doping e explica o modo como essa evolução se manifesta ao nível do cansaço. the Scrivener: A Story of Wall Street”. No sexto capítulo Han realiza uma leitura patológica do conto “Bartleby. Isto corresponderia. A simbologia da erva e do céu no episódio da prisão. intermédios e intervalos. Han utiliza 426 . (re)conhecê-los e respeitá-los. o conto é uma história de um mundo que reduziu o humano a animal laborans. Han defende um Bartleby enquanto “Ser negativo em direção à morte” (p. e pelo uso frequente. A aceleração suprime essas paragens. o sentimento de inferioridade. B. vol. que considerava necessário um ensino do ver baseado no acostume do olho à serenidade e à paciência. atrasa o processo de aceleração necessário à produção. o mundo atual sofre de uma pobreza em interrupções. estabelecer limites. a ensinar o olho a atentar profunda e contemplativamente. essa negatividade. É fundamental. permite ver e ser visto.com Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa (CFCUL). Han não faz uma apologia da imunidade.º Piso. E-mail: cunhadiogo15@gmail. é um cansaço com o outro. Portugal * Submetido: 09-04-2015 * Aceite: 02-07-2015 427 . “cansaço clarividente” ou “cansaço profundo” (pp. Com efeito. o contraste entre a “época imunológica” e a “época neuronal” realça o esquema imunitário. Lisboa: Relógio d’Água . O livro de Han não nos reenvia para outro tempo. Em última análise.-C. possibilita a atenção à morosidade das formas. instaura e une uma comunidade de coisas e de pessoas. Han mostra que as comunidades religiosas islâmicas e cristãs seguem tradições que instituem sociedades do cansaço. O primeiro tipo descreve um cansaço da potência positiva: é individual e isolador. este livro de Han merece a atenção dos interessados em comunicação. é importante compreender que a defesa que Han faz da alteridade não parece constituir nenhum auspício a esquemas negativos historicamente constituídos. ainda que a identifique com a negatividade. 1749-016 Lisboa. assolador da morosidade das formas. 28. Ética e Política do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa. mas de um cansaço com o outro. A sociedade do cansaço. da hipermediatização e também da hipermobilização na condição humana. A constante tónica historicista e a preocupação patológica é que conduzem a uma datação de regimes no seio dos quais está o imunológico.24. Campo Grande. o autor recorda a relação que noutro tempo se estabeleceu de forma vivida por meio de uma crítica à disrupção dessa relação. De todos os modos. Nota biográfica Diogo Silva da Cunha é investigador integrado no Grupo de Investigação em Filosofia das Ciências Humanas. é um cansaço do outro. 53-54). vol. B. funda uma simpatia – a qual possibilita. Sala 4. Pelo contrário. tocar e ser tocado. Diogo Silva da Cunha a distinção elaborada pelo escritor Peter Handke entre um “cansaço alienante” e um “cansaço eloquente e conciliador” ou “cansaço confiante no mundo” ou “cansaço fundamental” ou. restaura a dualidade. 2015 Han. porque nele a alteridade era salientada pela negação. a sociedade positiva é uma sociedade do cansaço do outro. Em jeito de reflexão final. ainda noutras palavras. destruidor do comum devido ao Eu ser o único horizonte da visão. Edifício C4.3.Comunicação e Sociedade. não se trata de defender regimes políticos disciplinares do século XX. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Assim sendo. (2014). Nele se encontra um percurso de reflexão que reconduz o olhar do investigador para a importância da alteridade e para os impactos da hipercomunicação. 3. meios e sociabilidade na sociedade hodierna. Ou seja. excessivo. É licenciado em Jornalismo pela Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa (2014) e frequenta o Mestrado em História e Filosofia das Ciências na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. O segundo tipo de cansaço é da ordem da potência negativa: reduz a identidade e esfuma os contornos das coisas.
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