RBMA69-Obscena

March 27, 2018 | Author: Lili Maria | Category: Comics, Jokes, Books, Libraries, Sociology


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Revista da Biblioteca Mário de Andrade 69: Obscena – 2013Revista da biblioteca Mário de Andrade 1. 2 Sumário RBMA 69: Obscena 04 De dentro para fora 06 Pelo buraco da fechadura 10 18 32 38 50 59 Toninho Mendes fala Entrevista Marcatti Os infortúnios de Sade e as prosperidades de Justine, Clara Carnicero de Castro Puta, putus, putida, Eliane Robert Moraes A Retórica das putas de Ferrante Pallavicino, Edmir Míssio Notícia da poesia colonial chamada “Gregório de Matos e Guerra”, João Adolfo Hansen “Alma de côrno” e outros espíritos malditos em Pessoa, Carlos Pittella-Leite Os telescópios e o sexo no Japão, Agnès Giard 68 80 86 Sobre Ethers, de Esther Faingold e Tunga, Luiz Armando Bagolin 92 Hilda Hilst nas lembranças e fotos de Fernando Lemos, Cecília Scharlach 102 Poemas aos homens de nosso tempo – Hilda Hilst em diálogo 110 Entre óleos, essências e flores, Maira Mesquita 122 Massao Ohno, Hilda Hilst e a busca da Poesia Total, Claudio Willer 130 O limbo de Hilda Hilst: teatro e crônica, Alcir Pécora 148 Glauco Mattoso, um perverso ao pé da letra, Ronnie Cardoso 158 A Boca do Lixo e a Boca do Lixo no cinema, Eugênio Puppo 178 Meu pai morreu, Leo Lama sobre Plínio Marcos Em torno de Hilda diagramam-se outras obscenidades. De nossa parte. muitas vezes ausentes ou vistos como desnecessários em algumas bibliotecas.] Dylan Thomas1 O “Inferno” está dentro! Nas grandes bibliotecas. pois enfeixam os leitores há pelo menos cinquenta anos. Candeias mapeando as ruas da Boca em sua epóca de auge. e a pornografia e o sexo é tema do breve. para não dizer conservadoras. Leo Lama. e a condenação à morte daqueles que tentam conhecê-la. Laerte. a literatura erótica e os livros de magia. o historiador Robert Darnton tem se dedicado. São Paulo: Editora José Olympio. pretendemos mudar isso. Ilustra esse dossiê a bela mulher. O número 69 (meia nove) da Revista da Biblioteca Mário de Andrade quer desnudar o seu “inferno”. e Marcatti compartilha a história de seu percurso como apreciador. expomos neste número um dossiê. o termo designa as coleções sobre assuntos malditos.. empresários. A cultura literária talvez tenha tido o seu ápice no século xix. de Marquês de Sade. sob a assim chamada “realidade”. Os quadrinhos são alguns desses gêneros. prestamos um tributo a eles neste número. Direitos autorais de David Higham Associates. proscrita já no século xvii. simultaneamente. de Agnès Giard. as nódoas e os vestígios desses contatos e contágios. Glauco. havendo atualmente uma mi­ ríade de outros gêneros nos quais as letras são exercitadas. Nesse sentido. O satírico ronda também parte pouco conhecida da obra de Fernando Pessoa que se nos apresenta em “Alma de côrno”. que não conta em seu acervo com os gibis. central para o nosso intento. Claudio Willer escreve sobre a relação de amizade entre o editor Massao Ohno. a estudar os “infernos” nas bibliotecas francesas. desvendando aos poucos os assuntos que até bem pouco tempo eram considerados tabus para a sociedade. marginais. além dos lugares físicos onde esses acervos devem permanecer confinados. de mote antropológico. sobre a obra e a vida de Hilda Hilst. A ocultação a todo custo do segundo livro da Poética de Aristóteles. políticos.. autora de L’Imaginaire érotique au Japon. O vigoroso ensaio é acompanhado por um artigo de Eugenio Puppo sobre “A Boca do Lixo e a Boca do Lixo no cinema”. Montamos um pequeno dossiê com fotografias de Ozualdo R. coletânea de todas as sem-vergonhices luxuriosas da pluma e do lápis”. desenhista e roteirista desse gênero. supondo-se que tenha sido escrita. e a nossa querida senhora obscena. De acordo com a definição do Dicionário Larousse de 1877 é “o depósito jamais aberto ao público. 1 puta em “Puta. para a qual as noções de autoria formuladas nos séculos xix e xx são relativizadas ou tidas por insuficientes para dar conta do corpus poético-satírico. lembrado sem peias pelo seu filho. nas mais antigas ou tradicionais. Hilda. dos irmãos Chico e Paulo Caruso e outros. particularmente os jovens. apresentada em “Os infortúnios de Sade e as prosperidades de Justine” por Clara Carnicero de Castro. Obviamente. ensejando que também as demais bibliotecas públicas brasileiras não mantenham restrições de caráter moral. comentada por Carlos Pittella-Leite. A retórica é o campo em que grassam as explanações de João Adolfo Hansen em “Notícia da poe­ sia colonial chamada ‘Gregório de Matos e Guerra’”. no ensaio fotográfico de Fernando Lemos apresentado por Cecília Scharlach­. do Boca do Inferno ao Boca do Lixo. artigo que se conjuga com A Retórica das Putas. mas de um livro sensual. ­ Trata-se não de um livro com poemas visuais. que conquista a cada dia novos leitores. mas também por intelectuais. Poemas reunidos (1934-1953).. Tradução de Ivan Junqueira. não poderíamos nos esquecer de nosso eterno dramaturgo maldito. Há em nosso acervo muitos livros de artista. Toninho Mendes nos fala de sua expe­ riência como editor de Angeli. tal como eram chamados por gente de minha geração.] Trabalho junto à luz que canta Não por glória ou pão Nem por pompa ou tráfico de encantos Nos palcos de marfim Mas pelo mínimo salário [. de Tunga e Esther Faingold. segundo Ronnie Cardoso. em parte extraídas do acervo da Mário. mas também teológico-político a receber aquele nome. 1991. Em meu ofício ou arte taciturna. mas recentemente recebemos a título de doação a obra Ethers. 1a ed. livro também pertencente ao acervo da Biblioteca Mário de Andrade.De dentro para fora [. Dylan. é o pano de fundo do romance de Umberto Eco. religioso ou outro qualquer. Em nosso presente. que entras. como os telescópios. de Ferrante Pallavicino. a Comédia. putus. e de Jorge Bodanzky mostrando-a arruinada hoje. como o frontispício da edição de Justine. cujo acervo pessoal foi recentemente incorporado ao acervo da BMA. O nome da rosa. Eliane Robert Moraes nos brinda com a etimologia da palavra Thomas. adorado por putas e vagabundos. Alcir Pécora retira do “limbo” dois gêneros pouco tratados em sua obra literária: o teatro e a crônica. que se passa dentro da torre labiríntica de uma biblioteca. A relação entre os instrumentos de ampliação da visão. em todo o seu esplendor. assim como sempre esteve em nosso grande poeta maldito Glauco Mattoso. sobre temas. tais como o sexo e as drogas. enquanto Maira Mesquita relê Da morte. licenciosos. De boca em boca. que reproduzimos parcialmente na seção Fac-Símile. finamente traduzida e aqui comentada por Edmir Míssio a partir de sua primeira edição. reconhendo-os como marginais que não devem ficar à margem das ­ grandes bibliotecas públicas. A tu leitor. em que há a transa dos desenhos com as palavras e. jornalistas e senhoras castas: Plínio Marcos. a Biblioteca Mário de Andrade presta homenagem a um de seus vizinhos mais célebres. É este o caso da Mário. Odes mínimas em artigo intitulado “Entre óleos. essências e flores”. livro pertencente ao nosso acervo de obras raras e especiais. assuntos e objetos que integrem as suas coleções. nos últimos anos. e que teremos integralmente exposto nas paredes da Biblioteca Mário de Andrade por ocasião do lançamento deste número da revista. putida”. mas precioso artigo “Os telescópios e o sexo no Japão”. Concluindo esta seção. recomendo: deixa aí fora todo preconceito! Luiz Armando Bagolin Diretor . “Um perverso ao pé da letra”. o Inferno. Sem muita cerimônia. conteúdo também pode ser instigante e sedutor. que. fizemos. Sala de cinema. De um lado para outro. Essa paixão de nosso eterno patrono se deflagraria nos idos 1945. com a participação ativa de mais de duzentas pessoas. Entre eles. à época. Em comemoração aos 100 anos de nascimento de nosso saudoso “poetinha”. não esperando nem mesmo que a coisa esfriasse. de todos os gêneros. em breve. ao prédio da Hemeroteca. O rendez-vous. invertendo os flancos e adotando diferentes posturas. que frequentemente metia seus dedos habilidosos por entre as folhas dos inúmeros livros. que. como carinhosamente lhe chamava seu amigo de copo e de vida Paulo Vanzolini. descemos ao limbo acompanhados de Ozualdo R. poeticamente decadente. em parceria com a Companhia das Letras e o Paribar. a Biblioteca fez um deleitoso ménage no terraço. mostrou como a relação já antiga entre bma e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo permanece frutífera. seção de quadrinhos e um café-bar são algumas das propostas que nos seduziram e que prenunciam ainda mais noites quentes e vigorosas para São Paulo. Nessa mostra. que acabou por atrair a atenção de inúmeros artistas e intelectuais que. desenhos e gravuras de nossa Coleção. E visto que não temos vocação para a monogamia. deixamos que Lemos. o sucedesse em nossos espaços. pretende flertar pela internet com um número ilimitado de pessoas. transformando-a numa espécie de centro cultural. Propondo uma nova entrada da Biblioteca no centro das discussões artísticas da cidade. invertemos a ordem e a disposição dos elementos e fomos nós a metermos nossos dedos nos papéis de Marcello. já estamos nos relacionando com outros artistas. Candeias e trouxemos a Boca do Lixo para dentro da bma. elevam-se aspectos da boemia paulista dos anos de 1960 e 1970 na zona que. ninguém menos que Hilda Hilst numa sequência delicada e bela. além de projetos de aquisição de mobiliário adequado às inusitadas atividades que se pretende encorajar na Biblioteca. Não é só a aparência que importa nessa relação da Biblioteca com o usuário. mostrou vigor incomparável. De cima para baixo. companheiro de mesma geração de Lorca. uma noite . Marcello Grassmann. contando com o apoio e a parceria da Imprensa Oficial. bma 24 horas é o projeto que inverte a imagem da biblioteca. seguindo ao mote do algarismo libidinoso que marca este número da Revista. Tão formosa se mostrou a Coleção para a São Paulo dos anos 1940. a nova diretoria arregaçou as mangas e pôs-se em movimento. Do outro lado das lentes do fotógrafo português. de baixo para cima. artista de obra soturna. apresentou-se o fotógrafo German Lorca. nesses primeiros meses. para todos. concebida por Sérgio Milliet. Por isso. queremos também nos dispor incessantes. mas não foi o primeiro artista. do belo ao grotesco. numa exposição fotográfica que não deixa nada a desejar em relação à precedente. cortejavam-na diariamente. do céu ao inferno. abrindo nossos recônditos para além da capital paulista. Desenvolveu. uma mostra de fotografias de Lorca que acompanhou o lançamento do livro do incansável fotógrafo da cidade. desenvolvemos um projeto de digitalização de acervo que. um grande plano de ações que promete colocar a bma numa posição de ativa protagonista. E já que falamos em boemia e poesia. Com ele. parece-nos oportuno trazer Vinicius de Moraes à mesa. assim. Inaugurou-se. levamos. Em 1925. estarão animados em nosso meio. que abriu para o público paulistano um antigo espaço reservado a reuniões internas. Antes dele.Pelo buraco da fechadura A nova gestão da Biblioteca Mário de Andrade (bma) aproveita o sugestivo número 69 (meia nove) da sua revista para assumir novos posicionamentos. a cidade de São Paulo se mostrou mais uma vez receptiva para as Letras com a inauguração desta Biblioteca pelo amante das artes Mário de Andrade. Hoje. uma exposição do “jacaré gravador”. quando implantado. Nesse plano. Esse esforço de descerramento não é novidade. se tornaria o ponto libidinoso da cidade. quando a Biblioteca seria o envoltório afetuoso da primeira coleção de artes da cidade. apesar de seus 90 anos. agora denominado Terraço Mário de Andrade. Marcello foi o primeiro gravador a a ter sua obra exibida na Biblioteca. sem discriminação e a qualquer hora do dia ou da noite. Fabrício Reiner de Andrade Supervisor de Planejamento . rendeu inúmeros elogios dos visitantes por explicitar a realidade de uma infância que. E como os direitos da população tornaram à pauta das discussões no país a partir das manifestações que se precipitaram às ruas em junho. ciclo que se propôs a apresentar o fascínio dos pressupostos que orientaram romancistas no que toca o indivíduo e sua formação. Plínio Salgado e Mário de Andrade. O Seminário. ampliando os horizontes. Seu Módulo iii virá em 2014. a maior autoridade em educação infantil no país. Esse nosso sempre fiel amigo canino. contribuindo para o fortalecimento de ideais democráticos. disse Mário. em parceria com a Reuters. Dia da Língua e da Cultura Russa e Pesquisadores Franceses em São Paulo foram eventos que marcaram o início de uma relação concupiscente e antropofágica da bma com povos e culturas exógenas. seis dias por semana. Lendas da América Latina Narradas por Xico trouxe de volta a alegria das crianças à Biblioteca. múltiplo e indefinido. tornaram-se formadores do caráter do brasileiro foram protagonistas da série de palestras e apresentações teatrais Retrovisor. mas agora sem metáforas. Xico. mais precisamente ao menino Issa. trazendo ao palco Anita Garibaldi. Dessa importância do outro para o desenvolvimento do indivíduo foi concebido Romance de Formação: Caminhos e Descaminhos do Herói. fazendo o diabo acontecer. Grandes nomes do pensamento brasileiro como os de Marilena Chauí e André Singer palestraram para uma ávida audiência que exigiu a continuação do ciclo. projetada pelo escritório de design Ovo. veio ter na Biblioteca em outra oportunidade. a partir dos sucessos e fracassos de notórias personagens. A mostra. são de autoria de Hamid Khatib. acompanhada de muito “cachorro engarrafado” – o uísque. em certo sentido. um garotinho sírio de 10 anos de idade que trabalha 10 horas por dia. produzido por Descobrindo a América Latina e idealizado pela artista mexicana Cristina Pineda.gastronômica regada ao som do trio Fanculô Jazz. russos e franceses. entre as quais a Claro e o Instituto Embratel. nos é familiar. contou com a presença de representantes da Secretaria de Direitos Humanos. que apontou as controvérsias sobre o tema. virava. Nela. que foi apresentada no primeiro dia do i Seminário sobre o Direito à Infância e Políticas Culturais para as Crianças. na linguagem do poeta. idealizamos uma sala infantil. abrilhantou o evento e lançou as pedras fundamentais para que a Biblioteca venha a se tornar ponto de referência em estudos sobre direitos da primeira infância. A Recepção da Poesia e da Prosa em Língua Alemã no Brasil. Assim. sou trezentos e sessenta”. apesar de distante. consertando equipamentos de artilharia e produzindo bombas e morteiros para o Exército Livre da Síria. Com o objetivo de promover a discussão em torno de diversos modelos políticos democráticos ou autoritários. e realizamos a mostra fotográfica Infância em Conflito. contundentes. concebido por professoras da Unicamp e puc-Minas. Ana Estela Haddad também manifestou seu apoio. e sua relação com o Estado. contou com a parceria de importantes instituições. o legendário cachorrinho mexicano. a Biblioteca incitou os sentidos de seus usuários apresentando-os aos alemães. “Sou trezentos. Visconde de Mauá. especialistas em pedagogia. Paulo Markun entrevista personagens históricas em momento crítico de suas vidas. voltamos nosso olhar aos pequenos. O espetáculo. As imagens. apresentou-se no auditório da BMA ao narrar fabulosas lendas latino-americanas. Os alunos da escola Brasil-México vieram em peso prestigiar a apresentação e foram os responsáveis por principiar a discussão em torno da necessidade de se abrir na bma um espaço para a criança. Célebres indivíduos que. 'Nessa vertente. Miguel Arroyo. o ciclo buscou promover a reflexão. da Secretaria Municipal de Cultura e do Secretário Municipal de Educação César Callegari. além do Consulado do México no Brasil. que. assumindo um papel de destaque na produção e na difusão da pesquisa no país e estimulando o uso adequado de línguas extranacionais. fotógrafo independente que tem feito as mais eloquentes fotografias sobre a guerra na Síria. Assim hoje somos nós. com o olhar em direção ao estrangeiro. deliberamos realizar o ciclo de palestras Democracia na História. Acompanhando o i Seminário sobre o Direito à Infância e Políticas Culturais para as Crianças. girava e invertia. Os livros que já saíram pela editora são prova disso: Quadrinhos sacanas – os herdeiros de Carlos Zéfiro. Confissão para o Tietê teve uma segunda edição para banca em 1992 e em breve se tornará encarte do livro Humor paulistano. mas já em 1960 mudava-se para São Paulo. como Chiclete com Banana (de Angeli). da imprensa. mas como diz Toninho: “publicamos pouco. Publicações da Editora Peixe Grande 10 rbma 69 69 rbma 11 . O Vira Lata. “A história dela é incrível: foi internada várias vezes. coletânea organizada por Gonçalo Junior das revistas pornográficas americanas Tijuana Bibles (a número i saiu pela Ópera Gráfica). para a distribuição. a história da Circo Editorial (19841995). que escreveu uma ode ao rio: publicada em 1980. os dois de autoria do jornalista Gonçalo Junior. volumes 1 e 2. disse certa vez.Toninho Mendes fala Antonio Mendes é artista gráfico. no Rio de Janeiro. com Paulo Francis. Foi morar no bairro da Casa Verde. e a história dos quadrinhos no Brasil poderia ter sido outra: a Circo Editorial – que durou de 1984 a 1995 – poderia nem ter existido. a Peixe Grande deve publicar apenas um título. a miséria e a loucura. mas definitivamente”. das Letrinhas. as drogas. editor e poeta. a maluca sou eu. Marcou tanto. Sampa. quase morreu. Paulo. está pesando quarenta quilos. primeiro livro de Mariza Dias Costa. as internações pelas quais passou. Geraldão (de Glauco) e Piratas do Tietê (de Laerte). em parceria com Franco de Rosa (editor da lendária Ópera Gráfica) e com a Comix. criou a Peixe Grande. Neste ano.” Nele. É um livro grande. há uma entrevista/perfil com Mariza – um rico depoimento narrando sua longa trajetória. que produziu mais de trinta livros de humor e quadrinhos para as editoras Devir. batalhando e trabalhando. ilustradora de Paulo Francis na década de 1980 e de Contardo Calligaris desde 1990 na Folha de S. dos quadrinhos. Trata-se de E depois. l&pm e Cia. Só essa história já bastaria para colocar Toninho definitivamente no panteão dos grandes nomes da hq brasileira. rememorando a história dos antigos catecismos (quadrinhos eróticos quase clandestinos com os quais os meninos costumavam saciar suas curiosidades sexuais). mas continua firme. sobre a imprensa de conteúdo erótico e considerados subversivos durante o regime militar. Quadrinhos sujos II – O “catecismo” americano (1930-1950). Maria Erótica e o clamor do sexo e A morte do Grilo. com o lema “um mergulho na história do humor. da censura e da pornografia no Brasil”. a cinco quarteirões do rio Tietê: “isso simplesmente marcou o homem que sou”. E a importância do bairro vai além: se não fosse pela Casa Verde. por desequilíbrio mental. Nasceu em 30 de abril de 1954 em Itapeva. sobre sua relação com a Folha. Toninho não teria conhecido Angeli. na i Bienal de Quadrinhos. de Paulo Garfunkel e Libero Malavoglia. Entre 2000 e 2010 comandou a Jacarandá Edição e Design. Mas ele não para. foram publicações que fizeram época. com mais de duzentas páginas e todo colorido. a ser publicado pela editora do Sesi. Essa icônica editora publicou mais de cem revistas e quarenta livros de quadrinhos. coletânea definitiva das histórias do personagem que estreou em 1991. Em 2010. ” Os catecismos “Nas décadas de 1950 e 1960. Veio. assim como os manuais religiosos. não se falava abertamente sobre sexo.” Quadrinhos sacanas “Quando pensei nessa coletânea. A continuação dessa história. Na vida cotidiana. São histórias muito loucas. de desenho. Na realidade. Já sobre o Belmonte. a concepção toda da editora se apresenta: você tem a pornografia. as histórias são absurdamente engraçadas. quem é que lê livro? Quem vai ao teatro ou ao cinema? Vou dar um exemplo banal: é bem mais fácil a pessoa se lembrar das coisas do Mauricio de Sousa do que de outro tipo de artista mais conceituado. de se você vai querer trepar por causa daquilo. no entanto. fala-se muito pouco. de humor sempre foi visto. Maria Erótica etc. com preconceito. com diálogos surrealistas do tipo ‘quero comer seu cu na Lua’. de pesquisador. portanto tinham mais penetração. Ele já havia publicado pela Companhia das Letras A Guerra dos Gibis. O nome ‘catecismo’ já tem uma história engraçada: as revistinhas possuíam o mesmo formato dos catecismos da Igreja e. Isso exigiu um trabalho de garimpo. ele fazia questão que eu editasse. Eu resolvi publicá-los por causa desses aspectos. mais impacto. Foi com eles que muitas pessoas. tem-se a impressão de que se trata de uma produção de segunda categoria. o papel e a impressão que a Peixe Grande deu. Além disso. a imprensa. Mesmo sem ter o peso do nome de Zéfiro. Dos gibis desenhados e publicados por gente como o Claudio Seto – O samurai. Por aí. de imprensa. e não necessariamente porque são grandes obras de arte. não havia aulas ou uma plataforma oficial que lidasse com o tema da sexualidade. procurei colecionadores. foram muito bem impressos em papel bom e encadernação cuidadosa. Eu digo sem medo de errar que. fala-se muito das peças censuradas. Com a repressão durante o regime militar. esse conteúdo nunca foi publicado. É um verdadeiro absurdo!” A relacao com Goncalo Junior “O segundo livro da Peixe Grande é de um dos maiores historiadores de quadrinhos. – vendiam-se duzentos mil. fui buscar quem tinha. tratá-lo com muita seriedade. com o cuidado. o jornalismo e a censura. Além disso. tratei a publicação com zelo. Unicamp –. também serviam para ensinar. hoje na faixa dos 50 aos 70 anos. tentei dar uma alternativa ao sempre lembrado Carlos Zéfiro: nas duas caixas. Então. O livro explica o que é a Peixe Grande. os catecismos têm uma importância histórica e social muito grande. Nele. uma das maiores vítimas da censura foi a história em quadrinhos. não há um desenho dele. Unesp. existem trezentas teses sobre a poesia do Juó Bananère. Gonçalo Junior. das músicas censuradas e dos filmes censurados. tiveram seu primeiro contato com o sexo. pelo que eu chamo de ‘academicismo oficial brasileiro’– representados por usp. como obra de luxo: os desenhos receberam tratamento de imagem. muitas das editoras de hq fecharam. então.O porque da Peixe Grande “Eu acho que o material de quadrinho. o tratamento. a proposta da Peixe Grande é fazer o que nunca foi feito com esse material. muitas vezes. que envolveria o período da ditadura militar. Por isso. por exemplo. que vai de 1933 a 1964. As pessoas cismam com um cara e deixam muita gente de fora. o Maria Erótica. que durante trinta anos publicou charges na Folha. elas extrapolam a questão do tesão.” REPRODUÇÃO QUADRINHOS SACANAS 12 rbma 69 REPRODUÇÃO QUADRINHOS SUJOS 69 rbma 13 . o material de quadrinhos e de humor teve uma importância tão grande quanto a música popular ou a televisão. Contar a historia da Circo Editorial. de modo um pouco mais fechado. se interessou pelo projeto. Agora. a Peixe Grande foi um cartão de visita para viabilizar o que eu chamo de ‘O livro da Circo’. sair uma publicação dessa pelo Sesi é uma espécie de chancela. na minha opinião. editor chefe]. vai vender trezentos exemplares. chama ‘Um certo Toninho Mendes’ e conta as origens da Circo. O Jorge. o roteiro é muito poderoso. A obra é um documento vivo. Depois.” O Vira Lata “Esse também é um livro exemplar: foi escrito na prisão.” A parceria com o Sesi A morte do Grilo “Esse outro livro do Gonçalo foi uma loucura. o fiz porque achei que ninguém ia contar a história da Circo Editorial. que é nosso cara comercial. A Unip pagou a impressão e o Paulo e o Libero [Malavoglia. que conhecia o Paulo [Garfunkel. O Rodrigo [de Faria e Silva. na minha editora. ainda temos uma boa amizade e ninguém mais vai falar sobre o quanto isso foi importante’. Nenhum editor que está preocupado só em ganhar dinheiro tem interesse em publicar um livro sobre o Grilo [Revista O Grilo. do Blog dos Quadrinhos. O Capítulo 3 é do Nobu Chinen. Não editamos um monte de coisa. com pico etc. também autor] ganharam um pouco. quando foi proibida pela ditadura militar]. mais de trezentas são quadrinhos. tendo em vista o presídio brasileiro. de quadrinhos underground.” “Fazer. de algo que realmente aconteceu. também da usp. mas poucos tinham. Então. sobre mim mesmo. dá para aproveitar melhor o material que tenho: o livro terá cerca de quatrocentas páginas. Esse é um exemplo de como trabalha a Peixe Grande. autor]. mas o que editamos é para encerrar o assunto. Isso também faz parte da magia da Circo. conseguir que a editora da maior entidade empresarial do país se interesse pela publicação de sua história. Pensei: ‘vou contar essa história porque estamos todos vivos. O Vira Lata é provavelmente a experiência mais bem-sucedida da aplicação do quadrinho de alta qualidade dentro do processo educacional. porque toda a primeira tiragem. mas o portfólio da Peixe Grande ajudou. Além disso. um sonho realizado “Quando fundei a Peixe Grande em 2010. A experiência foi de muito sucesso. o Drauzio Varella. pelo prazo. um livro sobre outra editora minha. O Capítulo 4 é escrito por Paulo Ramos. virou cult. Eu ia começar a fazer por conta própria. O personagem se locomove num mundo verossímil. da usp. fica uma coisa meio cabotina. as histórias são muito bem escritas e muito calcadas na realidade. que circulou entre 1971 e 1973. conta a história da última geração romântica do jornalismo brasileiro antes de as redações começarem a ser regidas pelo comercial. Tem profundidade. Foi produzido na década de 1990 para ser distribuído dentro da casa de detenção e ensinar os prisioneiros a tomar cuidado com a Aids. destinada à banca. se interessou e bancou o projeto dentro da penitenciária. se ninguém bancar até começo de 2013. a gente banca.” REPRODUÇÃO MARIA ERÓTICA E O CLAMOR DO SEXO E O VIRA-LATA 14 rbma 69 REPRODUÇÃOA MORTE DO GRILO E O VIRA-LATA 69 rbma 15 . É o tipo de coisa que não sairia por uma grande editora. o Capítulo 5 é de Marcelo Alencar. escrito pelo Waldomiro [Vergueiro]. da editora do Sesi. pois a história merece’. Será um livro de peso. todo mundo falava. que conheci no lançamento d’O Vira Lata. foi vendida. o Capítulo 2 é sobre a revista Chiclete com banana. O Capítulo 1 é escrito pelo Ivan Finotti. comentou comigo: ‘Toninho. Afinal. mas porque se chama Humor paulistano – A experiência da Circo Editorial. O projeto até que está adiantado. minhas metas mais inéditas são acabar o livro do humor e começar o projeto da enciclopédia dos quadrinhos. Ela vai deixar de ser só uma editora. como se pinta. talvez. outra coisa. já saiu uma matéria na revista do Sesi sobre o livro e já teve repercussão: ‘Trinta anos de humor paulistano’ [disponível em http://www. com diferentes temáticas: curso de roteiro. eu acredito que a última ponta da Peixe Grande é outra coisa. mangá. Seria algo em torno do que eu chamo de Planeta hq. Inclusive. Não é um humor de praia. uma livraria. Ou seja. os filmes. Estou pensando como viabilizar isso: fazer um grande livro sobre a história do quadrinho no Brasil. escrito por mim e pelo professor Roberto Elísio. uma entrevista com todos nós. de mulher liberada. sesispeditora. A História em Quadrinhos como um todo: os bonecos. Tem um universo. uma escola. É um projeto muito grande para a Peixe Grande fazer sozinha. de drogas. tudo. convidei-o para escrever comigo sobre isso. como se adapta histórias. Conversei muito com o Angeli e com o Laerte há bastante tempo. Esse levantamento não existe no Brasil e é uma ambição da Peixe Grande. mais sarcástico.” Projetos futuros “Mas há um objetivo final da Peixe Grande. tem vinte páginas apresentando uma tese: com a Circo Editorial nasce o humor paulistano como marca na imprensa brasileira. em diferentes momentos. É uma tese que sei que vai gerar polêmica. vai ter gente que não vai concordar. Um lugar com cursos vários. charge. em 2004. ainda não sei muito bem o que pode vir a ser. Com certeza. vai virar um espaço. estou me mexendo devagar. as duas ambições se casem numa certa hora. sei como é etc. com os desenhistas de A a Z. eu já tenho levantamentos. O Roberto Elísio fez. da usp.br/noticia/revista-ponto/trinta-anos-de-humor-paulistano]. começava a tocar nesse assunto. mas toma tempo e o retorno é muito lento.Humor paulistano “O Sesi está editando o livro da Circo não porque ele se chama ‘O Livro da Circo’. O Capítulo 6. O humor paulistano de que falamos é de bar.com. e escreveu um livro que esbarrava nesse tópico. Só é preciso oficializar. Mas quando digo uma escola. Um negócio que vai ter umas 1. A enciclopédia exige um esforço menor. vai ser um espaço. banquinho e violão. Batman.” 16 rbma 69 REPRODUÇÃO QUADRINHOS SACANAS REPRODUÇÃO O VIRA-LATA 69 rbma 17 . não é uma escola nos moldes que se imagina. quadrinho. Eu ainda não sei explicar direito.200 páginas. Só que tem muito mais importância e. Quando vi que o projeto ia sair mesmo pelo Sesi. o livro defende uma ideia. e que não é só minha. os jogos. Agora. Não vai ser mais papel. Acho que falta um lugar como esse. Mas é um projeto bem para longo prazo. Ele mesmo vai grampear e encadernar os livros. onde cresceu.Entrevist a Francisco de Assis Marcatti nasceu em 16 de junho de 1962. como disse uma vez em entrevista. Chegou a ter a própria editora. Marcatti já tinha rodado 710 exemplares da obra. casou-se (aos 21 anos) e vive até hoje. 69 rbma 19 . Ao contrário do que se possa imaginar do autor de Frauzio. Isso não deixa. 18 rbma 69 Marca tti Caderno de registro e notas de todas as HQ. Na época. No momento da entrevista. A relíquia. A escatologia começou em 1986. “uma sócia de vida”. estudou. na zona leste. comunidade para financiamento via crowdfunding. Em 2005. profissão que por alguns anos ajudou a pagar as despesas de casa. Marcatti é um sujeito caseiro e bem tranquilo. Aos 24 anos. que foi influência para toda uma geração de novos quadrinistas. mas essa não é sua fase preferida. eram depressivos. em São Paulo. Fez escola de artes gráficas no Senai e trabalhou durante muito tempo como produtor gráfico. de Lourenço Mutarelli. usa uma Multilith 1250). mas conforme a necessidade. é a reunião de toda a sua produção entre 1986 e 1992. ele já vivia exclusivamente de seus gibis. em 2007. quando publicou Liberô geral. Sua esposa Tata (Fátima Pires) foi sua namorada de adolescência e. não todos de uma vez. dos quais quinhentos serão comercializados e 210 irão para os apoiadores. A mesma editora publicou. Marcatti começou a criar quadrinhos aos 14 anos. Seu mais recente projeto. de ser uma diversão. os quadrinhos não tinham humor. a edição vai registrar como se moldou a verve do humor escatológico e contundente de Marcatti. Coprólitos. mas gosta muito de conversar: nosso primeiro encontro durou uma tarde toda. como a revista Over Doze. e a publicar obras de outros autores. Segundo apresentação do projeto no site Catarse. No início de Frauzio. A experiência como produtor gráfico e impressor de seus próprios gibis fez Marcatti criar uma série de aparatos que facilita o trabalho artesanal de montar suas revistas. que imprimia numa ofsete de mesa Rex Rotary modelo 1501 (hoje. a Pro-C. publicou sua primeira graphic novel (quadrinhos com histórias mais longas) pela Conrad. adaptação da obra de Eça de Queiroz para a linguagem hq. ela ajudava a colorir as capas e grampear as revistas. também. segundo ele. se não fosse por umas coisas asquerosas. você dizer que não era muito fã do trabalho dele. Isso. aparece o nome de Robert Crumb como uma de suas influências. O meu dilema é justa20 rbma 69 . seu humor é pura sacanagem. É essa a minha grande crítica ao Robert Crumb. É aquela comparação que fiz entre Bukowski e Henry Miller. Uma coisa é você dizer que não gosta de algo ou discorda de uma situação. Ele é quase pueril. inclusive. como produtores de cultura. temos uma relativa responsabilidade com aquilo que escrevemos ou criamos. O programa toca em assuntos que são realmente profundos. eu sou fã de carteirinha do South Park. em nossa primeira conversa. desconfortável. Mas dá para perceber que esses grandes escritores – como Eça de Queiroz – não se arvoram nesse direito. e faço questão de lê-los. Eu não gosto muito dessa presunção. Max Zillion e Alto Ego]. Por exemplo. Ele diz que aquilo é sujo. O MEU DILEMA É JUSTAMENTE GOSTAR DE COISAS QUE SEJAM. e isso é o legal. inclusive. 2007) No Prefácio de Coprólitos. Suas histórias são muito arrogantes. Toda vez que você dá uma opinião. e não fazer história em quadrinhos.. sim. o Shelton é muito mais underground do que o Crumb. quem são suas influências? Tenho muita conexão com a coisa do humor.Página da hq A relíquia (Conrad. e do humor leve. Esse. eles não se colocam na posição de arautos. Eu costumo falar. asqueroso. Uma vez me disseram algo. … o politicamente incorreto na figura de crianças desenhadas com traços infantis. incômodo. das minhas histórias mais recentes. Algumas histórias. Nós. doloroso. Outra é dizer que algo está errado e que o certo é você quem sabe. isso pode ser uma presunção. que se não fossem nojentas podiam estar na novela das seis [risos]. principalmente em quadrinhos. leves e agudas. pura diversão. LEVES E AGUDAS a pretensão de propor alguma solução. Isso é complicado. A crítica é sutil. são histórias muito “dedo no nariz”. mente gostar de coisas que sejam. de quadrinistas. É um trabalho quase messiânico. ao mesmo tempo. “eu sei a verdade e estou lhe mostrando”. Ele revolucionou sem querer revolucionar. fez o que sabia e gostava de fazer.. Isso tem a ver com algo que remete. ele tinha muita influên­ cia sobre mim. ele devia montar uma igreja. É isso mesmo? Eu me lembro de. você deveria se balizar. achando que me ofendiam. Admito que existam grandes escritores que têm esse direito. Esse espírito leviano é o que eu gosto nos quadrinhos. as mesmas situações. escrito pelo amigo e também quadrinista Gualberto Costa. quando na verdade eu gostei muito: que meu 69 rbma 21 Então. Eu não gosto dele como leitor. nojento. Gosto muito do humor contundente. totalmente incorreto. Gosto muito do Hunt Emerson [quadrinista do underground britânico conhecido pelos personagens Alan Rabbit. como escritores. Para mim. sérios. O Bukowski tem os mesmos ambientes. só que ele põe adjetivo. AO MESMO TEMPO. para mim. mas sem Você acha que a escatologia de Crumb serve mais para apontar o dedo para a sociedade do que para rir dela? Sim. têm final feliz. Era um doido varrido. Eu reconheço o valor histórico de Robert Crumb na trajetória dos quadrinhos underground. mais do que propor coisas. é o papel da hq. Esse contraponto é interessante. Não quero que pareça um discurso de discípulo ingrato ou filho bastardo. E a alma pura de uma criança fazendo as coisas mais horrendas. aos meus trabalhos iniciais – o que é a prova cabal de que. Shelton é o contraponto do Robert Crumb. Mas essa responsabilidade não pode ser presunçosa como a de Crumb. Do meu ponto de vista como leitor e como autor. Eu não gosto desse papo conceitual. Gilbert Shelton [desenhista e roteirista americano. Ao mesmo tempo. o mesmo universo do Henry Miller. nada disso. se não fosse a sordidez das cenas. Fat Freddy’s Cat é um de seus personagens mais conhecidos] também tem essa leviandade. não tem uma coisa conceitual. podia muito bem ser um folhetim de banca de jornal. Calculus Cat. só para experimentar o gosto. A mãe dele é igual a minha mãe. aquela coisa bem chata. claro. com relação ao deputado e sua bandeira pública de cura gay. O artista é muito livre. é para enfiar o pé na jaca mesmo. Para mim. Inclusive. portanto. eu sou um pouco formal. Então. De qualquer forma. Nas minhas histórias. Eu gosto de planejar. Eu não faço crítica. é intocável. com qualquer coisa. exigente. Nesse sentido. ele é totalmente descompromissado na relação de quem o vê. mas eu não me considero um artista. Essa distância entre o que é público e o que é privado precisa ser feita sempre. seus gestos são públicos. socialmente anárquica. mas se existe alguma crítica construída nas minhas histórias. É CHATA PORQUE NÓS A TORNAMOS ASSIM 22 rbma 69 . é uma relação que eu tenho: faço para mim. A Wanessa Camargo é uma celebridade. Na minha relação com meu trabalho. MUITAS VEZES. Como pessoa.. na maior parte das vezes. que diferença pode fazer se o irmão de um 69 rbma 23 Lembra-lhe também que você é humano? Sim. porque o cara está enfiando o pé na jaca. O mais legal é que. Eu sei que o que eu faço tem algumas características artísticas. por ser uma figura pública.. evito personagens que sejam personalidades pontuais. Meu contraponto é exatamente este. diretas. Mas. para mim. a gente caga. por mais porco que ele possa ser. Eu. coisa que a gente faz questão de esquecer. por exemplo? O Feliciano é uma figura pública e. mas sou um indivíduo dentro de um contexto social. Uma vez público. criar esse desconforto. Mas eu dependo muito de quem me lê. 2013) trabalho era como a experiência de uma criança que enfia o dedo na própria bosta e coloca na boca. para psicanálise. principalmente quando se faz humor. chato. ela é uma mulher como qualquer outra.Página da HQ Frauzio: Perpétua Serenata (Devir. Além disso. Eu não posso ser totalmente desvinculado de quem me lê. pelo menos. muitas vezes. e não individual. porque ele envolve pessoas. se eu disser que a filha dele é sei lá. e no final das contas as pessoas riem de coisas que eu não planejei. Isso não teria profundidade nenhuma. ao mesmo tempo. Então você está de acordo com a crítica a Rafinha Bastos no caso da piada feita com a cantora Vanessa Camargo? Existe alguma diferença entre esse caso e as piadas que fazem do deputado Feliciano e de sua bandeira pela “cura gay”. gosto de planejar o momento em que as pessoas vão rir nas minhas histórias. até para mim mesmo. Ele faz isso a sério. a gente faz na sacanagem. essa é uma fase importantíssima [risos]. se eu fizer uma piada com a mãe dele. não envolve nada da área artística ou da área que a tornou pública. eu procuro sempre ter tudo bem definido. mas não com o bebê em sua barriga. minha mãe não tem culpa por eu ser assim. eu posso sacanear até uma atitude do presidente da república. Eu li um depoimento de um humorista que trabalhava na revista Mad dizendo que o humor contemporâneo é de muito mau gosto e eu concordo plenamente. pragmático. para mim isso é um fracasso. O convívio social exige e pressupõe regras e parâmetros. com uma criança na barriga. Se alguém lê uma história minha e não sente absolutamente nada. é difícil que seja diferente. é chata porque nós a tornamos assim. desagradáveis. Lembra que somos também bichos. calculo a página. todo mundo peida e caga e não quer que ninguém saiba. o desconforto é a hora em que você acha um ponto de equilíbrio. aí é uma falta de respeito com o indivíduo. porque aquilo é pessoal dela. Planejo métodos. Se disser alguma coisa muito pessoal sobre a vida dele. bem burocrática. Eu achei do caralho! É exatamente o que eu faço [risos]. elas riem em outros momentos. é sempre como um coletivo. Agora. beleza. geralmente. não consigo vislumbrar uma forma de viver mais anárquica do que esta em que vivemos. A vida é muito chata e. Ela nos lembra que a gente peida. Eu ia mesmo lhe perguntar: qual é a função da escatologia em seu trabalho? O desconforto. Isso. não tem nada a ver. ela é social. Então. Não gosto muito dessa coisa de ser chamado de artista. como pessoa pública está sujeita a piadas públicas. eu sou muito A VIDA É MUITO CHATA E. 1987) 24 rbma 69 69 rbma 25 .Páginas centrais da revista Ventosa (Pro-C. afinal de contas. Não tenho experiência em desenvolver personagem. É fascinante. Tem uma gostosinha lá que também aparece para mim. e tem uma velhinha na feira que eu vejo todo dia. O que é o Frauzio. A gente fica com o personagem. O que me chama a atenção é que ele está se fazendo sozinho. “O caralho que o personagem cria vida própria. as piadas para aquele personagem são “iguais”. Tenho uma coisa meio maluca de não me sentir vivo e ao mesmo tempo me sentir flutuante. Gosto muito dos personagens dos outros e acho isso um desafio monumental. Eu faço uma coisa que a gente chama de humor de contexto e não de tipo. e achei que o Frauzio era a minha grande sacada: fazer o que eu sempre fiz – com um personagem. então? Eu nunca fiz personagem em quadrinhos. Uma história curta. quando está criando. Eu passo a viver com aquelas figuras. inclusive. Talvez seja esse o motivo de eu ser tão sistemático. Eu achava que isso era uma liberdade poética. se você não fizer igual. Ele tem mesmo. devem ser aplaudidas ou achincalhadas. Mas agora eu sinto isso. não”. aquelas personagens passam a ter vida própria. Para poder ter um pouco de chão. Mas quando recebi uma proposta de fazer uma revista para pôr em bancas. Esse é um domínio que eu não tenho. Ela é fundamental na história e está comigo todos os dias. Ou seja. Esse imperativo dos personagens é um dos motivos que me levou a escrever histórias longas. no lugar do personagem principal. então. Eu não sei por quê. TENHO UMA COISA MEIO MALUCA DE NÃO ME SENTIR VIVO E AO MESMO TEMPO ME SENTIR FLUTUANTE fazer uma história de um cara que é um pedreiro. aquela cara de idiota. sou eu que escrevo”. Uma história mais longa. preciso ter marcações. Estou gostando do fato de ele andar sozinho. você falou que. Eu ouvia isso de alguns autores. Nesse processo. Agora. O personagem nada mais é que humor de tipo. Eu perco os referenciais concretos. Pensei: “vou faz aqueles animais que são parecidos fisicamente mas completamente diferentes entre si. só que o personagem teria sempre a mesma cara. 69 rbma 27 Capa do livro Frauzio: Carne gão (Editora do autor. as atitudes dele como deputado. é incrível. Como se ele tivesse vida própria. todas as gags. fui eu quem falou para o editor que deveria ser um personagem. você falou que não faz humor com indivíduos. eu não sou assim. Disse. mas não é. Eu não sei como ele consegue fazer aquilo. Você fica criando situações para aquele personagem. Parecia fácil: criar qualquer história e. horas no máximo. O Fernando Gonsales Na nossa primeira conversa. sim. você rumina. Mas não está sendo um problema. é o Frauzio que arrumou emprego de pedreiro. Voltando um pouco. mas ela está por aqui. Eu estou desenvolvendo a história nova do Frauzio. Mas não funciona. genial! Eu podia fazer qualquer coisa. menos. o personagem perde suas características. Não podres. ter certa dificuldade em distinguir o que é o mundo onírico e o que é o mundo real. Desenvolvi o Frauzio como um personagem que é qualquer coisa – isso quando eu projetei. iguais.deputado é isso ou aquilo? Pode fazer diferença para ele. O Angeli é um criador de tipos extraordinário. Até porquê. há histórias em que eu quero colocá-lo e simplesmente não dá certo. parece que ele sopra na minha orelha “olha. esse é o apelo de banca de jornal. você bola em minutos. Você começa a conviver com pessoas que não existem e elas interagem com você. remodela. Por isso eu marco muito o tempo das coisas que eu faço. 2013) 26 rbma 69 . não para o público. Achei que havia tido uma sacada de mestre. pois eu ainda não cheguei no momento da história em que ela é peça-chave. Isso eu nunca gostei de fazer. pode parecer liberdade poética. De novo. é o Frauzio”. vive num mundo paralelo e demora para voltar ao mundo real. o dia da semana. colocar o Frauzio. pensava. Eu continuo não sabendo lidar com personagem. Por isso eu preciso saber as horas. reescreve. de que o personagem cria vida própria. vou fazer uma história com um fascista. era coisa de doente. até o final. Não. Mas e quanto aos desenhistas. Gilbert Shelton é central. Aquilo. no sentido de uniformizar sua apresentação. Então. a influência é tão grande que na revista Ventosa (o nome vem de chupar mesmo) eu deixo isso bem claro e coloco como citação uma ilustração dele. inclusive já está digitalizado. comecei a registrar todas as variáveis usadas em cada desenhos qual a caneta. Provavelmente. construir gráficos. Você falou também que. você faz pré-roteiros. Não gosto da inspiração. o trabalho é metódico. Antes. Optei por não editar as histórias. com certeza. que posteriormente viria a se tornar a Marvel] como Spacehawk. storyboards? 28 rbma 69 É TÃO BOM FAZER. Por exemplo. quanto ao humor. não posso ter. são coisas que contam uma história. Você disse que o Crumb lhe influenciou mais pela força histórica do que pela temática. incluí um apêndice com algumas das informações contidas nos caderninhos.. É um método fácil que encontrei de não ficar refém da inspiração ou do bloqueio criativo. O uso dos hachurados e as Pinup nº 4. Da página doze em diante.. isso é mecânica. Prever absolutamente tudo antes. Se eu quiser replicar um efeito. Logo em seguida começo o processo de outra. e depois para a revista i]. a grossura do traço. Mas quando foi redescoberto pela revista Mad [em 1954. o tamanho do original. nenhuma virou história. POR QUE FICAR OLHANDO? NÃO TENHO NENHUM FETICHE ele. o tamanho do original. Fazendo o Coprólitos. Esse choque entre um e outro me alertou para o que eu deveria fazer nas próximas histórias. ele fazia quadrinhos mais convencionais [para a Timely Comics. percebi uma diferença gritante entre o original e o impresso. Preferi deixar assim e. Eu defino alguns momentos-chave e vou desenhando cada quadrinho por vez. Descobri o traço dele por volta de 1981. ao final do livro. esses caderninhos foram muito úteis. quem são seus paradigmas? Basil Wolverton [cartunista e desenhista americano que trabalhou para a Marvel em seus primórdios. Isso dá trabalho. a piada só é boa se estiver bem montada.O que remete à questão da disciplina. graças à revista Plop!. no roteiro. E na hora de desenhar. me recuso a ter. fazer um monte de perguntas. não tem mais nada. a partir dela. eu só busco no dicionário. E essa sua disciplina inclui outros processos além da busca ao dicionário? Você tem um dia da semana ou do mês para sentar e pensar na história? É quando acaba uma história. para mim. depois de ter feito alguns gibis. desde moleque.. Na realidade. Aí sim é dia de ir ao dicionário. É como contar uma piada. é criada mecanicamente. processo de criação é disciplina. ilustração (lápis sobre papel) da Coleção PINUPS (2003) 69 rbma 29 . para mim é castrativo. Cada uma delas tem a sua trajetória. se você olhar o Frauzio que estou fazendo agora. sem saber. Queria voltar de novo ao tema de suas influências. Para mim. quando foi publicado pela primeira vez. mesmo sem eu saber. não era consciente. fazem parte dessa disciplina? Os caderninhos começaram porque. ao contrário.. Aliás. O mesmo vale para as coisas que deram certo. onde. Isso que eu uso para criar. eu tenho a coleção brasileira completa da revista). Não faço esboços muito detalhados de cada imagem para a história inteira. depois de ler uma entrevista do Gilbert Shelton tecendo elogios a E os caderninhos que você me mostrou da outra vez. A história exige método. ou evitar um problema. Para ser sincero. das ideias “inspiradas” que tive. ou 82. As capas da Plop! eram desenhadas por ele (aliás. Mas o estrutural está todo pronto. vou precisar consultar cada original. esse contato criou aquela sementinha de influência no meu estilo. Mas eu nunca havia associado Wolverton a Gilbert Shelton. Eu não tenho bloqueio criativo. Eu acho mais difícil construir pela inspiração. qual o tipo de papel. Eu sabia cada detalhe da produção. Vai continuar contribuindo para a revista pelos próximos 20 anos] pôde fazer aparecer seu traço mais maluco. Para você. até a página onze está tudo absolutamente finalizado. escolher uma palavra e. o traço do Wolverton eu conhecia. Se você não tiver inspiração vai ao dicionário. Se eu tiver. não pratico. foi um momento bem ruim para mim. Foi bizarro. Aliás. Nenhum desejozinho estranho? Não. tudo é natural. apesar de também soturno e calado. as minhas referências eram Turma da Mônica. Aqui. diferente de mim. Até então.distorções são fantásticas (principalmente esta última técnica me influenciou muito). só para começar. o que na adolescência era reforçado. O traço dele tem muito desse hachurado. o Gilbert Shelton. porque eu não estudo. Na década de 1970. Ele é um dos pais de outros mestres dos quadrinhos. despiroquei. Sou muito reservado e introspectivo. mas não me considero desenhista. Comprava muitos quadrinhos. Há outros que gostavam e seguiam Wolverton. Teve um período que eu estava buscando imagens de referências para as minhas pin-ups nesses sites de mulher pelada.. capa do livro Enterólitos (Editora do autor. conheci um cara. Não tenho nenhum pudor com sexo. Mas. Disney. queria desenhar daquele jeito. olho redondo etc. no começo. talvez. pois aquele traço não batia comigo. ia para a região da Paulista nas livrarias de cultura alternativa e tal. Para mim. o Marcelo Barroso. Acho muito bonitinho uma calcinha. Estudei numa escola em que não me dava muito bem com ninguém. principalmente o Wonder Wart-Hog. eu tentava desenhar como eles. não desenvolvo traços ou faço experiências. capa do livro Coprólitos (Editora do autor.. um vizinho. saía muito. Foi então que conheci aquele desenho mais expressionista do Crumb. 2013) 69 rbma 31 . O Shelton tem todas as características de um desenho infantil: nariz redondo. A história na revista Papagaio é uma tentativa de chegar àqueles caras. Ele. que era fã de quadrinhos. Foi graças a ele que eu conheci o underground americano. Quando vi a Metal Hurlant. Através dele conheci o Robert Crumb. Os desenhistas eram Philippe Druillet. era muito difícil chegar coisas às bancas de jornal do bairro que não fossem de grande tiragem. Tio Patinhas. Ao lado. o Shelton. Poderíamos até conjecturar que o fetiche seja fruto de uma castração. É tão bom fazer. quando estava no último ano. A coisa da anatomia não é meu forte. Acho muito mais estimulante olhar catálogo de lingerie do que ver mulher pelada. mas acho que Gilbert Shelton foi quem mais bebeu dessa fonte. Só depois que saiu a Papagaio eu conheci o underground americano. Eu não conhecia Henfil. Um dos primeiros exemplares que ele me mostrou foi da Metal Hurlant. por isso. Lembro de você ter dito na nossa primeira conversa que suas primeiras histórias eram muito diferentes e que as influências foram outras. e. Moebius etc. e depois. Só que meu traço não tem essa alma. ainda não descobri. não tenho disciplina para isso. como a revista é nº 69 e toca nessa temática. 2013). 30 rbma 69 Para finalizar. por que ficar olhando? Não tenho nenhum fetiche. eu gosto dos meus desenhos. Meu desenho é infantil: contorno grosso. revista francesa de quadrinhos de ficção científica. posso pedir para você me confessar um fetiche? Eu sou a pura contradição. olhos bolinha. não teve nenhum efeito em mim. São coisas que estão no meu traço até hoje. não tenha fetiche. Os infortúnios de Sade e as prosperidades de Justine . viii. Na versão de 1791. não se fazia distinção entre as duas obras. ganhou forma final nas celas da Bastilha. que fique bem entendido. 1889.. ele não se regozija com a ideia de República. for the first time translated from the original French (Holland. o acento na arbitrariedade da fortuna recai na conduta incongruente de Justine. Seu esboço. em vez de contrabalancear..” – era assim que os contemporâneos de Sade costumavam se referir ao escandaloso Justine ou Les malheurs de la vertu. Essa ênfase na transgressão evoca a euforia de Sade com os movimentos revolucionários. quando foi transferido às pressas da Bastilha ao sanatório de Charenton. deixando ao leitor a tarefa de imaginar as cenas. front. o abstrato título Infortúnios da virtude foi substituído por outro. 392p. literalmente Justine ou as Infelicidades da virtude. Estima-se que ele tenha concluído o texto em 4 de julho de 1789. O romance de 1791 era infame. orgias e torturas eram apenas sugeridas no texto. Tradução inglesa da Justina. porém. Sade. Donatien Alphonse François de Sade. esse texto só foi publicado em 1930. intensifica-se: as alusões se explicitam. Tudo progride. Sade tentava enfatizar a inadequação da virtude face à realidade social e sua incompatibilidade com a felicidade. feito na prisão de Vincennes.J. Aristocrata de longa linhagem. para onde o Marquês foi transferido em 1784. os personagens ganham facetas humanas. primeiríssima versão da narrativa. enquanto a segunda traduz a posição obstinada daquele que prefere a ilusão à realidade. reproduzida da edição holandesa de 1791. a natureza outrora amoral anuncia então seu franco imoralismo. cujo manuscrito foi encontrado no início do século xx pelo poeta Guillaume Apollinaire. 1791) With an engraved frontispiece. 34 RBMA 6 9 6 9 RBMA 35 . a que opta pelo vício. Opus Sadicum: a philosophical Romance. a que escolhe a virtude é condenada ao infortúnio. nominal. a energia virtuosa da heroína. E a confusão teria sido ainda maior se os leitores setecentistas tivessem conhecido Les infortunes de la vertu. Conde de. Com isso. a energia celerada dos carrascos excede. Paris: Isidore Liseux. A nuance entre infortúnio e infelicidade é essencial para se entender o olhar sadiano: o primeiro implica a fatalidade. (grav. mais exatamente em 1787. só conhece a prosperidade. Visando o grande público e o abrigo da censura. É quando a novela se torna romance. Redigido durante o Antigo Regime. mas parecia tímido se comparado à sua versão ampliada de 1799: La nouvelle Justine.) 23x15cm. Na época. A trama era simples: duas irmãs ficam órfãs por um revés do destino e seguem caminhos opostos. eu o fiz capaz de empestear o diabo. Apesar disso. referências bibliográficas: Delon. Paris: Fayard.A esperança é de uma monarquia constitucional: os poderes moderados do rei aumentariam a tolerância e atenuariam a censura. A publicação de La nouvelle Justine (“Nova Justine”). Maurice. se por azar ele cair em suas mãos”. constituindo talvez uma quarta versão do romance. e atinge seu pico oito anos depois. em seu terceiro mês de liberdade após treze anos de cárcere. Donatien Alphonse François. o crescendo continua. como perde o direito de contar sua própria história. Não surpreende que o livro saia anônimo da gráfica. […] meu editor o pediu bem apimentado. A terceira Justine. de fato mais branda no início da revolução – o que explica a publicação do livro provocante. […] Queime-o e não o leia. Clara Carnicero de Castro* * Doutora em Filosofia pela USP. Sua linha de pesquisa aborda a relação entre a eletricidade e a metempsicose nos romances de Sade. no entanto. Reunidos. em quase duas mil páginas na edição francesa da Biblioteca da Pléiade. narrativa em primeira pessoa. não somente tem todos os seus infortúnios agravados exponencialmente. 6 9 RBMA 37 . mas muito imoral. Foi o infortúnio do leitor e a infelicidade do império de Napoleão. Mas Sade é preso nesse mesmo dia. In: Sade. Sade renega prudentemente a obra antes mesmo de ela cheguar às ruas. uma “Nova Nova Justine”. Marquis de Sade. tomo ii. na imaginação do autor. Tal cume. e sua última Justine se perde. escreve ao advogado Reinaud: “Imprimem atualmente um romance de minha autoria. Michel. é seguida pela Histoire de Juliette ou Les prospérités du vice (“História de Juliette” ou “As prosperidades do vício”). Em meados de 1791. 1991. Œuvres. o Marquês entrega a seu editor um exemplar da “Nova Justine” com várias correções e acréscimos. foi ainda superado pela genialidade do escritor: em 6 de março de 1801. a mocinha fica então desprovida do posto de memorialista. de 1801. Não obstante. Sábia decisão. em estágio pós-doutoral na Universidade Sorbonne-Paris IV. tornando-se duplamente passiva. pois o Comitê de Saúde Pública da República Francesa irá proibir enfaticamente a circulação da obra por volta de sua terceira ou quarta edição. que é cedido à vilã triunfante: sua irmã mais velha. “Introduction et Notices”. os itinerários das duas órfãs formam um dos maiores monumentos da literatura licenciosa: dez volumes. Clara Castro é atualmente pós-doutoranda do departamento de Filosofia da USP. Narradora nas duas primeiras versões. romance em terceira pessoa. 1995. Paris: Gallimard/Pléiade. Lever. . publicado na França em 1927. a primeira palavra trocada entre elas teria sido ajudai-me. seria esse o sentido implícito da antiga expressão “poço de amor”. motivadas pelo perigo de perecer. 183. Rousseau. Foi em torno da água. “Ensaio sobre a origem das línguas”. 460. Daí que. as pessoas só se encontravam por obra da necessidade. Tal sugestão se encontra num anônimo Dicionário do amor. evocando a acepção corrente de “fazer corte”. portanto. putus. 1911. Acervo bma Devaneios etimológicos em torno da prostituta Eliane Robert Moraes* Ainda que a palavra puta nomeie a dita “profissão mais antiga do mundo”. o gesto ardoroso não bastava e a voz o acompanhava com acentuações apaixonadas.-J. p. Nas regiões frias. p. 2. Como se sabe. enfim. “uma vez que. Egon Schiele. Dictionnaire de l’Amour. não é difícil aproximar essa suposição das hipóteses de Jean-Jacques Rousseau em seu célebre Ensaio sobre a origem das línguas. 1. J. Aquarela e grafite sobre papel. outrora.2 Não admira que a primeira palavra nascida dessas reuniões tenha sido amai-me. a suposição de que ela remonta à própria origem das línguas pode causar certa surpresa. Suas pesquisas concentram-se na interface entre literatura e erotismo e atualmente se dedica a investigar a erótica literária brasileira. 1 Ora. o filósofo imagina que o surgimento das palavras possa ter sido determinado pelas condições climáticas. só precisaram se dar ao trabalho de cavar poços para então se entregarem a atividades mais prazerosas. desobrigados de tais ocupações.1 cm. * Professora de Literatura Brasileira no departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP. em Os Pensadores – Rousseau. Já os habitantes das regiões quentes. Segundo o mesmo verbete.“Alma de Côrno” e Outros Espíritos Malditos em Pessoa Por Carlos Pittella-Leite* Puta. que se deram os primeiros encontros entre os sexos: “os pés saltavam de alegria. putida Girl Seen in a Dream. provável denominação original do que mais tarde viria se chamar “corte de amor”. o prazer e o desejo confundidos faziam-se sentir ao mesmo tempo. Mas é o que sugere uma de suas etimologias mais curiosas ao lhe atribuir a mesma raiz latina da palavra poço. os poços eram lugares de encontro de moças em busca de aventuras amorosas”. 47. diz ele. que estabelece relações entre os dois termos tendo em vista sua possível derivação de putagium ou putens. Tal foi. o verdadeiro berço dos povos – do puro cristal das fontes saíram as primeiras chamas do amor”. por estarem continuamente ocupadas em prover a própria subsistência.9 x 32. pute. Curtius. “aprodecer. mau. A palavra se origina (1080) do latim putidus. putanheiro. que remonta ao século xii. putaina. é o da fantasia. então. como tal. fétido” e moralmente “que se revela afetado” derivado de putere. 46. estragado. Pelo contrário: o rigor que se almeja no espaço desta reflexão. já que se trata de um vocabulário referido. que venham brotar outras etimologias improváveis que não cessam de interrogar a palavra puta. Rey (org. esses igualmente comportando inúmeras variações que se multiplicam segundo o contexto geográfico e histórico. pouco importa se participam de uma ou de outra categoria. pute. ao lado de ordorde. ao examinar a palavra francesa putain. R. à força motriz (vis motrix) do corpo. Egon Schiele. “Etimologia como forma de pensar”.. sua origem é bastante obscura. abarcando tanto a concepção naturalista de um Rousseau quanto a imaginação perversa que costuma envolver o amor venal... assinala que ela deriva do: A etimologia. Desnecessário lembrar que a palavra realmente evoca toda uma simbologia passível de se associar à prostituição. supõe o caminho por ele indicado. Ces livres qu’on ne lit que d’une main. “dos verba para as res”.4 Não só ela se mantém como o principal significante chulo de prostituta.Uma das etimologias mais frequentes associa a meretriz à sujeira.. passando por putaria. 5 3. evoluções ou desaparecimentos ao longo de sua história. maldoso”.8 cm. propriamente “fedorento” tomou desde os primeiros textos o sentido figurado de “sujo. sobretudo se levarmos em consideração que o léxico erótico vive em perpétua expansão. se tal caminho conduz à “origem (origo) e à força (vis) das coisas”. acionando termos que passam ora pela concretude de um buraco escuro ou do dinheiro que nele se joga. de segredo. J. ainda que o sentido da palavra pareça inequívoco. 1674. se quisermos.] antigo francês put. vale dizer que interessam ao argumento tanto as etimologias consideradas pertinentes quanto aquelas que se revelam puro fruto da imaginação. Reclining Model in Chemise and Stockings. Na verdade. Trata-se. aplicando-se particularmente à mulher lasciva e pervertida.3 Vejamos. quase sempre a realçar sua insondável profundidade. p. para citar só alguns exemplos do domínio português. O intento de investigar algumas das formas como a prostituta é fabulada no mundo latino. onde se testemunha o encontro fortuito entre o poço e a prostituta. Não estranha que seja do fundo obscuro da língua. Goulemot..). pois é na condição de “devaneios etimológicos” que elas são convocadas no interior deste texto. adjetivo corrente até o século xv no sentido de “fedorento. [. como propõe o autor. Putida: parte maldita A palavra puta revela um extraordinário poder de permanência no imaginário sexual latino.] Put. em Literatura europeia e Idade Média latina. odioso. 4. A. No limite. como está na origem de uma série lexical que constitui numerosa e viva família. Ora. aqui. ora pelas incógnitas que recobrem a ideia de verdade. p. Carvão sobre papel. também fecundo nos estudos literários. 533. sujo”. vil. A edição histórica do dicionário Robert. E.-M. 1917. p. [. Contudo. mas sem qualquer pretensão de observar o rigor típico dos filólogos ou dos linguistas. putame. é um modo de pensar e. puteiro. Cf. Dictionnaire Historique de la Langue Française. estragar”. que vai da “denominação para o ser” ou. 13. putona etc. fedorento. 5. inspirado na concepção do filólogo alemão. como nenhum outro. de refletir sobre tais etimologias. “podre. segundo a bela definição de Curtius. supõe infinitos modos de imaginar. ele realmente pode ser valioso quando se aborda a singularidade dos erotica verba. Por tal razão. Acervo da bma É digno de nota que a imagem do poço tenha sido reiterada como lugar emblemático da atividade amorosa. ela fornece a base a partir da qual as outras línguas latinas criaram os significantes putta (italiano). implicando uma grande variedade de possibilidades. comportando transformações. que origens são atribuídas a uma denominação de origem tão incógnita.4 x 29. . por exemplo. pute (francês) ou putana (espanhol). de inferno ou de abismo. O notável empenho humano para que ela entre numa cadeia simbólica já foi insistentemente sublinhado por Freud e por seus seguidores. p.5 x 36. nos quais se reconhecem três grandes famílias semânticas: na primeira. confere um estatuto exemplar à figura da prostituta. cf. Rey (dir. conectam-se com a suposição etimológica que faz puta derivar de putida. que existia ao lado de potus. 464. A. Idem. p. tomo 6. Guiraud. 649. mas sempre supondo ali um tipo exclusivo de prazer “ao qual ninguém acede sem antes se rebaixar a tudo aquilo que esses lugares e os seus hábitos têm de escuso. outros compêndios da língua portuguesa ainda acrescentam que. ao propor que: “A palavra pute vem do latim putida. do feminino de puto. Dicionário escolar latino português. ocuparam-se da questão.). na segunda. É um aspecto semântico fundamental do francês que trata a prostituta como um ‘lixo’ e um objeto de nojo”. que significa puro”. não obstante o fato de eles também contribuírem. É o que se lê na definição sintética do mesmo verbete: “do latim puta. Dictionnaire culturel de la langue française. 8 Palavras que. por sua vez. do mundano. p. Como ensina a antropologia. para reforçar a coesão da coletividade. desonesto”. cada qual compondo um léxico próprio. “puro. Na versão brasileira. 109. reiterando o sentido do polêmico vocábulo ao citar uma passagem do dicionarista Antoine Furetière que. Leitor atento das teses antropológicas. Surya.12 Two Reclining Nudes. menina. 528. conforme defendida pelo Littré. como tal.9 Tal sugestão é revalidada por diversos dicionários etimológicos da língua portuguesa. 7. da Cunha. percorrendo desde seus sentidos sagrados até os mais degradados. Putus: puríssimo Ainda que as aproximações com as teses bataillianas possam reforçar as bases dessa etimologia. na terceira. purificado. e o mais antigo exemplo histórico da palavra putain não significa nada mais que uma jovem empregada doméstica”.). Cf. originalmente sem qualquer sugestão sexual. o que vem corroborar a ideia de “boa acepção” da palavra. la mort à l’œuvre. tal concepção se organiza em torno de certos núcleos temáticos que se comunicam entre si. putus quer dizer: “puro. Cf. a ênfase recai sobre a associação com o “lixo”. que representa a classe mais baixa da sociedade. 8. em português puta. 10. de forma alguma. tomo IV. como adjetivo. pelo menos desde Marcel Mauss. p. convém dizer que seu sentido não é. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Bernheimer. Segundo o linguista. por exemplo. as figuras evocadas reiteram a ideia de um “velho trapo”. como se pode ler neste verbete lusitano de Puta: “Trata-se. Dictionnaire érotique. Machado. ao voltar particular atenção aos polos do proibido e da transgressão. 12. Semelhante definição se encontra em dicionários etimológicos brasileiros. de putus. afirmava o seguinte: “É digno de nota que os antigos Franceses tenham feito derivar.6. 9. no plano figurado. O Littré. sem falar dos diversos textos literários que. M. Dictionnaire de la langue française. em D. Cambridge: Harvard University Press. 11. Para essa mesma etimologia ver ainda C. que a sintetiza em seu Dictionnaire Érotique. Não surpreende que o dicionário francês vá buscar outra fonte para a palavra. Georges Bataille tomou-as como ponto de partida para formular sua dialética do erotismo que. 2244. a sujeira se apresenta como um excedente. não cessa de demandar sentidos. a personagem ganha atributos de “vagabunda”. o verbete “Puta” em J. Georges Bataille. de feio e de imundo”. cuidado”. a palavra putain do latim putus. Semelhante trilha é explorada por Pierre Guiraud. Littré. p. o recusa expressamente. Aquarela e grafite sobre papel. foram muitas vezes usados com boa acepção. que não raro mantêm a remissão do vocábulo à sua origem latina. sendo não raro identificada como a mulher do “mendigo profissional”. p. menino”. 96. A extensão românica das formas femininas leva a pressupor igualmente em latim uma forma putta”. qualquer afirmação de identidade coletiva implica a exclusão dos aspectos considerados impuros.). antes mesmo da psicanálise. ibidem. Não são poucas as passagens da sua obra que interrogam o amor venal. Acervo bma . p. No mais das vezes. Faria (org. 56. autorizando-nos a precipitar a meretriz na condição irrevogável de “parte maldita” tal como a concebe o autor de L´érotisme. 632. 780. E. G. mau. provém do latim puttu. ‘fedorento’. Egon Schiele.8 cm.6 A suposição coincide com um estigma antigo que envolve o métier e concebe essa mulher como “um lixo fedorento”. putus.10 Como que radicalizando essa vertente mais asséptica. que. e. ou mesmo. A New History of French Literature. o mesmo verbete em A. por antífrase ou contradição de sentido. demarcando o que fica às margens do social. P. 824.11 Definição que figura na edição cultural do francês Le Robert. “Prostitution in the Novel”. segundo parece. 1911. no qual se acrescenta ainda que os termos “em italiano putta. do normal. p. ‘rapazinho’. limpo. Hollier (ed. Dicionário etimológico da língua portuguesa. que remete ao termo homônimo em latim. à sua maneira. terminando o verbete Pute com a observação de que ele não implica qualquer sentido negativo nem tem “qualquer relação com o antigo adjetivo put. com germinação consonântica expressiva.7 Escusado lembrar que a sujeira é por excelência um objeto de recalque e. 1994. P. hegemônico. o verbete “Pute” em É. que vem de putidus e significa feio. em 1690. brilhante”. p. de algum modo. A deusa Puta Não por acaso. pp. op. de Almeida. que quer dizer moça puríssima e limpa. Com efeito. a medida dos fenômenos depende mais do grau de percepção e dos fantasmas dos observadores de que da realidade dos fatos” (Les filles de noce – misère et prostitution au XIXe siècle.. Linguagem médica popular no Brasil. mais que tudo. à porcaria. no verbete Puta de seu estudo sobre a Linguagem médica popular no Brasil. Recorda ainda o dicionarista que o sentido principal – sendo o de fille ou. Feita tal ressalva. essa condição diz respeito a grande parte das meninas. 20. fille perdue. Guiraud. 243-250. garota de viração ou garota de programa. que qualifica a meretriz em certas regiões brasileiras. A. imaculada. na outra ponta da cadeia semântica aqui analisada. teve destino semelhante ao de puta. P. de Hilda Hilst. Neves. 96. ainda não tem idade suficiente para sê-lo de direito. da mesma maneira como a criança não pode ser reduzida à imagem da inocência que.16 Em língua portuguesa. não corrompida pelas regras da civilização que impõem a obrigatoriedade social da limpeza. pelo menos a partir do século xii. Acervo bma 13. entre outros. fille de maison. a outro decididamente perverso. p. nymphe (ninfa). Como bem sugere Alain Corbin. de Nabokov. que são mais correntes no Brasil. Tudo ocorre. Egon Schiele. p. essas expressões terminam por expor justamente aquela zona de poder e perigo que. o que fica evidente nessa série de etimologias é a passagem de um sentido no mínimo neutro. p. Pierre Guiraud cita dezenas de denominações do gênero que se rotinizaram no país em diferentes épocas. não só pelas implicações éticas que vem ganhando particular atenção na atualidade. Éloi. que a aproximação entre prostituição e infância é matéria delicada. Para confirmá-lo. por sinonímia. cit. mas também porque os dois termos estão sujeitos a inflexões muito diversas no espaço e no tempo. de uma sugestão efetivamente . na Roma antiga. contemplando um deslizamento de sentido. de Sade.15 Cumpre sublinhar. “a mulher é por vezes uma criança”. considerado seu étymo. pode-se encontrar uma etimologia que propõe o sentido inverso e complementar suposto na menina impura. 335 e 96. Além disso. Um bom exemplo desse tipo de operação simbólica é contemplado na palavra composta flor-do-lodo. da “vadia” à “messalina”. do lar para a sarjeta –. F. P. tornou-se hegemônica a partir da ascensão da burguesia. Trata-se da perversão da menina realizada no corpo da língua. 15. lembrando o formoso sentido que a princípio se lhe concedia: moça puríssima. não deixa de surpreender a recorrência do encontro entre a prostituta e a criança no plano linguístico. Dupont e T. Fernando São Paulo chega a afirmar que “Inútil foi a ponderação das autoridades em Filologia. 1919.19 Em que pesem eventuais exageros. na França. nesse caso. ao menos juvenil. pp. a palavra fille. a linguagem popular brasileira em torno da personagem também expõe um sentido. 139 e 176. Trata-se. F. tampouco a figura da prostituta pode ser enclausurada num só significado. Aí também é possível identificar toda uma cadeia semântica associativa que reforça a ideia de uma menina referida à imundice.14 É de supor que. Observa Aline Rousselle que. o escravo jovem que servia à volúpia do homem adulto na Roma antiga. 16. ou outro tão feio. Dicionário de termos eróticos e afins. jeune fille – abre toda uma cadeia associativa que emprega palavras afins como demoiselle (senhorita). o que presume antes de tudo a equivalência jurídica entre uma e outra. portanto. o autor recorre a um compêndio português do século xviii. se não infantil. que tem variantes exemplares na corrupção da jovem Eugénie em La philosophie dans le boudoir. A começar pelo fato de que a associação entre a criança e o amor venal parece não se restringir ao domínio linguístico. Para além de uma simples reunião de contrários. de 1936. sendo um dos termos mais repetidos no léxico em torno do amor venal.20 Importa notar que. ou na depravação da protagonista infantil do Caderno rosa de Lori Lamby.18 Vale perguntar. Convém recordar que. portanto. a presença da infância parece acentuá-la ainda mais. São Paulo. C. como se evidencia em moça. tendo se tornado uma concubina de fato. fille de nuit. o que remete a um imaginário recorrente na erótica literária. a palavra original que designava a criança pudesse ter um uso ambíguo. Por tal razão. chamando puta a mulher que está posta no ganho e putaria o lugar onde ganha”. que exalam algo de inocente e virginal. segundo os estudiosos. que eram efetivamente oferecidas aos amantes bem antes de completar 12 anos. 14. donzela ou mesmo em andorinha. valendo-se do vocábulo para criar uma infinidade de termos – tais como fille de joie. ir às meninas ou meninas à sala!17A esses poderiam ser acrescentados os termos criados em torno da garota. L´Érotisme masculin dans la Rome antique. 97-98.13 Ocorre o mesmo com o menino. 19. e sua transferência da casa para a rua – ou. entre outros. Guiraud. Cf. como é o caso de garota da casa. por encobrir a fealdade do vocábulo de meretriz. Ou seja. Na França. por vezes não chegava aos 5 anos completos. a puta foi e continua sendo objeto de tantos avatares quantos são os nomes pelos quais ela atende. embora esses dados sejam sugestivos. apenas a título de exemplo. p. da “rameira” à “cocote”. camélia e mariposa. quase sempre operando por meio da perversão de seu sentido original. de uma afirmação que implica toda mulher. Rousselle. o puto ao qual se remetem as etimologias. segundo o ensaio seminal da antropóloga Mary Douglas. Girl. ao invés de atenuar a sujeira. duas fontes históricas.Também nesse caso. Cf. cit. poupée (boneca) ou sœur (irmã). porém. Triunfou o desvirtuamento”. fazendo convergir as duas etimologias. Litogravura. Todavia. menina. Santos e O. 45. de tal forma este se associa à pureza que. seu equivalente pode ser encontrado na usual rapariga ou nas diversas expressões lusitanas que se valem da palavra menina para fazer referência ao universo dos bordéis tais como: casa de meninas. mas exclusivamente aquela que.2 x 63 cm. p. uma vez mais. Dicionário obsceno da língua portuguesa. se quisermos. 18. a exemplo do que ocorre no âmbito francês. P. demarca a fronteira entre o puro e o impuro ao mesmo tempo em que revela o ponto que os une. Segundo a historiadora. como se encadeiam os termos dessa evolução semântica. op. fille publique. 111. puta. Da “mulher de vida fácil” à “cortesã”. “em matéria sexual. 17. sendo mencionada em diversos estudos históricos sobre o mundo latino na Antiguidade. cuja idade. para citar apenas algumas delas. Pornéia – Sexualidade e amor no mundo antigo. H. não raro encarnado na figura do puer delicatus. que clamaram contra a impropriedade do termo. na sedução da ninfeta em Lolita. a suposição é boa para pensar. 284-285.. vieram a infamar aquele nome. que sendo vocábulo honestíssimo. como se os devaneios etimológicos em torno da prostituta variassem à exaustão entre os polos da infância pura e da sujeira fétida até o ponto de reunirem essas forças opostas em uma única expressão. prima. quando se interroga as nascentes de uma língua. em ambos os casos. o que tais termos supõem é uma espécie de “sujeira pura”. seja ela física ou moral. pp. Não se trata. a prudência nos obriga a tomá-los tão somente como especulações históricas. que insiste na mesma tecla: “tal foi a corrupção da palavra. como bem mostrou Phillipe Ariès. 300). que funciona como uma espécie de máquina de degradação moral da menina. Vale citar. senão realmente puro. a versão mais ostensiva dessa operação linguística talvez seja dada pela expressão corrente fille des rues que supõe o deslizamento semântico da criança para a sujeira. Cf. à escória. Em seu célebre tratado sobre a pintura. antes de ter se tornado um termo específico do direito. 182-183. pois. como quer a etimologia proposta por João Pedro Machado. G. n. alto e baixo. que oscilam entre as acepções mais óbvias até as mais enigmáticas para.21 O humor ferino da autora a leva.25 Prova disso está no fato de que. 1o semestre de 2002. cujo fundo obscuro guarda as nascentes das línguas.23 Assim. a menina pode se consagrar por inteiro ao sexo – e a puta. 133. Assim. de 1998. Tem origem em putare no sentido abstrato de ‘contar. 26 J. por ostentar todos esses atributos. Reclining Nude. já que. uma vez mais. Pautados. entre os quais está Leon Battista Alberti. em diversas línguas. De la peinture. essas expressões remetem “ao lugar em que os significantes se dobram. a etimologia vem corroborar uma atribuição literária de sentido. onde toda etimologia é válida e toda fantasia tem salvo-conduto. ‘putativo’ e etc. 29.. que as atribuições etimológicas para a palavra puta sempre tendam a descrever paradoxos. o substantivo putamen significa “aquilo que sai das árvores quando se podam ou aparam”.24 Obviamente. 138. p. Bataille. parece guardar fortes afinidades com a antiga prostituta sagrada. esclarecendo em nota que faz referência à “deusa que preside à poda das árvores”. op. o significante puta parece guardar um pacto de fundo com seu referente. a Puta da escritora brasileira 21. Wisnik.literária. como se a insaciabilidade que se reconhece no métier da prostituta exigisse a todo o tempo novos acréscimos de sentido e contínuas atualizações das fantasias. é o fato de Hilda Hilst compartilhar a menção à deusa Puta com outros autores.). "Famigerado". sendo semanticamente oscilantes. porém. deixando entrever o quanto toda significação é virtualmente equívoca”. op. 24. Vem do verbo ‘putare’. Acervo bma . muito embora ambas compartilhem significativas ambiguidades de fundo. e por mais de uma razão. J. cit. repõe-se ainda na suposição de que uma exclamação tão trivial como “puxa!” seja uma corruptela de puta. cujos predicados foram exaltados em inúmeros textos mitológicos e literários. como propõe José Miguel Wisnik sobre os palavrões que adquirem força de talismã. o adjetivo que a escritora pretende derivar de puta teria realmente desfrutado maiores afinidades com o verbo pensar. onde não se conhece o frio nem qualquer freio. Mulheres que.. Faria (org. p. Egon Schiele. em que se lê: “Não sei se vocês sabem. implicando “um esforço eufêmico” de deformar o vocábulo. p. Não admira. palavra que só entrou no francês por meio de seus derivados”. em OEuvres Complètes. esboça-se aí uma figura que pode ser considerada como o oposto simétrico e complementar da menina impura. 823. que quer dizer podar. como sintetiza Georges Bataille. Por flutuar e deslizar num eixo de polaridade cujo sinal sempre pode se inverter. Machado. B. nesse caso a do adjetivo Putativo citado por Hilst. Cascos & carícias. sua sugestão não é de todo infundada.8 x 46. Precisamente lá onde. p. Hilst. Era a deusa que presidia à podadura. mas igualmen- te seus desdobramentos expressivos como excesso e poda. Giz sobre papel. P. Só depois é que a palavra degringolou na propriamente dita. eles se refletem mutuamente. tomo x. E. Mais significativo. "L’Érotisme". 1918. 10. interrogar as fronteiras entre o dizível e o indizível. esta decaída ao mais baixo patamar da degradação. ambos. 163. em latim. pp. 25. e assim por diante. mas também de disfarçá-lo para garantir sua permanência na língua corrente. Inversão expressiva que. H. calcular’. É o que sugerem os devaneios etimológicos em torno dessa palavra. de onde vem ‘pensar’. Lá. cit. ou “ramos podados de uma árvore”. e em ‘deputado’. tinham um caráter sagrado similar ao dos sacerdotes”. É nesses confins que se esconde aquele poço primordial. uma vez que reúnem termos opostos não só como sujeira e pureza. já que apresentada por Hilda Hilst em seu livro de crônicas Cascos e carícias. na qualidade elevada de deusa e filósofa. mas ‘Puta’ foi uma grande deusa da mitologia grega. Porém. de certo modo. no limite. pensar. deslumbramento ou admiração. à filosofia. sugerindo um duplo sentido antitético no qual Freud chegou a ver uma vinculação primordial da linguagem com o inconsciente. estando “em contato com o plano divino e vivendo em lugares sacrossantos. vol. segundo essa definição. pôr em ordem. que não cessam de se repor. 5. Lá. M.”. já no baixo latim. desmedida e justa medida.4 cm. 464. A primeira delas remete a outra etimologia. 23. o humanista italiano faz menção às “ramagens em torno da deusa Puta” para indicar uma forma de movimento na qual “uma dobra nasce de outras dobras”. L. em Scripta. p. um dos xingamentos mais ofensivos – “puta que o pariu!” – é muitas vezes pronunciado como expressão de surpresa. diversamente do que pode se imaginar. Nunca é demais lembrar que tanto uma como a outra deixam descoberto o inconcebível ponto de toque entre a pureza e a sujeira.22 Aqui. 22. Alberti. pelo imperativo do excesso. expondo assim a perigosa possibilidade de reversão que ameaça cada um desses polos. a conclusões semelhantes às dos linguistas que denunciam o desvirtuamento da palavra. caracterizam-se justamente por dizer algo e ao mesmo tempo o seu contrário. que é assim definido pela edição histórica do Robert: “derivado do latim medieval jurídico putativus que. Tudo leva a crer que certas formas de designar a meretriz.26 Objeto de inversões radicais e de desdobramentos vertiginosos. significa ‘imaginário’. livres de toda interdição. por distintos caminhos. Hilst. la mort à l’œuvre. Paris: Dictionnaires Le Robert. 1995. Paris: Flammarion. Georges. São Paulo: Brasiliense. 1991. Hilda. Éloi. São Paulo. Orlando. Surya. 1927. Dicionário etimológico da língua portuguesa. gouache e grafite sobre papel. Littré. Georges Bataille. Tradução de Lourdes Santos Machado. 1982. Alain. Michel. Tomo iv.4 x 30. Dictionnaire Culturel de la Langue Française. De la peinture. Aline.). Belo Horizonte. José Pedro. Les filles de noce – misère et prostitution au xixe siècle. Dicionário escolar latino português. 1914. Aix-en-Provence: Alinea. Aquarela. Linguagem médica popular no Brasil. 2005. Horácio de. “Ensaio sobre a origem das línguas”. Pornéia – Sexualidade e amor no mundo antigo. Dictionnaire de la Langue française. Fernando. Acervo bma . Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Tomo 6. Jean-Marie. 46. Tomo x. Bataille.. OEuvres Complètes. Pierre. Paris: Belin. 1998. Thierry. 1987. 1o semestre de 2002. Rousseau. Scripta. Siècle. Paris: Gallimard. Lisboa: Bicho da Noite. Dicionário de termos eróticos e afins. 1979. 1868. 2001. Paris: A. Levy. 5. Rousselle. 1990. 10. Guiraud. 1982. Rey. Corbin. Tradução de Teodoro Cabral. Paris: Editions Georges-Anquetil. Goulemot.). Jean-Jacques. 1981. 1978. Almeida. In: Literatura europeia e Idade média Latina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. n. Cascos & carícias. Machado. São Paulo: Abril Cultural. 1992. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Cunha. Alain (dir. Egon Schiele. Dictionnaire Historique de la Langue Française. 1984. Dupont. Ernest Robert. Ernesto (org. Ces livres qu’on ne lit que d’une main – Lecture et lecteurs de livres pornographiques au xviiie. In: Os Pensadores – Rousseau. Brasília: Instituto Nacional do livro.5 cm. Curtius. Paris: Gallimard/Hachette. Lisboa: Horizonte. Carlos Pinto. Santos. São Paulo: Nankin Editorial. Dictionnaire érotique. Alain (org. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 1993. Rio de Janeiro: mec. Paris: Payot & Rivages.Referências Bibliográficas Alberti. Faria. L’Érotisme masculin dans la Rome antique. vol. Dicionário obsceno da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Barreto e Cia. Standing Nude with Orange Drapery. 1958. 1997. Paris: Dictionnaire Le Robert. Leon Battista.). Rey. Paris: Gallimard. Dictionnaire de l’Amour. “Etimologia como forma de pensar”. José Miguel. Florence. Wisnik. “O Famigerado”. 1962. 1936. L’Érotisme. Neves. Émile. seu autor procurava manter-se livre e vivo. O livro segue. e XVII. além de jesuítas (ordem espanhola) e espanhóis. escreveu ainda a obra A civilidade e as artes de fingir (Edusp. Das obras que compôs. interceptada e transformada em mote de comentários satíricos. em sua introdução à recente edição do Corriere. valendo-lhe uma prisão momentânea pela Inquisição e depois sua perseguição até a morte. mas antes submetê-la ao vosso escrutínio enquanto defeituosa em muitas partes e plena de erros que deverão ser corrigidos com as vossas regras. o Corriere svaligiato Com pós-doutorado pelo e pela FE-Uni- Edmir Míssio* (“Carteiro desvalijado” ou “O carteiro do malote roubado”. mas também contra a família Barberini – entre eles o papa Urbano VIII (1623-1644). e seguidas pela conclusão e por uma “confissão do autor”. a tradução dos trechos citados é de minha autoria. que já havia sido atrelada às putas desde a Antiguidade. 50 REVISTA BPMA 69 69 REVISTA BPMA 51 . a qual ainda não recebeu edição em língua portuguesa. camp. ensino que se desdobra em alerta ao cliente sobre os riscos desse negócio. estes voltados especialmente contra os jesuítas. A outra. nobre que fundou a Academia dos Incógnitos em 1623. largamente utilizada nas escolas da época. nem sei quimerizar tantos fingimentos e velhacarias quanto são praticadas por vós para uso ordinário. elevado e da grande quantidade de prostitutas (cerca de vinte mil) apenas na República de Veneza. em ensinar a argumentação retórica. a qual já estava parcialmente submetida aos segundos. Nasceu em Parma em 1615 e foi decapitado em Avignon em 1644. tornando-se cônego. Apesar da curta vida. entre declaradas e clandestinas. *O autor dedica-se à pesquisa e à tradução. Note-se que os primeiros tentavam monopolizar a educação e a vida intelectual da península itálica. critica-se o dano a que se expõe quem é seduzido – como se depreende da dedicatória que faz o autor às putas: Nem por isso pretendo consagrar-vos esta composição como digna das vossas glórias. sendo confluente assim com a sofística. Formou-se na Universidade de Pádua e passou a morar em Veneza.Ferrante Pallavicino foi um satirista italiano Em relação à prostituição. A Retórica das putas. já fora da prisão. quando. Declaro não poder escrever tanto quanto sabeis obrar. Uma consiste em ensinar a aspirante à puta a seduzir e ganhar a vida. por uma tradicional carta ao leitor e por uma introdução. onde sua atividade era regulada por leis do Estado. por duas vertentes. Entre os temas atacados estão as cortesãs. também Marchi nos informa do status A Retórica das Putas de Ferrante Pallavicino1 de família nobre e de carreira e vida curtíssimas. trata-se de uma correspondência do governante espanhol de Milão dirigida a Roma e Nápoles. Pallavicino escreveu 26 obras. comunidade ou ainda universalidade. O termo universidade podendo ser entendido como república. Ao sabor do “incomum” do mote concorre ainda o uso então comum do paradoxo e da ironia: ao mesmo tempo em que é louvada a capacidade de seduzir. famoso pelo nepotismo. 1641) foi a que mais se destacou. onde atuou como secretário de Giovanni Loredano. já os preceitos de Cipriano diziam respeito à retórica do jesuíta Cipriano Suarez. romances e libelos. De acordo com Armando Marchi. entrou porém para a ordem beneditina. 2012). antecedidas pela supracitada dedicatória. Note-se que se trata de uma retórica voltada antes de tudo ao apelo aos afetos – ao elogio ou à censura – e sem maiores preocupações com amarras lógicas. assim. A Academia ficou famosa pela liberdade de expressão de seus escritores. Portanto. tendo elevado a cardeais seu irmão e sobrinhos (nipoti em italiano) – e a própria cúria romana – cujo luxo e cuja luxúria eram notórios. ensino que se desdobra em alerta ao leitor/ ouvinte acerca das armadilhas argumentativas do discurso persua­ sivo. ¹ Terminei recentemente a tradução da Retórica de Pallavicino. com interesse especial pelos séculos DLCV-USP XVI Mas pode-se dizer que o texto de Pallavicino surpreende o leitor tanto da época (seus escritos tiveram grande sucesso de público) quanto de hoje ao abordar em termos tão claros um tema pouco usual. composta conforme aos preceitos de Cipriano e dedicada à universidade das cortesãs mais célebres (1642) insere-se nesse contexto. bem como por sua promoção do nascente gênero dramático-musical da ópera. Tendo recebido uma educação jesuítica. à época acusada de imoral. as mulheres forçadas ao claustro. O livro é dividido em catorze “lições” breves. uma velha pobre mundana que vê a chance de ganhar a vida agenciando a jovem. parece que. Assim. recorrendo a uma analogia com as pinturas que retratam “objetos disformes”. não da efígie” Por fim. sua matéria é o “interesse”. Assim.] consumir a mente para quimerizar coisas verdadeiras e verossímeis. iniciam-se as lições. de modo 52 REVISTA BPMA 69 . tornando-se sua rufiona. e seu fim. não da efígie”. vemos que o tema é tratado apenas em termos de detratação. o de Pallavicino. o ganho monetário. agora. de outro. âmbito da astúcia. porquanto com artificiosa tessitura compõem somente para teu dano laços e redes de insídias e enganos. faz que se aprove por bom tudo o que apresenta utilidade e deleite”. faz-se necessário o uso dos afetos. em confluência com uma teoria naturalista. e na nossa espécie não se encontrando ignorância maior do que na mulher. e também falsas com contrária aparência. o resgate de seu valor pelo reconhecido uso do sexo como “lenitivo da humanidade”. enquanto vires formados os dogmas de profissão infame”. em que se trata da arte meretrícia. Assim. âmbito da prudência: Não te escandalizes. torna-se fundamental a capacidade de inventar. ensinar a ludibriar. na famosíssima e grandiosa obra de Tommaso Garzoni. Nos termos da velha. com o fim de persuadir e mover os ânimos daqueles infelizes que presos em suas redes assistem às suas vitórias”. uma jovem pobre. dispor. Assim diz Pallavicino: “Sendo obra de caridade ensinar aos ignorantes. quanto a ti a necessidade de escapar delas. a prostituta deve [. Admite-se certa culpa. À invenção se ajusta a disposição. Captada a boa vontade da pobre ouvinte. e uma função didática ao alertar para os riscos financeiros envolvidos. em virtude da qual se observa a ordem de lugar e tempo conforme seja estimada melhor adaptada à intenção 69 REVISTA BPMA 53 “São gloriosos aqueles pintores que suscitam maravilha pintando objetos disformes: a feiura é culpa do original. adequando a fala a cada interlocutor. Nas palavras do autor: “São gloriosos aqueles pintores que suscitam maravilha pintando objetos disformes: a feiura é culpa do original. distinta em honesto. principalmente. o particular em geral. ensinar a não ser ludibriado. pois tenho por fim ensinar não tanto às mulheres o verdadeiro modo de serem boas putas. A ideia da prostituição como profissão à época já havia aparecido. Para a captação da benevolência desponta. as quais têm seu valor reconhecido pela capacidade do artista de retratá-las. a retórica das putas é definida como “arte de multiplicar artificiosas palavras e mendigados pretextos. ou o uso das paixões. dissimulados para melhor poderem enredar os clientes. Nas duas primeiras são apresentados os aspectos gerais dessa retórica algo específica. tem uma visão mais prática da questão. que não vê saída para a vida e não pretende entrar para a clausura. oh leitor. ao menos. oh leitor. atentando-se para a ignorância da mulher da época. O resgate do valor de sua própria obra adviria ainda da finalidade educativa. fazendo-se um recenseamento histórico dessa profissão limitado a historiadores e poetas da Antiguidade greco-romana. reiterando a riqueza que até era alcançada por algumas prostitutas. útil e deleitável. ornar. Alívio. mas calando a pobreza e as dificuldades enfrentadas pela maioria delas. segundo estimarem-se mais aptas a persuadir e a impetrar aquilo que se deseja. estimei bom encaminhá-la com universal doutrina a um exercício tornado comum em seu sexo”. para a qual remete o “curioso” interessado em “penetrar seus fundamentos”. reduzir o espanto desta extravagância. Praça Universal de todas as profissões (1589). sendo verossímeis ao real observável e não a uma idealização. presa à sua casa pela honra e sem dote para casar. E o anterior louvor da dedicatória transforma-se certamente em detratação quando afirma: “Com semelhante pressuposto pretendo. a qual traz o pano de fundo e o caráter das principais personagens: a aprendiz. À detratação anterior da profissão. e a mestra. ou talvez de usar prostitutas. da Praça Universal. A retórica do deleite Passadas as contraposições.Em defesa da obra A carta ao leitor traz uma defesa da própria obra. e para variá-lo. porém. que seus fins também se contrapõem: de um lado. que aparece como principal recurso para o convencimento. portanto. e não o retratá-las. cuja vida restringia-se ao âmbito do casamento ou da clausura. Para convencer a jovem.. citada por Pallavicino ainda na carta ao leitor. memorizar e atuar. o valor de seu livro é reafirmado ainda em termos de sua finalidade para a formação da prudência do leitor. o deleite. transformar a exceção em regra. nos quais é preciso escrever mal para fazer que sejam aceitas e bem acolhidas as mais virtuosas fadigas dos engenhos”. passa-se à introdução das lições. E quando vamos ao Discurso LXXIII – Das meretrizes e de seus seguidores.. os próprios leitores não escapam da ironia quando lhes é dito para imputarem “o erro dessas leviandades à corrupção dos séculos. contrapõe-se. é que seria de fato ocasião de mácula. porém. a velha usa um recurso muito comum da fala retórico-sofística. e não tanto da aprendizagem da leitora. Para isso. a escolha desse uso. conforto dos tormentos terrenos. ou vítima. junto com a famosa falsa modéstia retórica. “a quem a propõe como elegível sob aquela generalidade de bem que. fingindo gozar com as satisfações dele”. donde envisgado quem ama pelo crédito de uma pura afeição acorrenta-se ainda mais com os ligames de uma necessária correspondência”. Nesse ponto. e por isso a sua eloquência aparecerá harmoniosa na multiplicidade dos amantes”. 69 REVISTA BPMA 55 São retomadas então as cinco partes já elencadas para o deleite. para não tropeçar nos pedidos. minha alma. que é a alma da eloquência. e vale trazer a seguinte passagem: “Não se dê tanta liberdade aos personagens de autoridade sem a segurança do ganho. conheça por isso o temperamento para ter oportunidade de chegar a essas extravagâncias. donde esta retórica recebe a vida e o ser. exercício (pela variedade de amantes) e imitação (pela observação das putas mais prezadas). como diz o vulgo. requer-se moderação nos artifícios usados para não parecerem muito afetados e aborrecidos. A agudeza de Pallavicino na observação da realidade me parece alcançar seu ápice nessa mesma lição. valorizam-se os exemplos mais do que a argumentação: “Empenhe-se mais com fatos do que com palavras. e quem não se expõe a nenhum risco nunca pode gozar o ansiado ganho”. Porém. representando-se nesta parte o quanto ela se gaba de mais maravilhoso: promover os afetos. não sendo pois passível de ser-lhe aferido os valores deste. expressões do rosto graciosas e. nos termos da época): exórdio. Depois desses princípios. que muito mais aflige na falta da presença do real deleite”. É necessária a memória. Além da imitação de modelos vivos. passando dos discursos aos beijos e às carícias.da arte. Quando. costuma-se exclamar com frequên­ cia ‘meu bem. nota-se que a variedade de clientes requer maleabilidade no tratamento: Haverá quem reclamará termos honestos mesmo na mulher de vida licenciosa. e a audiência e o cliente estão em perpétuo risco. com o ápice da comoção dos afetos. Pallavicino parece ter clareza de que o sexo é do âmbito biológico e não do social. saindo dos ensinamentos retóricos e entrando na sua própria negociação. Para a confirmação. adverte-se a puta a ter mais rigidez. quando os ânimos com estes se convençam.. e para não ocasionar náusea com a repetição de costumeiros artifícios. A passagem seguinte da lição sexta resume os termos: “pode-se dizer que as quatro acenadas partes da oração figuram os quatro estados nos quais incorrem as fortunas de A lição nove traz o uso da metáfora. vida minha. tomada como “essência própria da retórica”. sendo a coluna do edifício). [. E ainda a repetição. A narrativa ocorre quando a transação já foi “encaminhada e o amásio entra na casa. desenfreadas. ao menos leva a amargura da despesa. asseio. não se fechando o negócio. na Lição 4. estipula-se a imitação da teoria proposta agora em detalhes nas demais lições. a lição oito toca no ponto da elocução (do estilo). comprazendo-se s i n g u l a r me n t e­ de maneiras não tão livres ou­ . quando excede nas satisfações do apetite. como a sinédoque. definida na décima lição como discurso que acena em uma parte o todo. na décima primeira lição: “finja-se insaciável no comprazer ao amante e no multiplicar os passatempos. “pois os mais excelentes na prática fazem uma cópia da teoria”. adentra-se às quatro partes do discurso (ou oração. pois é necessário primeiro expor a certeza. Concorre finalmente também o corpo com o gesto. porém. o orador e a puta querem vencer pela assertividade. arte (para ocultar as falhas da natureza. narração. e formando a contradição de um e outro fazer aparecer a falácia dos argumentos e a falsidade das fraudes. a velha aponta o papel da rufiona a justamente prover a clientela. portanto. Não se confundem aqui sexo e vulgaridade do trato social. que com afável pompa acrescente notável força às formas de persuadir. pois que em tal ordem existem alguns indiscretos. especialmente. com segura esperança de obter todo o seu comprazimento”. usando as maneiras dos gozos. definida em termos comuns mas exemplificada em in- . que aplicada ao caso é assim concebida: “outro ribombo não deve deleitar o ouvido da puta senão aquele dos metais mais sonoros. são apresentados quatro requisitos a serem preenchidos pela candidata à vaga: natureza (beleza e vivacidade). O mesmo ocorre com as demais figuras. quando afirma: “São falaciosos todos os negócios. Dão-se em seguida os meios de despertar os afetos no cliente: “dando a crer que apenas do afeto procedam as carícias. Passada em revista a ordem da argumentação. bem como para não confundi-los. comuns: “a metáfora outra coisa não é senão um transferir as palavras do assunto próprio a lugar impróprio. que reposta para o caso se traduz em “vestimentas do corpo austeras mas lascivas”. qualquer puta com os amantes”. basta observar os dogmas prescritos em obrigação de adquirir benevolência e conciliar o amor”. exemplificada nestes termos: “Requeira portanto uma parte por tudo o que anseia receber”. ou seja (se é que é preciso explicar). e da invenção pode-se destacar a seguinte passagem: “O atrativo dos prazeres supera a avareza. assim eu morro’”. os quais querem deitar raízes onde colocam um pé”. 54 REVISTA BPMA 69 Na lição quinta. e ali onde é mais afagado o amante. confirmação e epílogo. Assim. donde. A décima segunda lição toca na questão da sonoridade da composição. Nesse ponto. E ao epílogo corresponde o gozo final. os abraços e os beijos. Segue o ornamento das palavras e um extrínseco atavio. prove os esforços da força persuasiva delas”. ou ao contrário amplia no todo as partes. O exórdio seria uma “introdução primária.] Até no mostrar pudicos e santos pensamentos avantaje a cortesã os seus argumentos.. adverte-se a puta a “mexer-se gentilmente para mostrar-se vivaz. Também aí são tratados os adornos da puta e da casa/cenário. ou no cruzamento do corpo envolto e concatenado junto”. mas aos gentis-homens reconsidera-se o uso desses e de outros enganos e mentiras. observando-se que as cortesãs de Veneza. tome-se conselho da consciência do bolso. ou nas pernas. e o corpo mortal não se alimenta daquilo que saboreia a alma. de outro. Dos recursos da voz. A fala é explícita e pornográfica: “Invista se puder a puta. Florença e Nápoles surgem como lugar de uso desse costume. mas também ter vantagem sobre elas. conforme prova uma ordinária experiência”. “De dinheiro se mantém o homem. tolo. no caso. não menos natural e necessário”. recomendando as feitas por conta dos Sonetos luxuriosos de Pietro Aretino. especialmente para a velha que a agenciou. com a participação de músicos e castrados “com seus putos”. há uma curiosa nota acerca do recurso a rapazes como prostitutos. essa memória seria “uma artificiosa lembrança dos pontos necessários para a própria eloquência”. a que não cobra. a qual como imortal não estima nenhuma comida”. e não das que “por necessidade ou artifício exercem secretamente essa profissão. argumentando o uso comum de urinar em público. a qual como imortal não estima nenhuma comida” Agruras da ignorância A conclusão da obra. havia contudo recorrido a conchas de sopa (caços. notam o prejuízo que acarreta à profissão ter concorrentes os rapazes. diz respeito à naturalidade da relação sexual. operando artificiosamente a língua e o movimento dos membros”. o texto demonstra de maneira inusitada seu conhecimento prático e teórico acerca do tema abordado. quando a jovem tem sua primeira experiência – algo desastrosa. o libertinismo de Pallavicino chega ao excesso de defender o sexo público. Prometer casamento é dado como ardil muito usado e eficaz. Pallavicino faz o reparo dizendo que estaria “enganado neste axioma” quem não o entendesse “ao inverso. a seu ver. bastando-lhes aprender a não ser enganado. escritos no século XVI. Citando em latim a seguinte fórmula de Aristóteles ( Ética a Nicômaco. com uma infeliz reviravolta. sem se deixar seduzir pela argumentação alheia. porém. seja a libertina. de preferência. e quase que a trabalhar em torno a um mármore se mova com impetuosa violência. em suma. “avisadas para os próprios interesses. tendo assim perdido a virgindade sem o saber. as quais retratavam cenas de sexo explícito. devendo a aspirante observar “apenas de colocar os membros naquela parte do perío­ do no qual farão melhor efeito e se tornarão mais agradáveis ao homem”. A décima quinta e última lição trata mais especificamente da ação. ao definir o “comércio” com o sexo oposto como o modo natural de satisfação sexual­ . Pallavicino retira a necessidade biológica do sexo da esfera ética de vícios e virtudes: “deveríamos atribuir a vergonha também ao comer e beber. creio. e que se tornam naturais. na maneira de gozar no flanco. que jamais havia se deitado com outro homem. já que “seus discursos em conformidade com os costumes são um misto de mentiras e fingimentos”. pois não faço diferença do procurar a saciedade da fome com o alimento frente às satisfações do desejo carnal. Dos gestos. A moça. Daí o uso de quadros e gravuras lascivas em torno do leito. as quais são algumas viúvas ou senhoras casadas”. da velha e da vida. a confissão do autor traz justamente a tese do erro pela ignorância. aparece ao modo dramático. fazendo a isso consentir também o 56 REVISTA BPMA 69 De um lado. Também não se contempla na obra “a . mantém-se limitado. 69 REVISTA BPMA 57 Pallavicino adverte por fim ter feito o retrato da “puta pública e livre”. dispondo em tudo segundo sua largueza ou estreiteza”. A ironia não deixa de expor o drama da situa­ ção. e o corpo mortal não se alimenta daquilo que saboreia a alma. III. A questão da memória aparece na décima quarta lição. boa comida e rica mobília. A virgindade prometida ao cliente não se deu. e a explicação não estava no conhecimento do sexo pela jovem mas na sua ignorância. destaca-se o uso do canto. pouquíssimas – sua misoginia foi apontada por Marchi também no Corriere. comparando-o com um corpo. cazi) para coçar-se. Com isso. donas de palácios e honrado cortejo. Outro ponto que toca ao negócio do prazer diz respeito ao dispêndio a ser administrado: “Em cada semelhante despesa. De resto. completando com o médico Galeno.A décima terceira lição traz considerações gerais sobre o discurso. e em um e no outro sexo dão forma aos gozos humanos”. pela “eloquência corporal. Nesse ponto. de quem cita que “reter o sêmen é veneno” (semen retentum est venenum). exortando-o a usar igualmente de mentiras e ardis para não só se defender. não já àqueles excessos donde alguma pareça enfurecida. Omnis peccans ignorans. Os conselhos passam a ser dados então ao leitor curioso das putas. reafirmando o dito na introdução. Roma. na vida em sociedade –. os quais usurpam delas a propriedade de dar prazeres. O último argumento finaliza a questão em termos práticos: “De dinheiro se mantém o homem. celerado e abundante de qualquer iniquidade. cabe ao leitor ajuizar sobre suas necessidades e seus limites – limites necessários. amante. seja a moralista. isto é. sendo necessária para não se contradizer. sendo porém. puta honrada”. Pallavicino retoma a cena das grandes cortesãs. Apesar disso. que todo ignorante é pecador. No entanto. fato que explicava ainda o mesmo problema acusado em outras moças que do claustro saíam para casar. 2). o que por vezes machuca o amante”. A ignorância. Findadas as lições. trato desse assunto esquematicamente. Tommaso. PALLAVICINO. In: PALLAVICINO. 1984. Ou seja: os modos como os poemas são lidos e interpretados hoje são particulares. Il Corriere Svaligiato. In: Piazza Universale di tutte le professioni del mondo. obra e público são históricas. passou a ser o nome de um homem desregrado. e evidencia que as noções de autor. Parma: Fundazione Pietro Bembo/Ugo Guanda Editore. Giulio Romano e Pietro Arentino. Milano: Longanesi & Co. Ferrante. 58 REVISTA BPMA 69 João Adolfo Hansen* 69 REVISTA BPMA 59 Matos e Guerra” era o nome que classificava poemas de diversos gêneros colecionados em códices manuscritos. 1984. de Pitro Arentino. Veneza: Robeto Meghetti. Armando. “La rete di Ferrante. Parma: Università. 592-602). Aqui. Ferrante. 1605. a partir do século XIX. o le due imposture”. não podendo ser generalizados para todos os tempos. Notícia da poesia colonial chamada “Gregório de Matos e Guerra” GARZONI. A cura di Laura Coci. . A cura di A. Marchi. Nos séculos XVII e XVIII. I Modi: Riemerge de quattro secoli di censura il libro maledetto del Rinascimento cui posero mano Marcantonio Raimondi. 1992. A cura di Lynne Lawner. La retorica delle puttane. principalmente o gênero satírico. que expressa sua psicologia doente em poemas impressos e lidos na forma de antologias e livros.Bibliografia consultada M ARCHI. “Gregório de Créditos das imagens Xilugravuras atribuídas a Agostino Caracci para a primeira edição de Sonetos luxuriosos. “Meretrici” (p. Esse deslocamento da significação do nome – antes classificação do gênero.. depois psicologia do homem – e dos modos de publicação dos poemas – antes códices manuscritos. depois textos impressos – foi e é decisivo na recepção deles. voltou para o Estado do Brasil em 1695. que foi poeta. Maria dos Povos. seu contemporâneo na Universidade. Também é membro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e autor.O homem Gregório de Matos e Guerra nasceu em Salvador da Bahia em 23 de dezembro de 1636. indo para Recife. Los caprichos “Los Duendecitos”. parece que baila Momo às cançonetas de Apolo”. informa que o juiz Gregório emitia sentenças em versos. Em Luanda. Emmanuelis Alvarez Pegas. Angola. tiveram um filho. 2005) e A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII (2 ed. Não se sabe bem por que e como. Ficou viúvo em 1678. Acervo BMA que Gregório teria levado nos engenhos do Recôncavo. recebeu o sobrenome do pai. matriculou-se na cadeira de Instituta (Direito Romano) da Universidade de Coimbra.2 cm. compondo poemas obscenos ao som da música de uma viola de cabaça. Unicamp. é professor titular da mesma instituição. conta o Licenciado Manuel Pereira Rabelo. pela qual recebeu o prêmio Jabuti (1990) na categoria Ensaio. Capitão da Guarda. Matos. acompanhado do poeta português Tomás Pinto Brandão. aos 14 anos. Francisca. casou-se com D. Em Recife. Guerra. e o da mãe. que chamam do Maranhão” como adorno do escritório. Graduou-se em Cânones em 24 de março de 1661. o “Pinto Renascido”. quando os setecentos libongos (palhas valendo cinquenta réis) do soldo foram substituídos por duzentas moedas. Em 1683. entre 1653 e 1660. compondo poemas obscenos ao som da música de uma viola de cabaça” *Nota Biográfica: Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. “Anda aqui um estudante Brasileiro. Botou banca de advogado. onde teria aberto banca de advogado. Nomeado desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia em 24 de março de 1679. letrado baiano do século XVIII. seguindo cursos de Cânones. teria traído soldados sublevados. vingando o pai desonrado em versos obscenos que Gregório teria feito sobre a sodomia do Tucano (o narigudo Antônio Luís) com o Lagarto. não podia manter o voto de abstinência sexual como clérigo tonsurado. 2004). em seus Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae (1682). entre outras obras. declarou Belchior da Cunha Brochado. quando foi exonerado pela Câmara Municipal da cidade baiana. Em 1694. de Solombra ou A sombra que cai sobre o eu (Hedra. Luís Ferreira de Noronha. Há muitas anedotas sobre a vida desregrada que Gregório teria levado nos engenhos do Recôncavo. Atualmente. Foi Procurador da Cidade do Salvador nas Cortes de Lisboa de 1668 a 1674. Em 12 de dezembro de 1652. ano em que se casou com D. foi mandado para Lisboa. Filho de senhor de engenho. 60 RBMA 69 69 RBMA 61 . pediu demissão. Gonçalo. sendo homem. Conta-se que em 1674 teve uma filha. foi amigo do governador Caetano de Mello e Castro. Fala-se que o fez para protegê-lo do filho do ex-governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho (1692-1694). Michaela de Andrade. Água-forte. comparando o vermelho do sangue do corpo de Cristo de “Há muitas anedotas sobre a vida desregrada Francisco Goya.3 x 20. como: “Gaita de foles não quis tanger / Vejam diabos o que foi fazer”. com que decidiu uma causa na qual a família da noiva exigia a devolução do dote porque o noivo não tinha consumado o dever conjugal. teria declarado que. Conta-se que morreu como ímpio. 29. o governador João de Lencastre o degredou para Luanda. que. Fez estudos no Colégio dos Jesuítas e. Ed. como se lê em poema que lhe é atribuído. com suas imagens e seus tropos. Usava “bananas. com Lourença Francisca. tão refinado na sátira. retornou em dezembro de 1682 para “esta peste / do pátrio solar”. vindo de Portugal para matá-lo. ou Direito Canônico. Foi Juiz de Fora em Alcácer do Sal (1663) e Juiz do Cível em Lisboa (1671). Ela o deu apelidando-se da Guerra.Francisco Goya. membro . Com eles. A paráfrase foi repetida pelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagen no seu Florilégio da poesia brasileira. Códice 57. pedindo perdão a Deus pelos pecados. assim como a fome e a peste. deseja a justiça a qualquer preço. versos e estrofes inteiras. atribuindo-os ao nome Gregório de Matos e Guerra. gênero do louvor e da vituperação. mas mazombo. A ficção do retrato é inventada com lugares-comuns de pessoa do gênero demonstrativo. interpretando-os como expressão psicológica de um sujeito desclassificado.3 x 20. A Acervo BMA um crucifixo que lhe deram a beijar com a vermelhidão dos olhos do menino vizinho com sapiranga. Outro afirma: “Sempre veem.. que fazem o personagem excessivo habitar os “extremos da verdade”. / Até que Deus lhes depare. ele o foi sem aquela preposição da. e não é de admirar que. José Veríssimo acusou a falta de originalidade e o plágio em poemas que são emulações ou imitações intencionais de Quevedo e Góngora. de folhas volantes e da boca de pessoas antigas que os sabiam de cor. Em todas as ocasiões. por ser a mesma guerra . Apesar disso – quem sabe justamente por isso – homem pré-nacionalista. Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). “quiçá um 69 RBMA 63 Na primeira metade do século XVIII. substituindo-a pela ideologia nacionalista romântica. significa “Boca da Verdade”: “Ah Bahia! bem puderas / de hoje em diante emendar-te.”. demolida em 1870. o Doutor Gregório de Matos e Guerra” (Vida do Doutor Gregório de Mattos Guerra. seguisse a terceira com tão esquisito gênero de guerra em um homem que de sua Mãe unicamente tomou esse apelido entre outros partos. Com isso.” E. em Recife. vadio e doente. / esta sátira à cidade”. não português. o poeta é causa segunda ou instrumento de Deus para castigar a corrupção da Bahia com a sátira: “. o Licenciado Manuel Pereira Rabelo compilou poemas que circulavam na Bahia na oralidade e em folhas avulsas. são instrumentos da Providência Divina. suprimiu a interpretação providencialista da sátira. seu apelido. satíricos. Ou seja: interpretou como realidade­ da psicologia do homem o que no retrato é a ficção do caráter de um personagem. Sílvio Romero retomou Varnhagen e Barbosa. “Contra el bien general”.2 cm. / pois em ti assiste a causa / de Deus assim castigar-te”. propondo que Gregório foi “brasileiro”: não índio. aristotelicamente vicioso: “(. jocosos. como o Cônego Barbosa. de 1870. “Boca do Inferno”.. lírico-amorosos. publicou no número nove da Revista do Instituto uma paráfrase do seu retrato de Gregório de Matos e dois poemas graciosos atribuídos ao poeta. Pelo Lecenciado Manuel Pereira Rabello. No final do século XIX. além de um poemeto épico celebratório de Dionísio d’Ávila Vareiro. “Vida e Morte do Excelente Poeta Lírico. os poemas atribuídos ao nome do personagem Gregório passaram a ser lidos como expressão da psicologia do homem Gregório. que a entendia aristotelicamente como correção de abusos. em 26 de novembro de 1696. Na ficção de Rabelo. De todo modo. quando o Cônego Januário da Cunha Barbosa. Rabelo recorre a um lugar-comum para afirmar que recolheu os poemas. que atribuiu ao homem Gregório de Matos. a “natural impertinência” e a “escandalosa virtude”. “Não deixaremos uma linha de reticências por cada verso omitido por não nos expormos a ver alguma vez uma página só de pontinhos. não negro.. do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Conta-se que morreu cristãmente. disparadas do trono da divina Justiça aquelas duas lanças de sua ira.) seguindo os ditames de sua natural impertinência habitava os extremos da verdade com escandalosa virtude”.. Los caprichos. porque é “inimigo acérrimo de toda hipocrisia”. Cofre 50. a ficção biográfica de ­ abelo foi lida como documento da vida R empírica do homem. seguindo o costume de letrados europeus que compilavam poemas em códices manuscritos. foi enterrado na capela do Hospício de Nossa Senhora da Penha. o Cônego Barbosa interpretou a ficção do retrato como documento da vida empírica do homem. diz o personagem satírico em poema que interpreta providencialmente a “bicha”. No retrato. capaz de ridicularizar as pretensões separatistas das três raças formadoras da Nacionalidade. afirmando que seu autor tinha sido “homem nervoso”. Rabelo ficou esquecido até 1840. convencionando signos gráficos com que eliminou palavras. intitulando-os com o nome de um autor que classificava o gênero ou os gêneros deles. crítico da dominação metropolitana.Água-forte. Varnhagen­ publicou vários poemas. Rabelo compõe seu personagem como homem infame que é excelente poeta. evidencia que. burlescos e fesceninos. Romântico. Desde o século XIX. arauto do Nacional. “O músico castigado” e “O livreiro glutão”.. Seu nome. já “destruncados pelo tempo”. exterminador de bandidos paulistas que assolavam Boipeba.. 29. “filho do país”. a epidemia de febre amarela de 1686. de 1850.­ 62 RBMA 69 que é um gênero ficcional. Em sua História da literatura brasileira. Varnhagen também deu início à censura da poesia atribuída a esse tarado. Guerra. Usando lugares-comuns extraídos dos poemas. Rabelo escreveu um retrato biográfico. São lírico-religiosos. e sempre falam. / quem lhes faça de justiça. típica do antigo Estado português. O excesso do seu desejo de justiça o faz irracional. Camamu e Porto Seguro. Boca da Verdade. Não tão completas. No álbum Transa. tarado. não há nem pode haver interpretações verdadeiras dessa poesia. Há outras recepções. Em 1968.. Eliot. Boca da Verdade. Crônica do viver baiano seiscentista. 29. Garcia Lorca e Octavio Paz. Em 1946. concretistas de São Paulo afirmaram a novidade de procedimentos técnicos. rebeldes. Agentes da ditadura militar declararam Gregório de Matos “subversivo. indecente tocador de viola. Citando o lema do poeta Ezra Pound “make it new” (“faça-o novo”) e outras autoridades poéticas. de 1972.. poeta causa segunda escolástica. com a obra O sequestro do Barroco. Góngora e Sor Juana Inés de La Cruz. quando universalizam para todos os tempos a particularidade datada dos seus critérios de definição de autoria. vanguarda do proletariado colonial – os especialistas não têm documentação suficiente para dizer se leninista. homem vadio. Outro. doente.3 x 20. quando velho. Em 1893. indecente tocador de viola. libertárias e revolucionárias. Haroldo de Campos criticou o nacionalismo do romantismo formativo de Candido e defendeu. A ideologia determinista de Araripe Júnior afirma que o Trópico amoleceu as conexões cerebrais do baiano. as interpretações realizadas a partir do Cônego Januário da Cunha Barbosa desistoricizam o passado e o presente em que são feitas. o entorpecimento da razão causado pelo clima tropical. “La filiacion” (detalhe). “Fauno de Coimbra”. Essa interpretação fez e faz fortuna até agora. sentenciou que Gregório tinha sido um “parasita vitalício”. neoneovanguardista e pós-moderno. o crítico carioca Sylvio Júlio repetiu Veríssimo. E a ficção é irredutível a qualquer regime de verdade. da Academia Brasileira de Letras. canalha genial. as interpretações sempre produzem novos valores de uso. Poemas que atacam a estupidez prepotente de autoridades do século XVII foram usados na resistência contra a ditadura de 64. homem vadio. plagiário. nacionalista. após estudarem dezessete códices. Evidentemente. Em 1989. Segismundo Spina o chamou de “Homero do lundu” em seu Gregório de Matos. moderno. pessimista. de sequestrar Gregório de Matos e o Barroco do cânone literário brasileiro.)” Até agora. ressentido. Interpretadas como libertinas. como ocorreu na época da ditadura militar de 1964. canalha genial (. Afirmando que o poeta e o Barroco são fundamentais para o cânone literário constituído do ponto de vista do “presente de produção” da vanguarda. Haroldo de Campos acusou Formação da literatura brasileira (1959). o leitor viu que Gregório de Matos foi e é plural: homem infame de humor sanguíneo excessivo. parasita vitalício. que revalorizaram poetas do século XVII. em sete volumes). anticlerical e pornógrafo” e confiscaram mil coleções para queimá-las em praça pública. plagiário. O sátiro obnubilado expressa sua psicopatologia obscenamente com o ressentimento e o pessimismo do mazombo de origem fidalga que assiste à ascensão social dos tratantes burgueses enquanto a fidalguia velha decai. foi rotina aplicar às sátiras as formulações sobre o riso e a paródia na cultura popular medieval do teórico da literatura Mikhail Bakhtin. Los caprichos. stalinista ou trotskista –. pessimista. de Antonio Candido. tropicalista. algumas até muito mais originais. Araripe Júnior publicou o livro Gregório de Matos. instrumento da Providência Divina. Evidentemente. doente. Afrânio Peixoto. obra e público. Gregório foi “sátiro do mulatame”. nacionalista. parasita vitalício.Francisco Goya. obnubilado. obnubilado. James Amado e Maria da Conceição Paranhos publicaram o Códice Rabelo pela Editora Janaína. O que se pode dizer é que. dado como primeiro antropófago cultural brasileiro ou primeiro autor brasileiro de malandragens dialéticas. versos e metáforas de Gregório de Matos no “presente de produção” da sua vanguarda de longa duração. tarado. paradigma da cultura baiana multietnicopolicultural. boê­ mio e quase louco na Bahia. Na universidade. Na década de 1930. “(. Em 1923. classificando o homem e a poesia atribuída a ele como espécimes da “obnubilação”. a maioria deles da Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.. expurgam muitíssimos 64 RBMA 69 poemas satíricos obscenos denunciados como de mau e péssimo gosto. Suas sinapses relapsas causaram sua relaxação sexual e moral expressa na sátira. editou Obras completas de Gregório de Matos.) Boca do Inferno. A interferência de um político impediu o fogo. A poesia é ficção. como T. transgressoras. a brasilidade de Gregório. Caetano Veloso musicou o soneto “Triste Bahia. anárquicas. Acervo BMA nevrótico”. Boca do Inferno. Agrippino Grieco. foram entendidas como expressão risonha da voz dos dominados coloniais contra a seriedade da classe dominante local e metropolitana. afirmando que os poemas do “indecente tocador de viola” eram plágios. de Salvador (Obras completas de Gregório de Matos e Guerra. 69 RBMA 65 . ressentido.. com nacionalismo. ó quão dessemelhante” como alegoria do Brasil de Médici. O caso Gregório de Matos. quando jovem. Água-forte. antropófago cultural. S.2 cm. como Donne. inclusive valores críticos que a poesia não previa no século XVII. maledicência. Dom Antônia. Aristotelicamente definido. Los desastres de la guerra. mas não quero falar delas. e sua arma são as torpezas agressivas de gênero baixo. Ele é um ator complexo. Critica textualis in caelum revocata? Prolegômenos para uma edição crítica do corpus poético colonial seiscentista e setecentista atribuído a Gregório de Matos e Guerra. deve se apresentar publicamente como 66 RBMA 69 29. propõem os bons usos do costume que os corrigem. Assim. racional. com plectro esguio / Cantar ao mundo teu rico feitio. inferiores e desiguais. a falta de controle não é decorrência da psicologia de um homem doente supostamente expresso nela. como excessos para menos. Assim. / Seja pobre. “Zombando”: a maledicência obscena adequada para tratar da deformidade que não faz rir. Pedralves. fidalgo com foros falsos chegado a Salvador em 1692. e da alma. ao mesmo tempo. Uma sátira a Pedralves da Neiva. governador: “Oh não te espantes não. os poetas do século XVII aplicavam o estilo baixo das misturas deformadas de seus dois subgêneros aristotélicos: guelóion. ridículo. ou seja. Francisco Goya. Quando canta as coisas baixas. o rei. aristotelicamente. o satírico repete o sentido legal das normas. muçulmana.3 x 20. XX e XXI não tem interesse pela particularidade histórica dessa poesia como prática simbólica de uma colônia do antigo Estado português. não fidalga. Campinas/São Paulo: Ed. religião católica oposta a heresia luterana.) Ambos os preceitos. são metáforas de princípios hierárquicos da “política católica” da monarquia portuguesa. os poemas funcionam como teatro corporativista em que se representa a hierarquia: encenam os vícios como abusos que a corrompem e. não católica. / e se contentem com a sorte. judaica. 2004. Um preceito estoico. suas funções fisiológicas e seus excretos são aplicados nos poemas como metáforas da condição social não branca. “rindo”: o ridículo correspondente à deformação que faz rir sem dor. O feio é desproporção sem unidade e. pois também irracional. maquiavélica. sexo segundo o Direito Canônico oposto a sexo contra a natureza etc. vícios e viciosos são extremos para mais e para menos de um ponto médio equivalente à virtude unitária. benvindo / E crede-me meu amigo / Que tudo o que aqui vos digo / Ora é zombando. os poemas não pressupunham nenhuma autonomia crítica dos seus autores e de seus públicos. João Adolfo. ou seja rico. Segundo Aristóteles. Acervo BMA 69 RBMA 67 . a matéria do cômico é a feiura – do corpo. traduzido latinamente por maledicentia. 2011. na Bahia do século XVII. ora rindo”. Água-forte. Todos reproduzem aquilo que cada membro desse corpo político já é.2 cm. Referências Bibliográficas: A Sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século 2 ed. determina. Preenchendo os lugares­ -comuns cômicos com referências extraídas dos discursos da Bahia. Para resumir. Quando reiteram o “cada macaco no seu galho”. simultaneamente. mas causa dor e horror. (Nas interpretações romântico-positivistas que desde o século XIX psicologizam o artifício da ficção poética. a obscenidade é política: os nomes das partes baixas do corpo. além da idolatria de índios e africanos. porque é a feiura dos vícios fortes caracterizados pelos excessos para mais. determinam que o personagem satírico seja composto como tipo dramático que fala com informalidade correspondente à falta de controle da sua cólera. vícios e enganos”. que inventa a irracionalidade da cólera do personagem fora de si com técnicas muito racionalmente regradas. Marcello. as virtudes produtoras dos vícios são as institucionais: brancura da pele oposta a “raças infectas” de não brancos. Age para restabelecer a ordem natural das coisas. igualmente antigo. / que têm. revista.afirmando as metempsicoses de Gregório. mas do ato de fingir do poeta. Todos eles definem a sociedade baiana como “corpo místico” de vontades subordinadas à cabeça mandante. / Que se atreva a Bahia / Com oprimida voz. Citadas poeticamente. tipo virtuoso e indignado com a corrupção de sua pátria. HANSEN. como a sátira é arte. não discreta. conforme se lê numa pequena nota que Aristóteles escreve na Poética. Obviamente. como acontece nas sociedades de classes contemporâneas. e determinam. traduzido em latim por ridiculum. digamos que a maioria das interpretações feitas nos séculos XIX. o satírico é um louco. não livre de tipos classificados como naturalmente feios. como se pode ler em Sêneca. tão estúpido e malvado como os viciosos. como deformidade e desproporção. no caso. diz: “Sejais. liberdade e ócio senhoriais opostos a escravidão e trabalho mecânico. “Farandula de charlatanes” (detalhe). reconhecendo e devendo reconhecer sua posição subordinada: “Desejo. a sátira era praticada como subgênero poético do cômico. e psógos. O exame dos códices manuscritos e dos preceitos retóricos e teológico-políticos que modelam a poesia neles publicada evidencia que. quando o representavam. pois é a feiura dos vícios fracos caracterizados pela falta. o aristotélico e o estoico. discrição cortesã oposta a vulgaridade plebeia. como estupidez e maldade. esse preceito estoico aparece reformulado como expressão do ressentimento e pessimismo do homem Gregório. Na sociedade colonial. é sempre a instituição que produz a perversão. Como nas liras contra Antônio de Sousa de Meneses. invocando-as metaforicamente para interpretar e castigar vícios e abusos que figura no poema. MOREIRA. São Paulo: Edusp. bela e honesta defendida pelo personagem satírico para a manutenção da hierarquia. que deve ser e permanecer sendo o que já é. Unicamp/Hedra. e estão possuindo”. / Que é já velho em Poetas elegantes / O cair em torpezas semelhantes”. Como talvez se saiba. XVII. calvinista. que a indignação também é indigna. o personagem satírico cita poeticamente as normas sociais do seu tempo. Numerosos poemas evidenciam a convenção: “Eu sou aquele que os passados anos / cantei na minha lira maldizente / torpezas do Brasil. que todos amem. Sempre irracionais e sem unidade. Logo. ficcionalmente. todos os seus destinatários também são incluídos na totalidade do “corpo místico” como membros subordinados que testemunham a representação satírica. como Bocage. Nota Biográfica: Carlos Pittella-Leite é poeta. Contudo. ocupa o estreito pódio dos maiores sonetistas da língua portuguesa. temporariamente escondidos por mãos hesitantes. recebeu uma bolsa da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). em complexas biografias cheias de luz e sombra – ainda que mudem de nome. ainda que sejam canonizados. a fim de realizar uma investigação dos sonetos inéditos de Pessoa. trabalho que inspirou este artigo. autor de Civilizações volume dois (Palimage. São Francisco de Assis. com seus fluidos e excreções. segundo a mestra Cleonice Berardinelli. 2005). considerou-se apenas o Drummond modernista de Sentimento do mundo. a acentuação dos ditongos em palavras paroxítonas e o uso da trema foram mantidos. § Por décadas. O caso é que esses dois Pessoas são o mesmo Fernando. “Soneto CCL”. alguns apenas permanecem latentes. e não se sabe de ninguém que tenha sido mais pessoas que Pessoa. que. Saulo/Paulo representam tanto o sagrado quanto o profano. incluindo célebres sonetos pornográficos. embora comece pela palavra “alma”. Nota do Editor: A pedido do autor. § Decerto não se trata de um fenômeno exclusivo das Literaturas Portuguesa e Brasileira. § É nesse sentido que há Fernando Pessoa. crê na eternidade!” 1 § Decerto versos são e serão rasgados. súbito ressurgem para macular as reputações mais consagradas com as nódoas da realidade. não explora uma temática transcendental. um dia. Os dois foram um só Bocage. pesquisador e educador. autor do soneto “Alma de côrno”. visto que a alma é “de côrno” (bem como o “espírito de porco” não é uma entidade espiritual). tão perfeccionista quanto inovador. junto a Camões e Antero. EUA. personalidades como Santo Agostinho. e há Fernando Pessoa. em Chicago. acabando esquecidos ou extraviados – até que. Há o outro Bocage. a realidade do mundo da matéria. rasgados.“Alma de Côrno” e Outros Espíritos Malditos em Pessoa Carlos Pittella-Leite I. ou ainda que.. Eis que. Mesmo em tradições religiosas. um poeta tão duro quanto arguto.. de uma tese de doutorado sobre os sonetos de Pessoa (PUC-Rio. 69 RBMA 69 . consagrado entre os maiores poetas brasileiros. um universo: uno e diverso. um belo dia. dos poemas eróticos. 1 Bocage. Sagrado & Profano Há o Bocage que. de poemas e piadas de baixíssimo calão. Em 2012. o maior poeta espiritual da língua portuguesa.. postumamente se descobre o Drummond de O amor natural. Ambos foram Carlos Drummond de Andrade. ou queimados por autoridades. Mesmo que versos sejam riscados. 2012) e professor titular do instituto Global Citizenship Experience. nem mesmo as mais severas inquisições logram obliterar todos os versos profanos. urjam num escrito derradeiro: “Rasga meus versos. francês e português. guampudo”. com rara paciência caligráfica. Nada. Helder Macedo. ou a tradição inglesa (três quartetos e um dístico). Nesse sentido. com estrofes seguindo ou a tradição italiana. O primeiro caso careceria de uma pesquisa biográfica (quem poderia ter presenteado o soneto a Pessoa?). Quér faças bem ou mal. Contudo. cinco sonetos inéditos de Fernando Pessoa em português – entre eles o poema “Alma de côrno”. companheiro ou namorado). ou de quem Pessoa tivesse copiado. “co-moIs-so”. palavra duplamente acentuada no soneto (pelo acento agudo e pela rima). Entre as dezenas de milhares de textos pessoanos. ainda no primeiro verso: “Alma de côrno – isto é. simbolizada por Petrarca (dois quartetos e dois tercetos). pois há pelo menos um soneto jocoso limpidamente copiado pelo poeta num caderno: “Fanfarunfias. 70 RBMA 69 69 RBMA 71 . a assinatura. profes2 F. O próprio poeta busca explicar-se. ele força o leitor a fundir a segunda sílaba de “co-mo” com a primeira de “is-so”. Idéas e intenções taes que o diabo As recusou a ter a seu serviço – Ó lama feita vida! ó trampa em viço! Se é p’ra ti todo o insulto cheira a gabo – Ó do Hindustão da sordidez nababo! Universal e essencial enguiço! De ti se suja a imaginação Ao querer descrever-te em verso. Cara que nem servia para rabo. Alma & Côrno No espólio número 3 (e3) da Biblioteca Nacional de Portugal (bnp). De fato. mas também o desenvolvimento de versos que culminam noutra comparação. escritos recorrentemente em inglês. porém. É este o texto que a muitos surpreendeu. 6 du7 -ra 8 co9 -mo_is 10 -so. trata-se de uma alma tão dura quanto um corno. seria estranhíssimo assinar versos doutrem… com uma rubrica! Decerto a assinatura parece uma rubrica: seria ela “fp”. Logo. Paú & Nabos Para os decifradores das letras (freqüentemente hieroglíficas) de Pessoa. então. Dos sonetos em português espalhados por vários envelopes do espólio. de uma pesquisa bibliográfica (que poetas Pessoa poderia ter copiado?). A essa altura. se o texto é bastante legível. colaborei com o Prof. um chifre. Jerónimo Pizarro para publicar. analisei a curiosa assinatura do poema: III. há muitos sonetos. ao encontrá-lo no espólio da bnp. consta no Diccionario Bibliographico Portuguez. Tu fazes sempre mal. cornudo. feita com o mais breve palavrão da língua portuguesa: “cú”. Perguntei. conhecedor de antologias maledicentes. A definição de “alma de côrno”. Al- -ma 2 de 3 côr4 -no–is5 -to_é. o segundo. há algo que imediatamente chama a atenção ao ler o manuscrito de “Alma de côrno” – algo além do peculiar vocabulário do poema. a caligrafia deste poema é bastante legível. na primeira edição da revista Granta. cornaça.. de marido. uma alma de “côrno” seria aquela de alguém traído. como sugerem tanto a metáfora. pouquíssimos estão ainda por publicar. porém. Transcrevo-o a seguir. visto que a exploração da poesia em língua portuguesa de Pessoa foi muito mais intensa do que as de língua inglesa ou francesa. a alguns chocou. comparei a assinatura com a caligrafia de sonetos em que a atribuição a Pessoa é indiscutível. excluindo-se os papéis ainda em mãos de herdeiros do poeta.2 Voltando ao soneto “Alma de côrno”. em Lisboa. portanto. No entanto. já não utilizadas no português atual). Busquei o poema em edições de poesia de escárnio e maldizer. encarnada por Shakespeare. hyper-sabujo. dura como isso. uma alma verdadeiramente rígida. entre as acepções de “côrno”. talvez não seja tão simples. busquei outros manuscritos pessoanos em papel. bagatelas” (cota 153-6r na bnp). dos tão filosóficos 35 Sonnets. ter sido escrito pelas mãos do mesmo autor dos poemas místicos de Mensagem. à primeira leitura. O segundo caso (Pessoa ter copiado o poema) não seria o único. folheei obras de Gregório de Matos. supostamente traduziu a Arte Poética de Horácio e travou um duelo poético com o autor brasileiro Silva Alvarenga (1749-1814) quando este era estudante em Coimbra. ocorreu-me uma idéia: ora. em bom (ou mau) português. Ao contrário do que ocorre com os sonetos inéditos de Pessoa. tal como publicado na Granta. onde lecionou Retórica. em Coimbra. contemplei a assinatura do soneto “Nova Ilusão” (cota 35-28). ou de alguém cuja essência estaria traída. farofas. a caligrafia de “Alma de côrno” é tão mais legível se comparada aos outros poemas inéditos que. gerando uma superacentuação. -- Alma de côrno – isto é. Cleonice Berardinelli. brutal. Tu Fazes dôr de barriga á inspiração. a definição número 16: “que ou aquele que é traído pela mulher (diz-se esp.II. sem sucesso. Em princípios de 2013. mestra em Pessoa e minha orientadora. a forma mais popular da poesia lírica – em que o poema se organiza em catorze versos. Antes de passar à pesquisa biográfica. mas sim de alguém que o tivesse presenteado ao poeta. Topa. És como um cú. em Portugal. à Profa. dura como isso”. o xingamento “côrno” aplica-se às mais diversas ocasiões. encontra-se a maior parte dos manuscritos de Fernando Pessoa. Que ainda que esteja limpo é sempre sujo! 1 Não é só a abertura do soneto com a expressão “Alma de côrno” que causa espanto. tendo nascido em 1743. Veja-se a escansão do verso: Empreguei softwares como Photoshop e fotos em alta resolução. Cleonice e eu perguntamos ao Prof. iniciais de F[ernando] P[essoa]? Prossegui buscando rubricas similares. pareceu-me inicialmente indecifrável – como se o autor não se quisesse dar a conhecer. quanto a acentuação métrica do verso: decassílabo. Como poderia um soneto tão chulo. sem encontrar mais “fp”s. o que torna surpreendente ele ter permanecido inédito até 2013. e que forneceu o tema deste ensaio. parece até uma personagem pessoana! Este Isidoro. Silva Alvarenga. tinta e datações similares. das clássicas Odes de Ricardo Reis? Seria mesmo Pessoa o autor deste soneto? sor de Retórica que. à primeira vista. O que seria uma “Alma de côrno”? O Dicionário Houaiss da língua portuguesa inclui. imediatamente pensei que não se tratasse de um texto de Fernando Pessoa. Bocage e outros poetas malditos. na qual o segundo “o” torna-se a semivogal “u” num ditongo crescente: “co-muÍs-so”. no clímax do poema. de relações amorosas a brigas cotidianas.. datável de 1910 e assinado com letra ilegível. poema anônimo dirigido a um tal António Isidoro dos Santos. seguindo a ortografia do poeta no manuscrito de cota e3 36-10 na bnp (notem-se as crases invertidas. mas sim pelo doutor Pancrácio. iniciais de Fernando Pessoa. que passou a simbolizar uma provocação à imagem que construímos de Fernando Pessoa. Sem encontrar assinaturas de Paú. Paú. mais experiente. imagino se alguém ainda encontrará o soneto “Alma de côrno” numa antologia desconhecida de sonetos satíricos. exclamando que atribuímos o soneto erroneamente. que Camões tomou emprestado de Petrarca. Gaudêncio Nabos. humorista anglo-português. Antes que o leitor veja o dr. creio que meu desconforto tenha uma razão psicológica mais provável: minha expectativa de versos elegantes foi destruída ao admitir que o soneto “Alma de côrno” era de Pessoa. Nabos. Às vezes. à direita). Fernando Pessoa foi um universo de sensações. Trata-se do soneto “Liberty”. e em contextos em que a atribuição deveria ser mesmo feita ao Fernando Pessoa ortônimo. portanto. Paú estaria a entregar. portanto. caso seu patrão Gaudêncio Nabos viesse a recebê-lo e decifrá-lo. aqui africana. 18-115v e 1142-69 – além de textos assinados “fpessoa” (como o 92f-84v. Ora. Pancrácio como um modelo de erudição. se não com o mesmo requinte poético. Enquanto Search encarnava o papel de correspondente da África do Sul. da ilusão e da alma já surgem. & Eureka! A rubrica de “Alma de côrno” parece mesmo ser “fp”. Três exemplos disso são os testemunhos de cota 133b-32r (fac-similado ao lado. Pizarro. como todos nós. Palrador. o destinatário de um soneto em inglês assinado por Alexander Search. feitas sob medida para irritar o destinatário da maliciosa mensagem”. então. minha certeza não é total: há sempre uma dúvida em minha nada cega fé. pois foi a Gaudêncio Nabos que Pessoa delegou sua direção literária em 1905. teria. fp.”. Transcrevo. O dr. mais importante se torna este mero soneto chulo. Pancrácio tem outro soneto sobre a alma. a informar o diretor literário com uma carta-soneto. = Combinando as iniciais retiradas da assinatura de “Nova Ilusão”.. nele. dear mother of Fame!”. mais especificamente sobre a teoria da transmigração – que fornece o título do poema (“Metempsicose”) e ecoa o “Transforma-se o amador na cousa amada”. em que as duas consoantes iniciais constituem mais um exemplo de “fp”. Jerónimo Pizarro me indicou uma série de manuscritos pessoanos contendo assinaturas “fp” análogas à do poema “Alma de côrno”. datado de 5 de julho de 1902. IV. até a incredulidade total de “este poema não é de Pessoa. decidi incluir o soneto em minha tese de doutorado.. Pancrácio & Coelho O primeiro soneto de Fernando não foi assinado por Pessoa. a seguir. Paú é mero figurante. tais sensações ganharam corpo e voz e poesias. com reclamações que foram desde o questionamento “por que editar um poema que diminui o legado de Pessoa?”. passando por ataques ético-chauvinistas tais como: “os brasileiros (nacionalidade em que me incluo) são os reis do apócrifo e. ou de Francisco Paú! Dentre a miríade de personagens do universo pessoano. quanto a indicação da cota sob a qual o poema pode ser encontrado na bnp. uma seção humorística seria labor apropriado para o autor dos versos de “Alma de côrno”. decidimos publicar o poema. datado também de 1905. tão sagradas quanto profanas — o que nos fornece a oportunidade de resgatar outras profanidades cometidas por esse ser de tantas almas. 72 RBMA 69 69 RBMA 73 .. houve controvérsias públicas em redes sociais. como um bilhete de assinatura misteriosa. O Dr. Segue abaixo a assinatura de “Nova Ilusão”. um soneto que certamente implicaria sua demissão imediata do jornal.Eis o plano: compor uma rubrica a partir dessas iniciais e observar se este forjado “fp” não seria similar à hipotética rubrica do poema “Alma de côrno”. este poema talvez tenha sido falsificado” – embora a edição da revista Granta incluísse tanto o fac-símile do original. justapus o resultado à assinatura de 
“Alma de côrno”: Foi também o Prof. sacred Liberty. já tinha aprendido a lição fundamental do labirinto pessoano: não ter expectativas. Embora isso seja possível. Imagine-se. O Prof. como acabo de confessar. Pizarro prosseguiu. lembremos que ele também assina dois outros sonetos. levantando a hipótese da dupla-atribuição a Francisco Paú e/ou Fernando Pessoa. correndo o risco de passar despercebido. por duas personagens distintas de Pessoa. Se fp pode ser “Francisco Paú” ou “Fernando Pessoa”. o Prof. mas satisfeito com a pesquisa. dois sonetos feitos em sua “homenagem”. O Prof. pois Pessoa não será pessoa acabada até ajuntarmos todas as peças do quebra-cabeça. texto em que os temas do sonho. acolá portuguesa. incluído na “Nova Serie” do jornalzinho O Palrador (cota 87-25v). Ele dirigia a seção humorística de O Palrador. e mais necessário se faz lembrar que. Gaudêncio Nabos também pode ser “gn”. Um ano depois. com a diferença poética de que. em hipótese alguma!”. um jornalzinho inventado pelo poeta quando jovem. sem hesitar: “É uma provocação a Gaudêncio Nabos. Mesmo assim. note as preciosas rimas em '-abo'. Trata-se de “Sonho”. jornalista e diretor literário de O Palrador.n. quando o poeta tinha ainda 13 anos. Jerónimo Pizarro quem exclamou “Gaudêncio Nabos!” quando sugeri o soneto “Alma de côrno” para a antologia da revista Granta: eis que outra personagem adentra o drama de um soneto. despida de tudo além das iniciais. “to g.. certamente com a mesma intensidade que marcará a lírica pessoana. Entre as minhas incertezas e as exclamações do Prof. Pizarro. que principia pelo verso “Oh. a reação do público a este soneto: em meio a exclamações. à esquerda). Seguimos todas as pistas encontradas. cada um deles ridicularizando a imagem da mulher. sem descobrir informações conflitantes que justificariam atribuir o poema a outro autor. um desses poemas de Pancrácio. Quanto mais acirradas as reações. E a relação também se fundamenta no jornalzinho O Palrador. como atestam os excertos abaixo:3 Ah. Mas quando ri (louvado seja Deus) Parece estar tocando um fungágá!!… Com apenas quatro sonetos. por que seria surpreendente que ridicularizasse uma de suas criações heteronímicas? Seria. chegando a concluir seu soneto “Regresso ao Lar” com “E berdamerda para o que saberei” – fecho que não pode ser tachado de pueril. etimologicamente. e a gente ordinária e suja. Transcrevo o poema de 1905 (cota 50b1-36v). aos seus encantos seja cego. último ano de vida do poeta. De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo. Já em seu longo “Ultimatum” sensacionista (meio em verso. leitor. pois. Campos & Bebé Galeria Africana – 1. Pancrácio ridiculariza sua musa. Campos se dedica a chocar toda e qualquer moralidade. va. Ninguém tem nada com isso. com sugestões do prof.. Eu sem dar por isso pá Tomei horror ao traiçoeiro bocado E ao lettreiro que vi posto “Ha Coelho. dar pulos. ofender. Mulher Universal O seu rosto repleto de meiguice Inda contém os rastos de bexiga. Juro.” Este do Curso. Pessoa ataca Adolfo Coelho (um dos seus ex-professores) com as mesmas armas semânticas que fp empunhou contra Nabos – empregando trocadilhos para difamar o ex-mestre. Há outro dado que faz Pancrácio ganhar importância: uma lista dos funcionários de O Palrador (no caderno 144r-1). Que é bonita. a idéia de que a toda-poderosa poesia pode abordar quaisquer temas. Campos escorraça a imprensa portuguesa. em Poemas de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa. eu não te nego.. Se Pessoa foi capaz de ridicularizar mestres e musas. zurrar. Porque eu. tão elaborados que são. Berardinelli op. Em dois poemas. Leitor.. Álvaro de Campos é desbocadíssimo. seguindo majoritariamente a leitura de Prista. tanto em poemas breves quanto em textos monumentais. Dos franceses costumes é amiga. torturai-me para me curardes! Minha carne — fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam Antes de caírem sobre as cabeças e os ombros! Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam! Minha imaginação o corpo das mulheres que violais! (…) Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda Pra toda a vida como a nossa.7 Nesses meros sete versos. na mera adolescência do poeta. E quer que assim como ela tudo siga Das lindas gaditanas a doidice. 50% profano. talvez. 5 "Ode Marítima".. visto que data de 1935. Ante seus olhos seja forte – adeus! – Se cede à fala que ela tem di lá. 7 Apud C. Ora porra! Então a imprensa portuguesa é que é a imprensa portuguesa? Então é esta merda que temos que beber com os olhos? Filhos da puta! Não. por minha vontade de me consubstanciar com Deus.. porém.V. de saltar. que não é nada disto!5 Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho! O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim! (…) Meto esporas! Sinto as esporas. seu ápice. Posso ser tudo. Não ha melhor talvez. que parece sempre a mesma. as estatísticas de Pancrácio são simples: 50% sagrado. ou qualquer coisa. Quer que eu guarde segredo e que não diga O que eu a todos digo e sempre disse: – É alourada como esbelta “miss”. pinotes. ou posso ser nada. Que emprega palavrões como palavras usuais. fp (Fernando Pessoa ou Francisco Paú) escracha seu diretor literário Gaudêncio Nabos (gn). 4 “Ode Triunfal”. Coelho. Loucura furiosa! Vontade de ganir. Pizarro. De me [] De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam(…). E deu. e não apenas os agradáveis ou filosofais. Coelho. 6 "Saudação a Walt Thitman". gritos com o corpo... temos já. Disse comigo). que esclarece: “Director da Secção Humorística: Francisco Paú (Dr. nem mesmo assado É uma coisa que no gôto dá. de fato. estou desenganado E tenho ainda mais horror ao A.4 Ah. datados de 1905 e 1914 pelo pesquisador Luís Prista. 69 RBMA 75 74 RBMA 69 . disse eu *animado Será (que é horror) bem mais delicado Mas d’engulir é [] má Bi-illudido.. xinga a todos os representantes da cultura e política coetâneas – ainda que muitos desses xingamentos demandem estudos profundos para ser compreendidos. De me meter adiante do giro do chicote que vai bater. De urrar. no universo poético de Álvaro de Campos que o atrevimento pessoano atingiria. Considerando que. Pancrácio é o “Todo Poderoso” (Pan + Kratos). ha [] creado (Bicho tão manso deve ser bom. Conforme me der na gana. que nem há puta que os parisse. cit. não sei porque peccado M’engasguei. Berardinelli. Cujos filhos roubam às portas das mercearias E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o! — Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada. ou vice-versa. sou o próprio cavalo em que monto. como se Pancrácio fosse pseudônimo de Paú. “Traga-m’o guisado.6 Álvaro de Campos sabe. fp não é o único a xingar. Pancrácio)”. 3 Os excertos foram transcritos por C. Em sua juventude poética. meio em prosa). imperialista das sucatas. Por que. a segunda é a de eu ter descoberto aqui em casa um vinho do Porto esplêndido. Seria. vem para o pé do Nininho (. 1930". como se fossem demônios a exorcizar em sua poesia. em que o superlativo Campos irrompe embriagadamente. evidentemente. Pessoa . Tenha a certeza. Vocemecê inda me agarra aqui. que na segunda estrofe leu “tez & mês” em vez de “teza & meza” – como me apontou o Prof. com que tu não tens nada. criativíssimas. que é na arte de fingir. 76 RBMA 69 10 F. 9 F.) «Corpinho de tentação» te chamei eu. Soneto Positivo (17-8-10) [cota 37-22] Infandum.. há cartas belíssimas. que é directo e bestial – se revela. É interessante indagar o quanto nós. Epicuro de pharmacopeia homeopathica. Como esses elementos. em Portugal Futurista. e a pena passar por ele muito depressa. Pessoa. falsificada! Fora tu. Estou pensando nas saudades que tenho do meu tempo da caça aos pombos. eliminá-los pelo processo simples de os exprimir intensamente. O poeta abraçou o profano e o vulgar na obra de suas personagens. cujo lema era “sentir tudo de todas as maneiras”. ou talvez editar poemas como seu “Soneto Positivo” com as menos obscenas opções de leitura. epico para Majuba e Colenso. ainda que contra a sua vontade.. lamparineiro das particulas alheias. Pessoa capaz de assinar com o próprio nome textos que ferissem a moralidade da época? Certamente assinou-o ao publi car. por não ter beijinhos há tanto tempo. 8 "Ultimatum". Empire-Day do calão das fardas. aliás. Quando nos poderemos nós encontrar a sós em qualquer parte. meu amor? Sinto a boca estranha. são um certo estorvo para alguns processos mentais superiores. psychologo de tampa de brazão. de Virgílio. onde a alma sonha De bocca aberta []como que teza
 E a confusão de tudo é tão medonha Que o copular é um prazer de meza. tramp-steamer da baixa immortalidade! Fóra! Fóra! (…)8 Álvaro de Campos atreve-se a infiltrar até mesmo a vida amorosa do próprio Fernando Pessoa. homem-practico do verso. A terceira razão é haver só duas razões. transformando-as em poesia. Bourget das almas. tu força-nos a rever dores impronunciáveis” – o poeta sente a obrigação de abordar o tema. É nisto que se baseia o que será para v. por duas vezes..)9 Álvaro de Campos. Meu Bebé pequeno e rabino: Cá estou em casa. um certo elemento desta ordem. leitores e editores do poeta. A primeira é a de este papel (o único acessível agora) ser muito corredio. ronha Do vício em q’rer achar-se subtileza. em que vejo que é mestra. tenia-Jaurès do Ancien Régime. e portanto não haver terceira razão nenhuma. e assim continuarás sendo. engenheiro).. em inglês. a violência inteiramente inesperada de obscenidade que naqueles dois poemas – e sobretudo no Epithalamium . e o dia estava bem disposto também (…). regina. Sabes? Estou-te escrevendo mas não estou pensando em ti. sub-rameira. Maurice Barrès. Volte p’ra o seu paiz. jubes renovare dolorem Ó Sappho negra.. e chegou mesmo a chamá-los de obscenos – como explica em carta a João Gaspar Simões. Não é das portuguezas a vergonha. Há para isso duas razões. porém. Fóra tu . bolor da Lorena. Anatole France. por não ser uma portugueza. (Álvaro de Campos. Campos. VI. "Carta a João Gaspar Simões.. do homem apaixonado e ridículo – como se o tema (e não a obra em si) fosse suficiente para avaliar qualidades literárias. sublinhando a regua de lascas os mandamentos da lei da Egreja! Fora tu. e esse não conta. vou escrever ao meu Bebezinho para lhe dizer. Vá. Châteaubriand de paredes nuas. Eu próprio sou culpado disso: ao retranscrever o “Soneto Positivo” (já presente em outras edições). pelo menos. Bebé. vem cá. conforme prometi. Pancrácio. em Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simôes. feminista da Acção. reprimimos nossa leitura da poesia pessoana – donde preferiríamos talvez considerar “Alma de côrno” como um soneto doutrem. antes de nos darmos ao trabalho de conhecer e decifrar a obra completa. A epígrafe latina do “Soneto Positivo” é o terceiro verso do Livro ii da Eneida. o poeta dos nossos poemas preferidos. uma tradução possível seria “Ó Rainha. 1930". 69 RBMA 77 . (e depois o Bebé é mau e bate-me. decidi. Meu Bebé para sentar ao colo! Meu Bebé para dar dentadas! Meu Bebé para. não poderia deixar nenhuma sensação de lado... composições) que eu tenho escrito que são nitidamente o que se pode chamar obscenos. surgindo em plena correspondência com Ofélia Queirós – correspondência que. vestindo do seu commercio! Fora tu. mercadoria Kipling.. sozinho. Não sei porque escrevi qualquer dos poemas em inglês. mas longe de mim. Não te admires de a minha letra ser um pouco esquisita. reles snob plebeu.10 O poeta esforça-se em não reprimir suas sensações. Por perversão mais limpa se fugir. até. alcoviteiro de palco da patria de cartaz. salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no tecto ou no chão!). em Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. que se não morri. cuja quantidade. talvez inconscientemente. então. Você.Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Fóra. antes de julgar a imoralidade da poesia? Uma explicação.. sabes. atrevidíssimas. por não poder ficar mais suja. varia de homem para homem. Maurício Mattos em minha defesa de tese. "Carta a João Gaspar Simões. salada de Renan-Flaubert em loiça do século dezesete. Entretanto. “Antinous” [Antínoo] e “Epithalamium” [Epitalâmio]. E. como se pudéssemos separar Fernando. por pequeno que seja o grau em que existem. de que abri uma garrafa. e eu estava bem disposto. Há em cada um de nós.. com sua vontade interna? Por que não questionamos a moralidade de nossas precárias posições censórias. ainda que isso lhe cause dor. como tu sabes. de que já bebi metade. Foi agradável hoje o nosso passeio — não foi? Tu estavas bem disposta. 18 nov. excepto numa coisa. classificaríamos os poemas segundo nossa arbitrária vontade? Por que nossa tendência é cânones (antolhos) da poesia (pessoana e em geral). não questionei as opções do editor primeiro. 1917. Antinous e Epithalamium são os únicos poemas (ou. 18 nov. ainda choca quem julga tais cartas de amor como literatura inferior. Antínoo & Safo Paú. Não tenha medo que eu lhe fuja Nem a você nem [] E se. e isto é uma coisa.. relatando o processo de expurgação poética de tais obscenas sensações. por pouco que especialize instintivamente na obscenidade. que ela é muito má. tal como na carta de 5 de abril de 1920. algibebe dos mortos dos outros. Berardinelli. 78 RBMA 69 69 RBMA 79 . não o mais duro. mas o mais harmónico!11 Imagem da abertura: Revista Grande Hotel. Cleonice. Monteiro. sê inteiro”. Obra completa. Correspondência de Fernando Pessoa (1905-1922). Pequenos infinitos em Pessoa: uma aventura filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa. inclusive a do patrão. um novelo de complexidade exponencial. Organização de Antônio Salgado Júnior. daí tampouco se poderia concluir que se trata de uma obra sem propósito – pois há propósitos (no plural) por toda parte. J. também não é de difícil leitura. mas o mais completo! E proclamo também: Segundo: O Super-homem será. talvez por não querermos que o poema seja de Pessoa. Bocage. aqueles que não sabem mudar (de opinião. Rio de Janeiro: PUC-Rio. não o mais livre. 157-85. Número 76. acaba.VII. p. Innocencio Francisco da. em grande parte ainda por explorar. Lisboa: Ática. 1917. como se qualquer tentativa de resolução estivesse fadada a embaralhar ainda mais as coisas. Organização. The Works of Virgil – Translated into English Prose. Carlos. 19a Série. não o mais forte. o super-homem não terá “alma de côrno – isto é. Antônio et al. nem que receba destaque. 2012. começou a enovelar-se ainda mais. logo. Introdução. dura como isso”. 1826. i. vol. 1978. Pittella-leite. cit. O livro dos sonetos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. “Pessoa e o curso superior de letras”. mas o mais complexo”. dura como isso”. 1999. pois a caligrafia é clara. tornando-se explosivo. Rio de Janeiro: Aguilar. Houaiss. In: Memória dos afectos – homenagem da cultura portuguesa ao Prof.M. Talvez o poeta estivesse o tempo todo a caçoar de nós..) “Como se Eu fluísse" Granta. Porto: s. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Homem & Super-Homem Por que. ______________________. Luís. Fernando. leitores ansiosos por possuir a palavra final sobre sua poesia. Sentimento do mundo. Lisboa: Assírio & Alvim. ao ponto de onde partimos. 1908. pois “o super-homem será. Poemas de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa. pp. Topa. pela lei da ação e reação. Silva Alvarenga – Contributos para a elaboração de uma edição crítica das suas obras. introdução e notas de Cleonice Berardinelli. op. confere agora importância ao soneto – como algo que. Junho de 2013. afinal. de cânone. Silva. N0 152. Há duas explicações possíveis: 1) talvez por ser difícil comprovar que o poema fosse de Pessoa.n. 1950.0. Luís de. Cartas de amor. 1998. Giuseppe Tavani. multiplicado pelo tempo em que o texto permaneceu inédito. vol. mas o mais complexo! E proclamo também: Terceiro: O Super-homem será. oferece outro propósito (ou uma versão do mesmo): Voltamos. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2. _______________. 1942. 1863. Por que. pois sua alma comporta as almas todas. Prista. Rio de Janeiro: Objetiva. apêndice e notas do destinatário. 1858. 1999. Francisco. Lisboa: Clássica. Bibliotheca Universal Antiga e Moderna. Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. Silva. Lisboa: Assírio & Alvim. 2007. tal como um patrão Gaudêncio Nabos que quisesse comprar o espírito de seu empregado-poeta. pp. Ora. que. Diccionario Bibliographico Portuguez. Manuela Parreira da. 95-117. Manuel Barbosa Maria du. 1982. E proclamo também: Primeiro: O Super-homem será. Correspondência de Fernando Pessoa (1923-1935).. 1994. vol. London: Excudebant J. São Paulo: Companhia das Letras. i. Symes. que não tem medo de trair-se. _________________. Lisboa: “A Editora”. não o mais duro. A obra de Fernando Pessoa é plena de experimentações. Lisboa: Tinta-da-China. Na obra do heterônimo Ricardo Reis. Pizarro. assinado por Álvaro de Campos. Virgílio. Lisboa: Edições Colibri. Organização de Álvaro Júlio da Costa Pimpão. * Referências Bibliográficas: Andrade. Lisboa: Imprensa Nacional. Pessoa. Carlos (eds. Nichols et Filius. o soneto “Alma de côrno” teria ficado inédito por tanto tempo? Não se trata da poesia em língua inglesa de Pessoa. i. Jerónimo & pittella-leite. com a morte do poeta. um propósito surge como máxima: “Para ser grande. posfácio e notas de David Mourão Ferreira. 2013. 2001. então. Entretanto. 2a ed. 2 11 "Ultimatum". Camões. Separata do Portugal Futurista.. de moral) é que teriam “alma de côrno – isto é. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz. Ao contrário do complexo. o poeta excluiria a obscenidade dessa inteireza? O “Ultimatum”. esse desejo de desimportância. _________________. ou 2) conscientemente ou não. Os sonetos de Luís Camões. ao ser de tal maneira reprimido. Carlos Drummond de. inteiro e pleno super-homem pessoano. Lisboa: Tipografia P. Fixação do texto. pois. “Ultimatum de Álvaro de Campos – sensacionista”. s o i o p ã ó p c a s J e l o e n t o s x e O os e . que tem um imenso sucesso. 82 RBMA 69 1 Senryu é um gênero poético derivado do haiku.]. a estão espionando com o auxílio de um telescópio! A forma fálica do telescópio – que. literalmente. o telescópio dá. no interior de aposentos situados a várias centenas de metros parece magia aos olhos dos primeiros espectadores. Enfiada no membro intumescido de seu parceiro. o poder de visitar bordéis. mesmo aos que têm menos dinheiro. as que permitem espionar os bairros de prostituição. Verdadeira prótese escópica. essa fantasia leva à instalação de lunetas. com dois séculos de antecedência à invenção do vídeo. fala da natureza humana de modo irônico ou satírico [N. no alto de torres ou de mirantes. Yushima e também (em Kioto) acima do Kiyomizu-dera. Shinagawa.. a cavalo sobre o homem. o templo dos apaixonados.No período Edo. 69 RBMA 83 .. Ultrapassar os limites do corpo e projetar-se. apoiada na balaustrada de sua varanda. zomba um poeta do século xviii. Em três versos. até os monges podem atravessar as barreiras de determinados bairros nos quais não têm rigorosamente o direito de entrar. ela observa três moças que. tirar proveito. Utamaro. fazem uma sessão de cinema pornô. por exemplo. que comentam em voz alta e das quais acabam por. Assim. Porém as mais populares são. Quem nunca sonhou em brincar de atravessar paredes? No século xviii. Graças a ele. que podem ser alugadas por alguns minutos. está de costas para ele e parece ter muito mais interesse em olhar para a casa vizinha. elas próprias (numa outra ilustração que apresenta a cena como se fosse um espelho). São essencialmente as mulheres que o utilizam.. Com uma mão no telescópio e a outra entre as coxas. mostra um casal curiosamente enlaçado: a mulher. os humoristas a considerarem esse objeto intrusivo como uma espécie de brinquedo erótico. As lunetas mais conhecidas estão em Atago. atinge até quatro vezes seu tamanho (às vezes mais) – incita. as heroínas de determinados manuais pornográficos intrometem-se nas relações sexuais que espionam sem serem percebidas. que fez os autores de senryu1 dizerem: “Escolham o rapaz que quiserem / depois tenham relações com ele / por telescópio”. aliás. com certeza.. aberto.E. Há a de Yushima (o bairro de prostituição masculina). mercadores holandeses introduzem no Japão o uso do telescópio. Munidas de seus telescópios. em 1790. “Como o telescópio é pretensioso! Em seguida os olhos voltam ao normal”. Algumas estampas pornográficas adotam a forma arredondada que significa: “visto através de um telescópio”. O herói. matadora de beleza glacial. Em seu mangá. a torre de Ryounkaku.. inclusive na cabeça delas. unindo os estudos da arte aos da antropologia. “A luneta situada no último andar. no meio de uma intensa circulação de clientes que sobem as escadas. Agnès Giard (Tradução: Regina Campos) Nota biográfica Agnès Giard é escritora e jornalista francesa. No acervo da Biblioteca Mário de Andrade. Consideram-nas mais ou menos como gadgets para adultos. no quarto dia do quinto mês (na véspera da festa dos meninos). os microscópios.. que no espaço de meio século as lentes de aumento tornam-se um artigo comum. É uma das características desses bairros do prazer”. espiona as idas e vindas de prostitutas que chamam as pessoas entre os bordéis de um bairro construído como se fosse um labirinto “a fim de que nenhuma mulher pudesse dele escapar”.. aliciadoras abrem as abas de seus quimonos e mostram seu sexo aos transeuntes deliciados. Yonosuke sobe no telhado de um pavilhão com um telescópio. saem dos quartos ou pedem algo para beber através de uma divisória entreaberta. tocam-lhes nos ombros sussurrando palavras ternas e os conduzem ao bordel. esconde-se atrás dos galhos de um salgueiro e nota que a empregada espalhou na água do banho narcisos (plantas do sexo masculino e feminino). conta Kazuo Koike. então. Uma vez dentro. tem sua primeira conscientização sexual ao observar – da extremidade de um longo binóculo – uma empregada entrar no banho. Em sua alma. que se abrem horizontalmente [N. Entre as ruelas iluminadas por lanternas. Na literatura. 2006). por vezes guardadas num armário. continuam retomando essa técnica – o efeito de lupa – para dar a impressão de que se entra literalmente nelas. As imagens em forma de claraboia ou com o efeito de lupa tornam-se equivalentes às fotos de paparazzi (voluntariamente dolosas dar a impressão de serem “reais”). Como se o bairro de prostituição fosse apenas um emaki. era famosa em toda Tóquio”.. Com 9 anos. e de suas zonas miseráveis.]. Yonosuke. comenta Koike. “rolo de desenho”. “o holandês” – é o primeiro a falar de telescópio em um romance – Koshoku ichidai otoko (1682. o sexo e o sagrado. erigida em 1890 – destruída por ocasião do terremoto de 1923 – ergue-se acima do bairro de Asakusa. Lady Snowblood. É como se fosse uma garantia de autenticidade. A vida de formiga das prostitutas se apresenta..E. Xilogravura e tinta colorida sobre papel. a exemplo do muito precoce Yonosuke. Essa arte japonesa consiste em narrativas ilustradas em rolos. o que não ocorre sem um mergulho numa profunda emoção. aliás. Visto do alto com o auxílio de um telescópio. que faz uma análise da sociedade japonesa na relação com o corpo. Crédito das imagens Todas as imagens são gravuras eróticas de Kitagawa Utamaro (1754-1806). 84 RBMA 69 . que aumentava até trinta vezes. Acervo bma. e os voyeurs metem aí o nariz com a deliciosa impressão de fazer parte dele. É tão grande a popularidade dos telescópios. roteirista de Lady Snowblood (a obra que inspirou Tarantino a fazer Kill Bill ). Talvez até em seu coração. Dedica suas obras à pesquisa da cultura sexual no Japão. “mesmo aquele que conhece bem essa região tem dificuldade de sair.2 o olhar se desloca livremente.Em Tóquio. de doze andares. como um afresco vivo. Os fotógrafos japoneses especializados nas sexy girlfriends­ .. pode ser encontrado um exemplar de seu livro L’Imaginaire érotique au Japon (Albin Michel. por medo de que as crianças se utilizem delas. 2 Literalmente. os telescópios celestes e os jogos de lentes também surgem rapidamente. caem as divisões do labirinto. Saikaku – chamado de Oranda. “O homem que só viveu para amar”). ETHERS sobre Luiz Armando Bagolin é diretor da Biblioteca Mário de Andrade e professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. na área de História da Arte. Cosac Naify. 86 RBMA 69 (Esther Faingold e Tunga. 2011) Luiz Armando Bagolin . O 90 RBMA 69 s desenhos desenvolvem-se em circularidade na página, interligados por quartzos hialinos. As representações perpetradas em corpos se acumulam e desdobram sobre si como vasos comunicantes que a linha, cornalina, decalcada sobre o papel, delicada sobre o poema, como rastro, macula. Dos corpos esvaem líquidos recolhidos em copos, frequentes nas obras de Tunga, que escorrem nas linhas transferidas sobre a poesia de Esther Faingold, impondo ao leitor a condição de não impunidade em relação à leitura do estranho livro. A cada página virada, atiçado pelos corpos que se eriçam ou se inclinam, provocado pelas frases que fazem a natureza rodopiar sobre os sentidos, os altos de Esther, os baixos de Tunga, o leitor põe em obra a impregnação do pó vermelho da tinta de carbono que, embora duradoura, nada dura, pois vai aos poucos se dissipando. Esther repõe hegelianamente o poema como ato de dissolução, a passagem do em-si definindo o ato de ler como um “entre”, nem sempre demarcável por tinta, gesto ou signo, porque etéreo, e que ao espírito se dirige. Éter é o ar onde brilha a luz inefável, para onde se dirigiria o espírito após sua breve temporada na matéria rebaixada, mas para onde, ao mesmo tempo, é impossível dirigir-se Esther ou qualquer outro poeta humano, porque é da faina o entretecer das palavras caro à construção da poesia, e é da voz o som que preenche o sopro do poema, último vínculo com o mundo. A circularidade não está apenas nos desenhos, que transformam em cacetes tunguianos calcedônias leitosas que mãos túrgidas agarram. O ato de ler também é circular, na busca por aquele “entre”, o vácuo entre a palavra e sua significação interdita, porque a boca é interrompida, nem cabeça muitas vezes há, mas apenas nesgas de corpos que desejam e indiciam o hiato entre a luz e o corpo híbrido feito de uma linha vermelha ubíqua. O corpo está no desenho; a cabeça está nos poemas. Mas às vezes essa relação se inverte e a poesia delira febril, ébria de vinho e de mar, e desejosa do garoto que grassa, friccionando com sua mão o grão de onde espirra o lácteo enrabichado. Hilda Hilst nas lembranças e fotos de Fernando Lemos . . . Ela se considerava uma vítima. Fazia cursos e desistia. enjaulado como um cachorro. O que marcou Hilda. Darcy Ribeiro. disso ele se lembra bem. Talvez a inscrição do relógio sem ponteiros que ficou suspenso na parede da Casa do Sol resumisse. Fez um guache. americana. para eles um dos melhores momentos de São Paulo e do Brasil. e até se vestia mal por escolha. Como se o retorno fosse uma tese. Hilda ficou-lhe associada à lembrança do tempo em que a conheceu – um tempo quase sagrado. abraçado à sua demência” –. gravava tudo. em São Paulo. e sim o retorno de um ciclo. O convívio intenso entre Hilda e Fernando durou um ano. com força de mulher intelectualmente pronta. Ela frequentava o bar do Museu. Tempo de reflexões sobre arte como parte do cotidiano dos intelectuais com que conviviam. vestida em preto e branco. levou-a ao seu ateliê e fez uma fiada de dezesseis fotos. mas este se perdeu. Fez Direito. Ela tinha a angústia de não ter vivido tudo. foi sua ligação ao conceito integral de retorno. dos concretistas. Havia um lado amargo em sua vida – “o do pai. das grandes construções. ela linda. . Ela não lidava de forma narcisista com sua beleza. com seu particular e vívido raciocínio. na rua Sete de Abril. um pouco traduzindo o sentido da falta daquilo que ela não viveu. Hilda sempre teve ligação com o mato. Além de algumas cismas. Hilda Hilst tinha mesmo o propósito de incomodar a sociedade burguesa.Fernando Lemos conheceu Hilda Hilst quando chegou a São Paulo. Não o retorno do morto. Fez a capa de Ode fragmentária. Um dia. começou a aproveitar-se de algo que era muito dela – a parte maldita –. para a Anhambi. Antonio Candido. Andavam juntos pela cidade. como a de ela mesma ter um papel de vítima. Momento do projeto de Brasília. era discreta. tudo: “É mais tarde do que supões”. Quando soube que a mãe de Hilda era portuguesa como ele. ele troçava: “Ainda não aprendeste o sotaque de tua mãe!”. para ela. Cecília Scharlach* Texto apoiado em conversa com o fotógrafo. e ela sempre buscando um jeito de adoçar essa amargura. de Sérgio Milliet a Rodrigo de Mello Franco de Andrade. a qual levou aos últimos limites que a linguagem permite. é coordenadora editorial da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. desde 2005. assim como as tiragens que resultaram deste ensaio. 08 de setembro de 2013. da criação do parque automobilístico. nunca teve preocupação com o vestir-se. e vinha à baila a questão da língua. do surgimento da Bienal. Bárbara. mas não as ilustrou. ele chegou a fazer anotações. em 1961. muitas vezes com uma amiga dela. de Niemeyer. 1953. envolveu-se com edições de livros e. Sentia orgulho de sua postura e coragem intelectual. *Cecília Scharlach. com o som da natureza. Como se o tempo e sua duração não lhe fossem pródigos. OLHAI-NOS.“SENHORAS E SENHORES. REPENSEMOS A TAREFA DE PENSAR O MUNDO” Hilda Hilst 102 RBMA 69 . Divino Sobral Adair Sodré . Thiago Martins de Melo Paulo Moreira . morta em 2004: se seu corpo não circula mais pelos espaços da Casa do Sol. em tempos e tempos. seu espírito ainda está vivo. e Hilda. cinco artistas passaram quinze dias na Casa do Sol. assim como sua escrita. o que veio a acontecer com a goiabeira envolvida com mais de 150 novelos de lã que o artista deixou nos jardins do instituto. no pátio central da casa ocre. Com cara de caderno de arte. reunida no livro Júbilo. O artista Divino Sobral fez uma instalação: Sangue buscando a veia reuniu textos de Hilda Hilst. frases. a ­ inda está muito viva. definem bem a sensação de leitores e admiradores da escritora. ambos em Campinas (SP). As obras resultantes compuseram uma mostra realizada no Ateliê Aberto. “sua mãe”. noviciado da paixão (1974). Campinas . a Rádio HH 911 MHz. traços em nanquim acompanhados por versos. Paulo Meira criou a videoinstalação Mensagens sonoras com canto dos cacos. “Poemas aos homens do nosso tempo”. do Ateliê Aberto. conteúdos produzidos pelos profissionais envolvidos no projeto. E o oráculo era um sol preto e.. Dirigido e editado também por Lukas. assim como sua obra. estreia na Biblioteca Mário de Andrade exatamente no lançamento deste número. na qual os artistas tornaram-se as vozes políticas contemporâneas de Hilda. Uma oferenda à Hilda. Nazareno Imagens cedidas pelo Ateliê Aberto. Em seguida. Nele. galhos de goiabeira envolvidos por lã.Dizer que ela [Hilda Hilst] tinha morrido era inadequado”. Hilda descreve o momento em que está imersa. o vídeo. impressas no livro Poemas aos homens do nosso tempo – Hilda Hilst em Diá­ logo (fruto do projeto que lhe deu o nome. com curadoria de Ana Luisa. outros desdobramentos ainda viriam. grafite. Nazareno criou desenhos-poesias. em especial com a série de poemas que inspirou o projeto. que abrigava uma estação de rádio criada especialmente para o projeto. palavras – sem papel. Henrique Lukas. cuspia pragas sobre aqueles que não o davam ouvidos: os que insistiam em replicar histórias glamorosas sobre aquela casa que não abrigava outra coisa senão muita dor e lucidez”. Seu desejo era fazer uma árvore para Hilda em seu jardim. dialogando com obras da escritora. capaz de provocar a reflexão não só de leitores usuais. simbolizando a intensidade que a vida tinha para a escritora. evidenciando que Ana Luisa Lima tinha razão: a essência da poeta. Em plena ditadura. lápis de cor. A publicação. uma chuva de pratos [. os “residentes” criaram trabalhos inéditos. memória. “fazia chover. vermelha. Jurandy Valença e Ateliê Aberto). editada pelos curadores. embora a publicação devesse ser o “último capítulo” do projeto. por meio dos poemas. como sangue e pulsão. e no Ateliê Aberto. Foi esse o mote para que os curadores idealizassem o projeto Poemas aos homens do nosso tempo – Hilda Hilst em Diálogo. marcou todo o trabalho de Sobral no Ateliê Aberto. ele rees­ creve a obra de Hilda em aquarela. com projeto gráfico da designer Daniela Brilhante.” Uma pintura a óleo em grande formato. com o título Simulacro e parasitismo na Casa do Sol Preto. entitulando-a O caderno rosa de Lori Bamby. O happening de abertura da mostra foi criação de Adir Sodré: adotando O caderno rosa de Lori Lamby. Inspirado no interesse ao sobrenatural presente na vida e obra de Hilda. As palavras da crítica de arte Ana Luisa Lima. fechando as criações dialógicas entre os artistas e a escritora. O projeto e o legado de Hilda abriram tantas possibilidades artísticas que. mas também de artistas contemporâneos. O artista. lágrimas e saliva do artista. é bem diferente daqueles folhetos de mostras que visitantes costumam receber. naquilo que se chamou de “residência artística”. Dentre esses homens. é uma plataforma dialógica e criativa entre os trabalhos produzidos pelos artistas. cor vital. sede do Instituto Hilda Hilst. nas palavras dos curadores. de Thiago Martins de Melo. utilizando vozes masculinas como repertório poético-político. filmado na Casa do Sol.] Cada prato caído impulsionava os estilhaços e rasgavam os corpos invisíveis acostumados a perambular por ali em dias de lua cheia”. “O vermelho. outro desdobramento da residência. criou um roteiro – registrado no livro da mostra – de um curta-metragem baseado nos poemas que dão título ao projeto. levou a curadora Ana Luisa Lima a se referir ao artista – o terceiro – no livro da mostra como “o homem força.. tinta acrílica e uma fotografia da intervenção no jardim da Casa do Sol. Também eles ficaram – talvez – imortalizados na publicação da mostra. foi um dos que pôde ouvir e interpretar o oráculo ocultado na grande árvore que chorava cipós. RECEBE O BATISMO E PURIFICA-TE DOS TEUS PECADOS” Atos. música e dança. 22:16 óleos. pós-graduada lato sensu em Literatura Brasileira pela Fafire-Recife/PE e mestranda no programa de Estudos Culturais da Escola de Artes. Atualmente. .Entre essências O RITO DO BATISMO EM DA MORTE. desenvolve pesquisas destacando as relações entre poesia. Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo – EACH/ USP. ODES MÍNIMAS “LEVANTA-TE. e flores Maira Mesquita Nota biográfica: Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa/MG. Odes mínimas”. Em Vaidade”. AS AMANTES: UMA LEITURA DE DA MORTE. edição em que as seis ilustrações receberam o nome de “Aquarelas”. comum na escritura clássica latina. Em vaidade”. que na transcrição para o português é traduzido por “sobre” – é feita de maneira inovadora. “MEDIAÇÃO EM IMAGENS”. Odes mínimas. a segunda. do corpo não codificado que só pode viver. aquarelas pintadas por ela. a esta última. Os versos de Da morte foram distribuídos em três séries: a primeira. o panorama parecia triste: alguns nomes consagrados. A remissão ao clássico – denunciada no título da obra a partir do uso do “Da”. Nada causava entusiasmo [. COLI. Foi uma descoberta surpreendente e emocionada. pois é libertação e renascimento. ele publicou A negação da morte. por meio do qual Hilda Hilst propõe a fusão do tempo com a morte. F. Na primeira série. já que a Poeta. dialógico. parece-nos indicar um empréstimo tomado da física moderna. com trejeitos de mocinha mordaz. uma vez que. Na terceira e derradeira parte. segundo Octavio Paz. à encantação. não se trata de tempo cronológico. como num grito de libertação. DEPOIS DE LER TESTAMENTO PARA EL GRECO. as ideias comumente apresentadas sobre a morte são revisitadas e se revela uma nova forma de se experimentá-la. ele descentra a atuação de Deus no mundo e remete a responsabilidade ao homem. Hilst nos apresenta um­ritual de renomeação da Morte. a ambientação que se estabelece é de vaidade. Em Odes mínimas.3 Becker e Kazantzákis se encontram nessa espécie de “niilis­ mo heroico”. Nesse jogo. assim como eles. É como se o poeta moderno estivesse em um constante estado de transe.] Até que Roswitha Kempf. Alcir Pécora afirma que “em termos gerais. “Da morte. declarou à Folha de S. con­ tam­com cinco poemas cada. Hilst nos desponta o renascimento. OCTAVIO PAZ.. de Hilda Hilst. Na segunda série. no estado de transe ou êxtase. “TEMPO” E “MORTE”. EM H.2 apesar de o escritor não pronunciar o heroico. pretendemos realizar uma investigação pautada nas performances corporais da Morte e da Poeta no decorrer da celebração do ritual de renomeação. Era Da morte. no qual ela se ressignifica. que seria a negativa. Para o pesquisador Felix de Lima. uma vez que Hilda insere o termo “mínimas” e. Busquei outros livros do mesmo autor: todos revelavam essa qualidade intensa dos grandes escritores.. Já a segunda ce­ na corresponde ao processo de irrupção progressiva do corpo tal e qual. uma dissociação de tudo o que se diz e se pensa sobre ela. de modo que apontaríamos duas premissas: 1) o mínimo que um texto pode apresentar para ser uma ode e 2) o mínimo que se pode dizer sobre a morte. que é ob­ tido pela confusão de códigos e línguas que tinham por emblema o corpo. 3. e a terceira. A obra é dedicada à memória de Ernest Becker e Cristina Figueiredo. 6. Morando na França há muitos anos. José Gil6 afirma que. METAMORFOSES DO CORPO 7. Se a morte normalmente é vinculada ao fúnebre e ao melancólico. PÉCORA. Em 1998. que na época possuía uma pequena editora no Bexiga. por sugestão de Hilda. à dança. “Tempo-Morte”. possivelmente. Nesses cinquenta p ­oemas que compõem a obra. A construção sintática do título parece propor um trocadilho em que se traz implicitamente a ideia de que o livro seria composto de odes mínimas sobre a morte. não sendo difícil encontrar razões para a dedicatória ao antropólogo americano. COM LETRA MAIÚSCULA. no transe. quando mostra que o “espaço-tempo” não é necessariamente algo que possamos atribuir a uma existência separada e independente dos objetos da realidade física. canta o desejo de eternizar-se. mas. passou-me um volume admiravelmente concebido e publicado por Massao Ohno. uma tradição engajada. a época moderna reincidentemente se examina e se destrói para se reconstituir. a obra foi reeditada pela Globo. tornada assim virgem. Tratava-se da mais alta poesia.1 Os poemas de Da morte. aos alucinógenos e às drogas. P. Em 1980. foram acrescentadas. . pela Editora Massao Ohno. HILST. J. Hilda retira tal característica e concede a ela uma nova roupagem. 4. ASSIM MESMO. A aposta da au­ tora se dá num jogo de construção literária que ad­ vém do encontro entre os limites de vida­ ­­ e morte. Nesse sentido. numa edição bilíngue português/ francês. transforma o medo da morte em ação. como abertura aos poe­ mas. é como se a Morte passasse por um processo de transe. joga-se uma cena dupla. HILDA HILST MORRE PARA A SOCIEDADE PAULISTANA E PASSA A VIVER PARA A LITERATURA NA FAZENDA SÃO JOSÉ. Odes mínimas foram criados entre 1978 e 1979.5 tem por fundamento a transformação. “INTRODUÇÃO”. como abertura à antologia Poesia (19591979). DA MORTE. foram publicados pela primeira vez e em duas versões: a primeira. o termo “Tempo-Morte” parece sintetizar a ideia de que a morte não é dissociada do tempo.Em 1983. a con­ fusão extrema dos sentidos. tampouco da vida. 2. Isto implica testar o vocabulário capaz de celebrá-la adequadamente”. O estudioso acreditava que o que nos mantém vivos é o heroísmo que luta persistentemente contra o medo da morte. COMO TAMBÉM “POETA”. Logo. 9. no qual a própria Morte será ressignificada. 5. intituladas “Desenhos de Hilda Hilst”. Jorge Coli colaborava para o jornal Le Monde e recebeu a incumbência de uma matéria sobre a atualidade da literatura brasileira. Quando se suporia o congelamento da ação. em 1973. que editaria também a segunda. Na obra. ao modo da poesia moderna. essa série parece representar o renascimento do sujeito que fora descodificado e estilhaçado nas séries anteriores. ODES MÍNIMAS. o qual. Para tanto se recorre à música. à semelhança de Albert Einstein. A. toda a atmosfera que envolve a sessão contribui para obter esse resultado. a obra ganhou nova publicação pela Nankin Editorial e ­Éditions Noroît. rastreando os mitos e motivos clássicos da literatura remontados por Hilda. de inspiração perdida e de gosto requentado. Sua obra é um reiterado chamado à luta. mas em fim de produção. é acrescen­tado o Tempo. e Hilda. Para o poeta mexicano. que. “À tua frente. é­composta de quarenta poemas. cor- responde ao desbloqueamento do sentido. enfim. como sabemos. a Vida4 ornamenta-se com o discurso da sedução e convida a Morte a participar de um ritual de renomeação. Cinco anos depois. que lhe concedeu o Prêmio Pulitzer um ano depois. na qual ocorre a descodificação de um corpo usado e o renascimento de um corpo novo. Assim. OS FILHOS DO BARRO. cuja bandeira é a ação. com tradução de Álvaro Faleiros. Nessa direção caminha o pensamento de ­Kazantzakis. com organização de Alcir Pécora. veio ao Brasil para se inteirar do assunto e. ODES MÍNIMAS DE HILDA HILST. “À Tua Frente. pois. pode surgir o novo sentido. Paulo: Do ponto de vista das novidades literárias. passado certo período. a ode clássica não se pretende mínima. A primeira cena. tornadas personagens e travestidas em corpo de mulher. Apenas sobre essa inscrição. uma vanguarda velhíssima e desdentada. O BATISMO DA MORTE: EM BUSCA DE OUTRO SENTIDO Na introdução à edição de 2003 da obra Da morte. por meio da negação radical de tudo.7 Partindo dessa proposição. Becker explicita dois pressupostos: 1) o medo persegue o animal humano como nenhuma outra coisa e 2) esse temor é um dos maiores incentivos à atividade humana. precisamente. JOSÉ GIL. as odes deste livro se compõem basicamente como a construção de uma interlocução da morte. “Tempo-Morte”. POIS SE TRATA DE UMA PERSONIFICAÇÃO. integrado ao vocábulo “Morte”.­Odes mínimas. DE LIMA. 1. 11. elementos próprios das deidades e figuras mitológicas femininas. No poema ii da primeira série. A Poeta nos transporta para o seu mundo onírico. H.9 Ele. a luz. 29. nesse sentido. o batismo liberta a alma do batizado. os deuses montam os seus cavalos. 58. . vindo dançar uma vez mais em homenagem ao recém-chegado. por que não? Te recriar nuns arco-íris Da alma.A poeta inicia suas odes clamando por um novo batismo: Te batizar de novo. A emersão. Juntas. Dois cascos Sofrendo as águas. a partir de seu novo batismo. é a partida para outra vida. Tudo o que o neófito faz ou diz. em suas personagens. Vejamos. a música. Dois cortes. Para as religiões afro-brasileiras. potência que transfigura o encontro de ambas. H. Ela. o próprio iaô. no “dia-do-nome”.. Evidencia-se assim a outra identificação da Morte com a água. a purificação por meio da água. o batismo é realizado não somente no nascimento. o batismo é associado aos rituais de passagem. Em Hilst. INTRODUÇÃO AO NARCISISMO. ao contrário. Vida e Morte são geneticamente unidas. E as mesmas perguntas No sempre No pasmoso instante. duas gargantas Dois gritos O mesmo urro De vida. Tu e eu. a ressurreição. alinhavando. o retorno do ser às fontes de origem da vida. renasce agora. HILST. É no sacramento do batismo que Hilst busca a sua analogia para a renovação da morte. terceiro. a colocação no túmulo e sua saída. reconciliado com uma fonte divina de vida nova. Ah. desenhando o universo feminino cuidadosamente em seus ricos detalhes e resguardando a imaginação como agente que move o ritual. P. Revela a 8. simbolizando essa liturgia um nascimento da alma. gravita em torno do que se mostra. onde a Morte será batizada e ungida pelo suor de seus corpos. Em diversas religiões. em “recriar”. IAÔ – PALAVRA DE ORIGEM IORUBA QUE DENOMINA OS FILHOS-DE-SANTO JÁ INICIADOS. Duas façanhas. no “dia-do-nome” estamos diante do único resultado visível ao “mundo material”. que morrera para o mundo em algum momento do passado imediato.11 PULSAÇÕES DO CORPO EM TERRAS DE DIONÍSIO Hilda vai tecendo sua trama e. FREUD. CIT. o fogo.. 9. Nas tradições funerárias dos maia-quichés. a beleza e a irracionalidade. nuns possíveis Construir teu nome E cantar teus nomes perecíveis: Palha Corça Nula Praia Por que não? 8 As tensões do poema poderiam ser distribuídas em três momentos. ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS. Segundo Freud. nos quais a ação principal recai. OP. Ao lado desses exemplos. “dos viventes”. Duas naves Números Dois rumos À procura de um mesmo deus. Duas adagas Cortando o mesmo céu. em estado de graça. A água é instrumento de purificação ritual. Invocados pelos atabaques e cantigas. no verbo “batizar”. morte. CIT. associa-se ao prazer – quiçá ao prazer dionisíaco – e à vida. As perguntas retóricas são colocadas como elemento dissimulador para que o interlocutor atenda aos anseios do eu lírico. primeiro. sua imersão na água. pleno. criadora e destruidora. Assim. A “alegria-do-nome” dá início à festa. tal como na perspectiva freudiana de contraposição da pulsão de vida e da pulsão de morte. Te nomear num trançado de teias E ao invés de Morte Te chamar Insana Fulva Feixe de flautas Calha Candeia Palma. mas também no momento da morte. Esse ato assegura ao morto a sua regeneração. Observe-se: xxx Juntas. por exemplo. segundo. o sujeito batizado não será transformado individualmente. de um processo cujo objetivo explícito consiste em transformar o ser daquele que se submete simbolicamente ao estado de congraçamento em relação ao princípio natural que o gerou. sendo a grande transmutação operada representada como uma metamorfose. Conta o livro de Mateus que vinham a João Batista pessoas de toda a circunvizinhança do rio Jordão. E uma só pessoa. As novas descrições para a Morte ganham sentido à medida que revelam aspectos da poesia. com exímio cuidado. revela a aparição do ser i passagem do ser de sua primordial indistinção genérica às formas particularizadas e nominadas de sua nova existência. por exemplo. o batismo ou qualquer outro rito de iniciação são igualmente uma operação de regeneração. pode-se observar a veiculação do amor e da sedução por meio de uma relação de dominação corporal: 10. fonte de vida e morte. de um rito de passagem. HILST. OP. Em outro plano. S. O batizado assimila-se ao Salvador. E o que se mostra é.10 a pulsão de morte precede a pulsão de vida. o rito de imersão nas águas tornou-se símbolo de purificação e renovação. essencialmente. Ali confessavam seus pecados e por ele eram batizadas nas águas. Essas ações indicam o desaparecimento do ser pecador nas águas da morte. P. E as mesmas perguntas. toda a cadeia de relação já consagrada para a morte será rearranjada – “Te nomear num trançado de teias”. em Hilda. em “nomear” e. as gotas de pérolas líquidas vão escorrendo e libertando o passado. soltavam gritos assustadores.17 o suor é uma forma antiga e universal de autocura. adormecendo no seio / de uma terna amiga: ah! Pudesse aquela noite / durar duas noites para mim”. As Valquírias. queimando e purificando os corpos num batismo de fogo. bem como as surpreendentes ações que é capaz de executar. A noite tem o apelo do desconhecido. Ésquilo mostrava-as como devoradoras de carnes. 12 O primeiro “momento poético” parece ser delimitado pelo verbo “demorar”. a fantasia é retomada. SOBRE AS LINHAS BORDADAS DO CORPO-AROMA IMERSO EM BACANTE-BORBOLETA A extraordinária estrutura do corpo. A troca do modo imperativo pelo subjuntivo marca o devaneio. Antes de me tomar. 30. IBIDEM. quanto mais o corpo transpira. nada impediu Safo de Lesbos de desejar que [aquela] noite tivesse para ela a duração de duas noites. ao mesmo tempo. aquilo que define a presença humana no plano da realidade. Por meio do dístico “Duas fortes mulheres / Na sua dura hora”. No segundo par de versos. que. A Poeta traz novamente à cena o seu desejo. POEMAS E FRAGMENTOS. que dançavam até que se tornassem uma prece suada e caíssem num amontoado estático de ossos sobre a “Mãe Terra”. ó Atthis: / eras ­ ainda para mim uma menina pequena / e sem encantos. sob o comando da rainha Pentesileia (“a que sofre por seu povo”). o que se estabelece nesses versos é o domínio lascivo da carne estendido no tempo. P. mais o sujeito ora. P. demora. da luxúria e do prazer. Libanius faz a seguinte declaração: “Se. que eu possa fazer um pedido semelhante”. são evidenciados os sujeitos do rito. Para Paul ­Veyne. Para tanto.15 Eros engendra a positividade do vazio. ROTH. Nesse caso. normalmente próprias aos homens. ou seja. apareciam do nada. a presença do pronome possessivo “minha” e do verbo “tomar” reforçam o universo do apoderamento. P. E. Na terceira e quarta estrofes. 16. a Poeta deseja igualar-se aos homens. queimavam um dos seios. e eram chamadas emissárias da morte. De 17. Que me tomes sem pena. suas inimigas. Que tu me percorras [cuidadosa. iguais aos homens e. num trote súbito. 14.ii Demora-te sobre minha hora. “demora” anuncia as relações de poder na discursividade. Depois. Hilda parece remontar às figuras das Amazonas e das Valquírias. ELEGIA ERÓTICA ROMANA: O AMOR. aos desvios da luz do dia. Para a dançarina. Mas voluptuosa. na sensualidade dos movimentos. G. para os gregos. Assim. a relação corporal anunciada é a do universo do desejo. Não à toa as chama de “mulheres-homens”. quando tudo é possível. as amazonas lutam ao lado dos troianos. Safo cantava para Atthis: “há muito tempo eu te amei. na Ilíada. a transpiração é uma oração e. Baseavam-se no princípio da concentração máxima de força para assombrar qualquer exército e esmagá-lo numa onda avassaladora. interrompe-se o devaneio para dar visibilidade real aos corpos. a Poeta confere à Morte o poder de senhora absoluta no espetáculo da conquista amorosa. surgindo o vocábulo “fêmea” como substituto de “mulher”. etérea Que eu te conheça lícita. Tal qual as Valquírias. o que se nota pela semântica do verbo inaugural avigorada pelos sintagmas adverbiais “hora” e “antes de”. a Poeta vai ungindo o novo corpo da Morte com o suor que se faz água benta. O caminho que Hilda constrói para conduzir a Morte ao deslumbramento assemelha-se àquele dos xamãs. Para melhor adequação do arco. 83. A POESIA E O OCIDENTE. Homero. e o que emerge é a selvageria. Na Ilíada. mais se aproxima do êxtase. para dar outro sentido para a Morte. Na troca entre essas mulheres não há lugar para a piedade ou o puritanismo. com dupla acepção – duração e virilidade – recupera a ideia da extensão do tempo e apresenta uma importante característica para ambas: o vigor.13 A respeito do poema. acordo com Gabrielle Roth. Hilda parece buscar a própria carne. 15. as noites evocam a conotação erótica. torna-se. eram capazes de executar os mesmos gestos dos heróis. É o momento privilegiado das práticas do prazer. eram conhecidas como “virgens com escudo” – figuras complexas que ilustram virtudes marciais. 13. [terrena Duas fortes mulheres Na sua dura hora. trata-se da devoção ao ser amado. Nas pulsações dessa dança. mulheres vistas como símbolo da animalidade. o ser batizado se purifica e se transforma pelo suor. atributo da mulher terrena. deixar que as partes do corpo falem por meio de movimento. O que se apresenta é a eternização da volúpia. Jean Baudrillard16 acredita que se confessar enamorado pelo outro é a melhor maneira de seduzir. a posse carnal da outra. . O MOVIMENTO COMO PRÁTICA ESPIRITUAL. O adjetivo “dura”. mais tarde. requer certo cuidado. As Amazonas eram. IDEM. em suas sagas. nos dá a ver que são. portanto. No período mélico arcaico. em que cada simples gesto de qualquer parte do corpo revela um aspecto de nossa vida interior. tradicionalmente. a animalidade. 83. clamor. te conhecendo Que eu me faça carne E posse Como fazem os homens. SAFO.14 Safo e Libanius cantam o prolongamento do tempo nas experimentações do amor. Executar os ritmos dessa dança voluptuosa. antes de tudo “bárbaras”. E a ti. como se estivessem possuídas pelo demônio. OS RITMOS DA ALMA. o convite aos prazeres. P. quanto mais o sujeito ora. IDEM. são alguns dos maiores milagres da existência. Nessa perspectiva. que combatiam montadas a cavalo. J. agora. inclusive no sentido que hoje se empresta a essa palavra: transgrediam as leis. uma vez que. Hilda desenha a preparação dos corpos da 12. daí o nome de Amazonas (a-mazôn: “sem seio”). o que antes fora ordem. VEYNE. eterna Como as fêmeas da Terra. DA SEDUÇÃO. BAUDRILLARD. também. ­ Eram guerreiras armadas com arcos. por sua vez. Como contas de um rosário. Somos levados a imaginar uma dança dioni­ síaca de dois corpos. IBIDEM. em que a demora incide sobre o assenhoramento. conjugado na segunda pessoa do modo imperativo afirmativo. O processo de tomada corpórea tem seu tempo alongado. IDEM. senhora dos ocea­ nos. 19. bordados coloridos e perfume. DESENHOS DE HILDA HILST. Chamada também de Deusa das Pérolas. FRAGMENTOS DE UMA DEUSA: AS REPRESENTAÇÕES DE AFRODITE NA LÍRICA DE SAFO. De outro lado. OP. sereia sagrada. Para Rudolf Laban. Isto é: atrás de uma superfície aparentemente calma podem existir fortes correntes e cavernas profundas. IBIDEM. a Poeta escolhe sua indumentária pré-nupcial: xxxix Uns barcos bordados No último vestido Para que venham comigo As confissões. para citar apenas dois exemplos. DOMÍNIO DO MOVIMENTO. Assim. RAGUSA. ACERVO CEDAE-UNICAMP xxvi Durante o dia constrói Seu muro de girassóis. trazendo nas mãos o espelho e o leque. P. 22. Na fluidez do movimento das ondas. rosas amarelas. Já no Hino Homérico a Afrodite. Odes mínimas. CIT. lírios. desenhadas Manso friso Como as crianças desenham Em azul as águas. As joias de prata e os perfumes de jasmin ou rosas brancas compõem o universo de sua vaidade. domina os rios e cachoeiras. CIT. adornando-se de ouro e vestes luminosas. os gestos se seguem uns aos outros­de acordo com uma sequência completamente ir­ racional que pode significar uma luta interna e se tornar a expressão de uma prece para a libertação de uma confusão interna. A poeta Safo traz Andromákha num banho pré-nupcial. R.) Durante a noite. cura. a associação das deidades femininas aos banhos. G.Olhar a vida. Que queres. a aplicação de óleo perfumado. Na Antiguidade clássica. na liturgia de Da morte. No poema xxvi Hilst traceja a preparação de uma Morte que se banha ornamentada de flores: Poeta e da Morte por meio da toilette. perfumes. morte. OP. 67. narra-se a toilette de uma Hera determinada a seduzir seu marido Zeus e distraí-lo da guerra que se desenrola entre os aqueus.. JOUAN. imagens cristalinas de sua influência. APUD G. a cerimônia de purificação e renascimento. vestimentas e joias compõem o cenário desse ritual em que está embutida a ideia de beleza. e ressaltam que quando se banha no rio penteia os cabelos num movimento lânguido e provocante. por que não... o riso Quietude e paixão De meus amigos.18 os banhos das deusas se revelavam em quatro movimentos mais ou menos constantes: o banho. P. customizadas com conchas e pérolas.22 o movimento é empregado com dois propósitos distintos: a consecução de valores tangíveis em todos os tipos de trabalho e a abordagem de valores intangíveis na prece e na oração. perfume de rosas. perfumes e óleos era recorrente na literatura. revelando-se em sua condição de guerreira da sedução. Segundo estudos de Giuliana Ragusa. EURÍPIDES ET LES LÉGENDES DES CHANTS CYPRIENS. O tema da toilette de uma divindade era lugar-comum na poesia épica grega. LABAN. P.Oxum é a dona da água doce e conhecida por sua delicadeza. dança vestida com roupas litúrgicas. 54. é aquela que apara a cabeça dos bebês no momento de nascimento. . 108. Na Ilíada. majestade dos mares. As lendas adornam-na com ricas vestes. RAGUSA. a vestimenta de belos trajes e o acréscimo de joias. (Sei que pretende disfarce E fantasia. em que as banheiras ornamentadas de flores se tornam a pia batismal. mas. flores. 21. a deusa é preparada para seduzir Anquises e fazê-lo sucumbir aos seus encantos. 18. No candomblé.19 e à sua relação com as deidades gregas devem-se somar também as deusas da mitologia africana. sobretudo. jovialidade e. 20 Uns barcos Para a minha volta à Terra: Este duro exercício Para o meu espírito. Porque guardei palavras Numa grande arca E as levarei comigo Peço uns barcos bordados No último vestido E vagas Finas. Assistir a essa “dança-mínima” é testemunhar uma frequência de movimentos em que as bailarinas catalisam em ritmos profundos os limi­ tes da existência. é a rainha das águas salgadas. ponto comum entre as deidades femininas em diferentes mitos. 20. sedução. ornamentando-se com joias de prata e marfim. erotismo. pulseiras e colares de ouro. HILST. Vestida de flor e fonte? . quando dança. traz na mão uma espada e um espelho. ressoa não só a aproximação entre Vida e Morte. H. como Oxum e Iemanjá. 21 Óleos. Iemanjá. F. Fria de águas Molhada de rosas negras Me espia. Ragusa. Brasília: José Olympio Editora. Giuliana. 14 de junho de 1996. Hilda. Lima. Gabrielle. O movimento como prática espiritual. São Paulo: Cultrix. Vogel. São Paulo: Cultrix. 1 ed. São Paulo: Rideel. Metamorfoses do corpo. 2013. 1975. Nikos.Referências Bibliográficas Baudrillard. Barros. Tradução portuguesa da vulgata latina pelo padre Antônio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora. Folha de S. 1991. Einstein. Hilst. 2007. Galinha d’Angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. José Flávio Pessoa de. João Carlos Félix de. Reginaldo. Pierre. Gil. José. Campinas: Editora Unicamp. Henri Pierre. Odes mínimas. A negação da morte. Albert. Arno. Trad. 2011. Joaquim Brasil Fontes. São Paulo: Companhia das Letras. 1997. Os filhos do barro. Trad. Jeudy. 2009. Veyne. Roth. Newton Roberval. Dissertação de Mestrado em Letras – Universidade de Brasília. As amantes: uma leitura de Da morte. “Mediação em imagens”. ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Olga Savary. O corpo como objeto de arte. Trad. Rio de Janeiro: Pallas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Mitologia dos orixás. 1978. Lisboa: Relógio d’água. Trad. 2008. Trad. 2003. Trad. Introdução ao Narcisismo. Becker. Safo. Mello. Marco Antônio da Silva. Milton Meira do Nascimento e Maria das Graças de Souza Nascimento. Paul. Trad. a poesia e o ocidente. Odes mínimas de Hilda Hilst. Carlos Almeida Pereira. 1997. Dicionário de mitos literários. Jorge. Lisa Ullmann. A teoria da relatividade especial e geral. Kazantzakis. Elegia erótica romana: o amor. Paulo Cesar de Souza. Os ritmos da alma. Sigmund. Jean. Trad. São Paulo: Brasiliense. Rio de Janeiro: Record. 2003. Da sedução. 1980. 1984. Testamento para El Greco. Da morte. Luiz Carlos do Nascimento. Bíblia Sagrada. Clarice Lispector. Laban. 1985. Ernest. 2003. São Paulo: Companhia das Letras. Trad. Prandi. Frederico Lourenço. Poemas e fragmentos. Homero. 2005. Trad. Tereza Lourenço. Rio de Janeiro: Artenova. Ilíada. Paulo. Sussekind & outros. Trad. 1962. São Paulo: Globo. São Paulo: Iluminuras. Freud. São Paulo: Summus. Fragmentos de uma Deusa: as representações de Afrodite na lírica de Safo. 2007. Brunel. São Paulo: Penguin Classics – Companhia das Letras. 2002. São Paulo: Estação Liberdade. Trad. Rudolf. Domínio do movimento. Coli. . Octavio. Paz. .Massao Ohno Hilda Hilst ea busca da Poesia Total Cláudio Willer Imagens: Desenhos de Hilda Hilst. Cláudio Willer tem doutorado em Letras pela USP. Entre 2010 e 2011. ministrou na USP um curso de pós-graduação sobre surrealismo. ensaísta e tradutor. acervo CEDAE-Unicamp Nota biográfica: Poeta. Massao repetiria a frase. Em 1976. encerrando a coleção Novíssimos. José Mindlin. pelos 45 anos de atividade editorial. pela simplicidade. em outubro daquele ano. beat-surreais. Precedendo Sete cantos do poeta para o anjo.3 Em 2010. com Voo circunflexo. Massao publicou muitos estreantes. de Roberto Piva. no ano anterior. não me via publicado. antes de passar a sair pela Globo. novembro de 2009. foi graças a ele que muitos começaram. Além de dois títulos em prosa. no calor de um megaevento que organizamos. a Revista da Biblioteca Mário de Andrade publicou a lista dos treze títulos da coleção Novíssimos. no período especialmente produtivo de sua parceria com Roswitha Kempf. pelo qual ainda sairia mais um título.!”. depoimentos de Alberto Beuttenmuller. foram seis títulos desde a estreia em 1950.] 3 Parte das comemorações dos 80 anos de existência da Biblioteca Mário de Andrade.2 No mesmo ano. foram os movimentos em que poesia e rebelião se uniram de modo mais efetivo. onde encontrava poetas. “o beat realizou algumas premissas do surrealismo. “Willer. sua aventura editorial está bem registrada. sem caixa. de 1962. o acervo de suas edições foi ampliado e recebeu destaque. com as fotos de Wesley Duke Lee. o depoimento autobiográfico de Massao saiu no projeto Memória Willer no artigo “Henry Miller. Foi ela quem Massao mais publicou. [N. Em 1981. 6539751. voltou a publicar. Reconhecida como grande voz poética de sua geração. E a sessão de autógrafos em companhia de Rubens Rodrigues Torres Filho. mal falava – mesmo assim. Prosseguiriam com Da morte.1 um novo selo. Mas Hilda – assim como Renata Pallottini e Lupe Cotrim – já era conhecida. sussurrou que gostaria de me publicar mais uma vez. diretores. mulheres e transgressão: essas categorias esclarecem a relação especial de Massao e Hilda. Massao custeou as edições. livros e posters. poeta de especial qualidade. Juntei poemas em prosa e adicionei um manifesto para. Houve a plaquete do Instituto Moreira Salles lançada na homenagem. A obscena senhora D. Com Piazzas e Anotações para um apocalipse. com Presságio.. noviciado da paixão. dois volumes imitando a diagramação simples das edições da City Lights de Ferlinghetti.pdf Disponível em www. A segunda parceria editorial veio apenas em 1974. A relação editorial entre Massao e Hilda foi constante: persistiu por 37 anos. Álvaro Alves de Faria. disponível em seu blog (http://claudiowiller. Perspectiva. Magro. Em 2009. Odes mínimas. em 1982: espessa torrente de impropérios.] 2 Volume 65. beat e surrealismo. Felizmente. [N. mas já por outra editora. lançaria Jardins da provocação – meu livro visualmente mais atraente. dos seus dezoito de poesia (descontando duas reuniões de poemas já publicados). o Me- com/2012/02/05/henry-miller-beat-surreal/). inclusive alguns que integrariam sua programação editorial. e com seu oposto complementar. frequentada por Massao.br/cidade/upload/Depoimento_MassaoOhno_127 . São iniciativas que adicionam informação à história da própria Biblioteca. Ainda não havia pensado nisso. O caderno rosa de Lori Lamby.E. Carlos Vogt. após uma década afastado. da transgressão. após a virada explosiva de Fluxo-floema. como Brasiliense..gov. Nesse quesito. de Décio Bar. retornava a Massao com. pelo simples motivo de que dificilmente outro enfrentaria aquele desafio. e ele. Renata Pallottini. acompanhando um elucidativo artigo de Heitor Ferraz Mello.. 4 Sigo a bibliografia que acompanha as edições da Globo. Heloisa Buarque de Holanda e o meu. pelo modo como o branco predomina. Enfrentando dificuldades.Impossível não me expressar na primeira pessoa ao escrever sobre Massao Ohno. lançar Anotações para um apocalipse – juntamente com Piazzas. da história de como ele promoveu um avanço na criação gráfica da edição de poesia.sp.E. Fernando Paixão. em dezembro de 2004. E onde conheceu Hilda Hilst. São trechos de uma saga. mais de cinquenta depoimentos de ex-funcionários. O caderno rosa de Lori Lamby e A obscena senhora D são inigualáveis. Foi a Hilda da maturidade. com o lançamento de Júbilo. fez Dias circulares. ano em que Massao. Nela. memória. Paranoia. pesquisadores. mória Oral reuniu. aos 20 anos. o editor a quem Hilda mais encaminhou textos. vi-o pela última vez. além de contarem com criadores extraordinários. Poesia. Plinio Martins Filho. puxou-me para um canto e repetiu-se. Coleção Maldoror. uma literatura do avesso. beat-surreal”.wordpress. em 2005. Uma relação cronologicamente às avessas. de Piva. saudada pela crítica. inventamos. declarou no começo de 1964. nove tinham o selo de Massao. e com mais desdobramentos”. talvez o mais belo de todos os livros que fizeram. usuários e artistas que fizeram parte da história da Biblioteca. Antonio Fernando de Franceschi. em uma manifestação em favor de Piva. havia bancado um projeto gráfico complexo. Segundo Oral. assim como. a Feira de Poesia e Arte no Teatro Municipal. envelhecido. que mais o frequentou. também foi a que mais ousou. Armando Freitas Filho. de 1980. 1 O termo foi usado pela primeira vez por Roberto Piva para designar seu livro Paranoia.prefeitura. complementada por um acordo operacional com a Civilização Brasileira e realizações graficamente brilhantes.4 Ia e voltava: publicada por editoras então comercialmente fortes. No temporal. com uma reputação literária consolidada. Em março de 2010. quero te publicar. Siciliano. por exemplo. da própria Hilda. a propósito de Com os meus olhos de cão e outras novelas. tinha-a como mais uma representante de uma tradição da qual eu e alguns amigos nos distanciávamos. a do ciclo Tertúlia do Sesc. Não a frequentei. rejeitaram a espantosa história da menininha sem limites em sua vida sexual. também. nunca antes apresentado em nossa literatura. um dos editores. de 1986. interpretei como sátira dirigida ao mercado editorial (algo corroborado por entrevistas da própria Hilda). mas um mito literário. No Jornal da Tarde. Imediatamente.5 ensaios de maior fôlego e um capítulo de minha tese. reunião de suas prosas pela Brasiliense. alguém que é cultuado. o escândalo com O caderno rosa de Lori Lamby: amigos e críticos. que a bebida tinha reduzido em vinte anos sua expectativa de 110 anos de vida. na ocasião. colaborando na revista Isto É. recebesse um exemplar: acrescentou a meu artigo uma entrevista com ela e um box sobre Massao Ohno. Evidentemente. Voltaria a tratar de Hilda. ao sair o artigo na Isto É. o jornalista Gutemberg Medeiros. Em seu depoimento para o projeto Memória Oral. Colaborava com o suplemento Idéias do Jornal do Brasil. Fui a seus lançamentos. f3CHkE3bZAY]. Eliane Robert Moraes e Alcir Pécora). Aprecio tratar dessa narrativa em palestras. mostrando a armadilha que ela criou para leitores ingênuos.youtube. tornaram-se amigos.6 Pequenos acréscimos a uma fortuna crítica colossal – e muito merecida. logo seguido por Qadós (depois renomeado como Kaddosh).. escrevi um artigo. Hilda e Massao? Além dos encontros para tratar de publicações e lançamentos. após lê-lo. contou-me. e de novo em 1990. al­ coólatra declarado. Hilda virou-se para ele e comentou: “É – esse me entendeu”. tive de rever essa avaliação quando saiu Fluxo-floema em 1970. Na década de 1960. posicionei-me a favor (como o fizeram. já em 2000. até mesmo hospedar seu estúdio por um tempo em um escritório com espaço sobrando na rua Paim –. daqueles mais afeitos às telenovelas. de 1972.Se com Massao minha relação foi pessoal – de encontrá-lo. Deveria ter conversado mais com ela: assunto não faltaria.!” – como se fizesse diferença. o lamento por García Lorca. juntando exaltações do amor. que também admitiu. fazermos coisas juntos. novamente por Massao Ohno: obra de síntese. Quem a visitou na Casa do Sol foi Piva: entusiasmou-se com as gravações de vozes misteriosas. Não podia deixar de concordar com Leo Gilson Ribeiro de que se tratava de algo novo. em breve sairá em livro. já ouvi alguém comentar. Seu amigo e estudioso.. quando saiu Amavisse. conversaram sobre discos voadores e outros focos de interesse comum. admitindo a qualidade de sua escrita. elogios da loucura e imprecações contra Deus. noviciado da paixão nas leituras de poesia daquela década: “Os dentes ao sol” (que Ignácio de Loyola Brandão adotaria como epígrafe e título de uma narrativa). Encantou-se com a matéria no Jornal do Brasil. Foi quando comentei pela primeira vez o gnosticismo em sua obra: o dualismo. Incluí poemas de Júbilo. Hilda apreciava o que escrevi sobre ela e concordou com minhas interpretações. a visão do mundo regido por um mau demiurgo. como se não estivéssemos igualmente na esfera simbólica independentemente de a obra apresentar aquilo como vivido ou inventado pela protagonista. que. aliviado: “Ah! Então a menina inventou tudo! Não aconteceu nada disso. até mesmo Leo Gilson Ribeiro. ao chegar ao final. com Hilda. Após edificar o público com as enormidades relatadas em uma dicção infantil. fiz que Humberto Werneck. memória. disponível no Youtube [www. a convocação de “Poemas aos homens do nosso tempo”. em 2010. rendi-me à fulgurante beleza de Da morte. 6 Publicada em livro pela Civilização Brasileira.com/watch?v=- . Dediquei-lhe palestras. encontro da dicção lírica e daquela transgressiva. Acho reconfortante ela ter-se tornado não só uma autora reconhecida. 5 Uma delas. gnosticismo e a poesia moderna. juntando perversidade e inocência. também pelo Sesc. por ocasião de uma mesa sobre ela em 2010. Odes mínimas e. Logo a seguir. a relação foi como leitor e estudioso. Um obscuro encanto: gnose. além de colocá-la na capa do caderno. Massao fala de um último encontro. também na Isto É. mas ocasionalmente. além de outros quinze pelo tabagismo. Em 1980. e conversamos mais demoradamente uma vez. um deus degradado. viam-se. no qual a aconselhou a parar de beber – logo ele. que o poema se realizasse. compareceu a eventos e performances como aquela realizada por Beatriz Azevedo no Sesc Pompeia. predominam as imagens visuais. muitos outros: Wesley. se fosse abranger os autores de capas. também. os livros que iriam interessá-la. me informou que Massao foi poucas vezes à Casa do Sol. senso de ritmo. queria a Poesia Total. Em seguida. . nunca se furtou a entrevistas. Foi uma parceira de artistas visuais. Mora Fuentes. entre outros. Penso que ela aspirava a uma confluência ou síntese do verbal e visual. Ademais. Millôr. a relação se estenderia. a fanopeia – embora. Nas primeiras publicações de Hilda. estejam presentes e sejam fortes a logopeia e a melopeia. e de outros meios: apreciou ser musicada e gravada por Zeca Baleiro e José Antônio Almeida Prado. Ideias não lhe faltavam. Jaguar. Fernando Lemos. mencionando apenas os que ilustraram. Procurou fazê-lo. O projeto de Da morte. além de se telefonarem. cúmplices e confidentes. Gutemberg Medeiros). Odes mínimas contém uma inversão da relação: ela já havia feito as aquarelas. não foram tomadas de posição poéticas? Foi essa vontade de. na vida. Hilda escrevendo para uma publicação de Renina Katz – isso. com Tomie Ohtake. musicalidade. precedendo Sete cantos do poe­ ta para o anjo. Para usar os termos criados por Octavio Paz em O arco e a lira.Gutemberg Medeiros. mas se encontravam sempre que Hilda vinha a São Paulo. Confidentes. através da dramaturgia. menos ainda. Ubirajara Ribeiro. pois. ir além para alcançar a poesia plena que aproximou Massao e Hilda e os tornou parceiros. e uma inversão. Ianelli. e foi Massao quem lhe pediu poemas para acompanhá-los (informa-me. já estão presentes artistas plásticos: Darci Penteado. novamente. Pinky Wainer. que prepara um ensaio sobre Hilda. Clóvis Graciano. a vida que levou. Maria Bonomi. Arrisco uma interpretação adicional para a constância e produtividade dessa relação. evidentemente. A própria Casa do Sol. Massao lhe mandava. Anésia Pacheco Chaves. que acontecesse a “encarnação da poesia”. através do livro. E. do que publicava. a escolha por morar lá. em sua poesia. Olga Bilenky. sua projeção na diacronia. Arte do dossiê Hilda Hilst: Gabriela Lissa Sakajiri . embora em geral o negasse. portanto. citamos Teatro do sacramento (Edusp/Editora da Unicamp. muito recente.Unicamp. aparentemente mais frutos de ocasião em sua escrita do que de engajamento sistemático e consequente. A rigor. de São Paulo. . Mesmo Rubem Braga. naturalmente. todo o material ficou inédito em livro até 2000. cujo lugar cultural.Se há uma disputa dura e que mexe com os nervos entre os leitores de Hilda Hilst (1930-2004) é saber se ela é mais poeta ou mais prosadora. a edição do conjunto integral se deu apenas na edição da Globo em 2008. ou. O conjunto delas só foi editado pela Globo em 2007. o mais celebrado dos cronistas brasileiros do século XX. À exceção da única peça mais conhecida. O verdugo. o desinteresse parece até mais compreensível: Hilda se limitou a escrever para um único jornal. tanto no jornal como no cenário literário brasileiro. por iniciativa da editora Nankin. em 1998. durante um período bem determinado (1992-1995). Nota Biográfica: Alcir Pécora é crítico literário e professor do departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Entre as obras de sua autoria. A publicação em livro desse material apenas aconteceu. Há diferenças. quando foram lançadas quatro pela editora Nankin. parte da história é semelhante: as suas oito peças também foram escritas num período bem determinado. ressentia-se dessa situação de relativo desdém pelo gênero. Máquina de gêneros (Edusp. contudo: o teatro de Hilda foi escrito num período em que era ele o gênero que mais contundentemente catalisava a produção e a recepção cultural da época. e ainda parcialmente. de outra maneira. 2003). mesmo pelos seus mais fiéis leitores. Desenhos de Hilda Hilst pertencentes ao acervo do cedae . sempre foi secundário. de circulação apenas regional. 1994). 2001) e Rudimentos da vida coletiva (Ateliê. Falo. Novamente. do teatro e da crônica. até agora. a sua circulação ampla é. No que toca ao teatro. Por outro lado. Ele poderia ter ficado conhecido e ter sido muito mais montado e debatido do que realmente foi. como a revista Cult e o jornal Folha de S. se foi mais longe literariamente na poesia ou na prosa de ficção. Paulo. pouca atenção tem sido dada. mais precisamente de 1967 a 1969. Em relação à crônica. Colabora com diversos periódicos. Bem diverso do que se dá com a crônica. aos textos que produziu em dois outros gêneros. Proponho-me aqui a fazer um breve passeio por esses dois gêneros e esboçar o que neles funciona mais. O teatro Hilda compôs oito peças. Hilda Hilst dava mostras de entender o apelo único que o teatro representava naquele momento. procurou evidenciá-lo a tese de doutoramento de Sonia Purceno. tanto por sua significação nacional de resistência contra a ditadura militar. a julgar pela volúpia com que jovens dramaturgos têm se lançado sobre a sua prosa. a saber. de certo ponto de vista. Pode-se dizer que foi uma produção de ocasião. a qual. que se desdobram em confronto contínuo.Além disso. quase abstratos. em relação à poesia. mal começava a existir. tais confrontos de personagens proliferantes se dão no âmbito de cenários econômicos e sistemáticos. Em adição. O caderno rosa de Lori Lamby e em outros textos de ficção – de um forte movimento dialógico do fluxo. Quero dizer. o efeito mais importante de seu teatro foi o de ensaiar a sua prosa. há um dado bem curioso e importante a ser anotado aqui. I. A tese convincentemente demonstra a existência – em Fluxo-Floema. No entanto. melhor do que eu o fiz. recebe um tratamento marcadamente dramático. Poder-se-ia pensar que. é preciso mergulhar na leitura deles e perceber o quanto o seu processo de composição mais nuclear. permanece num limbo tão obscuro como o das suas crônicas. mas invariavelmente com escapes estreitos para cima e para baixo. como disse antes. Como apontei. mas passível de ser acessada on-line na Biblioteca da Unicamp. Ou seja. o fluxo de consciência. ou menos. pois. como se sabe. mas não uma produção oportunista. a dramaturgia de Hilda tem se alimentado de sua ficção mas. o teatro não teve efeito significativo. Para entender esse fenômeno do apelo teatral de seus textos em prosa. Hilda produzia há mais de uma década. como pela vigorosa consonância com as manifestações políticas e artísticas que ganham corpo em todo o mundo ocidental. o que os afasta bastante da representação realista. não é assim. entre 1967 e 1969. cujos pensamentos vão se construindo ou improvisando mentalmente. Já comentei esse aspecto dramático da literatura de Hilda em outros textos. então. do que com uma geração contínua de personagens. . ainda inédita em livro. A própria poesia de Hilda nunca mais foi a mesma depois da experiência como dramaturga e da sua iniciação na prosa. pois estavam e estão lá os problemas que se tornariam centrais em sua obra em prosa. Conquanto o teatro propriamente dito de Hilda Hilst esteja praticamente esquecido. que tem menos a ver com uma personagem ensimesmada. É como se o teatro de Hilda apenas alcançasse o seu ponto de realização na prosa. Ao escrever todas as suas peças nesses pouco mais de dois anos exuberantes. promete crescer muito mais. a dramaturgia sobre a sua obra não teatral cresce sistematicamente! E. sustentado por personagens antagônicos e cenários compostos de recintos confinados. tendo obtido várias resenhas favoráveis de críticos importantes. trata-se de um período no qual o teatro – e em especial o teatro universitário – adquire grande importância. e como se o que produziu diretamente como teatro não chegasse lá. No entanto. e. para. Isso não torna melhor ou mais aguda a simbologia de que lança mão nas peças. em termos de dramaturgia. portanto. embaixo. perfeitamente distintivos. a qual tanto se abate sobre o seu criador. o anódino institucional de cima. único. que vai se instalando em meio a uma situação de histeria coletiva. a Escola ou outra instituição exerciam seu programa repressor. mais apetrechados. aqui acentuado por um clima neogótico. a sua diferença em relação aos padrões anódinos da instituição. Outra vez. De modo geral. Acontece que Hilda. noviciado da paixão. penetrado por lembranças vagas. ele se resumiria a uma coleta de lugares-comuns do teatro militante de época. capacitava-se para ver além dos processos edificantes da reeducação social e cívica. aplicando-o contra a população e contra os heróis. que reproduz. sem contudo abdicar dela. muito diversos de todos. sem deixar de constituir suas peças em torno desses lugares-comuns de época. de um lado. e não o homem comum ou a coletividade em geral. o que acaba involuntariamente fazendo é prover a instituição repressora de recursos muito mais eficazes do que ela dispunha até então. Para um leitor familiarizado com a sua obra. que até então parecia predominar. de feitio genericamente didático ou doutrinário. de 1968. ou seja. o teatro de Hilda Hilst parece servir mais à prosa e à poesia do que a si mesmo. a Igreja. São estes os que mais recebem a admiração da jovem teatróloga. Até certo ponto. é fácil . Hilda se aproxima curiosamente de autores como George Orwell. de inspiração parnasiana. isto é. quanto se mostra impotente diante da sua manipulação autoritária. quem sabe. se. fazendo que a aporia e a contradição ocupassem o lugar central de todas as suas peças. que acaba pagando o preço de sê-lo em meio à autoridade repressora. O visitante. está na imagem baixa do “rato” para caracterizar o único ser que. o que se põe fora da estreiteza institucional é marcado por algum estigma. Revela-se aqui um tema que sempre esteve no coração da obra de Hilda: a existência de uma condição destrutiva no cerne da mais genuína criação. aquela que desafina o estereótipo adotado. Assim. personagens que se caracterizam como representantes de uma comunidade. a nota hilstiana mais interessante não é. como vários críticos já apontaram e eu mesmo tentei demonstrar em notas à edição de Júbilo. mas também como seres de exceção. Insiste-se numa imagem dos protagonistas como seres “com asas”. memória. a retirá-las do vazio interpretativo em que se encontram. a Empresa. e à gente comum. Dou um exemplo bem recorrente em todas as peças. insubmissos e dispostos a se sacrificar por uma ordem mais justa. livro de 1974 que inaugura uma fase muito mais complexa em sua poesia. por exemplo. Quando a personagem “América” inventa “Eta” e “Dzeta” supondo demonstrar a fecundidade da sua imaginação e. pode-se pensar que. ganhou contrapontos surpreendentes de humor. nem sempre simpáticas às correntes dominantes nos pensamentos da esquerda – a começar pelo fato de que a instituição autoritária tematizada por Hilda é especialmente vigilante contra os mais talentosos e estranhos. Em O rato no muro. Essa contradição entre invenção e liberdade é o que há de melhor na peça. de registro vulgar e de vivacidade dialógica que lhe deram muito mais alcance estilístico e intensidade de fatura. mas diversifica o uso que ela faz de uma simbologia já reconhecida por ela mesma como inexoravelmente “gasta”. Elas significam o óbvio: apontam o sujeito inconformado. a melhor nota hilstiana. O efeito geral é de desarranjo assombrado. Evidentemente. criativo. o Tribunal. não é uma impressão falsa: trata-se de um teatro alegorizante. esses pontos de desequilíbrio dos estereótipos é o que me interessa ressaltar aqui. No caso de A empresa (ou A possessa). introduz variantes notáveis no desenvolvimento deles. do mesmo ano. Desse modo.O salto de qualidade é evidente. entretanto. conversas exasperadamente cifradas. interditos. de 1967. é a peça mais distinta do conjunto dramático produzido por Hilda Hilst. tendo agilidade para subir no muro. A dicção poética alta. o Exército. cujo 1984. mas o alerta sobre a possibilidade terrível de que justamente os jovens mais criativos possam ser cooptados ou ter a sua imaginação posta a serviço do processo repressivo. mal-entendidos. entusiasmar outros leitores. é possível dizer que Hilda submeteu os lugares-comuns da época à sua própria maneira de encará-los. sugeria que nenhuma ação repressora de desintegração da vontade pessoal atingia o seu grau máximo antes da colaboração de um intelectual criativo. de outro. como se poderia esperar. cujo assunto básico gira em torno de uma situação de opressão institucional. por episódico. nisso. a denúncia da repressão institucional sobre os jovens. herói posto em Hilda está particularmente interessada em considerar o uma convicção situações extremas. no camp r o lugar de outro Auschwitz. Tais ofícios. curiosamente. mas são designadas pelo ofício: o “Passarinheiro” e o “Trap ezista”. e. cuja presença nunca corpo vivo que te ao leitor. da situação de repressão institucional constante no seu teatro. se o caracterizam como um Cristo solitário. No entanto. também o esboçam como um ente exclusivamente aludid o. portanto. quando nada no ário. O seu andamento. ainda. ao se apresentar voluntariamente para ocupa por uma suposprisioneiro sorteado para morrer de fome como punição cou o padre ta fuga ocorrida no campo. Nisso. lembr a mais um herói . Antes de ser um morto que pode ou não ser condenado à morte. No entanto. A cena idílica inicial logo se revela como fonte de suspeitas. que não recebem nomes próprios. O auto da barca de Camiri. a ação é inspirada nos event o nazista de zados pelo padre Maximilian Kolbe. Além da vinculação mais direta com a prosa posterior de Hilda. Parece celebrar a alegria e a força generativa da vida. no fundo de toda relação amorosa. a Igreja católica beatifi então. que Hilda acolhe. mas também obscurece. a salvação é uma possibilidade adiada e o Cristo revolucionário é um sujeito ausente. apenas se ouvem . morto em 1941. a peça está igualmente distante de uma situaç ão pacificada. ainda mais quando a conversa merg assunto principal. mas. em outubro do ano anterior. efetua uma via tortuosa que arruína a ideia de confiança entre os que se amam. parece dar qualquer fiança para a verdade da crença. O próprio título já o evide ncia. Em 1971. distante. mas também com os próprios propó sitos alegóricos que a autora pretendeu extrair do episódio. se dá diretamenmaldito de romance epistolar gótico. a peça se distingue do conjunto teatral pelo seu viés erótico e intim ista. também de 1968. enten os protagonimártir da liberdade. que será publicada apenas doze anos depois. com vagos elementos de paganismo popular. o que certa mente tem a ver com a censura de época. mas é apenas referida por outros. evoca a lembrança de alguma fantasia literária imemorial. julgamento está encerrado em seu próprio impulso de repre ior no sentido­­ As aves da noite. No fundo os que não se é acusado e os juízes que o condenam fazem parte de espaç si. desde listas e outros ser designado como Santo Protetor de presos políticos. Na peça. permanecem intocáveis entre em sentido equíA notar também que o termo “auto” é explorado na peça ação de assunvoco. nas quais deseja dar testemunho de mundo oferece moral e religiosa inabalável e explicável. enquanto o a realidade vivida pelo “homem” é um anúncio de vida futura ssão e morte. percebe-se facilmente. Tamb ém está óbvio que o “Che” by Hilda tem muito de Cristo: é ele o cordeiro sacrificial imolado com sentido expiatório para salvação do conjunto dos homens. o nome do guerrilheir o jamais é revelado. cruzam e que. centrado num triângulo composto de mãe-filha-genro. o “homem” que vas de metralhadora e os gritos dos executados. foi canonizado por João Paulo II e. Dessa vez. ainda de 1968. não como quem pode tomar para si a palavra. incompreendido. No entanto. jorna profissionais ligados à liberdade de expressão. sendo referido apenas como “homem”. pois o processo que condena o “homem” també do “prelado”. Reforça esse aspecto a personagem e confirmar que Tomada de modo favorável. o que traz novamente para a cena a simbologia operaciona l “gasta” a que me referi antes. na peça. a sua impossibilidade de as rajadas sucessidade que ocorre fora do palco – desta. ao contr testemunho de seu completo vazio. segue de perto a peça anter dido como de dramatizar um episódio real da morte de um herói. tem como pano de fundo a morte de Ernesto “Che” Guevara. até certo ponto. costuma Kolbe. em 1982. já que Camiri é o nome da região da Bolívia onde “Che” teria sido morto. a sua natureza sagrada. O “homem” é julgado in absentia e os atos que lhe atribuem. Hilda compõe um núcleo familiar que nada tem de prosaico. estão no domínio do “ar” ou das “asas”. mos de incompreensão e de interferências deslocadas do nse do Direito A deriva aleatória do julgamento parece demonstrar o nonse lidar com a realisustentado pelos juízes. significando tanto o material processual como a encen m acaba atestando to sacro. já surge na forma de continua a assombrar os vivos. a traição e a dor que parecem residir. inalienáveis. A cena é do julgamento das ações do tal “homem”. mas acaba também por pressagiar o engano. é a única que pode entender . acusações e situa­ ções torturadas.reconhecer que ela contém o núcleo narrativo da segunda parte da novela Tu não te moves de ti. As testem unhas da defesa são figuras igualmente alegóricas. feitos pelos O efeito abertamente cômico dos diálogos e interrogatórios ulha em paroxisjuízes remete a Kafka. ao contrário. . portanto. não partilhada. poderá resgatar teleologicamente o crime que se comete no presente. e não é difícil sustentar que. de 1969. os maiores talentos não estão necessariamente a serviço do bem – antes. no caso. A entrega voluntária à crueldade do outro é o único gesto eficaz contra a ação violenta. O mundo é este e a nobreza. que apenas poderia resultar numa nova forma de tirani a. a vontade coletiva é sempre menos decisiva do que a escolha individual. noturnas embora. seja a do próprio prisioneiro. na peça. o “homem” em julgamento é “Che”. A peça é uma ficção futurista à maneira de 1984 ou de Admirável mundo novo. ao qual não se nega a aplicação da metáfora gasta: são “aves”. movida pela pulsão de morte. de afirmação sacrificial no tempo presente. a Física se torna a fonte subsidiária do Direito e. a admiração de Hilda vai para os que voluntariamente escolhem o fim que lhes é dado. de legitimação científica do poder tirânico. novamente. última das peças de 1968. é a peça mais representada de Hilda e também a única que chegou a ser premiada e publicada em seu tempo. cujas características cristológicas são acentuadas pelo feitio de parábola de seu discurso. O corolário dessa posição é a clara descrença num futuro forjado por uma doutrina revolucionária. Primeiro. com a particularidade de que. O verdugo. O novo sistema. novamente traz à cena as alegorias do autoritarismo presentes nas demais peças. implica a tentativa de compreend er o paradoxo da luta armada – e. no futuro. A ideia que parece defender é que nada. O double think orwelliano se torna. Falando por parábolas. pois mais convicta de suas bases sociais e cientí ficas. Em termos políticos. fornece o paradigma da ação institucional repressiva. Pode-se dizer que a posição de Hilda é próxima à de Ghandi. há de ser manifesta já. na esfera coletiva predomina uma subalternidade estúpida. são lugares em que o bem e o mal se encontram como potência. conduzida pela vingança da injustiça sofrida. na encenação de confrontos de atitudes entre os prisioneiros face à morte. Quero dizer. Segundo. de tal modo que nessa escolha da morte e da não violência reside paradoxalmente toda a esperança humana de sobreviver à barbárie. com uma variante: é a ciência que. seja a do carrasco. Nenhum mundo novo. da qual nada se pode esperar a não ser a servidão voluntária a qualquer senhor. Repet e-se o esquema de julgamento já presente no Auto da barca de Camiri. mas significativa porqu e torna existente no presente a potência de humanidade que reside no indivíduo. nela. da violência – num projet o cuja destinação final é a relação amorosa entre os homens. portanto. o que. a questão da interpretação passa a ocupar o primeiro plano do drama. uma espécie de mote didatizante. Dois elementos importantes de dissonância dos clichês típicos dessa compreensão da ciência como novo totalitarismo emergem aqui. Contra essa ideia de compaixão sem limites está não a razão ou a justiça. quando houver. mas há nela também um acento cristológico. popularizada nos movimentos contraculturais dos anos 1960. nobre e justo aguarda ao fim do pesadelo. ainda pior ou mais cruel. mas o rancor autodestrutivo dos que se debatem inutilmente contra a fragilidade da vida e o horror habitual do destino.Outro ponto relevante a considerar na peça é a apologia feita à aceitação do sofrimento próprio e do reconhecimento da humanidade mesmo no mais cruel inimigo. agora. Cada gesto autoritário introduz o mantra da ciência positiva: “estude Física”. diante da arbitrariedade tirânica. . em larga medida. ainda de 1969. o repúdio às posiçõe s polarizadas da época. com personagens atuando em cena. ao menos. São peças que praticamente não tiveram encenação profissional. no passado. Não func ionaram. resultou no fracasso de seu teatro. mesmo nesse ponto de relativa justificação da violência. o que será marcante na prosa posterior de Hilda. a não ser de ordem subjetiva e intelectual. possivelmente antevendo o desgraçado fim da história. sem deixar de acentuar os polos. ou tudo isso. deixa clara a venalidade das gentes. a cena do julgamento de rua retoma diretamente a do julgamento de Cristo por Pilatos. sem conseguir reagir. Sempre que volto ao texto das peças. A morte do Patriarca. como fazia Pasolini. é menos o seu desfecho cético. o que tende a justificar ou entender a necessidade da violência na luta pelo direito. além de um surpreendente Ulisses. mais uma vez. diante do público. produzindo diálogos agudos e ágeis. ou em nome de um futuro para elas. em troca de dinheiro e vantagens imediatas. Cristo. ou.A resposta aventada pela peça contempla dois movimentos distintos: primeiro. A última peça de Hilda. Entretanto. sem intervir. um teatro popular que parece implacável com o povo. o enredo abstrato. Deus e os anjos apenas observam. também reforça uma tradição de leitura revolucionária do Cristo. a não ser O verdugo. A iconoclastia dos jovens traz dentro de si a origem do mal que produziu. posto que irrealizadas. pergunto-me se elas – que foram longamente desenvolvidas. como são chamados os que resistem à execução da pena injusta aplicada pelos juízes. uma discussão política que mais parece condenar a política. portanto. de líderes revolucionários. situações potencialmente fortes. como teatro propriamente dito. No palco. a ascensão da própria Igreja. de uma etapa de sua efetuação progressiva. Mas como saber o que vale um teatro que não é encenado? Se o fosse. é objeto da simpatia da autora (ao contrário de Marx. o acento colocado sobre a palavra poética. à execução de seu líder. apenas a violência dessas “patas” agisse em favor da instauração da justiça. as imagens de Cristo. isto é. se O verdugo acentua a feição cristológica do líder revolucionário. ainda mais que Ulisses. Os textos têm bons momentos. que padece a morte pelo bem dos que o vendem. pois os “homens-coiotes” apenas assistem. Não é o caso: os jovens que invadem o palácio e matam o papa o fazem sob os incentivos do mesmíssimo conselheiro do papa que cai: o demônio. O mais marcante no andamento da peça. É o que me ocorre dizer como apresen tação sucinta do teatro de Hilda Hilst. Lênin ou Mao). É como se. na prosa de ficção de Hilda – teriam ainda chance de funcionar como teatro. mas nenhum deles consegue blindar a Igreja quando eclode a revolta popular contra sua autoridade. são exibidas como forma de atrair e manipular a simpatia de um grupo de jovens prestes a tomar o palácio papal. entretanto. Nisto. até agora. são já ruínas. em 1964. um olhar mais agudo para as contradições e as incongruências do que par a a clareza ideológica – qualquer coisa. imagino que demandaria fortes adaptações. do que o humor anárquico que se desenvolve em meio às cenas mais dramáticas. a peça. evidencia a impotência da revolta. uma vez que as tópi cas revolucionárias e as metáforas gastas com as quais dialoga. ensaia-se uma justificativa para as grandes “patas de lobo” desenvolvidas pelos “homens-coiotes”. A falta de açã o. Assim. com o seu O Evangelho segundo São Mateus. que não hesitam em sacrificar o “homem” que fala por elas. Segundo. E não tenho resposta para essa indagação. Assim resumida a ação. retoma a encenação em ambientes confinados e quase sem ação. a peça pode parecer um passo adiante de O verdugo na aceitação da violência revolucionária. de maneira mais complexa e radical. certo catolicismo pad ecente e vitimista que contamina o pacifismo. Em certas crônicas. não. é ainda tão amargamente divertido como no tempo em que Hilda as escreveu. de um golpe. era motivo para os mais veementes protestos contra sua linguagem desbocada. Refiro algumas delas. para muitos. O Brasil sem-vergonha de Collor e PC Farias. de alguma forma. para outros. a qual. que são sempre novos-ricos. Esse é apenas um exemplo. mesmo o tema difícil. com destaque para os casos que pudessem atrair “simpatia humana”. longe disso: o que hoje se passa é apenas continuidade cabal do mesmo merdel de “quinto mundo”. hilariantes e igualmente duros. todos os dias. além de ser patente a sua falta de sintonia pessoal com o ar conformista dos anos 1990. alguém que não apenas sabe fazer entender o contrário do que diz. a crônica de Hilda não passava despercebida. ajudava o trabalho de sopro. que tinha como título apenas o nome da autora. passou a circular aos domingos. das famigeradas “sobras” de campanha. Crônica Quando já tinha 60 anos completados. Ler aquelas crônicas da primeira metade dos anos 1990. O melhor jeito de se livrar do pior da sua ironia é aprender que não há sentido elevado possível que imediatamente não traga o contraponto de uma baixeza: a humanidade não está em nenhum deles sem que venha junto o outro. que o Brasil é um desastre persistente. assim permanecendo até 20 de setembro de 1993. do roubo da Previdência. Talvez por isso as crônicas ensaiem diversas possibilidades de criação no gênero que lhe é próprio. Para alguns poucos. entre tantos outros. É passar os olhos pelas crônicas de Hilda Hilst para conhecer. Mas não era profecia. e quando fizer isso. já vomitei”. Quase digo que o que ela registrou antes apenas agora se revela em toda a sua densidade e mau cheiro. entendido como aprendizado de rir de si mesmo e de desistir de toda afetação vulgar. De 17 de outubro de 1993 até o final de sua colaboração. que Hilda mandou ao jornal. seja a de intelectual sério. mesmo se não exclusivamente nelas. rindo. que sempre se louva de muito engraçado. negão. De tudo isso Hilda falava e ria. voltando-se contra si mesmo e produzindo aporia e paradoxo. há poucos autores que pratiquem uma escrita de alto nível na qual o humor seja um componente tão decisivo. fora dos parâmetros de uma escrita “coerente e agradável”. sempre tendo como editor do caderno o jornalista Jary Mércio. pois novos e impensáveis descalabros públicos lhe cairiam nas linhas afiadas. deu-lhe um mar de metáforas escabrosas. que era talvez o mais constante do conjunto das crônicas. da prostituição infantil. mas que suspende as certezas do que diz e do que insinua. para Hilda. animava velhinhas a se empenharem na prática do sexo oral. dos anões do orçamento. mas. da privatização cavilosa. como ainda se apresentam a nós. nunca implicou em perda de humor. e o fez regularmente entre 30 de novembro de 1992 e 16 de julho de 1995. O tom metódico e didático do texto era hilariante. seja a de autoridade. da chacina da Candelária. nada era estranho ao humor. Alguém ainda terá de falar com muita seriedade da Hilda Hilst humorista. ao contrário.. edificante nos seus próprios termos. Esse mesmo exemplo da velha gulosa serve para mostrar que. será nas crônicas que encontrará alguns de seus melhores argumentos. Isso a obrigava a inventar saídas novas para a sua crônica. da parvoíce do plebiscito da monarquia. e depois: “agora é tarde. fruto do que ela chamaria de pornocracia. isto é. . entretanto. A sua coluna. Já estou ouvindo Hilda gritar da sala. Estar sob o influxo do humor das crônicas de Hilda é. suponho que se tratava de razão suficiente para comprar o jornal. Lembro-me exemplarmente de uma crônica sua. A justa indignação. no âmbito do jornal. brava. Deixava evidente que Hilda Hilst era uma humorista completa. começou a ser publicada às segundas-feiras. enquanto vai vendo e ouvindo as notícias no rádio e na televisão: “me tragam meu penico de estanho que eu vou vomitar”. da secular indústria da seca. especialmente no que diz respeito à sua indignação contra a roubalheira generalizada do governo e a insensibilidade venal dos políticos. Às segundas ou aos domingos.II. se não doloroso. das negociatas do FMI. O roteiro lhe parece cínico e desonesto demais num tempo quase sem esperança à vista. das misérias da velhice. era a chance de rir dos destrambelhamentos de uma velha louca. da impunidade generalizada. estar implacavelmente exposto a um processo educativo. de Campinas. no sentido pirandelliano do termo. Hilda Hilst aceitou o convite para escrever uma coluna de crônicas para o recém-criado Caderno C do jornal diário Correio Popular. No Brasil. da arrogância boçal dos ricos. garantia a cronista. intérprete de grandes aspirações nacionais. e ainda estaria a esbravejar. ou reino da pornografia inata.. Hilda justamente tematiza a expectativa usual de que o texto se efetue como comentário otimista das notícias recentes. já que a falta de dentes. à que não faltava o calão. Certo é que não havia meio de frear a liberdade da imaginação de Hilda Hilst pelo chamado à responsabilidade do senso comum. mas. ali mesmo. a não ser para fingir para o vizinho igualmente atoleimado a inteligência que não tem. não me parece que esta seja das soluções mais bem resolvidas. a célebre personagem de Melville. à maneira dos poemas hilariantes reunidos em Bufólicas. que misturavam a última lambança pública com historietas nonsense. gente basicamente desesperada que. Hilda propõe como leitores de sua crônica velhos casais desanimados. mas seguramente desconhecidos do leitor médio do jornal. E então. Há crônicas. surgem descolados do restante da crônica. Essa é a sua variante do I would prefer not to.Outra estratégia hilstiana para a crônica foi a criação de fábulas com moralidade invertida. declara-lhe divórcio radical. não se distinguem em ignorância do “povão. não compra livros. diria que as estratégias inventadas por Hilda nas crônicas privilegiam um procedimento básico: colocam no centro da roda uma imagem caricata do leitor habitual do jornal. Os poemas. ela usava as crônicas como divulgação de sua obra poética. no campo do jornal. senhoras falsamente pudicas que simulam inocência escandalizada e a acusam de “nojenta” ao editor do jornal. Enfim. entretanto. o qual leria a obra exatamente como se gostaria que ela fosse lida. São um modo despachado de dizer de novo o que já disse. nesses casos. cujo performativo é dado pela fórmula: “sou gente não”. na prosa ou na poesia. sem saber o que fazer do deserto da própria vida. Digamos que. . ao contrário do que supunham. de repente. ao contrário. faz recuar o seu ofício mecânico e contingente de escriba a um estado de negatividade primordial. ainda. caterva. mas que ali. escritos e publicados em outros tempos. que simulam uma espécie de entrega ao fluxo de lembranças momentâneas e aos desvios mais inesperados do andamento argumentativo. Essa caricatura de leitor avança e se amplifica até abarcar a humanidade inteira. frase com que Bartleby. De modo geral. no meio das páginas do jornal. Pessoalmente. sobretudo por exigir um tipo de concentração ou estratégia de leitura muito diversa daquela que orienta o início referencial da crônica. de que fala Boris Groys. as crônicas significam a abertura para uma grandeza artística que tampouco se efetua nelas. São geralmente resumos. no extremo oposto do “leitor utópico”. desfechos caricaturais de algo que já se passou mais completamente em outro lugar. o que produz uma impressão de imediatismo e de improviso total. representantes da “sociedade campineira” que. sínteses cômicas. mais e melhor. do seu leitor ela não pleiteia fraternidade ou sequer a amizade. Entre as saídas que ensaiou está a de misturar comentários de notícias recentes com poemas e textos de sua própria autoria. sem fim e sem começo. em geral. saturados da própria companhia esvaziada. populacho”. gera a alegria perversa de maltratar quem não a leu. como uma conversa que irrompe. aposta no Esse alheamento de si como moralidade e leitor no cultivo da boçalidade como evidentemente trunfo da convivência. [esguiche. pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé do pé pétempo. lembrar pé pé pé pé produção pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pévale pé pé pé pé pé pé pé o pé sonepé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé to pé pé pé pé pé pépublicado pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé digesta pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé “Natal” na antologia Poesia (2004): pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé péBiográfica: pé pé péRonnie pé péCardoso pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé péLiterários pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé Nota é professor e jornalista. Compenso o que no abuso se me impôs (pedal humilhação) com meu fetiche. Para a pé devida apresentapé pé pé pé saída pé pé pé de pé pé pé pé pé pé Pedro pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé ção pé pé pé pé pé pé pé pé péque pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pée péforma pé pé pé pé dessa figura nasce para dar fundo à pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé estética do seu criador. pé pé pé pé invade pé pé pé péde pé pé pé pé pé pé pé pé a pévida pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé que pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pécomo pé pé pé pé este vai gradativamente desaparecendo. minha meta jamais foi ao guru servir de escolta nem crer que do Messias venha a volta. a carne: a pornografia em Hilda Hilst. a pé palavra “glaucomatoso” surja pé pé pé pé ção pé pé pé pé pé pé pé Talvez pé pé pé pé por pé pé isso pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé como pé pé pé pé pé pé solução pé pé pé pé pé pé compromisso. poeta pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé brasileiro. lambendo. também foi escolhida para nomear pé pé pé pé sofre pé pé pé da pé pé pé pé pé pé mas pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé seu pé pé heterônimo. pé pé pé pé pé pé pé pé pé péfilia pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé literariamente. pé pé pé pé pé pé pé péos pé pé pé pé pé pé da pé pé pé pé pé pé pé Mattoso quando prazeres pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé e pé ospéefeitos perversos glaucoma se pé pé pé pé literatura pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pédo pé pé pé pé pé pé pé já pé pé péembapé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé tiam pé pé péna pé pé pé pé de pé péPedro pé pé pé pé pé péFerreira pé pé pé pé pé pé Silva pé pé pé (o pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé vida José da verdadeiro pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé do efetivamente em 1951). pé pé pé pé nome pé pé pé pé pé autor. os pés do algoz. pé pé pé pé pé pé pé porque. e meus pornôs poemas de Bocage são pastiches. Mas não compenso. nem que o gozo Bastardo como bardo. pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé péalude pé pé pé ao pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé segundo o pé autor. dependesse da pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé cena de José. masoca. Mestre em Estudos pela UFMG. pé pé pé pé pé pé pé construído pé pé pé pé pé pé por pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé ou meio dele. pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé 148pé RBMA 69 pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé Glauco Mattoso: um perverso ao pé da letra Nasci glaucomatoso. atualmente está cursando doutorado em Literatura Brasileira na USP. pé pé pé pé pé pé pé péEla pé pé designa pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé uma de aquele que pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé doença. mas sim invectivar tudo o que veta. Poeta me tornei pela revolta que contra o mundo a língua suja solta e a vida como báratro interpreta. sepé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé projeto associado a pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé a pé potência pé pé pé pé péfetichista pé pé pé pé pé e pé perversa pé pé pé pé pédo pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé Mattoso. pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pénascido pé pé pé pé pé pé pé pé pé péA pé iminente pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé cegueira pé pé pé pé pécom pé pé pé pé pé pé pé pé pélimitar pé pé pé péa péqualidade pé pé pé pé pé pé pé sua pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé certeza iria da fruipé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé literária.pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé Cardoso pé pé pé pé Ronnie pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé Glauco pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé nasceu pé pé pé pé em pé pé 1974. pé pé pé péa pécriatura pé pé pé pé pé pé pé pé e pé pé pé pé pé pé Com o pé passar cresce pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé tal maneira de seu criador. não poeta. Desenvolve pesquisa sobre a erótica literária e a espé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé tética da perversão. esta cegueira. Escreveu a dissertação Na falha da gramática. de a quem se pé pé pé pé do pé péBarroco pé pé pé pé pé pé pé pé pé pé Gregório pé pé pé pé pé pé pé Matos. 69 RBMA 149 . por debaixo. a própria linguagem torna-se objeto da fantasia erótica e apresenta um novo traçado da sexualidade para o leitor” a instauração da diferença. chega a citar passagens do texto de Caprio. rendeu-lhe “material pra muita punheta”. Na vasta obra do autor. mas principalmente na forma de enunciação. ela produz um mais: sou mais sensível. o embasamento conceitual. Nos diversos gêneros por ele praticados (poesia. foi o de colocar a sua vida. a própria linguagem torna-se objeto da fantasia erótica e apresenta um novo traçado da sexualidade para o leitor: a perversão não aparece só na perspectiva temática. Mattoso. faz feliz. a história do trote estudantil. recortando e desviando o caso relatado pelo médico do aparato clínico que o circunscreve. Barthes. associado muitas vezes à prática sadomasoquista. já são mais de cinco mil sonetos escritos e mais de cinquenta livros publicados. O narrador do Manual do podólatra amador revela ser um leitor contumaz desse gênero textual desde a 1 G. Que nem fazer um gol de pênalti. ou ainda. duplicando. a tortura. prosa. romance. principalmente do livro de Frank Caprio. assim. Já que nesse terreno a literatura é curta e minha experiência larga.Catalogado com o número 951 de uma extensa série de sonetos que acumulam os saberes e os prazeres da sexualidade desviante. Mesmo tendo um caráter biográfico (ou de autoficção). assim.. também escreveu ensaios sobre a lírica marginal. De fato. seria preciso determinar o ponto de corte. A maior parte de sua produção compõe-se de poesias. programas ou ideias típicos de um manifesto. ibidem. mais perceptivo. a podolatria e o sadomasoquismo são temas recorrentes que singularizam a sua produção textual. aventuras e leituras de um tarado por pés (2006). A ideia de se autobiografar pareceu-lhe uma tarefa grandiosa. as suas experiências sexuais. loc. o rock. mas sim heterônimo ou alter ego de Pedro José Ferreira da Silva. tirar doce da boca de criança ou gozar tocando punheta. o texto da vida. empurrar cego em ladeira. “autoficção” e contos. a Ciência não querem compreender que a perversão. cujas supostas patologias foram descritas. Logo percebeu que. para ser mais preciso. mas também o 2 Idem. erotizar ou perverter as definições a respeito de sexualidade desviantes presentes nos manuais de sexologia aos quais teve acesso. O texto como fetiche O Manual do podólatra amador. desleixados e malcheirosos – desvia-se em direção ao espaço textual. a fixação aos pés masculinos – que. Ele desloca os princípios normatizadores do texto científico. Sem o peso de compromissos mais genéricos com a Ficção ou a Memorialística.3 Assim. nele o eu textual criado por Pedro José se assume como perverso. Ao alterar o texto original. não só o texto clínico é rasurado. Nesse volume. Quando encontra o caso de uma relação incestuosa entre pai e filho. Nesse movimento de construção de um eu textual fetichista. os seus conhecimentos e as suas leituras sobre a tradição obscena como foco e fonte da escrita. ibidem. como também nos ensaios O que é tortura (1984) e O calvário dos carecas: história do trote estudantil (1985). foi fácil & rápido produzir este livro. Nos escritos de Caprio. – e. percebe-se nele determinados posicionamentos. o que é possível fazer diante da repetição que não permite 150 RBMA 69 69 RBMA 151 . para resgatar a memória do que foi vivido ou para romancear os acontecimentos. 3 Idem.”. direta ou indiretamente. “Nesse movimento de construção de um eu textual fetichista. Sob a assinatura de Mattoso. 4 R. a Doxa. como também traz uma contribuição crítica aos estudos literários brasileiros e aos estudos sobre perversão. no romance autobiográfico Manual do podólatra amador.1 Ao longo do volume. O fetiche por pés e as experimentações sadomasoquistas estão presentes. duplicado e ampliado por meio da escrita de Glauco Mattoso. a genealogia e as filiações da concepção estético-literária que estamos denominando “estética da perversão”. a dimensão do prazer. que não deve ser visto apenas como um pseudônimo. adolescência. em seguida. apresentado pelo autor na seguinte passagem do Manual do podólatra amador: Só me dispus a isso quando percebi que a fórmula tava bem mais aquém: bastava ficar em torno daquilo que eu havia lido & feito com relação aos pés. Tal perspectiva fica ainda mais clara no livro A planta da donzela. em grande parte da produção poética do autor. deveriam ser grandes. numa atitude que evoca outros sujeitos perversos. Em vários momentos. ou. em alguns momentos. o autor procura questionar. de forma pioneira. ficcional ou autobiográfica). aponta sua filiação literária e mostra a revolta que só pode ser traduzida por meio da “língua suja e solta”. procura recortar as aberrações em função do seu desejo. mais divertido.. 77. memórias. Encontra-se em consonância. 162.4 Na produção literária de Mattoso. com o que defende Roland Barthes no seu livro autobiográfico: “A Lei. cujo subtítulo é “aventuras e leituras de um tarado por pés”. além de tratado de versificação. o fetiche por pés. ensaio. o texto de Mattoso procura alternativas para impasses que surgem no contexto da indústria cultural. portanto. segundo a sua preferência. O volume apresenta os princípios.2 Daí que. bater num cara amarrado. O livro representa não só a consolidação literária de uma concepção estética. reflexões e emoções da sua existência. pervertendo a finalidade didática e científica de tais relatos. o Manual do podólatra amador não deixa de ser um romance de tese. p. simplesmente. Em outras palavras. etc. no Psychopathia sexualis. Manual do podólatra amador. segundo o eu textual. p. faz o seguinte comentário: “Tava eu lá interessado em saber se o filho era paranoico e o pai esquizofrênico? E eu com a opinião do psiquiatra? O que eu queria era me imaginar naquela cena onde o carinha contava. vem alojar-se a diferença (e. cit. dicionário. aparece como o enunciado a ser repetido. o imaginário perverso de Mattoso (vinculado à ficção) serve-se do conhecimento clínico para. mais loquaz. Aberrações do comportamento sexual. p. como reverter o processo de esgotamento e de homogeneização do relato pornográfico que gira em torno de clichês sobre a sexualidade? O primeiro passo dado pelo escritor (que transita pelos espaços da ficção e das vivências reais. reescrevendo-o à sua maneira. fornece o aporte mais profícuo para se definir o projeto estético-literário do autor. 29. O óbvio e o obtuso. as proposições. nesse mais. pervertê-lo. Mattoso satisfaz seu desejo por meio da palavra escrita. do Doutor Krafft-Ebing. alterado ou reescrito por Mattoso. Essa obra. relatado pelo Doutor Caprio. tudo o que eu passasse pro papel seria lucro. o romance A planta da donzela (2005) e os livros de contos Contos hediondos (2009) e Tripé do tripúdio e outros contos hediondos (2011). a vida como texto)”. desviando-se do tratamento e da cura associados a cada caso. contudo. misturando os dois) em direção oposta à domesticação e à padronização impostas pela indústria cultural. deslocar. o vício & a virtude. ibidem. já pouco criativa por si mesma. entre tantos outros. Em função da perda gradativa da visão. Com o passar do tempo. Nesse percurso. um trabalho arqueológico que visa resgatar textos esquecidos. permitia que se lembrasse. Machado de Assis. registra assim o seu estado atual: 7 Idem. A reescrita pode ser entendida. Mattoso. p. confissões ou relatos do que foi observado por diferentes interlocutores. para moldar ou domesticar tal conteúdo­incômodo. 70. a deficiência visual e a palavra vão se suplementar no mesmo movimento de duplicação e ampliação do gozo perverso. como no soneto “Perpétuo”. com alguma pitada de conto de fada. um romance cujo enredo desenvolve-se em torno da singularidade do pé e do desejo sexual que ele desperta. o autor tenha feito mero pastiche: aliás. A memória erótica. Luís Delfino. contestável ou não. e pra isso traça o caráter dos personagens da forma mais estereotipada e simbólica: cada um com sua carga moral. que. p. o castigo & o prêmio. no caso da literatura gay. ibidem. sobrepondo-se a isso. como nesta passagem: Um soneto como aquele “Higiênico” (143) me veio na mesma noite em que.texto literário. a monotonia dos contos eróticos foi a pauta central. por sua vez. Comentávamos que. Nos textos que selecionava e incorporava em seus escritos. mostrando assim que. sendo um desafio constante para o seu percurso perverso. Nesse percurso. aqui. No entanto. renegados ou disfarçados por discursos civilizadores. que lhe são contemporâneos ou não. que duma crônica de costumes. p. como é possível observar na singularidade da denominação heteronímica do autor (Glauco Mattoso = glaucoma). e o fantasma da solidão deixou de ser um pânico meramente material para se concentrar na carência afetiva. Manuel Bandeira.6 Glauco Mattoso conhece bem a literatura brasileira. a estrutura perversa do desejo de Mattoso vai transformar a própria deficiência em mecanismo de prazer. o trabalho amplia-se. percebe-se o acréscimo ou acúmulo de diversos elementos perversos. Álvares de Azevedo. que costumeiramente me visitava. e sim a ociosidade. cantada em verso e prosa. mas os contos foram concebidos ao longo de uma produtiva interlocução com os sonetos que o autor escreveu a partir do momento em que ficou totalmente cego. de construção de uma plasticidade que foi moldada por meio do desvio sexual. dos “fisiologismos” & “psicologismos” que caracterizariam mais tarde “teses” da ficção naturalista. Uma fábula. lampejos selecionados e destacados em função do seu recorte fetichista. 75. 6 Idem. tais como o próprio Alencar. a cegueira. que a punheta talvez não fosse bastante para preencher.5 Esse livro é A pata da gazela (1870). era então convertida em sonetos. no entanto. esse conceito talvez seja insuficiente para se compreender a singularidade da sua literatura. sempre houve pouca vanguarda e muita retaguarda. embora para adultos. mas hoje convivo com a cegueira mais pacificamente que nos anos 90. Não me adaptei. apesar da cegueira. à mera sequência ereção-penetração-ejaculação. Em vários dos seus textos está presente uma 5 G.7 O livro foi publicado em 2011. o bom & o mau. Gregório de Matos. A de Alencar era só uma “tese” romântica. Laurindo Rabelo. 8 Idem. p. 152 RBMA 69 69 RBMA 153 . Em Manual do podólatra amador e em alguns contos que publicou. recorte e arquivamento realizado em função de um traçado fetichista que envolve acúmulo e repetição em torno do objeto do seu desejo (o pé). retratam uma circunstância erótica que atualiza alguma cena já experimentada no passado pelo eu textual. Roberto Piva. Manual do podólatra amador. segundo o autor. o autor explora o palimpsesto como forma de enunciação: cada conto remete a um ou mais sonetos que.8 Dessa forma talvez conseguisse despistar ou evitar a angústia. Alguns textos da nossa tradição literária foram recriados por Mattoso. não como cópia.9 Os contos de Tripé do tripúdio vão ampliando as formas da interlocução intratextual com diferentes personagens (reais e fictícios). com discursos diretos. Aliás. elevada ao status de tese estética”. Tal estratégia. torna-se um dado relevante para analisar a sua produção literária. muitas vezes. Mattoso se propõe a reescrever totalmente aquele que considera “o grande monumento ao pé. encontra-se uma perspectiva crítica que coloca em questão os clichês da literatura erótica. todo o roteiro sexual delineado por sua imaginação nas noites de insônia. o soneto. e o magistral ficcionista de Histórias naturais e de Geografias humanas. fica reduzida. João Silvério Trevisan. Em alguns contos desse livro. O mocinho & o bandido. Em A planta da donzela (2005). 81-82. 81. intercalada. tais como o sado9 Idem. Em todo o livro. conversando com Carlos Carneiro Lobo. Nada do “rigor científico”. Conforme observa o autor paulista: Trata-se mais duma fábula desenvolvida. resulta ainda mais burocrática por estar presa a falsos clichês como o mito do pau grande e o vício do coito anal. que o deixará totalmente cego dos dois olhos. cujas obras são. o escritor decide registrar por meio de uma forma fixa. No conto “O sexagenário sedentário”. seu “tesão continuava vivo e esperneando”. A narrativa é sempre em primeira pessoa. interlocução profícua com escritores de diferentes períodos históricos. mas sim como invenção e fundação de uma prática textual. flagrantes. Trata-se da única patologia assumida como tal no projeto estético do escritor. principalmente no caso de A planta da donzela. mas não parece que. O tripé do tripúdio é outra obra importante para a percepção do projeto estético de Glauco Mattoso. que intumescia o corpo e a palavra de Glauco Mattoso. ele já havia mostrado o rastro que a podolatria tem deixado nas letras brasileiras. citadas “ao pé da letra” e. o clássico da podolatria em sua concepção feminil. como já vinha fazendo. expunha então sua própria teoria a respeito: a arquetípica estrutura narrativa na base do começo-meio-e-fim. ibidem. pp. O excesso na perversão Glauco Mattoso mapeou as variadas manifestações podólatras na literatura brasileira. reescritas em função do seu deleite fetichista. por outras. por vezes. o feio & o bonito. além de citações de diferentes gêneros textuais. o certo & o errado. seria uma questão que ficaria em segundo plano diante do movimento de seleção. consegui me virar na vida prática. No mínimo. Joaquim Manoel de Macedo. do itinerário textual do seu gozo. quando o impacto da desgraça me levou a sonetar desesperadamente. o escritor do Romantismo brasileiro apresenta princípios morais baseados numa lógica maniqueísta. como movimento de rastreamento e formação de uma estética sobre perversão ou. de José de Alencar. eram apenas passagens. no homoerotismo. ibidem. O autor pretende expor uma tese. ou estimulada por ela. Já não era a incapacidade que me assustava. ao acordar. avaliada pela cômoda balança do maniqueísmo. em que me considero prisioneiro e condenado a chupar o pau do primeiro carcereiro (leia-se qualquer visita) que aparecesse. para efeitos “edificantes”. 58. A ambientação do enredo no cenário urbano da corte imperial é meramente circunstancial. A despeito dessa limitação. Fernando Gabeira. o autor executa. de outro modo. quando percebe que a cegueira pode legitimar e intensificar a sua atuação masoquista. como constata. senão um leitor podólotra? Depois de selecionada. escondido debaixo da cama. selecionando.. em sua leitura voraz. antes. Macedo.13 O segundo movimento operatório envolve ampliação. Mattoso mostra o excesso no texto original: detalhes. mais especificamente. Mattoso. Nesse sentido. restando não vivido. apertado em um sapatinho de cetim. constituindo assim uma comunidade marcada pela perversão. Tanto nos textos de sua autoria. uma paródia. ao momento em que Augusto. de lavra própria e de outrem. p. Ao se observar a biblioteca de obras nacionais constituída pelo escritor de Tripé do tripúdio.10 Com o destaque dado a esse fragmento. Manual do podólatra amador. Segundo a proposição de Barthes. sobras que vão se amontoando em sua biblioteca. seja para desvirtuá-la duma vez. Mattoso ressalta a direta relação desse termo com a noção de antropofagia de Oswald de Andrade. Nesse processo. e que estava mesmo pedindo um. 9. Tanto nos ensaios quanto na poesia e na ficção do autor. maior seria a qualidade estética do relato revisitado pelo eu textual perverso. 70. A primeira operação requer selecionar. personagem de A moreninha (1844). recortada e realçada por Mattoso. por exemplo. Ao fazer “apologia da merda em prosa & verso”. Agamben. Manual do podólatra amador. em contexto e temporalidades diversas. no papel do maníaco radical. Em consonância com Barthes (O óbvio e o obtuso). que passaria despercebido para um legente cujo desejo não fosse acionado por um regime de leitura estimulada pela perversão ou. a disodia. a letra é vista aqui tanto como materialidade ligada às mais profundas experiências humanas. só mesmo um podólatra assumido ou um psiquiatra castrador estaria apto a parafraseá-la. rematando este interessante painel róseo. ou. Esse eu textual. remontado e aumentado segundo um traçado que refaz a historiografia pelo avesso (seu olhar quase sempre se direciona para as partes baixas do corpo.. quanto como encruzilhada de símbolos. apertando-os com força procurava iludir a sua imaginação. Em A planta da donzela. personagem de A moreninha (1844). e tantos outros elencados por Mattoso em seu Manual do podólatra amador.. para quem o revisionismo literário está a serviço do vício. deformações e toda sorte de inversões sexuais. A planta da donzela. p. meteu a roupa que tinha enrolada entre os dentes e. Quase que já não se podia suster. mais especificamente. Derrida (Gramatologia) e com a psicanálise lacaniana. entre os quais ele se encontra. Porém. um plágio descarado ou uma citação apócrifa”.. Quem se ateria. quanto mais o desejo por pés estivesse associado a outros desvios ou fetiches. No Manual do podólatra amador e.. antes do discurso. ou “psiquiatra castrador”. mil beijos. gesto de revisitar e alargar pela reescrita os textos que tocam o desejo do escritor. parece que toda perversão só existe em nome da letra. Rastreia. ao desvio.. Ao se voltar para obras de diferentes autores. 11 G.. ou seja.12 o autor procura. de Joaquim Manoel de Macedo. p. cem. seja para enquadrá-la nos padrões da “normalidade”. enuncia e conduz sua criação. arquivando a nossa literatura segundo um processo que denomina “cropofagia”. No traçado executado por Mattoso. é incessantemente relançada para a origem. reunindo. 12 Idem. dez. O escritor de A planta da donzela direciona o leitor para detalhes que normalmente não seriam notados. M. ambas derivadas da escavação da linguagem. catalogando. no entanto. e não para o alto). pela podolatria. ibidem. que aproximam o lado obscuro dos nossos desejos à cifra da letra. traz à tona autores ou obras esquecidos. sem jamais poder alcançá-la”. anterior ao sintagma. É preciso atentar-se para o traçado da leitura e da escritura proposto por Mattoso. no plano literário só seria possível uma estética da perversão sob a condição de um fetiche da letra. 14 G. pode ser experimentado segundo um regime de leitura perversa.. “Quem se ateria. sabem identificar tão bem. um pezinho que só se poderia medir a polegadas. como motivação masturbatória. rompe-se a separação estanque dos estilos de época para ganho da linhagem de escritores extemporâneos. uma sátira. acumular e fixar ações fetichistas que. a figura do pé feminino descalço vem para o primeiro plano da narrativa: Ele vê a um palmo dos olhos a perna mais bem torneada que é possível imaginar!… Através da finíssima meia aparecia uma mistura de cor de leite com a cor-de-rosa e. 143. ela seria o estado adâmico da linguagem. por exemplo. além de remeter a outros desconhecidos. escondido debaixo da cama. a um passado remoto. observa a perna e o pé de uma donzela que se despe. ou seja. ao mesmo tempo. Mattoso. fazer “uma reciclagem ou recuperação daquilo que já foi consumido e assimilado. O traço fetichista encontrado por Mattoso nas obras dos autores nacionais pode não ser percebido pelo leitor comum.. em suas palavras. o autor avisa: Tratando-se duma novela fetichista – mais especificamente retifista – e maniqueísta. como nas antologias que ajudou a organizar – Antologia sadomasoquista da literatura brasileira (lançada em 2008) e Aos pés das letras: antologia podólatra da literatura brasileira (lançada em 2011) –. O que é contemporâneo?. 13 Idem. antes do erro. lembrando-se da exótica figura em que se via. mas quem o pensaria? Não foram beijos o que desejou o estudante outorgado àquele precioso objeto: veio-lhe ao pensamento o prazer que sentiria dando-lhe uma dentada. O olhar do escritor de Manual do podólatra amador recorta o texto original em um ponto insuspeito. p. fica a sensação de que o livro de Macedo. fixando. no controvertido Jornal Dobrabil. Nesse caso. para quem “a­­via de­acesso ao presente tem necessariamente a­forma de uma arqueologia que não regride...masoquismo. senão um leitor podólotra?” deram. que um fetichista. atualiza e revitaliza textos de autores do nosso passado literário tendo em vista a constituição de uma erótica podólatra brasileira nas letras. já estava de boca aberta e para saltar. cria-se uma profícua interlocução com a literatura brasileira atual e com autores da nossa tradição literária que lhe antece10 J. resíduos. p. Tal figura pode tanto ser associada a uma metodologia de leitura quanto a um processo de produção criativa. um detalhe do texto do outro é recortado. mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e. Eu me habilito no primeiro caso. percebe-se uma dupla operação. apud G. observa a perna e o pé de uma donzela que se despe. 154 RBMA 69 69 RBMA 155 . A moreninha. 69. pode ainda ser vinculada à noção de contemporaneidade proposta por Agamben.11 Por meio do fetiche do eu textual. ao ruído. construída segundo um corte perverso. um certo fetiche pela letra vai suplementando ou sobredeterminando o fetiche por pé. o qual tem a ver com a atenção ao detalhe. 144. ao momento em que Augusto. de Joaquim Manoel de Macedo. quando Mattoso solicita a escritura. pode-se perceber o diálogo com a nossa tradição literária por meio do acúmulo e da ampliação. também apontam para a figura de um leitor voraz.. cobrindo as brechas deixadas pelos historia­ dores da literatura nacional. como também em sua escrita.14 Enfim. . Disponível em: <http://sonetodos. Psychopathia sexualis: as histórias de caso. 2 ed. Glauco. . 1965. O calvário dos carecas: história do trote estudantil. uol. 1999. . Jacques. Derrida. . O prazer do texto. Jornal Dobrabil. 2003. Gramatologia. 2005. São Paulo: Editora Perspectiva. . Chapecó: Argos. 2009. São Paulo: Landy Editora. . Giorgio. Krafft-ebing. Contos hediondos. 2000. São Paulo: All Books. 2011. Poesia digesta.br>.Bibliografia Agamben. . São Paulo: Martins Fontes. 2 ed. Roland Barthes por Roland Barthes. Barthes. O tripé do tripúdio. Fourier. A planta da donzela. São Paulo: Iluminuras. São Paulo: Brasiliense.sites. São Paulo: Editora Demônio Negro. São Paulo: Martins Fontes. 2005. Aberrações do comportamento sexual. 2001. Imagens: Juca Lopes 156 RBMA 69 . Rio de Janeiro: Nova Fronteira. São Paulo: emw Editores. O que é tortura. São Paulo: Ibrasa. Richard von. Frank. Caprio. 1990. Sonetodos: poesia completa de Glauco Mattoso. . O que é contemporâneo? E outros ensaios. Loyola. Rio de Janeiro: Lamparina. Sade. O óbvio e o obtuso. mattoso. . 1999. Manual do podólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés. Acesso em: 18/03/2012. 1986. 2006. 2009. 2008.com. . São Paulo: Tordesilhas. Roland. São Paulo: Estação Liberdade. . 1985. São Paulo: Perspectiva. a região passou a ser denominada pelos jornais da época como “Boca do Lixo”. uma série de distribuidoras de filmes se instalou no centro de São Paulo.E A BOCA DO LIXO NO CINEMA x OCA DO LIX 2 N Imagens: Ozualdo R. Candeias os anos 1920. em função do grande número de figuras marginais que frequentavam o local. Carrocinhas transportam latas de filme 1 3 . 1. Cavalo puxa carroça na rua do Triunfo. como prostitutas. ladrões e traficantes. Prostitutas na rua do Triunfo. 2. 3. Elas vinham atraídas pela facilidade logística graças à proximidade com as estações da Luz e Sorocabana. No início dos anos 1950. Candeias e Anselmo Duarte no bar Soberano. 7 4. que frequentavam principalmente os bares Soberano e Ferreira. Bar Soberano 7. sua produção passa a se concentrar cada vez mais nos filmes eróticos. onde idealizavam projetos cinematográficos. Cida. Com esse agrupamento. alcançando grande sucesso de público. que com o passar dos anos foram se tornando mais apelativos. Ozualdo R. no bar Soberano em 1977 5. O local passou a atrair técnicos. Caio Scheiby. principalmente na rua do Triunfo. produtores e atores. em 1977  8 .  Miro Reis e Zé do Paiol. Paulo Emílio Sales Gomes e Carlos Roberto de Souza.4 5 6 Já a partir do final dos anos 1960. o cinema foi ganhando um caráter popular e levou muitos espectadores às salas de projeção. Grande parte dessa produção era concentrada na Boca do Lixo. A partir da segunda metade dos anos 1970. a produção cinematográfica nacional voltada para as classes populares intensificou-se diante da repressão política. Ferreira. no bar do Ferreira 6. Bar Soberano 8. entre eles a pornochanchada. em São Paulo. diretores. aliado à criação pelo governo militar do Instituto Nacional de Cinema (INC) em 1966 e à legislação que associava as distribuidoras estrangeiras à produção nacional – permitindo que parte do imposto devido sobre a remessa de lucros fosse investida nos filmes –. no bairro da Luz. gênero por excelência associado à região. A diversidade na produção cinematográfica da Boca abrangia diversos gêneros de filmes. 9. foi o primeiro filme de sexo explícito brasileiro. Ody Fraga. Claudete Joubert e Tony 12 Vieira durante festa na Boca 10. Jairo Ferreira. Rubens Eleutério. John Doo e Oswaldo de Oliveira (Carcaça) 13. de Raffaele Rossi e Laente Calicchio. Paralelamente ao aumento da inflação.11 9 Em 1982. Antônio Thomé. Coisas eróticas. o advento do home video e o desinteresse do Estado levaram o mercado cinematográfico a se enfraquecer. Carlos Reichenbach e Rogério Sganzerla 11. contribuindo para a decadência da produção na rua do Triunfo. Rubens Ewald Filho no bar Soberano 12.  Moreira e Walter Portela 10 13 . o que acabou estimulando a produção de obras de péssima qualidade. Silvio de Abreu. Bibi Vogel e Elisabeth Hartmann ou Festa na Boca (1976) 21. Jairo Ferreira. Candeias filmando Bocadolixocinema 16.14 19 16 17 15 21 14. Jean Garret. Placa da rua do Triunfo com grafia antiga 18. Ozualdo R. Atriz se exibe para diretores e técnicos . Carlos Coimbra e Júlio Calasso 20 19. Oswaldo de Oliveira (Carcaça) e Carlos Reichenbach 15. Valéria Vidal e Oswaldo de Oliveira (Carcaça) 17. David Cardoso e Claudete Joubert durante 18 festa na Boca 20. Frequentadores da rua do Triunfo . Morador de rua na região da Boca do Lixo 23.22 23 22. sobre os romeiros que visitavam o padre Donizetti. o cineasta Ozualdo Candeias. premiados pela Fundação Cultural de Curitiba. o curta A pensão e. entre os anos 1960 e 2000 registrou fotograficamente o dia a dia da Boca do Lixo com suas câmeras Exakta 50 mm e Nikon. O conjunto dos trabalhos propõe contar a história e a efervescência daquele lugar que foi. assim. Chofer de caminhão. é tão desconhecido e pouco estudado. realizou no Museu da Imagem e do Som em São Paulo outra exposição. O reconhecimento da grande contribuição cultural de seus filmes se revelará também nos trabalhos produzidos pela Embrafilme. Candeias aprimorou seu conhecimento técnico e teórico frequentando o Seminário de Cinema do Museu de Arte Moderna de São Paulo. realizada com essas imagens. e a trabalhar na equipe técnica de algumas produções. Com ela realizou filmagens caseiras. no início dos anos 1950. Candeias realizou diversas viagens pelo interior do estado de São Paulo e. de um modo próximo e espontâneo. então considerado milagroso. hoje. Em seguida. marcando seus vinte anos de fotografia. Em 1989. responsável pela produção de filmes de grande importância para a história do cinema nacional e que. está ligada à história desse polo de produção cinematográfica que chegou a ser responsável por cerca de cinquenta por cento da produção dos filmes nacionais nos anos 1970. CANDEIAS . Ozualdo Ribeiro Candeias foi um dos cineastas mais criativos que o país revelou. As bellas da Billings (1987) e O vigilante (1992). premiado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. projeto que posteriormente ganhou forma de publicação. entre 1955 e 1957 . Polícia feminina e Marcha para oeste. o cotidiano do cinema paulista da época. Em 1967 . em paralelo à sua produção cinematográfica composta por 35 filmes e doze telefilmes. Em 2001. entre eles. aos poucos começou a frequentar a região. ou as rosas da estrada (1981). Manelão. editou um livro homônimo com os personagens da Boca em fotos tiradas na rua. na Imprensa Oficial. Uma rua chamada Triumpho. em outros tempos. sua primeira obra acabada. Presente em todos momentos da Boca. Leopardo de Bronze no Festival de Cinema de Locarno. Essas experiências possibilitaram ao diretor seguir para uma prática mais formal ao realizar diversos filmes institucionais. Com a obra pronta. o caçador de orelhas (1982). o documentário Tambaú. em 1955.Precursor do cinema marginal e um dos expoentes do cinema autoral no Brasil. A boca. dirigiu seu primeiro longa. falecido em 2007 aos 89 anos. A margem. a cidade dos milagres. ocorreu em 1984. que conquistou bom resultado de público e foi considerado pelo Instituto Nacional de Cinema o melhor filme daquele ano. quando passou a dirigir documentários institucionais e cinerreportagens. OZUAL OZU OZUALDO R. dirigiu-se à Boca do Lixo para tratar da distribuição e. revelando. A trajetória de Candeias. comprou uma câmera 16 mm Keystone para registrá-las. como Aopção. Foram mais de quatro décadas de fotografias do cotidiano da vida e do trabalho na Boca do Lixo. Sua primeira exposição. o que possibilitava a inserção de mais imagens nas páginas. livro que Candeias editou em 2001 com a colaboração de sua filha Simone R. São fotos mostrando que os tempos áureos do cinema da Boca do Lixo em São Paulo de fato existiram. e um movimento considerável de carrocinhas puxadas por pessoas. Candeias e do pesquisador Plácido de Campos Jr. mas sem a vitalidade de outros tempos. Na rua do Triunfo no 155 estava o mítico bar Soberano. sobretudo tendo em mãos Uma rua chamada Triumpho. deixando-as dinâmicas. Gusmões e Vitória. é um verdadeiro exercício de imaginação. Ainda existem os prédios históricos. É interessante observar a arquitetura daquela fachada. onde a grande maioria das produções eram gestadas. “preservada”.. um tanto quanto malconservados. muitas delas colagens feitas pelo próprio Candeias. hoje. filmes em 16 e 35 mm. OCA DO LIXO NO SÉCULO XXI BOCA DO LIXO NO SÉCULO XXI Imagens: Jorge Bodansky . hoje transportando sucatas variadas – antes. hoje é uma loja de informática. A publicação é repleta de textos e fotografias.Andar pelas ruas do Triunfo. intelectuais. traficantes e usuários de drogas. engraxates. . Não se pode dizer o mesmo de hoje. estudantes e policiais – geralmente montados em seus cavalos altos – convivendo pacificamente. travestis. técnico. desejosa por fazer cinema – fosse como produtor. diretor. retirantes. ator.DO LIXO BOCA BOCA Nos idos de 1960 e 1970. as ruas fervilhavam com gente de todo o tipo. jornalistas. roteirista. Ao mesmo tempo. figurante. ficavam por ali prostitutas. o que contribuiu para criar uma identidade da Boca do Lixo. Por estarem no centro de produção dos filmes. Minami Keizi fundou. No ano de 1976. A revista obteve sucesso comercial e alcançou vendagem média de trinta mil exemplares. que desde seus primeiros números obteve sucesso no meio cinematográfico e posteriormente se estabeleceu como uma das principais publicações de cinema da época. como Ozualdo Candeias. sobretudo aquele feito na Boca do Lixo. mantendo uma intensa proximidade com o centro de produção cinematográfica ali instalado. 24 horas por dia. Luis Castellini. em São Paulo. artigos críticos e espaço para cartas de leitores e técnicos do meio cinematográfico. figuravam nomes atuantes na Boca do Lixo. estavam fotos de atrizes da Boca.Imagens da revista Cinema em close-up cedidas por Heco Produções CINEMA EM CLOSE-UP Min Ke Minami KeiziMinam Em 1975. A Cinema em close-up pode ser considerada um dos símbolos do levante do cinema nacional. Jean Garret e Tony Vieira. Entre seus colaboradores. notícias sobre as novas produções. a editora da revista mudou-se do bairro do Caxingui para a rua do Triunfo. Minami e sua equipe colhiam informações diretamente da fonte. Em suas publicações. Fauzi Mansur. a revista Cinema em close-up. Seu objetivo era conquistar espaço no meio e alimentar o público com informações sobre o cinema brasileiro. . Ozualdo R. ocorreu o fechamento da revista. o início da abertura política. Produziu e dirigiu os longas documentais Bocadolixocinema e Ozualdo Candeias e o cinema. Candeias. com o fim do AI-5. a crise econômica e o esgotamento das comédias eróticas ligeiras produzidas na Boca. sócio fundador da Heco Produções e realizou diversas mostras de cinema entre elas Boca do Lixo cinema. Cinema em close-up é peça de colecionador e raramente encontrada em sebos e afins.Eugênio Puppo Nota Biográfica: Eugênio Puppo é cineasta. . José Mojica Marins. Hoje. CINEMA A EM CLOSE-UP Em 1979. onde já não era mais possível projetar carreiras que por vezes começavam nas funções menos prestigiadas da técnica. entre outros. Ele ganhou um dinheiro. mas não era bandido. Mas pagava a dos filhos.. sem nada? As peças. camisa Hang Ten.Meu pai morreu. Ele não ia deixar de me dar uma coisa que eu queria só porque ele achava que o que eu queria era imposto pela sociedade de consumo. eu queria ter todos os discos dos Beatles. eu queria camisa Lacoste. mas respeitava minha opinião de adolescente alienado. Meu pai tinha de ganhar dinheiro. fez Beto Rockfeller. escrevi este texto no dia em que ele morreu: 19 de novembro de 1999. Ana Carmelita e Ricardo Barros Mas eu queria tênis americano. ainda mais essa! Já escreve sobre coisa que não dá dinheiro. Puta e cigano sem dente? Puta. Mas “a nove69 RBMA 179 . cigano sem dente. Todo pai morre. cigano sem dente e desempregados não tinha “patrocínio”. Teatro? Teatro dá dinheiro. Meu pai não era um bom administrador. cigano sem dente. Sem testamento. mas além de não dar dinheiro. Não ganhou muito dinheiro com teatro. presidiários. Porra. porra! Puta. “Pai. eu comprei todos os discos dos Beatles com o dinheiro dele (depois tive de comprar tudo de novo em CD com o meu dinheiro e agora dá pra baixar de graça na internet). cigano sem dente. Meu pai era generoso. eu tive a tal guitarra. desempregados e fudidos. cigano sem dente e presidiários não dava dinheiro. desempregados e fudidos. era revolucionária. Ele tentava me orientar. camisa Hang Ten. Puta. afinal? Será que não pensava nos filhos? Por que não escreveu peça pra ganhar dinheiro? “Ninguém tem direito de pedir a um artista que não seja subversivo. Mas eu queria o meu “All Star”. meu pai não. Por que ele insistia em escrever peças sobre puta. incomodava os “poderosos”. Onde ele arrumava dinheiro? Era época de ditadura. Walderez de Barros. diziam. Puta. Agora estou aqui pensando: o que foi que meu pai me deixou? Apartamento? Não. me dá dinheiro pra comprar uma guitarra!” E eu tive. Carro? Nem uma bicicleta. Puta. Plínio Marcos. sem herança. me dá dinheiro pra comprar Meu pai fez novela. Onde ele arrumava dinheiro pra me comprar tênis All Star? Ele achava que isso era “lixo americano”. Mas Beto Rockfeller não conta. Escrever sobre puta. Era um “maldito”. cigano sem dente e cafetão. Tem gente que escreve peça pra ganhar dinheiro. cigano sem dente e cafetão é chato. cafetão e presidiários.” Meu pai escrevia sobre puta e cigano sem dente. cafetão e presidiários? Puta. mas meu pé é maior. Onde ele arrumava dinheiro? Meu pai morreu Ele insistia. me comprou um tênis. Ele fazia o Vitório. Escritor de teatro. um. Não. Calça boca fina. Deu dinheiro pra muita gente. Beto Rockfeller era “a novela”. E o ator e Jesus Cristo e nada de “comédia comercial”. o melhor amigo do Beto. gastou. cafetão. As peças de teatro? De quem são as peças de teatro? Meu pai era escritor. Por que ele era maldito. O que ganhou. tinha a cara dele.. ainda é proibido? disco do Bob Dylan!” Dia 19 de novembro é aniversário da morte do meu pai (Plínio Marcos). cafetão. cigano sem dente. Dinheiro? Ele não conseguia pagar nem as próprias contas. uma guitarra. um “marginal”. Roupas? Só um chinelo velho. “Pai. Ele achava que essa merda importada só servia pra aumentar a nossa alienação. Leo Lama. presidiários. um povo que não aparecia na TV. a arte e o ensino oficiais são sempre sufocantes”. O povo dele era. disco. Se fosse cigano com dente. mas foi sorrindo. os sambistas. quem trabalha tem de usar terno e gravata.. Naquela época. não esses de agora. fudido e sem dente porque a tv não queria. Fizeram ameaças. quando finalmente a Globo chamou ele. a minha era escola de “burguês”. enfim. Tudo bem. “Silêncio. me dá dinheiro pra comprar figurinha do álbum Brasil Novo!” 180 RBMA 69 A censura não queria meu pai escrevendo em lugar nenhum. quando eu tinha 7 anos. Os “poderosos” da Rede Globo não gostaram. porque naquela época a Globo não punha negros nas novelas e quando punha era nos papéis de escravo ou mordomo.” E o meu pai me dava dinheiro.. mas os sambistas das escolas de samba de São Paulo. Meu pai era outro. nem nada. Eu não tive dúvida: “Meu pai é aquele!”. O que fazer? Sair do país? Ele não falava direito nem o português. mas ele queria é subir num banco no meio da praça e fazer números de palhaço. ameaçado. tava em todo lugar. Mas novela de puta. cafetão e cigano sem dente? Não. Não podia peça de puta e novela de cigano sem dente pobre e fudido. pobre e fudido. E eu queria o meu tênis All Star! “Pai. entre outros. eu queria dinheiro pra comprar tênis. Daí um belo dia a Ford ligou pra ele. Meu pai não fazia comercial. Eu estudava em escola de “burguês”. foi solto.. a notícia chegou quando anoiteceu. favela na Rede Globo não tem rato. Mas como ele pagava a minha escola? Foi preso. Então o quê que podia? Não podia nem chamar a Rede Globo de racista.” Meu avô queria que ele trabalhasse no Banco do Brasil. não podia novela de cigano pobre. Então o quê que podia? “Pai. Esse povo não era o povo dele. E eu: “É. A Tupi faliu. “Pobre na Rede Globo almoça e janta todo dia. os presidiários. Foi despedido de todos. Plínio Marcos e “a negrada”? Que papo é esse? Poder. o Geraldo Filme. Eu estudei nas “melhores escolas”. cafetão e cigano sem dente não dá. O Zeca da Casa Verde. Era o que todo mundo tava chamando de mendigo. Não. Senão eu chorava. “A cultura nas mãos dos poderosos constrange mais do que as armas. eu quero dinheiro pra comprar time de botão!” Mas enquanto os “poderosos” iam dizendo “Não! Não! Não!”. Então não dá. convidando pra fazer um comercial. nos porões do DOI-CODI e nas torturas atrozes que muitos sofriam. Em plena ditadura. me leva na Expoex. não podia fazer peça de puta porque a ditadura não gostava.” por isso. Enfim. Meu pai escreveu no jornal A Última Hora. porra. Ou isso era característica minha? “Pai. me dá dinheiro pra comprar uma calça Soft Machine!” Então a solução era fazer show com os sambistas. indignado. “A burguesia não me quer”. Meu pai foi pro circo. Meu pai era aquele de macacão e chinelo! Gordo de macacão e chinelo! “O pai do Leo é mendigo. que a Globo botou a Sônia Braga dois meses tomando sol pra ficar escura. a Globo não dava mais. Ele ia pra praia e lá ficava. E as portas iam se fechando. por que o pai do Paulinho tem carro e você não? Por que você chega de madrugada em casa? Pai.. A família chegou até a pensar que ele fosse débil mental. de terno Armani. me leva na Expoex! A Expoex é a exposição do exército! Eu quero ver os soldados. Negros? Negro não podia. as putas. era de uma tribo de ciganos que estupravam as filhas dos empresários e. pai. o Toniquinho Batuqueiro. não aprovaram. guitarra. escrevia em jornais e revistas. A sinopse que ele fez pra uma novela. Meu pai foi fazer novela na Rede Globo: Bandeira 2. como se isso fosse privilégio meu. do lado de fora. um moleque de 12. E um amiguinho meu perguntou: “Quem é seu pai?”. 69 RBMA 181 . era um tapado. Os sambistas marginalizados. do Samuel Wainer. tava com dificuldade de pagar as prestações de um apartamento que ele comprou pra gente. juraram de morte. quase todos que existiam. as professoras o obrigavam a escrever com a mão direita. aquele”. o pai do Leo é mendigo!” Afinal. um “povo que berra da geral sem nunca influir no resultado”. ele foi. E olha que o meu pai odiava escola. não dá. ele sempre foi da esquerda. Eu chorava se eu fosse censurado e não pudesse ver a Expoex. o Talismã. Ele amava o circo. Era o palhaço Frajola. no meio de cada casal que fazia “amor com medo”. A Globo não gostou. aí dava. descendo o cacete. “Na televisão brasileira. E a professora ouviu. onde ele trabalhava. porra! O direito da gente coçar o saco é sagrado”.. Na escola. ele dizia. O meu amiguinho gritou: “Pai. ele cabulava as gravações e ia pra praia: “Novela é chato pra caralho. 13 anos. Ele saiu da escola na quarta série do primário. cercados de loiras recauchutadas. artista estrangeiro morto trabalha mais do que artista brasileiro vivo.” Pobre na Rede Globo tem dente. novela de puta. o Jangada. por que você anda de macacão e chinelo? Pai. mas ninguém queria ver. Ele era canhoto. Era uma puta grana. em vez de chamar uma mulata pra fazer Gabriela. cigano sem dente. Meu pai contava histórias e os sambistas cantavam suas músicas. Afinal. dava pra pagar as dívidas e ficar bem tranquilo por uns tempos. por que você dorme até meio-dia? Pai. Era chamado de analfabeto. Ele fugiu da escola. E eu lá: “Pai. os que morrem na merda. esse aí é o pai do Leo!”. em cada esquina. Mas os sambistas eram crioulos. lá estava o ônibus da escola pronto pra partir pra Porto Seguro com todos os meus amiguinhos dentro e os pais. neste país. os marginais.” A ditadura. me dá dinheiro pra comprar.la” era na Tupi. “Me chamavam de analfabeto. Com 21 anos escreveu Barrela!. pai! Eu quero ver os tanques!”. ele bem que quis escrever novela. bem. ele dizia. pai. por que você não trabalha? Pai. Agora. dando tchauzinho. musculoso e mau ator. Foi ser palhaço de circo. o Rio tem praia. ele dizia. E a ditadura ali. não podia dizer que a Globo era racista e ninguém queria ver show com “a negrada”. meu pai não era aquele de terno e gravata. Mas a Globo é no Rio. A escola dele era o circo. podia. O que fazer? “Pai. E o meu amiguinho: “Aquele de terno e gravata? Aquele que tá conversando com o meu pai?”. os ciganos sem dente. E ele me levava. um povo fudido. Quando ele tava por lá. os que nunca gravaram CD.. 13 anos. ele ia ganhando o respeito dos humildes de coração. Quando eu tinha uns 12. o sambista está dormindo. Uma vez o meu pai tava com uma dívida muito grande. você sabe. Lutava. Eu não tenho a sua coragem. Meu pai era generoso. Foi uma farra. os preconceitos. como todo mundo vai. ele mesmo ia vender. seus amigos. meu irmão. dinheiro. pai. triste. No seu velório. Eu virei escritor. Meu pai não me deixou apartamento. pra quem não quer comprar. quebrei vidraça de banco. ficou na porta do pequeno estádio. nem chinelo. E ele chorava? “Perseguido. eu diria: “Pai. andando feito mendigo pelo centro da cidade. nem apartamento. ‘A poesia. Eu devia ter uns 17 anos. você não me deixou nada que se possa enxergar. esta é a minha gente. mas de repente já era só o mar. Fui uma pessoa que aproveitou bem a fama. pai. eu te sustento até você encontrar sua vocação!” Eu saí. tem muita gente fudida. Me deixou a sua indignação. a lembrança de ver você acordando todo dia com uma puta força de vontade. disseram: . E se ele me escutasse ele diria. E podia? Não. esta gente diz que acre- dita em Deus e fode ele. pelos bares. Nem carro. e “Tudo se consegue com esforço. Foi dormir e me deixou ali. pai. o Kiko outra. A Aninha. Acho que qualquer ser humano com o mínimo de sensibilidade sabe: o ensino do jeito que é faz mal pra saúde. sem nunca acumular porra nenhuma”. mas me deixa desabafar. Leo Lama 69 RBMA 183 182 RBMA 69 . (Não?) sempre fazendo piada das próprias desgraças. esta gente não quer ser essencial. mas ele não reclamava. pensando em todos os artistas que eram muito melhores do que eu. Ele só reclamava das injustiças. Não teve mau tempo. onde você passou sua infância. seu time. Várias vezes ele foi expulso pelo “rapa” como um camelô comum. segurando as lágrimas: “Ê. pai. Nado.” Um beijo do seu filho. as grandes sabedorias não podem habitar corações medrosos. Esta gente quer ter carro. Eu tive e tenho de ganhar o meu próprio dinheiro. um pouco do seu temperamento. que vergonha que eu sinto desse tempo que eu vivo. é. Ele berrava contra as injustiças. todos nós. empresários. O mundo tá se destruindo. tem muitas festas e muita fome. pai? E eu? Será que eu vou ter a mesma fibra que você? Eu não gosto de viver como você gostava. Eu fiz por merecer. Eu fiz vários shows com ele. Eu não tenho assunto. Meu pai é o Plínio Marcos. grito de liberdade!’ ‘Plínio Marcos. que ainda usa o nome artístico que a gente inventou juntos: uma puta vontade de viver. Não. berrava e me acordava. Eu reclamo. O Jabaquara. Nós jogamos suas cinzas no mar de Santos. inibido. pai. É difícil. pelos teatros. essencial. ou pra quem compra só pra “ajudar”. carro. pai. me viu ali. nem bicicleta. eu preciso te contar. a apatia. era tudo pra ele.’ Eu acho que eu vou me vender. esta gente quer ser rica e famosa. Pra muitos era só um fudido que não deu certo na vida. casa com piscina. a arte. todos nós te aplaudimos quando o seu caixão foi colocado em cima do carro de bombeiro. violento. nos bares. Não podia. Ele declamava e eu ouvia como se ele me pegasse no colo. Você foi cremado. fãs. Médicos. com a mão no coração. pai. um nós no barco deixávamos você escorrer pelos nossos dedos como se você nem tivesse existido. esta gente. gente do povo. só hoje. vendo o cortejo passar. idolatrava os filhos. Eu apedrejei carro de governador. amava. Eu ainda quis te achar no meio do mar. Ele disse: “Sai logo dessa merda. a magia. nas portas das faculdades. tem gente que nunca ouviu falar. Já morreu. Mas se ele me ouvisse agora. com 21 anos escrevi Dores de amores. Foi até o escritório. bicicleta. Foi vender livro na porta de teatros onde se apresentavam artistas piores do que ele. Queria ser mergulhador só porque o Kiko. querendo encontrar a minha vocação. Não foi o conteúdo. Tinha mau tempo. Ele mesmo editava os livros. Suas mulheres. advogados. políticos. pelas faculdades. seus inimigos. eu saí daquela merda na metade do primeiro colegial. A vida tá uma bosta! Tá difícil de encontrar pessoas essenciais. Eu me sinto sozinho. Eu não sei sobre o que escrever. voltou com um livro e leu um poema pra mim. os ‘homens-pregos’. Que indecência. com sempre alegre.. pai. Meu pai era um incentivador. não disse nada. muito pouca gente quer montar as suas peças e muito pouca gente quer assistir. me deixa te falar sobre o sonho desta gente. só leu a poesia. Eu só queria ser essencial. foi o tom da voz dele. esta gente.” Tinha. ou que era “foda”. essencial como você. “É isso aí. Não era melhor do que ninguém. Eu sei que você não tem saco pra choramingo. pai. não se chega a lugar nenhum sem caminhar. pai: tanta gente te amava. porra! Bela merda. Eu morava com ele. O povo na areia batia no surdo e entoava um canto mudo no crepúsculo santista. Na ponta da praia. o caralho! Eu não sou nenhum mosca-morta. O que eu mais queria é que ele me ouvisse agora: “Pai. minha irmã. E você foi. Ele contava histórias e eu tocava violão. “O corvo” do Edgar Allan Poe.Foi vender livro na rua. crianças e os sambistas. uniformizado. sem saber o que dizer. Os sambistas cantaram sambas em sua homenagem. fixos no mesmo lugar. e eu.. sempre dando tudo que ganhava pros filhos. era de madrugada. com um sorriso malandro sem dentes. Às vezes eu me olho no espelho e me acho parecido com esta gente. pai. Seus amigos fizeram discursos emocionados. amava tanto as pessoas que chegava mesmo a odiá-las.” Com 15 anos eu quis sair da escola. Eu nunca ouvi o cara dizer que a vida tava difícil. esta gente quer ser musculosa e quer ter bunda. Meu pai já não precisa mais vender livro na rua. “Mas. Eu tava segurando uma aba. Me perdoa. Não disse nada. pai. eu acho que eu já sou um vendido. Nas portas dos teatros. estiveram os maiores artistas do país. ouvindo o corvo dizer: “para sempre!”. As pessoas só falam e pensam no que é supérfluo. Nem o chinelo dele me serve. Leo Lama!”. Meu pai levantou pra tomar água. Meu pai não sabia receber elogios. O amor dela ecoa em mim. eu nunca ouvi o meu pai reclamando da vida. Até hoje. no seu velório foi muita gente. Eu tava na mesa da sala com o violão. aquela voz doce que ele tinha. Você sabia? Acho que ninguém te amou tanto como a minha mãe. LANÇAMENTOS 2014 IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO LANÇAMENTOS 2014 IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO Livro dos Ex-líbris Alberto da Costa e Silva Anselmo Maciel | org. Caixa Revistas do Modernismo 1922-1929 Pedro Puntoni | Samuel Titan Jr. | org. Trilogia do Copan | vol. 1 A história do Copan Carlos Alberto Lemos Edições fac-similares Ensaios de Ivan Marques A Revista Klaxon Gênese Andrade Antonio Arnoni Prado PREÇO PROMOCIONAL WWW.IMPRENSAOFICIAL.COM.BR/LIVRARIA Aluísio Azevedo por Orna Messer Levin Olavo Bilac por José Castello Otto Lara Resende SÉRIE ESSENCIAL| 72 TÍTULOS Terra Roxa e Outras Terras Julio Castañon Guimarães Verde Eduardo Coelho Estética Eucanaã Ferraz Revista de Antropofagia vendas pelo site www.imprensaoficial.com.br/livraria SAC 0800 0123401 81 Livraria Imprensa Oficial | rua XV de novembro, 316 Centro SP tel. 11 3105 67 por Cláudio Murilo Leal @ImprensaOficial Imprensa Oficial Raul Pompeia por Ivan Teixeira Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo: departamento Biblioteca Mário de Andrade, 1992anual. Continuação, a partir do n. 50 de 1992, do Boletim Bibliográfico. issn 0104-0863 Do pré-tropicalismo aos Sertões Conversas com Zé Celso Miguel de Almeida Travessia periférica A trajetória do pintor Waldemar Belisário Ana Maria Barbosa de Faria Marcondes A política do café com leite Mito ou história? José Alfredo Vidigal Pontes Lygia Reinach: natureza urbana Cesar Hirata e Cristina Penz | org. Uma Senhora Revista Ruy Castro | Maria Amélia Mello O melhor da Senhor Ruy Castro | Maria Amélia Mello A batalha de amor em sonho de Polifilo Cláudio Jordano | trad. A São Paulo de German Lorca German Lorca | José de Souza Martins Os filmes da minha vida 5 Cinema é sonho Renata de Almeida | org. 1. Literatura – Periódicos cdd 805 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei n° 10.994, de 14/12/2004) Direitos reservados e protegidos pela lei n° 9.610/1998 Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização dos editores Impresso no Brasil 2013 A despeito do empenho dos editores, não foi possível obter a identificação de todas as pessoas fotografadas e créditos fotográficos que compõem a presente obra. Caso o leitor tenha conhecimento dessas informações e queira contribuir, a Biblioteca Mário de Andrade e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo agradecem e se comprometem a inseri-las em futuras reedições. 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