Recensão crítica da obra "O Novo Espaço Público" de Daniel Innerarity - Teresa Rolla

March 20, 2018 | Author: Teresa Rolla | Category: Society, Democracy, Politics, Globalization, Communication


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Recensão crítica da obra O Novo Espaço Público de Daniel Innerarity, tradução de Manuel Ruas, Editorial Teorema, 2010 MariaTeresa Carvalho Rolla Faculdade de Letras da Universidade do Porto 110739084 – MEFIL Daniel Innerarity é um filósofo basco que nasceu em Bilbau, em 1959. Actualmente, é Professor Catedrático de Filosofia Social e Política, na Universidade de Zaragoza. Neste momento, conta com dez livros já publicados, entre os quais, ‘O Novo Espaço Público’ que serve de base a esta reflexão crítica sobre as sociedades contemporâneas. Ao falarmos de sociedade somos automaticamente remetidos para a concepção de humano. Só há sociedade porque há humanos e porque estes, por variadíssimas razões, se foram agrupando culturalmente em comunidades que se foram expandindo e vêm dando lugar a sociedades cada vez mais amplas e globais. Hoje, é impensável falar em sociedades sem que se fale de multiculturalismo e globalização. São dois conceitos que andam de mãos dadas na actualidade da vida contemporânea. Mas, se à primeira vista mantêm uma relação estável, o mesmo não acontece quando se olha pormenorizadamente para a questão que levantam. Por um lado, e segundo Innerarity, o multiculturalismo não significa que haja cada vez mais estrangeiros entre nós, mas sim que ‘está a aumentar a estranheza geral do mundo, a sua imprevisibilidade e a quantidade de novidades e surpresas que nos assaltam’, por outro, a globalização permite-nos estar cada vez mais perto uns dos outros, quer em termos de informação partilhada, quer em termos de distância. Mas no processo de confrontação com o modelo de uma globalidade imperfeita, cheia de subterfúgios, onde se escondem as divergências criadas pela proximidade e pela intolerância ao estranho e desconhecido, começamos a notar os principais conflitos da actualidade. Innerarity é metódico ao expôr vários campos onde a influência de uma nova reflexão acerca deste tema é necessária e urgente. A prática reflexiva é, neste momento, e na opinião de Innerarity, o primeiro passo a dar pelas sociedades actuais com vista à reformulação do espaço público que, sem ela, se vai decompondo às portas de uma nova civilidade onde as virtudes ainda não foram eleitas. É neste contexto que temos que pensar as novas sociedades, reflectir e não esquecer a mudança conceptual, inerente a um novo estádio de desenvolvimento paradoxal. Já houve quem dissesse que vivemos numa crise de valores, numa amálgama de 1 perspectivas inconciliáveis e contrárias, num cativeiro de capital, ou numa anarquia moral. São vários os insultos a serem disferidos diariamente contra o actual modelo de sociedade, mas poucas são as respostas ao problema emergente desse modelo legado pela modernidade. A principal crítica tecida por Innerarity é precisamente esta: as sociedades vêem-se mudadas mas não se pensam interiormente; seguem apenas opiniões que vão sendo tidas como certas pela maioria, mesmo não sabendo bem o que respresenta essa maioria; vão seguindo os seus fiéis companheiros de viagem do século XXI, que se introduzem na sociedade como meios de comunicação, e que representam hoje a ‘moldura estável da insegurança geral’. Os meios de comunicação são hoje o advento da tranquilidade, são aquilo que mantém as pessoas seguras de que pertencem a um mundo real, sincronizado e comum. Os meios de comunicação ocuparam um lugar de destaque nas nossas sociedades, é a eles que hoje é exigido ‘o exercício de um conjunto de funções sociais como a estabilidade, o entretenimento, a absorção da insegurança ou a criação de boa consciência’. Estamos perante outra mudança dos tempos que afecta a vida diária de qualquer sociedade ocidental - a realidade mediatizada pelos meios de comunicação. Começa a parecer-nos quase impossível traçar um perfil verdadeiramente adequado da sociedade de hoje. Os conceitos começam a ser inadequados e insuficientes para transmitirem os novos paradigmas e contextos. A cidade está transformada em algo de funcional e segmentar, onde o conceito de distância é fudamental para perceber e construir relações. A urbanidade tem que ser ensinada como princípio de vida e interiorizada por cada um. Perante um quadro destes, é-nos difícil perspectivar as mudanças que ocorrerão num curto espaço de tempo, nas sociedades onde os indivíduos são cada vez mais “individualizados” e heterogéneos. ‘O que é que nos vincula aos outros, e a que outros, quando a sociedade é entendida como mera justaposição de interesses particulares ocasionalmente vinculados por algum objectivo comum?’ é a pergunta com que Innerarity nos confronta logo no prólogo d’O Novo Espaço Público. O conceito de espaço público que emergiu no debate político do século XVIII, desempenhou um importante papel nas democracias modernas, mas é exactamente esse conceito que hoje precisa de uma nova reflexão – vivemos numa sociedade desinstitucionalizada onde este conceito perdeu toda a força e vigor que detinha. Hoje, o espaço deixou de ser demarcado, mesmo que invisivelmente. A velha discussão entre o público e o privado faz cada vez mais sentido quando pensamos na construção do 2 ‘novo espaço público’ mas, ao mesmo tempo, tem cada vez menos lugar central nas sociedades onde se reconhece a privatização do público e a politização do privado. Hoje, o público e o privado vivem entrelaçados de uma maneira indistinta, confundemse entre si, não só pelos indivíduos mas também por todas as instituições que integravam o ‘velho’ espaço público. As demarcações deixaram de existir, ‘a personalização do político’ é visível diariamente, os temas políticos são suplantados pelas personagens políticas e os grandes problemas públicos são hoje questões ligadas à vida privada. Chegamos ao século onde protagonizamos a dificuldade de distinguir o que é público do que é privado. Sem estas categorias definidas e demarcadas é-nos impossível seguir o modelo tradicional de ‘espaço público’. Este, deixa de ser conceptualizável pelas sociedades globais e multiculturais. Perante isto, como entender ou conceptualizar as nossas sociedades? Vivemos na era do particularismo generalizado, onde a sociedade é segmentada em redor de interesses específicos. Já não existe a sociedade como um todo e os indivíduos já não se perspectivam através da unidade. Assistimos a agrupamentos por interesses, temas e situações específicas sem duração. As ligações são fugazes e não criam laços. São por contexto situacional, onde o individual prevalece perante a unidade. A definição de Sociedade de Risco, descrita por Beck, em 1986, é um marco importante na reflexão destes problemas. Beck considerou estas sociedades com ‘um tipo de socialização que não se baseia em valores e normas compartilhadas, mas em ameaças comuns como os perigos, as catástrofes e as crises. Os nossos vínculos são mais constituídos pelo que tememos ou pelo que nos indigna, do que por uma integração positiva.’ É a partir deste ponto que Innerarity assume ‘a crise da representação política’ no mundo contemporâneo. As pessoas deixaram de se sentir representadas pela política, sendo esta, hoje, uma instância sem relevância onde a ‘despolitização’ vai ganhando terreno a cada dia que passa. A visão da democracia como mera protecção de interesses e fins privados é cada vez mais o pressuposto que traduz a política de hoje. O trabalho de mediação institucional que integra o múltiplo e o diverso, no mesmo espaço, deixou de ser representado pela política e são os processos comunicativos (como referi acima) que detêm essa função. A política está cada vez mais longe do indivíduo que representa. O problema da representação não é novo nem nasceu nesta mudança social abrupta. Já existe desde que os indivíduos perceberam que a política tem que ser feita através de uma representação, mesmo quando essa representação não garante a salvaguarda dos interesses individuais. Sem a representação, a política torna-se deficiente pois a realidade complexa e humana 3 que pretende governar é impossível de resumir numa manifestação. Segundo Innerarity, é ‘urgente legitimar a democracia representativa’, pois só assim os modos múltiplos de uma sociedade se podem inscrever na política, sem que nenhum deles se totalize. Para isso, é necessário que a democracia instaure uma espécie de regime de opinião pública, que reconheça a complexidade do povo, de forma a inscrever em si mesma o processo de pluralismo cultural e político. Mas, Innerarity é peremptório ao afirmar que só chegaremos a um consenso através de uma reflexão sobre as mudanças que se foram instaurando nas nossas sociedades e que nos trouxeram até aqui. Só através de um estudo pormenorizado e de uma nova conceptualização atenta poderemos tecer qualquer comentário sobre o que será o futuro do nosso espaço público. Esta reflexão é o ponto de partida para qualquer ideal a ser criado com vista à democracia global e multicultural. É urgente reconhecer as diferenças em igualdade, sem exigir a assimilação de umas em detrimento de outras, sem totalizar nenhum ponto de vista, de forma a que o estranho e o estrangeiro se entrelacem no conceito de urbanidade, pois só assim chegaremos ao conceito de humanidade. As diferenças deixam de ter um carácter totalizante com vista à pluralidade cultural. Estes são marcos importantes no pensamento de Innerarity, que nos levam a formular toda uma nova teoria do espaço público. Assistimos hoje à necessidade de chegada a uma maturidade nas nossas sociedades. Esta maturidade, para Innerarity, é entendida como ‘a aquisição pelo sujeito da consciência da sua particularidade, o descobrimento de que as nossas formas de entender o mundo ou de actuar sobre ele são contingentes e, em alguma perspectiva ou para algumas pessoas, estranhas e até ridículas’. É preciso apresentar um mostruário das diferenças às futuras gerações, de forma a que estas consigam relativizar a própria cultura. Só a partir da confrontação das perspectivas é que o encontro entre as culturas se dá e é aceite por unanimidade. As diferenças não têm que se extinguir, o que tem que aumentar são as perspectivas de cada um. ‘Para perceber outras realidades, basta que exista a possibilidade de observar as coisas de outra maneira’, nas palavras de Innerarity. É esta a inovação pedagógica necessária para o novo espaço público, a transmissão da relatividade dos contextos e das contingências, a abertura ao estranho e ao não familiar, a urbanidade como princípio de interacção e responsabilização. Só assim o pluralismo passa a ser entendido como caminho para a unanimidade. 4 Bibliografia: INNERARITY, Daniel (2006), O Novo Espaço Público, trad. de Manuel Ruas, Lisboa: Teorema 5
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