Resenha Primeira Lição Sobre Direito

March 26, 2018 | Author: athenabastos | Category: Statutory Law, State (Polity), Language Interpretation, Sociology, Sources Of Law


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Florianópolis, 11 de abril de 2011Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências Jurídicas Curso de Graduação em Direito Teoria Política DIR5116 Professor Arno Dal Ri Júnior Resenha de “Primeira Lição Sobre Direito” (Paolo Grossi) Paolo Grossi vem auxiliar os iniciantes no âmbito jurídico - e mesmo discutir com os já formados - em seu livro “Primeira Lição Sobre Direito”. Nesse opúsculo, como ele mesmo chama, o autor questiona o que seria o direito e escreve sobre a vida do mesmo, dividindo o livro em dois capítulos. O que é o Direito? “O direito não pertence ao mundo dos sensíveis. [...] O direito confia nos signos sensíveis para uma eficaz comunicação” (página 1). Seria esse fato, essa imaterialidade do direito, que o tornaria tão misterioso, e até desagradável, aos olhos de um cidadão comum. O cidadão comum não é um tolo por o assim julgar o direito; há aspectos do direito que o levam a crer isso. Ele assim pensa por ver o direito como uma forma de poder, que é posto por pessoas superiores a ele – autoridades – e mantém uma distância do restante da sociedade. “Tudo isso transforma o direito para o homem comum numa realidade hostil” (página 2). Toda essa realidade, no entanto, é “de fato a consequência de escolhas dominantes no cenário da história jurídica da Europa continental durante os últimos duzentos anos e que foram consolidadas em um vínculo muito forte e completamente novo entre poder político e direito” (pág. 2 e 3). O poder político, “transformado cada vez mais num Estado”, reconheceu no direito uma enorme fonte de poder para manipular a sociedade, e acabou por liga-lo a si. Teria então o cidadão comum culpa em temer o direito? As leis instituídas por esse Estado foram tidas pela sociedade como máximas a serem seguidas, não pelo seu conteúdo, mas simplesmente por terem sido postas pelo poder político. Este as decretava segundo sua vontade, mas sob a faixada de serem da “O ponto de referência necessário do direito é somente a sociedade como realidade complexa. não é em toda e qualquer realidade social que haverá direito.vontade geral. Infelizmente essa concepção que perdurou por muito tempo. a qual enfim conseguia chegar ao poder. Seria incoerente não fazê-lo. uma vez que o direito se dá pelas relações entre os homens. 6). não se manifestavam contrariamente ou mesmo não viam nessa apropriação do direito uma forma de manipulação. podia-se controlar a sociedade da maneira que quisesse. já que aqueles que eram pagos para fazer a justiça. uma tarefa árdua. já está impregnada na mente da sociedade. Ou seja. 7). O primeiro ponto em que se deve insistir é na humanidade do direito. Resta agora resgatarmos a essência do direito. mas para a inteira sociedade. necessários para sua compreensão. nem a necessidade de uma organização para o bem comum. Embora seja uma dimensão relativa e humana. articuladíssima. já que não haverá diferentes opiniões ou vontades. o estudante não iniciado que se prepara para enfrentar os estudos jurídicos) na descoberta dos traços essenciais de uma realidade mal compreendida. mas incessante devir quotidiano de todos” (pág. A diferença entre uma realidade jurídica e uma realidade simplesmente social. do penoso. Tentar-se-á fazê-lo começando nos traços mais genéricos. a dimensão do direito é uma “dimensão necessariamente relativa”. já que a concepção acima comentada. Como a sociedade poderia mudar a situação. “O nosso itinerário – nada fácil – será então aquele de acompanhar o não jurista (e. sobretudo. porque está fora da história. mas que ainda não a caracterizaram. Dessa forma. para depois descer àquele desenho que a fixa com precisão e a distingue inconfundivelmente das realidades próximas e afins” (pág. mas sim a sociedade. se aqueles que deveriam ser os “sacerdotes do culto legislativo” aceitavam apenas fazerem o papel formal de um? “Uma realidade de comandos imperativos está fora da cultura circulante e arrisca ser um corpo estranho não só para o pobre homem comum. Para essa classe o direito era nada mais que um instrumento de poder e o temor que ele causava aos comuns apenas auxiliava esse mesmo poder. Isso vem a reafirmar que o direito não caracteriza o Estado. foi somente parte da estratégia da burguesia. está na presença de uma organização e de uma “observância espontânea das regras organizativas” na primeira. com a possibilidade de que cada uma das suas . Não há necessidade de direito em um local onde exista somente um homem ou nenhum. permitindo que eles coexistam sob a mesma coordenação. significa sempre se curvar passivamente a uma injunção autoritária. “Precisada a sociedade como referência do direito. Entretanto. o próprio direito é radical. como se quis que pensássemos. “Não falamos de obediência pela passividade psicológica que ela sempre exprime. e não a sua cristalização que é o Estado.26).articulações produza direito” (pág. funções e valores nos quais consiste a instituição. é ela mesma experiência” (pág. Ela “nasce não das regras do código civil. não somente uma organização regida pelo Estado. Sendo assim. não há como assim defini-los sem que se saiba o que é uma instituição. mas da espontânea auto-organização de antiquíssimas comunidades” (pág. Deve-se entender que observar não é obedecer. Por mais que haja um grau de imperatividade no direito. Um ordenar que respeite as diferenças de seus indivíduos. “A referência é a uma obra supra-individual que a consciência comum. é imersa na vida social. 19). ainda que – muito frequentemente – nós imprimamos na consciência comum tal identificação” (pág. de fato. pois ele é a organização social. porém um ordenamento observado. “O direito já está na sociedade que se auto-ordena” (pág. 11). Observância é quando a sociedade analisa uma ordem e a segue. pois a instituição está no coração da ordem jurídica. E os valores “são sempre realidade radical. o Estado jamais poderia ter se apropriado do direito. “A instituição ao contrário da norma que é naturalmente abstrata e que espera o momento sucessivo e a ela externo da aplicação para tornar-se concreta.27). por julgá-la boa segundo seus valores. graças à constante repetição de comportamentos individuais projeta para fora e para acima dos impulsos e vontades singulares. Um ordenar que respeite a complexidade social. a consequência mais relevante é resgatar ao direito o pluralismo daquela e . constituindo aquele nó de relações organizativas. 29). 17). isto é. Alguns linguistas e juristas chegam a falar de direito e linguagem como complexos institucionais. Mas o direito não é um universo de comandos. Também. O direito não é um ordenamento qualquer. das raízes” (pág. o que impede que a vontade ordenadora se degenere em ações subjetivas. A essência do direito não está em comandar. obedecer. mas sim no ato de ordenar a sociedade. 20). já que ele “nasce antes das regras”. não podemos considerá-lo diretamente um comando. aquele nó que torna uma realidade autônoma com uma vida estável no interior da experiência social” (pág. Essa visão auxilia no regate ao papel original do direito. ao ato da obediência corresponde sempre um ato de comando. claras e certas. são necessárias leis rígidas e gerais. e poderiam ser consideradas dignas de ignorância ou mesmo ilícitas – diante de um monismo jurídico. caso elas não sejam seguidas a ação está sujeita a ilicitude. E assim como a humanidade vive sua história. poderia “sufocar uma dinâmica que é ligada às raízes mais profundas da sociedade e que se tornou costume” (pág. Na modernidade. mas se não causarem grandes danos à ordem política. 33). o diferente pode não ser bem aceito. em mundo de novas técnicas e economia. “É a assim chamada globalização jurídica”. “Eles devem ser observados pluralisticamente. e ressaltará assim o seu caráter de autêntico ordenamento jurídico” (pág. Não se pode separar algo que é imprescindível às relações sociais. por determinar a ordenação humana. tornam-se apenas irrelevantes. que não o oficial estatal. escritas para a visualização de todos – assim não existe a desculpa de ignorância destas. Para que tal ocorra. a qual muitas vezes passa despercebida pela sociedade. até mesmo códigos. e está em crise o velho legalismo. já que muitas vezes possuem valores distintos desses. não há igualmente dúvida de que um terreno eleito é exatamente aquele das fontes do direito.de livrá-lo do monismo deste” (pág. ainda é possível perceber dentro do Estado moderno. que o Estado não consegue fornecer. Há a necessidade de uma organização. por meio de uma intolerância.” (pág. Ele dita as regras. Embora a sociedade moderna viva um monismo jurídico. É pretensão excessiva do Estado crer que. o próprio direito também vive. da produção jurídica.33). diferentemente de outras sociedades sem Estado – como se via na Idade Média -. pequenos universos de ordenamento jurídico. que têm regras. é possível perceber a formação de outros direitos. Devido à impotência e ineficiência dos Estados. 29). não pode ver-se separado da experiência histórica da mesma. “Não há dúvida de que hoje o Estado está em crise.34). A Vida do Direito De fato o direito. Dentro dessa globalidade. o poder político e jurídico é totalizado pelo Estado. “existem comunidades que se auto-ordenam em nome de determinados valores. Estas não devem ser analisadas segundo os valores estatais.31). “O direito não é nunca uma nuvem que flutua sobre uma paisagem . mesmo com todo o poder adquirido ao longo da história. Toda a experiência jurídica deve dar-se segundo o que é ditado por esse Estado monopolizador. o interior dos seus confins. até mesmo cortes judiciárias com pronunciamentos extremamente observados” (pág. Já na Idade Média. “O mérito indiscutível da experiência cultural romana é de ter lido o mundo socioeconômico-político em termos jurídicos. Na Idade Moderna. Não deixando de lado.40). Com a formação de uma gramática do direito. variando bastante ao longo do tempo e pelos espaços. Embora possamos pensar que em civilizações mais antigas ao império romano não existiu um direito propriamente dito. Os juristas romanos “não desdenharam a construção sistemática”. Ele “toma forma e se caracteriza em meio ao vazio estatal que se seguiu à queda do edifício político romano e àquele da refinada cultura jurídica estreitamente ligada às estruturas do edifício” (pág. mas bem inseridos e envolvidos no tecido político romano e na sua classe dirigente” (pág. sobretudo. a classe burguesa ascendente se utilizará desse suporte jurídico em sua também dominação econômica e política. variando conforme o tempo e o espaço. foi somente em Roma que o conjunto destas expressões transformou-se numa completa gramática na qual e com a qual foi possível ordenar e estabilizar a indocilidade dos fatos sociais e econômicos” (pág. Mais tarde. na cultura. consequentemente. . este se baseará principalmente nas experiências. que participaram da formação da atividade doutrinária que era o direito.histórica. Não se podem desprezar essas culturas nesse quesito. È a partir deste momento que o Estado se apropria do direito. seu componente fundamental e tipificador” (pág. Fica claro. o direito se torna sem mais legislativo” (pág. o Estado entra como sujeito extremamente indispensável. embora a distância temporal seja grande. no Mediterrâneo oriental e na Grécia começaram-se a traduzir as questões sociais em expressões jurídicas de institutos e normas. como “aquela derivada do seu modo de propor-se como análise científica” e o “fato de os juristas romanos não terem sido personagens isolados de seu tempo. Dessa ideia surgiram características que se propagaram nas sociedades futuras. mas será no direito romano que encontraremos realmente um aprofundamento do direito. se preferirmos. como já acenamos. o direito nasce e morre com a mesma. São eles.38).43). então. Se.35). que a interpretação dos fatos era extremamente importante neste período. ou. surge também aquele que nela trabalhará: o jurista. É ele mesmo paisagem. “O Príncipe se torna sempre mais legislador. que o direito não é imutável. estudos revelam que já existiam “um corpo de normas. Enxergavam no sistema estabilidade e perpetuidade. São poucos os legisladores que participaram do desenho desse novo direito e. de práticas e de institutos marcados por alguma organicidade”. 49). o direito vem reassumindo uma forma mais ativa e menos estatalista. além de garantirlhe o desenvolvimento com relação às necessidades de uma sociedade em crescimento” (pág. bem como os próprios juristas. Ainda entra em discussão o direito natural. sendo o homem um ser cultural. dois sintagmas ingleses. consolidando um monismo jurídico. É surpreendente a maneira como este novo Estado burguês consegue. por meio do direito. sem particularidades.58). por que não evocar a existência de um direito natural. mesmo que este seja mais vago? Embora muito seja discutido. a ordem jurídica burguesa já não consegue suportar o choque de tantas lutas sociais. No mundo jurídico. Ou seja. a lutar por renovados instrumentos jurídicos. e o Estado perde no direito a sua sombra perfeita e também a sua couraça protetora” (pág. os próprios juristas passam. “A simplicidade da paisagem liberal-burguesa se esfumaça. Segundo eles. quando ele na verdade é o bem de poucos. fazer com que a sociedade creia no bem público. Esse é o chamado “Estado de direito”. o fato é que o poder e o direito – quando apropriado pelo Estado .nunca pertenceram a matriz popular. Assim. No cenário moderno destacam-se o civil law e o common law. O traço mais peculiar do common law é “que o direito seja coisa de juristas e que não se pode ser senão a ordem dos juristas a fixa-lo e exprimi-lo. 55 e 56). Numa sociedade tão distinta. era extremamente estatalista para esconder sua face elitista. A consciência coletiva é assim subjugada. e os instrumentos jurídicos permanecessem iguais. Muitos acham absurdo pensar que exista direito natural. Já o traço mais destacado do civil law é justamente a sua característica estatalista e legalista. Quando o direito positivo pode ser considerado até repugnante a uma consciência coletiva. mais úteis à nova realidade. Mesmo o Estado moderno sendo liberal. para que a maior parte da população fosse excluída dos desenhos ordenadores da sociedade. no entanto. de modo autônomo. haveria apenas um direito positivo. diversas dificuldades.tornando-se o único “sujeito histórico capaz de transforma em jurídica uma vaga regra social”. Não era possível que a sociedade mudasse. era feito um grande controle social. . relativos a uma época já ultrapassada. A civilização moderna sofre. Nada é tão perfeito que possa controlar tantas diferenças por meio de leis rígidas. o qual possui a seu respeito grande divergência de opiniões. Seria fácil crer que essa é a única questão enfrentada na modernidade. mas aquela do intérprete/aplicador” (pág. o costume é a fonte que mais espelha o direito no seu estado de pureza originário” (pág. 99). embora não se percebesse. “No seu caráter elementar. constituído de um Parlamento onisciente.. 85). Há aí uma “supervalorização da lei. A partir dessa nova era jurídica. Já o aplicador por excelência. ele deve ser interpretado de forma que se encaixe na realidade da sociedade. é o juiz ou o doutrinador. onipotente e incontestável. Em relação ao texto. O costume mostra-se tão importante que o primeiro aplicador do direito o segue antes de uma regra escrita. do arbítrio do jurista. como já foi dito acima. entre as mesmas. é necessário incluir. mas como forma até mesmo de limitação. a tarefa do jurista passa a ser mais trabalhosa. o culto da lei.] E o princípio da legalidade enquanto garantia suprema do cidadão. como se ele fosse independente do caso concreto que deveria ter disciplinado. Para que se possam discutir as manifestações do direito. 99). é preciso falar de suas fontes jurídicas. [. a lei suprema -. “Nele a consciência coletiva reconhece um valor a ser conservado e observado” (pág. é um estado que protege os direitos individuais de liberdade – embora ele possa usar essa liberdade como limitação da população. Foi a partir disso que o direito nasceu. . Essas garantias. Esse primeiro aplicador é o chamado usuário. não como forma de justiça. o ordenamento jurídico reduzido a um conjunto de leis. quando o direito é apropriado pelo Estado. entre norma e experiência jurídica” (pág. Apesar de tudo isso. o costume será rebaixado em relação à lei. O “Estado de direito” caracteriza-se por ser soberano. 91). Não basta que um direito seja posto por uma autoridade. tudo se tornava mais simples. “A atualidade mais substancial não é aquela do texto. E o direito “consiste numa perene dialética entre “manifestante” e intérprete/aplicador.. e o costume é justamente um fato que se manifesta no momento em que a sociedade o vive. 92). pois enquanto a lei era rígida e reduzida. ao lado do princípio da certeza da lei” (pág. é legalista e suportado no princípio da divisão dos três poderes. o costume. Quando falamos destas. O costume torna-se fonte do direito pelo fato de as leis serem manifestações à espera que a sociedade as viva. dependiam. na verdade. Interpretar uma lei e saber aplica-la segundo uma determinada realidade é mais trabalhoso.que usa as leis – e até mesmo a Constituição. atualmente busca-se uma compreensão do texto normativo e não somente seu seguimento. A população – que nunca participou do desenho do poder jurídico – sequer conseguia fazer algo contra essa usurpação do direito. quem o fará? . pelo menos instigava a pensar e buscar mais respostas. deve-se ressaltar que existem inúmeras relações intersubjetivas. Entre direito e direitos. Algo que deveria estar em cada relação social ordenada. ele conseguiu amedrontar os homens comuns. Paolo Grossi nos mostra parte da realidade jurídica e nos entrega à tarefa de resgatar a essência do direito. Foi visto como fonte de poder e utilizado. Com o livro Primeira Lição Sobre Direito. como ele vem se construindo? Todas essas perguntas são respondidas. Conclusão O direito esteve presente na sociedade humana. Uma forma de proteger o indivíduo e sua liberdade. E nem mesmo os juristas. entretanto. Não há como temer algo imprescindível à sociedade. Qual o dever do direito? Como ele se manifesta e se manifestou ao longo da história? Como história viva. por diversos motivos. e que junto aos inúmeros direitos existem inúmeros deveres competentes a nós. “como uma indicação plural que se refere às tantas situações jurídicas das quais o sujeito tem necessidade para viver totalmente a sua experiência jurídica e que merecem adequada – ainda que muito variada – proteção” (pág. para o controle da sociedade. por temê-lo. desde quase seu surgimento. que deveriam fazer algo para devolver o direito ao seu lugar de origem o faziam. mas de direitos. Se não formos nós a começarmos essa busca. inescrupulosamente. No entanto. conseguiu. O autor deixa bem claro a forma como esse direito foi manipulado e apropriado pelo Estado.Para finalizar. Utilizando o direito para o seu poder. O Estado. se não clara. destaca-se outro sentido da palavra direito. Mesmo que não estivesse na forma de leis positivadas. é revelada boa parte da complexa questão jurídica. impedindo que estes lutassem. de maneira que. Não como um ordenamento social. 104). ele já participava da construção da história. passou a ser utilizado para o controle excessivo.
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