UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO TEORIA GERAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL Prof. Vera Karam de Chueiri Mestrando: Cesar Felipe Bolzani - MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do xadrez à cortesia. Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2014. Introdução A obra busca demonstrar como a agenda da teoria do direito contemporânea adquiriu um caráter altamente metodológico. Esta característica já identificável no trabalho de Herbert L. A. Hart, teria ganhado novo impulso com as obras de Ronald Dworkin. Para compreender o embate metodológico na teoria do direito, o autor expõe suas concepções sobre o “fisicalismo” de John Austin e Hans Kelsen, como contextualização para a virada hermenêutica operada por Hart na obra Conceito de Direito, sob forte influência da filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein. Para o autor Hart fará uma análise inovadora do Direito, mas seu compromisso teórico com antigos argumentos positivistas teria aberto espaço para duras críticas de Ronald Dworkin, que teria oferecido respostas mais adequadas através de sua teoria interpretativista do direito. 1. O direito e a filosofia: uma nova agenda teórico-jurídica na Alemanha, a filosofia do direito não é mais tarefa exclusiva dos filósofos [...]. E o fato de a filosofia do direito – quando ainda busca o contato com a realidade social – ter emigrado para as faculdades de direito é bastante sugestivo. [...] O que antigamente podia ser mantido coeso em conceitos de filosofia hegeliana, exige hoje um pluralismo de procedimentos metodológicos que inclui as perspectivas da teoria do direito, da sociologia do direito e da história do direito, da teoria moral e da teoria da sociedade.1 1 HABERMAS, Jürgen. Prefácio. In Direito e democracia: entre facticidade e validade. Traduçào de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997ª, v. 1, p. 354; v.2, p. 352. A filosofia do direito, portanto, nas últimas décadas foi deslocada das faculdades de filosofia para as faculdades de direito. Dworkin e Habermas parecem sugerir que tal deslocamento de temas como a filosofia moral e política acabou gerando uma espécie de judicialização dessas matérias, trabalhadas por operadores do direito no seu dia a dia. Por essa razão, a partir dos anos 1980 o debate na teoria do direito teria assumido caráter altamente metodológico e epistemológico, sendo o grande marco dessa transição os trabalhos de H. L. A. Hart. Esta transição operou uma virada metodológica no direito, retomando velhos temas que exigiriam do teórico do direito uma visão interconectada dos domínios filosóficos em temas de caráter essencialmente epistemológicos como objetividade, verdade, certeza, e epistemologia moral. Essa interconexão, porém, é negada ou aceita por diversos teóricos do direito, a partir de questionamentos ligados a metodologia. Na base dessas questões epistemológicas estaria, portanto, sempre uma questão metodológica. Deve-se utilizar a metodologia das ciências naturais ou o direito deve buscar uma metodologia própria? Deve ser buscada uma investigação empírica ou hermenêutica no estudo das práticas sociais que compõe o direito? Questões fundamentais também seriam levantadas sobre o próprio caráter da teoria do direito: um caráter puramente descritivo ou a pressuposição de elementos avaliativos e normativos? Nisso consiste o que se entende por uma virada metodológica no debate contemporâneo sobre a teoria do direito, e o autor busca demonstrar que Ronald Dworkin teve um papel central nesses debates, tornando-se um dos filósofos do direito mais relevantes atualmente. Sua relevância pode ser verificada pelos diversos embates provocados e diálogos estabelecidos com autores importantes da filosofia do direito contemporânea como o próprio Hart, Richard Posner, Andrei Marmor, entre vários outros. O autor ainda explica que a escolha de Dworkin como marco teórico de sua obra se dá não apenas pela importância inegável de Dworkin no debate contemporâneo, mas também por parecer ser este autor o que oferece as respostas mais adequadas para problemas filosófico-jurídicos enfrentados pela filosofia do direito atual. 2. A virada metodológica e a teoria do direito A preocupação metodológica com o direito está amplamente expressa na obra de Hans Kelsen e de autores do Realismo Jurídico (norte-americano e escandinavo) como Alf Ross. Tal caráter altamente metodológico viria a cunhar uma dimensão do positivismo como “positivismo metodológico”. Este seria a visão genericamente representada pela ideia de que é possível conhecer o direito tal como é, ou nas palavras de Norberto Bobbio: O positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. Ora, a característica fundamental da ciência consiste em sua avaloratividade, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e na rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: a ciência consiste somente em juízos de fato. O motivo dessa distinção e dessa exclusão reside na natureza diversa desses dois tipos de juízo: o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a minha constatação; o juízo de valor representa ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade, visto que sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é, de fazer com que o outro realize uma escolha igual à minha e, eventualmente, siga certas prescrições minhas. (Por exemplo, diante do céu rubro do pôr do sol, se eu digo: “o céu é rubro”, formulo um juízo de fato; se digo “este céu rubro é belo”, formulo um juízo de valor)2 H. L. A. Hart questionaria, mais tarde, essa concepção fisicalista do direito. Apoiado fortemente na filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein, Hart chama a atenção para o conceito de conceito que está sendo utilizado, demonstrando sua forte conexão com “questões pertinentes” sobre seus elementos constitutivos. Assim: Por vezes, nesses casos a definição de uma palavra pode fornecer tal mapa: a um só e ao mesmo tempo, pode tornar explícito o princípio latente que guia o nosso uso de uma palavra e pode manifestar relações entre o tipo de fenômenos a que nós aplicamos a palavra e outros fenômenos. Diz-se por vezes que a definição é “meramente verbal” ou “só relativa as palavras”; mas isso pode ser muito enganador, quando a expressão definida é de uso corrente. Mesmo a definição de um triangulo como “uma figura retilínea de três lados”, ou a definição de elefante como um “quadrúpede distinto dos outros pela posse de uma pele grossa, presas e tromba” elucida-nos de uma forma modesta, quer quanto ao uso-padrão destas palavras, quer quanto às coisas a que as palavras se aplicam. [...] Esta forma de definição (per genus et differentiam), que se vê no caso comezinho do triângulo ou do elefante é a mais simples e, para alguns, a mais satisfatória, porque nos dá uma série de palavras que pode ser sempre substituída pela palavra definida. Mas nem sempre está disponível, sem sempre é clarificadora, quando disponível. O seu sucesso depende de condições que frequentemente não estão preenchidas. A principal entre estas últimas é que devia haver uma família mais extensa de coisas ou genus, relativamente a cuja natureza estamos esclarecidos e dentro da qual a definição localiza o que define; porque, claramente, uma definição que nos diz algo que é membro de uma família não nos pode ajudar, se tivermos apenas ideias vagas ou confusas quando à natureza da família. É esta exigência que, no caso do direito, torna inútil esta 2 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. P. 135 algum ou alguns dos quais podem faltar nos casos abertos a disputa”. sendo necessário buscar o conceito de direito nas práticas sociais onde ele se manifesta. Nesse sentido. o conceito de direito deve ser compreendido a partir de uma distinta teoria da objetividade. que a teoria de Hart representa uma quebra epistemológica a partir da adesão a filosofia da linguagem. A crítica estaria fortemente direcionada ao conceito de objetividade inspirado no pensamento de Wittgenstein. como no caso do direito. O conceito de direito. mas um problema que surge quando o caso-padrão “é de fato um complexo de elementos normalmente concomitantes mas distintos. seria pouco clarificador dizer apenas que leis são tipos de regras. A definição de um conceito. A. e não exatamente uma quebra com as teses centrais do positivismo jurídico. Ainda assim.3 Desta maneira. contudo o conceito de regra. familiar e bem conhecido. que no conceito de direito pode ser determinado pelas práticas de coerção que envolvem deveres fixados por regras instituídas por algum tipo especial de poder. O mais óbvio candidato para uso deste modo numa definição de direito é a família geral de regras de comportamento. É possível perceber. de que o direito seja membro. algumas vezes. H. Estaria assim formada uma nova agenda jurídico3 HART. porque aqui não há uma categoria geral bem conhecida e familiar. é ou não careca? Tal questão em alguns momentos seria uma mera questão de grau (é possível se falar em diferentes graus de calvície). P. é tão causador de perplexidade como o do próprio direito. por outro lado. portanto. exige-se algo de mais fundamental do que uma forma de definição que seja utilizada com sucesso para localizar um tipo especial e subordinado dentro de um tipo genérico de coisa. Utilizando-se do exemplo da definição de calvície. 4 HART. Assim. segundo o qual a objetividade estaria muito mais ligada a uma “congruência de subjetividades do que com um padrão de objetividade ‘independente de nossa perspectiva’. 18-19 . passaria sempre pela análise de jogos contextuais de linguagem. de tal forma que definições de direito que começam por identificar as leis como uma espécie de regras. L. e sobre isso Hart afirma ser possível encontrar um caso-padrão que sirva de base para a definição do conceito.forma de definição. portanto. Hart explica que um homem sem nenhum cabelo na cabeça é notadamente careca. Hart busca um elemento básico de estudo destes jogos que seria o caso-padrão. Para isto. existe uma inevitável disputa sobre as práticas que compõe o direito. é possível que não se trate de uma mera questão de grau. mas um homem com apenas alguns tufos de cabelo. enquanto um homem com uma cabeleira densa não o é. de forma que o projeto descritivo almejado por Hart difere do projeto descritivo dos pré-hartianos por considerar a necessidade de se trabalhar com uma dimensão interna de intencionalidade.”4. como vimos. normalmente não aumentam mais a nossa compreensão do direito. é uma pergunta diferente. Se ela é ou não é. mesmo que seja o valor de neutralidade? Ou. como por exemplo: o conhecimento jurídico deve estabelecer que o direito deve ser compreendido como um conjunto de práticas factuais existentes no mundo (ou “fatos brutos”) para que possa aspirar a um estatuto de cientificidade? Ou.1. Esta tese exerceria forte influência na teoria positivista e seria um dos argumentos para as formulações iniciais em defesa da tese da separação entre direito e moral. imporia uma nova concepção de objeto jurídico? Por fim. Como afirma John Austin “a existência da lei é uma coisa. é uma pergunta. Uma lei. antes. Perguntas importantes levantadas por essa metodologia fisicalista seriam: que espécie de coisas existe no mundo interior e que espécie de fatos existe no mundo exterior? Quais são as fronteiras entre esses dois mundos? Entre as respostas divergentes da escola empirista de David Hume e da escola racionalista de René Descartes. 2. a dimensão da intencionalidade do agente constitui-se numa dimensão inescapável? Como compreender o próprio conceito de objetividade das proposições jurídicas? Nesse sentido a incorporação da dimensão interna do direito.filosófica. Dessa forma. A concepção absoluta do mundo e o fisicalismo jurídico Segundo o autor o fisicalismo jurídico é a escola que pressupõe uma separação entre o subjetivo e o objetivo. seu mérito e demérito é outra coisa. pioneiramente identificada por Hart. antes. num sentido do acolhimento (justificação moral) ou adesão aos valores que orientam a intencionalidade dos agentes jurídicos? 5 Para melhor esclarecer em que consiste essa virada metodológica operada por H. é uma lei. se é ou não conformável a um determinado padrão. fosse adotada uma perspectiva avaliativa? No sentido weberiano de que alguma perspectiva sempre impõe a adoção de um valor. que realmente existe. que levantaria questões ainda mais fundamentais à possibilidade de conhecimento objetivo e de descrição neutra. Enquanto o 5 PORTO MACEDO . restaria estabelecido o que alguns positivistas acreditariam ser o próprio coração do positivismo jurídico. A. mesmo que não a apreciemos ou que ela se distinga do texto pelo qual regulamos nossa aprovação ou desaprovação”6. sendo o ponto comum de seus pensamentos a ideia de que o mundo subjetivo (interno) é impossível de ser conhecido pela ausência de critérios que tornem esse conhecimento possível. no que se refere a concepção fisicalista de mundo defendida por autores como John Austin e Hans Kelsen. ao mesmo tempo. essa dimensão interna poderia ser descrita sem que. Hart na teoria do direito cabe elucidar melhor o pensamento anterior ao autor. L. acreditando ser possível descrever o mundo como ele realmente é. determinar como Direito. mas funcionam como esquemas de interpretação do ato jurídico. não interpretação de particulares normas jurídicas. por sua vez. uma norma de caráter subjetivo segundo a qual um sujeito deve agir de acordo com outra norma válida. ou seja. nada tem que o torne um evento jurídico. O que também o difere da teoria realista de Alf Ross é o fato de que uma norma depende de sua efetividade para existir. quer única e exclusivamente conhecer p seu próprio objeto. rigorosamente. por sua vez. Tradução de João Baptista Machado. O jurista fisicalista. Este é um esforço promovido tanto pelo realismo jurídico de Alf Ross. Assim. tudo quanto não se possa. Hans. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. a moralidade seria ato interno. não de uma ordem jurídica especial. Numa de suas mais célebres passagens. É teoria geral do Direito. no âmbito do ser. Jeremy Bentham e Hans Kelsen. sendo seu estatuto ontológico formado pela positivação. é a norma que o explica.direito positivo aqui se apresenta como um fato do mundo. São Paulo: Martins Fontes. . afirma Kelsen: a Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral. Teoria Pura do Direito. subjetivo. nacionais ou internacionais.7 O direito encontra-se. é necessário que uma norma fundamental pressuposta conceda validade para as normas aplicáveis ao caso concreto. Este ato. rigidamente separado do direito. permitindo assim seu estudo como uma ciência natural. ou como deve ele ser feito. que defende que o direito deve ser compreendido como um conjunto de fatos empíricos do mundo. são os comandos emitidos por um poder soberano habitualmente obedecido. É ciência jurídica e não política do Direito. Como teoria. Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito. os comandos emanados do soberano. diferentemente de Austin. 1999. de certa forma. 12. portanto busca descartar o conhecimento que não for passível de redução a fatos brutos (hard facts). Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito. o direito é constituído por um conjunto de fatos que. como pelo positivismo jurídico de John Austin. Cabe mencionar que para Kelsen. fornece uma teoria da interpretação. as normas não constituem diretamente fatos brutos. isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto. sendo. a saber. que a ele se direciona e a partir da qual se interpreta o evento. portanto. Contudo. Ou seja: “uma norma objetivamente válida que 6 JOHN AUSTIN 7 KELSEN. p. que lhe concede este caráter. de forma que o direito deve ser estudado como outras ciências empíricas: descrevendo o ser no mundo por meio de um método descritivo e empírico. se vale a norma geral do amor ao próximo. é também uma condição para a validade de uma norma. 1986. nessa hipótese. da subjetividade de alguém que decide adotá-lo como ponto de vista. portanto. . de forma que este ato subjetivo só pode existir se baseado em fatos brutos. Se para Austin essas expressões seriam diferentes no sentido de que uma foi emitida por um poder soberano (“tenho a obrigação de fazer algo”) diferentemente da exigência de um ladrão que obriga alguém a fazer algo. Finalmente. embora uma lei criminal que proíbe ou prescreve certas ações sob cominação de pena. entre todas as variedades de direito. 2. Porto Alegre: Fabris. porque nada de análogo a uma prescrição explícita lhes dá existência. tornou-se claro que.2. L. nasce de um fato do mundo físico: um comando emitido por um poder soberano que é habitualmente obedecido. Em segundo lugar. Hans. as quais não podem. Para Hart a concepção austiniana falha porque: em primeiro lugar. a análise do direito em termos de soberano habitualmente obedecido e necessariamente isento de todas as limitações jurídicas foi incapaz de explicar a continuidade da autoria legislativa característica de um sistema jurídico moderno. Tradução de José Florentino Duarte. há regras jurídicas que diferem de ordens no seu modo de origem. eventualmente estabelecida pelo fundador de uma religião. em última instância. uma norma pode ser considerada válida quando for um comando geral abstrato emitido por um poder soberano que não conheça nenhuma relação de subordinação e de obediência desse poder frente aos outros seres humanos. Teoria Geral das Normas.vincule ou obrigue o outro só existe. Assim Kelsen mantém-se fortemente ligado a concepção jurídico-fisicalista. A existência de um mínimo de eficácia de um sistema normativo. a ordens baseadas em ameaças dadas por uma pessoa a outras. apenas vale como objetivamente vinculante quando se pressupõe que devemos nos conduzir como o fundador da religião preceituou”. A crítica de H. Hart ao fisicalismo jurídico e a nova objetividade De acordo com John Austin. há outras variedades de direito. A norma jurídica. nomeadamente as que conferem poderes jurídicos para julgar ou legislar (poderes públicos) ou para constituir ou alterar relações jurídicas (poderes privados). tal lei mesmo assim difere de tais ordens no aspecto importante de que se aplica geralmente àqueles que a criam e não apenas aos outros. se assemelhe mais. Em terceiro lugar. E essa. e a pessoa ou 8 KELSEN. porém. A. Hart fará uma crítica a esse modelo citando a diferença entre as expressões “fui obrigado a fazer algo” e “tenho a obrigação de fazer algo”. sem absurdo.8 Dessa forma a objetividade do direito depende. conceber-se como ordens baseadas em ameaças. por seu turno. Ele pode prever tanto o comportamento futuro do grupo. 93 . Para atingir o todo significativo da ação dos jogadores seria necessário “adotar um método introspectivo. Diz Hart: Assim. depois de mil partidas. Num segundo ponto Ross afirma que nem mesmo a leitura das regras constitutivas do xadrez seria um método adequado para definir conhecer as regras do “jogo real de xadrez”. já que nenhum jogador assim o fez. Tais declarações são declarações externas de fato sobre o grupo e a eficácia de suas normas. nem com o eleitorado. de forma que existiriam fragmentos de normas cuja sanção seria localizada em outro dispositivo do ordenamento. Hart afirma que o conceito de sanção ficaria prejudicado ao agregar o conceito de nulidade. que não aceita nem endossa as normas. E para resolver o problema da ausência de sanção em normas secundárias. afirmando que na verdade. Hart discordará desse psicologismo de Ross. 2. 89 10 ROSS. O problema é descobrir quais regras sentem efetivamente os jogadores ser socialmente obrigatórias no sentido indicado acima”10. pode relatar o fato de que o grupo se comporta de modo uniforme e reage regularmente a desvios de conduta de modo adverso ou hostil. o sentido interno segundo que constitui o conceito de regra envolve uma razão para a ação. Essas expressões não declaram o fato de 9 HART. pois é possível que certas regras escritas não sejam adotadas na prática. como de fato acontece. quer por meio de funcionários. possui uma natureza social e é passível de conhecimento independentemente de sentimentos. um observador externo ao grupo. nem com o órgão legislativo de um Estado moderno. Isso porque a análise limitada ao comportamento dos jogadores poderia. Porém. O direito como um jogo de xadrez Alf Ross utiliza a imagem de um jogo de xadrez para demonstrar que seria impossível definir o conceito de direito a partir de uma imagem apenas externa. de forma que a solução proposta distorceria pontos importantes do papel das normas numa dada sociedade. Mas se o grupo realmente tem regras e não apenas um conjunto de hábitos convergentes. seus membros irão revela-lo pelo uso de expressões de um tipo diferente. que antes de ser meramente um fato mental. concluir que é proibido abrir os jogos com um peão de torre.3. Com isso concordam Ross e Hart.9 Kelsen procura defender uma concepção fisicalista frente aos argumentos de Hart explicando que a norma jurídica pressupõe a existência de um ordenamento jurídico. como a reação futura dos oficiais. quer por meio de pessoas particulares.pessoas soberanas não puderam ser identificadas. Kelsen explica que a própria nulidade deveria ser considerada como uma sanção. Segundo ele é impossível que o cientista se abstenha de valores ao produzir conhecimento. é possível que sob uma ética de convicção. seria fortemente influenciada por seus compromissos normativos (com normas morais. por exemplo. o que o levou a escrever diversos textos metodológicos. E essa intencionalidade é sempre individual e é o elemento formador do significado da ação. possuem um duplo sentido: enquanto ideia e enquanto fato empírico. Enquanto ideia manifesta-se no ator que considera a regra como regra que deve ser seguida. O xadrez de Weber No jogo de xadrez. que não poderia ser um mero distanciamento do objeto. Enquanto fato empírico é componente objetivo da realidade empírica e pode servir para prever as ações de um determinado grupo de pessoas. porém. os membros do grupo usam essas expressões na crítica da própria conduta e à dos outros fazendo referência aos padrões regulares de comportamento que eles aceitam como um critério. de maneira que. o cientista adote um valor de neutralidade ao estudar seu objeto. A ação social de um indivíduo para Weber. motivo pelo qual o distanciamento do cientista deve ser sempre acompanhado de empatia. mas tratam os desvios como uma razão para tal reação e para que a exigência de conformidade seja justificada.1.11 3. existe uma dimensão de intencionalidade na ação social. nesse sentido. é o estabelecimento de cálculos estatísticos baseado no que realmente 11 HART . ainda que a intencionalidade cumpra um papel causal na ação social. pois estes valores estarão manifestos no objeto e na própria metodologia escolhida. mas um distanciamento dotado de empatia. Eles não simplesmente reagem a desvios do padrão regular de um modo previsível e adverso. 3. entretanto. Regras. no sentido de que se deve buscar ver o mundo pelos olhos do ator. as considera e de acordo com sua técnica e conhecimento toma uma decisão racional ao decidir sua jogada. Ainda assim. Tal previsão é o método de verificação da validade das interpretações sociológicas. Rumo à hermenêutica das práticas jurídicas: Weber e Hart Max Weber estava bastante preocupado com a questão da objetividade nas ciências. a ação seria formada pelo jogador que conhece as regras do jogo. Neutralidade. sociais ou jurídicas) e pela crença de que os outros indivíduos estão vinculados a compromissos semelhantes. Dessa forma.que eles seguem ou de que irão seguir padrões regulares de comportamento. as razões para a ação são o sentido subjetivamente visado. de um neonazista que adentra uma sinagoga sem usar o quipá.13 Assim. Essa é uma noção muito afastada do mundo da estatística ou das leis causais. por exemplo. Dessa forma Weber ainda parece encontrar-se preso ao fisicalismo. as razões são constituídas pelas regras sociais que fixam a intencionalidade da própria ação”14.2. Para além disso. mas "tem opinião formada" acerca da correção de todos os que movimentam a rainha dessa maneira. No caso. 120 . mas sim a sua mera consideração enquanto razão para agir. Hart distancia-se do pensamento de Alf Ross de que o aspecto interno seria um mero sentimento de obrigação. pode registrar. Essa opinião manifesta-se na crítica e nas exigências de conformidade feitas aos outros. Intencionalidade que não necessariamente refere-se à aprovação valorativa da regra. Peter Winch fará uma crítica desse pensamento weberiano afirmando que o sentido de uma ação é algo que não pode ser mensurado estatisticamente. Hart também adota a intencionalidade como mecanismo de verificação da existência de regras. ainda que contrariando a 12WINCH 13 HART. a considera como uma explicação e uma justificação de sua ação. A divergência entre estes últimos se dá no fato de que “para Weber. 120 14 PORTO MACEDO. as regras possuem um caráter interno especial e inovador. Nesse sentido. A hermenêutica de Hart: hábitos e regras Como já vimos. está muito mais próxima do reino do discurso e das relações internas que ligam as partes do reino do discurso”12 3. porém. Hart aproxima-se do pensamento de Weber de que as normas constituem razões para agir. têm uma atitude crítica reflexiva em relação a este tipo de comportamento: encaram-no como um padrão para todos quantos pratiquem o Jogo. Para ele. O sentido interno da regra referese a razões (e não fatos) para o seu reconhecimento.acontece que permite verificar e prever as ações futuras de um grupo de indivíduos. Cada um deles não se limita apenas a movimentar a rainha dum certo modo. Assim: Os jogadores de xadrez não têm apenas hábitos semelhantes de movimentar a rainha da forma idêntica que um observador externo. um indivíduo que segue uma regra. ignorante em absoluto da atitude deles em relação aos movimentos. Compreender uma ação “é perceber o ponto ou o significado do que está sendo feito ou dito. que se chamará aspecto interno das regras. e no reconhecimento da legitimidade de tal crítica e de tais exigências quando recebidas de outros. Para Hart. quando ocorre ou ameaça haver desvio. Assim. ela não é passível de uma descrição "a partir de lugar nenhum". A realidade do direito depende de regras sociais e. depende de nós mesmos. Hart operou uma virada hermenêutica na teoria do direito por descrever a prática jurídica levando em consideração a intencionalidade do agente e a forma como a prática é percebida por ele. refere-se. Essa virada hermenêutica operada por Hart traz consigo um novo conceito de objetividade: para Wittgenstein (e Hart) um conceito de objetividade que fosse completamente independente de nossa perspectiva subjetiva (ou forma devida) seria um nonsense. pois é necessário que o indivíduo entenda o sentido de vestir o quipá na sinagoga e a transgressão pretendida pelo neonazista ao ignorar a regra. 15 PORTO MACEDO . dessa forma. como afirmarão os realistas escandinavos) e que essa realidade não é redutível a fatos brutos.3. ao aspecto interno das regras. como veremos no caso de Dworkin.15 3. 3. Essa nova concepção de objetividade do mundo permitirá afirmar que o direito e seus conceitos são parte da realidade (e não uma ilusão.regra. não é a barra de platina de Paris. para apreciar o aspecto interno das regras. Pensadores das mais variadas escolas como Joseph Raz. há o reconhecimento e a consideração da norma como razão para ação. restringir-se a ela. mas o uso que fazemos dela como objeto de medida. portanto. é a partir dela que o indivíduo guia sua ação. tenham oferecido fortes críticas a teoria de Hart. A questão da intencionalidade e o caráter descritivo da Teoria do Direito. A noção weberiana de empatia. ainda que. John Finnis e Ronald Dworkin foram fortemente influenciados pela sua visão do aspecto interno das regras. isto é. A sua afirmação apenas revela um erro gramatical (lógico) no uso do conceito de objetividade. nas teorias de Herbert Hart e Ludwig Wittgenstein. contudo. externamente a nossa perspectiva humana manifesta em nossas formas de vida. será também importante para a teoria de Hart. Assim. dessa forma. o que constitui o metro-padrão como medida de mensuração de objetos. A nova objetividade jurídica de Hart: descrição e avaliação A objetividade compreendida como parte da realidade não redutível a fatos brutos.4. Como afirma Hart. Seu pensamento influenciou toda a teoria do direito anglo-saxã sem. Para Ronald Dworkin. portanto. Essa visão dos princípios representará um ataque direto também a tese das fontes puramente sociais. O debate sobre a natureza e possibilidade de um caráter puramente descritivo do direito colocou em embate direito as teorias de Ronald Dworkin e John Finnis com as de H. A condição de verdade da proposição dependa da mencionada forma de vida. é necessário compreender o valor que serve como sua hipótese política interpretativa. é necessário elaborar uma interpretação construtiva e identificar qual é o seu significado para aqueles que participam das práticas que o constituem. O direito teria uma dimensão de razoabilidade e justiça. . por exemplo. ou seja. que não estaria devidamente representada no conceito de Direito positivista. para descrever o direito.Desse modo. como pretendia Joseph Raz. Dworkin sugere que os juízes se valem dos princípios pela sua razoabilidade e justiça. ou seja. Para tanto. ou daquilo que John Searle chamou de fato institucional. Hart. Andrei Marmor. atribuindolhes um peso diferenciado. um indivíduo deixou uma herança para outro. uma exigência para a explicação do caráter ou da natureza do direito. Cabe questionar a partir daqui os limites da adoção de um caráter descritivo da prática jurídica. L. em contraste a teoria de Hart. ele mesmo. Afirmará que para compreender as práticas de poder que denominamos Direito. no caso de uma proposição jurídica. 4. uma análise descritiva ficaria sempre prejudicada. será necessário considerar que a intencionalidade que unifica essas práticas depende de uma exigência de legitimidade e justiça cujo significado é essencialmente interpretativo. afirmam razões jurídico-morais que justificam uma determinada decisão. envolve uma tese de justificação moral. entre outros. falhou em reconhecer o funcionamento desses princípios como fonte de natureza moral na argumentação jurídica. que mudará os rumos dessa escola. o positivismo falhou em agregar a questão da importância dos princípios para a prática jurídica e nisso. Tais juízos são. Explica que os princípios. O ataque mais importante de Dworkin será à tese da separação entre direito e Moral. não basta que exista um fato bruto no mundo determinando que. A realização dessa tarefa envolve o teórico do direito em juízos diretamente avaliativos sobre o direito. A. em contraste com as regras em sentido estrito. Joseph Raz. Dessa forma. a partir de suas próprias estruturas. o ato de identificar o direito. baseada nos princípios. da existência de uma regra (considerando seu aspecto interno) que defina o que é um testamento. e não pela sua mera autoridade. O desafio do positivismo Ronald Dworkin fará uma importante crítica ao positivismo. Ao demonstrar que o point (a intencionalidade) dos princípios tem uma função valorativa. Conforme explica o autor. A objetividade viria. da oferta da melhor justificação (aquela que considerou todas as dimensões necessárias do caso) dentro de um contexto argumentativamente controvertido. Dworkin cria um novo conceito de objetividade. da geometria. trata-se de uma objetividade não redutível a uma concepção absoluta do mundo nem tampouco redutível a critérios de verificação fisicalistas. Na objetividade contextualizada com os jogos de linguagem jurídicos proposta por Dworkin. intepretativistas e teóricos da razão comunicativa) versou muito mais sobre o significado teórico envolvido na “prática argumentativa envolvendo princípios” do que propriamente sobre o uso de princípios pelos juristas. tanto como as regras da lógica. exclusivistas. que Raz não compreende a gramática dos princípios dentro da prática jurídica. portanto. Para este autor. aqui representado por Raz. não meramente para oferecer uma resposta plausível em suas decisões. 16 PORTO MACEDO . ou normas de outras jurisdições ou mesmo convenções internas de uma empresa. portanto. conforme se procurou demonstrar nos capítulos anteriores. os princípios funcionam. mas para oferecer uma resposta correta considerando todas as dimensões envolvidas no problema (all things considered). afirmará que Dworkin estava correto ao afirmar que os princípios são amplamente presentes no raciocínio jurídico e que eles não possuem um pedigree (não derivam de questões de fato). o desenvolvimento de uma teoria da controvérsia capaz de mostrar como a objetividade é possível mesmo quando há desacordo – e. que se viu obrigado a aceitar parte de seus argumentos. Andrei Marmor. Porto Macedo argumenta. eles são parâmetros extrajurídicos frequentemente usados. O exclusivismo. Nisso o positivismo dividiu-se em inclusivo e exclusivo. Jules Coleman. porém.16 4. Esse argumento exigirá. entre outros. jusnaturalistas. O eixo do debate que se seguiria em diversas matrizes teóricas (inclusivistas. É o que se verá adiante. e este representado por Joseph Raz.1. Os dois fronts do positivismo: inclusivistas e exclusivistas Os ataques de Dworkin operaram profundas mudanças no positivismo jurídico. entre outros. A. Raz questiona porém que estes princípios façam parte do conceito de direito. Hart.Dessa forma e diante do argumento de que os conflitos entre princípios fariam com que fosse difícil determinar seu conteúdo objetivo (e assim criar obrigações vinculantes para os operadores do direito). entretanto. numa situação em que inexiste uma convenção que estabeleça os sentidos dos princípios e das regras. Wilfrid Waluchow. L. Aquele representado por H. contextualizado com os jogos de linguagem jurídicos: Evidentemente. poderá envolver princípios jurídicos de natureza moral como direito. etc. fatos e práticas que estão inseridos no “campo semântico” daquela palavra. que chamará de “ferroada semântica” (semantic sting).17 Em resumo: princípios morais podem fazer parte do direito. etc. e não como meros princípios extrajurídicos. Desacordos são comuns no direito e. O positivismo inclusivista discorda portanto de Dworkin no que se refere ao seu ataque a tese das fontes sociais: mesmo os princípios não pertencem a uma dimensão diferente daquela das regras. veículo. por um motivo contingente. Aqui Dworkin reforçará uma objeção antiga aos positivistas. Se. com frequência referem-se às regras que se supõem serem as bases ou fundamentos para o direito. são essas práticas convencionais que constituem a base do direito. 4. por outro lado. em 1986. desde que sejam reconhecidos por uma norma de reconhecimento como tal. a explição hartiana do direito procurou identificar critérios compartilhados para o uso do conceito de direito e os encontrou num conjunto de práticas de reconhecimento de obrigação e práticas de autoridade. parque. sua justiça. como direito.). isto é. nessas situações. de movo geral. pois verifica-se que os juízes os utilizam e consideram necessário fazê-lo. Dessa forma. numa regra de reconhecimento que se manifesta por meio de um complexo conjunto de práticas de aplicação do direito realizadas pelos juízes e também por outros funcionários do Estado encarregados nessa aplicação. Contudo. acolheram a fenomenologia do julgar. cortesia ou justiça. segundo a qual os princípios fazem parte do conceito de direito. Uma concepção semântica é aquela que busca definir o significado de um conceito a partir do conjunto de coisas. da obra O Império do Direito. Os conceitos criteriais de direito podem ser adequados para definir determinados tipos de conceitos. eles são lógico-gramaticalmente inadequados para descrever conceitos interpretativos. Nesse ponto reside o aguilhão semântico que atinge a teoria positivista. Os positivistas inclusivistas aceitaram. casa.18 17 PORTO MACEDO . então o direito. Segundo Dworkin. O império do direito contra-ataca: o segundo round O debate metodológico na teoria do direito foi aprofundado com a publicação.2. como os conceitos naturais de livro. o argumento hartiano de que o critério de validade jurídica está enraizado numa convenção fundamental. nessas práticas se incluírem o reconhecimento da força vinculante dos princípios em razão de seus conteúdos (sua razoabilidade. pertence sim ao conjunto dos fatos sociais e é verificado na norma de reconhecimento.Os inclusivistas. considerada a partir da dimensão interna e externa do direito. De acordo com essa visão. Segundo este argumento. por exemplo. Dworkin defende que devemos superar a imagem do xadrez como padrão analógico. Dworkin lança um ataque. O aguilhão que ataca o positivismo.19 5. “inexiste uma linha firme que divida a teoria do direito da decisão judicial ou qualquer outro aspecto da prática jurídica. teóricos. Esta representa o ponto de vista do historiador ou sociólogo. Segundo ele. então essas regras não existem. os positivistas acreditam ser possível fazer isso por conceder ao direito uma fonte estritamente empírica. 18 PORTO MACEDO 19 Dworkin. 187 20 Guest. com aspirações não avaliativas e metodologicamente neutras presentes em várias abordagens do direito. Dworkin e a teoria da interpretação Você é um cético arquimediano se acredita que as proposições não podem ser verdadeiras porque não há nada aí no mundo – um ponto de alavancagem – em virtude de que essas proposições podem ser mostradas verdadeiras. Hart busca afastar essa crítica apontando para uma diferença nos desacordos teóricos sobre o que é o direito e nos desacordos empíricos sobre a aplicação do direito. substituindo-o pela cortesia. um prólogo silencioso para toda decisão jurídica”. Stephen. A outra refere-se ao ponto de vista interno daqueles que fazem as demandas. é o de que o caráter semântico dessa escola é incapaz de explicar o desacordo teórico na prática jurídica. que pergunta. por que certos padrões de argumentos jurídicos se desenvolvem em certas épocas ou circunstâncias e não em outras. sem perceber que os desacordos são. na maioria das vezes. Seus argumentos são de que o direito deve ser compreendido como uma prática social argumentativa. A teoria do direito é a parte geral da decisão judicial. Para Dworkin.20 A partir dessa visão do ceticismo arquimediano. não apenas ao positivismo. mas a todas as formas desengajadas. Este argumento serve para demonstrar o que Dworkin alcunhou de a natureza convencionalista do positivismo. porém. portanto. Se há desacordo teórico (e não apenas empírico). o positivismo falha por fundamentar seu conceito semântico de Direito na tarefa de escavar regras compartilhadas.O que Dworkin tenta explicar é que os filósofos do direito pensam que devem existir regras comuns que afastem o desacordo entre operadores do direito. 197 . são conceitos interpretativos. enquanto no xadrez imperam standards públicos comuns e regras determinadas. 212 . formados a partir da prática argumentativa. Roberto então dirigiu uma crítica a Francisco. visto que se espera que os homens paguem a conta das mulheres quando as convidam para sair. Chegou até mesmo a argumentar que em outras oportunidades pagou de bom grado a conta de um amigo porque este estava em situação econômica difícil. Nesse sentido é que essa prática é argumentativa. Do xadrez à cortesia: um novo modelo para o direito/ O direito enquanto prática interpretativa A imagem do xadrez é inadequada ao estudo do direito. cuja intencionalidade geral. ou alguma combinação dessas alternativas”22. um jovem rapaz.1. o do movimento da rainha. visto que seus rendimentos não são superiores aos da garota e que não via motivo para um tratamento desigual simplesmente em razão de ser ela do gênero feminino.5. O direito enquanto prática argumentativa envolve uma prática social interpretativa: a prática da cortesia. Suponhamos que Francisco. Imaginemos a seguinte prática social normativa que envolve um conceito interpretativo.21 Este exemplo ilustra o caráter interpretativo na formação de um conceito. Essa prática argumentativa faz com que o direito seja um conceito político (não cabendo se falar em uma separação entre direito e política). é coordenar o esforço social e individual. se é que tem alguma. Tanto Francisco como Roberto compreendem a ideia de violar uma regra de cortesia. relate a seu amigo Roberto que na noite anterior convidou uma garota para jantar num restaurante e que. 203 22 Dworkin. no jogo da cortesia existe uma prática reflexiva avaliativa sobre um valor. ao final. pois o direito não possuiria regras bem definidas. cada um pagou a sua parte na conta. ou assegurar a justiça entre cidadãos e entre eles e seu governo. Assim. afirmando que ele agiu com imensa descortesia com relação a garota. que segundo Dworkin funciona da mesma forma no direito. Francisco discordou de Roberto e afirmou que não foi de modo algum descortês. como por exemplo. formado a partir da intencionalidade argumentativa de legitimação moral: “o direito é um empreendimento político. Está em jogo a disputa argumentativa sobre o conceito de uma regra e sua aplicação (coisas que não poderiam ser separadas). assim como o direito. ou resolver disputas sociais e individuais. Com isso conclui-se que a cortesia. Discute-se o que é cortês e como se deve agir de acordo com isso. 21 Porto Macedo. porém discordam sobre o que seria cortês no caso concreto. em seu texto “De que maneira o direito se assemelha à literatura”. Busca-se reconhecer a prática social e interpretar seus objetivos: A prática nem sempre se faz perfeitamente e pressupor que a prática serve um valor valioso não é pressupor que todos os aspectos da prática correntemente aceitos ou historicamente entronados também o fazem. Ressalte-se que não há uma metafísica do dever ser nesse pensamento de Dworkin. mas a percepção fenomenológica de uma característica intencional incrustada nas práticas jurídicas reais. Uma compreensão mais profunda do valor complexo ou point ao qual a prática serve pode levar os participantes a revisar seu entendimento do que aquela prática requer ou autoriza. E uma vez que a interpretação é uma parte integral da prática. não nos termos científicos. Nesse sentido a interpretação jurídica seria o ato de engajamento do intérprete na tarefa inevitavelmente construtiva de descobrir. Dworkin acredita que essa visão ignora o elemento do fórum do princípio. Aqui explica que a interpretação na construção de um conceito consiste em atribuir valor para a prática. mas nos termos de autoridade do direito. assume-se uma etapa interpretativa. Esta etapa envolve uma prática 23 POSTEMA. Portanto. Este autor ainda faz uma comparação entre o direito e a literatura. este entendimento mais profundo da prática vai alterar suas ações e potencialmente a própria prática.Leslie Green. na qual o intérprete se baseia numa justificativa geral para os principais elementos de uma prática identificada na primeira etapa. comprova-se que não há de fato um caráter metafísico de dever ser no pensamento dworkiniano. 219 . descrevendo algum esquema de interesses ou objetivos ou princípios aos quais a prática serve. que seria o momento de identificação das regras. Num segundo momento. para melhor explicar o sentido de uma atitude interpretativa. Hume e Bentham critica esse posicionamento dworkiniano. encontrar. descrever e atribuir uma intencionalidade à prática jurídica. mas a eliminação da controvérsia de modo a garantir a paz: haveria uma produção de certeza. segundo o qual o direito é o espaço para o embate político-moral acerca dos temas relevantes para uma sociedade. padrões ou paradigmas que fornecem o conteúdo experimental da prática. afirmando que não é a natureza moral do direito que está em jogo. Haveria num primeiro momento uma etapa “pré-interpretativa” (entre aspas pois algum tipo de interpretação sempre será necessário em qualquer análise). As etapas da interpretação Dworkin busca indicar de que forma se estabelecem as etapas da interpretação normativa.2.23 5. apoiado nas teorias de Hobbes. A última etapa é a etapa pós-interpretativa. se possam prescrever reformas sob a perspectiva de que uma regra pode estar errada de acordo com a justificativa da segunda etapa. não há espaço para uma visão de lugar nenhum. que acreditou serem confusões gramaticais acerca do conceito de direito. Para alguns ela deveria ter um caráter mais substantivo. como pretendiam os fisicalistas. A primeira usa a palavra Direito para designar um tipo particular de estrutura social e nos serviria para responder perguntas do tipo: quando surgiu o direito numa sociedade primitiva? A concepção doutrinal. por outro lado. A nova conceitografia de Dworkin Neste capítulo. Mas não há também um axioma transcendental que justifique a argumentação da etapa interpretativa: A situação interpretativa não é um ponto de Arquimedes. Essa convenção refere-se à legalidade. aqui. e não inventando uma nova prática. de forma que os operadores deveriam atuar exatamente como prescrito pela legalidade. que possui um caráter reformador. demonstra como esse conceito depende de como entendemos o próprio direito. envolvem-se avalições morais sobre quão justa seria a regra – de acordo com uma interpretação contextualizada das regras. Essa visão é particularmente importante.24 6. 232 . ao império do direito. nem isso está sugerido na ideia de que a interpretação procura dar a melhor imagem possível àquilo que é interpretado.argumentativa. Dworkin também demonstra a confusão que uma convenção aspiracional causa na teoria do direito. reconhecendo se existem ou não princípios morais em seu plano de fundo. que acerta em cheio ao apresentar a interpretação como reconhecendo os constrangimentos da história ao mesmo tempo que luta contra eles. Recorro mais uma vez a Gadamar. pois juízes tomam decisões políticas. nas quais devem argumentar construtivamente sobre a aplicabilidade da regra de acordo com os princípios morais que a norteiam e considerar se esses princípios existem ou não. o autor faz uma distinção importante entre uma concepção sociológica e uma concepção doutrinal do direito. Aqui entra em jogo o conceito que se tem de Direito. onde a justificativa deve adequar-se o suficiente com a prática analisada para que esteja de fato interpretando. Mais uma vez. Dworkin propõe que ao decidir sobre a aplicação de uma regra. Porto Macedo mostra como Dworkin esforçou-se para erradicar as confusões sobre sua teoria. Para 24 DWORKIN. busca identificar as regras e contextualizá-las com o jogo específico de que se trata. para um observador puramente externo. Assim. Aqui. mas de auxiliar os indivíduos em matérias de planejamento de suas práticas sociais. Essa identificação virá da concepção aspiracional: o estudo da legalidade permite interpretar os valores que se aplicam ao estudo do direito.25 Este é um estágio teórico-jurídico no qual se busca chegar a um conceito de direito. é um 25 DWORKIN. pois não passam ao teste da justificação moral. Para Dworkin. um conceito interpretativo de direito. poderia discordar. ou seja. Para isso. como defendida por Dworkin. que o estágio semântico. defender abordagens muito diferentes da minha dos valores capturados nesse conceito aspiracional. Dworkin defenderá que se fale de uma concepção doutrinal e interpretativa como formas mais adequadas de estudar o direito. este estágio busca definir a verdade proposicional na aplicação de uma regra. A partir das ideias de Dworkin de um conceito interpretativo. é verdade que uma regra se aplica quando está de acordo com a função do direito e com os princípios que eles determinam. Nesse sentido. onde se define o que se entende por direito. segundo o qual concluiríamos que normas discriminatórias não são normas de direito. Por uma concepção doutrinal. Essas distinções podem alterar nossa concepção sobre a existência ou não do direito. Se for adotada uma concepção sociológica. não obstante. afirmando que o conceito aspiracional do direito não seria o de justificar moralmente a ordem coercitiva. podemos concluir que regras exigem a interpretação moral para sua justificação. primeiramente devemos identificar os valores mais adequados ao direito. A definição dessa função da legalidade é o que se entende por estágio teórico-jurídico. parece claro que o direito nazista seria uma espécie de direito. 263 . Note-se que ela se dá após um primeiro estágio. que se refere a forma como deve agir o juiz ao decidir o caso concreto. é o plano que discute como as autoridades devem agir ao aplicar o direito. Um próximo estágio seria o estágio doutrinal. Um positivista como Raz porém. O importante nessas concepções é perceber como todas estão diretamente influenciadas pelo conceito que se tem do direito (estágio semântico).Dworkin a resposta correta seria a de que o correto domínio da legalidade envolve obrigatoriamente a interpretação das regras a partir dos princípios que as guiam. e como elas podem variar a depender do autor: Outros teóricos que no estágio semântico concordam comigo que o conceito doutrinal de Direito é um conceito interpretativo e também concordam que devemos encontrar um valor geral da prática jurídica no conceito aspiracional de legalidade podem. Por esse motivo. no caso. as concepções aspiracionais e doutrinárias convergem e se interconectam. Num último momento Dworkin analisa o estágio da decisão jurídica. devemos considerar o conceito de Direito que temos e mãos. Também influenciado pela semântica de conceito. mas são eles mesmos protagonistas de suas próprias teorias.DWORKIN.1.26 7. Jules Coleman. mas entre teorias que introduzem a moralidade em estágios diferentes da análise. Que fique claro que as conclusões que teremos do que é correto nesse estágio dependerão de como entendemos os estágios anteriores. A matter of principle. Joseph Raz. De outro lado. essencialmente. Mass. e dessa para as duras críticas de Dworkin. autores como Ronald Dworkin e John Finnis também representam tradições próprias.: University Press. . 1986. é que o Direito enquanto prática social dependerá de como entendemos cada um desses estágios. concluindo que sua teoria é diferente no sentido de que: A diferença não é apenas entre teorias que incluem e aquelas que excluem a moralidade. Scott Shapiro. Mais ainda. que não podem ser confundidas com uma única escola de pensamento. com diferentes consequências para o juízo político final no qual uma teoria do direito completa se conclui. se buscou demonstrar o caráter altamente metodológico do debate em teoria do direito. p. Conclusão Com o que foi demonstrado.estágio político-moral. 1. entre vários outros. 9-145. Andrei Marmor. Os defensores de um ou de outro lado têm seus próprios argumentos e não são pertencentes a escolas filosóficas que concordam entre si. 276 . possuem suas próprias ideias e travam debates entre si sobre as consequências do debate HartDworkin. De um lado. da passagem do fisicalismo puro de Hans Kelsen e John Austin para a virada linguística de Herbert Hart. Ronald. Os juízes políticos e o Estado de Direito 26 DWORKIN. o debate Hart-Dworkin demonstra que os problemas aqui discutidos estão longe de serem pacificados. Hart. A influência de autores como Ludwig Wittgenstein e Martin Heidegger serve para demonstrar o constante aumento da complexidade na filosofia jurídica. O fundamento político do direito 1. Cambridge. O que Dworkin busca mostrar. O primeiro refere-se a busca pelo que o texto legal quis dizer e o segundo ao intento de compreender o objetivo do legislador no momento em que redigiu o dispositivo legal. Ainda. Aqui o objetivo é identificar se a parte possui um direito moral sobre sua demanda. É o que se chama de questão contra factual. Isso se dá. Conforme explica Dworkin. porém. se os legisladores estariam em posição privilegiada em relação aos juízes para tomar decisões sobre direitos. contra factual) não deixam de ser. porém. O princípio que o juiz deve aplicar nesses casos não pode ser contraditório com o conjunto de normas jurídicas. parece que grupos minoritários e indivíduos com menor poder de representação poderiam ser beneficiados com a transferência de certas questões do Legislativo para o Judiciário. pois acredita-se que decisões políticas só podem ser tomadas sob controle popular. por aqueles periodicamente eleitos pelo povo. Uma terceira via ainda se apresenta para os casos controversos e refere-se a união da questão semântica e psicológica. decisões políticas. Não se trata. de maneira alguma. como se pretendem. A primeira seria a ideia de que o Estado só pode exercer seu poder contra o cidadão se expressamente permitido pelo texto jurídico ou. Como afirma: “não há nenhuma razão para pensar. que ficaria prejudicado se juízes interferissem em questões políticas. Legisladores estão sujeitos a pressões públicas e privadas que escapam ao juiz e não faz sentido acreditar que aqueles teriam maior conhecimento para decidir sobre questões de direitos. mas os que defendem a concepção centrada no texto legal afirmam que a forma como os juízes guiam seu pensamento (para a interpretação do texto) é o elemento relevante dessa concepção. Existiriam duas concepções dominantes: a centrada no texto legal e a centrada nos direitos. Num segundo momento questiona-se o próprio argumento da democracia. é que as soluções oferecidas pela concepção centrada no texto legal (semântica. a partir da interpretação do sentido semântico ou psicológico do texto jurídico. ou seja. Este é o argumento da democracia. em casos controversos. abstratamente. A ideia de um Estado de Direito centrado nos direitos enfrenta problemas filosóficos em maior escala. especificamente. essa última concepção enfrenta bastante resistência pela crença comum de que juízes devem se manter fora da política. O que Dworkin busca demonstrar. buscando compreender como decidiria o legislador caso fosse legislar sobre o ato jurídico em questão. de afirmar que os juízes devem decidir de acordo com argumentos políticos ao regalo da lei. dado o caráter majoritário da tomada de decisões do primeiro. que a transferência de decisões sobre . Fica claro que juristas irão discordar sobre as interpretações corretas qualquer que seja o método utilizado.Dworkin inicia sua obra distinguindo entre as concepções de Estado de Direito. Parece que não. quando a lei não esgotar o caso concreto. São na verdade decisões com este caráter e uma mera roupagem de caráter histórico. psicológica. mas de afirmar que nos casos controversos essa análise é a mais adequada. O fórum do princípio A constituição é a lei fundamental dos Estados Unidos e os juízes devem aplicar a lei. O ponto central é perceber que a decisão política não terá caráter puramente arbitrário. como mudou radicalmente nos Estados Unidos neste século. Alguns poderiam argumentar. o que tornaria problemática a transferência de certos poderes para o judiciário. retardará o ideal democrático de poder político. Pode muito bem promover este ideal”27.. que juízes tendem a ser conservadores. John Marshall construiu a instituição da revisão judicial da legislação. e homens e mulheres que nunca pensariam numa carreira jurídica. por exigir que o juiz despisse suas decisões da roupagem histórica. Dworkin demonstra citando o caso da Inglaterra.direitos. Os argumentos político-morais envolvidos devem estar de acordo com os princípios efetivamente previstos na lei. Se a concepção de Estado de Direito centrada nos direitos se tornasse mais popular do que tem sido. a educação jurídica tornar-se-ia quase certamente mais ampla e mais interessante do que é agora. e os juristas que essa profissão valoriza e manda à magistratura seriam diferentes..28 1.2. das legislaturas para os tribunais. porém. de forma que um juiz conservador deveria ignorar suas convicções e buscar aquelas não-contraditórias com os princípios positivos. que já são conservadoras mesmo que em sua maioria sejam decididas por questões históricas (centradas no texto). famosa por ter uma geração de juízes altamente conservadores. pessoas diferentes teriam um lugar no direito. apontando para os seus fundamentos políticos. por desejarem uma carreira que tenha influência para a justiça social começariam a pensar de maneira diferente. uma instituição que é. [. que a concepção centrada em direitos não operaria mudanças radicais em suas decisões. A profissão mudaria. Afirma inclusive que acredita que a concepção centrada em direitos poderia tornar as decisões menos conservadoras.] Se o Direito tivesse um lugar diferente aqui. simultaneamente o orgulho e o enigma da doutrina norte-americana. Sobre esse argumento simples e forte. Dworkin questiona como podemos conciliar essa instituição com a democracia e afirma 27 32 28 29 .29 Utilizando-se do judicial review parece que juízes exercem poder de veto sobre a nação. Nesse sentido duas respostas foram oferecidas. portanto. segundo Dworkin. Por outro lado. abrindo por vezes ainda mais espaço para decisões arbitrárias. até decidirmos o que são esses princípios. é claro. sendo. Dworkin aponta que mesmo nesse caso sempre haverá uma decisão política. As razões que obrigam o jurista a se limitar ao texto constitucional não podem ser extraídas do próprio texto: seriam uma petição de princípio. enquanto teorias não-interpretativas favorecem a busca de elementos extrajurídicos (morais) na tomada de decisões. Não podemos dizer se esses princípios realmente têm essa consequência. se não impossível. pois intenção possui caráter individual e as ferramentas de acesso à tais intenções não parecem adequadas. Por um lado. Isso porque. por caírem nos já mencionados erros de constituírem uma decisão política com roupagens de histórica. teorias interpretativas. ambas insuficientes. 30 . Dworkin afirma que a distinção entre as duas teorias confunde mais do que esclarece. De uma maneira ou de outra. teorias não-interpretativas sempre buscam determinar a finalidade do texto constitucional para buscar nesse plano de fundo os princípios morais aplicáveis ao caso. concepções diferentes da intenção constitucional dão respostas diferentes. só pode ser porque aceitamos princípios de moralidade política que têm essa consequência. na verdade. Se isso torna o documento em direito. definir a intencionalidade de um grupo legislativo. e certas teorias políticas plausíveis pelo menos levantam a questão de se o documento deve ser limitado de alguma maneira. como se verá. Qualquer resposta a essa pergunta deve assumir a forma de uma teoria política demonstrando por que a Constituição deve ser tratada como direito. Um grupo de pessoas reuniu-se em Filadélfia e lá escreveu um documento. que foi aceito pelo povo em conformidade com os processos estipulados no próprio documento. Aquelas determinam a interpretação da constituição e sua intenção original. é um ato inútil que termina sendo meramente interpretativo.30 A intenção dos constituintes/formulando uma intenção original Dworkin defende que buscar a intenção dos constituintes. é difícil. e continuou a ser aceito por ele da maneira e na medida em que tem sido. “Não há nenhum fato persistente da matéria – nenhuma intenção ‘real’ estabelecida na história.que seria possível fazê-lo se conseguíssemos criar um programa apolítico para resolver os conflitos constitucionais. Por outro lado. Mas esses princípios poderiam não apenas estabelecer a Constituição como direito. Há uma distinção comum entre teorias interpretativas e não-interpretativas utilizadas no judicial review. mas também limitá-la. teorias ditas interpretativas parecem prestar pouca atenção a questões a respeito da finalidade da Constituição. Em primeiro lugar cabe distinguir a concepção psicológica pura. de forma que tudo que não for P foi delegado para as próximas gerações de juristas? Todas essas perguntas passam pelas questões de quais pessoas e quais estados devem ser considerados. para desembocar na pergunta 4. por características aparentemente mais objetivas. de uma concepção mista. ou delegado para gerações futuras. Que combinação de intenções individuais deve ser considerada? A majoritária ou contra majoritária? Novamente não se apresenta nenhum dispositivo legal que determine essa questão. Utilizando-se da concepção psicológica. Se por um lado é possível buscar as esperanças e expectativas do legislador. por outro é possível buscar aquilo que foi negado. (3) qual estado psicológico: negação e delegação?. também. como a leitura semântica do documento. (2) qual estado psicológico: esperanças e expectativas?. recaindo na interpretação do jurista qual o grupo de intenções mais adequado. quais sejam: (1) quem vale?. que considera a intenção constitucional como parcialmente constituída.independente de nossas opiniões sobre a prática jurídica ou constitucional adequada – contra o qual se possa testar a precisão das concepções que construímos”31. Pretendia-se definir um princípio com o dispositivo aprovado. (4) que combinação de intenções individuais? A primeira pergunta busca identificar os sujeitos cujas intenções são relevantes. As perguntas 2 e 3 referem-se ao estado psicológico analisado. valem as intenções dos membros do congresso? Dos delegados da convenção original? De todos eles. Esse longo catálogo de problemas e questões teve a intenção de demonstrar que a ideia de uma intenção legislativa ou constitucional não tem nenhuma interpretação natural estabelecida que faça do conteúdo da intenção dos constituintes uma simples questão de fato histórico. Assim. ou era pretendido se limitar a dizer que P. A ideia pede uma formulação que juristas e juízes também irão desenvolver de maneira diferente. Dworkin busca demonstrar esse argumento. como a mais famosa delas: a personificação dos “Fundadores”. Qualquer justificativa para uma 31 . que sustenta que uma intenção constitucional é constituída apenas por processos ou disposições mentais selecionadas ou outros estados psicológicos de indivíduos identificados. inclusive os que votaram contra? Os estados psicológicos das pessoas como um todo ou apenas das que participaram de debates públicos? Valem apenas as intenções dos personagens de um determinado momento da história ou também de outros? Quais? Segmentos do público? Juízes da Suprema Corte? Dessas questões podem emergir respostas perigosas. haverá sempre um processo interpretativo do ato de pretensão. Dworkin demonstra as questões que a teoria enfrenta. que deve ser buscado na esperança do legislador. Nesse sentido. psicológico ou de outro tipo. Analisando as diferentes formulações sobre intenções originais. não o resultado isolado desse processo. Dworkin demonstra que as várias concepções de democracia (democracias populares. que tem em vista os resultados. Podemos definir duas estratégias para tomar a decisão sobre o conceito de democracia mais adequado ao judicial review. de que os juízes podem tomar decisões constitucionais apolíticas ao descobrir e impor a intenção dos constituintes. por exemplo. O primeiro baseia-se numa teoria sobre distribuição adequada do poder político. etc. é compatível com a democracia. pois deve-se atentar para o processo justamente para responder corretamente as questões políticas substantivas. isto é. ao passo que a revisão baseada na substância.. portanto. A afirmação 2 falha. (4) o tribunal.) fazem com que a escolha por uma delas seja uma escolha política e por isso. Ainda. não oferece nenhuma sustentação maior para uma doutrina jurídica da revisão judicial baseada no processo. mas na teoria política. pois o ideal abstrato de democracia. (3) a revisão baseada no processo. em si mesmo. democracia como processo de tomada de decisões políticas. “O argumento de Ely de que o Tribunal pode evitar questões de substância apoiando suas decisões na melhor concepção de democracia de democracia seria então auto-anulador”32. Pois os juízes não têm como descobrir essa intenção sem construir ou adotar uma concepção de intenção constitucional em vez de outra. substantiva. para um entendimento do que os constituintes pretenderam. portanto.. mas as outras não. Mas. extraídas da teoria de John Hart Ely: (1) a revisão judicial deve ter em vista o processo da legislação. deve ser encontrada não na história. portanto. (2) ela deve avaliar esse processo segundo o padrão de democracia. sem tomar as decisões de moralidade política que tinham como objetivo evitar. erra quando cita um valor substantivo putativamente fundamental para justificar a revogação de uma decisão legislativa. e não para fugir delas. é antagônica a ela. então. é uma promessa que não pode ser cumprida. demonstra. Os argumentos-insumos e os argumentos-resultado. num argumento de que uma concepção ajusta-se melhor à teoria mais convincente de governo representativo. Dworkin demonstra quatro proposições dessa tese. Deve ser encontrada. devendo se limitar meramente ao devido processo legal. mais uma vez. existem os que acreditam que o judicial review não deve decidir sobre matérias de substância. Processo: processo e democracia Contrapondo-se aos que buscam uma “intenção original”. que é impossível operar esta fuga. Dworkin afirma acreditar que a primeira proposição está correta. sem 32 84 . a ideia com que começamos.formulação e. na semântica ou na análise conceitual. Minha visão é que o Tribunal deve tomar decisões de princípio. Os argumentos-insumos falham por ser impossível fazer julgamentos sobre o processo sem que se façam julgamentos políticos sobre o conceito de democracia aplicável (de acordo com a proposição 2 de Ely). Se alguém rejeita essa descrição utilitarista. visto que a escolha utilitarista possui em sua base um objetivo. A questão é que motivos. também deveríamos abandonar a ideia de que o judicial review – enquanto processo de veto político – é incompatível com a democracia. em favor de alguma descrição supondo que as pessoas não são tratadas como iguais a menos que as decisões legislativas respeitem certos direitos fundamentais. de tratar as pessoas como iguais. 33 92 .fazer referência a questão da justiça. É controvertido qual é o padrão correto para decidir se alguma legislação trata as pessoas igualmente. O segundo possui caráter utilitarista-pragmático. Porém ainda é necessário que se mudem as roupagens das decisões nesses casos. inevitavelmente. afetar seu cálculo de quando um processo político oferece igualdade genuína de poder político. que servem apenas a confusão. Mas isso significa que os juízes encarregados de identificar e proteger a melhor concepção de democracia não podem evitar de tomar exatamente os tipos de decisões de moralidade política que Ely insiste em que eles evitem: decisões sobre direitos substantivos individuais.33 O fórum do princípio Se queremos a revisão judicial – se não queremos anular Marbury contra Madison – devemos então aceitar que o Supremo Tribunal deve tomar decisões políticas importantes. Argumentos-resultado falham pelo mesmo motivo. nas suas mãos. que é necessariamente político. Dworkin afirma que se abandonarmos a ideia de que existe uma forma canônica de democracia. não de política – decisões sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema constitucional. Se alguém acredita que a legislação trata as pessoas como iguais quando pesa todas as suas perspectivas de utilidade sem nenhuma distinção individual. são bons motivos. então isso deve. Devemos abandonar os velhos mitos da imparcialidade política. e constituir as decisões a partir de princípios. não decisões sobre como se promove melhor o bem-estar geral. abertamente. então usará o que descrevi anteriormente como argumento utilitarista puto a favor da defesa da democracia e da escolha entre concepções rivais de democracia. 3. que a prestação jurisdicional substantiva no Direito é uma questão de princípio. é uma sociedade que ignora o fator de injustiça. (2) se não. processo Qualquer um que pense. dessa maneira. Haveria. existe algum meio-termo defensável. negar às pessoas quaisquer direitos. mas não aos processos mais precisos possíveis? Como tais direitos poderiam ser formulados?. a processos que ponham à prova sua inocência?. A Câmara dos Lordes decidiu concordar com o argumento do órgão público. independentemente de ser justa ou não – e os danos adicionais. no decorrer de um julgamento. tem um interesse especial em saber se é possível encontrar um meio-termo entre as afirmações exageradas e as niilistas sobre os direitos que as pessoas têm a processos no tribunal. processo e política. onde uma mulher fora falsamente acusada de crueldade para com os filhos. são as decisões de política ou de princípio? O que deveriam ser?. e que essa é uma importante afirmação tanto em termos normativos quanto teóricos. negando um 34 . Dworkin sugere que imaginemos uma sociedade que estabeleça como absoluto o direito de não ser condenado se inocente. formando assim uma sociedade eficiente em custos. política. porém. segundo o qual as pessoas têm alguns direitos processuais. que seriam o fator de injustiça – danos que alguém sofre sempre que a punição é injusta. como eu. (3) se não. pedindo o nome do informante. uma incoerência na sociedade eficiente em custos. quais sejam: (1) é coerente. (5) as pessoas têm direitos processuais no que diz respeito a decisões políticas acerca de uma política? Começando pela primeira questão. se um indivíduo inocente for condenado criminalmente ele sofrerá danos simples – que seriam a punição. Segundo Dworkin. Uma sociedade que se impõe um valor moral (“o direito de não ser condenado se inocente”) e ignora a necessidade de oferta dos processos mais adequados a sua defesa.34 Dworkin apresenta seis questões pertinentes sobre a relação entre princípios. Princípi o. no sentido estrito. que alegou que receberia menos denúncias anônimas caso as pessoas soubessem que poderiam ter seus nomes revelados em corte. com a proposição de que as pessoas têm o direito de não ser condenadas por um crime que não cometeram. considerando-o importante para sua defesa. Para exemplificar. mas que negue qualquer direito a algum processo específico.1. A mulher moveu uma ação contra o órgão. (4) as decisões que os tribunais tomam a respeito do processo. Dworkin cita o exemplo do caso inglês D contra National Society for the Prevention of Cruelty to Children. Este é um caso explícito no qual se considera um cálculo utilitarista de bem-estar social. a coerência exige que as pessoas tenham direito aos processos mais precisos possíveis?. devemos substituí-la por uma prática na qual todas as outras necessidades e benefícios sociais sejam sacrificados para que se produza o mais elaborado e preciso processo criminal que o mundo já viu? Dworkin quer saber aqui como devemos equilibrar o risco de um dano moral acidental com os ganhos sociais gerais obtidos pela aceitação de tais riscos. problematizando-as da seguinte maneira: se a sociedade eficiente em custo é defeituosa. no cômputo geral. No caso de um homem velho. Mas se ele é incluído na dimensão de seu dano moral. portanto. que 35 122 . A partir de uma análise fenomenológica. aparentemente iguais. essas objeções efetivamente reforçam minha sugestão de que uma sociedade que submete questões de processo criminal a um cálculo utilitarista comum não reconhece a independência ou importância do dano moral. No processo criminal. demonstra que de fato consideramos muito pior sofrer um dano moral a sofrer um dano simples. A sociedade eficiente em custo que imagino. A oposição entre danos simples e danos morais (fator de injustiça) é importante para compreender se o direito de não ser condenado se inocente deve ter mais força do que argumentos como a “defesa do bem-estar social a longo prazo”. mesmo em casos em que a resposta correta para o problema do dano moral seja profundamente controvertida.direito que o indivíduo teria de conhecer seu acusador. não reconhece que mesmo a condenação acidental de uma pessoa inocente é ocasião de dano moral. então não se pode absolutamente propor o argumento a favor de processos mais caros. Dworkin retoma suas perguntas (2) e (3). não se considera o “fator de injustiça” que poderia ser imputado ao indivíduo pela não aplicação de seu direito. (b) as pessoas têm o direito à avaliação coerente da importância do dano moral. ou. Dworkin defende a existência de dois direitos. sendo que este sem aquele seria um dano justificado. pode pesar muito. se o reconhece. Dessa forma. O segundo direito é importante pois “permite que alguém afirme. mas leva-se em conta uma eficiência de custos – que não são necessariamente financeiros. realmente age sem coerência. Portanto. podemos considerar o esquema dos processos civis e criminais como sendo formados a partir das convicções de uma comunidade em relação ao peso atribuído as diferentes formas de danos morais em contraposição aos danos simples. o incidente se inclui apenas na dimensão do dano simples. mas com certas diferenças práticas: (a) as pessoas têm o direito de que os processos criminais atribuam a importância correta ao risco de dano moral. Nessa sociedade. fraco e doente que é injustamente condenado a morte. Se.35 Dessa maneira. teremos um dano moral muito superior aos danos simples sofridos por ele. A partir disso. Pois se os cálculos de “política” indicam que o público não se beneficiaria com a exclusão dessa prova. um julgamento de princípio perguntando se o nível de exatidão exigido seria alcançado. como questão de probabilidade antecedente. não de política – e responde sua pergunta (4). de excluí-lo ou não. em dois passos: o primeiro. No caso acima mencionado. esses dois passos transformam-se em um. o que geraria uma decisão política caso se levasse em conta se a sociedade ganharia ou perderia por admitir provas desse tipo: Contudo. por exemplo. Assim. Se o direito fosse um direito a um dado nível de exatidão. Para explicar esse argumento. Ela pressupõe que o direito processual é um direito a um nível fixo de exatidão. em contraposição a outros elementos como o interesse público. Isso equivale a dizer que não é necessário que se crie uma nova teoria de aplicação coerente do dano moral. 36 131 . e o segundo um julgamento político. se as coisas fossem assim.tem direito a processos compatíveis com a avaliação da comunidade do dano moral contemplado na lei”36. da mãe falsamente acusada de crueldade para com seus filhos. a partir da discussão precedente. poderia ficar claro que há um interesse público geral que órgãos de proteção as crianças tenham sua eficácia protegida. mas que deve ser identificada na lei uma via coerente que considere o direito (a) de que se deve dar a importância correta ao risco de dano moral. A partir disso Dworkin responde sua pergunta (3) sobre a possibilidade de um caminho do meio entre a priorização absoluta do dano moral ou sua exclusão dos conceitos considerados. Segundo Dworkin essa é uma questão de princípio. excluir essa prova não indicaria absolutamente nenhuma preocupação com o risco de dano moral e violaria claramente o direito processual da parte que reivindica a admissão. como supõe o argumento. podemos recorrer a imagem do indivíduo que requer a admissão de alguma prova a qual não tem nenhum direito. não obstante. então a decisão do tribunal seria tomada. que essa linha de argumentação fracassa. de maneira que o dano moral sofrido pela parte seria relativamente insignificante. ou de uma regra excluindo provas como essas. Mas como a decisão é a de determinar se o risco de dano moral foi devidamente avaliado. não o direito à atribuição de certo peso ao risco de injustiça e dano moral. podemos concluir que seria necessário fazer uma espécie de ponderação entre o dano moral que seria sofrido por uma pessoa. embora as razões sejam diferentes. os cálculos instrumentais e de consequências associados às decisões processuais encontram-se tão plenamente fundados em argumentos de princípio quanto estão ao surgir em decisões substantivas. então uma decisão de. mesmo que a prova fosse excluída. deve estar claro. se houvesse algum. segundo. que o Tribunal cometeria um erro se considerasse apenas os problemas de ordem utilitária sem sopesá-los com a possibilidade e proporção de dano moral que o indivíduo litigante poderia sofrer. o risco de sacrifício equivocado de tal interesse devido aos processos usados. . incluindo a função envolvida e os encargos fiscais e administrativos que a exigência processual adicional ou substitutiva acarretaria”. Dworkin busca apontar um caminho do meio entre dois extremos particulares aos processos jurídicos. ou seja. o interesse do governo. Isso porém não significa que sempre terão direito à audiências públicas em todos os casos administrativos. o interesse privado que será afetado pela ação oficial. e o valor provável. Dworkin ressalta.A partir dos argumentos já apresentados Dworkin responde à pergunta (5): as pessoas têm direitos processuais no que diz respeito a decisões políticas acerca de uma política? A sua resposta é que os participantes do processo administrativo têm os mesmos direitos que os litigantes têm no tribunal. porém. e. Mais uma vez. sendo o direito dependente de certos fatores como os mencionados pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos no caso Matthews contra Eldridge: “primeiro. finalmente. de salvaguardas processuais adicionais ou substitutivas. o direito de que o fator de injustiça seja levado em conta e devidamente avaliado.
Report "Resenha - PORTO MACEDO JR. Do Xadrez à Cortesia"