RABELO, Miriam Cristina. Experiência de Doença e Narrativa.

March 21, 2018 | Author: Vinícius Mauricio | Category: Experience, Knowledge, Sociology, Anthropology, Science


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Experiência de doença e narrativaMíriam Cristina M. Rabelo Paulo César B. Alves Iara Maria A. Souza SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros RABELO, MCM., ALVES, PCB., and SOUZA, IMA. Experiência de doença e narrativa [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999. 264 p. ISBN 85-85676-68-X. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Experiência de Doença e Narrativa FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Presidente Eloi de Souza Garcia Vice-Presidente de Ambiente, Comunicação e Informação Maria Cecília de Souza Minayo EDITORA FIOCRUZ Coordenadora Maria Cecília de Souza Minayo Conselho Editorial Carlos E. A. Coimbra Jr. Carolina Μ. Βοri Charles Pessanha Hooman Momen Jaime L. Benchimol José da Rocha Carvalheiro Luiz Fernando Ferreira Miriam Struchiner Paulo Amarante Paulo Gadelha Paulo Marchiori Buss Vanize Macedo Zigman Brener Coordenador Executivo João Carlos Canossa P. Mendes COLEÇÃO ANTROPOLOGIA Ε SAÚDE Editores Responsáveis: Carlos E. A. Coimbra Jr. Maria Cecília de Souza Minayo Experiência de Doença e Narrativa Míriam Cristina M. Rabelo Paulo César B. Alves Iara Maria A. Souza 264p. 1.Processo saúde-doença. Iara Maria. Psiquiatria-tendências. Souza. Π. Saúde mental.362.RJ Tel: (21)598-2700/01/02 Fax: (21)598-2509 . Térreo . 3. Cecilia Gomes Barbosa Moreira e Fernanda Veneu Revisão: Beatriz de Moraes Vieira Catalogação-na-fonte Centro de Informação Científica e Tecnológica Biblioteca Lincoln de Freitas Filho R696c Rabelo. Alves.Copyright® 1999 dos autores Todos os direitos desta edição reservados à FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ / EDITORA ISBN:85-85676-68-X Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Angélica Mello Capa: Danowski Design Ilustração da Capa: A partir de desenho de Hans Arp.20. . . I. / Míriam Cristina Rabelo. Míriam Cristina Experiência de Doença e Narrativa. Paulo César. 1480. .Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ. 1923 Preparação de Originais e Copidesque: M.2042 1999 EDITORA FIOCRUZ Rua Leopoldo Bulhões. 1999. CDD. Iara Maria Souza. Paulo César Alves.Rio de Janeiro .Manguinhos 21041-210 . 2. De nos oiseaux. ed. Rabelo PhD pela Universidade de Liverpool.AUTORES • Míriam Cristina M. Inglaterra. professora do Departamento de Sociologia e Programa de Pós-Graduação e m Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH). Universidade Federal da Bahia (UFBA). Souza Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da F F C H . UFBA. pesquisadora do ECSAS (UFBA) * Paula B. É professora do Departamento de Sociologia da UFBA e pesquisadora do ECSAS ( U F B A ) COLABORADORAS * Litza A. professor titular do Departamento de Sociologia e Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (FFCH) e pesquisador do ECSAS (UFBA) • Iara Maria A. Alves PhD pela Universidade de Liverpool. Inglaterra. e bolsista de Iniciação Científica do C N P q no ECSAS ( U F B A ) . É pesquisadora d o Núcleo de Estudos em Ciências Sociais e Saúde (ECSAS/UFBA) • Paulo César B. Cunha Mestre e m Sociologia. Schaeppi Graduanda do curso de Psicologia. . Significados e Práticas Relativos à Doença Mental Míriam Cristina M. Alves. Signos. Litza A. Rabelo. Alves 8. Paulo César B. Rabelo & Iara Maria A. Souza PARTE Π 6. I m a g e n s e Experiências d e Aflição: alguns e l e m e n t o s para reflexão Míriam Cristina M. N a Trairia d a D o e n ç a : u m a d i s c u s s ã o sobre redes sociais e d o e n ç a mental Iara Maria A. Schaeppi 9 11 43 75 89 125 139 171 187 205 229 . Alves & Iara Maria A. Souza PARTE I 1. Tecendo Self e Emoção nas Narrativas de Nervoso Míriam Cristina M. Rabelo 9.SUMÁRIO Apresentação Introdução Paulo César B. Alves & Míriam Cristina M. E s c o l h a e Avaliação d e t r a t a m e n t o para P r o b l e m a s d e S a ú d e : considerações sobre o itinerário terapêutico Paulo César B. Souza 4. Rabelo 7 . O A s i l o Revisitado: perfis d o hospital psiquiátrico e m narrativas sobre d o e n ç a m e n t a l Iara Maria A. Narrando a Doença Mental no Nordeste de Amaralina: relatos como realizações práticas Míriam Cristina M. Significação e Metáforas n a Experiência d a Enfermidade Paulo César B. Alves & Iara Maria A. Religião. A E x p e r i ê n c i a de i n d i v í d u o s c o m P r o b l e m a M e n t a l : e n t e n d e n d o projetos e sua realização Míriam Cristina M. Souza 2 . Cunha & Paula B. Souza 5 . Rabelo 3 . Rabelo. Rabelo & Paulo César B. Míriam Cristina M. . Fundamentam-se. em congressos nacionais ou internacionais de ciências sociais ou de saúde coletiva. Contudo. Apresentaram-se versões ou partes desses artigos. Pessoa e Doença da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa e m Ciências Sociais (Anpocs) e Associação Brasileira de Antropologia (ABA): a interlocução com os colegas destes GTs. os c a p í t u l o s e n c o n t r a m . vivida e significada e m contextos de ação e interação.Apresentação A presente coletânea reúne trabalhos que buscam refletir sobre questões relativas à compreensão da doença (particularmente da doença mental) c o m o experiência. e m (re)leituras das teorias sociais de base fenomenológica (principalmente a existencial e etnometodológica). os artigos se fundamentam em dados empíricos. a natureza e pressupostos de u m certo conjunto de idéias. é. os artigos desta coletânea são inéditos. sem dúvida. Os debates e discussões realizados e m tais congressos ajudaram substancialmente os autores a questionar e desenvolver alguns aspectos significativos sobre o tratamento dos dados e a elaboração conceitual das temáticas analisadas. É sempre problemático delimitar. Jean Langdon. produzidos e m pesquisas desenvolvidas no âmbito do Núcleo de Estudos e m . contudo. foi bastante enriquecedora. preponderante na análise das questões levantadas. Ana Canesqui e Luis Castiel. Cabe mencionar a participação nos Grupos de Trabalho (GTs) Corpo. Embora tenham por objetivo refletir sobre aspectos teóricos ou conceituais das ciências sociais em saúde. Entretanto. c o m simples rótulos. da hermenêutica e do pragmatismo. particularmente com Luís Fernando Duarte e Ondina Fachel Leal. a diretriz fenomenológica.s e ligados por u m a linha t e ó r i c o metodológica c o m u m . c o m quem se discutiram algumas das idéias aqui apresentadas. Os cursos ministrados e m cursos de pós-graduação e graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (Ufba) serviram de forma particular à sistematização dos autores e teorias discutidos nos artigos. Cecília Minayo. Marcos Queiroz. Também nos beneficiamos do olhar crítico de Carlos Coimbra. é importante observar que não se teve preocupação de seguir à risca os processos discursivos e os quadros de referência dessas 'escolas'. Apesar de i n d e p e n d e n t e s . C o m exceção parcial de um deles. se assim podemos dizer. todos. e m ensino e orientação na graduação e pós-graduação.Ciências Sociais e Saúde (ECSAS) da Universidade Federal da Bahia. Suely Messeder. Paula Schaeppi. Litza Cunha (estas duas co-autoras de u m dos capítulos). Estes seminários têm revelado grande importância na sedimentação de nossa posição intelectual. Salete Nery. Osvaldo Bastos. Marcos Rubens. se não as respostas. autores. Assim. João Sátiro Almeida. criado e m 1993. envolvendo. gostaríamos de agradecer aos bolsistas: Márcio Barbosa. além de parceira e m muitas de nossas discussões e projetos. Juntamente com outros pesquisadores nacionais. e m organizações de seminários. toda a equipe de pesquisadores e bolsistas do E C S A S . Suely Motta. Cláudia Garcia. A colaboração dos estudantes que compõem a equipe do E C S A S . Juliana Hupsel. . Lícia Barbosa. os integrantes do núcleo participaram da coordenação do I Encontro Nacional de Antropologia Médica (1993). têm-se engajado e m pesquisas sob os auspícios de diferentes agências financiadoras. colega do E C S A S e do Departamento de Sociologia. Os quase intermináveis debates aí travados nos permitiram tornar mais claras. além de nós. por sua vez. Desde então. Entre os primeiros cabe mencionar e agradecer a contribuição inestimável de Maria Gabriela Hita. Assim. Viviane Hermida e Jucileno Oliveira. primeira leitora e crítica de praticamente todos os capítulos. podemos dizer que esta coletânea é fruto de u m trabalho conjunto. Juliana Rocha. ao menos as questões que nos interessam desvendar. não se resume à atuação na produção de dados: sua participação nos seminários semanais de discussão teórica enriqueceu e ampliou nossa visão. o conceito de experiência. símbolos ou representações. mas também.Introdução Paulo César B. quanto àqueles que explicam as práticas pelas idéias ou representações expressas a posteriori pelos atores. . Alves. desenvolvidas e retomadas sob diferentes ângulos e com base na análise de dados diversos. multifacetado e. O caráter fluido. expressa uma preocupação e m problematizar e compreender como os indivíduos vivem seu mundo. observa Jackson (1996:2). de caráter quase 'filosófico'. Há. Rabelo & Iara Maria A. sem dúvida. e m cada capítulo. é claro. Problematizar a idéia de experiência significa assumir que a maneira como os indivíduos compreendem e se engajam ativamente nas situações e m que se encontram ao longo de suas vidas não pode ser deduzida de u m sistema coerente e ordenado de idéias. o que nos remete às idéias de consciência e subjetividade. "O conhecimento através do qual se vive não é necessariamente idêntico ao conhecimento através do qual se explica a vida". quase sempre de modo inconsciente. indeterminado da experiência escapa tanto aos cientistas sociais. e especialmente. Refletem. Souza Os textos aqui apresentados refletem um percurso de estudos e debates. um processo de exploração de novas alternativas analíticas. E m grande medida. particularmente na antropologia médica. u m núcleo de questões centrais que. que buscam decifrar códigos operantes subjacentes às práticas. realizados ao longo dos últimos quatro anos pelo Núcleo de Estudos e m Ciências Sociais e Saúde (ECSAS) da Universidade Federal da Bahia. Míriam Cristina M. sobretudo. de intersubjetividade e ação social. marcado. abordagem que v e m ganhando corpo na antropologia contemporânea. que animaram as pesquisas desenvolvidas e inspiraram os procedimentos metodológicos que deram corpo aos trabalhos apresentados. É importante enfatizar que os textos aqui reunidos foram produzidos e m momentos distintos. Esta introdução procura justamente identificar tais questões: nosso objetivo é apontar alguns dos princípios metateóricos. e m primeiro lugar. D e modo mais geral. são esboçadas. consistem e m ensaios de caráter antropológico com base fenomenológica. 1 O elemento unificador da coletânea é. por algumas reformulações conceituais e metodológicas. portanto. A subjetividade. É o corpo que fornece a perspectiva pela qual nos colocamos no espaço e manipulamos os objetos. assim sendo. entretanto. Nesta perspectiva. não se refere a uma consciência que paira sobre o mundo e o avalia à distância: é sempre uma consciência-corpo ou corpo-consciência. significa dizer que o domínio da prática se define essencialmente por um engajamento ou imersão na situação: não requer ou pressupõe.ou ser u m corpo . Dois elementos importantes devem ser levados e m consideração para entendermos melhor este ponto: e m primeiro lugar. É por ter u m corpo . os fins da ação não são formulações abstratas que dominamos intelectualmente para depois pôr e m prática. 1997). ou o 'organismo' sobre o qual intervêm as ciências biomédicas . se nos aparecem como parte integrante da própria situação e. o posicionamento de u m sujeito que se destaca do mundo e o 'objetifica'. como fundamento de nossa inserção no mundo. que somos irremediavelmente seres em situação.o corpo é dimensão do nosso próprio ser. a questão da intersubjetividade. É neste sentido que. O fundamento e possibilidade mesma desta atitude. o papel do corpo no delineamento da experiência. portanto.nosso corpo que miramos no espelho. pré-reflexiva ou pré-objetiva. aquela forjada pela atitude reflexiva. seguindo Merleau-Ponty. integram-se e m u m esquema corporal que expressa uma modalidade particular de ser no mundo. podemos falar do hábito como uma praktognosia. Assim o corpo é o locus e m que se inscrevem e se mostram as várias dimensões da vida (experiências passadas. projetos e esforços concretos para intervir na realidade). via uma síntese espontânea. que Heidegger procura descrever mediante o conceito de dasein ou pre-sença (Heidegger. Mais do que isso. Tais dimensões não se superpõem e n e m se perdem na história. subjacente a esse a r g u m e n t o está a idéia d e u m a c u m p l i c i d a d e ontológica entre ser e mundo. e m segundo lugar. do qual partem muitas teorias sociais. são dados por outro tipo de experiência. A idéia de experiência enquanto modo de estar no mundo nos remete diretamente ao corpo. . antes de se apresentar como objeto d e conhecimento. e m primeiro lugar. de sentido.e não u m espaço neutro de objetos que devemos primeiro conhecer para posteriormente instrumentalizar a nosso serviço. não se destacam enquanto planos refletidos. Tal modelo expressa apenas uma modalidade de experiência. perpassado por uma dimensão subjetiva. como esfera de ação ou prática. o que equivale também a considerar o corpo como ele mesmo. Apenas quando nos vemos ante à dificuldade de sustentar esta imersão prática (pré-reflexiva) no mundo é que ingressamos em uma atitude reflexiva. o corpo do outro cuja figura avaliamos. ordinariamente. a experiência não se reduz ao modelo dicotômico que contrapõe sujeito e objeto. Falar e m uma experiência pré-objetiva significa dizer que o mundo se apresenta para nós. pela qual os objetos e o próprio espaço ganham sentido para nós. Antes de constituir u m objeto .E m uma perspectiva fenomenológica. antes. Da mesma forma.que estamos situados. a situação da ação é um campo de instrumentos que usamos . Ora. pois o corpo vivido é corpo em ação antes que corpo contemplado (Sartre. alternativamente. como certas desordens de base orgânica. por ela influenciados). quanto aos trabalhos antropológicos e sociológicos tradicionais. em inglês). identificadas e classificadas pelas ciências biomédicas. No caso dos estudos produzidos segundo a ótica biomédica. não apenas ter uma situação. que faz da ambigüidade a marca definidora de nossa existência. Ser um corpo é. como também somos seres continuamente voltados para transcender a situação. orientados para o futuro. que substitui o corpo vivido. No caso dos estudos produzidos no âmbito das ciências sociais. conforme postulam alguns autores. estrito senso.um modo de conhecimento e intervenção na realidade radicado no corpo. uma série de questões importantes se coloca para a antropologia médica. É essa dialética entre nosso enraizamento original no mundo da sociedade e da cultura e nosso engajamento com o futuro. conduzindo-os a certos modos de compreender e ajustar-se à situação da doença (os quais. Não só somos seres em situação. mas estar sempre a ultrapassá-la rumo a novos estados ou modos de ser. 1997). característico da ação. O hábito é uma forma de compreender o mundo bem distinta de uma apreensão intelectual que produz representações ou idéias: trata-se de uma compreensão que expressa antes u m m o d o de ajustar-se a uma dada situação. Quando partimos de uma preocupação com a experiência e seu caráter 'encarnado' (embodied. que é logrado pelo corpo (Merleau-Ponty. de fato. O corpo. 1994). Uma abordagem centrada na experiência nos permite reconhecer dimensões importantes da aflição e do tratamento que escapam tanto aos estudos desenvolvidos segundo a ótica biomédica (ou. que a experiência da doença é transformada em certos processos terapêuticos? C o m o de fato se dá essa transformação no transcurso das interações entre terapeutas e pacientes? Algumas dessas questões são diretamente tratadas nos artigos que compõem a presente coletânea. mas o movimento de realização do projeto. Como uma experiência pré-objetiva de sentir-se mal é transformada em uma realidade socialmente reconhecida. incorporam-se à experiência dos sujeitos. a ênfase nos aspectos ideais ou simbólicos da doença e cura conduz a uma desvalorização das sensações e práticas encarnadas dos sujeitos doentes e seus terapeutas: trata-se do corpo/texto. fonte e condição para nossa relação com um mundo de objetos. fundamento de nossa inserção no mundo da cultura e ponto de partida para a reconstrução contínua desse mundo. a ênfase nos aspectos orgânicos dos processos de doença e cura conduz a uma omissão da dimensão de sentido de que se revestem tais processos: o corpo/objeto da ciência médica substitui o corpo vivido. dotada de significados que são comunicados e legitimados no processo social? Ou. . já são formas de transcendê-la) e a agir sobre ela via elaboração e realização de projetos? O que realmente significa dizer. espelho da cultura. não é apenas o locus do hábito. entretanto. N o contexto da presente discussão. em certo sentido. e poderíamos acrescentar a família. empreender a busca de u m fundamento pré-cultural ou pré-social da experiência mas. ela nos remete à questão do caráter intersubjetivo de toda experiência e. Elas são modos de coexistência que o solicitam" (1994:487). Observa Merleau-Ponty que a classe. e m u m nível pré-objetivo. A subjetividade é. posterior à intersubjetividade. ações. ao contrário. só lentamente. a nação. observa o autor. e m última instância. sentimentos. ou mesmo como resultado da combinação entre ambos os 'fatores'.. argumentando que a coexistência do eu e do outro e m u m mundo intersubjetivo é anterior a qualquer separação entre sujeito/objeto (e. portanto. e se sei que compreendo. assim. o gênero. Csordas argumenta que reduzir a experiência da doença a uma determinação biológica. portanto. conduz a uma visão por demais parcial e empobrecida dos processos de adoecimento e terapia: "o que está ausente de explicações como essas é a análise do sujeito encarnado (. tampouco é realidade objetiva que se impõe segundo leis ou mecanismos próprios. relações que eram apenas vividas transformem-se e m engajamento explícito. 1994:287). embora apenas e m situações específicas respostas usualmente irrefletidas e confusas convertam-se e m tomadas de posição refletidas. ou se inevitavelmente projeto significações nas condutas do outro.A relação da doença com o âmbito cultural e social é. Se o social não é soma de subjetivida¬ des isoladas. Dizer que a forma como se mobilizam e reorganizam as capacidades corporais. . Merleau-Ponty fala de uma sociabilidade originária. a qualquer individualização). determinam a experiência. enquanto ser que é desde sempre ser-com-outros. enquanto fundo não representado de seus projetos. n e m tampouco valores que ele ponha do interior. mas também o enraizamento fundamental do indivíduo no contexto social. também do adoecer e tratar-se. senão uma capacidade desenvolvida a partir de nossa interação com os outros.. o meu ponto de vista se separa desse intermundo originário idéia t a m b é m defendida pelos pragmatistas clássicos como Mead (1972). na experiência da doença. Explorando as implicações desta idéia para a antropologia médica.) tomando uma posição existencial no m u n d o " (Csordas. Se há social para mim. Falar de uma vivência pré-reflexiva não significa. inquirir sobre os modos como os sujeitos trazem consigo o social e cultural. problemática estruturante da antropologia médica. "não são fatalidades que submetam o indivíduo do exterior. é porque sou originariamente social. é porque o outro e eu estamos e continuaremos compreendidos e m uma rede única de condutas e e m u m fluxo de intencionalidades. para quem o self não constitui uma característica inata. orienta-se pelos modelos culturais não é necessariamente tomar estes modelos como realidades objetivas e imutáveis que. Implicada na idéia de ser-em-situação não está apenas a unidade corpo-mente. tanto quanto tomá-la como efeito da cultura. Estamos continuamente respondendo a essas solicitações. a religião. portanto. Trata-se. Reduzir os significados. Situar a dimensão social/cultural da doença exclusivamente no nível dos processos conscientes ou reflexivos de significação. Mead.) Ε esta captação em simultaneidade do outro. ou melhor. manter-se preso à dicotomia entre natureza e cultura. de certo modo. O conceito de dialogismo proposto por Bakhtin. assim. se o social constitui o campo permanente de toda nossa experiência. significa que capto a subjetividade do alter-ego ao mesmo tempo que vivo em meu próprio fluxo de consciência (. nos processos de orientação mútua constituintes de tais relações. e bastante usado por sociólogos e antropólogos (além de lingüistas e críticos literários). a priori . Por u m lado. correr o risco de objetivar a cultura enquanto modelo dado. torna possível nosso ser conjunto no mundo. e m que os indivíduos percorrem diferentes instituições . N o caso da antropologia médica. Tal preocupação perpassa os trabalhos de Weber. Por outro. trata-se de u m campo móvel. traduz uma preocupação clara em fundamentar noções como as de sociedade e cultura nas relações sociais concretas que os indivíduos estabelecem uns com outros ao longo de suas vidas. esta simultaneidade é a essência da intersubjetividade. quanto ponto de partida. que os indivíduos constroem por meio de suas interações. ampliado e refeito pelos indivíduos no curso de suas ações/interações cotidianas. como j á se observou.tem tido u m impacto importante nas ciências humanas contemporâneas. Blumer e Garfinkel. A intersubjetividade é. negociação e legitimação é. a modelos culturais incorporados na experiência pré-reflexiva é. e m que se entrecruzam e ganham sentido existencial tanto o âmbito biológico quanto o cultural. é preciso compreender a experiência subjetiva da aflição e m termos de seu enraizamento no mundo da cultura.aqui apenas sugerida por Merleau-Ponty . originária).A idéia de u m diálogo constitutivo de nossa relação com o social . Dar atenção aos processos interativos que se desenrolam nas situações de doença e cura mostra-se especialmente relevante nos estudos voltados para contextos médicos plurais. precisamos lembrar que a cultura é tanto ponto de vista. comunicam e negociam significados para suas aflições e para as aflições dos outros. Parafraseando Sartre..e recusar a dimensão de criatividade à existência humana. assim como sua captação recíproca de mim.. essas considerações se refletem e m duas questões associadas. vale notar que. u m conceito que aponta para o 'presente vivido'. devese atentar para os processos sociais pelos quais os indivíduos definem e legitimam certas experiências de sentir-se mal. por outro lado. procuram compreender-se mutuamente e compartilham o mesmo tempo e espaço com os outros. de questões intimamente relacionadas e que precisamos manter e m constante diálogo. Como observa Natanson (1973:XXXII-XXXIII). no qual os indivíduos desenvolvem suas ações. não reconhecer plenamente o campo da experiência (que inclui uma dimensão préreflexiva. continuamente deslocado. C o m base nas discussões desses autores. do qual não podemos escapar. dotados de propriedades que independem das vivências intencionais dos indivíduos e que. 1973:28). que se dá constantemente como realidade. ou seja. até uma série de receitas genéricas para lidar c o m u m conjunto variado de situações. o m u n d o cotidiano é o mundo da práxis. O conhecimento que adquirimos e utilizamos no dia-a-dia está atrelado a interesses práticos: "devo compreender meu mundo da vida no grau necessário para poder atuar nele e operar sobre ele" (Schutz & Luckmann. O mundo da vida cotidiana (lebenswelt) constitui o substrato c o m u m no qual agimos e compreendemos as nossas ações e as ações dos outros: nele domina o que Husserl chama de atitude natural. A doença. sustentar e conferir plausibilidade às expressões. que dita o que é relevante ou não na situação. o caráter fluido e mutável das definições formuladas para explicar e lidar com a aflição reflete uma complexa dinâmica relacionai. é o projeto. Tratar do caráter intersubjetivo das experiências de doença e cura nos conduz a u m exame cuidadoso da realidade do mundo cotidiano. sentimentos e condutas adotadas perante a aflição. que encerra e oferece os objetos para os quais nossos interesses se dirigem. conforme observam os etnometodólogos. Para Schutz.terapêuticas e utilizam abordagens por vezes bastante contraditórias para diagnosticar e tratar a doença. A configuração que o estoque de conhecimento assume a cada momento é determinada pelo fato de que os indivíduos não estão igualmente interessados em todos os aspectos do mundo ao seu alcance. formulado aqui e agora. Neste ponto. é heterogêneo: comporta desde u m conhecimento radicado no corpo (que inclui habilidades corporais adquiridas no passado). antes. portanto. A atitude natural é totalmente determinada por u m motivo pragmático: acima de tudo. apresenta caráter fluido e processual. que utilizamos para nos orientar na situação e resolver os problemas que se nos defrontam. o estoque de conhecimento é formado ao longo do percurso biográfico do indivíduo. a crença na existência do mundo enquanto realidade exterior. Assim. é aberto a retificações ou corroborações de experiências por vir. É fundamentalmente no mundo da vida cotidiana que se elaboram e desenvolvem as ações conjuntas para se lidar com a doença. à zona não questio¬ . oferecem resistência aos seus projetos e ações. composta de objetos b e m circunscritos e ordenados. que põe e m xeque a atitude natural e exige dos indivíduos medidas normalizadoras. constitui precisamente u m a situação-problema. mostrando-se igualmente como o constante e inquestionado terreno de validez sobre o que repousa e se funda toda a validez dos objetos. Husserl (1970) observa que o mundo da vida cotidiana é o mundo 'pré-dado'. Na atitude natural tamb é m tomo c o m o pressuposto a existência dos outros indivíduos e assumo que nossas perspectivas são recíprocas e intercambiáveis. trazendo à tona o papel das redes sociais no ato de se orientar. não acessível discursivamente. assim. Este estoque de conhecimento. que lhes permita enquadrar a experiência geradora de ruptura e m esquemas interpretativos e reintegrá-la. por vezes profundamente alterado pela doença. constituindo cada uma delas. via de regra. senão como busca de elucidar os modos pelos quais indivíduos se reorientam em u m mundo . uma vez que se sintam capazes de colocá-la sob controle. Abordar a experiência da doença segundo essa concepção . Partindo do princípio de que um dos objetivos centrais das ciências sociais é estudar a experiência no mundo em todas as suas formas e dimensões (Douglas & Johnson. a doença é uma questão prática.de relações com outros. por conseguinte. Há. a um só tempo. E m uma perspectiva fenomenológica. enquanto outros são. u m excesso de sentido: é impossível caracterizar uma experiência como expressão unívoca de u m determinado conteúdo. uma dimensão da existência humana). 'empurrados' para áreas de acesso mais remoto. Neste sentido. Constitui muitas vezes uma situação que revela a insuficiência do conhecimento à m ã o e. sociais ou biológicos . os textos apresentados descartam uma visão causal da vida humana. por considerações mais gerais sobre o contexto social e cultural . além do mais. 1977). compreender por que o conhecimento que as pessoas têm e relatam acerca da doença é marcado por contradições e vastas zonas de imprecisão: estas refletem o conjunto de experiências por meio do qual tal conhecimento foi e está sendo adquirido. mas também as emo¬ . a menos temporariamente. Para recuperar a dimensão vivida da cultura. portanto.como defesa de uma noção de subjetividade enquanto posição soberana de u m ego transcendental. o que explica porque os indivíduos.por razões j á esclarecidas . dizer que essa posição é orientada pela cultura é chamar a atenção para o fato de que a cultura é essencialmente vivida (isto é.permite-nos. boa parte dos capítulos examina as experiências de indivíduos singulares. mobiliza os indivíduos a buscarem novas receitas práticas para explicar e lidar com o problema. Tais discussões se fazem preceder.das experiências descritas. Nisto reside também sua indeterminação fundamental.que a vê como problema a ser resolvido . não faz sentido isolar fatores sejam eles culturais. aspectos particulares e expressões generalizadas da existência. atividades e planos coletivos . Antes de ser uma questão intelectual sobre a qual é preciso teorizar. pois esta é na verdade o movimento contínuo pelo qual a vida se desdobra em várias dimensões e pelo qual estas dimensões integram-se à totalidade da vida. põe à mostra o processo mesmo pelo qual novos elementos se adicionam ao estoque de conhecimento. suspendem o processo de questionamento e problematização a que se haviam dedicado. Conforme j á mencionado. A ênfase nas experiências de indivíduos singulares não deve ser entendida . do adoecer e curar. Interessa-nos compreender interações e diálogos. e m toda experiência. o que a experiência nos revela é o processo contínuo pelo qual se toma uma posição existencial em face do mundo. motivo ou fator.e atribuir-lhes uma determinação causal sobre a existência.nada do mundo da vida cotidiana. Partimos do pressuposto de que a experiência é muito mais complexa do que os significados formulados para explicá-la. mas o que é idiossincrático. imagens. razões explícitas ou representações que os atores formulam para explicá-las: trata-se de dimensões integrantes do agir humano. O sujeito que lança o olhar para uma ação passada a vê como objeto claro e bem delimitado. refinados ou mesmo desviados do seu curso original. reconhecer esse caráter multifacetado da pessoa . i.o fato de que a experiência do self. mas não têm um status independente deste agir. Ora. portanto. primeiro. Buscamos. à medida que a ação em progresso revela dimensões da situação que antes eram desconhecidas e conduz a um amadurecimento mesmo do seu sujeito (no sentido de que este adquiriu novas experiências).. contestados e refeitos. 1996:27-28) Quase todos os artigos. Estão.ções.. de maneira geral. típico e costumeiro (Erfahrung). ao m e s m o t e m p o e m q u e são c o n s t i t u í d o s e c o n t i n u a m e n t e reconstituídos no seu transcurso. ato concluído. tal idéia nos conduz a rejeitar teorias que postulam os significados como estruturas a priori. determinantes das práticas. mas nosso senso do transitivo e não delimitado. ou mesmo das nossas. assim. Os projetos que os atores formulam para o futuro são continuamente corrigidos. ou do self em relação ao outro. os processos vividos de experimentar [experience]. Não se trata aqui de afirmar a impossibilidade de se compreender o significado das ações dos outros. Finalmente. seu olhar já está depurado das incertezas e vacilações que sofreu no processo de sua realização. nossa noção de experiência deve reconhecer não apenas nosso senso de coisas substantivas e delimitadas. (Jackson. avançar rumo a um conceito de experiência "empiricamente fiel". Segundo.e. Terceiro. se queremos evitar reduzir a experiência às ordens conceituais que impomos sobre ela. essencial em todos eles. conforme argumentou Dilthey. leva-nos a suspeitar de abordagens intelectualistas que acreditam encontrar o fundamento das práticas nos motivos. excepcional e singular (Erlebnis). senão de enfatizar que essa c o m p r e e n s ã o precisa necessariamente levar e m conta os contextos de . Afinal. tal como sintetizado por Jackson: Um conceito empiricamente fiel de experiência tem que. isto é. voltam-se para o estabelecimento de alguns pressupostos analíticos que permitam desvendar os modos pelos quais se constitui o significado da experiência. O conceito de significado é. é continuamente ajustada e modulada pela circunstância. significado é sempre significado para alguém. é imperativo reconhecer (. projetos e identidades que constituem um contexto para essas i n t e r a ç õ e s . sublinhando a importância dos contextos dialógicos na construção e reconstrução contínua do sentido. portanto. fadados a ser repensados. o conceito de experiência deve incluir não apenas o que é habitual. Da mesma forma. de que estes oferecem sempre quadros parciais e inacabados de uma realidade que está sempre em fluxo.) o modo como os objetos da experiência tendem a fundir com as formas pelas quais esses objetos são vivenciados [experienced]. portanto. Carr procura superar a visão corrente em muitas abordagens contemporâneas da narrativa. a todo custo. presente e futuro. conforme observa Carr.enunciação. da tradição estrutural. de modo que continuamente monitoro e avalio o presente à luz do futuro. ao mesmo tempo e m que busco. Passado. Difere. meio e fim ou aquela que descreve . narro para m i m mesmo o que se passa. que se torna saliente. como também todo meu ambiente. colocar-me na posição do narrador que tem controle sobre o desenrolar dos eventos. "são simplesmente aspectos diferentes do que estou fazendo". como algo decorrente de uma relação intrínseca entre o sentido da linguagem e a situação enunciativa. é o futuro. e m que são usados. mas reconhecendo uma vinculação estreita entre a estrutura da experiência e a estrutura narrativa . do projeto. é o fim ou expectativa de um determinado porvir que organiza (sem precisar recorrer à reflexão ou representação) não apenas minhas disposições corporais. Assim. desprovida de seqüência ou ordenação temporal. E m análise apoiada nos estudos de Husserl. Husserl. Passado e futuro constituem assim o fundo necessário de toda experiência presente. mas é também marca definidora da ação. a semiótica de Charles Peirce nos acena com u m modelo bastante frutífero de análise da dinâmica de significação. Na ação. esclarecendo como os trabalhos apresentados procuraram equacionar a questão do modo c o m o estudar a experiência. dado u m código semântico a priori ou regras sintáticas de articulação dos signos. o conceito de significação é usado e m sua dimensão pragmática. argumenta Carr (1986:36). ou seja. Heidegger e Merleau-Ponty. Ε estas são fundamentalmente situações de diálogo c o m outros. nos textos que compõem esta coletânea. Essa estrutura temporal não caracteriza apenas as experiências passivas do sujeito. Ora. não estamos postulando uma equivalência ou mesmo redução da experiência ao discurso narrativo. N o caso específico da ação. A o agir. na qual significação é definida totalmente pelo seu sentido. isto é. em si mesma. de fato. segundo a qual a experiência é. Reconhecer que os significados não pertencem a u m plano etéreo de puras idéias é reconhecer que eles se atrelam às situações em que são formulados. o processo pelo qual uma estrutura ou ordenação lhe é imposta de fora. "em um tipo de predicamento ou problema que minha ação tem de resolver"(1986:39). Por fim. ao mostrar como cada uma de nossas vivências traz consigo a retenção de vivências imediatamente transcorridas e a expectativa vazia ou protensão de um futuro imediato por vir. isto significa que a estrutura de começo. Assim fazendo. tidas como m o d o de acesso às suas experiências. de inspiração saussuriana. disforme. Neste sentido. Cabe observar que quase todos os capítulos orientam-se para o exame de narrativas produzidas pelos sujeitos da área pesquisada. convém tecer algumas considerações de cunho mais metodológico. aponta para o caráter estruturado ou organizado da experiência pré-reflexiva. ou antes. e a narrativa. além do mais.ponto que tem sido fortemente defendido por Carr (1986). defino-me como o protagonista que precisa resolver o problema. Voltando-se para o exame das narrativas produzidas pelos indivíduos no processo de tentar lidar com a aflição. explicação e lida com a doença. . dialógicos. que acreditavam encontrar nas afirmativas genéricas dos membros de uma cultura u m acesso ao conhecimento que vinha a orientar suas práticas e m situações reais. ela "o faz no curso da vida m e s m o . Significa. no seu entrelaçamento c o m a ação. Os capítulos que compõem a primeira parte abordam o tema da construção social e cultural da doença. nas páginas de livros" (Carr. partindo do argumento de que os relatos não constituem apenas fontes privilegiadas de informação. reagem e buscam tratar da doença mental. u m adorno ou complemento acidental. no corpo da coletânea. todos os trabalhos desta coletânea partem da suposição de que as narrativas consistem e m dimensões da vida. enfim. PLANO DO LIVRO A coletânea está divida e m duas partes. enquanto o capítulo 3 situa a construção dos relatos no contexto da atualização. explicam. 2 Os capítulos 2 e 3 mostram como as maneiras de identificar e lidar c o m a doença. de delinear o quadro cultural mais amplo das definições e práticas relativas à doença no grupo estudado. nas mãos de autores. utilizaram-se narrativas sobre casos concretos de doença como meio para chegar a u m conhecimento da semiologia local da doença mental. mas representam uma tomada de posição dos seus autores ante a situação geral e m que se encontram a partir do advento da doença. O capítulo 2 ressalta o papel das narrativas como realizações práticas. Nesse capítulo. Boa parte dos analistas efetivamente enfatiza que a narrativa constitui o significado da experiência. conhecidos dos informantes. especialmente do que chamamos de doença mental. tendo a função. fundamentam-se e m certos interesses práticos e se formulam e reformulam no curso de relações sociais. Entretanto. que a narrativa não é um artifício justaposto à experiência.típica da narrativa . que configuram e dão forma às experiências de aflição. 1986:62). O s textos d e s c r e v e m e p r o b l e m a t i z a m as e x p e r i ê n c i a s d e m e m b r o s da comunidade e/ou outros significativos (familiares e vizinhos) no processo de identificação. e não apenas depois do fato. O uso de narrativas de casos concretos. O capítulo 1 procura mapear os modos socialmente compartilhados pelos quais indivíduos da área pesquisada identificam. colocando o foco da análise sobre os processos sociais. longe de constituir reflexo de u m sistema interpretativo fechado. Diferenciam-se do capítulo anterior também pela forma como tratam as narrativas. sobre concepções e práticas de doença. das experiências cotidianas dos sujeitos. visa a superar os limites de determinadas análises. quebra ou criação de determinados laços sociais.o desenrolar de u m problema a resolver .é parte integrante da ação. delineadas no capítulo 1. As discussões apresentadas fundamentam-se e m uma metodologia de acompanhamento de casos . Recuperando o fundamento corporal da imaginação.e seu fundamento corporal . o b s e r v a n d o . e sim o ator em diálogo com outros. refletindo sobre os processos de escolha e deliberação implicados nos itinerários terapêuticos. D e todos é talvez aquele que aborda de forma mais direta a conexão entre narrativa e experiência. O capítulo mostra que as narrativas não devem ser entendidas apenas como u m posicionamento tomado perante outros. durante períodos que variaram de seis a dezoito meses. c o n t u d o .. O argumento desenvolvido pela autora enfatiza a necessidade de se levar e m conta tal perspectiva. Todos os capítulos dessa parte analisam as experiências dos próprios doentes. O capítulo 8 examina o modo como indivíduos considerados doentes mentais situam-se diante da doença. para que a análise não termine por considerar a instituição c o m o detentora do poder de decidir e determinar o destino dos doentes. formulando e negociando projetos de normalidade e m contextos específicos de engajamento corporal. por intermédio de suas principais imagens e das mudanças que sofre c o m o acúmulo de novas experiências na lida concreta com a instituição.O capítulo 4. mas também como um modo de colocar-se perante si mesmo: daí a estreita vinculação entre narrativa e identidade.. compartilhado e administrado em contextos sociais. O capítulo 6 reflete sobre o papel das metáforas e m transformar a experiência incoativa de sentir-se mal e m algo que pode ser comunicado. discutindo questões relativas à subjetividade. A perspectiva ou conhecimento leigo acerca do hospital psiquiátrico é examinada no capítulo 5. corporeidade e ação no delineamento dessas experiências.na expressão e constituição da experiência da aflição. Fica claro que. de cunho exclusivamente teórico. N o capítulo 7 o nervoso é discutido como uma experiência encarnada. conversas e atividades na vida de indivíduos c o m problemas de doença . mediante uma discussão do papel das metáforas . o capítulo 9 reflete sobre o papel dos processos imaginativos na transformação da experiência de indivíduos tratados e m agências religiosas. A segunda parte da coletânea reflete mais diretamente sobre a experiência do adoecer e tratar-se.que se apresentam e m quadros narrativos . também procura romper com a idéia de modelos interpretativos fechados.o ponto de vista dos sujeitos sobre os eventos e interações observados . encontros. q u e o sujeito das escolhas e projetos terapêuticos nunca é o sujeito isolado do pensamento.eventos. ao m e s m o t e m p o e m que oferecem elementos para interpretar o contexto da experiência . Os autores argum e n t a m que uma compreensão do m o d o c o m o os itinerários são traçados ao longo da história da doença exige que tais processos subjetivos sejam devidamente c o n s i d e r a d o s . Nestes dois últimos capítulos.de conviver c o m e tratar da doença. o estudo e análise das narrativas inserem-se e m u m a discussão mais geral sobre as práticas . as narrativas precisam ser analisadas enquanto partes de u m contexto data¬ . com base na qual certas identidades se forjam e projetos se refazem. 3 4 5 6 7 Todas essas investigações (ou partes delas) realizaram-se e m u m bairro de classe trabalhadora da cidade de Salvador (BA): O Nordeste de Amaralina. a análise precisa mover-se continuamente entre as narrativas (ou o seu sentido interno) e os contextos sociais de sua produção ou enunciação. Rabelo. 2) Saúde Mental e Fatores de Fragilidade: experiências de mulheres e m uma comunidade de Salvador. Assim. os capítulos apresentam u m a linha c o m u m também pela referência a u m m e s m o contexto social. sob coordenação de Míriam Cristina M. Há. Todos os capítulos apresentam discussões teóricas relativamente longas. sob a coordenação de Naomar Almeida Filho (principal investigador). financiada pelo C N P q . sob a coordenação de Paulo César B . em praticamente todos os textos (com exceção de um). sob coordenação de Míriam Cristina M. cabe destacar particularmente as seguintes investigações: 1) A Lógica do Itinerário Terapêutico. Rabelo. C o m o os proprietários não ocuparam imediatamente os . 3) Processos de Fragilização e Proteção à Saúde Mental na Trajetória de Mulheres de Classe Trabalhadora Urbana. Brazil. 8) Na Trama da Doença: redes sociais e doença mental. A ocupação da área começou na década de 50. sob a coordenação de Paulo César B . possui uma área de 250 hectares e divide-se em três regiões: Vale das Pedrinhas. sob a coordenação de Iara Maria A. Meanings and Practices Related to Mental Health. 4) Signs. financiada pela Interamerican Foundation. Entre as pesquisas realizadas pelo ECSAS. 6) Saúde Mental: agências terapêuticas e redes sociais. Carlos Alberto Soares.do de eventos e interações. financiada pelo C N P q . Alves e Míriam Cristina Μ. um bairro de classe trabalhadora da cidade de Salvador (BA). uma tentativa de articular as dimensões teórica e empírica no estudo da experiência. financiada pelo IDRC (Canadá). O CONTEXTO SOCIAL DA COLETÂNEA: O NORDESTE DE AMARALINA Ε SEUS HABITANTES O Nordeste de Amaralina. Alves e Maria Gabriela Hita. financiada pelo I D R C (Ca­ nadá). E m outras palavras. Alves. financiada pelo C N P q . o que reflete um processo de descoberta de pistas e exploração de alternativas para a compreensão da experiência da doença em suas várias dimensões. 5) Illness Management Strategies and Mental Health Systems in Bahia. sob a coordenação de Paulo César B. sob a coordenação de Carlos Alberto Soares. Rabelo. Religião e Sociabilidade. Paulo César Β. Alves. Alves e Míriam Cristina Μ . 7) Doença Mental. Santa Cruz e Nordeste propriamente dito. a partir do loteamento de Ubaranas (uma antiga fazenda já e m decadência). elencam-se alguns elementos característicos do cotidiano no bairro. Souza. financiada pela Fundação Carlos Chagas e C N P q . financiada pela OPAS e C N P q . Paulo César Β . Rabelo. A seguir. Muitos proprietários 'batem laje' na casa. ao longo de ruas estreitas e sinuosas. N o Nordeste há u m comércio local relativamente forte. cuja ocupação. planejamento. Nos limites do parque localiza-se a região chamada de Boqueirão. à espera de que seus proprietários consigam obter algum dinheiro para dar início à construção. também utilizado para 'despachos' e 'trabalhos' realizados pelos pais-de-santo das redondezas. em que se concentra o comércio local. é lá que se procuram os 'ladrões' e 'estupradores'. Além disso. O Nordeste de Amaralina (incluindo Santa Cruz e Vale das Pedrinhas) é uma espécie de grande ilha cercada de bairros de classe média . outras tantas. Dada a falta de espaço para a expansão horizontal do bairro. com tijolos aparentes. Existe igualmente u m bom número de escolas dentro dos seus limites. Pode-se realizar a ampliação apenas com a intenção de aumentar o número de cômodos da casa.e tem como um dos seus limites o parque florestal da cidade. Muitas construções. A casa própria. Amaralina. parecem ainda inacabadas. apesar uma parte mais antiga. C o m exceção das avenidas principais. surgidos quase sempre após as brigas e disputas entre os 'criminosos'. funde-se com a mais nova invasão. são apenas arranjos provisórios. para construir u m segundo ou terceiro andar. A invasão mais recente. na década de 80. A pobreza é um dos traços que caracterizam o bairro: mais da metade de seus habitantes apresenta uma renda mensal inferior ao salário mínimo. representando 6 0 % dos moradores. passo a passo. vivendo e m mais de 14 mil casas. Há uma forte presença de jovens no bairro: 4 0 % de seus residentes têm idade inferior a 15 anos. é u m projeto familiar. o cenário do Nordeste de Amaralina (doravante referido apenas como Nordeste) é dominado por pequenas casas espremidas umas contra as outras.Pituba. sacrifícios e m nome do projeto da casa. construída aos poucos. a maioria oriunda da zona rural. a ser ocupada por u m filho casado ou por algum parente. abandono de planos e desejos alternativos. trata-se do centro desde onde se irradia quase toda a violência que ocorre no bairro. a área foi desmembrada e ocupada e m levas sucessivas. juntamente c o m sua família. Os migrantes predominam na composição de sua população. renúncias. começa a se delinear uma certa tendência à verticalização. Rio Vermelho. Segundo os moradores de outras áreas. local de lazer de mães e crianças nos fins de semana. basta dar uma caminhada por suas ruas para se fazer u m idéia da vitalidade da economia informal: inúmeras casas transformaram-se e m vendas improvisadas com gêneros alimen¬ . mas freqüentemente o objetivo é criar u m a nova residência. papelão ou pedaços de madeira. chamada Nova República. feitas de barro. e onde se depositam os cadáveres. a Nova República.lotes comprados. O investimento que aí se faz não é meramente monetário: são horas de trabalho. Candeal de Brotas . e de algumas ruas mais antigas. cujos moradores têm uma situação mais estável. onde as ruas são mais estreitas e os becos mais escuros. A população do Nordeste de Amaralina é de aproximadamente 90 mil habitantes. ocupou até mesmo uma parte do parque florestal da cidade. localizado e m u m dos limites do bairro. a ligação entre mãe e filha. informações e conselhos. é habitual ver duplas ou grupos de pessoas conversando no portão. que mantêm relações mais estreitas entre si e são responsáveis por sustentar as ligações nas redes de parentesco. Todos esses produtos e serviços estão à disposição daqueles que incessantemente vão e vêm pelas ruas do bairro. na rua. n e m sempre se avaliam as visitas de vizinhos de modo positivo. fortalecida por visitas constantes. entrar nas casas. Apesar de reserva quanto à casa. constituindo uma extensa rede de relações entre as pessoas: os laços sociais com os vizinhos e parentes que moram nas proximidades têm u m grande peso na vida dos moradores. H á regras implícitas relativas a tais visitas. nos bares. Por fim. encontram-se também na área vários espaços de culto religioso. a menos que seja uma visita rápida quando a porta está aberta ou que se esteja ajudando uma amiga em algum serviço doméstico. eles encontram seus amigos e m espaços públicos. apesar da intimidade que parece reinar entre pessoas que moram próximas. jogando cartas. e pela troca de serviços. Dentro dessa trama de relações. e as mulheres se visitam com alguma freqüência. os moradores quase falam como se tratassem de uma entidade coletiva. e para os adultos. quase cotidianas. ou que ficam bebendo nos bares.tícios e bebidas expostos nas janelas ou e m modestos balcões. contam suas histórias e se informam sobre as últimas novidades da área. de ambas as partes. Dificilmente se vêem laços de amizade entre pessoas que vivem e m localidades distantes. no jardim. costureira. Parentes que vivem próximos uns aos outros costumam encontrar-se regularmente. e m outros bairros. mostra-se particularmente intensa. É na rua que as pessoas se encontram. venda de picolés e doces etc. dizendo "os pessoal ajudou" ou "os vizinhos vieram". onde nem sempre há uma sala separada da cozinha ou do quarto. manicure. freqüentados pelos moradores e aos quais se recorre e m casos de doença: terreiros de candomblé. e m espaço de sociabilidade para as crianças. O estilo de vida no Nordeste é marcado por uma forte ênfase nas relações intrabairro. que passam o dia brincando. casas de umbanda e centros espíritas mais ortodoxos. na rua. que não raro moram em casas próximas. diversas denominações pentecostais. especialmente as mulheres. Apenas em relações muito íntimas entre amigas ou parentes é franqueada a casa. Quando se referem à vizinhança. A rua é amplamente ocupada e compartilhada. locais de jogo. . consistindo em mais do que local de passagem. As relações de amizade e de intimidade se estabelecem preferencialmente com habitantes das proximidades. é considerado como invasão de privacidade. ajuda. em geral quando os maridos não estão presentes. além de duas igrejas católicas. a visita não é recomendada. conversam umas c o m as outras. uma das quais vinculada à renovação carismática. ou simplesmente sentados na frente da casa para observar a movimentação dos que passam. cabeleireiro. Contudo. na frente da casa. que vão e vêm da venda ou do trabalho. Para os homens. um sem-número de residências mostram pequenas placas anunciando os serviços de professores particulares (banca). .. Chica: Aqui os vizinho. n a v o r a g e m d o p r o g r e s s o . é a realidade. dá muita força. N e m vai na minha casa.. eu vou ter u m a grande ajuda. não me dou não. nem ninguém vem. eu disse: "ah. não vale a pena. Acode. Maria da Ajuda: Aqui também todo mundo é amigo.. mas nós conversa até tarde da noite. todo mundo acode. eu não vou lá que eu não m e dou com o marido dela. você morre porque ninguém lhe dá u m prato de comida. entendeu? Então. Agora porque eu não vou lá [na casa da amiga]. q u e .. e x p r e s s a s nas visões discordantes sobre o bairro: Nilma: Essa estória de que pobre se ajuda é mentira. Aqui se você tiver é porque tem. isso aí é. se amanhã ou depois eu sentir qualquer coisa aqui. se eu tiver numa boa ou gritar.. se não tiver então ninguém tem. Deus diz: 'faz por ti e eu te ajudarei'. Aí ela pergunta: "Clarice. e m q u e os d r a m a s pessoais c o n v e r t e m . n ã o gosto. nunca brigamos. não? M e s m o reconhecendo a importância das relações c o m vizinhos e parentes na vida dos m o r a d o r e s d o Nordeste. fica até uma hora aí [na calçada] conversando. e m q u e as pessoas o b s e r v a m e são observadas c o m u m a i n t e n s i d a d e d i f i c i l m e n t e r e p e t i d a e m o u t r o s c o n t e x t o s . Agora. o que m e pediam eu dava. enquanto cê não vir na minha casa eu não vou na sua".s e q u a s e s e m p r e e m d r a m a s públicos. porque. eu evito de ir". não p o d e m o s nos entregar à idéia romântica de que.) A gente não deve confiar em vizinhança.s e p o r u m b o a d o s e d e t e n s ã o e a m b i v a l ê n c i a . mas eu não vou na casa de ninguém. dão muita força m e s m o . nos bairros d e classe trabalhadora. mas eu tenho vergonha quando eu tô numa casa que o marido chega. c a r a c t e r i z a . por que cê não vem aqui?". Clarice. n e m eu vou na dos outros E.. e m q u e as r e l a ç õ e s s e t o r n a m íntimas q u a s e f o r ç o s a m e n t e . sei lá. cada u m tem que fazer por si. d e fato. certo? . ai eu não vou. aqui não p o d e ver o outro sentir u m a dor de cabeça. os moradores teriam c o n s e g u i d o resgatar ou preservar u m a nostálgica ' c o m u n i d a d e ' de iguais e solidários. N e s t a v i d a e m q u e s e v i v e d e m o d o t ã o p r ó x i m o d o s o u t r o s . tá o motivo que eu digo a você que eu não quero sair daqui. q u e e m o u t r o s l o c a i s d a ' u r b e ' teria s i d o p e r d i d a . j á evita muitos problemas. ela [a amiga] não vem assim porque ela u m a vez ela disse: "oi. aí. a c o o p e r a ç ã o e a solidariedade constituem apenas u m a das facetas da convivência entre as pessoas.(. né? Dá. o marido dela. Eu não vou na casa de N e g a [a irmã] porque quando eu tô lá que Tonho chega eu fico morrendo de v e r g o n h a . agora eu digo: não tenho não. D. mas na casa de pessoas nenhuma eu vou. Aqui se você tiver com fome. Damiana: Porque lá no lugar que eu moro converso c o m todo m u n d o . eu m e acho tão acanhada quando eu tô assim conversando que o marido chega.Clarice: Não. Eu era muito besta. Mas dizer de eu ficar de a casa de entra e sai. já compraram não sei o que.e são pobres. Ah! eu não posso comprar um terreno.. (. fazia.) Vizinho é bom. pessoas limpas e trabalhadoras. moradores da Nova República ou Boqueirão (Hita. Benvinda. acontece que é escusado.... distância é melhor. afirmando que moram na invasão . se tiver dez trabalhando tem muita.descritos por muitos c o m o 'sujos'. Mas com oito dias que tá dentro daquele barraco.fato inquestionável .. boa-tarde. Os que vivem na área de ocupação mais antiga procuram distinguir-se dos seus vizinhos. Deixava as coisa.. (. moradora da área mais antiga e consolidada: É. qual seja.. a criação de intrigas e m u m grupo de amigos ou c o m u m parceiro. compraram geladeira. tidos por 'vagabundos' e 'desocupados'. mora em invasão. procuram maximizar seu status mediante u m discurso que minimiza as diferenças existentes no interior do bairro. eu tinha um bocado de roupa por aí. esse mau cheiro que ninguém suporta. Quando tem um que quer ser melhor. você passa vendo televisão já nova que compraram dali. porque a gente é preto. o pessoal das invasão daqui.) Hoje em dia tá essa bagunça aí danada.... construindo uma identidade que se opõe à dos favelados . tudo é igual. essa lixarada. 'ladrões'. tem que dá moral. a animosidade existente entre moradores mais antigos. essa bagaceira. deixam falando sozinho.. aqui era bom também. Ε aí o povo aí começou a chegar nessa invasão. gozando e m geral de uma situação financeira melhor. a revelação de u m segredo a terceiros. (. Aquilo ali era tão limpinho. já compraram móvel não sei de onde. corda de secador. tentam também se distinguir de seus vizinhos. a gente tá dentro de casa e ouve o que quer e o que não quer. por outro lado. bom-dia.. Madalena. tomasse uma atitude com essas invasão e acabava com essa bagaceira.. mas são pais e mães de família.) Agora eu quero dizer a você o seguinte.. moradora da invasão: Elas ficam tomando nota da vida dos outros. A gente saía... moradora da invasão: Aqui não tem um melhor do que o outro. Já compraram televisão. ao contrário de muitos que estão ao seu redor.. Aqui era um lugar muito bonito.. Por que não faz pá comprar seu terreno? (... Num presta não. porque .. 1995). Eu acho triste. Feliciana.) Precisava que nosso governo antes.A fofoca é uma das razões de queixa dos moradores do bairro (embora eles não se eximam de fazer parte das redes que as veiculam). Nós todo sossegado.. U m a das maiores razões de brigas entre amigos é a quebra de confiança... (.) O povo aqui não se dá o respeito. ao passo que os moradores da área de invasão utilizam duas estratégias diferentes na construção de sua identidade: por u m lado. pobre. quer seja marido ou namorado. fazendo essa bagaceira. a palavra de Deus não quer. fizesse. 'povo ruim' . ressaltando que são todos iguais e solidários. Os mexericos revelam também uma outra área de tensão nas relações de vizinhança. encontrava.. e os 'invasores'.. Agora invade o terreno dos outros. Mas as própria pessoa da rua. nem criança. não. gente. fica revoltado. revelam os excessos da corporação. Assim como em outros tantos estudos realizados com populações de classe trabalhadora. mata na cara das c r i a n ç a s . Salém. 1980. É isso. não chega assim calmo. espanca muito.. fica tudo ali e vê. Se não tiver d o c u m e n t o na hora. Ε o povo agora aprendeu a cooperar com gente safada.sabe q u e m tem muita coisa ali? Tem ali muita coisa mermo. que convivem com o desconforto de presenciar. Sobre tais assuntos. ameaças de linchamento. p r o c u r a n d o saber d o c u m e n to.mesmo aqueles que em tese nada devem à polícia ou à justiça. por outro lado. atira. A gente tem que trabalhar. tem u m a criança ali. nem adulto. o que traz conseqüências muito mais drásticas. que a violência era demais. comuns na área da invasão. podendo levar até à morte... Gessé: A í pega. em uma atitude oposta à do vagabundo e do ladrão. brigas entre vizinhos ou casais que podem culminar em danos físicos mais ou menos graves. A polícia é a primeira violência aqui. quer praticadas pela polícia ou por 'bandidos': ocorrem casos de estupro. As batidas policiais. tudo é Nordeste.. não sabe? Chega assim. Julina: A única pessoa que faz violência quando chega aqui é as polícia. Violência estava demais. nem ninguém. por um lado. Às vezes quando pega u m a pessoa. Se. né? Ε trabalhando que se conse­ gue as coisa. pois os policiais procuram impor sua força indistintamente. só se pode falar em um tom de voz muito baixo. ladrão safado que tem ali dentro. há aqueles que avaliam positivamente a atuação dos policiais. o v a g a b u n d o . A í as criança pega. 1987. mata. Às vezes quando acontece alguma coisa por lá que eles têm às vezes que dizer. Você tá assim. Zaluar. A s crianças vê aquilo. Tinha dia aqui que nem u m a criança. . Duarte. cujos representantes muitas vezes entram no bairro atirando pelas ruas a esmo. intimidando qualquer um que esteja em seu caminho . Reconhece-se a 'pessoa direita' como aquela que. eles tão atirando.) Esse mundo tá errado. trabalha para sustentar a sua prole. tudo. cenas de agressão. A violência e o temor perpassam o cotidianos das pessoas. acreditando que a realização freqüente desse tipo de ação tornará a área mais 'limpa'. ninguém podia ficar na rua. 1985. as batidas policiais amedrontam todos . com alguma regularidade. a construção de identidade articula-se aqui em torno dos eixos da família e do trabalho. essa menina.. traficantes e viciados em drogas. Agora que parou um pouco. Já vem de lá atirando. abusando assim da condição de autoridade mantenedora da ordem. É com muito esforço.. graças à captura e morte de ladrões. ou mesmo de delação. por medo de ser acusado de invasão de privacidade. né? Às vezes chega aqui atirando logo. deixa o corpo.. 1986). como valores fundamentais que orientam a vida dos indivíduos (Woortman. Eles tão m a t a n d o nas vistas. chega assim na violência. eles tão c h e g a n d o . (. bate muito. N ã o raro. tudo aberto ali. Quando os meninos entram na adolescência. tá. A criança dorme o primeiro dia na rua. tá com a droga. são vítimas de disputas entre quadrilhas ou bandidos rivais. os moradores da região conhecem 'seus bandidos' e buscam uma convivência pacífica c o m eles. Adalgisa: Tem uns que andam errado. a preocupação se redobra. ele nunca me disse. é vista também como u m espaço perigoso. Quem mora numa área dessa tem que ser amigo de todos. os próprios filhos. melhorou.. Homens que j á "mataram pais de família". embora sujeito a riscos... Supostamente tais cadáveres. né? Então a gente não tem nem como prender. por exemplo. quanto pela atração do mundo do crime . As mães não ligam pra eles. aparece algum cadáver e m u m pequeno rio. afastando-se da vista das mães. explodiu pra qualquer lugar. porque não tem mais aquele tipo de ladrão que tinha. pelo desemprego . mas me dou bem com o pessoal. aí melhorou.Decinho: Eu acho que melhorou. essa casa minha aqui dorme assim ó. o terceiro. como dizer "eu não vou ter meu filho na rua". tem 16 anos. de que não fique dúvida. Ε aí o vício leva eles. a limpa mesmo aí. A mãe não faz uma procuração. De todo modo. mormente quando os filhos se distanciam de casa. ferem ou matam aqueles que acreditam ser informantes da polícia. E m decorrência dos riscos oferecidos . ele não comete. mas eu tenho medo.) Aí já começa a perdição.tanto pelas invasões da polícia. a rua. (. Ceiça: Hoje você vê que a droga. quer seja ruim. sempre gostando de todo mundo. não se relacionando comigo e meus filhos. nos limites c o m o parque da cidade. segundo os moradores. não é a única a promover cenas de violência no bairro. eles vão pra rua e já vão ficando por lá. entendeu? Então hoje. que trocam tiros e fazem retaliações a seus inimigos. então a gente se incomoda com isso. fica dono do seu nariz. e m u m contexto marcado pela pobreza e. Elas acham que dá comida. Hoje mesmo eu tô com o meu ali. A polícia. Porque muito deles nem no colégio vão. agora já passa de mães que não têm controle com os filhos.é uma ameaça real. Dorme o segundo. você vê que até um queimado que você der à criança hoje. e m grande medida. quer seja bom. mas se dando de uma certa maneira. de que goste. Antes ser amigo do que dar de difícil com eles. certo? Você vê aqui. ele já começa a fazer o que ele quer.uma promessa de ganho fácil. Não vou dizer que a gente viva fazendo junto as coisas que eles querem. entendeu? Apesar de que ladrão nunca me perseguiram aqui em nada. a policia fez. faço de conta que não tá existindo nada. Elas deixa à vontade. de que não goste. embora seja o local disponível para as crianças brincarem. aquela quantidade de ladrão. Eunice: Olhe aí. entretanto. mas não é por isso . eles têm os problemas deles lá. Não dão atenção. certo? Mas perseguiram aos outros.. dele. têm seus vícios.. uma vez que o fascínio exercida pelas drogas e pelo 'crime' . porque logo. demora mais. já tô cheirando na boca pra saber se tava cheirando cola e perguntando "cê tava fazendo isso? você tava na rua. constitui uma inquietação sobremaneira presente para as mães. (. E m b o r a sejam em geral mais brandas. especialmente para as que trabalham fora e não podem exercer uma vigilância constante sobre os filhos. Uma pedrada mesmo. mas eu não me metia não. ou porque foram traídas e abandonadas. pra homem fica fácil. . (. (. entrem e m contato c o m o crime e as drogas. Deu a pedrada porque disse que o menino tava batendo no menino dela. Por causa de menino. Tem outra de frente também que é aquele futuqueiro. as filhas dela. Paraíba: Homem é pior. Eu não me metia não.(. nas relações entre h o m e m e mulher. É mais a Alzira. "você tava fazendo isso. Os homens. entre pais e filhos. então eu crio os meus [filhos] que não se vicia. você fez isso não foi?" Eu não pergunto se ele tava.. Só ficava escutando..) Eu mais tenho medo é desse tipo de roubo.. Benvinda: Lá é uma cachorrada. né? O temor de que crianças e adolescentes. Menino nascido e criado aqui dentro. usualmente sob o estímulo da bebida alcoólica.) Ela [uma vizinha] deu uma pedrada. c o s t u m a m demonstrar sua valentia c o m os companheiros de bar ou. porém.) É... era mais por causa de menino. logo. né? Homem não chega nem a vinte anos porque morre hoje ou deserta logo. é a luta pela sobrevivência deles. até cheirar cola. A violência não se limita. Mulheres discutem e c h e g a m a agredirse fisicamente por causa de 'fofocas'.(. Está presente no cotidiano. Tem outra vizinha também encostado também.. faz tudo. entre vizinhos. não pergunto se ele fez. trabalha..) Era uma vez ou outra que era comigo também [a briga]. esse movimento todo que você vê aí.. essas coisas.que eu vou ficar com minha cabeça despreparada." Pra ver se ele me confessa. um homem desse aí. Todos os dias.. ao roubo. as mulher ainda passa.) Quando ele sai pá rua e demora.. mulher de acarajé que provoca. que ele tá um menino normal. ao crime. batem em suas esposas ou filhos quando voltam para casa. Uns procura briga. de se envolver com roubo.. apanham ou batem. é uma fuxicada. rouba. permanecendo na rua. Tonha: Filho homem? Isso daí eu já tô cansada de falar.. pra matar o menino. se acaba. Eunice: O pessoal aqui bebe muito. não. O pessoal bebe muito. eu tenho maior medo. essas outras manifestações de violência não deixam d e ser relevantes... após terem passado boa parte de seus momentos de lazer bebendo nos bares da redondeza. de disputas entre crianças.. deu uma pedrada em meu neto. poucos que não são viciado. Outra coisa. que enquanto eu puder lutar. Mas homem. o que é mais c o m u m . Pegou na coxa do menino. vai pra feira. consome muita bebida.. pra ajudar a eles. ao tráfico. fez uma arrocho. eu tô lutando. Os palavrão na rua. um homem. fazendo vontade. Espera-se também que os pais. (. (. Acho que foi por causa de mãe. num bato muito nos menino não. Tonha: Acho que a porrada indireita. D e acordo com a norma ideal. esta família deve ser composta por u m pai/marido.Quer dizer que ela não. façam uso de alguma violência. Embora não constitua realidade vivida por todos. apesar de comportar certa diversidade de arranjos. por uma mãe/esposa. idade etc. usualmente encarregada da gestão da casa e dos cuidados c o m os filhos.. os homens são considerados superiores às mulheres e crianças. responsável pelo sustento da prole. são considerados negligentes: o resultado pode ser a criação de crianças de vontade débil. cujo papel é complementar ao do esposo. devem-lhes obediência e respeito. (. mãe e filhos. que têm que 'provar a virilidade' e se impor perante os outros como u m ' m a c h o ' que merece respeito. você fala.. eu sou a pessoa que menos bate aqui.. ele faz. Vira assim que ele quer fazer. para fazer valer sua autoridade perante os filhos. entendeu. importante para corrigir os desvios de comportamento das crianças. Assim. desde quando ele nasceu. Ele ficou aqui direto com mãe até hoje. É rebelde. não teve paciência de chegar pra mim. cabendo aos adultos as decisões relativas aos assuntos familiares. qualquer uma de nós que falar ele resmunga e fica respondendo na grosseria. porque falar.. fala e eles continua fazendo a merma coisa. mas mudar eles muda.) Depois da porrada muda. ou excessivamente voluntariosas. Eu digo assim. fala.). na educação dos filhos. a família nuclear permanece como referência dominante. devem assumir se necessário sua manutenção. pai. mas também quando eu pego eu desconto esse tempo que eu não bati. ou não ameaçam usá-la.. Os pais que não usam a força. é fixado por características que fazem parte da realidade visível dos seus membros (sexo. especialmente para os homens adultos ou rapazes. O lugar de cada membro. que demonstram pouco respeito c o m relação aos mais velhos. As divisões no interior da família tendem a ser claras e pouco ambíguas para seus membros. Sendo a violência tão constante. Num muda por compreto não. Ele pirraça a gente aqui. A família no contexto do Nordeste. na visão dos moradores do Nordeste. nem dizer o que foi que o menino tava fazendo.) A avó fazendo as vontade. Moema: Eu tenho um sobrinho que ele é pirracento.. eu não gosto de bater. respeitado e valorizado na medida que cumpre a contento seu papel de provedor e pode representar o lar perante a comunidade. quando estes atingem uma idade avançada. e pelas crianças que. e mais tarde. Aí cresceu e está nesse ritmo. como . trabalhador. não é? Ela deu uma pedrada no menino.) Aqui dentro de casa. Porque mãe fazia muita vontade a ele. enquanto são jovens e vivem às expensas dos pais. é compreendida c o m o uma unidade hierárquica. Mãe que faz as vontade a ele. a manifestação de agressividade no comportamento é considerada como algo cotidiano. à mulher caberia a casa e a família. portanto. A casa é lugar por excelência da mulher. 1981). engaja-se no mercado de trabalho. ao menos por algum tempo. Desta maneira. Se tiver faltando uma carne. pois ela permanece ligada ao domínio doméstico. Mesmo quando tem um emprego. não podemos dizer que elas se tenham liberado das tarefas de dona de casa e mãe. como também mostram Salém (1980) e Sader (1988). Conforme mostra Salém (1980:60). correspondendo cada uma. tal qual o homem. da intimidade. vai comprar aqui". Aí me dá um nervoso e eu bato. formal ou informal. Dagmar: Eu não admito assim. desempenhado basicamente no interior da casa. pode ser analisada à luz da oposição entre casa e rua. Que meu marido é um pão de cada dia. que deve ganhar na rua o sustento da família. A despeito de este ser o modelo de família normativamente esperado. pra gente. ao contrário do do homem. conforme já observado. especialmente. ele cumpre tudo na risca. trabalhar na rua (mesmo que a rua seja a casa de outra família). não altera tão radicalmente o papel de dona de casa. Quando ele sai ele abre aqui a peça e ele olha. e freqüentemente fazem. O dever dele é botar a comida dentro de casa. Graças ao meu bom Deus. Quando as meninas sai e ele chega e pergunta: cadê fulano? Eu digo: foi pra tal lugar. portanto. o sustento da casa. mantendo uma dupla jornada de trabalho. é a boa união. é recorrer às suas redes de apoio para conseguir dar conta das diversas . A coisa mais revoltada que eu acho na minha vida é uma mãe falá pra uma filha e a filha responde à mãe. do descanso e da ordem. dá um maior apoio à gente porque a gente que é a família dele. Ele abre a geladeira. no contexto de crise econômica prolongada que vivemos no Brasil. Nem que ele tivesse sem um vintém no bolso. O papel da mulher é. No bairro. ao passo que a rua é o exterior. O que as mulheres podem fazer. a maior parte das mulheres. Letícia: Casamento. na prática ele não se concretiza totalmente. e o homem deve buscar na rua.forma de retribuição. no mundo da realidade mais dura. deixam a casa para. do imprevisto e do trabalho. ao domínio do homem e ao da mulher".Con¬ tudo. u m a galinha. respectivamente. dentro deste modelo. O resto eu resolvo. que ninguém me pirraça. É tomar conta das meninas. A família. do trabalho. eu sou bem casada. embora a tendência da mulher a se empregar seja um fenômeno de escala mundial (Segalen. viu. Letícia. Não gosto que responda. ainda cabe à mulher responder pelo cuidados com a casa e os filhos. O seu emprego. lugar da ação. Enedite: Os deveres dele. conforme observa DaMatta (1991): a casa é domínio interior. cada vez mais. há uma distinção "entre as ordens pública e privada. da família. minha filha. ainda que abandonem o emprego após o nascimento do primeiro filho. Mas ele diz: "tome aqui. U m dos primeiros elementos que parece perturbar o modelo ideal é o fato de que as mulheres. Isto acontece. tomar conta da casa. enquanto caberia ao homem o domínio da rua. mesmo que as mulheres estejam inseridas no mercado de trabalho. sabe como é que é? Letícia: Minha filha mora aqui com a filha dela. cozinheira. porque a tia tava amamentando. foi. Ε embora o salário nessas ocupações seja reduzido... como lavar roupas. Benta: Era uma vida muito agitada. trabalhei com uma moça dois anos ou mais. desenvolvendo atividades no interior do domicílio. Ε ela olhou. mas me ajudou demais. todas atividades ligadas ao cuidado c o m a casa e as crianças. quando eu tive Cleide e Daniela. Clarice: Trabalhei no Santo Antônio Barra. indicação de emprego para outros membros da família. as mulheres acabam reconhecendo algumas vantagens extra-salariais. ou realizando tarefas que ocup e m apenas alguns dias da semana. lavadeira. mãe. sabe como é? Eu não ia deixar pela casa dos outros (. eu trabalhava. Trabalhava de dia. como as faxinas.) Aí ela [uma filha] tava pequenininha deixei com a tia. não era daqui não.) todo mundo depois. eu sempre vendi de noite. essas coisa. como eu lhe falei. O trabalho feminino consiste. faxineira. conciliar as tarefas geradoras de renda c o m o papel de dona de casa. babá. Botar no colégio (. Benvinda: Eu chegava tarde.. Ela me ajudou bastante. porque os meus filhos tava tudo pequeno.... Zefa. D. não podia ir. eu não ia pagar uma pessoa pra tomar conta deles. eu fico. né?. e podem também obter ajuda ou conselhos sobre a melhor forma de lidar c o m certas instituições burocráticas. mas às vezes eu deixava mais era em casa. ajuda para construção da casa. tomou conta. e m uma extensão do papel de dona de casa. ela que me ajudou comprar aqui. ligadas à dinâmica clientelística que e m alguns casos ainda opera nas relações entre patrões empregadas domésticas: elas recebem roupas.. . eu sempre trabalhano no restaurante. desobrigando-as de estar demasiado tempo ausentes do lar e distantes dos filhos menores. também. sabe como é? Às vezes tava de parto. eletrodomésticos usados.demandas. O pai me deixou com filho.. deixava a mamadeira pronta. contando normalmente com a ajuda de uma avó. eu trabalhava de zeladora no Júlio César. então todas duas podia mamar o leite da outra. Trabalhano nas casa das família. Damiana: É ela [a avó] que cria porque. Procuram. peguei. Aí então. manter uma pequena venda. ela faz faxina. lavano prato. aí eu chegava e deixava lá. né? Eu sozinha pra criar. ou filha mais velha. restaurante de noite. não tinha um pra tomar conta do outro. fazer costuras... eu fiquei com a filha dela. e m grande medida. tudo tomando conta do outro. quando eu comecei a vender acarajé. Depois de amanhã ela vai de novo. porque sempre. a maioria das mulheres do bairro emprega-se como doméstica. botei pá casa de minha mãe. era um pessoal. Então era um trabalho que eu não podia ficar com ela. nós ficamos desabrigado. tá entendendo? Pela vontade dele mesmo. somente olhar filho e olhar casa. que eu sei que é obrigação dele ter e dar. Não encontramos. muitas mulheres e m cujas casas não há homens sentem-se mais vulneráveis e menos respeitadas. que meu pai que tinha que dar comida a ela. Os dados do Nordeste confirmam a tese de que não se pode deduzir. Que hoje ela trabalha. de que ele é homem. Malgrado.Joana: O barraco caiu. lá o chefe lá..) Nunca pode se viver com mulher nenhuma que ela não aceita. haja uma tendência geral de "diminuição da importância da figura masculina e m favor da expansão d o feminino" (1985:97).. Quando teve uma chuva que. Diz que não pode. minha filha. ela tem a mesma idéia. ou mais. que o papel masculino tenha sido transformado e m elemento dispensável. não é não? Eu mesmo posso dizer que nem dependo. 1985. pra eu ter em minha mão. Pediu. A crescente independência econômica da mulher parece colocar em cheque o papel do h o m e m na família. Zaluar. o que se pode observar no fato de que. e veste uma calça e vai pra rua trabalhar. .. a respeito da inserção da mulher no mercado de trabalho. Disse: "é uma. que uma vez ou outra que eu peço qualquer coisa.. Benvinda: É. o. né. não é eu ficar pedindo. nas famílias e m que o pai não está presente para exercer seu papel. 1986. Ganhar um salário o mesmo que eu ganho.. Eu também me escuso até de ficar pedindo. que ela não sabia fazer nada. não é? É mais difícil uma mulher dizer que vive sob mando hoje. não se despojou o h o m e m de classe trabalhadora de sua autoridade na família.. Aí nós fomos pedir abrigo na secretaria do estado e tudo. Naquele tempo. É o h o m e m que representa a unidade doméstica ante os outros. Salém.. Duarte. uma. Hoje ela deixa o menino dentro de casa e vai. N o Nordeste. impondo uma certa autoridade sobre o meio. senhora que trabalha comigo e ela não tem meios. eu acho que as mulher tão mais independente. uma vez ou outra que manda uma bobagem pra mim. foi num jantar tarde à noite. fato que tem sido bastante debatido por estudiosos do tema (Woortman. da minha mãe. como reconhece Zaluar.. 1987. O barraco caiu. que não tem. né? Daí eu me viro em trabalhar. o que não quer dizer que não façam frente a esta situação.. Ε hoje principalmente. a crescente autonomia da mulher parece indiscutível: é visível no cotidiano das famílias e tematizada e m conversas e relatos: Léo: Aquilo. ela ga­ nha o mesmo dinheiro que ele ganha. 1980). me humilhando. foi no chão. N o bairro. sei quantas pessoas". ela se assujeitava a tudo isso. Tô vendo a hora de botar ela com os filhos lá na garagem do carro. mas hoje não. é. que arrasou tudo. é porque o homem sempre tem uma autonomia. e o barraco dela caiu. sempre com choradeiras. o filho mais velho ou o irmão da mãe são e m geral chamados a representar a figura masculina. (.... Então ela não vai se assujeitar a isso. Meu patrão pediu. relutavam e m separar-se. Se ele dissesse assim. Quando o pai de meus filho. se o pai tivesse aqui eles num. Meu menino. ainda que possa haver u m a boa dose de pragmatismo na decisão das mulheres de se separarem dos parceiros. mas tem muita gente ruim. ele briga com elas. ele não era homem de bater nos filho. esse bairro aqui é um bairro de gente ruim. Maria da Luz: Eu acho que um pai é uma coisa importante. entendeu? Então nego gosta de se aproveitar: é mulé. Sei lá. né? (. eu não. entendeu? . eu não batia nem nada. pra mim um pai é muito importante. achava casa. bastava dizer "quando seu pai chegar cê vai ter. sem homem.) Elas trabalha de doméstica. a mulher trabalhava. (. Porque a mãe sempre passa a mão pela cabeça e o pai não. Eles num era. Eu que quero xinga.) Ε as mulher que ele arranjou foi umas mulherzinha. esse que saiu daqui. Eu. entendeu? Sabendo que ele é precisado delas. inclusive os meu mermo. Ela dá um tudo a ele. mas ele é menino. Entretanto. que ela pode arranjar um outro e fazer o mesmo. Encontramos no bairro casos de mulheres que. Todo mundo qué manda. que sempre as criança respeita mais os pai. Ε ele foi gostando daqui e dali.. pode vir a mim que eu sei agi. Umas mulher que suporta tudo dele. coita­ da. quando meu marido era vivo. Tem uma mulher que mora ali com os filhos. Não é assim não. era um menino danadinho.. Woortman (1987) defende a idéia de que a perda de emprego d o h o m e m é a causa mais direta de dissolução d o laço conjugal nas classes trabalhadoras. dar na mão. comentando sobre um amigo: Depois que essa. Eu bato. Agora esses menino maior bate no meu filho. A ruptura de alianças conjugais e formação de outras novas marca a dinâmica de muitas famílias do bairro. né. mas não é assim não. Eu não quero que ninguém bata. deixou ele. vai castigar você". se eu lhe disser uma coisa você não acredita. m e s m o independentes financeiramente e insatisfeitas com os parceiros. Porque eu acho assim: o que os meus filho fizé. quando eu tinha meus filho. porque ajuda também na criação. eles num era rebelde não. bebendo. Eles são rebeldes. Pra não dar comida aos filho. Mas eu garanto a você. Passa dois. certamente não é este o único fator decisivo.Tonha: Ah. Tem muita gente boa. e não ela dele. os menino respeita mais. entendeu? Na casa dela.. Nego sabe. aí ele deixou de trabalhar. ia dando a ele. entendeu? Então. meus filho não era assim como é hoje não. eu que quero batê. e foi se elevando a vida dele assim. eles tinham medo do pai e o pai não batia. que tem catorze filho com ele. ele continua na mesma. três dias sem ir lá. Eles tinha medo dele.. tando errado. mas quando ele quer. cinco e meia eles já tavam se arrumando pra dormir. Eu acho também se a gente for abaixar a cabeça pra todo mundo. comida.. muito boa. dormida. né? Desempregado.. e esta hesitação não era creditada a razões de natureza meramente pragmática: Léo. Dagmar: Eu acho que é. né? Comendo. mas os outro da rua não. Ele tava parado.Benvinda: A gente se unia muito. aí ele ficava dentro de casa me ajudando. usar a criatura à pulso. A justificativa oferecida para a manutenção dessas relações insatisfatórias repousa na situação dos filhos. né? Nem imagina muitas coisa que acontece. de fato. ele vai vira.. a expectativa de serem abandonadas e a experiência da separação para as mulheres. aí ele metia os peito comigo e procurava ajudar. vão perguntar uma coisa.. Então eu me dano com ele. Sempre tem os pais grosseiro. e como prejudica.) Ah. dirigidos contra ela ou contra seus filhos. mesmo ele bebendo assim. não relaciona não. N o Nordeste. abandonou o trabalho por causa da bebida. trabalhava. me ajudava a fazer a venda. é uma briga desgraçada dentro de casa. aquele. com ele [o filho] não. ele sempre não deixa eles falarem. que a mulher não guentou mais. na dificuldade ou necessidade de sobrevivência econômica. Pessoa grosseira que às vezes a gente nem imagina. Os pai quando é grosseiro com os filho. ainda que seja relativamente comum. é ruim mesmo. entendeu? Eles são. passava. sem querer comer. a gente tem mais é que sair.. ia pra. Como nota Salém (1980). Ele voltava. Por outro lado. configuram-se e m uma das razões relevantes para que a mulher venha a romper com uma relação conflituosa: Benvinda. é uma briga. eu acho que prejudica eles. . é sempre motivo de grande sofrimento. Porque por tudo cansa. aí quebra o pau. ficava deitado. né? (. Tinha dia que tava muito bêbado. quando tão dentro de casa o pau quebra. porém. tal. Tem pessoas com a cabeça ruim. queria matar. vou pegar meus filhos e me mandar. mas ele era muito obediente a mim. né? Se vê que uma coisa tá prejudicando os filhos. nem sempre a separação chega a se configurar. Eu ganhava o dinheiro. levava feijão. Só separou por causo disso. né? Eunice: Que. que ele era meio grosseiro. ele ia fazer compras. ele é assim.) Esse probrema todo. mesmo quando os maridos contribuíam irregularmente para o sustento da família. me dano mesmo. aquele que quer tudo certinho. sobre um amigo: Os filho nenhum ligava pra ele não.. Era pedreiro. que os maus-tratos físicos excessivos. fazia o dinheiro. Léo. aí não fazia nada.. mas aquilo tinha que ser limitado pelo gosto dele e não pela dona da casa. entendeu? Ela fazia a feira. sem condições. judiava. Porque ele batia. mas não tem jeito. Depois que ele abandonou.) Briga constante. Queria o. como u m a alternativa viável.. ia pro ponto mais eu. sabe? Tudo cansa. que ele era muito exigente. Joaquim fazer compra. Já tava doente. tô saturada. sabe?" Ε aí eu digo a você. Ε importante considerar. Mas quando ele melhorava.. quebra o pau pro meu lado. conversar. coitada. entendeu? (. (. as mulheres usualmente vivem a situação de perda do marido e de infidelidade conjugal como uma experiência intensamente dolorosa. apesar de muitas mulheres demonstrarem insatisfação c o m o casamento. eles chegam... teve um dia que eu tava falando: "já era.. sobre uma vizinha: Ela veio pr'aqui escarreirada dele [quando se separou]. todos quatro quem registrou fui eu. comprava na mão dos homem. Trouxe. Depois de separados. Não registrou. elas ficam sem m o radia ou não conseguem manter-se sozinhas. Os filhos são. o pai tem relativamente pouco contato c o m eles. aí mãinha.Benvinda: Ε lá eu morava com o pai dessa menina aí.. após a separação. né? Quando eu não tou. Quando. vendia a homem. freqüentemente nascidos de várias uniões diferentes. tá entendendo? Era muito perverso e só vivia me entucalhando e eu tinha que vender na feira e não queria que eu conversasse com os homens na feira.. Se eu comprava na mão desses homem.. o pai dos seus filhos. Aí eu me invoquei. Não registrou. né. mas era muito perverso. mas ele era muito ruim. particularmente. por exemplo. tudo regis. antes de tudo. nem isso ele fez. eu me empregava nas casas assim. Isto se dá. a este respeito. muito espancador de mulé e eu trabalhava pra me manter. no máximo contribui c o m uma ajuda financeira bastante eventual. quem registrou fui eu. Entrevistador: Tina. Foi. ele lhe ajuda ou não com as crianças? Tina: Quando tem e quando quer dar. meus filho eu trouxe! Agora deixei uma casa lá. Aqui quando eu cheguei. Larguei ele lá. (. quem mais ajuda sou eu que tou trabalhando. eu lavava roupa. não registrou. que muitas mulheres se vangloriam de não se terem 'rebaixado' para pedir auxílio aos seus ex-companheiros para sustento dos filhos e m comum. Nos casos de separação. uma alternativa é voltar a viver com . não era pra conversar com homem. Eu registrei e num ajudou nada. E m geral. as mulheres sozinhas c o m filhos precisam muito mais do apoio de pessoas da família. ele pegou e vendeu. não? Aí ele ficava me dizendo que ia me cortar toda de facão.) Convive com outra família. que não sei o quê. Não posso nem dizer que ele ajuda. Trouxe os filho tudo. todo mundo ajuda um pouquinho.. contam c o m o auxílio da mãe ou de filhas mais velhas para o cuidado com as crianças pequenas e c o m a casa. Benta: O pai deles não registraram eles. pá estudar. não fez nada. nos casos de famílias e m que as mulheres tiveram várias uniões com homens diferentes e filhos de diversos pais. Tratase das "díades maternas" na expressão de Woortman (1987). quem registrou fui eu. mas não podia ficar nas casa. não ajudou criar. A crescente independência financeira da mulher e a existência de uma relativa instabilidade conjugal nas famílias de classe trabalhadora remete-nos a outro tipo de arranjo doméstico bastante c o m u m no Nordeste: famílias compostas pela mãe c o m seus filhos. larguei tudo lá e vim embora. filhos dela. tinha que botar na escola. Ε ele trabalhava de negócio de pescaria. não ajudou a criar. se tivesse ajuda da parte dele.. Ε interessante notar. e m geral a casa e os filhos ficam com a mulher.. né. e o seu. porque não tinha quem tomasse conta dos meus filhos. A família extensa é um outro tipo de organização doméstica relativamente comum no Nordeste. que se conhece o indivíduo por suas peculiaridades. mais um vez voltará a prevalecer um arranjo e m que a mãe é o chefe da família. e eu não agüentava ver. eles não respeita ele. mesmo no universo urbano. entendeu? U m a vez m e s m o ele bateu em um que desmaiou. Famílias em formação. eles tavam tudo j á grande. Neste caso. que o indivíduo se percebe como pessoa. para a obtenção de emprego. favores. Assim. A o contrário. conhecia tudo. vivendo com os filhos e netos. até que se possam capitalizar para a realização do projeto da casa própria. por exemplo. a um rompimento. que precisem trabalhar para garantir o sustento da família. tende a manter os filhos consigo. conexões com instituições médicas. por vezes. então ele acha. As redes de parentesco e vizinhança podem ser instrumentalizadas no âmbito da rua e penetrar no domínio da burocracia e das relações impessoais. porque quando eles veio pro poder dele. Ε de se esperar também que mulheres separadas. De fato. era pra dar aquelas porradonas. aí pronto. No caso de uma nova união. o novo marido poderá encontrar dificuldades para exercer sua autoridade perante os filhos que são exclusivamente da mulher. suas qualidades. e o grupo de parentes mais próximos constitui ainda.as famílias de origem. e em especial no grupo de parentesco e na rede de relações mais próximas. contem com mais apoio se permanecem na casa dos pais. podem optar por permanecer um certo período com a família. se ela fica com a casa quando se separa. pois é a única na qual a participação continua e envolver. se a mulher não tem sua casa própria. o que gera algumas tensões na família. . rede esta que se constitui e m u m ponto de apoio essencial. quando pegava algum. a totalidade da pessoa. no Nordeste. e em que crianças pequenas dificultam o trabalho da mulher. C o m o diz Durham (1978:189-190). o grupo de relações primárias. necessariamente. especialmente a unidade doméstica. que ainda não conseguiram construir sua própria casa. mesmo que constitua uma nova união. Este tipo de arranjo é formado por pais ou um dos pais (normalmente a mãe). da teia de relações construídas e m torno da família e com base ela. eles acha que ele não deve obedecer. observamos que. em geral da mulher. Tonha: C o m Gilvan eles não respeita. as famílias absolutamente não estão isoladas de sua rede de parentesco. sua história. Benvinda: Eles [os filhos dela] não obedeciam [ao seu terceiro marido] porque ele só andava bebendo. a unidade fundamental de vida social. para viver na casa do novo companheiro. seus defeitos. Eu achei que não devia. Já tudo conhecia o pai. Ε hoje ele não bebe mais. conduzindo. Mas é no âmbito da casa. é no bairro. mas tá vivendo sozinho na barraca. Assim. é possível deixar os filhos com a mãe. II: Northwestern University Press. São Paulo: Martins Fontes.F. Μ. os demais situam-se no campo da antropologia da saúde. J. Espiritu. 1978. Cambridge: Cambridge University Press. M. Rio de Janeiro: Zahar. G. In: SCHUTZ. Arthur Kleinman. entre outros.NOTAS 1 Convém citar. Com exceção dos dois primeiros. ver nota 1 do referido capítulo. Petrópolis: Vozes.6. Ser e Tempo. MEAD. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology. (Ed. Evanston. R. Fenomenologia da Percepção. Introduction. Parte 1. T. La Haya: Martinus Nijhoff. (Eds. Μ. Lawrence Kirmayer e Elen Corin. 1991. 1994. 1996. Introduction. J. In: CSORDAS (Ed. 2 3 4 5 6 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CSORDAS. 1973. Bloomington: Indiana University Press. JACKSON. and anthropological critique. A metodologia que orientou a discussão do capítulo 1 foi elaborada por Ellen Corin. In: DOUGLAS. M. Para maiores detalhes. 1997. Processo 501465/91-0. São Paulo: Perspectiva. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. Introduction. Buenos Aires: Editorial Paidós. DOUGLAS.) Existencial Sociology. & JOHNSON. A Caminho da Cidade.) Things as They Are: new directions in phenomenological anthropology.) Embodiment and Experience: the existential ground of culture and self. MERLEAU-PONTY. L. . DAMATTA. NATANSON. radical empiricism. In: J A C K S O N . Processo 522100/96-1. Ε.H. Processo 520927/94-0. servindo como base para um projeto internacional. 1972. Gilles Bibeau e Elizabete Uchoa. 1970. Da Vida Nervosa nas Classes Trabalhadoras Urbanas. 1977. J. Processo 521036/93-3. A Casa e a Rua. Byron Good. como representantes de uma orientação fenomenológica em antropologia. do qual os autores da presente coletânea participaram. 1986. 1994. DUARTE. Processo 521717/95-7. E. Cambridge: Cambridge University Press. M. HEIDEGGER. Paul Stoller.ed. Collected Papers 1: the problem of social reality. HUSSERL. Persona y Sociedad. J. & JOHNSON. Words from the Holy People: a case study in cultural phenomenology. Thomas Csordas. DURHAM. Phenomenology. os trabalhos de autores como Michael Jackson. A. O Ser e o Nada: ensaio de ontologiafenomenológica. SCHUTZ. 1988. SCHUTZ. SARTRE. La Construcción Significativa del Mundo Social. A. SEGALEN. ZALUAR. Los Estructuras del Mundo de la Vida.P. Κ. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/CNPq. Buenos Aires: Amorrortu Editores. São Paulo: Brasiliense. WOORTMANN. Quando Novos Personagens Entram em Cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980). & LUCKMANN. Petrópolis: Vozes. A Família das Mulheres. J. (1): 57-92. Mulheres faveladas: 'com a venda nos olhos'. La Sociologie de la Famille. Barcelona: Paidós. A. 1987. T. 1997. M. 1993. Perspectivas Antropológicas da Mulher.1980. Paris: Armand Colin. 1981. 1973. SALEM. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1985.SADER. Ε. . A Máquina e a Revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. T. . Parte I . . . A investigação centrou-se na coleta e análise de narrativas sobre casos concretos de doença. os indivíduos tendem a expressar situações de mal-estar por meio de formas aceitáveis e significativas para a própria cultura (Littlewood & Lipsedge. E m termos mais específicos. 1993). Desta premissa. Subjaz ao estudo a premissa de que os significados associados à experiência da doença mental são construções culturais herdadas e utilizadas em situações de aflição (Corin et al. dos significados culturais e expectativas associados à experiência da doença (Kleinman. Paulo César B. o trabalho desenvolve uma análise dos signos e significados relativos ao campo saúde/doença mental entre moradores do Nordeste de Amaralina. Alves & Iara Maria A. 1992. 1978. 1980). para o campo do 1 2 . depreendem-se importantes implicações pragmáticas. N a primeira. A metodologia adotada abrangeu três fases principais.de comportamentos relativos ao campo da saúde/doença mental. Este material (um total de dez entrevistas) foi analisado com base em uma lista inicial de comportamentos problemáticos relevantes. visando a colher nomes (termos) e descrições . e m grande medida. E m segundo lugar. explicam e lidam c o m o problema mental.as mais detalhadas possíveis . como argumenta Littlewood. Souza INTRODUÇÃO Este capítulo busca contribuir para uma compreensão mais abrangente de como indivíduos pertencentes às camadas populares identificam. E m outras palavras.1 Signos. em linhas gerais. realizaram-se dez entrevistas exploratórias com moradores do bairro. as expectativas que uma sociedade ou grupo nutrem sobre o comportamento de doentes mentais refletem-se sobre a maneira pela qual a doença é expressa. E m primeiro lugar. Significados e Práticas Relativos à Doença Mental Míriam Cristina M. a decisão de procurar certas formas de tratamento e as maneiras como os sujeitos vão se comportar e m relação ao tratamento e avaliarão os seus resultados dependem. Rabelo. 1989). Tomando-se por base esses registros. classificados e utilizados para se produzir uma redescrição. convidados a identificar pessoas conhecidas. No segundo tipo de d i s c u r s o . reações e tratamentos (cada um dos quais classificado segundo subcategorias de conteúdo). de dois ângulos de abordagem do problema. O primeiro conduzia a uma discussão da doença como algo que apresenta uma localização palpável no corpo: diz-se mesmo que sua presença exata na cabeça pode ser detectada por exames apropriados. em detalhes. causas e tratamentos referidos nas narrativas de casos conhecidos de doença. Tal como previsto no desenho metodológico original. os registros vieram a constituir um instrumento para a identificação de casos concretos de doença mental no bairro: sessenta informantes foram. a doença mental era freqüentemente referida como 'problema de cabeça' ou estado de enfraquecimento ou perda do 'juízo'. c o l o c a v a . cujo comprometimento reflete-se claramente no desempenho social do indivíduo. O artigo parte de uma breve apresentação das visões sobre a doença mental que informantes do Nordeste apresentaram. em conversas genéricas. Desde aí. Uma vez redescritos. causas. a presença marcante de familiares e vizinhos próximos dos doentes entre os informantes que produziram as narrativas. Destaca-se. algumas das histórias da doença de pessoas referidas na enquete anterior (um total de 36 casos). selecionaram-se trinta informantes para a produção de narrativas que reconstruíssem. durante a fase exploratória da pesquisa. recorreremos à comparação sempre que contribuir para ilustrar ou melhor esclarecer a especificidade das concepções e práticas relativas à doença mental no Nordeste.s e ênfase sobre a capacidade pessoal de j u l g a m e n t o ou discernimento nas interações sociais. campo de atuação do juízo. c o m o peculiaridade da pesquisa realizada no Nordeste de Amaralina. VISÕES DA DOENÇA MENTAL: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO Nas conversas com habitantes do Nordeste de Amaralina. cujo comportamento se enquadrasse nos registros (lidos pelos pesquisadores na sua forma modificada). . alguns trechos das entrevistas foram selecionados.que chamamos saúde mental. então. Essas narrativas constituíram o material-base para a análise final. na verdade. Trata-se. procedimento desenvolvido para auxiliar na reconstrução da semiologia local da doença. Uma vez que a mesma metodologia foi aplicada em pesquisa entre moradores de um bairro de classe média de Salvador (Pituba). o que resultou em uma riqueza considerável de informações a respeito da história da doença. segundo o discurso e a terminologia locais. servindo-nos para introduzir uma discussão mais específica acerca dos domínios dos signos. a análise das narrativas envolveu a identificação e agrupamento de fragmentos de discurso referentes aos campos dos signos. é. duas categorias . falava-se de pessoas que 'estão' ou 'ficam n e r v o s a s ' .funcionavam como eixo inicial.. de violência. quer como juízo fraco). trabalhadores. alterações no discurso. No primeiro caso. que 'são n e r v o s a s ' . Para abordar tais visões.N o discurso genérico sobre a doença. comportamento bizarro. 3 4 5 Os SIGNOS Ε SIGNIFICADOS DA DOENÇA As visões sobre a loucura surgidas no discurso genérico assumem novas dimensões nos relatos de casos concretos de doença. uma perda temporária ou tendência a perder o controle sobre as próprias atitudes ou reações. mediante a qual indivíduos de classe trabalhadora afirmam sua identidade de 'pobres mas limpos'. de fato. essa analogia entre mendigo e louco revelou-se imagem-chave na interpretação das histórias de casos concretos. a expressão 'jogar-se no desprez o ' . A imagem do louco remetia. que perambula pela cidade totalmente alheio a redes de intercâmbio e apoio. Considerava-se que tanto os mendigos quanto os malucos pertencessem ao domínio anônimo das ruas. ao maluco de rua. Media-se a irracionalidade da loucura. parece transmitir esta idéia. desde o qual se referiam e classificavam vários comportamentos desviantes (descritos quer c o m o problema de cabeça. categoria de alteridade importante. e m 11 tipos básicos: signos relacionais. geralmente. partimos de uma análise da configuração dos signos indicadores de problema no Nordeste. as categorias de 'loucura' e 'nervoso' apontavam para u m continuum que transita desde o outro irrecuperável até o sujeito ocasionalmente enfraquecido. mas tomou-se u m total estranho . emoção. por uma ruptura da moralidade das relações sociais. Pode-se dizer que ambos se desvincularam dos principais laços sociais por intermédio dos quais os indivíduos obtêm acesso à condição de pessoa. isolamento. ataques e crises. C o m o tornar-se-á mais claro no decorrer do texto. no segundo. Classificaram-se como signos relacionais apenas os comportamentos diretamente li¬ . largamente utilizada. problemas no campo da percepção (delírio e alucinação). O termo mendigo apontava para alguém que veio de dentro. agitação. assim. o 'nervoso' era quase sempre descrito como estado menos grave e comprometedor.perda radical e definitiva do juízo . vários moradores do Nordeste de Amaralina estabeleciam u m a associação entre mendigos e loucos. em oposição à arena de relações pessoais e de reciprocidade que caracteriza a casa. Quando inquiridos a respeito dos comportamentos expressivos de loucura. uma moralidade que implica reciprocidade no lidar c o m outros cuja localização no mapa social é b e m conhecida. Estes foram classificados. Mais d o que unidades estanques e opostas. voltados para a família. C o m o oposto à ' l o u c u r a ' .'loucura' e 'nerv o s o ' . aparência. desempenho de papéis sociais. de acordo c o m seu conteúdo. Um pastor pentecostal. deixa pra lá". que nada (. eu penso assim. discutindo. para com isso. Eu me lembro u m a vez foi que ele tava batendo na mãe.). Liane. atitudes não justificadas pelas características da situação. Silvio. que insultam e amaldiçoam os outros e recusam-se a submeter-se à autoridade dos pais. eu acho que ele também tem sistema nervoso.. dizia que eu não prestava. Quer dizer. cambada de miséria. que eu era ruim. sua cambada de miseráveis. Na hora.. vocês são parente da miséria. que venha atrás d e mim. né? Então ele xingando a mãe.uma vez que. Na configuração dos signos relativos ao campo da saúde/doença mental. presentes em quase todas as narrativas. o acento recai sobre o domínio dos signos relacionais e de violência. Batendo não. O trabalho partiu de uma observação das configurações específicas de signos para uma discussão das diferenças nos seus conteúdos. eu não quero não. É. Eu não quero conta c o m vocês. "ah. Quando acabava. É maluquice mesmo. Mas u m a s agressões. xinga mãe. j á tem na faixa de uns três anos." Ele: "não. Eu penso assim.)". batendo na mãe. no nervoso. a gente fala "ah. que é o m e s m o que tá batendo. ali eu acho que não tem jeito m e s m o .. sobre a irmã Belinha: Quando a gente se aproximava assim dela. Joaquim. não sei o que. suas desgraçada. Sai. Já o comportamento bizarro serviu como rótulo para agrupar condutas e modos de ser considerados estranhos ou alheios a um padrão normal de modo marcante. ela j á atendia. mas o fato de serem dirigidas a pessoas que.. da desgraça. não sei o quê. né? Se a gente somos filho... sr. . M e chamava de pastorzinho.. A eles. Eu acho que é esse pobrema aí. descrevem indivíduos de modos rudes. até um determinado grau.. se ligam os signos de agitação e comportamento bizarro. Raul. usualmente um membro da família... sobre a esposa: Quando ela tava zangada. Rapaz. sobre o amigo Joaquim: A primeira vez que notaram o nervoso dele foi. mas que também pode ser um amigo ou vizinho. é sua mãe (.. "Eu sei. O que se assinala mais fortemente não é tanto a presença de violência ou da agressão per se . de maneira significativa. do nervoso. ela vinha. j á n u m a pessoa assim diferente. Vocês são lá parente. às vezes. né. ambas devem estar presentes na atuação de várias identidades locais . por definição. C o m esses pobremas. faz-se referência explícita à vítima. em descrições de problemas em relacionamentos. Os signos de relacionamento e violência que aparecem nos relatos do Nordeste referem-se a atitudes agressivas e desrespeitosas no convívio social. mas havia ocasião que ela tava assim. certo? M a s eu penso assim: mãe é mãe. eu não quero conversa com vocês não". sei lá. devem ser objeto de atitudes de respeito ou mesmo submissão. mas a gente parente. se o cara tiver em qualquer estado que tiver. esses negócio.gados a uma dinâmica interativa e ao desrespeito às suas regras. Vá. isso é da doença. me pedia perdão: " m e perdoe". rude e . é interessante observar que a manutenção de atitudes positivas e m relação aos pais aparece e m algumas narrativas como u m signo de que o problema não é tão sério. Ela não respondia mais. Se a mãe dela diz "Belinha. né? A pessoa tem um filho e fazer isso eu já sei que é problema. mas ainda abria e fechava as mão.Alice. eu reclamava com ela e ela não respondia nem nada. começava a falar besteira.. né? Então uma criança dessas não é normal. ela ficou mais calma. ela obedece a mãe.) inté me xingava. a violência e/ou a agressão tornam-se particularmente problemáticas quando dirigidas a familiares. né? Ela. isso acalmou. O significado desses comportamentos. tomada como valor moral por excelência.um dia. Descrevem-se. ela é boa. no outro. pronto. ela começa a xingar o povo dela mermo. Letícia.. porque a gente conhece uma criança normal. quando eu queria bater nela. normal. Januária: Porque ela começava assim a discutir com as pessoas sem as pessoa ter nada a ver. Aí os povo notou que ela tinha a cabeça fraca. Clarice. e tudo dela se irritava logo. sobre o filho de Damiana: Ela dá coca-cola. sobre a vizinha: Quando ela ataca. ele. sobre a mãe. entendeu? Ela é ótima. dócil e amigável. Ela é calma. Alguns dos comportamentos agressivos descritos pelos informantes são assinalados por seu caráter exagerado: são vistos como reações exacerbadas. nas entrevistas. assim. Aí sim. sobre a filha Zelinha: Ela foi por ela merma [para a sessão de umbanda]. D. Entrevistador: Ε ela melhorou do problema na mão [dificuldade de segurar os objetos]? Clarice: Não. coisa que meus filhos nunca fizeram. c o m o signos de juízo fraco. Mudanças súbitas e inexplicáveis nas atitudes . ela é uma pessoa ótima. sobre a filha Zelinha: Ela ficou tão nervosa que (. ela me xingava e queria me enfrentar. Clarice. Marina. Deste modo. ela não melhorou. que emanam de uma avaliação deficiente das atitudes e intenções dos outros. C o m o se evidencia nos trechos anteriores. quando ela se irritava. está fortemente relacionado à importância da família. não faça isso". ela não faz. ou de q u e a saúde mental da pessoa está melhorando. Mas o nervoso que ela tinha. a raiva. Daquele dia em diante. atitudes de desobediência e de rebeldia para c o m as mães como graves manifestações de u m distúrbio. sobre a vizinha Belinha: Quando tá assim. que o médico mes- mo disse que é pra ela evitar de dar porque é tóxico aquilo. Clarice. e m especial à m ã e . Nervosa. o que ele pegar vai rumando. D. ele força ela a dar porque se não der. agride . sobre a esposa: Não tem nada que teja certo. se você chegar e ela gostar de sua cara. fazem u m turbilhão dos problemas mais insignificantes. Se transtorna muito dentro de casa. Lúcia. acha que tá ruim. não sabe o que tá fazendo. ' i n s i s t e n t e ' . D. D.. ele faz pra poder chorar. não precisa eu brigar com ele. que o que mais tem é o nervoso.. Joana.compõem uma representação do doente mental como alguém que não oferece u m terreno favorável para a interação. Você sente aquela agonia. ela é capaz até de esbofetear a gente. aí pronto. nada pra ele tava bom.a pessoa não d o r m e . Algumas pessoas são retratadas como 'invocadas'. anda d e u m lado para o outro. ele tá chorando. expressando tanto c o m p o r t a m e n t o s mais exteriores . Sílvio. ' n e r v o s o ' .. aquela coisa assim. acha que tá errado. raiva e tristeza. é fazendo grosseria. andando pra cima e pra baixo e sempre angustiado. A s s i m . O mesmo jeito que ele faz pra brigar comigo. aquele nervoso. é a falta de paciência. se invoca. Ele muda. é chutando tudo. não precisa nada. por poderem desgostar-se súbita e inexplicavelmente com alguém e que porque. sobre o marido: Não. ele tinha aquela pressa. pode tá conversando aqui comigo. sobre a filha: Porque. se zanga assim. D a s descrições. se esmera. é aquela finura. tá trabalhando. A g o n i a e nervoso (tomados aqui no sentido mais estreito d e signo ou sintoma. e m q u e os desejos se afirmam e m caráter de urgência e o m o m e n t o presente parece assumir proporções exageradas. Ε conta caso. mas se ela não for [com sua cara]. Sr. Dá aquela reviravolta na cabeça. quando pensa que não.. ' a g o n i a d o ' .. D. ' a g i t a d o ' . Marina. Lúcia. ele chora. daqui a pouco. conforme são às vezes e m p r e g a d o s ) c o n d e n s a m significados múltiplos. u m ritmo mais acelerado. sobre a vizinha Belinha: Ela tá bem. c o m e d e m a i s . né. ela cospe no rosto da gente. Fazendo o mesmo. Nervoso é uma coisa horrível. e m e r g e a idéia d e que o doente vive e m u m ritmo distinto das pessoas normais. Ε ele ficava muito nervoso. Renilde. Que ele era calmo. É. se invoca com a cara da gente. . ele senta ali na cama. não pára. ela xinga. quanto u m estado emocional m a r c a d o por u m misto de angústia. daqui a pouco ela começa a se chatear. Aquela pressa de fazer tudo. sobre o filho: Assim vexado.até mesmo violento . sobre o marido: Ele vivia agoniado. Aí quando ela se invoca. Ε ela joga pedra na gente. dá cada baixa!. Daqui a pouco dá pra gritar naquele nervoso. ela lhe trata muito bem. é assim que ela é. costumeiramente. numa boa. delineiam-se os traços típicos q u e definem o m o d o de ser no m u n d o daqueles cujo j u í z o é ou está fraco: ' a v e x a d o ' . Aí tomava aquele outro banho. então. com outras pessoas não necessariamente conhecidas é também um importante sinal de problema. Neste contexto. C h e g a v a n o Nordeste. sobre a filha Adélia: Ela continua na rua. a atenção se volta para a introdução de regras da rua no domínio da casa: a pessoa trata a mãe como se não estivessem ligados através de obrigações bem definidas. No extremo..ela saiu e levou bem uns três dias fora de casa.. agitada. está o maluco que perambula pelas ruas do bairro. desrespeito e insulto a outros no espaço da rua. " T ô c o m calor. A agonia. a pessoa leva o dia todo.. ganhar uma dimensão nova e freqüentemente mais séria. pro Nordeste. D. sem comer. A doença atacou mesmo. sair de manhã. Tomava banho agora. sair assim. ela chegava e pedia. refere-se a problemas mais graves: o louco não consegue parar em casa. a exibição de atitudes impróprias em relacionamentos fora da família. "Não. põe-se o foco no distanciamento gradual do doente quanto ao domínio da casa e sua progressiva identificação com a rua. os h o m e m vendendo b a n a n a naqueles tabuleiro. A pessoa sair assim. eu vô jogar uma água no corpo.. quando a pessoa vai pra rua sem procurar [por nada]. No segundo caso. levar o dia todo na rua. Liane. por vezes. . Mãe [dizia]: "não vá gastar água não". Ela saiu . embora a ruptura da moralidade da família seja um tema recorrente em diversas descrições de problemas.. sobre a irmã Belinha: Ε tinha dias que ela tomava banho demais. ela respondia com aquele. j á pensou. Ela ia pra Pituba.Liane. tô com calor". a troco de nada. muitos dos relatos referem-se a casos de agressividade. Ela não gosta de ficar num lugar que tem zoada. parece sentir-se continuamente jogado para rua. ela dizia. Pra mim. eu acho que não. Chegava na padaria e pedia pão. ela sente aquela agonia assim. ela não quer ouvir conversa. e a gente falava qualquer coisa. Dica. Liane. então u m a pessoa dessas não tá boa. ia pra Santa Cruz. Rosário. pra valer mesmo. assim.. é relacionada com o 'vício de rua'. Ela sai. No primeiro caso.isso de manhã . aqueles tabuleiro. sobre a vizinha: Porque ela tá de um jeito que ela senta num lugar. daqui a pouco. tô sentindo muito calor". eu tô sentindo muito calor. em romaria constante. aí começava a apanhar água. num tá vendo a gente conversando aqui? Se ela tiver aí. Dica. Dolores: A primeira coisa quando ela teve esse problema ela saiu logo pro meio da rua. com aquela força. sobre a irmã: Ε aí ela deu pra ficar nervosa. sobre a vizinha. como é que se diz. sobre a irmã Belinha: Ε teve u m a ocasião que ela p i o r o u . daqui a pouco. Uns três dias fora de casa. amaldiçoando e jogando pedras em quem quer que cruze o seu caminho. Nestes casos. O problema parece. ia pra Feira de São Joaquim. De fato. nem nada. apesar de pouco saliente. Adalgisa. " N ã o . aperreada. que nego não tá nem j o g a n d o mais.. Trata-se dos signos de isolamento: Sr. desde quinta-feira pra cá a gente não vê mãe. tinha dia que ela não comia.. um travesseiro debaixo do braço. não tem aquela disposição que ela tinha antes de fazer as coisas. Nesse calada. Célia. a respeito da mãe. também deixa de ser uma pessoa. D. quanto moral (juízo). ela não comia. Ele hoje tá sem energia. foi indo. pra esse e aquele lugar". não queria comer. permite compreender melhor o sentido do pertencimento a uma teia de relações como elemento definidor tanto de força física (mental). ficava sentada.. Ε um h o m e m mais velho que eu poucos anos. nem ânimo de sair. sobre a esposa: (. quanto a si mesmo. tanto com relação aos outros. não queria ver ninguém. sobre a vizinha. Dolores: Chorava dia e noite.) ele se desleixou completamente. aí: " v a m ' b o r a comer" . Léo. (. n ã o q u e r o c o m e r n ã o " . (. nestas descrições. [A gente chamava:] "Dolores!" Ela calada. Isso ela fica de um passeio pro outro só catando nica [do chão].. Liane... Celina: Mais indisposta. ficava nessa Pituba aí.. sobre a irmã: Ela chegava assim num canto. comer restos do lixo e viver na sujeira ou. fugir de casa.) E l a ficava emperreada. e ia mermo. xingando ela. Firmina. Neste ponto. nego fazendo gaiofada com ela. (. O tema dominante. sobre o filho Jorge: Com quinze anos foi que ele pegou o vício da rua. pronto! Sr.. não fazia nada. ficava na Barra.. ela foi indo. simplesmente. Esta concepção da negligência surge em outro grupo de signos que. passar todo o dia vagando pelas ruas sem nenhuma razão aparente .. em tudo quanto era canto. . mas tá sem energia. sobre um amigo: Agora ele tá sem energia. A í ficava no canto. Dica. pedaços de metal ou qualquer outra coisa que encontre pelas ruas.) Ela calada.. o grupo dos comportamentos bizarros. adornar o corpo com papelão.o domínio da moralidade . só queria tomar café. A í mãinha. foi indo. rindo da cara dela e ela saiu com a sacola pra cima e pra baixo. sobre a mãe. n ã o q u e r o c o m e r n ã o .. Sílvio. Nina. sobre a vizinha Teca: "cê vai pra onde agora de tarde?" Aí ela dizia: "pra Chapada. Se ela pudesse não via ninguém. que aparece com freqüência nas narrativas como signo de sérios distúrbios. D. Andar nu pela vizinhança. chegamos a outro grupo dominante.todos comportamentos sublinhados por seu caráter estranho e absurdo. é a associação do maluco ao domínio social da rua: à medida que alguém se afasta dos laços pessoais e hierárquicos da casa . Ivanilde: M ã e foi pra Amaralina meter a mão no tabuleiro dos outros. A perda da condição de pessoa se reflete e m uma crescente negligência. nesse dia pronto.) aborrecida com o nervoso.D.. e por outro. menino?" "Vou arranjar trabalho que eu não vou ficar sem trabalhar. D. ela não tem nada. se você ver o brinco que é a casa dela.. Os signos de normalidade presentes nos relatos do Nordeste envolvem três tipos básicos: d e s e m p e nho de papéis sociais. então ela não tinha esse meio de fazer isso tudo. Joana. deixar a casa e m desleixo e. lava. fica tudo de perna pra cima. ela faz comida. (. as descrições de normalidade. Então. não se alimentar) que remetem às idéias de força e fraqueza. d e m o d o a ressaltar o sentido d o 'ser t r a b a l h a d o r ' : D. Trancar-se. lava roupa. (. fala-se que a pessoa era (é) trabalhadora e/ou q u e apresenta(va) disposição para trabalhar. ele tinha aquela disposição para trabalhar. Adalgisa. larga tudo lá bagunçado. Nos relatos. D. quanto na identificação d e melhora. aparecem tanto nas descrições d e n o r m a l i d a d e (nas quais são dominantes). não fica parada. Firmina. ao trabalho. Os signos de desempenho d e papéis. eu quero essa casa toda pintadinha hoje". . dentro do armário. tava pronto e ele sentado lhe esperando. agora que eu tô mais forte.. se ela fosse doente de cabeça. Ele pintava tudo.. chora. Marina. Mas ultimamente ela nem faz isso mais.. Nestes contextos. D. o isolamento tende a estar associado. sobre a vizinha. adquire uma conotação moral negativa. quando não tá. passa. à condição de se estar amuado ou aperreado (trancar-se no quarto. basicamente. quando não tá.. não". agora vou na Pituba". 'jogar-se no desprezo' (descuidar-se de si mesmo) são comportamentos mencionados para se descrever uma dinâmica de isolamento que n e m sempre se considera digna de pena ou atenção especial. sobre o filho: Aí quando ele voltou a melhorar. o que. referentes.. arruma. q u e caracterizam o estado da pessoa antes da d o e n ç a ou sua recuperação.) Trabalhava de fazer gosto. é menina trabalhadeira. pega as roupa toda. cinco hora. Belinha: Ela lavava roupa junto com a mãe. apontam para d i m e n s õ e s importantes da semiologia local relativa a problemas mentais.. faz aquele serviço mesmo. Renilde. por vezes. não querer fazer nada).. chora.. Por fim. sobre uma vizinha: Os filho dela trabalha. A senhora dizia assim: "olhe. Arruma tudo direitinho. Zeca. aparência e relação c o m outros. à indisposição e falta de ânimo (não ter energia. bota a casa um espelho. uma vez que ameaça u m fluxo de reciprocidade. Aí eu disse: "o que que você vai fazer na Pituba. consistindo muitas vezes e m alvo de reações de condenação moral explícita. viu. sobre o filho: Quando foi no outro dia ele disse: "agora eu vou na Pituba. no extremo. Lavavam muitas roupas. Quando ela tá com vontade. a casa. por u m lado. Quando a senhora chegasse. sobre a filha: Fica trancada dentro de casa.) Ela é muito inteügente porque se ela pega um serviço. Incluímos a seguir algumas descrições de perturbação n o âmbito da atuação de papéis sociais.D.. Quando ela tá com vontade. tudo.. que ainda pode trabalhar. A concepção do que é ser trabalhador. A comparação com a perspectiva da classe média.. sobre a mãe: M ã e era uma pessoa calma. chega aqui. não cortou de todo os laços sociais que lhe conferem o status de pessoa. nos relatos do Nordeste consta como espaço em que se podem criar e reforçar laços de dependência e reciprocidade entre sujeitos que ocupam posições diferenciadas e bem definidas no mapa social. descreve-se a normalidade como calma: a manutenção de um certo equilíbrio ou bom senso na relação com outros. aponta-se freqüentemente a quebra dessa rede de reciprocidades como causa da doença. dorme. Renilde.. essa bobagem. quem fazia mamadeira. (. não tá aposentado. Porém. O reverso consiste na situação de 'jogar-se no desprezo'.. Andar limpo. Seu Léo. calma. forno e fogão. o homem. relaciona-se também ao cumprimento de expectativas sociais específicas para cada gênero: a mulher 'trabalhadeira' é definida. Em ambos os grupos. sobre a filha: Ela não quer nada. em termos do cuidado com a casa e os filhos. No campo propriamente relacionai. é bastante reveladora. arrumado. na maioria das narrativas.. Em primeiro lugar. não tem renda.. D. Levando as mulher pro médico. se o engajamento do doente em alguma atividade produtiva é visto como caminho para a melhora. Mãe fazia tudo. em virtude do trabalho na rua para a provisão da família. se tem o juízo fraco.. Depois senta. oferecida pelos dados coletados no bairro da Pituba.Nina. traz sacola e sacola de roupa pra lavar. por outro lado. calma. Entretanto. C o m o veremos. especialmente em contextos públicos. há que se tomar cuidado para não 'forçar demais'. que se opõe claramente . enfim. mãe cozinhava. sobre um amigo: Ficou somente assim. lavava tudo. enquanto entre os informantes de classe média o trabalho ou profissão é o domínio por excelência da individualização (no sentido de ter vida própria). e é a irmã.. Há três aspectos importantes a notar quanto ao significado do trabalho na atribuição de normalidade ou melhora.entendida como um estado de plena posse das capacidades físicas e mentais . os filhos trabalham (fora) e a mãe desempenha para eles as tarefas da casa etc. as filhas ou filhos menores ajudam a mãe. são atos indicadores de que o indivíduo. A normalidade é também identificada pelo cuidado com a aparência. O emprego dele era levar as mulher pro médico. tem condições de trabalhar.. t u d o . o exercício do trabalho é tido como participante e mantenedor de redes de reciprocidade no interior da família: assim. e a bichinha [irmã] se virando. q u e m fazia a comida era ela. q u e m levava pro médico. a disposição para o trabalho está relacionada à força . e deste modo se opõe à fraqueza que caracteriza a doença. cuidava dos filho dela. era novela. o trabalho é categoria importante na construção e afirmação da identidade. deita. demonstrar interesse pela higiene e apresentação pessoal.) Porque um homem na minha idade. Mais do que isso. (.. O tempo da doença é um tempo social. Assim.) . O enfraquecimento ou perda do juízo desenrola-se e m u m campo relacionai: no transcurso de relações (nem sempre visíveis) que terminam por vitimar o indivíduo. Aqui tem-se novamente o tema da submissão à hierarquia que caracteriza a família como condição para afirmação e reforço do self. em vários relatos. a história da doença é parte e produto de uma conjunção específica de situações ou relações fragilizantes. também. Joana.. CONTEXTOS Ε CAUSAS Sr.. por vezes. sobre o filho Zeca: Pra mim. (.) É um tipo de sereno que cai em cima da mentalidade. incidentes e encontros nos quais o indivíduo. 'com o juízo passado'. né? Ε . sem necessariamente ter conhecimento. o ambiente natural e o mundo dos espíritos. Do trabalho.como signo de normalidade e/ou melhora.. traçando u m percurso cujo resultado final consiste. no caso do que se julga ser uma doença incurável. está presente. esgotado. considera-se a doença mental como processo de enfraquecimento ou perda do juízo. ele tava cansado.principalmente à mãe .. sabe? Então eu achava assim. Tal como contada. em se criar uma distância ou operar uma separação entre o indivíduo e a doença. e m muitos casos. muito pouca.caraterística do nervoso. Léo: Ele terminou com a mente cansada. se no contexto de classe média da Pituba os relatos transcrevem a dinâmica social no contexto interno do sujeito. Conforme já mencionado. lançando luz sob áreas obscuras e traçando conexões entre eventos aparentemente desconcertados na configuração do estado de aflição. que podem envolver outras pessoas. Afirma-se.aos descompassos e exageros do nervoso. e porque aquela criação que eu dava a eles era uma alimentação muito frágil.. que o indivíduo 'ficou c o m a mente cansada' e. O idioma da fraqueza serve. Diz-se que o juízo é de natureza frágil e delicada e pode ser afetado por uma variedade de fatores. cujo sentido é dado pelo contraste com a tendência a tomar qualquer palavra como insulto ou agressão a si . raramente a doença se apresenta nas narrativas como resultado de uma cadeia única de eventos ou causas. no Nordeste situam o sujeito no quadro de uma dinâmica relacionai complexa. produzindo uma imagem final de estranhamento. A calma relaciona-se ao fato de saber conversar. em que transcorre uma pluralidade de acontecimentos. Embora possamos tratar cada u m destes domínios e m separado. do juízo. As narrativas buscam explicitar esse contexto relacionai. N o Nordeste de Amaralina. pode estar implicado. o comportamento de obediência aos pais . fraco. para articular diferentes experiências na descrição do processo de adoecimento: D. também. Ele é magrinho. Então o pai morreu e ele ficou naquela luta, né? Aquela luta, aquela preocupação. E, inda hoje ele conta, quando ele chegava do jornal, [com] aqueles trocado que davam a ele, ele comprava pão, comprava guaraná e tomava com o irmão caçula aqui. Aí o barraco caiu. O barraco caiu, foi no chão, nós ficamos desabrigado. (...) Enquanto tava o pai e a mãe, tudo junto tratano dele, não tinha pobrema, né? A gente alimentava ele na hora certa, mas o pai morreu já a partir de um ano, o pai morreu, ele preocupado com aquela morte. Assim, ficar sem o pai e uma coisa e outra, de forma que aquilo virou uma doença, de repente. E m várias narrativas, o adoecimento é descrito como parte de u m processo ou situação de fragilização da família, o que implica empobrecimento e desorganização interna, como neste relato, mas também u m certo senso de perda da unidade moral. Assim, os quadros referidos a seguir - concernentes à mulher que sofre nas mãos de u m marido violento e termina por entregar os filhos aos cuidados de outros, e à filha criada sem limites, a quem é permitido desobedecer e desafiar os mais velhos - expressam uma situação de fraqueza moral na família e m que as posições (de marido, mãe, filho/a) se deslocam e perdem a firmeza: Alice, a respeito da mãe, D. Januária: Ela queria ser uma pessoa boa, mas, ao mesmo tempo, não podia (...). Aí nisso ela abandonou, cada um, deu cada um pra uma pessoa. Já estava com problema, porque assim que ela foi morar com meu pai, ele já começou a maltratar ela. Ε nisso ela juntando, e nisso aí que ela ficou doente. Ela nervosa, foi dando um nervoso, nervosa. Ele bebia muito, batia nela que ela chegava a ir pra água de sal. Penha, sobre a irmã Rosa: Desde mocinha que ela, desde que eu me entendo por gente que eu vejo ela com esse nervoso. Isso que tá fazendo agora mesmo, muito malcriada, sem obedecer a ninguém, mãinha fazia muito carinho e no que deu foi isso, que a criação dela... Tudo que queria mãinha dava, aí foi crescendo, crescendo nesse ritmo. N o primeiro caso, o contexto e m que se desenha o nervoso caracteriza-se pelo desvio do papel de marido/pai expresso na violência excessiva, ao qual se reúne, como conseqüência, o esvaziamento do papel de mãe no ato de entrega das crianças. No segundo caso, a fraqueza da família expressa-se no desvio do papel hierarquicamente subordinado de filho. Conforme sugerido no relato, uma tal situação remete ao papel da mãe na educação das crianças. Mães lenientes, que mim a m excessivamente seus filhos, estão criando pessoas moralmente fracas. Nesta perspectiva, relacionam-se as noções de fraqueza como maior vulnerabilidade à doença e fraqueza c o m o falta moral, implicando uma inabilidade para representar papéis sociais apropriadamente. A idéia de que a família é o contexto social mais relevante no que diz respeito à saúde mental da pessoa encontra-se presente na maior parte das vertentes ocidentais da psicologia e revela-se claramente nas narrativas produzidas pelos moradores de classe média da Pituba. Contudo, enquanto, entre estes, se enfatiza o papel dos laços familiares na formação e no desenvolvimento da personalidade, nas narrativas do Nordeste a ênfase repousa na família como uma unidade estruturada de relações hierárquicas, de cuja integridade depende a integridade das partes. Assim, se a ausência paterna põe em risco a saúde mental dos outros membros da família, como no relato de Joana, isto não é interpretado pelo fato de as crianças serem privadas de uma importante contribuição ao seu desenvolvimento pessoal, mas por se tratar de uma contingência que força o surgimento de novos arranjos dentro da unidade familiar, os quais terminam por ameaçar a posição dos demais integrantes. A fraqueza que uma situação como estas provoca é, ao mesmo tempo, física - uma vez que a mãe ou o filho mais velho provavelmente terão que assumir uma sobrecarga de trabalho c o m a perda do pai - quanto moral, uma vez que os papéis perdem solidez ao serem sujeitos a redefinições e ambigüidades. A força da família depende da manutenção de u m contínuo fluxo de trocas entre os atores que estão diferentemente situados dentro do contexto. A s narrativas mostram c o m o a interrupção ou ruptura súbita destes intercâmbios fragmenta o sentido de self que emerge para os atores do fato de estarem situados e m uma totalidade. Emoções como ciúme ou amor frustrado encontram-se intimamente ligadas a tais situações: Venância, sobre a vizinha, D. Pequena: Eu num sei, ela se sente... eu acho assim porque ela se sente sozinha, sozinha sem ninguém, tem hora que ela se sente sozinha. Acho que os filhos... sai um pra trabalhar e chega de noite, o outro sai pra trabalhar e chega de noite, a filha é casada. Ela começou assim mais depois que a filha se casou... Tinha que casar, dona, ninguém vai ficar no mundo sem... coisa, claro que ela tem de se casar e ter o marido dela, mas eu no meu ver, eu batia uma laje e morava junto com a minha mãe... Mas a filha tem cuidado direito com a mãe, isso ela tem. Nina, a respeito da mãe, D. Ivanilde: Tem nove anos que mãe começou a ficar doente, um ano depois que meu irmão casou, (...) mãe ficou desse jeito. Porque tudo quem fazia pra ele era ela, tudo, até roupa pra comprar era ela, cueca, tudo, tudo, tudo do meu irmão era ela que fazia, depois que mãe ficou doente, mãe não faz mais nada (...). Ciúmes, a gente pensava que era ciúmes. D. Firmina, sobre a vizinha Teca: É porque o filho casou e levou ela pra morar com ele e num deixou nem ela aí sozinha, quando ele casou e ela... Ele levou, mas chegou lá, ela ficou acho que ciumando, foi daí que ela veio já de lá já meio... A gente já sentiu quando ela voltou, a gente disse: "Teca num tá certa". Sr. Léo, a respeito de um amigo: Quando ele tava terminando de fazer a casa, a outra criatura [esposa] vendeu a casa e foi embora, com tudo. Deixou ele à toa. Ε daí pra cá, ele se desleixou completamente, completamente. Sr. Léo: No começo a tendência dele era querer procurar a mulher pra matar. Entrevistador. Mas por que isso, Sr. Léo? Sr. Léo: Amor. Amor. Perpassa estes relatos a idéia de que o juízo enfraquece quando o indivíduo é despojado de um contexto relacionai do qual obtém um senso de continuidade ou identidade do self. U m dos casos mais referidos é o das mães que sucumbem com o casamento de u m filho, sendo subitamente despojadas das responsabilidades e tarefas mediante as quais lhes era permitido afirmar e renovar seus laços na família. O enfraquecimento do juízo é, portanto, parte de u m processo de perda ou impossibilidade d e sustentar laços sociais que fazem do indivíduo uma pessoa plena e responsável. Apesar da importância da família na constituição da identidade, as histórias de doença mental do Nordeste não estabelecem um elo necessário entre doença e enfraquecimento do contexto familiar de referência. Atribui-se boa parte dos casos de juízo fraco a fatores orgânicos: uma doença na cabeça que pode ser detectada por meio de exame apropriado; usualmente se fala da 'chapa' ou 'eletro da cabeça'. O 'foco' constitui categoria central nas narrativas de causa, considerado como um problema localizado e palpável ('veia entupida na cabeça'), que pode ser revertido mediante o uso de medicação adequada. Diferentemente da epilepsia categoria também bastante conhecida - , o foco não está associado a sintomas específicos ou a algum estigma, funcionando nas histórias como uma espécie de caixapreta, que permite objetificar a doença e, conseqüentemente, distanciá-la do ' e u ' . Clarice sobre o filho de Damiana: Não é culpa dele não, ele tem um foco muito forte, ele tem muito forte. D. Adalgisa, sobre o filho Jorge: Achei que justamente a doença dele foi causada disso mermo, da [que ele tomou quando era criança], do foco que ele tinha na cabeça. Que forma uma coisa no cérebro, no juízo, ajunta aquele sangue, então causa aquela qualquer coisa, aquele negócio, um tumor, como o dele mermo era um tumor que ele tinha no cérebro. Importa observar, a respeito das narrativas de foco, o encadeamento da trama e os campos postos e m destaque. N a maioria dos relatos, o tema do foco remete à identificação de eventos críticos anteriores, tomados como causas, como problemas durante a gravidez da mãe e o nascimento, ou u m a pancada forte na cabeça, e m geral durante a infância, oriunda de uma queda ou d e u m golpe. Tais eventos, por sua vez, remetem a situações de base, como excesso de violência ou de descuido dos pais, ou tentativas fracassadas de aborto por parte da mãe. Desta maneira, ao identificar o foco, a narrativa segue um curso que termina por conduzir ao domínio das relações sociais. A intervenção espiritual consiste em um dos temas mais significativos nas histórias de adoecimento contadas no Nordeste, segundo o qual as raízes do pade¬ cimento residem em um domínio invisível de trocas, em que o sujeito participa muitas vezes sem saber. Valendo-se dessa concepção, as narrativas levantam e exploram pistas, buscando tornar visível o quadro relacionai real em que ego se encontra envolvido. Clarice, sobre um amigo do marido, Demerval: Você também não sabe se foi essa paixão ou alguma coisa que a mulher botou pra ele, né? Pra ele ficar no d e s p r e z o . Eu acho que se fosse o caso dele, paixão, ele não ficaria a s s i m . A c h o que n ã o . N ã o tem d e s g o s t o pra p e s s o a se j o g a r naquele mau-trato. Eu acho que foi assim, eu acho que foi alguma coisa que ela botou pra ele. Eu acho, um feitiço, pode ser isso também, né? D. Renilde, sobre a filha: Parece que ela tem um trem ruim, uma coisa ruim com ela, que na mesma hora que ela tá pela direita, tá pela esquerda, com ela... Que tem um trem ruim encostado nela, na mesma hora que ela tá boazinha, ela tá ruim. Dona Joana, sobre o filho Zeca: Agora, ele comia demais e aquele negócio é que me encafifava. Aquela negócio dele comer demais, que ele parece que tem um espírito roedor com ele, um espírito sujo, roedor, com ele: esse menino num tá sozinho. Esse menino tá com uma coisa ruim. Lúcia, grávida de seis meses, sobre o marido Chico: Eu nunca apanhei de ninguém pra chegar em casa apanhada, pra deixar ele me dominar ao ponto de me dar dois murros em minha boca... pegar a faca pra mim, me empurrar na parede e ainda dar um murro na minha barriga. Pai ficou abismado. Ele disse: "sabe o que é isso? Ε o capeta". (...) [Eu disse] "Oh, Chico, eu tenho certeza que você não tá só, você está com alguma coisa do diabo". Os caminhos que conduzem à atribuição de uma causa de natureza espiritual podem ser diversos. Em muitos relatos, estabelecem-se elos entre certos comportamentos e a intervenção de forças ou entidades não humanas. Suspeitase de ações e emoções exageradas, se comparadas à situação em que brotam, como na história de Demerval, em que se cogita ser implausível que as dores de uma paixão fracassada possam, por si só, gerar um estado de tamanha negligência para consigo mesmo. Suspeita-se também de mudanças súbitas de atitude e humor, de comportamentos grotescos ou moralmente condenáveis, de visões e conversas com mortos. O resultado desta exploração é, via de regra, a criação de uma distância entre o que sujeito faz e o que ele/a é, distância esta preenchida pela ação pela recorrência ao argumento da ação e propósitos dos espíritos: embora apenas o corpo se revele nos contextos de interação, o indivíduo "não está só". LIDANDO COM A DOENÇA MENTAL Defrontados c o m eventos de doença mental, os membros da família são chamados a refletir sobre a natureza do problema e as atitudes que devem assumir. N o Nordeste, a família é o principal locus de cuidado dos doentes, no qual se delineiam boa parte das decisões e estratégias para se lidar c o m a situação. Na maior parte das famílias, a principal carga de cuidado repousa sobre a mãe (ou figura feminina que assume papel equivalente): é ela a responsável pela administração da vida diária do doente e, usualmente, é a quem cabe a última palavra no que diz respeito à escolha de tratamento. C o m o resultado, as mães são quem mais sofre o impacto de haver u m doente mental na família. Suas narrativas estão repletas de referências a noites sem dormir, atendendo às necessidades de seus filhos doentes ou se preocupando com seu paradeiro; a repetidas e quase sempre mal sucedidas jornadas a centros de tratamento; a acertos e brigas c o m os vizinhos; e, sobretudo, ao desespero por desconhecerem a causa subjacente ao problema, ou quando o sofrimento terá fim. Clarice, sobre Damiana: A mãe fica doida, não sei como é... Ó, quando ele tá queto assim, a rua tá quieta, sem a mãe tá gritando, ele tá dormindo, porque ela dá remédio forte, que chega ele fica todo 'bambo' assim. Quando ele está na rua, todo torto, assim, é que ela toca muito remédio, pra ver se ela descansa também.... Pra ele descansar, minha filha, pra ele dormir e ela dormir também. Porque de noite ataca assim, ela passa, tem dia que ela passa a noite acordada. Liane, sobre sua irmã: Mãinha, coitada era que guentava essa, essa barra toda. Porque você já pensou, a pessoa tá aqui, daqui a pouco [no meio da noite]: "ah, deixa eu me levantar que eu vou fazer xixi, que eu vou beber água". Então tem que passar, né? Aí, incomoda a pessoa que tá na frente. Aí pronto, ela levantava... Daqui a pouco. "Ah, tô sentindo uma gastura, tô sentindo uma gastura"... "Eu quero um pedacinho de pão com café". Aí mãinha vinha, se levantava, dava pão com café, ela tomava, bem. Quando era de manhã, acho que ela, a cabeça tava muito pesada, né? Ela aí dormia um pouco. Algumas mães expressam grande preocupação a respeito do futuro de seus filhos doentes, pois sabem que após sua morte dificilmente haverá alguém que assuma integralmente a responsabilidade do cuidado. Remontando-se a história da doença, distinguem-se dois períodos principais: no início do problema, irmãos, parentes e mesmo vizinhos mobilizam-se e m t o m o do evento, buscam soluções e envolvem-se efetivamente no cuidado; à medida que o tempo passa e a doença se transforma e m rotina, porém, o interesse e a participação prontamente decrescem e elas, mães, são deixadas sozinhas na administração dos cuidados. não é? Porque mãe é mãe mermo. Embora as mães muitas vezes se sintam sós na lida diária com o doente. se ele encontrar com ela. A única filha de Dona Pequena também é casada. são as filhas que levam adiante as tarefas relacionadas ao cuidado diário. você não vai m e achar o tempo todo. Não vou dizer que eu não tenho. os vizinhos são teste¬ .. o lugar da filha seria ao lado de sua mãe: "se eu fosse ela eu batia uma laje e morava com minha mãe". é um b o m exemplo. todo dia a merma coisa. o medo de ter um filho louco é expresso como um sentimento de perda. tem hora que eu tenho [vontade de perder a paciência]. Chega daqui a pouco. Além disso. M e s m o assim. seus irmão vai ter p a c i ê n c i a c o m você? C o m o é q u e você vai ficar no m u n d o ? " Ai. A situação parece ser particularmente dolorosa durante as fases iniciais da doença ou quando há uma súbita e inesperada agravação do problema. especialmente as mais velhas. Não podem manter empregos regulares e têm que (re)organizar o seu tempo em casa de acordo com as necessidades do doente. Às vezes trazia pra casa. Quando é a mãe que cai doente. de fato.. ele bate mermo. eu sempre conselho ela. Procura se ajudar porque se você m e perder. a acompanha ao médico e compra medicamentos... causa..Dona Rosário: E u toda hora digo: " o h m i n h a filha. A pessoa perde a paciência. o fato de se ter u m filho ou filha doente mental é tido como causa de muito sofrimento.. o acompanhamento do tratamento e as visitas ao hospital.. mas não adianta. decisão do que fazer a respeito. cozinha e lava a roupa da mãe e senta-se com ela para conversar. Eu. Embora os filhos participem nas decisões c o m respeito ao tratamento e sempre se tornem os principais provedores da casa após o início do problema. Dona Pequena. a responsabilidade pelo cuidado usualmente recai sobre as filhas. de alguma forma. Venância elogia o cuidado que o filho mais velho de Dona Pequena dispensa à mãe: embora esteja casado. paro e penso. incluindo a administração de medicamentos. c o m o é que você vai ficar? Seus. várias expectativas associadas à atuação de homens e mulheres no cuidado com o doente. Venância acusa a moça de negligência e falta de piedade filial. nego dá queixa. no Nordeste as redes de vizinhos.. E m tais momentos de perplexidade. Há. a narrativa de Venância a respeito da doença de sua vizinha idosa. parentes e amigos contribuem significativamente para o processo de interpretação do problema. né? Várias mães enfrentam profundas mudanças em suas vidas em decorrência da doença. responsável pela eclosão da doença.. quando rotinas de cuidado não foram ainda estabelecidas ou se provam ineficazes. seleção de tratamento e avaliação de resultados.. No bairro. Venância nota que ela vem todos os dias. estou ficando na idade. A este acrescenta-se a dúvida de ser. ele a visita regularmente.. [os irmãos] Já ajudaram muito. perde a paciência. só mãe mermo. Da forma como encara a questão. Depois eu vou. e explicações razoáveis para o problema não foram alcançadas.. Aí perde a paciência. ) disso. acima de tudo.. Então.. que não é por causa de mim que ela faz disso. Mas eu não gosto que chamem ele (.. o de 'louco violento'. os menino ia perseguir. toma-se vítima de uma série de reações negativas por parte dos habitantes do bairro. todo mundo. aí fica agitada. sempre chama ele de maluco. os menino escutou isso. né? (.. Chama ela de Mexe-Mexe na rua. tome cuidado com esse menino".. opiniões.. de andar conversando com as pessoas.. porque acho que pai nem mãe nenhuma não vai gostar de um adulto chamar uma criança de maluco... a doença não é uma exceção. uma falta de amor.. principalmente aonde eu moro. Isso que eu digo. As crianças gostam de provocar e enraivar os malucos: cor¬ . Todo mundo se dá. bairro de pobre é assim. né? (. de maluca. bairro de fraco... Damiana: [Os vizinhos] reclamam e como reclamam: "oh.. a falta de amor. que a voz é de homem. que o bairrozinho que a gente mora. Dona Rosário: Ε porque às vezes a pessoa. Você não sabe. Que eu posso dizer? É criança! Das pessoas falam muito e eu fiquei um pouco parada.. no qual nada nem ninguém passa desapercebido pelos vizinhos..... no entanto. pega no adulto. mas é? Lugar agitado isso aqui.) aqui tem muito menino. é por vezes descrita como fonte mesma de preocupação: Dona Rosário: Aqui no bairro que a gente mora. facilita um tráfego de recursos materiais e simbólicos (conselhos. às vez eu nem ignoro isso porque o lugar de fraco é assim mermo. A proximidade dos vizinhos. O desencadeamento da doença mental não afeta apenas as relações da pessoa doente c o m os outros. da voz de homem. Porque ela [Adélia] dizia que o pessoal dizia que ela tem o andar de homem.. U m a vez que a pessoa recebe o rótulo de 'maluco' e. já viu como é. e. em u m bairro como o Nordeste. Maluca Mexe-Mexe. às veze e aquelas pessoa que não entende. esse menino não tá fácil. mas. por outro. né? Aí tomou conta. a gente num tem amizade. mas t a m b é m as relações que os m e m b r o s de sua família mantêm com vizinhos e parentes. receitas práticas).) O bairro que a gente mora...munhas da maioria das crises enfrentadas pelas famílias. Alguns familiares contam que o comportamento desviante exibido pelos doentes acaba afetando seriamente sua boa relação com os vizinhos: à medida que se multiplicam as queixas... daqui a pouco. a gente não tem amizade. que ela tem a voz grossa. certo? A vida de quem possui uma pessoa doente na família. porque de criança a adulto. chamava ela de maluca... Vixe menina. os menino bate nela. ela ficava muito agitada. Ninguém quer ver ninguém bem não.. Tem vezes que tem gente que até me nega fala. produz efeitos ambíguos sobre o desenvolvimento de tais crises: por um lado. Então eu prefiro ficar no meu cantinho quieta.. o adulto vai e desconta. gradualmente se afastam dos velhos conhecidos. começa a bater nos menino. eu digo. favorece o crescimento de tensões e conflitos.. "Toinho saia. em casa. O menino fica me chamando de maluco. ela ficou violenta.. D. e Jorge. Então aquilo me cortava assim por dentro.rem atrás deles. de modo que antes de Belinha mudar-se para a sua rua. quieto. D. freqüentemente atiram pedras e escondem-se. se ele saísse com um par de sapatos novos estava fadado a voltar c o m u m par velho ou até mesmo descalço. aí o pessoal começava. Os familiares apontam tal atitude. fui em outra casa lá embaixo. como e m uma brincadeira. devido à agitação. em casa. como elemento agravante do problema e desencadeador de comportamentos violentos. que é tido como retardado. porque ele começou a ficar um menino assim. vá brincar". Rosário. chega e m casa bêbado e sem alguma peça do vestuário. Marina foi alertada sobre sua doença: . Adalgisa. botava apelido nela. as reações são marcadas pela evitação e medo do contágio. de mãe de família.. chamando-os por apelidos e troçando de suas maneiras estranhas. eu fui na casa e recramei com a mãe. pra você não dar mais crise aqui. Xepa. sempre ganha cachaça nos bares. chamar atenção.. Belinha. Carmen: Porque ele começou a ficar um menino assim. Xepa. que ela safa assim pra rua.. como é que diz. A difusão de informações que identificam uma pessoa c o m o epiléptica altera completamente as formas pelas quais vizinhos e amigos se relacionam com ela. os doentes podem ser importunados por grupos de adultos que se aproveitam do seu comportamento bizarro para dar umas boas risadas. Assim. sabe? Por isso procurei as mães das crianças para esclarecer o problema.. Histórias sobre os malucos locais circulam rapidamente no Nordeste.. U m a vez nas ruas do bairro.. O medo de que pessoas venham a tirar vantagem da ingenuidade dos filhos leva algumas mães a manterem-nos distantes de certas atividades e do desempenho de certos papéis sociais. Conforme lembra D.. Xepa! Oh Xepa! Ela aí perdia a cabeça. "Eu não. Joana a imagem de Zeca casado vincula-se imediatamente à idéia de uma mulher aproveitadora que vai terminar por traí-lo. tudo que u m h o m e m pode fazer por sua filha é aproveitar-se dela e engravidá-la. Assim. Assim. Também para D.. quieto. Tal fato pode conduzir a um novo padrão de reações por parte da família. recramei. para os familiares é uma reação ao assédio constante que eles sofrem na rua: Liane: Mas de uns anos pra cá. enquanto para a maioria da pessoas a violência já é um traço distintivo do louco. Quando a doença está ligada a crises e convulsões. Xepa. por exemplo. Quando eu tô brincando com os menino ele fica assim: sai daqui seu doido. mãe. aí quando chamava ela pelo apelido. caracterizado por uma busca em mediar as relações da pessoa doente c o m os outros. ela se alucinava. Inclusive eu tive que ir em certas casas aí. pegar na gente". Rosário reage violentamente à idéia disseminada na vizinhança de que o problema de Adélia deve-se a uma "falta de homem": para D . longe da casa e do domínio mais conhecido da vizinhança próxima. muitas vezes reforçada pelos adultos. Assim. porque. começam a quebrar as coisa. Dava tanto nela.. algumas folhas de cansanção para fazer u m banho para sua filha. Agride umas às outras fisicamente mesmo. a veia. uma é (. "pro povo aqui não me ver. D . a ve. alguma pessoa disse: "olhe.Minha filha.... não tem o juízo certo".. s o b a orientação de u m pai-de-santo. quando tão assim elas não obedece. Aí cuidado. já amanheceu o dia.. A mãe delas quando tá assim. Isto decorre. Ε aí. a família toda tem. p o r é m .. não se restringe à tolerância: são eles que se mobilizam para conseguir ajuda nos m o m e n t o s mais críticos da doença. morar três criatura. por outro lado.. banho frio. evitou responder às perguntas de vizinhos que começaram a perceber algo errado com a menina. a mãe e as duas filhas e o padrasto. Rosário quando viam Adélia envolvida e m problemas na rua e. Marina.se Margarida ria sozinha era porque ela estava feliz . alguns vizinhos vinham contar a D.. Acalmava um pouco. e m parte. senão vão m e chamar de filha-de-santo. pra separar tem que ser duas ou três pessoas que tenha muita força e tenha muita condição.. como se c h a m a m c o m freqüência aqueles que se envolvem n o candomblé. M a r i n a nos conta c o m o ela e outros vizinhos d a v a m assistência à família de Belinha durante suas crises: Elas ficam brava.. comumente desempenham u m papel positivo na mobilização de ajuda... Ave Maria. as pessoas antiga que conheceram ela de muito tempo. Clarice saiu muito secretamente e m direção ao parque. P o r c o n h e c e r e m a família do doente há muitos anos. Familiares tomam precauções para evitar que se espalhem rumores sobre seus doentes.quando é o caso . vão dizer que aqui é uma casa de candomblé!". Tem que separar. vai morar lá perto de você. de manhã b e m cedo. Aqui se você junta folhas essa hora da manhã e traz elas pra casa é.. Ocultam informação sobre o tratamento. os vizinho aqui. quando eu conheci ela. diz que ela desde criança que tem esse problema. Aqui a gente. A família de Margarida... Tendo q u e colher. até que os vizinhos finalmente desistiram de perguntar. e uma. ela já tinha esse problema. e m parte. entendeu? Ε aí. especialmente quando se refere ao candomblé e à umbanda.. os vendedores de rua que conheciam a família de Belinha interferiram para evitar uma briga prestes a acontecer a seu redor. Agora. porque elas obedece ninguém. Já. Sua contribuição.). a gente já amanheceu o dia nessa rua.possa querer interferir no tratamento e. .. dava calmante. Que quando elas se mudaram pra'qui. Assim. alguns vizinhos t e n d e m a ser tolerantes c o m relação ao seu c o m p o r t a m e n t o desviante. É uma coisa triste. Agora.. As redes locais de informação. responsáveis por espalhar histórias sobre os malucos e suas proezas violentas. Dava chá. porque muitos querem esquivar-se a serem identificados como 'feiticeir o s ' . Discute uma com a outra sem motivo nenhum. do temor de que aquele que fez o 'feitiço' . A gente ficava conversando com elas. mais de uma vez. A estratégia da família era fingir que nada estava acontecendo . Acaba com tudo.. Maria. A participação de vizinhos... Dá banho nela. calma.) o rosto coçava. a cabeça torta. se batendo pela quina. É c o m u m que os vizinhos sejam os primeiros a identificar algo de errado. começava a se coçar assim. não é assim que resolve".ela diz que sente um fogo na cabeça: "o fogo na cabeça! O fogo! A cabeça dela tá pegando fogo! Acode!" (. cuja competência eles p o d e m atestar pessoalmente ou sobre a qual j á o u v i r a m m u i t o falar. fiquei desesperada.. pelo avesso. me tiraram de junto pra rezar e tal. Eu queria logo saber o que era. menina. uma coisa.. as redes de vizinhança t a m b é m d e s e m p e n h a m u m papel importante na c o n d u ç ã o dos doentes ao tratamento. gritar e menina [dizendo]: "calma. Aí. coçava. (. Outro botava uma moeda na mão dele. Leve logo que é pra ver o que é isso". Mas. c o m o t a m b é m a c o m p a n h a m o tratamento e c o m freqüência mobilizam suas conexões pessoais para facilitar o acesso a centros terapêuticos. E m b o a parte dos c a s o s .. Os vizinhos n ã o apenas d ã o conselhos. coçava. água de cheiro. parentes e/ou amigos na administração da doença também não se restringe a situações de emergência: eles influenciam o modo como o problema é percebido e definido na família. outros diziam que era alguma coisa que botaram. aí o pessoal vizinho: "Maria. e D .. Voltou de novo [a convulsão]. Eu disse assim: "eu vou levar".. que criança sempre é mais fraca. alguma coisa pra mim. Aí quando foi. Às veis você pegou no menino". você leva essa criatura no médico. fazer trabalho. Eu sei que ela vinha. pra acalmar.... Eu comecei a chorar. uns diziam que era ataque de pilepsia.. muda a roupa. um me ensina outra. Aí eu peguei. N o Nordeste.. Rosário obteve a assistência de u m dentista. Eu tirei a roupa dele. As pessoas diziam. Num demorou nem meia hora. avisando aos familiares que se trata de u m a situação merecedora de maior atenção de sua parte.. Ε nada dele voltar ao normal. troca. conhecido de u m a d e suas vizinhas. o recurso a .. Outro vinha com um álcool. Belinha tá com probrema mental.. pegou no menino: "quem sabe. coçava e. rezar. Um dizia: "bota um defumador". outro diz outra. na r e c o m e n d a ç ã o d e tratamento para Adélia.. U m a vizinha conseguiu para Clarice u m a consulta c o m u m m é d i c o da clínica onde trabalhava.. Carmen lembra-se de como os vizinhos encheram sua casa quando seu filho teve convulsões pela primeira vez: Aí quando eu cheguei lá ele tava caído. Mas eu não me conformava com isso. Liane: Tinha um nervoso que ela sentia. coçava. os olho virado.. Porque um diz uma coisa. isso não é coisa mandada pra você e pegou na criança. todo mundo. Começaram a rezar. com os braço tudo torto assim... mermo o pessoal me ensina uma coisa. A casa encheu de gente.. passava. como é que se diz... São t a m b é m os vizinhos q u e u s u a l m e n t e a c o n s e l h a m o tratamento c o m alguns especialistas religiosos. feria o rosto..) A gente aí mete de água fria na cabeça dela. centros espíritas (desde grupos cardecistas até grupos mais sincréticos. BUSCANDO AJUDA Ε AVALIANDO O TRATAMENTO Os casos de doença narrados por familiares de alguns dos doentes oferecem exemplos surpreendentes da complexidade de itinerários terapêuticos e da impossibilidade de explicá-los por meio de u m princípio de segmentação. apenas 4 não envolveram medidas de tratamento. e sim de uma decisão no sentido de acreditar nos poderes de cura das agências recomendadas por amigos.terapias religiosas não decorre de um compromisso prévio com a religião. C o m o resultado dessa notável interferência de vizinhos na administração da doença. Embora as pessoas constantemente se refiram às fronteiras entre 'doença de médico' e 'doença espiritual'. vizinhos e/ou parentes. amigos e/ou parentes . Dos 36 casos reconstruídos pelos informantes do Nordeste de Amaralina. Trinta pessoas receberam algum tipo de tratamento desde o início da doença ou ainda estão sendo tratadas. normalmente os responsáveis confundem-se em meio a tantas explicações e sugestões. na maioria dos casos recorre-se a médicos e especialistas religiosos para lidar com o mesmo conjunto de sintomas. à psiquiatria faz-se representar por grupos religiosos (afro-brasileiros. Isto significa que prevalece u m padrão de duplo uso de serviços médicos e religiosos: 16 pessoas freqüentaram ambos os tipos de tratamento no curso da doença. 26 freqüentaram serviços médico-psiquiátricos e 19 freqüentaram curas religiosas. . e 3 apenas o tratamento religioso. Embora haja uma rivalidade marcante entre estes cultos. enquanto 11 freqüentaram apenas o tratamento médico. de acordo com o qual a identificação de certos sintomas implicaria certas escolhas terapêuticas. sessões de mesa branca muito influenciadas por religiões afro-brasileiras) e u m sempre crescente número de seitas pentecostais. A incerteza quanto à real natureza da doença. ou mais especificamente. Os serviços de cura procurados vão desde hospitais psiquiátricos e clínicas ambulatoriais até uma variedade de agências religiosas. as pessoas do bairro tendem a vê-los como diferentes posições dentro de um universo compartilhado de poderes espirituais. pentecostais e espíritas).na administração da situação. É interessante notar que a alternativa à medicina. destas. e até mesmo a fazer uso paralelo de diferentes tratamentos. No próprio Nordeste pode-se encontrar u m vasto número de agências religiosas que oferecem serviços de cura: terreiros de candomblé e umbanda. bem como o reconhecimento de que diferentes causas podem combinar-se para produzi-la. Mudanças nas escolhas de tratamento resultam freqüentemente da interferência de novos atores . podem levar aqueles que cuidam a transitar por diferentes agências de cura durante a história do caso. das quais nem sempre podem extrair uma linha coerente de práticas e abordagens de tratamento.vizinhos. U m a vez detectada. o recurso a terapias religiosas n ã o representa u m i m p e d i m e n t o ao uso dos serviços m é d i c o s . e m sua maioria elas enfatizam. Afirma-se muitas vezes que o paciente deve. É papel do aparato médico . atestam a importância conferida ao tratamento médico na administração de casos de doença mental. enquanto apenas sete. A despeito de se recorrer à medicina e à religião conjuntamente. desenvolvimento e gravidade p o d e m ser identificados. uso paralelo d e diferentes terapias religiosas. considerado u m a coisa b e m definida. dois elementos conferem significado ao tratamento médico-psiquiátrico: o uso de u m aparato técnico especializado para descobrir a d o e n ç a dentro da cabeça e a prescrição de drogas farmacêuticas para controlá-la. a doença deve ser controlada e. quase medidos. As abordagens. Se as pessoas não fazem uso exclusivo de serviços médico-psiquiátricos. raramente se encontra u m c o m p r o m e t i m e n t o total e aceitação acrítica d o tratamento médico entre os habitantes d o Nordeste.dizem quase todos os informantes . erradicada. e quatro. n ã o se faz. quando possível. voluntariamente. a seitas pentecostais. no entanto. c o m o t a m b é m intervêm q u a n d o quer que esta última falhe. A o invocar a ação de diferentes entidades para demarcar a causa da d o e n ç a . como um todo. A maior parte dos envolvidos no cuidado ao doente enfatiza a necessidade de se seguir estritamente as r e c o m e n d a ç õ e s dos médicos referentes à d o s a g e m correta e ao intervalo para a administração das drogas: a negligência neste ponto pode produzir u m a reincidência de sintomas. quinze envolviam a visita a terreiros de c a n d o m b l é .requer uso regular de drogas farmacêuticas prescritas pelos médicos.E n t r e os habitantes do Nordeste. cujo papel principal é reforçar as ordens dos médicos. Para grande parte das pessoas. e m b o r a não imediatamente visível.t o r n a r a d o e n ç a v i s í v e l . mediante os exames apropriados. estes especialistas t e r m i n a m por conferir poder e reputação à sua própria posição: n ã o apenas dividem responsabilidade c o m a medicina moderna.chapa de cabeça ou eletro de c a b e ç a . n e m vice-versa. Apesar de tais opiniões. Vários informantes o b s e r v a m que alguns especialistas religiosos a p o n t a m para a necessidade de q u e seus pacientes se s u b m e t a m paralelamente ao tratamento médico. a centros espíritas. cuja localização precisa. U m a das p r i m e i r a s c o i s a s q u e se e s p e r a de u m médico é a revelação (ou confirmação). da existência de u m problema (doença).e vale notar que apenas em três dos casos as terapias religiosas foram a única opção de tratamento utilizada. O c a n d o m b l é é talvez a mais procurada dentre as agências religiosas que oferecem serviços de cura dos casos de doença mental cobertos pela investigação. . A idéia de que a doença mental é uma doença da cabeça traz consigo a visão de q u e há uma localização concreta no corpo. o que . a necessidade de tratamento continuado com médicos . todavia. colocar-se sob o controle da família. e m vários casos. é visto como u m fator espoliador da antiga vitalidade da pessoa doente. ao trabalho. acho que por causa dos remédio que ele tomava. a ação do remédio no corpo depende de vários fatores e requer-se u m tratamento continuado com médicos para a administração do uso das drogas. aéreo. não vou ficar enchendo meus filho de remédio não!" D. esse remédio de doido. Ele voltava melhor. não. eu peguei os remédio pra ver o que ele tava tomano. como é que chama. né? Ele fica dopado. Para as pessoas que cuidam diretamente do doente. que não precisam mais se preocupar com as conseqüências dos seus comportamentos desviantes. e o outro é pro sexo e o Aldol e o Diazepan pra dormir. sobre o filho: Eu sei lá. Por u m ângulo. Comumente. isto significa que as drogas conduzem a u m gradual desaparecimento dos sintomas (especialmente da violência e da agitação) ou. Joana. o efeito das drogas é a produção no doente d e u m estado de calma. Penha? Penha: Diazepan. e Neozine. Entrevistador. Carmen. Ε esse aí é. como é o nome. Na maioria das descrições. sabe como é. isto resulta no sentimento doloroso de que o doente perdeu de vez sua condição de pessoa. eu digo: "ó. resultante das drogas.Se as drogas farmacêuticas são vistas como u m elemento necessário no tratamento dos distúrbios mentais. O uso prolon¬ . Diazepan pra dormir e o Aldol e Anaperidol. Certos remédios não são compatíveis com certos corpos e produzem conseqüências adversas no comportamento. Por outro. D. sei lá. a u m controle das manifestações mais severas da doença (tais como convulsões freqüentes). Fenergan é o que mais ataca ele. ficou muito melhor. sua associação à cura ou à melhora é. isto é. ele fica como? D. Apreptil é pra cabeça. sobre o filho: Ele veio pra casa na semana passada. contudo. chegou aqui. Ideozine.. O temor de que tal coisa possa acontecer provoca reações que variam desde uma decisão de interromper o tratamento médico até tentativas de trazer o paciente de volta à atividade. ao menos. mais ataca. Ε quando ele toma. D. entretanto. Eu pensei de não voltar mais. a calma indica u m estado de inércia. aí eu acho que não deve.. Adalgisa: Diazepan. num sabe. Anaperidol e Diazepan. dormindo demais. veio pra casa. ambígua. Fenergan disse que normaliza o sexo. Adalgisa: Ele fica lerdo demais. agora ele voltava assim. Ele tomou muito. letargia ou excessiva sonolência que. aí é pior ainda. Aldol. Adalgisa: Era justamente esse remédio de cabeça. Uma quantidade enorme de remédio. A calma dos pacientes garante a tranqüilidade dos que deles cuidam. porque ele tomava o remédio dava aquelas crises de dormir. Eu suspendi. Rita: Ele foi pra quatro hospital. D. É que o médico dá aquela dose. então. ou muda para uma nova droga (nas visitas subseqüentes). a médica passava. brincava normal. ela aí volta. que ela passava logo uma quantidade boa. Aí ele [Jorge] dava a coisa [a crise]. o Gardenal de 50. quando termina. Lá o médico examina ela. eles sentem que. mas depois o remédio relaxou. Marina: Ela vai e volta. ele passava. o paciente (e/ou o responsável) mostra satisfação com a medicação ou reclama de efeitos adversos. e m segundo lugar. examina ela direitinho pra ver o estado de nervo dela como é que tá. Depois do remédio. as consultas aos médicos estruturamse. vai lá outra vez. Carmen. pode levar a uma redução de sua capacidade de produzir efeito sobre o comportamento. Quando eu levava ele no médico. Quando tá perto de terminar. Aí. Aí eu retornei com ele [ao médico]. ela não pode deixar terminar... recebidos os resultados. que ele não sentia nada. Neste caso. Diz-se. Joana: Achei que ele tava melhor pra voltar de novo. Adalgisa: [O médico] passava. sabe? Aí eu retomava com ele. De dois em dois meses. da qual aparentemente o paciente nunca se liberta. Descreve-se usualmente esta dinâmica em duas fases distintas: primeiramente. tornava a levar. Portanto. O médico passa assim pra um mês ou quinze dias. eu acho que ela não pode se afastar. conversando com o pai dele. o remédio se toma "o mesmo que água". Aí então. tornava a passar. além disso.. os médicos deveriam proceder a uma nova avaliação das condições do . estas consultas revelam uma dinâmica circular. a senhora acha que ele melhorou? D. o médico renova a prescrição. Toma ali. o colégio normal. Pra buscar o remédio. Ε aí. porque é assim: ela traz uma medicação. Entrevistador: Ε depois desses quinze dias de tratamento [com o medi­ camento].gado de um remédio. não fez efeito mais.. Ele tomava Gardenal de 50. requisita exames e. né? Não pode se afastar do médico. o pai dele disse: não. Aí toma a medicar ela direitinho. D. e m grande medida. para algumas pessoas. o médico entrevista o paciente (e/ou o responsável). sabe? Eu achei que tava até dando certo. que "o remédio relaxou" ou que "acostumou" no corpo. reduz ou aumenta a dose. eu achei que ele tava até melhor. D. Embora os membros da família sempre se dirijam às consultas com demandas muito precisas e m termos de medicação. antes de prescrever. toma a passar aquele remédio. né? Uma fórmula. toma a tensão dela. ao redor da questão da medicação e. aí ele ficava direto tomando aquele remédio. prescreve a medicação (em geral na primeira e segunda visitas). vamos passar pra outro médico Tal como descritas nas narrativas. sobre o filho: Ele ficou sendo controlado por remédio. Ela passou Gardenal 100. .paciente . eu acho que não dá certo não. portanto.. ali examinando.. tomando remédio sem fazer exame. sobre o filho: O problema é esse mesmo. essa médica agora eu vou levar ela no dia quatro. os que cuidam do doente expressam e m geral alívio: livres das tarefas relacionadas ao cuidado e. Porque esse exame sério ele nunca fez não. implicitamente negando a possibilidade de que o estado do paciente se tenha modificado n o curso do tratamento.. podem finalmente ter algum descanso e reassumir um curso de vida normal. Sob certas condições.para averiguar c o m o a doença se desenvolveu até então. é o foco que o neurologista [encontrou]. mas exame nunca. o eletro dele. quanto a sua tranqüilidade. c o m o se estivesse esquivando-se de sua responsabilidade e. por parte da família. Até que agora eu tenho que conversar com o médico. eu acho que se já tem o prontuário. não é fácil para os membros da família deixar seus parentes doentes e m um hospital. sobre o filho: Até hoje eu não resolvi o problema dele. como é que ele tá. Mas vai fazer agora três anos que ele não faz um exame. Se tá melhor. livres da preocupação. mais significativo ainda. sobretudo. não é? Assim não pode saber se ela. se dá melhora. fazer exame. como é que ela está com o remédio. ele tem aquela profissão para isso. Vou pedir a ele o atestado de cabeça. Agora já depois de tá.ou seja. eu não sei... que ele não se preocupa também. ele melhora. pra ver como ele tá.) Eu queria que o médico tirasse [a radiografia] pra ver se dava alguma coisa na cabeça. E m suas narrativas. Tal opção deriva normalmente de uma avaliação. Que eu quero pedir ao Dr.. Porque eu acho assim: se o médico. D o ponto de vista dos familiares. requisitar novos exames . né. não peço. Contudo.) Essa consulta eu vou conversar com ele pra ver como é. Depois da hospitalização. de ter perdido o controle sobre o cuidado c o m a pessoa doente e de ser. tanto assim que eu vou fazer dois anos agora em dezembro que eu fiz esse exame. os informantes comentam as dificuldades de chegarem a uma decisão sobre o internamente e relembram os momentos dolorosos de separação na chegada ao hospital. sei lá. Cleide. é. entretanto. (. se melhor. Conversar com ela sobre.. (. a família pode considerar necessário passar do tratamento e m clínicas ambulatoriais à internação em hospitais psiquiátricos. sobre a filha: Quatro anos.. o médico vê o tempo e a idade que teve. Damiana. isto é. Djalma pra ele mandar tirar uma radiografia da cabeça dele. O médico sempre dá remédio. inábil para garantir tanto o bem-estar daquela. . Porque tomando remédio. que o doente possa ter eventualmente melhorado. o fato d e n ã o pedir n o v o s e x a m e s d e m o n s t r a u m certo desleixo por parte do m é d i c o . tem a fichinha.. fazendo assim exame de seis em seis meses. Rosário. D. Isolados. os pacientes dos hospitais psiquiátricos são submetidos a uma excessiva medicação e mantidos em um estado de semiconsciência. a questão de compreender como se enredaram e m uma situação tão difícil se toma crucial: busca-se desvendar u m enredo.o que não significa que as pessoas não esperem também dos médicos uma explicação para a doença.. mais do que tudo. As diferentes explicações de médicos e especialistas religiosos para o problema são citadas. à arte de especialistas religiosos. As pessoas atribuem grande importância aos rótulos: ao receber u m nome . 6 Para muitos que experimentaram acompanhar um membro da família ao psiquiatra. Trata-se. Atribui-se descoberta de tais planos. aos quais se associam expectativas também diversas. Na ótica de vários informantes. Tal expectativa associa-se fortemente ao candomblé e espiritismo e. para quem lida cotidianamente c o m o problema e decorrentemente vê sua rotina perturbada por completo. As histórias contadas por pessoas próximas ao doente mostram que. submetidos ao contato diário com os loucos 'de verdade'. Embora certos informantes indiquem uma melhora das condições do doente depois da hospitalização. em . acabar enlouquecendo mesmo. o problema finalmente obtém o status de coisa real. As histórias contadas por parentes e vizinhos dos doentes indicam não haver uma demarcação rígida de funções entre os tratamentos médico e religioso que permita isolar padrões nítidos e diferenciados de busca de ajuda para problemas mentais. Acredita-se que o tratamento em hospitais psiquiátricos envolve medidas violentas: recurso a eletrochoques. o silêncio dos médicos no que diz respeito às causas da doença contrasta claramente c o m o engajamento dos especialistas religiosos na interpretação da aflição . provocando nos familiares o temor de que seu corpo não irá suportar a ingestão de tantas drogas. enfim. valorizadas e/ou descartadas segundo o contexto específico e m que tenham sido produzidas e utilizadas. e m grande medida. para quem explicar é essencialmente narrar. esperam também receber uma explicação para o seu sofrimento. situar a doença e m u m esquema temporal de eventos que se desdobram ao redor do doente (mas não necessariamente por sua causa). eventualmente. de estilos de explicação bastante diferentes. ou pelo menos um nome para a doença. descobrir atores e responsáveis e. ressaltamse as conseqüências negativas do mesmo processo para os doentes. A maioria das pessoas que buscam especialistas religiosos durante u m episódio de doença mantém a expectativa de que estes possam revelar suas causas ocultas.Contrastando com estas conseqüências positivas da hospitalização. obrigados a comer mal e. saber onde se está.que pode ser comunicado a outros . Nas narrativas. parece prevalecer uma visão ambígua quanto aos resultados do tratamento hospitalar. ou seja. permanece a angústia de não saber a causa real do problema. em meio ao desenvolvimento dos eventos. entretanto. a pessoa pode. Embora os pacientes e seus familiares freqüentemente recorram ao médico com o intuito de obter medicação. uso de camisas-de-força. eu dei. nesse dia que eu levei. As causas devem ser reveladas sem que seja necessária a interferência ativa do doente na provisão de informações. ela tava muda. mas sim sobre modos distintos de nomear e tratar os espíritos causadores da doença. Ele disse que quem tava conversando com ele era o Exu Sete Facadas. trafega por distintas possibilidades de se descrever e reorientar o problema. O espírito que tava no homem. e que era uma Padilha pirracenta que tava nela. entidades e forças da natureza. a de encarar a aflição c o m o resultado de relações rompidas. o candomblé. o pentecostalismo e o espiritismo não se assentam sobre pressupostos de realidade contraditórios. ela conversava baixinho. os rituais encenam a história da doença. deixando transparecer u m percurso complexo de idas e vindas por diferentes tratamentos e especialistas. todavia. de modo a conduzi-la a um desfecho dramático. a explicação oferecida no candomblé é mantida pelo doente e/ou familiares mesmo depois de j á ter sido abandonado o tratamento no interior do culto. Por esses meios.menor grau. Aí quando ela olhou pro rapaz [o pai-desanto]. muitos informantes tratam tais diferenças c o m o variações de uma mesma perspectiva. diálogo de fundo pedagógico entre médiuns e espíritos. Quando chegou lá. Nas descrições acerca de tratamentos religiosos ressalta a importância conferida à utilização de diferentes meios na representação e resolução do problema: a dança. Algumas das narrativas parecem incorporar o roteiro desenhado nestes rituais. M e s m o quando se avalia que as agências religiosas falharam em resolver a situação de aflição. ela deu risada. também ao pentecostalismo. revelação de um orixá ou construção de um compromisso de proteção e serviço entre este e . folha de arueira. podem ainda ser exaltadas pela descoberta das causas. deuses e demônios). a maior parte. Dirlene: Ε aí me levaram na casa de um pai-de-santo. Algumas narrativas demostram que a freqüência a terreiros e a sessões de mesa-branca pode ser unicamente motivada por esta busca de interpretação. gui¬ ando-se segundo seus temas e imagens dominantes. o que é especialmente relevante na avaliação do candomblé e da umbanda. enfraquecidas e/ou a serem seladas entre pessoas. Os dramas encenados nos rituais deixam fortes marcas na memória e abrem caminho para u m a reconstrução imaginativa da situação de aflição. mas deu tanta risada. Embora estejam atentos às diferenças entre as explicações e abordagens terapêuticas dos diversos grupos religiosos. depois ficou quieta. Chama até José. Que mandaram do [outro] candomblé pra ela. a música. Seja c o m o batalha entre Deus e o D e m ô n i o . Segundo essa ótica. Aí ele me pediu meio quilo de milho branco. espíritos. o embate de personagens (gente. Só que eu pelejava pra ela conversar. 21 quiabo. nos quais há u m espaço ritualizado de encontro entre a mãe-de-santo e seu cliente. Aí ele disse: "por que você tá rindo? É por que tá vendo meu olho de cobra?" Aí eu mandei que ela perguntasse quem era que tava conversando com ela. E m alguns casos. Apesar de podermos identificar u m certo núcleo de suporte que se organi¬ . mas também porque estes últimos estão continuamente negociando significados. cujos participantes são personagens importantes do drama contado. as reações desenvolvidas ante o doente e sua família não são sempre positivas: muitas denotam rejeição. é inevitavelmente u m assunto público. e seu tratamento. no bairro. N o Nordeste. o acento recai sobre os processos. O adoecimento. C o m o u m t o d o . u m sujeito enfraquecido ou diminuído é. Entretanto. ao contrário. A doença. no Nordeste. Esta concepção da doença e da cura como realidades processuais expressa-se vividamente nas narrativas de doença. consiste na perda de lugar ou situação. os rituais de cura revelam situações de ruptura de vínculos e trabalham no sentido de reconduzir o doente à inserção no contexto relacionai do qual foi afastado ou voluntariamente se afastou. tanto dentro quanto fora de quadros institucionais. interferindo ativamente no modo pelo qual esta é definida. U m ' e u ' (self) responsável define-se por sua inserção e m uma teia de relacionamentos. não apenas porque os curadores têm de agir sobre as perspectivas dos pacientes e de suas famílias. administrada cotidianamente e tratada. CONCLUSÃO As narrativas de doença mental do Nordeste organizam-se ao redor de te¬ mas-base. eventos e interações que obscurecem e marcam de ambigüidades o lugar do sujeito. perseguição e até violência. que conectavam o indivíduo ao contexto. Assim. ressalta o papel dos vizinhos e parentes próximos (muitos deles também vizinhos) no desenrolar do problema: seu envolvimento e interferência é pronunciado. consiste e m u m processo de ruptura de elos sólidos. As histórias referem-se continuamente a essas relações. Doença significa perda de situação. é descrito como a construção de relações claras e b e m delimitadas de reciprocidade. então.seu carnal. conduzindo-o a u m estranhamento de si. ao menos no que toca ao trabalho de especialistas religiosos. Tais temas p õ e m à mostra cadeias semânticas que remetem o sentido da doença a concepções genéricas acerca da natureza e espaço de atuação do self. o fato de q u e as pessoas d o Nordeste de Amaralina freqüentemente transitem por diferentes serviços de cura mostra claramente como a doença e a cura são experiências construídas intersubjetivamente. u m ser deslocado. as quais enraízam o indivíduo em uma dada situação. revelando formas próprias de abordar e lidar c o m o problema. o conceito de loucura apóia-se sobre a idéia de que a identidade do sujeito vincula-se à sua posição e m um campo estabelecido e hierarquizado de relações. implicando obrigações diferenciais para com outros. Encontram-se também nas narrativas informações relevantes acerca das relações sociais que compõem o quadro da doença. Nas histórias. delírio e alucinação. Phase I: Signs. Carlos Caroso Soares. Paulo César Alves e Míriam Cristina Rabelo (estes dois. 2 3 4 . úteis tanto do ponto de vista da psiquiatria (na composição de categorias diagnósticas) quanto do ponto de vista leigo (Murphy os considerava comportamentos sinalizados em todas as culturas e. ao colocá-lo em oposição à loucura. na verdade. útil a profissionais da saúde mental e culturalmente sensível. as duas faces de uma mesma moeda. crises e convulsões. os registros foram utilizados apenas para organizar as informações iniciais (as entrevistas exploratórias).B.M. universalmente válidos). violência contra si mesmo. Da mesma forma. ou que as reações de seus componentes sejam desprovidas de ambigüidade. Pretende-se aqui apenas delinear algumas idéias que os informantes associavam ao nervoso. Meanings and Practices Related to Mental Health.za em torno do doente e sua família. Murphy. Foram originalmente propostos pelo psiquiatra canadense H. a metodologia original foi elaborada por Ellen Corin (Universidade de McGill) e Grilles Bibeau (Universidade de Montreal) e Elizabeth Uchôa. Mali e Costa do Marfim. ao mesmo tempo. expressando o modo de convivência dominante e m bairros de classe trabalhadora. alterações no discurso. deficiência. não tendo posteriormente nenhum valor na análise das narrativas. 7 NOTAS 1 Trata-se do projeto Social and Cultural Landmarks for Community Mental Health in Βahia. que os considerava categorias gerais de comportamentos-problema. Se a transmissão de informações contribui para a estigmatização do doente. ansiedade. Nesta pesquisa. também permite u m acesso fácil a imagens e receitas prontas para interpretar e lidar com o problema. Suporte e rejeição parecem constituir. responsáveis diretos pelo setor urbano da pesquisa). depressão. desenvolvida também na Índia. comportamento bizarro. nem sempre é possível classificar de modo inequívoco as reações como positivas ou negativas. Canadá. não seria correto considerar este núcleo invariável. isolamento. A equipe de coordenação do projeto na Bahia foi composta pelos professores Naomar Almeida Filho (investigador principal). A utilização dos registros no projeto Social and Cultural Landmarkas for Community Mental Health. Ver Duarte (1986) para uma discussão extensa sobre o 'código' do nervoso entre as classes trabalhadoras urbanas. realizado com o apoio do Hospital Douglas (Montreal) e finaciado pelo IDRC. parte importante do desenho metodológico desenvolvido por Corin e Bibeau. representavam instrumento importante para investigações de caráter transcultural. Os registros comportamentais são: violência contra outros. foi motivada pela necessidade de se produzir um material que fosse. Para uma análise da construção do nervoso na experiência pessoal ver capítulo 7. Este projeto fez parte de pesquisa de maior envergadura. Neste sentido. Peru. portanto. A. fora do domínio da racionalidade socialmente estabelecida. M. CORIN. The many meanings of mental ill-health among the urban poor in Brazil. 6 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORIN. Psychopathologie Africaine. Para uma descrição mais detalhada sobre o internamente em hospitais psiquiátricos. R..) Urbanization and Mental Health in Developing Countries. Enquanto no Nordeste considerava-se a doença mental como comportamento anti-social. Antropologie et Sociétés.C. Aldershot -UK. Soci­ al Science and Medicine. ALVES. 1980. Elements of an anthropological semilogy of mental health: problems among Bambara. & UCHOA.5 A comparação com os dados obtidos entre os moradores de classe média da Pituba é bastante interessante. Soninke and Βwa in Mali. Avebury. somatization and the new cross-cultural psychiatry. M.F. 1977. E. G. E. Depression. RABELO. & BLUE. KLEINMAN. na Pituba se a considerava como comportamento a-social. I (Eds. Patients and Healers in the Context of Culture. Aliens and Alienists. T. 1995. XXIV(2): 149-181. 11:3-10. et al. In: HARPHAM. 1993. A. 1986. P. LITTLEWOOD.1992. L.C. . apontando para a existência. DUARTE. Ver capítulo 3. I. Da Vida Nervosa nas Classe Trabalhadoras Urbanas. ver o capítulo 5 deste livro. E. BIBEAU. La place da culture dans la psychiatrie africaine d'aujourd'hui: paramètres pour un cadre de référence. & LIPSEDGE. uma quebra de padrões de relacionamento moralmente sancionados. 1989. London: Unwin Hyman. Berkeley: University of California Press. 17(1-2):125-156.. & SOUZA.M. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. KLEINMAN. de uma forma distinta de perceber e agir. . estas narrativas pertencem a gêneros culturais preestabelecidos. da . alegria e aflição marcam o fluir da vida. como u m todo. Geralmente. 1993). c o m o alguém que t e m diante de si a opção de revelar o evento tal como vivenciado ou de ocultar dados ao seu ouvinte. enquanto o questionário divorcia o conhecimento da situação de sua produção e utilização. as narrativas permitem que se mantenha este elo fundamental entre saber e contexto. fonte bastante rica de acesso à história e imaginário dos grupos estudados. 1990. E m particular. variando c o m o grau de padronização a que cada u m destes gêneros está sujeito. e m que nascimento e morte. Embora boa parte dos estudos e m antropologia médica faça uso de narrativas locais sobre doenças. tem-se prestado pouca atenção à relação do narrador com sua fala. pouco se tem refletido sobre o status dessas narrativas na constituição mesma da realidade da doença. Constituem.2 Narrando a Doença Mental no Nordeste de Amaralina: relatos como realizações práticas Míriam Cristina M. Tal relação apresenta-se por vezes de forma bastante simplificada: considera-se o narrador. Assim. São sagas coletivas que descrevem a história de u m grupo por meio de suas conquistas e derrotas ou dramas pessoais. Rabelo 1 INTRODUÇÃO Antropólogos e m campo estão acostumados a se defrontar com uma profusão de histórias contadas por seus informantes sobre os mais variados temas. portanto. é nestes contextos que tal saber deve ser apreendido pelo pesquisador. A antropologia médica utiliza-se amplamente de narrativas sobre casos de doença para obter informações sobre as práticas e o saber médico de u m grupo. Para alguns autores (Corin et al. Dado que o conhecimento médico não profissional não constitui um corpus abstrato de saber. de modo que cabe ao pesquisador certificar-se da sinceridade do seu informante e. mas encontra-se embebido e m contextos de ação. debruçado sobre o evento passado da doença.. a coleta de narrativas sobre doenças revela nítidas vantagens sobre outras técnicas de coleta. Permite-se. mas o seu objeto dinâmico é a expressão que devo ter tido ao olhar através das cortinas da janela. No primeiro caso. no segundo. Nos trabalhos que seguem uma orientação semiótica estrutural. i m u t á v e l ) . Para este autor. porque tanto o sujeito falante como o tema de sua fala o desencadear de acontecimentos vividos .confiabilidade das informações fornecidas. uma relação fixa entre significado e significante. seu objeto. Algumas idéias relevantes para o presente argumento podem ser extraídas dessa concepção. constituindo graus de aproximação ou fidelidade aos fatos. justamente seu interpretante. produz-se uma visão empobrecida do ato mesmo de narrar. a noção de tríade introduz tensão e movimento onde há. o signo não é simplesmente u m nome ou uma designação para objetos (seja como for que definamos essa categoria). e o seu interpretante imediato (ou interpretante tal como é expresso por este signo) é a qualidade do tempo. segundo a qual o signo representa o objeto para u m terceiro. na medida em que conduz ao interpretante. 1994). signo e interpretante. desatrelado do mundo vivido. C o m o conseqüência. o significado é imobilizado. q u e r como indicativo de uma estrutura subjacente (também ela fixa). em sua relação c o m a idéia ou conceito que suscita. pessoas e outras falas. A semiótica de Peirce acena com essa idéia. quer como r e f e r ê n c i a a u m a r e a l i d a d e p a s s a d a ( p o r t a n t o c o n g e l a d a . quanto o narrador como sujeito que tece uma história à luz de u m projeto presente. na semiótica estrutural. mas a sua interpretação é a sua respos¬ . E m primeiro lugar. E m ambos os casos. pois o sentido dos signos atrela-se (ao menos parcialmente) à sua utilização por u m intérprete em uma situação dada (Rodrigues. descartando tanto a narrativa como fala. para uma relação com o mesmo objeto." (Peirce apud Santaella. recuperar a importância do contexto de uso no processo de significação. "é qualquer coisa que está relacionada a uma segunda coisa. que inclui u m sujeito que se dirige para alguém e cuja fala é. com respeito a uma qualidade. 1991). 1995:29). O signo. de modo a trazer uma terceira coisa. E m segundo lugar. o narrador atualiza em sua fala os códigos mais profundos que estruturam as concepções de doença e cura em sua cultura. Tampouco apresenta-se. pois signo e interpretante dialogam sobre o objeto (Wiley.. diz Peirce. Peirce ilustra b e m este ponto no seguinte trecho: 2 3 Imagine que acordo numa manhã antes de minha mulher e que quando ela acorda me pergunta: "Que tempo está hoje?" Isto (esta pergunta) é um signo cujo objeto imediato (o objeto tal como é expresso) é o tempo que está neste momento.se esvanecem para deixar aparecer o invariante do discurso.. assim. seu interpretante. Dizer que o significado de um discurso é dinâmico é recuperar a vinculação necessária entre o discurso e seu contexto de interlocução. porque se vê uma relação exterior da narrativa com os eventos sobre os quais se volta. e m si mesma. o processo de significação ou semiose envolve uma relação triádica entre objeto. uma resposta situada e m relação a eventos. esta questão é esvaziada: quer escolha ser sincero ou não. Mas. há um terceiro interpretante. que sou seu intérprete. partindo de uma crítica radical da pretensa correspondência entre discurso e coisas. Constituem o que o autor chama de replays. além disso. tudo aquilo que ela exprime imediatamente. 1991:96) A abordagem de Peirce oferece pistas valiosas para o estudo das narrativas no âmbito das ciências sociais. A segunda. vê os relatos assentados e m categorias subjacentes. que têm filhos identificados no bairro como 'malucos' ou pessoas que sofrem de 'problema de cabeça'. ou aquilo que era a sua intenção ao fazer-me a pergunta. comprometido pessoalmente c o m seu significado. D e central importância nos replays é a capacidade do ator de dissociar seu 'eu' e m diferentes partes ou papéis: o sujeito responsável pela informação prestada. discutem-se as histórias de doença produzidas por mulheres. qual seria o efeito que a minha resposta teria tido para os seus projetos acerca desse dia. mas de versões encenadas pelos sujeitos e m um contexto de interação. ordenadoras de modos específicos de perceber e lidar com o mundo. Goffman observa que não se trata. NARRATIVAS Ε CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE Duas posições são bastante comuns no estudo dos relatos orais: a primeira considera que tais relatos cumpram uma função meramente referential. Contra tal pressuposto. reconstruções dos eventos que visam a envolver uma audiência e nela produzir uma orientação específica diante do narrador. essas duas abordagens têm e m c o m u m o pressuposto de que ambos.ta à minha pergunta. moradoras do Nordeste de Amaralina. é aquilo que minha mulher tinha em vista. A o se voltar para a análise das falas que os atores produzem para dar conta de eventos passados. (Peirce apud Rodrigues. ou interpretante final. o mero animador do dis¬ . este faz uso de uma série de recursos teatrais mediante os quais se aproxima ou se afasta dos eventos contados. Mas o sentido derradeiro. Apesar das nítidas diferenças. retomam-se essas questões na análise de narrativas de doenças. apontando para uma seqüência de eventos e objetos do 'mundo real'. pertencem a um nível de realidade superior ao discurso que os expressa. Para tal. de meras descrições de fatos ocorridos. alguns autores têm insistido na imbricação necessária entre discurso e ação: mais do que referir-se a algo que existe para além de si mesmo. Nos trabalhos de autores filiados ao interacionismo e à etnometodologia. encontramos uma formulação sociológica para algumas das questões apontadas na semiótica peirciana. o discurso produz efeitos concretos sobre a realidade presente que os indivíduos vivenciam. Os estudos de Goffman (1974) sobre interação ilustram b e m esta posição. em geral. O interpretante dinâmico é o efeito real que esta pergunta surte em mim. eventos e categorias. último. Mais especificamente. O interpretante imediato é aquilo que esta pergunta exprime. Neste capítulo. e m larga medida. 1974. bem como conduzir seus ouvintes a uma postura de cumplicidade e simpatia. uma vez que se nos apresentam como instâncias ou documentos de um padrão. O conceito de indexicalidade desenvolvido por Garfinkel (1967) representa contribuição importante neste sentido. insiste Goffman. antes. uma realização dos atores em cada instância particular. Deste modo. à medida que elaboram relatos para explicar o que se passa à sua volta. Segundo o autor.por exemplo. pensar a fala como mero ato de produzir de informações sobre o passado é simplificar um processo em que está em jogo mais do que a disposição do ator para ser sincero ou falso com relação aos eventos ocorridos: as falas constituem ações sociais por excelência. Produzindo relatos que apresentam os eventos como (se fossem) expressão de um padrão preexistente.curso. e não apenas descrições de segunda mão. as narrativas embebem-se de uma dimensão de ação tem sido enfatizada nos trabalhos de vários autores de orientação etnometodológica (Garfinkel. Nesta perspectiva. mas uma tomada de posição e m u m campo interativo. 1974. tampouco um mundo fechado sobre si mesmo de idéias ou representações: são. sua . O discurso não é expressão de uma subjetividade isolada. para captar o sentido de um discurso é preciso recuperar o contexto dialógico e m que se situa. podemos dizer que a manutenção de uma atitude de familiaridade em face do mundo da vida cotidiana e. falar de si com u m olhar distante ou situar-se como mero animador de uma fala sem estar pessoalmente comprometido com seu conteúdo . os indivíduos criam u m campo para a ação coletiva: os eventos tal qual narrados postulam certas identidades e impelem os atores participantes da situação da fala a tomar posições condizentes com o estado de coisas apresentado. e m particular. Tratar relatos como instâncias de ação significa. C o m o insiste Bakhtin e m seus estudos sobre a novela. Turner. Sacks. As narrativas que os indivíduos produzem não são u m reflexo imperfeito de coisas que viram e fizeram. Também alimentam a crença na realidade objetiva. Constitui. modelo ou código preexistente (e. e o 'eu' protagonista da história narrada. particularmente. a ação social é resultado da combinação entre u m ato e a atribuição de um padrão a este ato. Lee. o elo entre ato e padrão não pode ser dado a priori por estruturas normativas internalizadas. A idéia de que o discurso e. do senso de cumplicidade com os outros que caracteriza tal atitude (chamada por Schutz de atitude natural) repousa largamente na construção e no desempenho de relatos. Narrando eventos vividos. antes. aquele que empresta sua voz para a transmissão de determinados conteúdos. um meio significativo pelo qual organizam sua experiência no convívio com outros. com o qual o sujeito da fala j á não precisa mais estar identificado. 1991). modelos ou códigos. Os relatos dão sentido aos eventos e legitimam certos modos de agir diante deles. A possibilidade de jogar com estas diferentes partes . portanto. os atores tornam o mundo inteligível e passível de ser administrado. isto é.permite ao ator negociar seu envolvimento e responsabilidade perante os fatos narrados. compartilhado). dos padrões. Assim. 1967. visto que apontam para sua realização nas instâncias individuais. vincular o significado ao contexto de sua produção. apriorística. no Nordeste de Amaralina. compreensão e tolerância dos vizinhos. As narrativas que elaboram sobre o evento da doença almejam justamente isto: reconstruir a experiência vivida c o m o expressão de u m padrão. a experiência da doença implica desordem: modos rotineiros de lidar c o m o meio e c o m os outros tomam-se impraticáveis e mostram-se ineficazes para atender à nova situação. uma renovação do compromisso de agir e m relação ao d o e n t e e sua f a m í l i a c o m o se a d e f i n i ç ã o da s i t u a ç ã o por eles p l e i t e a d a correspondesse ao estado natural das coisas. HISTÓRIAS DE DOENÇA NO NORDESTE DE AMARALINA C o m o j á observado. N o caso da doença mental. e para si mesmas. Tais questões são particularmente relevantes para a compreensão de narrativas sobre doenças. o sofredor e seus familiares são mobilizados a impor alguma ordem sobre a experiência perturbadora. a construção de uma determinada versão dos eventos se dá sobre o pano de fundo d e versões discordantes. se por u m lado o ingresso no papel de doente permite transformar o desviante e m vítima merecedora de cuidados. é no âmbito da família que se tomam as principais decisões e se desenvolvem estratégias para lidar c o m as pessoas que sofrem de problemas de saúde mental. 1992). Para estes últimos. Põe-se e m cheque a possibilidade de se sustentar uma imagem positiva perante os outros. Neste contexto. que brotam nos interstícios do texto.relação c o m outras vozes atuantes neste contexto (Bakhtin. assim. por outro. mães de pessoas com problemas mentais negociam entre estas duas opções: debatem-se para atestar a normalidade dos filhos tanto quanto buscam garantir para eles. a doença surge c o m o subtração de uma qualidade moral do eu. uma tentativa velada de anular os efeitos corrosivos do rótulo de louco sobre a própria identidade do doente. Se bem-sucedido. pode levar muito rapidamente a u m a desqualificação do seu status moral. Para o sofredor e os membros do seu círculo mais imediato. como interlocutores ou oponentes a quem este busca responder. reabsorvê-la no mundo não questionado da vida cotidiana. a responsabilidade pelo doente está a cargo das mães: são elas que administram os . o eu (self) e a enfermidade ameaçam fundir-se irremediavelmente: mais do que adição de u m atributo negativo. b e m como de garantir a disposição destes de seguirem interagindo c o m a pessoa com base nessa imagem. tal esforço normalizador conduz a uma reorientação da conduta dos outros. Assim. 1981. N a doença mental. N ã o raro. que a u m só tempo explica esta experiência e legitima certos papéis e práticas para se lidar c o m a situação. muitas vezes. a transformá-la e m algo c o m que possam lidar ordinariamente como parte dos seus afazeres e. rompe-se uma atitude de aceitação acrítica do mundo. Na maior parte das famílias. o trabalho de reconstrução narrativa envolve. Gardiner. N o limite. está e m jogo a possibilidade de reconduzir a situação de ruptura e desordem. usualmente seus familiares. No Nordeste de Amaralina. e m outros. Evitar o estigma e suas conseqüências danosas para o eu é. chama ela de maluca. ela diz que "maluco não anda assim. de parte inserida e m um diálogo mais amplo. Rosário. né. gosta de um perfume. Aí ela ruma pedra ni um. lugar de pobre. Longe de serem excludentes. quer como prestadores de ajuda e apoio. o objetivo implícito que orienta a maioria das narrativas. encontra mais de não sei quantos. sem dúvida. pega num adulto. não". a doença é negada mediante relatos normalizadores. as mães respondem aos estereótipos que orientam tais reações.. Muitos 'malucos' a c a b a m se t r a n s f o r m a n d o e m p e r s o n a g e n s d o b a i r r o . Uma vez mesmo pegaram ela. perseguidos pelas crianças e evitados por adultos temerosos. aí eles vão tudo atrás. Os menino toma nela. ela gosta de tomar banho. pega uma pedra. "é sim". tome pedra nos menino.cuidados diários e dão a última palavra no que diz respeito à escolha de tratamento. Você gosta de tudo que é bom. Mais do que qualquer outra enfermidade. sobre a filha Adélia: Uma vez mesmo a polícia pegou ela aí e ela. a doença mental afeta sobremaneira a dinâmica social da vizinhança. É lugar de fraco. tais estratégias freqüentemente se combinam e m u m a mesma história. tarefa árdua. maluca!" Aí ela pega uma pedra. o r a ridicularizados. Chegou lá. quer como veiculadores de informações e estigma (Souza. Muito se perde quanto ao sentido destes relatos quando não se leva e m consideração sua qualidade de resposta. aí acompanha. isto é. Os menino começa a perseguir ela. visitas fracassadas a vários centros de tratamento. têm muitos meninos na rua. A proximidade das casas e a profusão das redes locais de amizade e parentesco . ela diz que não é maluca.que se imbricam e entrecruzam . Rosário. a assistente social disse pra mim que tava me . Eu num tava em casa. portanto. é afirmada como fruto de u m esforço para garantir o direito a reações positivas por parte dos outros. quando eu cheguei é que fui buscar.trazem como conseqüência inevitável o envolvimento dos vizinhos no drama da doença. o r a t e m i d o s . dificilmente. revisando habilmente a biografia dos filhos. conseguem manter o caso restrito ao âmbito da família. de modo a reconstruir-lhes a identidade e m termos mais favoráveis. Se as mães carregam o peso do cuidado e responsabilidade. no entanto. em geral. que ela lê tudo. As histórias contadas por mulheres com filhos doentes estão repletas de casos sobre noites sem dormir para atender às demandas do doente. evitar que ele se envolva em incidentes com os vizinhos é. então. os menino vai tudo atrás. Chega adiante. ruma pedra no outro. E m suas narrativas. E m alguns casos. sobre a filha Adélia: Ela sabe que ela não é maluca. Ela sabe que não é maluca. Reter o doente no espaço reduzido da casa e. Aí ela se aborrece.. Aí cria um problema sério. Aí os menino começa: "maluca. às vez não pega nos menino. brigas com vizinhos causadas comportamento 'desviante' dos filhos. levaram lá pro Juliano. gosta de andar limpa. 1994). "Leve sua filha. mais adiante. que tinha certeza que eu ia pegar ela. conhecida como Mexe-Mexe por suas incursões freqüentes à rua e comportamento extremamente violento. ao relatar o caso da filha. que sua filha não é nada de maluca". para usar a terminologia de Goffman. Rosário mais uma vez reverteu os termos nos quais a história da filha é usualmente contada: a violência de Adélia não é prova de falta de razão. Várias outras mães postulam o mesmo papel de doente para seus filhos-problema: .até do que a própria polícia.foco . Pairando no ar. C o m base nas idéias desenvolvidas por estas autoras. e os outros com quem interagiu . a idéia de que Adélia não é louca não é mais a opinião da narradora. "lugar de fraco". funcionário qualificado de u m a instituição psiquiátrica. Maluco era o policial. o argumento principal que se busca defender.envolvendo Rosário. de tal assertiva. Aí disse pra mim que ela não era nada de maluca. E m sua discussão sobre atos de fala. e sua audiência . ele. levava pra lá. que os menino perseguia ela. Nele. neste c a s o .esperando chegar lá. Rosário toma difícil a contestação ou questionamento. de reclamar com os menino.. Rosário desenvolve a idéia de que Adélia tem uma doença . que ia mandar trazer de volta. Ela não era maluca não. mas sim uma resposta perfeitamente racional às investidas das crianças. Deste modo é que. permanece a pergunta que dá o tom do seu relato: pode alguém assim ser legitimamente tachada de louca? Paralelamente a este argumento normalizador. ao transportar a assertiva da sanidade mental de Adélia do campo interativo presente .cujos sintomas principais são as convulsões. A o dar voz a pessoas qualificadas. narra um encontro da filha com a médica.envolvendo Rosário. Rosário. A irracionalidade está na dinâmica social do bairro. Inquirida sobre a relação de Adélia com as pessoas do bairro. podemos dizer que. no presente. reconfigura o problema a partir de outro sintoma: as convulsões das quais Adélia era vítima desde os quinze anos. a narradora. a normalidade de Adélia toma-se fato. uma das 'doidas' mais famosas do Nordeste. q u e . [A assistente social] disse que ia mandar trazer de volta. O episódio com a polícia tem u m papel importante na construção do argumento. que Rosário não faz mais do que proferir ou animar. pelas quais lhe atribui o rótulo de "doida de jogar pedra". do quadro interativo presente para o quadro da história narrada. pegava ela. Enquanto a comunidade ressalta as constantes e violentas romarias de Adélia pelo bairro. Mais importante ainda.para o campo da história ou caso passado . a personagem. D. o personagem a quem Rosário empresta a voz é um outro autorizado. reforça ainda mais seu ponto de vista. e m que esta se surpreende com a capacidade de Adélia de responder prontamente a todas as perguntas que lhe são feitas. Rosário é mãe de Adélia. onde as crianças passam o dia na rua e os pais não exercem o papel de educadores. sabe mais d o q u e q u a l q u e r u m do bairro . Enunciada pela assistente social. mas avaliação feita por outrem. Hill & Zepeda (1992) apontam para as conseqüências estratégicas de se transferir. por sua vez. as mães não estão simplesmente operando uma classificação fria dos signos em sintomas e destes em enfermidades n o m e a d a s : b u s c a m afastar. um colega meu que tem ali embaixo. que entope. só do lado direito que acusou. exame. curável. com a medicação assim certi¬ nha. como foi o parto dele. conversando com as pessoas. A descrição de Damiana é b e m ilustrativa neste sentido: ao explicar o problema do filho como resultante da obstrução de uma veia. seu filho tá com um pequeno foco". mas a baba é signo diferenciador da epilepsia. é. Mas eu. [se] a gente for dando certinho. Ele sempre dá. mas. Perguntou quem tomava conta dele. o estigma ligado à epilepsia. é só tomar o remédio nas hora certa. Não sei o que. ao desenvolver tal raciocínio. Damiana vê nítidas vantagens e m garantir ao filho o status de doente. às vezes você não viu"... E m u m primeiro plano. Carmen: Eu pensei que fosse epilepsia. deve ser o sangue. com o tempo.Rosário. ele baba. a pessoa fica tendo.. Ε como através do medicamento. a doença da identidade de Nando. Entrevistador. que. né? Vai virando.. A epilepsia marca o doente para o resto da vida.. por intermédio de uma seleção de traços comportamentais. sei lá. é apresentado como uma doença 'neutra'. foco. né.) [A doutora disse] "Ói. ainda bastante forte na classe trabalhadora. Entretanto. sobre Adélia: O problema dela é esse que eu lhe disse. O pequeno Nando é conhecido no bairro c o m o criança violenta e incontrolável: está sempre na rua. eu vejo assim. Mas eu achei diferente porque ele [o filho] não baba. não é uma doença ruim.. que é o sangue. agride as outras crianças e revela total . Aí eu fiquei mais tranqüila. com o tempo ele vai desmanchando. assim. Aí com o tempo do medicamento ele vai dissolvendo. é tida como doença contagiosa que desencadeia uma série de reações negativas por parte dos outros... (. Aí eu: "e o que é isso?" Ela me explicou que era uma coisa que dava assim no cérebro. tornando um líquido normal e vai melhorando. que tem essa doença.. Ε o rapaz que eu vi. que fica boa. O foco. ela conduz os ouvintes a visualizarem a reversão deste estado. C o m o tantas outras mães de crianças com problemas. me disseram que o foco não é nada demais. sabe? Mas que era uma coisa que. que eu já vi o rapaz dando crise. pariental direito. Damiana. Ε o que é que você sabia sobre epilepsia? Carmen: Que a epilepsia é uma doença que baba. que sumia. O foco é uma veia que faz parte do cérebro que entope. pode-se observar que o diagnóstico de foco é traçado por contraste ao de epilepsia e que o contraste repousa nos signos: e m ambas as doenças se verifica convulsão. Ela disse: "deve ter sido alguma pancada que ele tomou quando pequeno. anda nu e demonstra u m interesse sexual precoce. Aí eu perguntei pra ela de que poderia ter sido provocado. sobre o filho Nando: Eu não sei lhe explicar o que é foco. Ε um problema que no. Desatrela-se. Mas a pessoa pode ficar boa de foco.. Isso porque a idéia de que o foco pode ter origem em uma pancada na cabeça ou queda coloca em suspeita o desempenho dos pais: tais 'acidentes' podem apontar para a negligência ou o excesso de violência. . não deixava nem em cama assim... é uma extensão moral . Porque ele não tomou queda quando era pequeno. as mães transformam tais assertivas em fato. Transformado em categoria popular. Posicionando-se como narradoras isentas. é igualmente importante para Damiana evitar que a identidade de doente conduza à atribuição do rótulo de maluco a seu filho. a atribuição de causalidade vê-se marcada pelo esforço de negociar a questão-chave da responsabilidade: Cleide. em certa medida. Longe de significar uma anulação de si perante os fatos. ela busca. Descrevendo o foco como uma condição temporária que pode ser revertida pelo uso de medicamentos.de culpa pelo comportamento desviante. pois isso implica danos ao próprio eu. ser o informante neutro é engajar-se ativamente na construção de uma posição por vezes bastante vantajosa.desrespeito pelos adultos.. mantendo-se no papel de mero transmissor de informações adquiridas. manter intacto o status de pessoa de Adélia e assegurar-lhe o papel de doente. numa coisa assim no chão. que ele jogou muita bola.e aqueles de quem. não sei na rua. Entretanto.. Ele gosta muito de esporte. sobre o filho: Não sei. Q u a n d o ele era pequeno. a um só tempo. não tenho idéia do que possa ser. Se o ingresso no papel de doente exime seu ocupante . o comportamento moralmente condenável de Nando põe em questão o desempenho de Damiana como mãe. Ao não ser jogando com um amigo. D. não resolve de todo. o foco é apresentado como doença da cabeça. ambos moralmente condenáveis. né. Isso significa que o problema de Nando é similar a qualquer outra doença: afeta apenas uma parte do corpo (como os exames médicos comprovam) e pode ser tratado com remédios. Rosário elabora argumento semelhante para explicar o problema da filha. A não ser na rua.. assim como pneumonia é doença dos pulmões e pressão alta é doença do sangue e do coração. O diagnóstico médico de foco tem papel fundamental na construção do seu argumento. em c a m a alta. no colégio. De certa maneira.da responsabilidade pelas falhas morais cometidas. por exemplo . legitimando suas expectativas quanto a um tratamento tolerante e compreensivo por parte dos outros. Ao fazer uso do discurso indireto. de bola. em uma esteira. Em diversas narrativas produzidas pelas mães entrevistadas. pra evitar de cair. porém. Na minha mão.Nando e Damiana .. 4 A possibilidade de combinar várias vozes no quadro da narrativa contribui para fortalecer o argumento. nunca tomou queda. a questão da responsabilidade. O seu ingresso no papel social de doente exime ambos . o narrador difunde para outros a responsabilidade pelo conteúdo do que é dito.o médico.. enquanto colocam as principais assertivas sobre o estado dos seus filhos na boca de personagens dotados de autoridade legitimada . botava sempre no chão. ia pro colégio fazer física de manhã cedo. eu sempre tive cuidado com ele". dor ali. ela olhou. que sempre fica rente com a mãe. por sua vez.. (. né. a mãe procura cuidar dos filho direitinho.. né. o pai.Cleide enfatiza o cuidado e dedicação que sempre dispensou ao filho. Mais adiante completa: Eu parava e pensava: "meu Deus.) Ε mandava qualquer trocadinho.. Neste trecho. só pode ter sido neste último domínio.. Mas quando a pessoa passa a ser mãe e pai. Todo mundo. relata uma entrevista c o m a médica e m que esta levanta a hipótese de que seu filho possa ter caído sem que ela tenha tido conhecimento: "perguntou quem tomava conta dele". Aí pronto. sobre o qual tem direta responsabilidade. né. tomou conta. botei na casa da minha mãe. Depois peguei. por cuja dinâmica não tem de responder: se algo sucedeu à criança. Eu sozinha pra criar. Joana: Eu tava esperando [ele nascer] no meio da semana e foi logo na terça-feira que ele nasceu. aquela coisa assim. a culpa . o pai me deixou com os filho. aí ele se assustou. (. Carmen. que eu num tinha nem tempo. muitas mães constroem histórias tristes em que se constituem como personagens impotentes e m face das adversidades da vida: Rosário: quer dizer que ela desde pequena já vinha com problema. ao domínio incerto da rua.. Era uma vida muito agitada. procura ver o que é que os filho precisa. Mas quem tomava conta era minha mãe.. tem responsabilidade. O relato j á não está mais centrado no exame de qualidades e feitos individuais. sutilmente. Só meu problema que eu larguei ele com dois meses e pouco para ir trabalhar. né.. hoje em dia. pronto. trabalhando nas casa de família. né. né. nessa agitação. .) Porque eu vejo aí. seu eixo foi deslocado para u m exame do contexto social..deve-se aos limites impostos pela própria situação. os pais não devem beber. ficou dor aqui. A gente não brigava. ficou com esse problema. de num me tocava se eu tivesse sentindo uma coisa nem nada e eu parar.. a uma avaliação das circunstâncias que a obrigam a exercer o papel de mãe. tanta coisa pra uma criança nascer perfeita. opondo o ambiente ordeiro e protegido da casa. botar no colégio.ao menos e m parte . Relatando a eclosão da doença de seus filhos. D e u m comentário sobre sua atuação individual como mãe passa. os pais não devem brigar... Que quando a pessoa. eu sempre trabalhando ni restaurante. ainda nesse tempo tinha minha mãe. Não ligava pro outro lado. que os pais não devem fumar.. Eu num procurei ver isso. Elabora-se assim o que Goffman (1974) chamou de 'história triste': uma revisão cuidadosa da biografia e m que as discordâncias entre fatos vividos e valores sociais apresentam-se fora da responsabilidade do sujeito. mas eu era muito preocupada com meu trabalho. Carmen logra distribuir ou dispersar a responsabilidade pela doença chamando atenção para o contexto: se o seu desempenho como mãe não foi dos melhores.... uma realização sempre renovada dos indivíduos e m contextos interativos específicos. segundo a operação de modelos culturais internalizados (Alves & Rabelo. os indivíduos fazem mais do que apontar para fatos consumados: tecem em tomo de si os fios de uma realidade em que buscam habilmente envolver os outros. assim. podemos dizer que as narrativas funcionam como signos por meio dos quais os indivíduos se voltam para a experiência ou trajetória passada de aflição (objeto). Dizemos e m parte porque. definem identidades e pleiteiam o direito a determinados tratamentos. A o narrar u m problema. a possibilidade de que qualquer outra mulher pudesse estar em tal papel. universal: o modelo que explica os sinais de uma experiência singular é. é no campo interativo. caracterizando-o como doença. ao menos potencialmente. Ao menos e m parte. ao contrário. que se define o status de uma narrativa como discurso dotado de autoridade. Constitui. O drama narrado por mães como Rosário e Joana. c o m base na qual pode negociar u m realinhamento da posição dos outros. Recuperando a concepção triádica da semiótica de Peirce. logram-no também pelo próprio recurso narrativo. antes de mais nada. enquanto o argumento que defendem se desenvolve no plano da história. isto é. é comum a quase todas as mulheres de classe trabalhadora. negociam responsabilidade. aquele que os indivíduos logram construir ou apresentar como explicação para esta experiência. é mediante a elaboração de narrativas que tal construção se realiza. Isso significa dizer que entre o modelo e a experiência não existe uma relação intrínseca. cria uma cumplicidade entre narrador e ouvintes que garante. diluindo. falando através de outros autorizados e mantendo-se no papel de narradores isentos. É interessante sublinhar que não é apenas pelo conteúdo da história contada que as duas narradoras afastam de si a responsabilidade pela doença dos seus filhos. O caráter intercambiável do papel do personagem central da história. e m última instância. O interpretante relaciona-se ao estado . centrado no conflito entre a necessidade do trabalho e o dever de mãe. O fato de que o eu que narra a história e o eu que a vivenciou no passado (agora transformado em personagem) j á não são mais a m e s m a pessoa t o m a problemática a imputação da culpa ao primeiro. 1994). Transformando-se e m personagens. reações de piedade e compreensão. e m um embate de diferentes vozes. tenham ou não filhos doentes. conferindo-lhe ordem à luz de u m projeto (interpretante).A história triste permite ao narrador preservar uma imagem positiva de si. CONCLUSÃO A análise dos processos narrativos pelos quais os indivíduos reconstituem experiências de aflição mostra-nos que a doença não pode ser tratada como resultado de uma associação mecânica entre signos e sintomas. a responsabilidade pelos distintos níveis e m que o argumento é desenvolvido. este caráter aberto das narrativas de doenças deve-se ao fato de que muitas delas relatam uma experiência que ainda está e m processo. Estes cortes e ambigüidades parecem revelar uma tensão permanente. Peirce já acenava com esta idéia ao conceber a semiose como processo dinâmico. no GT Corpo. isto é. cabe mais u m comentário sobre as narrativas de doenças. então. também. Pode-se dizer. sempre renovado e. Conforme diz Good (1993). Outra definição de Peirce: "Um signo ou representamem é uma coisa qualquer que está para alguém em lugar de outra coisa qualquer sob um aspecto ou a um título qualquer. A este signo que ele cria dou o nome de interpretante do primeiro signo. 3 4 . deixando entrever aos seus ouvintes o processo mesmo de elaboração do sentido. Pessoa e Doença. de ajustá-la a u m modelo estabelecido. continuamente adquirindo novos contornos. Dirige-se a alguém. portanto. Não pretendo desenvolver aqui um exame rigoroso da semiótica de Peirce. não resolvida. Poderíamos. nem sempre logram produzir um relato monolítico. Este signo está em lugar de qualquer coisa: do seu objeto.de coisas futuro que se deseja alcançar. ao longo de suas narrativas. entre o padrão que se busca impor e uma experiência que não se ajusta perfeitamente a tal padrão. Está em lugar deste objeto. dizer que remete à abertura para possibilidades futuras de lidar com o problema que se expressa na maioria das narrativas. pondo em movimento a narrativa sobre a doença. NOTAS 1 2 Este capítulo é uma versão modificada de trabalho apresentado no XVIII Encontro Anual da Anpocs (1994). como se os autores vacilassem e subitamente recomeçassem a história a partir de outro ângulo. senão explorar algumas de suas implicações analíticas para o estudo das narrativas em antropologia e sociologia. cria no espírito desta pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido. Se. ao reconstruir a história dos filhos. que as narrativas tanto constituem uma tomada de posição diante de uma experiência vivida. apud Rodrigues. não apenas perante os outros. mulheres como Rosário. quanto oferecem u m comentário sobre as dificuldades de sustentar tal posição. abrem-se brechas no argumento elaborado. mas também perante si próprio. Por fim. mas em referência a uma espécie de idéia que por vezes tenho dado o nome de fundamento do representamem" (Peirce. Colocando à mostra o trabalho de explicar a aflição. não sob todos os aspectos. as narrativas apontam para a fluidez das nossas construções de sentido. 1991:90). Damiana e Carmen buscam ajustar os eventos vividos a um padrão socialmente reconhecido. também sempre incompleto. O caso de Nando é discutido com detalhe no capítulo seguinte. Assim é que. I. Hardmondsworth. H. J. 1995. (Mimeo. Soninké et Bwa du Mali. utterances and activities. Comprendre pour Soigner Autrement. In: HILL. & IRVINE (Eds. Mrs. In: TURNER. Niterói. 1993.D.) TURNER. In: TURNER. A. Bakhtin and the theory of ideology. Medicine. Trabalho apresentado na XIX Reunião da ABA. L. 1994. Cambridge: Cambridge University Press. Cambridge: Cambridge University Press. 1967.. Bakhtin. The Semiotic Self. Lisboa: Editorial Presença. New Jersey: Prentice Hall. GOFFMAN. J. GARDINER. 1990.) Ethnomethodology and the Human Sciences. 17(1-2): 125-156. WILEY. Trabalho apresentado na XIX Reunião da ABA. São Paulo: Perspectiva. O. 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(re)orientam suas ações para com o indivíduo. a doença se integra à experiência humana e se toma objeto da ação humana como uma realidade construída significativamente. na maioria das vezes se desencadeia pelos membros de suas redes de relações. que não são redutíveis n e m à mera projeção de significados subjetivos. o aparecimento de u m problema mental pode ser pensado tanto como fenômeno individual. portanto. ainda que este processo se possa iniciar pelo indivíduo e m aflição. composto de uma pluralidade de vozes c o m as quais se dialoga. O aparecimento de uma doença mental consiste e m uma situação problemática que põe e m movimento u m complexo processo social para se lidar c o m ela e. nas escolhas entre as distintas agências . o corpo são realidades profundamente imersas em domínios culturais e contextos sociais particulares. seu substrato biológico ou psicológico. dotá-la de sentido. Souza INTRODUÇÃO Por certo tempo pensou-se que a doença pertencesse ao reino da natureza ou fosse mera condição biológica. debate. definem tais perturbações no comportamento como resultado de problema mental e. As redes de interações que cercam o indivíduo influenciam na definição da situação. a antropologia médica tem procurado demonstrar que a aflição. na percepção de que alguma coisa está errada. nem a uma reprodução dos significados já previamente dados na cultura.3 Na Trama da Doença: uma discussão sobre redes sociais e doença mental Iara Maria A. do domínio das ciências biológicas. Insurgindo-se contra tal tendência. Qualquer que seja sua natureza. envolve atos de interpretação. partindo desta definição. quanto fenômeno de rede social. para produzir definições e modos de manejar a doença. percebendo algumas alterações nos modos de interação social rotineiros. à luz do material empírico apresentado. e por fim. pois. embora estejamos cientes das preocupações dos pesquisadores com a resolução de problemas relativos à operacionalização dos conceitos e sua tradução e m variáveis quantificáveis. 1992). consideramos que a reflexão sobre seus pressupostos ainda carece de maior atenção. lidar com u m problema mental pode reafirmar. Tampouco propõe uma nova forma ou modelo de aplicação do conceito. e. adota-se aqui uma abordagem qualitativa. b e m como pode modificar a trajetória da vida social não só do indivíduo que apresenta o problema. este artigo consiste. u m dos pontos essenciais para compreensão da construção do problema mental e m contextos sociais específicos. deste modo. A o longo da discussão. as pesquisas q u e se apoiam exclusivamente e m dados quantitativos dificilmente conseguem dar conta dos aspectos interativos das redes sociais. e m seguida. na contracorrente dos estudos mais recentes sobre o tema.de cura e na avaliação dos resultados das ações terapêuticas levadas a cabo (Pescosolido. Há uma tendência muito forte à quantificação nessa área. Na primeira parte. O que aqui temos é um diálogo com a literatura e uma discussão de alguns dos seus princípios teóricos e metodológicos. se tecem alguns comentários sobre aspectos metodológicos dos estudos de redes sociais. procura-se analisar alguns pressupostos teórico-metodológicos presentes e m grande parte dos estudos sobre redes sociais. O estudo das redes sociais que se mobilizam e m torno de u m problema mental é. importa esclarecer que o presente trabalho não é propriamente u m (ou mais um) estudo sobre o tema. à guisa de conclusão. Este artigo discute os processos mediante os quais as concepções e práticas relativas à doença mental se criam e recriam continuamente c o m base nas interações que os indivíduos estabelecem com pessoas pertencentes às suas redes de relações sociais. Além disso. o diálogo q u e se estabelece entre diversos atores nelas envolvidos . . apresentam-se os dados relativos à pesquisa desenvolvida no Nordeste de Amaralina sobre redes sociais e problemas mentais. A orientação etnográfica e u m a metodologia qualitativa se mostram mais adequadas para q u e se possa apreender justamente as dimensões das redes sociais negligenciadas nos estudos quantitativos: o caráter dinâmico das redes socais. considera-se o conceito de redes sociais e alguns trabalhos desenvolvidos na área. Contudo. criar ou mesmo destruir determinadas redes sociais. e m uma tentativa de refletir sobre aspectos que tendem a ser negligenciados nos trabalhos sobre redes sociais. antes de tudo. destinado a replicar o que tem sido realizado na área. Diferentemente de outros estudos. mas tamb é m daqueles que estão envolvidos c o m ele. c o m o se verá mais adiante.elementos d e fundamental importância para se compreender o papel desempenhado pelas redes sociais n a lida c o m a enfermidade. portanto. REDES SOCIAIS O conceito de redes sociais surgiu no fim da década de 50, e sua crescente popularidade desde então pode, segundo Mitchell (1969), ter uma dupla origem: primeiro, seria decorrente de uma insatisfação com a análise de cunho estruturalfuncionalista e da conseqüente busca de modos alternativos de interpretação da ação social. Em segundo lugar, dever-se-ia em parte ao desenvolvimento das matemáticas não quantitativas, como a Graph Theory - o campo da matemática que estuda o arranjo entre pontos e linhas - usada para descrever as ligações entre membros (elementos) de um sistema social e para manipular estas representações com o objetivo de ter acesso à sua estrutura subjacente. Apesar do emprego do conceito de redes sociais ser relativamente recente, a utilização da imagem de rede de relações sociais possui uma longa história. Os primeiros usos dessa noção, entretanto, eram metafóricos e diferentes da noção de redes sociais conforme definida por Mitchell (1969): "um conjunto específico de ligações entre um conjunto definido de pessoas com a propriedade adicional de que as características dessas ligações como um todo podem ser usadas para interpretar os comportamentos sociais dessas pessoas envolvidas". 1 Os trabalhos acerca de redes sociais, propriamente ditos, iniciaram-se com os estudos sobre migrantes de áreas rurais que passaram a viver em aglomerações urbanas nas grandes cidades do Terceiro Mundo. Os antropólogos, até então acostumados a se concentrar em estudos sobre sistemas de direitos e obrigações normativas e sobre comportamentos prescritos a determinados grupos, como tribos ou aldeias, perceberam que este tipo de análise normativa não se mostrava facilmente aplicável ao estudo de relações sociais que ultrapassavam os limites de um pequeno grupo. Para o estudo de situações mais complexas, em que diferentes laços sociais se entrecruzam e em que coexiste uma pluralidade de valores e normas, freqüentemente em conflito, os analistas voltaram sua atenção para a composição e estrutura das redes de relações interpessoais. O interesse de vários estudos sobre redes sociais, realizados daí em diante, não recaiu mais sobre os atributos das pessoas (etnia, gênero, status social), como meio de explicar seus comportamentos, mas sobre as características das ligações entre os indivíduos. U m a das intenções era superar a lacuna conceituai entre microssociologia e macrossociologia, na tentativa de abarcar tanto a dimensão mais fixa e ' d u r a ' das estruturas normativas, quanto a fluidez dos eventos interativos. O conceito de redes sociais, situando-se em uma região intermediária, poderia fazer a mediação entre esses dois campos e permitiria uma compreensão mais aprofundada e complexa do comportamento humano. Devemos a Mitchell (1969) uma sistematização dos procedimentos para o registro e a análise de redes sociais. Segundo este autor, dois critérios básicos devem ser levados em conta no estudo de redes, concernentes às características morfológicas e interativas. As primeiras se referem à estrutura ou ao padrão de ligações em uma rede e se podem identificar com os aspectos estruturais do comportamento social; abordam-se tais características e m termos de ancoragem, densidade, alcance e extensão. As características interativas, por sua vez, referem-se à própria ligação, ao comportamento dos indivíduos vis-à-vis uns aos outros; são tratadas segundo o conteúdo, direção, durabilidade, intensidade e freqüência de contato. Embora Mitchell afirmasse a importância tanto dos aspectos morfológicos quanto interativos, a maioria dos estudos, no entanto, concentrou-se e m apenas um dos critérios morfológicos: a densidade (relativa à extensão em que as redes são interconectadas; trata das ligações não só com ego - o ponto no qual está centrada a rede - mas das outras pessoas entre si). E m parte, isto se deve a razões técnicas, pois é relativamente fácil medir a densidade e m uma rede (número de relações que interconectam os participantes/número de interconexões possíveis dentro daquela rede). Mas também subjaz a esses estudos a idéia de que quanto mais densa é uma rede social, mais as normas e valores do grupo se reforçam (Kadushin, 1982; Price, 1981; Horowitz, 1977). A hipótese de Bott (1976), por exemplo, em seu estudo sobre família e redes sociais, é que redes fechadas ou altamente densas exercem uma pressão informal sobre seus membros para que se ajudem uns aos outros e para validar um sistema comum de crenças e valores, os quais reforçam os papéis tradicionais dentro do casamento. Os estudos que tratam de redes sociais e saúde não adotam uma perspectiva muito distinta. A questão que normalmente apontam diz respeito aos efeitos da estrutura das redes sociais na busca de ajuda médica, permitindo, por exemplo, que indivíduos, de acordo com as redes e m que estão envolvidos, tenham mais probabilidade de recorrer ao médico ou ao psiquiatra (Price, 1981). Nestas pesquisas, normalmente se usam técnicas quantitativas e questionários padronizados. E m geral, as perguntas referem-se a: situação marital, proximidade com parentes ou freqüência de contato, existência de amigos íntimos e/ou freqüência de contatos, e se estes amigos mais íntimos têm relações entre si independentes de ego. As pessoas escolhidas são, quase sempre, sujeitos que já se encontram sob tratamento médico. E m muitos desses estudos, chega-se à conclusão de que indivíduos imersos e m uma rede de relações altamente interconectada adiarão o momento de busca de ajuda médica, pois, as concepções leigas, populares, acerca da enfermidade são fortalecidas nesses grupos e, portanto, os doentes resistem por mais tempo a procurar o psiquiatra ou médico (referência). Argumenta-se também que, nas redes de relações mais densas (interconectadas), o indivíduo conta com mais apoio, recorrendo menos à ajuda de profissionais (Horowitz, 1977; Kadushin, 1982). A preocupação central não é, pois, compreender os processos de interação, ao longo dos quais começa a tomar corpo a própria idéia de que existe uma doença, realizam-se as escolhas entre diferentes formas de tratamento e avaliam-se seus resultados. O que interessa, sobretudo, é a questão da busca de ajuda médica profissional e de como as redes (tomando-se apenas suas características estrutu¬ rais) influenciam este comportamento. Deixam-se de lado, assim, questões mais amplas envolvidas no adoecer, posto que se dá prioridade apenas à escolha e utilização de u m único tipo de tratamento. Tal orientação dos estudos de redes sociais acaba por tratar aspectos estruturais das redes como um atributo do indivíduo, que pode, e m larga medida, definir e m que momento ele deve tomar-se paciente de uma clínica ou hospital psiquiátrico. HISTÓRIAS DE PROBLEMAS MENTAIS Apresentam-se nesta parte três histórias de problema mental, girando e m t o m o de Zelinha, Nando e Jaci. Elas oferecem evidências empíricas que serão usadas para problematizar alguns aspectos tomados por supostos nos estudos sociais e algumas de suas conclusões. Zelinha é u m a adolescente que sofria de u m ' p r o b l e m a de n e r v o s o ' , cuja principal manifestação era a exibição de atitudes agressivas c o m relação à família. N a n d o é uma criança que apresenta crises de convulsão e comportamentos públicos considerados altamente inadequados: anda nu, briga etc. Jaci, por sua vez, é u m a mulher de meia idade, definida ora c o m o alcoólatra, ora c o m o nervosa ou louca. Estas três personagens e suas histórias de aflição não s e g u e m u m p a d r ã o exatamente similar; no entanto, apresentam alguns traços e m c o m u m . A principal característica compartilhada pelos três é o fato de seus problemas não d e s t o a r e m da média: não são os casos mais graves, não personificam o estigma da insanidade, c o m o os 'loucos de j o g a r p e d r a ' . Tampouco são considerados normais. Todos, em a l g u m m o m e n t o , são definidos c o m o alguém q u e apresenta problema de ' c a b e ç a ' , de ' n e r v o s o ' ou ' l o u c u r a ' , sem que, entretanto, estas definições se tenham fixado definitiva e indubitavelmente sobre eles. Suas identidades como doentes são alvo de disputas, definições e contradefinições. Além disso, Zelinha, Nando e Jaci moram em ruas muito próximas ou estão ligados a pessoas que vivem na interseção entre três m a s da Baixa da Alegria. A rede de relações na qual se inserem é bastante interconectada e, c o m poucas exceções, todas as pessoas presentes e m suas histórias têm contatos entre si e conhecem os dramas enfrentados pelos enfermos e suas famílias. A HISTÓRIA DE ZELINHA Zelinha tem 18 anos, mora com os pais e irmãos, é solteira, deixou de estudar há mais de u m ano devido ao nervoso. Ela não trabalha, faz apenas algumas faxinas eventuais e ajuda a mãe nos serviços domésticos. Seu caso começou c o m u m problema na mão, que ela abria e fechava incessantemente. A princípio, o fato foi interpretado por Clarice, sua mãe, como um 'sestro', uma mania, algo sobre o qual Zelinha teria controle. Esta interpretação ocasionou brigas constantes entre mãe e filha. C o m o tempo, entretanto, o problema mudou de feição: Zelinha passou a apresentar outros distúrbios de comportamento, tais como não querer mais sair de casa, descuidar da aparência e higiene e, o que foi considerado mais grave, passou a agir agressivamente com os irmãos e com a mãe em particular. A medida que o comportamento de Zelinha se foi modificando, as interpretações fornecidas para o problema também passaram por alterações significativas e ainda hoje, depois de sanado, há uma certa discordância, mesmo no interior da família, acerca da(s) causa(s) do nervoso e do que teria produzido a melhora. Os pais de Zelinha (ele, porteiro de edifício; ela, lavadeira e faxineira), personagens de suma importância nesta história, apresentaram desde o início interpretações divergentes sobre as causas e o tipo de tratamento mais adequado. Nei percebia o problema da filha como um caso de 'nervos fracos' e, conseqüentemente, considerava mais indicado o tratamento médico. Clarice, por sua vez, lançou m ã o de diferentes explicações: um feitiço, uma promessa não cumprida, nervos, suas brigas com a filha, e recorreu à casa de umbanda, igreja pentecostal e rezadora. Esta multiplicidade de causas e recursos terapêuticos utilizados e combinados "compõem u m quadro bastante complexo da doença e revelam a existência de u m incessante diálogo entre os diversos participantes na situação de enfermidad e " (Rabelo et al., 1995). O primeiro sinal de problema apresentado por Zelinha foi a movimentação incessante dos dedos. A reação inicial de Clarice foi punir a filha, pois considerava voluntária a gesticulação. Os castigos tinham o objetivo de impor sua vontade à de Zelinha. E m uma fase seguinte, o problema modificou-se, o caso começou a assumir u m contorno eminentemente relacionai, Zelinha não apenas mexia os dedos, como desobedecia, desafiava a mãe, xingava e batia nos irmãos. A intensa agressividade e irritabilidade de Zelinha mostrou que a explicação inicial e a solução pensada para corrigir-lhe o comportamento por meio de aconselhamentos e surras eram insuficiente para dar conta do problema que se agravava. Clarice passou a acreditar que a relação tensa com a filha estava no cerne da perturbação de Zelinha e, assim, optou por trabalhar fora de casa, com a intenção de diminuir parcialmente seu convívio e atenuar os conflitos que, pensava ela, contribuíam para agravar o nervoso. Este afastamento, no entanto, não produziu os resultados esperados: na ausência da mãe, a agressividade de Zelinha voltou-se para os irmãos. Por vezes, ela se mostrou tão violenta que a vizinha mais próxima, Teca, foi chamada a intervir na situação. Atendendo a pressões do marido e aos conselhos de Teca, Clarice voltou a ficar e m casa para melhor controlar (ou tentar controlar) o comportamento da filha. Conhecendo o drama enfrentado pela família, os vizinhos refletem e conversam sobre suas causas. Nessa época circularam na comunidade rumores de que Zelinha teria perdido a virgindade e que o medo de revelar este fato aos pais seria o motivo do seu nervoso. Para responder a tais acusações e certificar-se da virgindade da filha, Clarice pensa e m levá-la ao Instituto Médico Legal para realização de exames. Aconselhada por uma patroa, D. Laura, desiste de tal empreitada. D . Laura, após uma conversa a sós com Zelinha, garantiu que o exame não era necessário e que a garota era ainda virgem. A opinião funcionou como fala autorizada (dada a sua posição social), que conferia legitimidade à posição que os pais e Zelinha pretendiam sustentar perante a opinião dos vizinhos. Clarice: Ave-Maria, não teve patroa minha que eu já trabalhasse que eu não fosse procurar elas. Aí, D. Laura, uma moça que eu trabalhei lá no Júlio César, ela é muito experiente, muito boa comigo, aí ela disse: "não, mande Zelinha aqui que eu vou conversar com ela, D. Clarice, se tiver qualquer coisa eu digo à senhora". Ela foi, levou uns dias lá com ela. Aí ela disse: "não se preocupe que Zelinha é moça, moça, moça". Não levei [ao IML] porque D. Laura tirou da cabeça, mas era pra levar, já tava arrumada pra eu levar a menina, porque um dizia ela não é moça e tá agitada, tá com medo de dizer ao pai, mais à mãe. Se os vizinhos, na presença de Clarice e Nei, renunciaram a duvidar da virgindade de Zelinha, isto não implicava necessariamente que estivessem convencidos. Antes, tal atitude significava que houve u m certo acordo sobre as definições que deveriam ser temporariamente acatadas e sobre a conveniência de se evitar u m conflito aberto acerca do que realmente acontecera. U m exemplo é a posição de Teca, amiga de Clarice: e m conversas informais, na ausência de qualquer membro da família, expressava a opinião de que a causa dos problemas de Zelinha estava relacionada à iniciação da sua vida sexual. N o entanto, e m presença de Clarice, tendia a confirmar e concordar c o m a versão por esta apresentada. Tampouco para Clarice e Nei, apesar da confiança expressa na palavra de D. Laura, a virgindade de Zelinha deixou de suscitar interrogações. Eles continuaram a inquirir a filha sobre o assunto, atitude que a deixava ainda mais perturbada. Só com a confirmação posterior da virgindade da filha na casa de umbanda, para onde Clarice a conduz, o fantasma de sua 'perdição' deixou de assombrar os pais. Zelinha: Pai, ele, sei lá, ele ficava dizendo que, porque eu tinha namorado, aí eu... sempre depois brigava comigo, ele dizia que eu que tinha perdido minha virgindade e tava nervosa, aí eu dizia: "não é nada disso não", eu sei que eu começava a gritar. Quando ele levou na casa de seu Florêncio, ele mermo viu lá, o espírito de seu Florêncio baixou e falou que num era nada daquilo. Além de procurar negar diante dos outros o que considerava u m ataque moral a Zelinha, Clarice tentava também evitar que o rótulo de doente mental fosse atribuído à filha. E m sua narrativa tece uma argumentação para negar que o problema de Zelinha fosse 'de cabeça'. É assim que ela traz à baila a informação de que j á havia visitado u m psiquiatra, sem a presença da filha. Nesse encontro, (. Foi justamente nessa época que ela deixou de freqüentar a escola. à medida que o problema se foi agravando. cansavam de me chamar de maluca. para atender ao marido. Segundo consta. se vê que ela ia ficar com problema. que não sei o que. D e acordo com seu relato.. a ponto de Clarice dizer: Eu pedi a Deus.) Sei lá. Zelinha afirma que a atitude das crianças e dos colegas. Chamava. eu num queria sair. É sumamente importante. Eu disse: "ô meu Deus. por causa da agitação e perturbações de comportamento. Clarice insistentemente usa a palavra do médico. contribuiu para seu crescente isolamento. Aí eu começava a falar: "onde eu achei eu deixei". o médico teria negado que Zelinha tivesse qualquer problema de cabeça. ficava espetando a ponta da . pois. aí foi obrigada a professora a mandar me chamar lá. Clarice.. a consideração de que a filha poderia estar ficando louca tornou-se u m temor crescente. não podia escrever com a mão direita. eu quero que Deus leve que eu me conformo". As crianças na rua chamavam-na de louca. pode ele também ficar. só vivia presa dentro de casa. quando eu passava assim na rua. a resposta da médica foi semelhante àquela obtida na primeira consulta: sua filha não sofria de problema de nervos. né? Zelinha: Os pessoal daí da rua. eu passava. os montes aí começaram a me chamar até de maluca. aí "vai maluca". que eu queria que Deus levasse. sobretudo. ou de doido ou de qualquer coisa. um dia eu pedi a Deus de joelho. Oxente. a decisão de parar de estudar foi motivada. Para afastar a ameaça da loucura. entretanto.intermediado por uma vizinha que trabalhava no consultório. Zelinha: Um bocado de gente.. chegava no colégio. chamando-a de louca. ela ficava desorientada. caderno. que ela ficava na sala só lascando o livro. a idéia de que a aflição por que passava Zelinha não tinha origem nos nervos nem na cabeça. começava a criticar.. dentro do argumento de Clarice. credita o fato ao comportamento da filha na escola e ao aconselhamento da professora: Clarice: Foi. Clarice tem uma conversa sobre o caso c o m a médica que trabalha na creche próxima à sua casa. Assim como eu fiquei doente. era assim pivete veio da rua. Zelinha começou a sofrer uma certa estigmatização por parte da vizinhança. e os colegas da escola costumavam fazer zombarias. eu que era uma pessoa que gostava de sair muito. Algum tempo depois. aqui na rua mermo. minhas colega passava pra me chamar. que eu me conformaria. porque meu jeito de andar. A o longo do processo de adoecimento. o jeito das mão. ficou sem estudar. uma voz autorizada. pela dificuldade de se relacionar com os colegas e lidar c o m o estigma e a rejeição.. Os menino tudo. porque chegava na escola. eu prefiro que se ela ficar com algum problema. não lhe contei? Foi. e não por convicção pessoal. de novo sem a presença de Zelinha. e também. eu já num queria sair mais. um dia de domingo eu tava assim. que fez assim. Zelinha: Graça era da Deus é Amor. Zelinha: Meu pai ficava mandando eu ir direto.. Graça que me falou que eu caí. Lia. Aí ela começou a chamar os meninos à atenção. ele fez uma revelação: "eu gostaria de chamar uma pessoa que tá doente". um pai-de-santo que já havia curado sua cunhada. disse. perdeu o ano.. peguei e fui. (.. Graça. aí furava tudo. Zelinha: Porque esses pessoal começava a mangar de mim e tudo. eu caí e não vi mais nada.... mãe foi lá uma vez e conversou com a professora. mandou eu sair... de alcoolismo. mas eu não me lembrava de nada." E m seguida a essa incursão malograda à igreja Deus é Amor. você que caiu.) Não. que não sei o que. Foi. a freqüentar a igreja Deus é Amor. Nesse período.) Falavam. assim. Aí começou a falar lá. Eu falei: "num vou pregar linha de crente. Graça também não quis me contar. À noite foram à sessão. Clarice tem uma espécie de revelação sobre o tipo de problema da filha. botar óleo de lá dele. aí eu caí. explica em parte essa decisão. que ela não queria mais nem tomar banho. Clarice: Aí.. (. Por outro lado. Aí depois disso. aí quando chegou lá. Chegou lá. de nada que tinha acontecido. Ela desperta um dia decidida a levá-la à casa de umbanda de Florêncio. aí pronto. o pastor pegou em minha cabeça. Zelinha. que essa Graça tinha falado a ele. assim na frente. deixou a igreja. sei lá. depois eu te conto". Porque eu ficava mexendo mais com a mão. "ai meu Deus".. ficava falando um bocado de coisa. quando eu tava na escola. Graça?" Ela disse: "não. aí.) aí começavam a mangar..) O pastor já sabia [que ela estava doente]. e mãe pegou. disse que era pra ela ficar em casa. mas os meninos teimava. que eu já tava com medo dela morrer. que se esses meninos não parasse de mangar de mim que ia me tirar da escola. Zelinha foi convidada por uma vizinha.. eu caí. Parecendo que tinha sido um negócio que. sem saber. até ficar boa. desorientada. ele me chamou assim. e aí pegou e me chamou. não vi mais nada.. Aí a professor mandou me chamar. ele começou a orar em minha cabeça. o abandono da igreja vincula-se à insistência dos membros para que ela entrasse na "lei de crente". O medo de Zelinha.. Nei e sua irmã. eu peguei voltei ao normal. (. Eu falei: "o que foi que aconteceu. me chamavam de doida que não sei o que.. Aí ele pegou começou a orar em minha cabeça. mas o pastor querendo que a gente pregasse a linha de crente. aí ela me levou outro dia. ela ficava deitada de . ela num contou mais não. Pronto. Depois de comparecer a alguns cultos..caneta no caderno. (. Clarice. "eu vou procurar uma casa pra levar essa menina". após u m a manifestação no culto. que ela chega olhava pra mim assim. os movimentos com os dedos. ficava a noite toda zanzando no meio da casa.) Sei lá. rasgando roupa e tudo. vígea. parece lícito supor que. Passou mais. Zelinha: Me senti melhor.) Desse dia pra cá. eu tava me sentindo melhor já.. aliviou. vou levar Zelinha na casa de seu Florêncio". eu disse: "Nei. começava a gritar e dava uma tremedeira na mão. (.. tá entendendo? Eu disse: "ah.)"... domingo eu vou só".). e quanto a este aspecto. mas o nervoso que ela tava. Entretanto.) [O problema da mão] melhorou. completamente... o cabelo lá em cima aparecendo uma maluca. eu disse ali.dia. que ela não ficou respondona nem nada. eu chamava ela atenção. porém. porque.) Aí eu levei um dia de domingo. Veio calma. Após cumprir o tratamento e freqüentar algumas sessões. respondendo não.. ela ficou calma. A causa do problema de Zelinha foi anunciada pelo pai-de-santo: ela pisou e m u m 'despacho' feito para outra pessoa. Aí eu cheguei um dia de domingo. que ela não encarava nem eu (.) Não.. Clarice: [No primeiro dia] já melhorou. Nos outros dias ainda foi melhor ainda. Ele disse: "você quer ir. à época do problema. com o agravamento do caso... haviam-se tornado secundários. O guia incorporado no pai-de-santo garantiu que as desconfianças dos pais em relação à virgindade de Zelinha eram infundadas. dormi como o quê. mas nervosa ainda tava. começava a falar com os outros. Na avaliação de Clarice e da própria Zelinha. fato que foi afirmado com toda ênfase: ela é "vígea.. porque não dormia e comecei a dormir. quando chegou. que eu não dormia não. pois ela era virgem. . eu cheguei por minha conta. Zelinha. disse: "mãe. vígea".. Era uma raiva que ela tinha em mim. também. Aí ficou boa lá. que eu continuei indo.(. Zelinha recobrou a calma. (. não havia uma avaliação muito b e m definida acerca do sucesso do tratamento com o pai-de-santo. Aí pronto. quem não conhece que ela tá?" Aí levei. vá". não melhorou. veio calma. (... Ora. uma vez que os problemas relacionais assumiram o primeiro plano. como ela queria me avançar em mim. conversando. veio calma. não se encerra aqui. falei com o pai. (. assim.. chamada por uma comadre de Clarice. eu vou levar Zelinha na casa de seu Florêncio (. Aí de noite. se hoje parece prevalecer u m acordo entre mãe e filha sobre os benefícios trazidos pela umbanda. ela não respondia mais nem nada. pra sessão na casa de seu Florêncio". dormi como o quê nesse dia. (. me senti melhor. o tratamento na casa de umbanda foi julgado bastante eficaz por Clarice. tirou a bebida dela mesmo.. ela falou. apresentava ainda o problema na mão. a raiva. Recomendou u m tratamento com banhos de folha e sessões de limpeza. os resultados obtidos foram evidentes desde a primeira sessão. pois ao mesmo tempo e m que ia às sessões de umbanda..) Ela disse: "eu vou pra lá. Ele disse: " t á achando que ela tá com problema?" Eu disse: "claro que ela tá. O caso. Que eu tenho uma cunhada que bebia de chamar cachorro tio. Além disso.) Antes. Aí ela pegou.. E m sua narrativa. aí ela pegou me chamou: " v a m ' b o r a menina. ele quer que eu receba. buscando uma outra possibilidade de cura. e não sei nem como foi que aconteceu isso com ela. eu não sei nem como. pra igreja". posto que afirma insistentemente em sua narrativa que as melhoras no c o m p o r t a m e n t o de Zelinha foram visíveis e consideráveis. tal atitude de imparcialidade e mesmo de falta de compromisso com a umbanda não corresponde à imagem . ao mesmo tempo em que não dá mostras de muito entusiasmo com o pentecostalismo: ela conta ter freqüentado um culto apenas uma vez e ter sofrido terrivelmente com uma dor-de-cabeça. Celestina. suposição que não é de todo infundada. aí eu fui uns dois dias com ela. eu j á andei tanto com essa menina. a decisão de abandonar essa agência de cura não se pautou em um descontentamento com a igreja. (..Celestina. um me diz outra. Clarice tende a minimizar o engajamento com a umbanda e afirmar que incentivava igualmente Zelinha a freqüentar a igreja e as sessões. processo que já se vinha d e s e n r o l a n d o há a l g u m t e m p o . declara que a opção pela umbanda foi uma decisão exclusiva da filha.. eu chorava de dia à noite. só p o d e ser a l g u m a coisa. mas foi resultado da pressão do pai-de-santo. desde o primeiro dia na casa de Florêncio. Parece paradoxal que Clarice tenha incentivado a filha a ir à igreja pentecostal. depois parei porque seu Florêncio pediu. comecei a bater. pensando que era alguma mania que ela tava. N e m sei. freqüentou também a igreja Universal do Reino de Deus. em razão da 'zoada'. eu não passo castigo pra meus filho e acontecer uma coisa dessa a s s i m de r e p e n t e . posto que várias vezes Clarice deixa transparecer sua afinidade com a umbanda. Depois que eu vi mesmo que era caso de doença. d e s d e q u e C e l e s t i n a se c o n v e r t e r a ao pentecostalismo. (. ela agora que entrou na linha de crente. Zelinha: Mãe. Talvez possamos compreender esta aparente contradição se levarmos em conta o estado de incerteza e aflição instalado desde o início do problema: Clarice: N ã o sei. por que lá disse uma coisa. conversando o problema com D . segundo Zelinha. Entretanto. sem fazer referência a qualquer tipo de pressão do pai-de-santo.) Não. "meu Deus. uma moça que mora aí embaixo. que a advertia sobre os riscos de seguir linhas tão divergentes de tratamento. né? O episódio da saída de Zelinha da igreja selou a cisão entre Clarice e Celestina. eu comecei a bater. n é ? " A l g u m castigo d e Deus. ela sempre. Além disso. embora só fosse c o m a filha às sessões de umbanda. me chamou pra eu ir. outro diz que é outra. eu disse. parece castigo pra meus filhos.. meu Deus. Celestina interpretou o abandono do tratamento c o m o uma imposição de Clarice. a responsável pela ida de Zelinha à Universal. que quase eu fiquei morta de andar com essa menina e de chorar. fica naquele jogo de empurra. acusa-a de fazer feitiçarias e ter ligações estreitas c o m pais-de-santo (veja e m seguida o caso de Nando. ela ficou boa. Há uma certa controvérsia sobre qual tratamento teria produzido o resultado positivo. A mãe não estava perfeitamente convencida a respeito. boa. inclinava-se a considerar seriamente outra explicação. Nei e alguns vizinhos. poucas pessoas sabem disso. . Fora do círculo familiar. que fora por longo período amiga íntima de Clarice. ciente das acusações de feitiçaria . por sua vez. trouxe de novo as discordâncias: o pai insistia e m que o problema dela era de nervos fracos e que era preciso ir ao médico.. tenta manter e m segredo o tratamento na casa de Florêncio. após o tratamento e m Florêncio e a ida à igreja pentecostal. de que a recaída era u m castigo infligido por Cosme e Damião. por sua vez. eu achei melhora foi quando Zelinha foi pro crente". Damiana. aí essa criatura que rezou disse: "Clarice. entre estas consta Teca. o pai achou que muita gente. a filha ficou "boa. Clarice: Agora eu. Teca? Teca: Eu achei que sim.. boa". Ela disse: "ali. para quem ela estava devendo u m caruru. Clarice atribuía a Florêncio o êxito obtido. eu disse: "por quê?". hoje em dia eu não sinto nada. Zelinha. depois de Zelinha ter sido curada. Clarice. você deve alguma coisa a São Cosme". que ela. depois de curada. Zelinha: Eu fiquei boa mermo na casa de seu Florêncio e lá também na Somed. e especialmente a família de Celestina. filho de Damiana).. Eu sei que ela ficou boa. porque eu fiz a parafina que deu boa. boa. nessa igreja daqui da Santa Cruz. não foi não. boa. mas lembra os efeitos positivos alcançados c o m as sessões de fisioterapia realizadas e m uma clínica. Clarice: O pai já disse: "Clarice. fazem de Clarice. que também acompanha eventualmente Zelinha às sessões e auxilia Clarice na preparação e coleta de ervas para os 'banhos de limpeza'. Aí.que vizinhos. inclusive Teca. interpretação sugerida por uma benzedeira da vizinhança que rezara Zelinha: Clarice: Eu tinha que dar [o caruru]. nessa igreja. Teca? Entrevistador. Eu disse: "eu já achei melhora foi quando Zelinha foi pra Seu Florêncio". graças a Deus. boa. Os vizinhos. você deve um caruru dessa menina?" Aí eu fiquei assim. concordava com a mãe. e m um momento posterior quando. filha de Celestina.que não raro pesam sobre aqueles que freqüentam assiduamente casas de umbanda e candomblé . A volta do problema por u m certo período. ação que se deve realizar longe das vistas de outros vizinhos. tem uma recaída do problema da mão e do nervoso. creditavam a melhora à igreja pentecostal. Diz Clarice que. Você acha que foi a igreja. definição fortemente estigmatizante. eu já sei quem é. Aí não pude dar o caruru. né? Ele diz tudo. porque essa criança anda precisando assim do caruru esse mês de setembro". cuja filha c o m problemas motores. nada. só fez assim dar um toque: "tem um médico. passado 8 dias que eu não dei o caruru.. vítima de paralisia infantil. Uma irmã sugerira que se procurasse este médico. é Dr. de Camaçari. inda hoje eu falei com o pai. eu vou levar Zelinha lá". A o mesmo tempo.) Diz tudo. Ele é médico de espiritismo. sugestões e vozes diferentes. Depois. Clarice: Vou levar ela em Dr. e m meio a uma babel de explicações. O que mandar eu fazer. A o longo do tempo que durou o problema de Zelinha. A o aceitar a explicação oferecida na casa de umbanda . nada. Clarice. tratava-se e m uma clínica fisioterápica. ele conta tudo. a ponto de identificar imediatamente como resultado de problema mental . uma questão se tomou crucial para seus pais. Zelinha foi a u m fisioterapeuta. não tô ciente não. nada. Aí ela disse: "se você deve é bom pagar. Eu disse: "quando ela fizer 16 anos eu dou o caruru". A recomendação também foi feita por Teca. Aí minha filha. (. o pai dela. Clarice planejava levar a filha a u m médico espírita que. Haroldo. 4 mês.. Antes que ela obtivesse o dinheiro necessário para a consulta. ela apresentou [de novo] o problema na mão.. [quando] você receber dinheiro..Aí eu cheguei disse: "eu acho que eu devo um caruru. tudo. Eu vou ajuntar um dinheirinho no fim desse mês e vou lá levar ela. A existência de distintas perspectivas sobre o problema coloca frente ao fato de que as interpretações elaboradas para comportamentos desviantes não são tão fixas. ele conta sem a gente dizer. Nei. Depois de tudo.. corroborada por Teca. tudo. tinha fama de possuir grande poder mediúnico. Zelinha ficou livre do problema na mão. tudo. ela falou. o nervoso esvaneceu-se. Teca: "ah.) Uma irmã minha.u m feitiço dirigido a outra pessoa que acidentalmente atingiu Zelinha . quanto do rótulo de doente mental ou de louca. segundo ela. nada. eu vou trabalhar 2. 3 mês. em Calçada". (. A o recorrer à fisioterapia... nada. mas permanece a controvérsia sobre os tratamentos. particularmente para Clarice: encontrar uma explicação para o problema que comprometesse o mínimo possível a identidade da filha. na forma de especulações sobre a perda da virgindade. muito bom. a fim de assim evitar u m novo reaparecimento do problema. eu disse: "ói. Clarice ainda faz planos de dar u m caruru para pagar a promessa feita aos santos. Acho que eu devo um caruru". tudo. Clarice e Zelinha adotaram uma interpretação que poderia livrá-la tanto dos ataques morais. que fez consulta com ele. a verdadeira razão do problema da filha. O projeto de Clarice era descobrir. mas não me disse onde era. que j á o havia consultado sobre o caso de sua própria filha. Haroldo!" Ε agora eu vou mesmo. É um médium que tem em Calçada. resultantes da paralisia infantil. mas eu faço só pra ver ela boa. intermediada por uma vizinha .. na medida do possível. o discurso de 'autoridades'. o núcleo de pessoas mais próximas do doente procura afirmar e difundir explicações para o problema que minimizem os danos à sua identidade. informações e ajuda para conectá-las c o m instituições médicas ou burocráticas. Assim. b e m c o m o o diálogo estabelecido entre esta e a família. As versões apresentadas são sempre construções negociadas. por u m ângulo. 2 E m sua tentativa de afastar as visões do problema que impliquem danos à identidade da filha.quaisquer sinais comportamentais incomuns. por outro ângulo. por sua vez. atestam não constituir seu caso um problema de cabeça ou de nervos. a utilização de relações próximas para se chegar a alguém que está distante . mesmo sem haver examinado Zelinha. não possuem o mesmo nível de conhecimento dos eventos. seus interlocutores e as informações às quais podem ter acesso. porém. particularmente de sua comadre. N o caso aqui narrado vê-se. que assegura. mediante citações. E m geral. não podemos. vizinhos. Celestina. terapeutas do setor folk e do médico. parentes. Tais vantagens. deixar-nos levar pela idéia de que os únicos a intervir nos casos de enfermidade são as pessoas próximas ao doente. ocupação ainda revestida de uma certa dose de paternalismo. parentes e amigos próximos). colegas. É importante salientar que u m n ú m e r o considerável de mulheres na Baixa da Alegria. vizinho. que enfocam apenas as relações íntimas (cônjuges. pastor etc. pai-de-santo. recémconvertida e fervorosa participante da Igreja Universal do Reino de Deus. à fala de médicos que. que dão sustentação à versão que ela deseja veicular: reporta-se. na definição da situação e escolha de tratamento.c o m o no exemplo da visita de Clarice ao médico. assim c o m o Clarice. Para isto utiliza. Exemplo claro é o fato de Clarice procurar ocultar as visitas de Zelinha à casa de umbanda.). uma certa margem de negociação na atribuição do status de doente. por uma lado. representam apenas u m aspecto da questão. diante de uma platéia pouco disposta a colaborar. tendência presente na maioria dos estudos de redes sociais. portanto. patroas e ex-patroas são solicitadas a se envolverem no problema e m diferentes momentos. Há. para uma consulta informal. trabalha e m empregos domésticos. havendo ainda um . Também recorre à palavra da patroa. ao longo da trajetória de Zelinha. Clarice procura trazer à baila elementos que confirmem a virgindade e a sanidade mental. as informações comunicadas a cada u m deles não são exatamente equivalentes. Se até aqui enfatizamos a participação da rede de vizinhança e parentesco. Estes diferentes atores participantes do processo de definição e construção do problema. contudo. em que há que se levar em conta as visões divergentes de familiares. as pessoas selecionam (e segre¬ gam). nos casos de doença na família é c o m u m que empregadas recebam dos patrões empréstimo de dinheiro. U m a vez que as relações de outros atores com o doente e sua família têm conteúdo e grau de proximidade diferenciados (parente. a virgindade de Zelinha. amigo íntimo. implícita em alguns estudos sobre redes sociais e suporte social. podem realmente funcionar como elemento que introduz alguma dose de tensão nas relações sociais. amigos etc. O que este caso nos mostra é que há desacordo e disputas de interpretação. não raro ocorre que pessoas com problemas mentais sejam seguidas por uma bando de crianças que. mesmo entre pessoas cujas relações são bastante próximas. A reação usual daquele que sofre a perseguição é de agressividade e violência. negociam em que medida suas opiniões devem ser reveladas à família e que decisões apoiar ou não. como tensões. Assim foi com a relação que unia Clarice e Celestina: conforme já explicado. Partir de tal suposição pode implicar negligência para com aspectos relevantes.outro elemento a considerar: utiliza-se estrategicamente a opinião expressa pelo patrão/patroa. deve-se ainda considerar a questão do peso concedido à estrutura nos estudos de redes sociais. podendo resultar até mesmo em ruptura de relações. Isto traz duas conseqüências: primeiramente. hostilidades e disputas presentes no interior das redes sociais. de que não existem conflitos de interesse entre aqueles que apóiam os indivíduos doentes (família. que aparecem no relato de Zelinha acerca das situações em que era atormentada na ma pelas crianças ou em que os colegas de escola caçoavam de seu problema. mas também deixa de lado uma gama de interações que tendem a ser mais claramente hostis. A apreensão da estrutura nos dá apenas a composição da rede em um momento específico. A história de Zelinha parece desafiar a suposição. estudos interessados apenas em explicar a relação entre a estrutura das redes sociais e um certo tipo de tratamento ignoram a utilização de outras formas de terapia. 3 As divergentes visões do problema. para conferir maior legitimidade a afirmações feitas pelos próprios informantes. Estudos em geral assumem (sem muita reflexão) a noção de que as redes sociais altamente interconectadas tendem a construir versões unificadas do problema e a funcionar como grupo de apoio para o doente.) e que todos agem de comum acordo para o bem da pessoa enferma. Os próprios pais têm visões distintas. À luz deste caso. e vizinhos próximos. em coro. que figuram como personagens de importância no decorrer da história. as negociações em torno da interpretações e utilização de tratamento. gritam apelidos e fazem zombarias. Mais do que isso. não atentam para uma série de outras ações que interferem no curso de 4 . tecem seus comentários sobre os problemas. mesmo nas relações de suporte. em geral quando as pessoas chegam ao tratamento médico. oscilam entre diferentes interpretações e avaliações sobre tratamento. modificam suas opiniões. No Nordeste de Amaralina. O enfoque exclusivamente nas relações íntimas não só tende a minimizar as tensões existentes dentro do pequeno núcleo e o suporte advindo de não íntimos (como no caso das patroas). Parece haver uma associação entre a capacidade da rede funcionar como suporte e a existência de um acordo sobre as definições da situação. assim como fala do médico. chamando-a de maluca. esse grito eu acho que tem alguma coisa a ver. provocado por um grito. como era que eu ia lidar. assume significados diversos conforme a perspectiva pela qual ela está narrando a história do filho. A HISTÓRIA DE NANDO 5 Nando tem sete anos e não freqüenta ainda a escola. ligando a história da doença do filho à teia de relações e m que . o menino era perfeitamente normal. Damiana. Começou a ter crises de convulsão com menos de u m ano de idade e apresenta também outros problemas: é agressivo. Esta cena. antes de seu nascimento. por exemplo. grito esse que ele teve convulsão na hora. reside o nó. centrar o estudo na composição estrutural da rede social não dá conta dos processos de reconfiguração da trama de relações sociais que podem ocorrer no decurso de uma trajetória de enfermidade. Estava sendo. narra a cena da primeira crise com detalhes. na rua da Ladeira. aconselhamentos. Quando parte de outro ponto de vista. na mesma área e m que habitam Clarice... embora estejam a esta relacionadas (identificação do problema. Aí. Teca (personagens da história anterior). minha mãe pegou ele e ficou brincando com ele (?). na verdade. porque se não fosse esse grito. esse momento é fundamental na construção narrativa de Damiana acerca do problema do filho. "Foi assim: eu tava lavando roupa. Damiana: Olha. só caminhando pra médico. A minha irmã não chorou de junto de quem bateu.uma enfermidade e que não se resumem à escolha de tratamento. E m segundo lugar. avaliação de tratamento etc. Zelinha. afirma que o próprio susto provocado pelo grito suscitou a doença de Nando. gritou de junto dele. caminhando pra médico. contada mais de uma vez pela mãe. eu não ia saber de nada. veio. criação de rumores. se desencadeou o problema. costuma andar nu e mostra uma atividade sexual exacerbada para sua idade. mas freqüentemente fica ao cuidados da avó e das tias que moram próximas. ele teve convulsão. e eu inocente. Eunice. É neste ponto que. após este grito. Até então.). e onde se localiza a venda de Paraíba. segundo Damiana. pronto. ia ser muito tarde. como se constata mais claramente no caso que se segue. que. de fato. ela assume um ponto de vista do candomblé e atribui o problema de Nando a um 'trabalho'. e nada. Outro momento de importância no desenrolar da história de Nando se passa. Desse dia pra cá. Quando. Julina. sem saber. pronto". De todo modo. Damiana: Este problema dele começou (. Mas eu via. chorou. Nando teve sua primeira convulsão antes mesmo de completar oito meses. Bateram em uma irmã minha. Reside com o pai e a mãe na área próxima do Boqueirão. Esse grito ajudou que eu soubesse. ao mesmo tempo levou-a a notar a tempo sua existência. durante a gestação. quando eu ia saber já era. ficando tarde.). considera que o grito da irmã funcionou como uma espécie de alerta. sua mãe. que lhe atribui grande importância. o maluco. expressando uma opinião corroborada por outros vizinhos. ela mesmo me contava que. ela ficava direto aqui. Nando.. a gravidez é u m ponto fulcral na explicação do problema de Nando.ela estava inserida no período. Damiana reconta a sua gravidez e os episódios e m que esteve envolvida. A visão que a . nós brigava muito. ora outra (omitindo sempre as tentativas de aborto) . Bebia de fazer. quer dizer que não..) remédio [para abortar] tão forte que ele é doente.. eu tive uma péssima gravidez mesmo. e constrói um quadro de relações que é fundamental para compreender e dar sentido ao problema do filho. sai na criança. aliadas às dificuldades de relacionamento existentes entre ela e o companheiro.. pra matar a criança. sabe? Ela tomou muito remédio. não. Lula veio pra mim de um pontapé na minha barriga. sai mais. Foi por causa do remédio. aí me livrei desse pontapé. Aí ele enraivava ela. tá entendendo? Andava todo mundo de mau. localiza também na gravidez de sua amiga a origem do problema.. guaraná e tudo. Quer seja especulando sobre as explicações médicas . Segundo ela. eu bebia muito. né? Aí só pode ter sido isso. as verdadeiras causas da doença do menino foram as tentativas de aborto praticadas por Damiana. quando eu estava grávida dele... Era: eu mais minha família era todo mundo de mal. completamente doente da cabeça. É. era batida. assim como outros vizinhos. (..) Me lembro que. que desde pequeno que ele se assustava. Damiana: Começando pela gravidez dele. quer seja argumentando a favor da explicação encontrada pela mãe-de-santo . ela com um barrigão.. muita raiva que o marido dela era. Entendeu? Eu acho que ela. cerveja. Qualquer que seja a visão proposta (um feitiço. que nesse tempo eu vendia cerveja. assim: conhaque. e eles bebia aqui como quê. momento para ela particularmente difícil. de chamar cachorro de filho. e nisso eu não tinha como uma pessoa pra me conversar sobre. Clarice. Não. Eu mais meu marido.... Paraíba: Quando não perde [o filho] só cria problema (.o médico sugere que a origem do problema possa ligar-se à gravidez e ao parto .) Ela tomou muito remédio pra evitar. fim-de-semana.u m feitiço dirigido contra a m ã e que atingiu o filho ainda e m seu ventre . tá entendendo? (. sobre o problema entre eu e meu marido. Mas era fim-desemana. (. como é o nome dele. e nisso nós brigava demais.. de tanta raiva do que o marido fazia. a gravidez. Quantidade forte de remédio que a mãe tomou. Aí eu acho que ele já nasceu com esse problema. Só vive de remédio. por sua vez. que chegou ao extremo de espancá-la durante a gestação de Nando.) ali era briga feia mesmo. D a m i a n a sempre remete a explicação d o problema ao período da gravidez. as discussões com o marido e os problemas de família. Clarice: Ela tomou muito remédio pra matar ele.. essa época eu não se unia direito mais minha família.. nós discutia muito... o grito da irmã) e Damiana enuncia ora uma. que prescrevesse os mesmos medicamentos. a receitar medicamentos para o 'problema de foco'. u m a vez que. Este não se teria limitado. ao receber a receita que indicava a dosagem de 25 gotas de Gardenal. Aconselhada por uma pessoa da vizinhança. Damiana relata uma seqüência de tentativas de resolução do problema dentro do setor profissional. pois a consulta era paga. Haroldo. atendendo durante anos um mesmo paciente. optando por j o gar fora os remédios e abandonar a medicina. Critica também o que ela julga ser uma certa negligência do médico. não levou o filho a novas consultas. Para isso. Por isso. Damiana decidiu não seguir n e m uma nem outra recomendação. atualmente membros da Igreja Universal do Reino de Deus. que resulta de intervenção alheia (feitiço). Insatisfeita c o m o tratamento recebido dos médicos. que atendia alguns dias na semana e m u m consultório no bairro. não podia ter uma avaliação correta do desenvolvimento do problema. ela solicitava a u m médico (também espírita). Damiana lembra também . de modo que ela se viu obrigada a procurar o médico mais uma vez. mas não deixou de tecer críticas ao atendimento: incomodava-lhe a impessoalidade do médico. onde foi melhor tratada. por duas vezes. mas como o menino j á não estava manifestando o problema. nem manifestou qualquer menção de fazê-lo. prevendo que por volta dos sete anos Nando estaria curado e poderia deixar de tomar os remédios. Na narrativa. Desde que o problema de Nando principiou. e irmãs. argumenta. que a teria tratado rispidamente e m razão do choro excessivo de Nando. ela expressa ressentimento e desconfiança c o m relação ao primeiro médico consultado. o médico jamais modificou a medicação prescrita pelo médico espírita. que teria confirmado a suspeita de que tal dosagem era demasiada para uma criança pequena. Damiana não pôde continuar o tratamento com este médico. ela o levou a u m pronto-socorro. resolveu não seguir a recomendação e foi e m busca de outro médico. Damiana tem seguido tratamento médico e. passou a levar Nando a uma outra clínica neurológica. as crises voltaram ainda mais fortes. que. Celestina. ou das dificuldades relativas ao parto e à gravidez. considera. E m uma fase posterior. Haroldo (o mesmo que Clarice pensava e m consultar sobre o caso de Zelinha). Dr. mas sempre afasta de si a responsabilidade pela aflição do filho. ora a uma doença física. j á procurou casas de mãe-de-santo. diz.mãe tenta projetar deste momento liga-se bastante à necessidade de se eximir da culpa pela origem do problema. também j á levaram o menino para receber as orações da igreja. Durante um certo tempo. Contudo. que não solicitava regularmente a realização de novos exames para a criança e. não recebeu atendimento e foi encaminhado a u m clínica neurológica. n e m a falhas e m seu desempenho no papel de mãe. como os outros. foi a um médico espírita. Sua mãe. recomendando a administração de apenas quatro ou cinco gotas a cada vez. Logo que Nando apresentou a primeira crise de convulsão. ao contrário. tendo e m mãos a receita de Dr. mantém para c o m ele uma relação distante. portanto. Além disso. Damiana argumenta que a doença não se deve à falta de cuidado. atribui a responsabilidade ora a Clarice. e nisso eu tô até hoje com esse médico. A maneira como interpreta o problema do filho não parece compatível com a visão que tem do hospital psiquiátrico. que ele mudava o remédio. de modo mais eficaz. três anos à frente. não era o local mais adequado para tratar seu filho. como afirmam os médicos.) u m a médica que m e encaminhou pro Martagão. ao passo que a médica que o tratava no momento adiava sua alta para. Em uma das clínicas percorridas. rasguei e joguei fora. eu não ia ter condições de todo mês tá pagando pra ir pegar a receita. j á esse me disse que de dez a doze anos pra lá. m e encaminhou para o Juliano. pelo menos. ela. se o menino j á tem trauma.. apenas duas vezes ao dia. Haroldo me disse que de sete a oito anos ele ia ficar bom. no Juliano só quem vai lá é maluco.. mas como eu falei. Peguei o papel. em que só vivem os loucos. Enquanto narra percurso de Nando nas agências da medicina profissional..idade de Nando à época da entrevista . uma médica teria encaminhado Nando para continuar o tratamento no Juliano Moreira. Assim. mas. concluiu que tal instituição. foi ele que me passou... em certo sentido. o hospital psiquiátrico mais conhecido da cidade. e eu peço a ele pra mudar o remédio. ao invés de três). (.. Dr. não administrava o remédio exatamente como prescrito (por exemplo. normalmente. Porque quem m e passou esse foi um médico lá em Calçada. (. Que eu não parasse o medicamento dele não. preocupação constante de várias mães cujos filhos sofrem de problemas mentais. Impressionada com as histórias que ouvia sobre o hospital e as formas como os pacientes eram ali tratados (uso de choques elétricos e camisasde-força). e ele só vai ficar bom c o m esse remédio. A í o Dr.) O pessoal ficou dizendo: "ah. é porque na verdade seu problema não é loucura. Damiana: Na última vez que eu fui. Damiana: (. Haroldo é particular. Argumentando contra pessoas da vizinhança que insistem em chamar seu filho de louco.. A rejeição a seguir tratamento em um hospital psiquiátrico vincula-se.). não sei o quê (. fiquei com medo que o pessoal disse que ia dar choque elétrico no menino. ela usa a definição médica do problema para legitimar sua posição perante os vizinhos e conseguir.." Eu parei porque eu achava que no Juliano só tinha maluco. Haroldo. e ele diz que não vai porque ele não baba. pra nada. Damiana revela que nunca é completamente obediente às recomendações médicas: já passou períodos sem dar o medicamento e. 'foco'.que o médico espírita havia prognosticado uma melhora quando o menino estivesse com sete anos . ela diz que loucos vivem nos hospícios e. à tentativa de afastar do filho o rótulo de 'maluco' ou 'louco'. Eu disse: "poxa. afastar de Nando o estigma da loucura. Mais uma vez. se nenhum médico até hoje recomendou que Nando fosse internado. foi Dr. minha médica. Damiana decidiu não se deixar guiar pela orientação profissional. Se ele babasse.) porque esse médico deveria ter mudado j á esse remédio.. então lá eu não vou". ainda que no íntimo não esteja 6 . . U m a segunda fonte de desagrado para Damiana diz respeito ao próprio tratamento prescrito por Eremita. além do 'foco'. Porque ele não é normal mesmo.. os quais posteriormente deveriam ser dados c o m o alimentação aos cães. Joga muita pedra nas crianças. (. ele já tinha internado ele. de modo que se recusou a levar adiante o tratamento recomendado. né? Quando ele dá essas crise. havendo identificado u m exu nas costas do menino. não sabe? Desde pequenininho ele é assim. né? Além de contar seu percurso no setor profissional. apontam insistentemente para a 'anormalidade' de Nando e sugerem que a internação poderia ser a melhor solução para o problema. Os vizinhos. D e acordo c o m o relato desta última. Ela não interna por causa disso.. não tava assim.) Acho que ele nasceu assim. Maluco. Não teve solução nenhuma. assim. Também. (. Ora.. É mãe.. Ele corre na frente de carro. Damiana foi a uma casa de umbanda no mesmo bairro em que mora. Ter foco não é maluco. mas ele não precisa. mas à época era rezadeira e mantinha relações bastante estreitas com o candomblé. se ele fosse um maluco. que ele anda na rua correndo. (. e não para ser aplicada a uma criança. ela fica doidinha. (. ela fica doidinha quando ele está atacado.) chamando meu filho de maluco. Deve ser nascimento. A visita foi recomendada por sua própria mãe. maluco. não possuir muito poder mediúnico... o médico passou pra internar ele. Clarice: O médico mandou internar. Tanto aqui quanto na recusa e m levar N a n d o ao hospital. mas até hoje não teve solução. recomendou-lhe que desse u m banho de creolina e passasse pedaços de carne no corpo do filho. de jeito nenhum. atestando. nas casas..) Mas ele é muito apegado a ela. ela que não interna.) Ela achou muito conselho pra internar. a começar pelo fato de que a mãe-de-santo não descobriu nada e fez perguntas demais. que. A primeira vez que recorreu a uma mãe-de-santo. né? Eu acho que não tem nenhum. ele corre na frente de nada.. Damiana nega-se a seguir u m tratamento que ameace a identidade d o filho .. segundo afirm a m Clarice e a própria Damiana.) Só esse problema. Damiana relata também as experiências realizadas em agências religiosas de cura: e m uma casa de umbanda e outra de candomblé.perfeitamente convencida do diagnóstico médico e que acredite na existência de uma outra razão (de natureza espiritual) para os problemas de seu filho. tal visita não lhe causou boa impressão. eu não gosto. (. mas ela não interna. Ε uma pessoa dessa que tem que ser internada. assim. graças a Deus. Eunice: Eu acho que ele não é certo.) Ε eu sei que ele não é mesmo. só basta dizer. Celestina. que hoje é pentecostal. vive na rua sempre sem roupa. por sua vez... creolina é substância para tratar animal. logo na primeira consulta. para Damiana. Julina: A mãe dele desde pequeno que encaminha ele ao médico. não.. Damiana: Eu não gosto de ficar amigo (. né? Se ele precisasse de internamente. ) Vinha com um saco de roupa na cabeça. e por isso que eu não deixo ela de jeito nenhum. uma criança ainda muito frágil. condição que seria posta e m questão seja e m sua identificação c o m u m louco. ela foi. soube a verdadeira causa do problema de Nando. eu só andava com ele aqui ó. uma amiga (com quem hoje está rompida) que lhe conduziu a uma casa de candomblé e m Cachoeira. e m sua companhia. né. por meio de várias fontes. consultou seu marido sobre a conveniência ou não de firmar esta amizade. Tá entendendo? Foi. Damiana não procurou nenhuma outra casa de culto até encontrar Cleuza. de encontrar essa pessoa maravilhosa que é Cleuza. Na hora do meu desespero foi eu que encontrei essa criatura. Aí eu encontrei com ela. tudo que ela pode. como eu dou. ao contrário da primeira. a outra mão com Qboa. com a outra mão. como se observa nas seguintes citações: Damiana: Eu andava parecendo uma louca. era Nando. ela parou. sabão. procurou tamb é m pessoas da vizinhança para obter informações sobre o caráter da nova amiga. uma mão cheia. seja e m u m a aproximação à condição de animal.. (. Através dessa pessoa é que eu tô vendo o meu filho ficar bom. quem me encontrasse na ma ia me dizer que era meu marido que me espancava. e verificar alguns sinais de melhora e m Nando c o m os banhos e rezas feitos por Cleuza. porque ele. você sabe o que é uma louca? Eu andava. Só lá. tá entendendo? (. uma pequena cidade próxima a Salvador.. ela diz. essas coisa assim. dei graças a Deus. e Nando querendo que eu botasse ele aqui. eu andava toda rasgada. como no caso de Clarice. Eu prendia uma perna dele debaixo desse braço. à casa da mãe-de-santo. me olhando. não. o rosto. com um outro saco de merenda. me perguntou o que é que era que ele tinha.. mas potencialmente normal). conforme relata. Após checar.) Eu dizia: "ih. para não se ver de novo. . Aí ela disse: "nervo?" Aí parou e ficou assim.como pessoa (criança doente. dividida entre a lealdade ao marido ou à amiga. mas nesse dia eu não podia fazer isso porque eu não podia pegar peso também. ele tem poblema de nervo. Nesta casa. ela tá me ajudando. Damiana conta que antes de resolver seguir os conselhos de Cleuza quanto ao tratamento. a mãe-de-santo. Sem objeções da parte do marido.. Vale salientar que a amizade entre Cleuza e Damiana iniciou-se e m u m momento de particular aflição para esta última e fortaleceu-se à proporção que Cleuza funcionava como apoio para lidar c o m o problema de Nando. o cabelo andava lá em cima. Damiana: Aí. não fez perguntas e mostrou-se capaz de decifrar toda a verdade: a melhor amiga na época da gravidez tinha feito u m trabalho para ela que acabou por atingir seu filho. eu não quero irritar ele também". prendia a outra aqui e segurava na mão aqui. famosa por seus terreiros de candomblé. Após esta tentativa na casa de umbanda. quando ele dava os problema dele. Ε que tá me ajudando. não fala? Damiana: "Ôi. se eu não sentia dor na perna. se eu não me lembrava o que tinha acontecido comigo. foi esse problema de Nando. Ela era muito chegada aqui. A explicação foi oferecida e aceita. e aí ela me falou. eu. Clarice. Ela falou comigo e eu nem me lembrava disso. eu andei com ela como quê. eu senti a barriga dura. Aí ela me falou que isso foi a bebida. mãe de Damiana. j á narrados. que ela [Eremita] não sabia. foi. né? Agora está mais afastado um pouco. quando eu tinha menino. eu acho que nem as próprias filhas dela faz (. ôi. Usa. não eu. Ε traz à baila também outro motivo de ressentimento para com a amiga: no período de resguardo. (. eles. eu também. me deram uma bebida e antes eu bebia (. eu ia levar ela. ela que me disse... Do que eu fiz com ela. Quando eu tinha menino. após o nascimento de Nando. contudo não atribui o rompimento à quebra de reciprocidade. Eu fiquei a mesma coisa. quando ela tinha menino. entendeu. Aí ela me falou que o problema de Nando.) me disse que começou por isso aí. Nada mesmo. Ε aí.) No primeiro dia ela só fez me dizer. Ele aí disse: "peixe morre pela boca. tudo bom". a amiga não correspondeu às expectativas. Não senti nada na hora.. Por exemplo. ela ia me levar.) Entrevistador.Damiana: Lá onde estou. Clarice: Não por causa que. aí ela me falando. Ε isso foi com tudo provocado. aí meu marido me disse: "mulé. ele é o tipo de pessoa assim. gostei [da casa de Cachoeira]. Não conheci a ela nada. . Então esse problema de Zelinha. cada qual voltada para a resolução dos problemas de seus filhos. Seguindo as pistas da mãe-de-santo.. Você ainda fala com ela hoje.. Coisas que eu não sabia. que [o menino] ficou sem bulir na barriga. batizou a minha filha mais velha. essa criatura me mandou um copo de batida. tudo isso eu falei com ela. se ele cismar. que é minha irmã. aparecendo. ocasionando a ruptura entre Celestina. e Clarice. Damiana: Quanto que eu ajudei. se eu não me lembrava que eu tinha pedido um copo de batida.) nesse dia. percebe que a amizade já não é a mesma. senti uma dor nessa perna (. Para esta. pronto acabou-se. motivo de briga entre ela e o marido... não beba". tô vendo muita coisa. com problemas mais graves.. tá entendendo? Dor na perna..) Bom. mas ao agravamento do problema de Nando e aos problemas de Zelinha. mas eu senti que eles ficava assim. eu realmente tava. vou beber". Eu aqui disse: "Ó rapaz. passei a saber. ela tomava conta do meu barraco e dava conta.. ausentando-se e m uma situação em que precisava de apoio. eu te juro.. foi nessa gravidez que eu. tais acontecimentos concorrentes contribuíram para distanciar as amigas. Damiana recorda o vínculo estreito que havia entre as duas e lamenta não ter recebido retribuição de uma pessoa a quem sempre foi dedicada. por isso que eu te digo.. com esse menino... por sua vez. (. né? Então nós nunca teve uma separação." Ε ele disse isso porque ele tava desconfiando com todo mundo. porque isso aí foi gravidez minha. Caso de doença mesmo. Damiana lembrou-se da bebida oferecida por Clarice durante a gravidez. e m que contava com Clarice para ajudá-la na lida com a casa e a criança pequena. imagine se eu fizer o trabalho? Porque de tudo na vida a gente tem de acreditar e confiar.saiu nu. Não fiz o trabalho ainda.. uma criança normal vai fazer isso? . (. que possibilita que se chame Nando de maluco na vizinhança. porque é uma coisa triste. quando eu for pra clínica agora. como eu estou cuidando.desencorajouas a levá-lo mais uma vez sem a cooperação de Damiana.. Mas de todo jeito. e depois dizia assim: "ah! vai voltar o poblema e aí você não fez o exame". olhe. Segundo Damiana. o comentário é esse: "o que é que tá havendo.A amizade c o m Clarice j á não existe. fato que desagrada profundamente a Damiana. somente c o m as rezas e os banhos. m a s seria n e c e s s á r i o q u e a m ã e t a m b é m se c o n v e r t e s s e p a r a q u e as orações surtissem efeito. D e todo modo. tá bom. Damiana permaneceu durante certo tempo intimamente ligada a Cleuza. enfim. Ε se eu fizesse o trabalho.. A questão seria conseguir os recursos para fazer o trabalho . Damiana: À vista do que ele era. tá entendendo? Então eu quero fazer exame dele novamente. pois Damiana acredita que ela lançou u m mal contra seu filho. e aí me acusar de alguma coisa. ela saiu e não fez o exame do menino". e ela sempre omitia o tratamento que vinha realizando com Cleuza. olhe."Não sei. só fiz só a reza. Damiana: Dou ainda o remédio. né? Porque com a reza ele já tá desse jeito. porque ainda não fiz o exame. pra o médico aqui me dar alta. Para o ramo pentecostal da família. Deus é que sabe.. Damiana sentia-se segura de que. os vizinhos também notavam as mudanças ocorridas. já acho que ele tava bem melhor. é problema da cabeça. ela. que está aí vestido agora?" "Menina.dispendioso recomendado pela mãe-de-santo. loucura. eu não. Sei lá. Clarice: Não gosto nem de dizer que ninguém é louco." Nando também j á foi levado pelas tias à igreja pentecostal. que esse menino não tá mais aquele menino que andava só agredindo as pessoas. a quem recorria sempre e m busca de amparo e durante o tratamento no candomblé.. freqüentemente requisitada a mediar os problemas causados pelo filho. Havendo rompido com Clarice. Damiana: Todo mundo. Eu tenho certeza de que. é e v i d e n t e q u e ele "tem algum demônio". É justamente o comportamento apresentado na igreja. intenção que não foi levada adiante. o remédio do médico a ele. mas seu comportamento na igreja . comprovar a melhora que já percebia no comportamento do filho. além da agressividade e do excessivo interesse sexual. correndo e gritando entre os fiéis .. o que é que tá havendo. como seu marido sempre suspeitara. Nando j á havia mostrado sinais de melhora. não interrompia o uso dos remédios apenas porque esperava o atendimento e a requisição de u m novo exame para.) Ele pega a pinta. ele vai me dar alta. batendo em um e no outro?" . eu vou te dizer. uma criança normal não faz o que ele faz. né? Mas o problema dele deve ser a. Pra não dizer assim: "ah. Aí eu já eu tô mais aliviada da parte da medicina e vou cuidar do outro lado. A exigência de atenção constante e as preocupações causadas por Nando têm levado Damiana a acreditar que ela mesma se encontra doente. malmente a portinhola aberta.) sai correndo.Olhe. (. que ela reconhecera no comportamento da amiga. Damiana se queixa de não poder trabalhar para ajudar o marido a construir uma casa. ele brincar. Por outro lado. deve redobrar a atenção com o filho. porque de criança a adulto. Damiana inclui também Clarice.) Tenho que lidar com ele o dia-a-dia dentro de casa. então eu prefiro ficar no meu cantinho. um afastamento de Damiana c o m relação à vizinhança. "para não ter aborrecimentos". sempre chama ele de maluco. Bate nas outras crianças. pois eles agora têm algo para se solidarizar. amiga c o m q u e m costumava ter grande intimidade. ele pega a pintinha dele e deixa desse tamanho e fica enfiando nos buracos da parede! Ó pra isso.. N o grupo de pessoas com quem ela hoje mantém relações apenas superficiais ou de uma hostilidade dissimulada. ao passo que ela e seu filho passam a encarnar o papel de vítimas. (. é jogando pedra. ela não o faz apenas porque a possibilidade do feitiço é parte de seu repertório de crenças. segundo ela. com u m 'trauma'.. mas na casa de pessoas nenhuma eu vou. Porque tudo isso esse menino faz. era apenas dissimulação.. A doença do menino produziu ainda outros impactos e m sua vida: apesar da relação c o m a marido ter melhorado e se fortalecido depois do problema do filho. evita contatos com pessoas que vivem nas redondezas. Damiana: As pessoas falam muito e eu fiquei um pouco parada. Quando aceita a explicação encontrada na casa de candomblé. Eu não gosto disso. encontra tudo lá em casa fechado. As atitudes de Clarice para c o m Nando. ou jogar pedra. ou bater. Uma criança normal vai fazer uma coisa dessa? Você acha? Julina: Eu não vejo. pois os vizinhos..) Porque lá no lugar que eu moro. ele procura logo ou beliscar. levam Damiana a reavaliar sua amizade. aliadas a outras circunstâncias. Se você for lá em casa. mas porque certos elementos presentes e m sua situação permitiram-na encaixar facilmente a figura de Clarice na pele do inimigo oculto. como j á foi dito. julgando agora que a solidariedade. principalmente aonde eu moro. O problema do filho produz. converso com todo mundo. para se resguardar de atritos com os vizinhos. em certo sentido. Quando ele começa a brincar com as crianças. com base nas pistas fornecidas pela mãe-desanto. . só confiando na mãe e nas irmãs para dele cuidar e m sua ausência. Além disso.. assim. quieta. pra lhe ser sincera. Eunice: (. de andar conversando com as pessoas. é empurrando os outros. a gente vê que não é normal.. não compreendem as atitudes de Nando e insistem e m chamá-lo de louco. como a hostilidade manifesta entre Clarice e o marido e o esfriamento da ligação desta c o m sua família. Por u m lado. concomitantemente. envolvem-se múltiplos aspectos: Cleuza reza o menino. sabia? (. A relação que Damiana construiu c o m Cleuza se sustenta. abandonou o tratamento no candomblé e. é na amizade c o m Cleuza que Damiana encontra conforto emocional para as suas aflições: Damiana: Sempre eu tô ali [em casa de Cleuza]. Me sinto bem. Desde que eu conheci essa criatura. Eu quero dar o meu grito de vitória oculto. N o entanto. Pra não fazer . meu marido e ela sabendo. se eu pudesse. pra mim parece que não existe poblema. Por outro lado. Então. e depois que eu pari.Contudo. A época do resguardo é para as mulheres u m tempo e m que se encontram particularmente fragilizadas e necessitando da solidariedade de parentes e amigas. Por fim. converteu-se ao pentecostalismo como as demais mulheres de sua família. nem em casa eu ia.) Quando eu tive minha menina. Ó só eu. quando eu chego em casa. O único ponto certo de você me achar é aqui. no apoio oferecido no tratamento de Nando. temia-se que Clarice tomasse conhecimento das visitas à mãe-de-santo e tentasse impedir. produzem u m efeito imediato d e melhora e m seu estado. seria uma retribuição a todo o cuidado que ela dedicara a Nando. Cleuza: Eu que levei [Damiana na casa de candomblé]. mas também contribui. O tratamento realizado na casa de candomblé consistia e m u m segredo mantido entre Damiana e Cleuza e as unia. Agora. por meios mágicos. intermedeia a relação com a casa da mãe-de-santo. não vá. se eu disser agora. convertida ao pentecostalismo: Damiana: Não. contava c o m ajuda da amiga para cuidar da casa e das outras crianças. Damiana ocultava esta informação da família. N o caso de Cleuza. Nesta ligação. as outras pessoas pode saber. fazendo minhas coisa. Esta. Esta seqüência de mudança de religião e desligamento de u m laço íntimo parece reproduzir u m tipo de ruptura semelhante à que ocorreu entre Clarice e a família de Celestina e Damiana. Depois de u m certo tempo contando c o m sua ajuda. o problema de Nando não suscita apenas a ruptura de laços sociais. receita banhos que. ela não veio mais aqui. que não sei o quê". onde se dá u m tratamento que reaviva e m Damiana a esperança de alcançar a cura para o filho. além de fornecer uma explicação aceitável para seu problema. se eu pudesse. ai meu Deus. tá entendendo? Porque. e m grande medida. para a formação de novas alianças. rompeu relações c o m a pessoa que lhe guiara à casa-de-santo. Mas não agora. aí. Damiana manteve-se distante. que não t e m familiares a quem possa recorrer. me sinto a minha mente aliviada. o êxito do tratamento. ela era minha amiga.. por conseguinte. o apoio de sua melhor amiga era considerado essencial. e vão me dar conselho: "ah. Damiana subitamente rompeu a amizade c o m Cleuza. segundo Damiana. eu prefiro ficar calada.. encontrando-se no período pós-parto. Ε Damiana agora ficou de mal comigo. eu não saía daqui. (. Ele tá pior. menina.nada pra mim. o que que eu posso fazer? Não posso fazer nada mais. podemos observar que não está e m j o g o apenas a escolha de tratamentos. a formação de novas redes de relações. agora só vou fazer por mim. mostra que a mãe de família desempenha u m papel fundamental não apenas quando se trata de casos de crianças pequenas. ocorrem reavaliações contínuas do problema. Devemos atentar igualmente para a importância de considerarmos as histórias de doença e m seu percurso temporal.. por sua vez.. Quando eu tenho meus problema. e m grande medida. o desenrolar de u m problema traz também u m outro tipo de impacto sobre as redes sociais: relações são desfeitas ou ressignificadas. que passam por transformações à medida que os problemas assumem novas configurações. . revela que as redes. Como ela não cuidou do menino. a partir do qual as relações se irradiam. Por outro lado. ela não quis. (. o caso seguinte. Ainda u m outro aspecto merece ser mencionado. entretanto. que ele não fica bom mais. b e m como o de Zelinha. e sua falta pode significar uma perda considerável. ele tá cada vez pior. Este caso. Ademais. Os estudos tradicionais sobre redes sociais tendem a situar no ponto central. sobre causas.. Ela pode ir pra onde for. Isto aponta para uma concepção de redes sociais c o m o realidades dinâmicas.. mas também a própria identidade daquele que sofre de problema mental. Evidentemente se pode argumentar que tanto Zelinha quanto Nando são jovens demais para terem construído a sua própria rede de relações. e m que diferentes tipos de tratamento e agências terapêuticas se sucedem. para o fato de que a existência de u m alto grau de interconexão e m uma rede social não implica necessariamente consenso acerca do problema. mas ela não quer nada. reduzir a análise de rede social ao e x a m e da estrutura que esta assume e m u m d e t e r m i n a d o ponto de uma trajetória significa deixar fora do campo de visibilidade as transformações nas configurações da rede social. centram-se na mãe. quem resolve sou eu.) Eu disse [que ela devia ir numa casa de candomblé]..) Depois que ela entrou pra lei de crente.. prognósticos etc. Mas só isso que eu posso fazer. Esse menino não vai ficar bom não. (. A o longo de uma trajetória d e doença. Semana passada pegou uma frasqueira de doce de tamarino e jogou toda fora. muitas das quais relacionadas aos desdobramentos do próprio curso da doença. que sustentam as novas visões e interpretações da situação. mas ela não quis nada. eu vejo que ele não ficou bom. A visão de Cleuza sobre o estado atual de Nando. a pessoa doente que busca tratamento.. Cada um que faça por si. eu quis ajudar. sem dúvida. nunca mais eu vi.. é bastante pessimista: Cleuza: Porque ele passa aí. Essas mudanças implicam. assim como a de Zelinha.) Fui três vez com ela [na casa da mãe-de-santo]. A história de Nando chama a atenção. Assim. . apesar de prostituta. Posteriormente. eu digo que não é [maluca]. então não é maluca. o luxo das roupas e calçados. Aí ela foi parar no Juliano [hospital psiquiátrico].. Mas. cabelo cortado. "carros e mais carros paravam na porta dela". Jaci viveu. foi só dessa vez.A HISTÓRIA DE JACI Jaci é uma mulher de meia-idade. Jaci não é louca na opinião dos vizinhos: ela teve uma vida difícil.) Ela bebe de todos os dias. como não convivia com a família. bebida e drogas. (. é uma pessoa nervosa.) Ela fala tudo normal. Ela era uma espécie de rainha d o local.. (. depois eu digo não é maluca. as festas e feijoadas memoráveis.) Ela se sentiu nervosa. A gente achou que ela estava com problema de cabeça. há alguns anos. quebrou as coisas e m casa.) É normal. Julina: Às vezes ela.. Agora.. era querida pelos vizinhos porque. não pode passar ninguém. ela não pára de beber. É nervoso. o grande número de clientes. tem a face inchada e algumas marcas visíveis do consumo excessivo de álcool. os vizinhos recorreram à polícia para levá-la ao hospital. é o problema da bebida. Trata-se da herança dos tempos e m que era uma prostituta cobiçada por muitos homens. os grandes e pesados móveis de jacarandá. E. ela ainda enfrentou a polícia. "ela sumia três dias quando aparecia era c o m uma kombi cheia de comida".. Mas ela queria correr. (.. magra. Só foi dessa vez que ela deu essa crise. u m episódio de 'loucura': corria pela rua.. ninguém conseguia segurá-la. que ela pega joga garrafa. depois o pessoal disse que não foi. ainda. Eunice: Ela dá um acesso assim: começa a quebrar as coisas dentro de casa. onde ficou alguns dias internada. Todas as referências são marcadas pelo excesso: sua beleza. branca.. ao contrário da maioria das mulheres que encontramos na Baixa da Alegria. sabe? Queria correr. alegre. entendeu? Porque se sabe de tudo que acontece. de vez em quando. depois foi embora. problemas c o m homens. rica. Também não deu mais. Passou uns dias lá. tem problema de cabeça e bebe demais. que a gente teve que chamar até a polícia para pegar ela. Apesar da hospitalização. bonita. batom nos lábios. tornou-se agressiva e. E m contraste c o m sua vida atual. e desfila com u m certo charme (quando não alcoolizada demais) pelas ruas do Nordeste. tudo do que se passa. acontece isso.. (. ela sabe depois.) Eu não acho.. sempre por períodos curtos. voltou algumas vezes ao hospital. tem hora que eu digo é maluca.. narra-se o passado de Jaci como uma época gloriosa. mas ainda lhe resta algum 'juízo'. igual à gente. aí a gente leva e interna. né? (. a fartura que reinava e m casa. não . só que ela.. Outro dia mesmo ela ficou muito doente. sua aparência evidencia uma certa preocupação c o m a beleza: mantém a sobrancelha depilada... então. Queria correr. mesmo exercendo uma profissão moralmente condenável.. Segundo contam Clarice e Teca. se empolgou com o cara.. realizando todas as vontades da filha. por sua vez.. que rezava. Esse problema. a filha não dá sinais de afeição e parece manter sentimentos bastante hostis e m relação a Jaci.ameaçava as outras mulheres da área. sempre mostrou respeito à família e era u m a filha exemplar. apaixonada. aí apareceu esse cara. e a 'fraqueza' acaba por atingir o juízo.. Nem o ex-companheiro nem a filha procuram Jaci. os vizinho entrava no meio. e isso atraiu uma coisa com outra pra dar o problema da cabeça dela. o cara foi embora. o envolvimento c o m ' u m bando de marginais' é u m dos episódios mais importantes. Tudo começa a ruir na vida de Jaci a partir da morte da mãe. justificava ela. e ainda juntou os problema dos ladrão tudo que invadiu a casa dela pra morar junto com ela. ela foi se desgostando. chegando à adolescência.. Ε ela não podia gritar e nem falar muito alto. Jaci tinha alguns problemas: as três (Jaci. Hoje. quando pensou que não. que vivia na casa do padre. Chorava de dia à noite. N a visão dos vizinhos. Daí ela pensou que a vida dela melhorou. a quem sustentava. "tudo que ela sonhasse a mãe fazia". não queria comer.) Então ela. piorou. que a mãe rezava. à fraqueza e à perda. Ela não sabia o que ela fazia. Ficou em estado de choque. cedendo lugar à ruína. Givaldo: A mãe morreu. ela aí. a saúde se fragiliza. A polícia vinha. Só sei dizer que. passou a morar dentro da casa dela. certo? Deu pra beber. porque o cara foi embora. Jaci sente u m profundo desgosto com a morte da mãe.. A mãe retribuía. a ligação entre elas era muito íntima e intensa.. pois todos os seus clientes eram homens de fora.. (. sem ninguém para cuidar dela. para cozinhar para os rapazes. os ladrão todo da casa aqui. Na seqüência de infortúnios que se sucederam e m sua vida. O cara deu pra bater nela. passa a beber e m demasia e não se alimenta. Como u m reflexo da circunstância e m que se encontra. Jaci morava só com a mãe. queria levar ela presa. foi panhando as coisa e jogando fora. o cara foi embora. Eunice afirma que. O cenário de luxo e fausto vai gradativamente desaparecendo. apesar de ter ligação com vários. a moça se afastou do mundo da mãe e foi morar com o pai.. Ela acabou por se envolver afetivamente com u m deles. o que . Foi embora. sua mãe e a filha) viveram juntas durante a infância da menina. em sua correspondência. Além disso. Daqui a pouco ela deu pra beber. oh. não mais uma prostituta de sucesso. e para quem chegou a 'montar u m negócio'. não podia buscar a polícia com medo deles matar ela. pronto. Em estado de choque. a filha vive na Alemanha (casou-se c o m u m 'gringo' e m busca de situação melhor) e não demonstra qualquer interesse pela mãe. mas. O santo Antônio que ela tinha dentro de casa. o homem que ela arranjou era ladrão. e aí botou dentro de casa. brancos e c o m dinheiro. U m padre havia criado no bairro uma casa para recuperação de 'marginais' (um projeto no mínimo polêmico para a comunidade) e contratou Jaci. quer dizer. Ela também se apavorou. pronto!. porque quando foi ver. C o m a própria filha. a casa dela começou. nesse dentro de casa que botou. jogou tudo fora. E v i d e n c i a . levaram pro médico e internou. c h a m a a a t e n ç ã o não p r o p r i a m e n t e para a violência q u e ela sofria c o m a p r e s e n ç a d o n a m o r a d o . divisão da casa e ruptura c o m a religião. Jaci começa a consumir drogas. ela não se dá bem. e daqui ficou no meio da rua.. . C o m o término do projeto criado pelo padre. por conta do alcoolismo e d o envolvimento c o m as drogas e os 'marginais'. u m e n f r a q u e c i m e n t o t a m b é m do espírito. p a i . Q u a n d o ela p r o c u r o u a m e n t e . hoje dividida e vendida ou alugada para várias famílias. Apesar de haver alguma discordância entre as distintas versões. todos tendem a compor u m quadro em que se mostra a gradativa perda e afastamento de Jaci de seu universo de relações. ninguém fazia nada. N o e n t a n t o . b e b e r . . C o m eles. na época ainda uma grande casa. pra ninguém não lavar. e sofre constantes abusos sexuais e violências. gritava. j á foi ficando triste. q u e b r a v a coisas na casa. ter-se-ia a c r e s c e n t a d o à fraqueza do c o r p o . enfim. telefonou pro carro e o carro veio pegar. ela aí. Ela começou a jogar o lixo dentro da fonte. o fato d e Jaci ter-se desfeito d o s santos e d o s e n c a r g o s d o c a n d o m b l é deixad o s pela m ã e foi u m a das principais causas de seu p r o b l e m a : a partir desse m o m e n t o . vizinhas. nessa tristeza. a q u e l e cujos atos n ã o t ê m objetivo n e m inteligibilidade. atirava n o s passantes q u a l q u e r objeto q u e tivesse e m m ã o s . ela criou aquele n e g ó c i o d a q u e l e p r o b l e m a d e p a i x ã o . p r o n t o . apanharam. jogava dentro de uma fonte que tem ali.d e . no lugar onde tem muito zoada. e hoje Jaci tá aí. pois ela j á dava alguns sinais de p e r t u r b a ç ã o : " F i cou c h o r a n d o e tal. q u e j á a t o m a v a . personificava o e s t i g m a do louco. G i v a l d o . corria. além do álcool (segundo Teca e Clarice. " ( G i v a l d o ) . E l a foi ficando. S e g u n d o G i v a l d o . Givaldo: Ela apanhava o lixo. alguns dos 'marginais' passam a viver na casa de Jaci. seguido pela ruptura de laços c o m os amigos e vizinhos. q u e seus c o m p o r t a m e n t o s a m e a ç a v a m os q u e e s t a v a m e m t o r n o . e também pela separação do amante. m a s p a r a a tristeza e o pesar aos quais se e n t r e g o u depois d e a b a n d o n a d a . beber. n i n g u é m p r o c u r o u intervir na situaç ã o até q u e seu q u a d r o j á se m o s t r a v a tão g r a v e . p r o v o c a d o pela ira das d i v i n d a d e s às quais d e v e r i a reverenciar. ela o faz coagida pelo bandidos). aí ela deu pra beber.s e nas narrativas q u e o episódio de loucura de Jaci n ã o ocorreu d e m o d o i n e s p e r a d o . . Jaci se tornou agressiva. Este é o momento e m que sua situação parece mais crítica. Ela sentava na beira da fonte.s a n t o . ninguém panhava água. que ela não pode ver grito.aconteceu foi esse problema. iniciado c o m a morte da mãe. tá uma pessoa traumatizada. Os vizinho chamou. j á n ã o c o n v e r s a n d o c o m n i n g u é m .e m especial p o r a q u e l e p o r q u e m se a p a i x o n a r a . Se C l a r i c e e Teca r e l a c i o n a m o sofrimento d e Jaci c o m os a b u s o s a q u e era s u b m e t i d a por s e u s parceiros . . Tolerada pelas pessoas. herdamos. porque ela ainda conversa com as pessoas na rua. quando necessário. O processo pelo qual passa Jaci envolve uma deterioração drástica do seu status moral: ela agora é tratada quase como se fosse uma não-pessoa. A solução foi o internamento e. mantido as ligações c o m a comunidade. louca. O pessoa chamou a polícia pra pegar ela e ela enfrentou as polícia. as redes sociais são compostas de relações que. pede bebidas e muitas vezes é atendida e. ela começando a correr. C o m o afirma Barnes (1964). redes ligadas à família. embora vizinhos e outros indivíduos pertencentes às redes de relação participem deste processo de escolha ao identificar a situação como u m problema (mental. Mas ela queria correr assim pelo. sua ausência (ou o fato de a mãe não conseguir estabelecer b e m as conexões) pode significar para o indivíduo a perda. a mãe. Ε como é a mulher. que se comporte razoavelmente dentro do padrão esperado.. Porque ela começou a correr. Por outro lado. não significa uma separação física ou ausência total de contato social. fundamentalmente. sugerir tratamentos. para controlá-la. mas são. A busca de terapias religiosas e/ou de tratamento médico ambulatorial parece ser uma questão decidida prioritariamente n o seio da família. acompanhar a consulta e dar opinião sobre resultados. ou resolve suas desavenças com inquilinos. Jaci poderia ter superado a perda da mãe. discutir prováveis causas. e m grande medida.traz implicações para a imagem pela qual ela própria se representa a si mesma. ela mantém conversas. da capacidade de poder contar com apoio. contaram com ajuda da polícia. . algum vizinho a leva ao hospital-dia. Não houve qualquer tratamento antes da hospitalização. ou nervosa (ou u m pouco da cada uma). após o adoecimento. quando ela virou pra dentro de casa eles pegaram. Questões como esta passam ao largo dos estudos centrados exclusivamente na correlação entre redes sociais e busca de tratamento. Mas. Jaci vai tendo o seu status moral diminuído. A o longo de sua trajetória. e c o m a qual se possa manter relações estáveis. nesse contexto.a maneira como os indivíduos c o m os quais Jaci interage concebem e reagem à sua persona . se tivesse cuidado dos encargos deixados por sua mãe. seu caminho foi o de u m isolamento crescente. quer seja de bêbada. para a maneira c o m o ela se situa no m u n d o e se relaciona c o m os outros. poderia também ter mantido uma ligação com o candomblé. e parcialmente. pelo menos parcial.Julina: Ela estava assim e eu acho que ela não estava em si. espiritual e outras). seu caráter moral sofreu uma modificação radical: j á não se a considera uma pessoa completamente responsável. Certamente esta reação societal aos seus comportamentos . Isolamento. vai às casas. co-habita com os inquilinos. apoiar ou discordar das versões apresentadas pela família etc. N o entanto. e m grande parte. Foi pra dentro de casa com pau. adquire uma nova identidade. a principal articuladora destas redes de relações. construímos por nós mesmos. passando a ocupar u m posição de segunda categoria no âmbito da comunidade. este episódio nos sugere também que as redes sociais que se mobilizam nos casos de doença não são exclusivamente individuais. as avaliações de proximidade e intimidade variam amplamente. tende a predominar u m tipo de abordagem e m que se enfatiza a densidade das redes . é inegável que as redes sociais relacionam-se muito claramente à forma de organização familiar. às ligações mesmas entre os indivíduos. A centralidade da mulher na casa. em grande medida. Não consideram.CONCLUSÃO Procurou-se aqui discutir os trabalhos relacionados a redes sociais. seu papel na articulação das redes de parentesco e de vizinhança são elementos partícipes do conjunto de normas que regem a constituição familiar neste universo. certos setores dentro de u m a sociedade e entre os indivíduos. Os instrumentos utilizados consistem em questionários que estipulam basicamente perguntas sobre status marital. neste tipo de investigação. Mediante este instrumento pretende-se medir tanto o grau de interconexão das redes quanto a intensidade das relações. Tratar todos os laços sociais íntimos como equivalentes e simétricos produz u m achatamento dos significados das relações. sem dúvida. tentouse apontar alguns problemas teórico-metodológicas observáveis e m tais estudos. sem que se analisem os significados que adquirem e m contextos sociais específicos. logo. ou seja. ao se formularem as perguntas. As redes sociais mobilizadas e m tomo de casos de problema mental não se ligam exclusivamente ao indivíduo. Este efeito. Especificamente sobre a relação entre redes sociais e doença mental. N o contexto em que se desenvolveu esta investigação. buscando compreender melhor certos aspectos que. parentes próximos e amigos íntimos partem do pressuposto de que os significados atribuídos a tais relações são claros. conhecimento recíproco entre as pessoas apontadas como as mais íntimas e a freqüência de contato com estas pessoas e com parentes. A luz dos dados apresentados. 'família'. a questão norteadora das pesquisas diz respeito ao grau de interconexão das redes sociais nas quais os indivíduos se inserem. encontra-se relacionado ao instrumento usado nas pesquisas: o questionário. de acordo c o m a sociedade. as expectativas ligadas ao casamento e à relação c o m parentes. e que efeitos a densidade da rede (interconexão) produz na decisão de busca de ajuda médica. na devida medida. As pesquisas que centram a análise basicamente na investigação dos vínculos com o cônjuge. mas à família. sempre se supõe u m membro ideal da sociedade. Tomam-se como supostos termos como 'amigos íntimos'. mas e m que se dedica pouca atenção aos aspectos interativos. não ambíguos. 'parentes'. Nos questionários. são de fundamental importância para os estudos de redes sociais. Já se mencionou anteriormente que. e à mãe e m particular.u m elemento de sua morfologia (que diz respeito ao padrão de ligações e m u m conjunto de relações visto e m sua totalidade) .. negligenciamse na literatura especializada sobre o assunto. que os padrões normativos. existência de relações íntimas. assumindo-se previamente determinados fatos e crenças como parte . entre aqueles que são tidos às vezes por 'loucos' e crianças e adolescentes que se comprazem e m provocá-los. por se concentrarem apenas em alguns aspectos referentes às redes d e relações sociais. mas contra os quais o indivíduo tem que afirmar suas opiniões. em geral. pode-se afirmar que quanto mais forte u m laço social (como a relação com cônjuges. Dentro deste campo de relações que não são exatamente as mais íntimas. Ilustra isto a relação que une muitas mulheres moradoras do Nordeste de Amaralina a pessoas que ocupam uma posição mais elevada na sociedade. usualmente seus atuais ou ex-patrões. vizinhança etc. que não necessariamente traduzem as respostas e estratégias que os sujeitos elaboram concretamente e m sua vida cotidiana ou ante situações d e crise. ajuda material etc.como no caso de Zelinha . têm-se c o m o irrelevantes as diferenças de conteúdo das relações: parentesco. mediante os quais as pessoas fazem comparações. E m termos gerais. Contudo. relações relativamente superficiais e não íntimas. tecendo comentários sobre a loucura de outrem. amizade. A o quantificar as relações. são carregados de tensão. identificam e rotulam alguém como doente. reduzindo-as à presença ou não de cônjuge e ao número de íntimos citados pelos respondentes. ao se enfocar apenas as relações mais íntimas. senão hostis. que fornecem pontos de referência essenciais. em concordância c o m Granovetter (1982).) que se pode obter por seu intermédio. maior será a probabilidade de que funcione como apoio. freqüentemente fornecem tipos distintos de ajuda e informação. crenças e valores pessoais. U m dos argumentos contra o uso deste instrumento é que a linguagem padronizada utilizada nos questionários só obtém respostas também previamente esquematizadas. parentes próximos e amigos íntimos). Também as atitudes mais veladas de adultos. pois. mas c o m as quais tanto o doente quanto sua família são obrigados a lidar no cotidiano. tanto e m termos de poder. são motivo de desagrado para os enfermos e para os que o rodeiam. Além disso. as abordagens tradicionais e m p o b r e c e m o poder explicativo do conceito. . (Wellman. Ainda. ao menos permeadas de tensão e conflito.de seu m u n d o . a ponto de o doente . b e m como tende a aumentar o auxílio (proteção. 1988). 1992). omitem-se outros setores importantes da rede social total. quanto da quantidade e dos tipos de recursos que fluem através deles. permitem o acesso a u m número e uma variedade maior de círculos sociais. aponta-se neste trabalho para a existência de evidências de que se os laços mais fortes têm um papel mais decisivo quando se trata de oferecer apoio. não se pode também deixar de considerar aquelas interações que tendem a ser. tratam-se todos os laços sociais como se fossem simétricos e equivalentes. os laços mais fracos.passar a evitar de sair ou a reagir agressivamente nessas situações. além disso. Por exemplo. os encontros nas ruas. e buscam informações sobre tratamentos (Pescosolido. Também são deixados de lado aqueles com quem as interações são tipicamente hostis. por conseguinte. As trajetórias dos doentes são bastantes complexas. chega-se mais cedo ou mais tarde a uma instituição médica. As definições e redefinições por que passam os casos se dão mediante um processo de negociações. as famílias podem reagir seja procurando afastar o indivíduo c o m problemas de situações de confronto. Conforme se procurou mostrar. que se as redes sociais possuem uma dimensão que induz e constrange o comportamento dos indivíduos. pois ser doente não é apenas uma condição biológica ou psicologicamente dada. nem seu ponto final em termos de tratamento. de modo que não se abordam as demais ações postas em prática para se conviver com o problema. ou da apresentação de histórias (histórias tristes) e m que se o e x i m e m de responsabilidade por seus atos (quer conferindo-lhes u m rótulo de doente.Em face dessa circunstância. busca-se usualmente a correlação entre a estrutura da rede social e a procura de ajuda médica. a gravidade e as conseqüências que podem trazer. Na maioria dos casos de doença mental. Ignora-se que a trajetória percorrida pelo enfermo. dialoga-se com outros. levando-os a tomar certas decisões. Os estudos limitam-se meramente a supor que os indivíduos envolvidos em redes socais densas têm mais acesso a apoio. se em termos bastante genéricos podemos dizer que os indivíduos identificados como sofredores de problemas mentais tendem a não dominar ou não respeitar as regras de sociabilidade que . este é um processo interpretativo. As distintas estratégias para se lidar com o problema mental anteriormente apontadas induzem-nos a considerar ainda outro aspecto da questão já mencionado: nos estudos de redes sociais. mas um produto constituído com base nas definições e reações dos outros. Isto porque. o que contribui para mantê-los por mais tempo afastados do tratamento médico. desde o momento em que a situação começa a se mostrar problemática até a busca de ajuda institucional (médica ou não). Todavia. As visões e perspectivas parciais e eventualmente discordantes que aparecem nas narrativas expressam justamente as diferentes estratégias utilizadas para responder às polêmicas e aos conflitos existentes no interior de uma rede de relações. reflete-se sobre o caso e reconstroem-se seus significados. em que se compartilham informações. quer atribuindo a um espírito a culpa pelos comportamentos ' l o u c o s ' ) . não deve ser o foco exclusivo dos estudos de redes sociais. esta ação não é resultado necessário de um problema mental. A decisão de buscar ajuda médica. A atribuição a alguém de um papel de 'doente'. a começar pela própria definição do problema. possuem também um papel produtivo e construtivo. emerge de um processo interativo que envolve a participação de vários atores pertencentes às redes sociais. ou do rótulo de 'louco'. seja tentando mediar suas relações c o m estranhos por meio de m o n i t o r a m e n t o direto de seus c o m p o r t a m e n t o s . não é absolutamente linear. Importa ressaltar. e m que se envolvem muitos fatores e não existem regras muito fixas para estabelecer qual o tipo de problema. portanto. contudo. Isolar alguém do convívio social. C o m o os dados do Nordeste de Amaralina nos mostram. quanto constituem o próprio quadro social em que as ações ocorrem. Boswell. Tais práticas (discursivas inclusive) tanto têm o sentido de descrever e orientar as respostas de outros e do próprio enfermo. 1964. não constituem apenas uma reação a u m problema mental. Os dados do Nordeste de Amaralina. A s redes sociais podem ter u m caráter transitório. Voltando aos estudos de redes sociais. por acontecimentos c o m os quais não p o d e m lidar sozinhos (Janzen.regem a vida cotidiana (andam nus. mostrar-se bastante interconectadas no bairro. ou u m a família. certas relações p o d e m permanecer muito tempo e m u m a espécie de estado de latência e só se mobilizar e m certos contextos situacionais. sem que se atente para a sua dinamicidade. as reações e práticas desencadeadas ao seu redor. reprodução e transformação das redes sociais (Emirbayer & Goodwin. laços sociais se mobilizam (e desmobilizam) e m m o mentos distintos. e m que u m indivíduo. a preocupação j á n ã o seja estabelecer o status do indivíduo para determinar qual o comportamento normativamente esperado dele. não parecem apontar nesta direção: embora as redes de relações possam. Por outro lado. ao longo de u m processo de doença as redes sociais não se m a n t ê m estáticas. mas fazem parte da própria construção da doença. por seu turno. Embora. e m u m percurso e m que se sucedem diversas estratégias para se lidar c o m o problema. mais as normas e valores do grupo se reforçam. Esta perspectiva. isto é. são lançados na dependência de outros. O significado de u m construto social é algo descoberto no trabalho vivido de produzi-lo (Hilbert. e m muitos casos.. são agressivos. 1994).como fazem os vizinhos de Jaci e as mães de Zelinha e de Nando . não há garantias de consenso. não fornece u m modelo adequado para explicar a formação. quanto na configuração das redes sociais e m cada estágio do caso. 1969). A l é m disto. não conseguem manter uma conversa razoável etc. manter a pessoa afastada de situações potencialmente embaraçosas. portanto. ocorrem mudanças tanto na percepção da doença. ou monitorar seu comportamento em público . relações se criam e r o m p e m à medida que a enfermidade segue seu curso. e m circunstâncias rotineiras.). não seguem u m padrão uniforme e coerente: são variadas as práticas desenvolvidas para se restaurar ou manter a ordem perturbada por sua presença ou seus comportamentos ineptos e geradores de distúrbios. pode-se dizer que a tentativa de correlacionar a estrutura de u m a rede social a u m certo tipo de comportamento esperado do indivíduo nela envolvido torna esse tipo de análise perigosamente semelhante àquela abordagem criticada pelos primeiros teóricos das redes sociais. ainda u m elemento merece ser discutido: a ênfase posta unicamente na dimensão estrutural das redes. não existe u m padrão único de normas e regras. nesses estudos. . 1990). idéias de integração social ainda permanecem c o m o pressupostos: quanto mais a rede de relações se interconecta. não tomam banho. A construção social do problema mental na infância em um bairro de classe trabalhadora de Salvador. 7 NOTAS 1 Tradução da autora. Ver capítulo 2. A despeito de os primeiros teóricos de redes sociais terem apontado na direção certa . os estudos concretos. como rezadores.E m boa parte dos estudos sobre redes sociais e doença. Conforme se demonstrou no capítulo 2 deste livro. Assim. na dissertação de Jorge Iriart. se temos e m conta que as práticas sociais se dão e m u m campo de significados compartilhados. Tema ao qual voltaremos no capítulo 4. apresentada ao Mestrado de Saúde Coletiva.. e m que cada voz projeta uma imagem diferente sobre o objeto. e os fenômenos humanos passam a ser tomados como objetos mudos. familiar. procuramos enfatizar a questão das redes sociais que interferem no curso da doença. em uma outra perspectiva. with the aditional property that the characteristics of those linkages as a whole may be used to interpret the social behaviours of these persons involved" (p. nega-se a possibilidade de uma compreensão profunda das relações entre as pessoas.. e m grande medida. O caso de Nando foi também objeto de investigação. curadores etc. 2 3 4 5 6 7 . minimizaram esses insights. sem vida. O setor profissional é constituído pela medicina científica ocidental e pelas medicinas tradicionais profissionalizadas.ao sublinhar a importância das interações entre os sujeitos para suas ações . o setor folk é composto por especialistas não profissionais de cura. reduz-se a experiência vivida ao resultado de certos fatores causais. Para Kleinman (1978). que se formam e m processos de negociação. folk e profissional.35). em 1992. as relações entre indivíduos participantes de u m a r e d e social são subsumidas a u m a lógica explicativa: busca-se estabelecer relações regulares entre fenômenos ou encontrar uma estrutura que previamente determine os cursos de ações humanas. Ao se adotar essa perspectiva. Ver capítulo 1. Aqui. Os significados da enfermidade se formam dentro desta rede de luz e sombra. É no âmbito deste meio de harmonia e dissonância dialógica que a enfermidade adquire seu tom e perfil. os quais devem ser retomados. da doença. No original: "A specific set of linkages among a defined set of persons. o Sistema de Cuidado com a Saúde contém três arenas (ou subsistemas): popular. a arena popular compreende principalmente o contexto leigo. M. In: MARSDEN & N A N L I N (Eds. Ethnomethodology and the micro-macro order. 99(6): 1. Manchester: Manchester University Press. Social density and mental health. 1976. In: HARPHAM. I. S. (Ed. 1981. 1982. 1964. & BLUE. Beyond rational choice: the social dynamics of how people seek help.096-1.. J. Human Relations. Cambridge: Cambridge University Press. 56:1. J. R.C. D. Salvador: Universidade Federal da Bahia. American Journal of Sociology. RABELO. In: MITCHELL. 1982. Social Forces.) Social Structure and Network Analysis. Rio de Janeiro: Francisco Alves.M. (Eds. Μ. Sociological Review.1990. J. In: MARSDEN & NAN LIN (Eds. 29(2):283-312.D. F.) Social Networks in Urban Situation. C. I. Berkeley: University of California Press. 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Souza INTRODUÇÃO A literatura socioantropológica sobre itinerário terapêutico t e m c o m o principal objetivo interpretar os processos pelos quais os indivíduos ou grupos sociais escolhem. os seus modelos explicativos e a utilização q u e as pessoas fazem das agências d e cura. u m a vez q u e e n c o n t r a m à disposição u m a ampla g a m a de serviços terapêuticos (pluralismo m é d i c o ) . 1994). Nesses estudos. d e estudos q u e p r o c u r a m identificar a d i n â m i c a .4 Escolha e Avaliação de Tratamento para Problemas de Saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico 1 Paulo César B.ou s ó p a r c i a l m e n t e conhecidos . A análise do itinerário terapêutico n ã o se limita. E s s a problemática fundamenta-se na evidência de q u e os indivíduos e n c o n t r a m difrentes m a n e i r a s d e resolver os seus p r o b l e m a s d e saúde. Alves & Iara Maria A. interpretam e procuram tratar a aflição dentro de m o d e l o s e x p l i c a t i v o s m u i t a s v e z e s d e s c o n h e c i d o s . torna-se importante levar e m consideração q u e a escolha de tratamento é influenciada pelo contexto sociocultural e m q u e ocorre. contudo. Estes serviços d e s e n v o l v e m diferentes métodos e premissas para explicar as aflições dos pacientes. T r a t a . a análise sobre itinerário terapêutico e n v o l v e necessariamente a idéia de que as distintas trajetórias individuais se viabilizam e m u m c a m p o de possibilidades socioculturais. São distintos serviços q u e padronizam. avaliam e aderem (ou não) a determinadas formas de tratam e n t o .s e . N o caso das sociedades complexas m o d e r n a s . para elab o r a ç ã o e i m p l e m e n t a ç ã o de projetos específicos e até contraditórios (Velho. p o r t a n t o . esse fato assume maior proporção e significado. Tais elementos são insuficientes para c o m p r e e n d e r o c o m p l e x o processo de escolha. de u m a teoria baseada e m u m a concepção voluntarista. Inicialmente. Para ele. busca identificar e discutir alguns dos princípios que regulam o ato interpretativo nos estudos tradicionais sobre o itinerário terapêutico. Pela própria natureza. Neste aspecto. Tratava-se. objeto de crítica por parte de vários teóricos. 1979). requerem uma abordagem que permita estabeleceremse relações entre a dimensão sociocultural e a conduta singularizada de indivíduos. para entendê-la. as de Mechanic foram as que melhor caracterizaram a concepção de illness behaviour. o modelo utilitarista e racionalista permaneceu. por exemplo.contextual com base na qual se delineiam os projetos individuais e coletivos de tratamento. avaliando diferentes abordagens ao tema e propondo novos caminhos para investigação. mas apenas indicar alguns aspectos críticos no estudo dos itinerários. N o entanto. portanto. racionalista e individualista. com base no pressuposto de que as pessoas avaliam suas escolhas e m termos de custo-benefício. tais estudos deparam-se c o m algumas questões cruciais para a teoria social contemporânea. por muito tempo ainda. dentro dos quais as pessoas buscam e avaliam determinados tratamentos para as suas aflições. partindo de uma preocupação epistemológica. como referência central nos estudos sobre itinerário terapêutico. já havia observado a excessiva simplificação desse modelo. Parsons (1964. E m outras palavras. o próprio conceito de itinerário terapêutico. as pesquisas tinham uma forte coloração pragmática: os indivíduos orientam racionalmente a conduta para a satisfação das suas necessidades. desenvolver uma revisão exaustiva. O objetivo do presente trabalho é duplo: por u m lado. U m a dessas questões diz respeito à própria lógica interpretativa mediante a qual se visa a analisar os universos sociais e simbólicos. tomava-se como princípio o fato de que os indivíduos defrontam-se no mercado como produtores e consumidores e cada u m procura obter as maiores vantagens possíveis em suas transações. pretende considerar. As INTERPRETAÇÕES DO ITINERÁRIO TERAPÊUTICO Os primeiros trabalhos sobre itinerário terapêutico foram elaborados no âmbito de uma concepção tradicionalmente conhecida como comportamento do enfermo (illness behaviour). é necessário reconhecer a importância dos valores e normas que orientam a conduta dos indivíduos. Apesar de se citarem vários trabalhos produzidos sobre os processos de escolha de tratamento. desde cedo. logo. As premissas do modelo utilitarista e racionalista foram. sob novas roupagens teóricas. Por outro. a ação humana é inseparável de atos de interpretação. . U m exemplo significativo é o modelo teórico de decisão (decision theoretic model) desenvolvido por Fabrega (1974). aqui. de u m ponto de vista teórico. Entre as pesquisas realizadas segundo essa ótica. não se propõe. termo criado por Mechanic & Volkart (I960). como se fosse o único existente. nas respostas aos problemas de saúde. em diferentes contextos. sem avaliar criticamente as diferenças epistemólogicas entre ambos e sua implicação para a análise. por sua vez.m e t o d o l ó g i c a s r e l a c i o n a d a s à q u e s t ã o do itinerário terapêutico. não só elaboram diferentes concepções médicas sobre causas. sintomas. especialmente profissional. e m g r a n d e parte. A análise sobre o itinerário . Essa mudança de perspectiva trouxe uma nova interpretação acerca das definições e significados que os indivíduos e grupos sociais. boa parte das análises acerca de definições populares sobre doença e processos terapêuticos partiu de uma crença não questionada no modelo biomédico. ao explicar as ações dos indivíduos atribuíram excessiva ênfase à racionalidade do modelo biomédico. gênero e idade. diagnósticos e tratamentos de doenças. neste caso. e mesmo grupos sociais dentro delas. c o m o estabelecem convenções sobre a maneira c o m o os indivíduos devem comportar-se quando estão doentes (Lewis. talvez a mais importante. e os aspectos cognitivos dos pacientes referentes ao processo de tratamento. porém. que analisou comparativamente como americanos de origem judaica. Além do mais. observou que algumas dessas pesquisas utilizaram tanto informações de pessoas q u e e s t a v a m sob tratamento m é d i c o profissional. Os estudos tradicionais sobre illness behaviour adquiriram importância ao chamar a atenção para os fatores extrabiológicos da doença.Uma segunda grande vertente dos estudos sobre illness behaviour. U m dos mais importantes trabalhos nessa área foi o de Zborowski (1952). para i m p o r t a n t e s r e f o r m u l a ç õ e s t e ó r i c o . italiana e irlandesa reagiam à dor em um hospital de Nova York. Significativa também foi a investigação de Koos (1954) sobre as decisões de tratamento em uma pequena cidade americana. estruturas familiares. aliar a interpretação coletivista ao modelo utilitarista-racionalista. a diferentes grupos socioeconômicos. Para Dingwall (1976). com o qual se contrastavam os processos lógicos do conhecimento leigo. Tentando. Conseqüentemente. atribuem às suas aflições. McKinlay (1972). Quase todos. procurou investigar a determinação de valores culturais supostamente oriundos das minorias étnicas. por exemplo. 1981). costumava recair sobre a identificação dos fatores culturais e/ou elementos cognitivos que determinam a pouca ou alta utilização dos serviços de saúde. A ênfase da análise. um dos problemas de tais estudos foi o fato de tratarem as ações dos indivíduos apenas do ponto de vista da demanda do sistema de serviços de saúde. Os trabalhos etnográficos desenvolvidos a partir da década de 70 passaram a salientar o fato de que as sociedades. quanto dados retrospectivos de informantes que já haviam concluído a carreira de paciente. apresentam sérios problemas de caráter teórico-metodológico. As diversas considerações críticas a respeito dos estudos tradicionais sobre illness behaviour c o n t r i b u í r a m . o autor observou que o processo de escolha de tratamento estava fortemente relacionado às necessidades e condições financeiras da família. em parte. é trocar informações. a r g u m e n t o u q u e o i n d i v í d u o p r o c u r a t r a t a m e n t o e m u m serviço terapêutico quando atribui relevância a algum distúrbio biológico que afete a sua interpretação de normalidade.terapêutico dirigiu-se então para os aspectos cognitivos e interativos envolvidos no processo de escolha e tratamento de saúde. 1981). Voltado prioritariamente para o estudo de práticas m é d i c a s e cura. 1980) t e m sido atualmente o mais utilizado. dependendo da estruturas das redes sociais e m que se inserem. Assim Dingwall (1976). que consiste em u m grupo de parentes e amigos mobilizados para definir a situação e buscar uma resolução quando a doença atinge u m indivíduo. isto é. decisões concernentes a tratamento. doença e cuidados c o m a saúde. por conseguinte. B o a parte das pesquisas sobre redes sociais e saúde procurou correlacionar certos aspectos da estrutura das redes (a densidade. a maioria dos sistemas de cuidados c o m a saúde c o n t é m três arenas (ou subsistemas) sociais dentro das quais . tais c o m o : experiência dos sintomas. N a tentativa d e ordenar as diferentes interpretações sobre doenças e processos d e tratamento entre as várias alternativas disponíveis e m u m a dada sociedade. Além disso. Kleinman criou o conceito de sistema de cuidados c o m a saúde (health care system). mães de classe operária t ê m uma definição funcional sobre saúde e doença e só procuram ajuda médica para os filhos quando estes não p o d e m mais desempenhar normalmente as tarefas cotidianas. mais tem canais para obter informações e. responsável por lançar o conceito de management group of therapy. prover apoio moral e tomar as decisões e providências. mais facilmente procurará as agências psiquiátricas formais. A análise interativa do itinerário terapêutico foi fortemente influenciada pelos estudos sobre redes sociais. e m que aponta para u m a articulação sistêmica entre diferentes elementos ligados à saúde. Horowitz defende a idéia de que. A questão básica era o fato de que os indivíduos. por sofrerem maior controle do grupo e terem mais acesso a suporte social. quanto mais uma pessoa conecta-se a outras que não mantêm conexões entre si. e m u m estudo sobre procura de serviços e m uma clínica psiquiátrica. Entre elas. Blaxter & Paterson (1982) observaram que. O que o grupo faz. marcadas por forte interconexão entre seus integrantes. por e x e m p l o . Para este autor. modelos específicos d e conduta do doente. e m Aberdeen. o m o d e l o proposto por Kleinman ( 1 9 7 8 . têm maior ou menor probabilidade de procurar o médico ou o psiquiatra (Price. pressupondo que u m a das características das redes sociais é a capacidade de fornecer conexões c o m as instituições. de fato. práticas terapêuticas e avaliação de resultados (Kleinman. Amostra significativa foi o trabalho realizado na África por Janzen (1978). 1978). os antropólogos passaram a sugerir distintas classificações de sistemas terapêuticos. seu grau de interconexão) a u m determinado padrão de busca de ajuda médica. recorrem menos a agências psiquiátricas profissionais. Horowitz (1977). mostrou que indivíduos envolvidos e m redes de interação informais. pelas profiss õ e s p a r a m é d i c a s r e c o n h e c i d a s ou p e l o s s i s t e m a s m é d i c o s t r a d i c i o n a i s profissionalizados (chinês. espiritualistas e outros. sobre a lógica interna do sistema escolhido. Como regra. e m u m c o n t e x t o de pluralismo médico. por sua vez. a análise dos sistemas terapêuticos. ayurvédico. Ε i m p o r t a n t e o b s e r v a r q u e . os modelos explicativos populares se baseiam em um grupo de estruturas cognitivas que têm seu fundamento na cultura compartilhada por todos os integrantes de um certo grupo. . Kleinman acaba por enfatizar apenas os elementos culturais e. os diversos subsetores usualmente não estabelecem fronteiras definidas entre si. c o m o c u r a n d e i r o s . por este motivo. especialmente os populares. r e z a d o r e s . C o m o observa Harrel (1991). tende a dar uma visão unificada dos modelos explicativos.). O popular. vizinho. 'ocidental' (cosmopolita). bem como as relações entre as diferentes arenas. as relações entre as interpretações subjetivas dos indivíduos e os modelos explicativos dos diferentes subsetores terapêuticos não necessariamente se enquadram de acordo c o m u m modelo integrado e coerente (Comaroff. unãni etc. cuidados c o m a doença são inicialmente resolvidas. assistência mútua etc. compreende o c a m p o leigo. Assim. nesta perspectiva supõe-se que os indivíduos interpretem certos tipos de prática c o m o ' m a i s a d e q u a d a s ' para lidar c o m certos tipos de doenças. não especializado da sociedade (automedicação. A arena profissional é constituída pela medicina científica. Last (1981) aponta para o fato de que as pessoas possam engajar-se e m processos terapêuticos sem saber. ou querer saber. tratamento. em seus trabalhos. Kleinman desenvolveu o conceito de 'modelo explicativo'.). embora reconheça e m tese a importância de fatores sociais e interativos. Para entender as práticas que se processam no interior de cada setor. de tal forma que se considera que os padrões de seleção entre alternativas terapêuticas sejam definidos por certas sit u a ç õ e s d e e n f e r m i d a d e . É justamente nesta última arena que a maior parte das questões ligadas à interpretação. Conforme Kleinman. folk e popular. podendo coexistir com pouca capacidade de se excluírem m u t u a m e n t e . É um conjunto articulado de explicações sobre doença e tratamento. 1978). Assim. conselho de amigo. tende a compartimentalizar os subsetores do sistema. mais particularmente aqueles relacionados ao modelo explicativo.a enfermidade é vivenciada: profissional. O setor folk é composto pelos e s p e c i a l i s t a s ' n ã o o f i c i a i s ' da cura. que determina o que se pode considerar como evidência clínica relevante e c o m o se organiza e interpreta esta evidência com base em racionalizações construídas por perspectivas terapêuticas distintas. Pode-se notar que tais estudos procuram desenvolver argumentos com base em premissas previamente estabelecidas (como 'escolha racional'. a explicação esclarece algo pela perspectiva racional. afirmava que a antropologia poderia aprender muito se começasse a pensar nas idéias organizacionais da sociedade como "constituintes de u m padrão matemático" (1974:15). Leach. Deste modo. de uma suposta ordem. É por meio de enunciados de caráter nomológico-dedutivo que se procura interpretar os complexos processos da escolha e avaliação de tratamento. 1972). lógica. foi proveniente das ciências naturais e matemáticas. 'estruturas de redes sociais' e mesmo 'modelos explicativos') que objetivam explicar as ações de indivíduos ou grupos sociais. Trata-se de u m modelo e m grande parte responsável pela emergência de uma certa imagem de cientificidade. A lógica explicativa baseiase na busca de uma regularidade. da conduta humana. Essa representação do conhecimento científico foi (e e m alguns aspectos continua sendo) marcante nas ciências sociais.CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A LÓGICA EXPLICATIVA DOS ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS Neste breve levantamento bibliográfico sobre as principais interpretações do itinerário terapêutico. Para Radcliffe-Brown. a interpretação das ações que as pessoas desenvolvem para lidar c o m as suas aflições é subsumida a uma lógica meramente explicativa. podemos observar que quase todos os estudos citados fundamentam-se e m discursos essencialmente explicativos. engenheiro por formação. como uma operação construtiva que parte da formulação de juízos ou discursos de verdade ou falsidade. o processo explicativo pressupõe alguns juízos proposicionais que expressam generalidades empíricas ou idealidades sobre os eventos humanos. O foco prioritário e fundante da explicação reside na enunciação. a investigação antropológica deveria ser constituída "por métodos essencialmente semelhantes aos empregados nas ciências físicas e biológicas" (1973:233). i m p l i c a n d o concepções de causa. A explicação é u m modelo de entendimento cujo campo paradigmático. 1989). É por intermédio de enunciados. hipóteses. Assim. a qual funciona como idéia reguladora e princípio definidor de critérios internos a todo o empreendimento de conhecimento que tenha a pretensão de se apresentar como ciência. tomados como universais. 2 A e x p l i c a ç ã o é u m ato i l o c u c i o n á r i o q u e p r e s s u p õ e u m a r g u m e n t o demonstrativo fundamentado em relações estabelecidas entre conclusão e premissas (Achinstein. característica de um determinado modelo do conhecimento científico. Acreditamos que considerar a interpretação e a explicação como equivalentes e intercambiáveis acarreta sérios problemas epistemológicos. é desnecessário dizer. leis. . que o investigador estrutura o seu argumento lógico para entender a multiplicidade das ações sociais. verificações e deduções (Brown. por exemplo. 'valores culturais'. E m decorrência. Toda interpretação científica é interpretação unilateral. Ε importante observar. são tão ou mais inteligíveis e esclarecedoras do que as interpretações dos próprios atores. é preciso considerar que esses processos não são meramente fatos que podem ser apreendidos com base em conceitos genéricos. a validade e a importância do saber antropológico. uma tarefa complexa. 1993). A atitude explicativa não leva em devida conta o contexto intencional. Isso não significa que a interpretação exclua a explicação. só ocorre se. porém. portanto. compreender as formas expressivas que se referem diretamente às experiências e vivências de outras pessoas. Esta. o pesquisador tende a reduzir os atores sociais e suas ações a modelos tipológicos ou classificatórios pré-determinados.Reduzir a interpretação a um ato explicativo. Isso não diminui. Interpretar é. para a qual as generalizações interpretativas da antropologia. por si só. O processo de tornar inteligíveis as representações humanas é. contudo. e compreender é apreender e explicitar o sentido da atividade individual ou coletiva como realização de uma intenção. nas ciências sociais. buscar significações. Tais formas expressivas constituem representações. processos pelos quais os indivíduos exprimem algo a respeito da coisa representada. a compreensão das ações e seus significados já se realizou. que não se podem tomar as construções teóricas elaboradas pelos pesquisadores como aquelas que melhor expressam as experiências e vivências dos atores sociais. por sua própria estrutura cognitiva. busca atrás ou subjacentemente às experiências sociais uma 'geometria do vivido' ou uma 'gramática das ações'. uma história pontuada pela constante busca de métodos que permitam a análise dos processos de significação desenvolvidos pelos membros de uma dada sociedade. por terem acesso a universos sociais e simbólicos mais amplos. N o caso da antropologia. ou seja. conduz a problemas epistemológicos. em um certo sentido. Restringindo-se à regularidade da conduta humana. uma importante tarefa do antropólogo é tornar inteligíveis certas expressões (ações e enunciados) culturais partilhadas por um determinado grupo social. pois fundamenta-se em regras genéricas e genéticas. de Lacan e Althusser sobre o sujeito como mero "efeito". trata-se de um saber construído não apenas por uma rede de conceitos e definições previamente definidos. A interpretação é basicamente um ato compreensivo. obviamente. A interpretação. entretanto. dependentes das coordenadas estabelecidas pelo mundo intersubjetivo do senso comum (Alves. Essa tendência expressa-se claramente nas proposições de Lévi-Strauss sobre a "dissolução do homem". Ao se estudar os processos de escolha de tratamento. no ataque de Derrida à "metafísica da presença". é uma tarefa que deve pôr em primeiro plano o universo de significações das experiências individuais. como também por contatos interativos desenvolvidos pelo pesquisador no trabalho de campo. mas ações humanas significativas. A história da antropologia é. em grande parte. circunstancial e dialógico em que os indivíduos desenvolvem suas ações. Afirmar o contrário é assumir uma máxima romântica e duvidosa. pois a atitude explicativa. apenas . Assim. pois nos enunciados dos informantes freqüentemente misturam-se explicações diversas e tipos diferentes de conhecimentos (teóricos. ter consciência de que a interpretação antropológica está mais próxima de uma lógica de incertezas e probabilidades do que de conclusões verdadeiras e dedutivas. de Bateson ou da Religião dos Nuer. não esgota todos os horizontes potenciais de sentido que podem se atualizar a partir das ações dos indivíduos. que são produzidos pela negociação de significados c o m outras pessoas. portanto. contudo. o etnógrafo é pertinente (. 1992:57). tanto e m termos da própria noção de indivíduo como dos temas. só por si. que se possa identificar como a fonte última de significados das afirmações proferidas pelo informante. as trajetórias e projetos individuais formulados e elaborados dentro de u m campo de possibilidades. se a leitura dos Argonautas do Pacífico Ocidental. Tampouco podemos afirmar que se pode considerar uma forma de conhecimento como o conhecimento autêntico sobre eventos médicos. É fundamental. alguns fragmentos da experiência humana que. "embora faça menor apelo à imaginação e maior à experiência. confusamente inteligíveis. podemos dizer que é necessário q u e os e s t u d o s s o b r e itinerário t e r a p ê u t i c o p o s s a m ' d e s c e r ' ao nível dos p r o c e d i m e n t o s usados pelos atores na interpretação de suas experiências e delineamento de suas ações sem. "circunscrito histórica e culturalmente. . Todas essas formas de conhecimentos ligam-se entre si e vão-se modificando uma às outras continuamente (Young. Logo. torna-se necessário que toda análise sobre o itinerário terapêutico ponha e m evidência as experiências.) à maneira do romancista". 1981). Assim. prioridades e paradigmas culturais existentes" (Velho. C o m o nos diz Sperber. de Naven. contribui para a nossa compreensão de nós próprios e do mundo em que vivemos. perder o domínio dos macroprocessos socioculturais. de m o d o que. de Malinowski. justificam a viagem (Sperber. de Evans-Pritchard. é porque transmitem. não é porque comportem generalizações interpretativas. 1994:27).. É ilusória a ambição de se chegar a generalizações científicas que permitam descrever completamente u m fenômeno cultural. de eventos e de experiências prévias).chama a atenção para o fato de que toda interpretação do fenômeno cultural é essencialmente de caráter conjectural.. Esta seção procura discutir algumas premissas que j u l g a m o s importantes para a interpretação do itinerário terapêutico. A primeira observação a ser feita é que a escolha e a avaliação do tratamento realizadas por u m indivíduo ou grupo social não se atêm a u m único conjunto de estruturas cognitivas. 0 ITINERÁRIO TERAPÊUTICO: ASPECTOS TEÓRICOS Ε METODOLÓGICOS Considerando as observações expostas. t o m a . cuja estrutura deriva de u m processo histórico e. o modo particular como o indivíduo define a sua situação no seio dele. Trata-se de uma ação humana que se constitui pela junção de atos distintos que compõem uma unidade articulada. temos dois aspectos a observar: primeiro. e m o ç õ e s e atitudes circunstanciais. Aqui. o itinerário terapêutico é u m nome que designa u m conjunto de planos. Segundo. reformular o conceito de itinerário terapêutico.s e p r e s e n t e s i n t e r e s s e s . pré-determinado. No curso dessas a ç õ e s . reconhecer a existência de estruturas sociais não significa dizer que elas sejam determinantes das ações humanas. Esses elementos são tomados c o m o suposições básicas ('fazem sentido') para determinados grupos sociais e servem de referências para os processos comunicativos. Porém. outra coisa. ao olhar para as suas experiências passadas. ou. A idéia de itinerário terapêutico remete a uma cadeia de eventos sucessivos que formam u m a unidade. Para que se possa entender como esses dois elementos constituem pontos focais na análise. tenta interpretá- . Tampouco é tarefa da antropologia se ater ao mundo subjetivo dos atores sociais. reformuladas ou mesmo descartadas) ao longo de uma trajetória biográfica singular. uma ação realizada ou o estado de coisas provocado por ela. os recursos materiais e as hierarquias são alguns dos elementos que configuram as situações nas quais os indivíduos se encontram e desenvolvem uma variedade de relacionamentos. Só é possível falar de uma unidade articulada quando o ator. Haverá sempre uma dimensão não penetrada da subjetividade que toma impossível sua reprodução pela análise externa do pesquisador. É claro que uma interpretação não pode captar e reproduzir todas as variáveis que atuam sobre as biografias específicas. f a z e m .Na interpretação de u m determinado processo de escolha terapêutica é preciso que se apresente o sujeito desse processo como alguém que compartilha com outros u m estoque de crenças e receitas práticas para lidar com o mundo. o itinerário terapêutico é o resultado de u m determinado curso de ações. no qual os indivíduos nascem e desenvolvem seus trajetos biográficos. U m a coisa é o significado objetivo de u m dado fenômeno sociocultural definido por u m padrão institucionalizado. o itinerário terapêutico não é necessariamente produto de u m plano esquematizado. não se pode esquecer que os sujeitos constroem suas ações em u m mundo sociocultural. Contudo. Estabelecido por atos distintos que se sucedem e se sobrepõem. Trata-se de u m mundo pré-construído e pré-organizado. novamente. diferente para cada cultura e sociedade. receitas estas que foram adquiridas (e ampliadas. portanto. Os sistemas de signos e símbolos. e v i d e n t e m e n t e . antes. estratégias e projetos voltados para u m objeto preconcebido: o tratamento da aflição. permitindo-nos pôr e m relevância dois aspectos essenciais e interligados: as definições de situação e a natureza das relações intersubjetivas no processo de tomada de decisão. Tais considerações teóricas são fundamentais para o estudo do itinerário terapêutico. as instituições.s e necessário precisar. as definições e projetos individuais ou coletivos. o que existe é uma imagem do que pode ser a sua opção: trata-se. U m a análise que se atenha apenas à descrição das alternativas e possibilidades oferecidas pela sociedade/cultura não poderá compreender como são construídos em contextos específicos os complexos processos de escolha e decisão de tratamento. . para fazê-la. Somente no curso da ação . dos outros . E m primeiro lugar. portanto. na análise dos processos de escolha e decisão. o itinerário terapêutico envolve tanto ações quanto discurso sobre essas ações. voltadas para objetos preconcebidos.a opção por u m determinado caminho e abandono. Nesse aspecto. É importante observar que. Assim. que não são alternativas préconstituídas. Falar de processo de escolha é referir-se a uma consciência de possibilidades que estão ao alcance e são igualmente acessíveis ao indivíduo. o projeto .e. é que o indivíduo começa a interpretar a sua situação. se as alternativas que o mundo social oferece estão fora de controle dos indivíduos e são todas igualmente possíveis. Assim.las de acordo com as suas circunstâncias atuais. que o itinerário terapêutico é uma experiência vivida real. suas ações e o estado de coisas resultante. um fenômeno sociocultural. c o m 'possibilidades problemáticas'. solução ou desenvolvimento futuro. ao menos temporariamente. É necessário entender o significado das ações que constituem o itinerário terapêutico. de uma imagem de que determinado tratamento seja o mais adequado para a sua aflição. Por conseguinte. não se podem confundir. Ao se descrever o processo pelo qual os indivíduos transformam seu ambiente social e m u m campo de possibilidades problemáticas. estas se fundamentam e m diferentes processos de escolha e decisão. transforme seu ambiente social (que a todo momento lhe impõe diversas alternativas) e m u m campo denominado por Husserl de 'possibilidades problemáticas'. por um lado. se podemos dizer. no caso.é passível de ser questionada. por outro. cada ato de escolha está relacionado ao que o ator antecipa a respeito do que vai ser ou c o m o deve ser determinado tratamento. mas decorrências de construções de indivíduos. objetivamente. O termo 'problemática' refere-se ao fato de que a escolha a ser feita pelo indivíduo . com o seu conhecimento presente. os 'campos de possibilidades'. Fundamentado e m ações distintas. após realizado o ato de escolha .o ato intencional de se estabelecer u m curso futuro resultante das ações . torna-se necessário que o sujeito da escolha.está dentro de seu controle. dentro do qual a escolha e a decisão se tornam possíveis.. No ato da escolha e na tomada de decisão. Portanto. deve-se levar em consideração pelo menos dois aspectos: a imagem do que poderá ser o curso futuro projetado da ação e a sua legitimação. o itinerário terapêutico não passa de uma coleção sintética de projeções individuais. sua interpretação é uma tentativa consciente de se remontar ao passado com objetivo de conferir sentido ou coerência a atos fragmentados. Mas como alguém pode saber qual será ou qual deve ser o resultado da sua decisão? Não tem sentido responder a esta questão afirmando que cada caminho ou opção disponível j á apresenta. Uma imagem acerca de um tratamento tem u m caráter fluido.e até mesmo contraditórias . sustentam e confirm a m as elaborações de imagens relacionadas a determinados tipos de tratamento. Importa salientar. a apreensão do que seja o tratamento adequado se dá ' e m imagem' . A consciência não estabelece seus objetos ex nihilo. encontram-se impregnados de interesses. E m outras palavras. de referir-se ao mundo. só existe e só pode existir e m relação às coisas. c o m o observa a fenomenologia.imagem que é. no ato da escolha terapêutica. Deste modo. Imaginar é explicitar o "sentido implícito do real".A imagem. constroem-se intersubjetivamente no curso de eventos concretos.surgem ao mesmo tempo. e sim construída dentro de redes de relações sociais. uma imagem é subjetivamente dotada de sentido porque os outros membros do grupo social afirmam-na como real. na qual os significados são continuamente (re)formulados no interior de situações dialógicas específicas. portanto. responsável pela elaboração de u m projeto e conseqüente tomada de decisão. estratégias e conflitos. O itinerário terapêutico é u m fenômeno por demais complexo para que possa ser subsumido a generalidades que procedem pela descoberta de leis que ordenam o social. que servem de referência para os indivíduos e. entretanto. e m grande parte. pois não é inteiramente formada pela adesão dos sujeitos a u m certo modelo interpretativo. nos quais continuamente se negociam e confirmam os significados de tratamento e cura no cotidiano de cada membro do grupo. É u m nome para uma certa maneira que a consciência dispõe de visar o seu objeto. A recorrência simultânea a vários tratamentos e a existência de visões discordantes . pela autonomia da interioridade subjetiva. hesitações. mas valendo-se de processos interpretativos construídos e legitimados por meio da interação social. Para Sartre. CONCLUSÃO Conquanto pareça existir uma tendência de que a ocorrência de certos sinais e sintomas implique uma ação imediata de determinada busca de auxílio terapêutico.sobre a questão . São justamente essas redes sociais. a imagem está sempre voltada para o mundo. C o m o consciência. como mostrou Boswell (1969): como fenômenos sociais. é um modo de se intencionar a realidade exterior. incongruências. A formação das imagens sobre os tratamentos não se constitui. aos objetos. Imagem e mundo . que as redes sociais não constituem entidades fixas e cristalizadas. sendo o imaginário indispensável para uma apreensão do real como totalidade. não se pode afirmar que exista u m padrão único e definido no processo de tratamento.entendido como totalidade daquilo que se apresenta à consciência . por serem eminentemente situacionais. mero exercício individual da imaginação criadora. a "imagem é u m certo tipo de consciência" (1967:122). contudo. É preciso não ignorar que os discursos. constituídas ou mobilizadas nos episódios de aflição. BLAXTER. argumentos baseados e m premissas previamente estabelecidas para explicar as ações individuais. BOSWELL. Cadernos de Saúde Pública.M. Assim. no GT Corpo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACHINSTEIN. de uma suposta ordem. 1993).terapêutica e v i d e n c i a m q u e tanto a d o e n ç a c o m o a cura são e x p e r i ê n c i a s intersubjetivamente construídas. e m que importa tanto a adesão dos sujeitos a certas imagens. a antropologia terá de mover-se dentro de uma lógica de incertezas e probabilidades. presas a princípios de caráter nomológico-dedutivo.C. & PATERSON. os estudiosos do itinerário terapêutico subsumiram os complexos processos que envolvem a escolha de u m tratamento a um modelo de conhecimento científico que reduz as ações humanas a uma 'geometria do vivido'. de tal forma que. sua família e aqueles que vivem próximos estão continuamente negociando significados (Rabelo. tomando por suposto que os indivíduos orientam suas ações baseados na lógica inerente a esses modelos. o etnógrafo pode correr o risco de pouco contribuir para a compreensão do fenômeno humano. quanto as interações que ocorrem no interior das redes de relações dos indivíduos. D. a análise que desenvolve com base no conceito de 'modelo explicativo' termina por girar ao redor de uma lógica explicativa. ao querer generalizar além do indispensável as suas interpretações. Manchester: Manchester University Press. 1989. na busca de uma generalidade. 1982. (Ed. Personal crises and the mobilization of the social network. que podem confirmar ou não essas imagens. . 1969. ALVES.1993. E. London: Heinemann Educational Books. attitudes and behaviour. 9(3):263-271. Mothers and Daughters: a three-generational study of health.) Social Networks in Urban Situations. M. Desconhecer tal realidade pode ser problemático para qualquer análise sobre o itinerário terapêutico. As diversas teorias que abordam essa temática. La Naturaleza de la Explicación. México: Fondo de Cultura Económica. procuraram desenvolver. A experiência da enfermidade: considerações teóricas. In: MITCHEL. P. Vale observar que as decisões a respeito de tratamento se dão no interior de u m complexo processo. P. Embora a abordagem de Kleinman tenha uma clara influência da hermenêutica. NOTAS 1 2 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na Anpocs de 1994. e m diversos níveis. Investigando o itinerário terapêutico com esta perspectiva. e m que o paciente. J. Pessoa e Doença. 1977. The importance of knowing about not knowing. Medicine and culture: some anthropological perspectives. Estrutura e Função na Sociedade Primitiva..B. Social Science and Medicine. L. Cultural influences on illness behaviour. London: Martin Robertson. In: EISENBERG. Haia: Martinus Nijhoff. Social Forces. 12:85-93. Repensando a Antropologia. 1980. Τ. R. 56:86-105. 1974.1991. S. & SCHOUTHEETE. New York: Columbia University Press. M. Dordrecht: Reidel.1977. Berkeley: University of California Press. F. In: PARSONS. M. & VOLKART. Berkeley: University of California Press. A Interpretação das Culturas. Social Science and Medicine. SARTRE. A.P. E. A. 1974. A. LEWIS. RADCLLFFE-BROWN. São Paulo: Perspectiva. KOOS.) 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As práticas médicas não são redutíveis à aplicação de preceitos de uma ciência pura: são ações de atores situados socialmente. até mesmo de setores da própria psiquiatria. período em que essas instituições sofreram críticas advindas de diversas direções. Neste argumento. interpretação e ações socialmente organizadas para promover a saúde e responder à doença. mas também as ações de diferentes tipos de especialistas e m cura. Assim. inclusive médicos. as discussões travadas no seio das ciências sociais desempenharam u m papel não negligenciável na elaboração das reformas psiquiátricas. que postulam que a realidade da doença corresponde a uma disfunção ou desvio de atividades fisiológicas normais e que as práticas ou técnicas destinadas a tratá-la são universais (assim como as doenças) e neutras. No rastro da atenção despertada pelos problemas mentais. quando se dedicam a refletir sobre a questão da saúde/doença. E m tal contexto. talvez porque esta tenha uma dimensão biológica menos evidente e ainda sujeita a controvérsias. portanto. o campo da antropologia/sociologia médica mostrou u m forte interesse pela doença mental. reside u m ataque aos supostos da biomedicina. que ocorreram e m vários países. Souza INTRODUÇÃO O argumento central das ciências sociais. não apenas as interpretações populares de doença tornam-se alvo das atenções das ciências sociais. significação. é que estes processos encontram-se profundamente imersos e m contextos sociais e culturais. o hospital psiquiátrico é também tomado como objeto de estudo. envolvendo. ao passo que seus aspectos sociais são mais acentuados.5 O Asilo Revisitado: perfis do hospital psiquiátrico em narrativas sobre doença mental Iara Maria A. ao contrário. Essa idéia se pauta e m u m argumento que se pode chamar de construtivista. pois revela que tanto a loucura quanto as respostas destinadas a lidar com ela emergem de determinados contextos sociais. ao passo que Foucault acentua o papel da psiquiatria e da medicina no esforço para a normatização da vida e para a constituição de sujeitos e corpos dóceis. ou seja. em grande medida associada ao interacionismo simbólico que toma a doença mental como objeto de estudo. nos anos 60. A primeira consiste em uma abordagem surgida nos Estados Unidos. rapidamente. Outra idéia importante nesta vertente é a de que o hospital psiquiátrico. como doença.rotinas e rituais sociais . tem exercido uma função de controle social. em razão do que é rotulado como doente ou louco. defendia-se a idéia de que a 'loucura' era também u m fenômeno social e trazia as marcas da sociedade e m que fora criada. Ainda que nem sempre se negasse a existência de u m substrato biológico que inclinasse alguns indivíduos a certos tipos de comportamento. conseqüentemente. . Próximo a essa corrente. duas vertentes no âmbito das ciências sociais voltadas para o estudo do tema da 'loucura' e. Goffman conduz u m estudo sobre hospital psiquiátrico e m que descreve processos sociais . Nesta visão. da instituição destinada a abrigá-la. também poderiam vir a ter u m fim. entrelaçam-se profundamente à vida social. A segunda vertente consiste naquela inaugurada por Foucault desde seu estudo sobre a história da loucura na Idade Clássica. A teoria da rotulação assume uma posição de crítica ao poder médico. contudo. cuja performance rompe com os padrões vigentes de sociabilidade. por meio do qual a medicina adquire poder de moldar estruturas e relações sociais. mostrando como o processo de criação da loucura. O hospital fixa o rótulo de doente mental.que conduzia a uma certa relativização acerca da realidade da doença mental e dos recursos usualmente empregados para tratá-la.que se desenrolam dentro do hospital. Examinam-se aqui. assumir integralmente as idéias da antipsiquiatria. E m grande medida. pensadas como fenômenos sociais. Perpassando todos os argumentos. sem. o que se procurava mostrar era que se a loucura (tal qual concebida pela psiquiatria) e o manicômio surgiram u m dia. assim como a própria medicina. acompanha mudanças na forma de organização das instituições asilares onde se recolhem os loucos. de modo que não há retomo à normalidade após o tratamento. mas porque apontam para a existência de u m violento processo de medicalização e m curso e m nossas sociedades. não apenas no sentido de que emergem e m determinados contextos sociais. procurando mostrar os esforços sistemáticos levados a cabo dentro do manicômio para desacreditar e fazer fracassar as tentativas desenvolvidas pelo doente mental para manter intacta sua identidade. encontra-se a noção de que o conhecimento e a prática médica não constituem domínios autônomos. passando a ocupar desde então um papel desvalorizado socialmente. compreende-se o doente mental como um sujeito que apresenta comportamento(s) desviante(s). enfatizando a inserção da loucura e do hospital psiquiátrico em seu contexto social: a teoria da rotulação. pois e m geral são pessoas leigas. colocam-se alguns pontos sobre o conhecimento no mundo da vida. apresentam-se rapidamente algumas das principais concepções. as circunstâncias apontadas como fatores responsáveis por fazer do hospital uma opção a ser considerada. outros elementos passam a compor o quadro e a tornar-se parte da avaliação e do tratamento. descartada. uma vez que nos permite iluminar certos aspectos acerca dos conhecimentos. entretanto. uma relevância empírica. Este tema apresenta. escolhida.Há. é importante penetrar nesse universo para compreender os processos de decisão que levam à hospitalização e m uma instituição asilar (a menos que se admita que o progresso da medicalização tenha adquirido tal proporção e m nossas sociedades que é possível negligenciar as concepções dos não médicos sobre saúde e doença. que tomam a iniciativa de internamente. acerca da problemática da doença mental. N o entanto. u m tracejado esperando para ser preenchido (e que nunca o é totalmente). Essas imagens tingem-se de uma coloração afetiva . por um lado. Anteriores a qualquer contato com a instituição. Quanto a este ponto. até tornar-se um recurso usual. constituem o foco deste artigo. as experiências de indivíduos que estiveram de alguma forma ligados a esse tipo de instituição. E m primeira instância. Desta forma. pois estes nada mais fariam do que reproduzir. ligadas aos doentes. ao menos por u m período. recursos fundamentais em sua relação c o m ela. dá o tom do primeiro internamente: conflito na hora de decidir. sensação de trair a pessoa doente etc.que. Outro ponto relevante diz respeito às transformações no conhecimento acerca do hospital. u m aspecto pouco explorado. talvez canhestramente. este mesmo tema pode nos remeter a uma discussão sobre questões de interesse para a própria teoria social. e m geral. no caso a doença mental. nessas abordagens que pretendem revelar as ligações entre a sociedade e as instituições psiquiátricas. por exemplo. Precedendo a análise e comentários dos dados. as imagens que compõem esse conhecimento. particularmente o conhecimento que têm acerca da instituição. as imagens que dela se fazem são ainda pouco claras. mas que se constitui e m elemento essencial quando se pretende compreender os liames que ligam o hospital psiquiátrico a contextos extra-hospitalares: o ponto d e vista dos leigos. as certezas do saber médico). O conhecimento leigo acerca do hospital. é importante levar e m conta. tecendo-se alguns elementos de crítica a ambas as posições. 2 . recursos e práticas cotidianas para se lidar c o m situações problemáticas. utilizada. à medida que há uma experiência concreta c o m a instituição. ainda que dependam dos profissionais da medicina para corroborar esta ação. tanto da teoria da rotulação quanto da foucaultiana. Por outro lado. e m u m hospital psiquiátrico. e m que se analisam narrativas elaboradas por indivíduos que tiveram parentes próximos. mas a forma c o m o eles são percebidos e categorizados por aqueles que estão ao seu redor (Scheff. N o interacionismo simbólico não se pensa a realidade social e m termos de sistemas ordenados e harmoniosamente integrados. o principal objeto a ser negociado na interação é a identidade pessoal. de u m papel d e doente (Gerhardt. Percebe-se a aquisição do rótulo de doente . situados. ocorre d e v i d o à reação societal freqüentemente e m eventos de crise. O recurso à terapia implica a imputação de u m papel de doente. quanto altamente problemáticas. . neste quadro. na maioria das vezes. U m dos temas de embate dizia r e s p e i t o à c o n c e p ç ã o d e a g e n t e social: o i n t e r a c i o n i s m o c r i t i c a v a o ator 'supersocializado'. dentro de uma instituição de tratamento. A doença significa u m desvio em relação a u m padrão. uma vez que ocorre por intermédio de uma realização profissional e. c o n s i d e r a d o desviante. emergentes. 1987). ritualizadas. 1978). 1989). notadamente o hospital psiquiátrico. formada por processos negociados. e m uma situação social.como u m processo socialmente organizado.O INTERACIONISMO SIMBÓLICO O interacionismo simbólico despontou no cenário da sociologia americana como uma corrente que confrontava o estrutural-funcionalismo de Parsons. b e m c o m o por conhecimentos pressupostos. é visto c o m o uma circunstância e m que o padrão rotineiro de interação se rompe e a situação se converte e m u m problema c o m o qual os indivíduos têm de lidar. apresentado na teoria parsoniana. O surgimento de uma doença mental. c o m base nas atitudes dos indivíduos uns para c o m os outros. que desencadeiam a atribuição de um status. A atribuição do rótulo de doença a um certo c o m p o r t a m e n t o . As situações de interação tanto podem apresentar-se rotinizadas. pois o significado da identidade se constitui propriamente no processo de interação. e tomar-se doente é ser rotulado. ou seja. Goffman. categorizado como tal. protagonista da cena até o final da década de 50. o interacionismo simbólico recusa as explicações psicodinâmicas para o problema mental e põe o foco sobre as forças sociais e situacionais na determinação da origem e curso da doença e tratamento.incluindo a formação (ou transformação) de uma identidade e da auto-imagem . e enfatizava a capacidade reflexiva dos agentes. Assim. e a aquisição de u m rótulo. 1973. quase autômato. Os interacionistas adotam u m a perspectiva claramente nominalista: o que importa não são os sintomas q u e o indivíduo apresenta. O self é aqui concebido c o m o u m objeto social que se estrutura com base na sociabilidade. o tratamento médico marca uma transição para o status de cidadão de 'segunda classe'. Segundo Goffman (1975. mas se a define como uma ordem interativa. Neste sentido. divórcio etc. N e m todos que infringem regras ou têm atitudes consideradas desconcertantes e embaraçosas e m público são tidos por doentes mentais. 1972. A definição de doença é tautológica: doença consiste no que a medicina define como tal. O interacionismo simbólico assumiu. de modo que se uma determinada ação for levada a cabo sempre resultará e m atribuição de u m rótulo ou enclausuramento e m u m manicômio.Ademais. . logo. ou o nível mais ou menos baixo de tolerância da comunidade. trata-se de uma questão de natureza política ou ideológica (Szasz. A teoria da rotulação e a antipsiquiatria defendem a idéia de que o controle social exercido pela profissão médica força ou educa o paciente para que se torne u m desviante crônico. e não necessariamente a hospitalização. aponta para as dis¬ crepâncias existentes entre a prevalência de comportamentos perturbadores e a incidência de tratamentos psiquiátricos. facilidades de tratamento etc. A teoria da rotulação rejeita a noção de que os distúrbios psiquiátricos tenham origem exclusivamente psicológica. embora a terapia seja u m tratamento. o paciente não readquire a normalidade. e m princípio. perda de emprego. argumenta-se que o escopo do que se pode definir socialmente como doença ou anormalidade é. Sua hipótese é a de q u e há u m a reciprocidade entre o self e sua sociedade significante: se esta submete o indivíduo a sistemáticos esforços de d i m i n u i ç ã o ou d e s t r u i ç ã o d e sua i d e n t i d a d e . status socioeconômico. M a i s d o q u e outros interacionistas. teria u m a função crucial na ressocialização do doente e m u m papel desviante. a construção da identidade pessoal ocorre e m virtude d e u m processo de atribuição tanto institucional quanto do meio circundante mais imediato à pessoa. A teoria da rotulação não considera o papel de doente (doente mental particularmente) como uma incumbência temporária: uma vez que a pessoa tenha entrado e m u m papel de doente. proximidade de u m hospital psiquiátrico. ilimitado. A l é m disso. portanto. e não tanto pelo m é d i c o . uma atitude de forte oposição ao modelo médico: compreendese a medicina c o m o u m empreendimento moral. como a lei ou a religião. Por outro lado. E m contraposição. Goffman argumenta que não há um parâmetro sistemático unindo u m ato à reação societal. afirma que os pacientes mentais sofrem não de doença mental. tornando sua incumbência permanente.. Assim. mas de contingências: a visibilidade de suas ações. E m sua visão. O tratamento médico.1980). Goffman preocupa-se c o m o rótulo atribuído p e l o hospital c o m o instituição. nesta perspectiva.como a prisão. dada sua função como agência de controle social. que busca encobrir e controlar o que se considera indesejável. os comportamentos que levam u m indivíduo ao internamente e m u m hospital psiquiátrico sempre poderiam ter acarretado outras reações ou conseqüências . . processos institucionalizados de controle social promovem a internalização das expectativas do papel. e a medicina define como doença o que lhe interessa. isto o torna finalmente incapaz de manter o self original intacto. u m ponto a mencionar: a idéia de contingência. na perda e reconstrução da identidade engendradas por meio de uma seqüência de experiências de mortificação (raspar a cabeça. ainda. ao a c e n t u a r e m a n a t u r e z a política da c a t e g o r i z a ç ã o de d o e n ç a . como uma identidade negativa e socialmente estigmatizada. permanece vaga e pouco explorada. nunca pode sair.E m sua análise do manicômio como instituição total. Goffman afirma que as duas funções da terapia consistem. c o m o se nada houvesse acontecido. e m uma função disciplinar. Existe. a experiência dos homens no mundo resulta de princípios e causas dos quais eles não têm consciência.e ao a s s u m i r e m u m a p o s i ç ã o crítica perante a m e d i c a l i z a ç ã o de várias formas d e c o m p o r t a m e n t o e estilos d e vida n ã o c o n v e n c i o n a i s e perante o p o d e r da m e d i c i na d e atribuir e fixar o rótulo de d o e n t e mental sobre certas pessoas .t e r m i n a m i n a d v e r t i d a m e n t e por destituir o indivíduo rotulado da c a p a c i d a d e de reagir a este p r o c e s s o . mas entre uma e outra há trajetórias e cursos alternativos de ação que merecem mais atenção. assim. . uso de farda etc. ao contrário. A doença. FOUCAULT Ε A HISTÓRIA DA LOUCURA Foucault. Acrescenta-se a isso o fato de que o tratamento em instituições afasta o indivíduo de seu mundo. condições de possibilidade de emergência de processos sociais. ao contrário da abordagem previamente apresentada. realizada mediante mecanismos de recompensa e punição. além de restar uma certa ambigüidade e m sua análise: o que realmente importa na atribuição e fixação do rótulo de doente mental são a crise pública e a conseqüente reação societal suscitada.). r e l a t i v a m e n t e incapacitado para lutar contra a redefinição da sua identidade c o m o u m m e m b r o d e s v i a n t e da s o c i e d a d e (Gerhardt. O papel de doente converte-se e m uma gaiola de ferro hermética. objetifica-se na interação. primeiro. ter o nome trocado por u m número. embora seja fundamental. destruindo assim os canais de comunicação que ajudariam os pacientes a se reintegrarem e m suas família ou empregos após a saída do hospital. n o caso do doente m e n t a l . D e s t e m o d o . Tanto a c o n c e p ç ã o da teoria da r o t u l a ç ã o q u a n t o a análise de Goffman. ou a ressocialização na instituição? Certamente ambas. seu esforço analítico envolve u m a tentativa de revelar estruturas. 1989). não se volta para compreender a ação social. e e m segundo lugar. O i n d i v í d u o p e r m a n e c e . não permite ao indivíduo o retomo à vida normal. O sujeito é concebido antes c o m o efeito de estruturas do que c o m o self reflexivo. uma vez preso. da qual o indivíduo. o caráter ativo do ator social v e m a ser r e d u z i d o : ele não m a i s é visto c o m o sujeito q u e se constitui na interação c o m outros sujeitos. malgrado contassem c o m serviços médicos. em nossa cultura. interessa a ele o a explicação da inteligibilidade das práticas sociais.A despeito das diferenças de abordagem. compreendida como doença mental. o autor não se propõe a buscar as origens dos conceitos científicos e das grandes descobertas. é uma análise histórica de práticas institucionais e discursivas (práticas discursivas se distinguem de discursos cotidianos por serem falas 'sérias'. isto é. idiotas. Foucault mira a psiquiatria nascida na segunda metade do século XIX e tenta desvendar quais foram as condições de possibilidade de seu surgimento. A essa época. não se trata de avaliar bem o problema. Foucault e o interacionismo simbólico mostram afinidade no que concerne à preocupação com o processo de medicalização que se evidencia na sociedade moderna. ao mesmo tempo em que revela a continuidade na forma de tratá-la. devassos. O enclausuramento do louco em uma instituição de reclusão não tinha então finalidade terapêutica. compunham a população dos asilos ou hospitais gerais. marcada pela exclusão e pelo confinamento. Ou seja. Em tal análise. apaixonados. pronunciadas por peritos) relativas à loucura. instituições que. O conteúdo da loucura na Idade Clássica constituía-se pelo contraste entre razão e loucura. nem se fundamentava no conhecimento de uma patologia . A seu ver. a psicanálise. colocá-lo em termos da busca de um tratamento mais humano e mais adequado para a loucura. Foucault não marcha ao lado dos humanistas defensores de reformas psiquiátricas. o louco passou a ser excluído espacialmente e confinado . A loucura significava desrazão. Contudo. não consistindo ainda em uma disfunção médica. Embora se volte para a Idade Clássica em A História da Loucura.ocupando o lugar antes destinado aos leprosos . formando um grande grupo: bêbados. transformando-os em objetos dóceis (Rabinow & Dreyfus. por volta do século XVIII. ao mesmo tempo em que o tema da loucura obteve visibilidade cultural. associada à desordem e excessos. Entretanto. um dos primeiros trabalhos do Foucault arqueólogo. os loucos. Λ História da Loucura. não eram instituições médicas propriamente. a psiquiatria. Entretanto.. a loucura não é um objeto que se teria revelado progressivamente pelo trabalho de cientistas precursores até que a psiquiatria moderna atingisse a sua verdade última. Em sua ótica. Em seu estudo. bem c o m o os pobres e os indigentes. a loucura. Foucault acentua as descontinuidades nas concepções de loucura. importa ressaltar que não se trata de uma história da psiquiatria nos moldes tradicionais da história das ciências. bem como as próprias ciências do homem são empreendimentos que. Foucault aponta que. 1995). que não é acessível aos atores sociais. sob a qual se agregavam diferentes tipos. vagabundos. tentam normalizar os indivíduos por meios cada vez mais racionalizados. 1982). trata-se do fato de que tanto a medicina. ainda não havia naquele momento uma definição precisa do que constituía a loucura. é antes uma invenção do que uma descoberta (Machado. deveria permanecer isolado e m asilo. E m t o m o da segunda metade do século XVIII começou a se delinear uma nova visão da loucura. cujo ponto final seria a definição médica da loucura como doença mental. ocorrendo no interior do espaço de reclusão. relacionava-se a uma nova avaliação da pobreza na ordem capitalista: naquele novo contexto. A humanização da loucura revela a história de uma "série de operações que organizava o mundo asilar. 1978:476). políticas e sociais. que supostamente teriam a missão de revelar uma verdade sobre os seres humanos. argum e n t a Foucault.específica. nessa m a r c h a da a u t o n o m i z a ç ã o da l o u c u r a . Foucault considera que essas ciências. e portanto j á não deveria ser encarcerada. e m que esta passou progressivamente a se distinguir e autonomizar das outras categorias às quais estava antes associada. A loucura. tomava-se fundamental para a riqueza das nações. a alteridade da desrazão. A existência do asilo foi essencial para o surgimento das ciências médicas e humanas. significava que se acreditava no efeito terapêutico da reclusão por si mesma. Manter o louco e m liberdade vigiada e encerrada entre quatro paredes teria o poder de curar. A medicalização da loucura que teve lugar naquele momento ainda não assinalava a entrada de teorias médicas no espaço hospitalar. Há. esse processo deveu-se m e n o s a u m a m u d a n ç a teórica na conceituação da loucura do que a razões econômicas. sim. cujos conhecimentos e métodos se desenvolveram no isolamento e na observação dos diferentes tipos de pessoas encontrados sob o m e s m o teto no hospital. anteriormente desrazão. porém. personificada na loucura. entretanto. a pobreza. A transformação da loucura e m objeto de conhecimento médico teria resultado desse confinamento. pois forneceu os fundamentos a partir dos quais pôde emergir a categoria de doença mental. ao contrário dos pobres. O louco. é a abertura para . 3 Tal transformação expressa também uma nova consciência da loucura. longe de significar uma libertação da loucura. Foucault acentua o papel do asilo e do médico no desenvolvimento das estruturas de internamento e dominação e m nosso mundo. os métodos de cura e a experiência concreta da loucura" (Foucault. A Substituição do internamento geral pelo específico. que se apresentava revestida de u m certo humanitarismo. Por isso. na abordagem da loucura. Daí a separação entre o louco e outras categorias de pobres e desvalidos. alienação . o tratamento na instituição visava a u m disciplinamento do corpo e do espírito do louco. como força de trabalho. O louco não era mais preso a correntes. mas de uma percepção do indivíduo como ser social.o q u e deu início ao processo de interiorização e psicologização da loucura. na realidade atuam na articulação entre a classificação e o controle destes. Para ele. passou a ser vista c o m o perda da natureza. u m d e s l o c a m e n t o conceituai considerado de grande importância por Foucault. E m A História da Loucura. A designação de alguém como louco e sua internação não dependiam de uma ciência médica. pois era considerado incapaz para o trabalho e perigoso para o restante da população. D e fato. como a construção de histórias tristes. apesar da ênfase na reação societal e na negociação. a pessoa com problema mental torna-se vítima. u m produto da história. embora estes possam informar e participar de várias formas do discurso leigo do usuário. a loucura merece figurar como uma fonte (talvez única) de crítica efetiva contra a cultura moderna. obscurece o sujeito e cai e m u m certo funcionalismo e uma tautologia. A subjetividade. se mesmo os esforços das ciências humanas para explicar/compreender as práticas médicas e sua relação com a vida social fazem parte da inclinação à ordenação e racionalização do mundo moderno. por enfatizar o papel de controle social exercido pela profissão médica. Goffman (1987) chama a atenção para a existência de recursos simbólicos aos quais recorrem os atores. e não se vislumbra muita saída para tal situação.que malgrado elas mesmas conduzem ao pessimismo . ignora-se ou negligencia-se o fato de que as pessoas possam estar ou não experimentando os processos que se afirma ocorrer.em sua versão da teoria da rotulação . nesta concepção. portanto. de fato..uma contestação radical da nossa civilização. particularmente no caso do pensamento foucaultiano. E m todo caso. acaba por destituir os indivíduos de recursos para lidar c o m os efeitos da institucionalização. sem recurso. C o m o argumenta Bury (1986). é ela mesma u m efeito. O comportamento dos indivíduos orienta-se mais por projetos e interesses cotidianos do que por discursos sérios. a experiência subjetiva dos atores não deve ser levada e m conta para se explicar o mundo social. tampouco suas histórias tristes têm crédito. E m geral.quando a análise se encerra no próprio circuito dos discursos e do conhecimento de especialistas: neste caso. a questão pode apresentar novos contornos e matizes. seu poder de determinar o que é ou não doença e de fixar sobre os indivíduos o rótulo de doente mental. a segunda. o uso ordinário da parte dos leigos é muito mais mundano e menos sério do que faz crer a análise das práticas institucionais. porém. Tanto Foucault quanto a teoria da rotulação acentuam a 'medicalização' e a instância de controle: o primeiro. inclusive do hospital psiquiátrico. não há como se resistir à medicalização ou escapar às malhas do poder médico. ao situá-la juntamente com outras ciências do h o m e m no centro da nossa tendência cultural à racionalização e burocratização. circunscreve sua análise à estrutura e ao processo de larga escala. mas encontra-se confinada aos asilos ou ao controle das drogas médicas. Foucault. como eles estão reduzidos a uma condição de 'desacreditados'. O interacionismo . Ε tanto mais fácil permanecer preso a essas visões . Mas se nossa atenção se volta para as práticas cotidianas e o uso concreto que se faz dos recursos médicos. . nem o enquadra completamente. antes de assumir a realidade como constrangimento externo que explica as respostas dos sujeitos. d o que iluminar as vidas que as pessoas vivem. a experiência sempre a ultrapassa. essa reflexão não o alcança. É no conhecimento do senso c o m u m . ao comentar a crise das ciências modernas. sem abandonarmos o campo das ciências do homem. sem obter nunca u m sucesso perfeito (Jackson. A ciência está sempre e m busca da explicitação do sentido da experiência.0 CONHECIMENTO DO SENSO COMUM Se o problema do mundo social contemporâneo for abordado e m termos de uma racionalidade científica que se expande e conforma todos os aspectos da organização e da vida humana. atribuindo significados (Dartigues. A vida não está a serviço da idéia. Husserl (1996) critica o objetivismo. Por outro lado. Nas ciências sociais. afirmando que mesmo as construções teóricas das ciências da natureza edificam-se sobre o solo da nossa experiência no mundo. isto é. mas sempre questionável que se principia a investigação. exercitarmos julgamento próprio? A fenomenologia pode nos dar algumas indicações para recolocarmos esta questão. Nas palavras de Schutz. Posto que o cientista social encontra u m m u n d o pré-interpretado . de modo que é preciso refazer os laços que ligam as teorias científicas ao mundo vivido. 1997). ao mundo e m que se vive sempre e que constitui o solo para toda atividade de conhecimento e toda ciência. os objetos de pensamento que formula para captar a realidade devem ser fundamentados nos objetos construídos pelo senso comum. No processo interpretativo de atribuição de significados. 1973). conhecer é iluminar as coisas e trazê-las à luz do dia. e trata-se do único âmbito e m que é possível efetuá-la. Por u m lado. 1996). fazendo projetos. e m sendo a ciência uma reflexão sobre o vivido. é possível ainda. o objetivo é menos chegar à verdade acerca de princípios e causas que determinam a vida dos sujeitos e dos quais eles não têm consciência.e m que os atores constróem idealizações e tipificações . os atores lançam mão de um sistema de tipificações. compartilhados constituem o mundo social. é importante ter e m mente que. No caso das ciências do homem. Deriva daí a seguinte questão: na medida e m que isso nos atinge e cega a todos.o fundo 'inquestionado'. toda "interpretação do mundo se 4 . mas como a experiência não é determinada pela reflexão e a racionalização que tenta dominá-la lhe é posterior. O conhecimento do mundo (do cientista e do ator social) faz parte do mundo. exercendo suas atividades práticas.. é a idéia que tenta enquadrá-la. a esfera do raciocínio prático desaparece (Risser. o retorno ao mundo da experiência é o retorno ao mundo vivido. em que se busca conferir unidade e sentido a um conjunto de eventos e vivências. Os sociólogos precisam conhecer os modos c o m o os significados. habitual. aquilo que fica na zona de pressupostos e. o que se considera relevante ou não. não é questionado. Isto porque o mundo é intersubjetivo e nosso conhecimento dele é socializado. é a situação biográfica do indivíduo. cujo resultado tomouse agora posse nossa. Tipicamente. servindo ao mesmo tempo como u m código de interpretação e como u m preceito para ação. funcionam como um código de referência" (1979:74). presentes e determina suas antecipações das coisas futuras. É importante levar e m conta que novas experiências. Neste sentido. Foi constituído de e por atividades anteriores da experiência de nossa consciência. alargando-o e enriquecendo-o. à medida que ocorrem. o conhecimento do senso comum. A seleção e ordenação dos eventos passados realizam-se à luz de u m projeto. O que determina e m cada momento a estrutura deste estoque de conhecimento. diz Schutz (1979). parecer contraditórios. este estoque não pode ser pensado meramente c o m o u m repositório de informações transmitidas pela tradição. incorporam-se ao estoque de conhecimento à mão. C o m relação a esta questão. ao qual se recorre continuamente. o sistema de interesses teóricos e práticos que fazem parte do seu 'aqui e agora'. 1979: 74). enfim. apesar de suas insuficiências. que são transmitidas pela tradição.baseia em u m estoque de experiências anteriores dele. o "homem na vida diária tem a qualquer momento um estoque de conhecimento a mão que lhe serve como um código de interpretação de suas experiências passadas. consiste por si mesm o e m assunto a ser definido e m cada situação. há dois pontos a observar: primeiro. o olhar que se volta para o passado é comandado por uma visão do futuro. nunca é completamente fechado e homogêneo. por isso não se pode compreendê-la como mera cognição. Tal estoque de conhecimento. pode-se comparar o estoque de conhecimento à m ã o a uma receita. comportando incoerências e zonas de maior ou menor clareza e precisão. isso não significa que os esquemas de conhecimento prévios não estejam sujeitos a críticas e questionamentos. modificando-o. Contudo. basta para que nós nos entendamos com o próximo. divide o campo não problemático do problemático e distingue as zonas de relevância. Portanto. N o entanto. no interesse à mão que motiva o pensar. o problema atual e a perspectiva de sua resolução no futuro definem a configuração do sistema de tipificações e relevâncias." (Schutz. os objetos culturais e as instituições sociais: a realidade social. Ou seja. portanto. e sob a forma de conhecimento à mão. Este estoque de conhecimento a mão tem sua história particular. A consciência está engajada no mundo. projetar. Assim. há pouco interesse e m ir além do conhe¬ . utilizado como quadro de referências na interpretação de situações. o problema c o m o qual o indivíduo se defronta define. a princípio. Este caráter fluido e relativamente pouco estruturado é que permite ao estoque de conhecimento dar conta de experiências e acontecimentos que podem. o que merece ser visto c o m maior ou menor clareza e o que pode permanecer não questionado. naquele contexto. Para Schutz. compartilhado de diversas maneiras. agir. conforme as necessidades do momento. e m geral se renuncia à qualquer dúvida a seu respeito. podem-se empregar de novo as estratégias utilizadas com sucesso na resolução das situações passadas para as experiências atuais. 1994). A profundidade e amplitude do questionamento . A o mesmo tempo. projetar. é o projeto. O conhecimento prévio. da existência de diferentes perspectivas. e m possibilidades problemáticas. A configuração que assume a cada momento o estoque de conhecimento à mão é determinada pelo fato de que os indivíduos não estão igualmente interessados em todos os aspectos do mundo ao seu alcance. Na definição da situação. que determina o conhecimento do mundo atual. passa a ser tematizado e re-explicitado. o ator transforma seu mundo de possibilidades e m aberto e m possibilidades problemáticas (Alves & Souza. formulado aqui e agora. Faz parte da mundo da vida cotidiana a confiança e m que o mundo permanecerá c o m o tem sido até agora. é importante considerar que qualquer questionamento do mundo surge do que é tido como suposto. Escolher implica. Deve-se salientar. escolha entre visões e cursos de ação alternativos não emergem de uma preferência baseada na indiferença. portanto. até que surja algum problema. E m segundo lugar. tecer fantasias dentro de u m determinado quadro de acontecimentos e conhecimentos já incorporados à experiência. porém. por conseguinte. e enquanto o conhecimento funciona de modo satisfatório. faz-se u m esforço no sentido de integrar o setor problemático àquilo que j á não é problemático. o acervo de conhecimento obtido para a orientação no m u n d o conserva sua validez até segunda ordem. Essa confiança na estabilidade do mundo e na repetição de atos exitosos prévios é o que Husserl chamou das idealizações do "assim sucessivamente" e "posso fazê-lo de novo" (Schutz & Luckmann. É a projeção de um mundo futuro e o retorno ao presente. portanto. que dita o que é relevante ou não na situação. 1979:150). sua problematização. reinterpretação. o conhecimento se renova. embora oriente. Q u a n d o o surgimento de u m p r o b l e m a interrompe a rotina é q u e se toma consciência das deficiências do acervo de conhecimento: algo que até então não se questionava torna-se alvo de interrogações. que o acervo de conhecimentos é sempre sujeito a retificações ou corroborações de experiências por vir. A interpretação dada. não determina nossa experiência futura. 1973). de algo que se acredita conhecer. o fim futuro almejado pelo projeto é que vem iluminar a situação presente.cimento pragmaticamente necessário. conferindo a esta seu significado. As escolhas entre diferentes cursos de ação consistem. Correlatamente. U m a escolha representa "o surgimento de uma preferência unificada a partir de preferências concorrentes" (Schutz. originadas da dúvida. M e s m o nos casos em que a experiência atual corresponde e m grande medida ao que era esperado. em que a imagem da ação j á concluída é trazida à cena. escolhe-se o internamento. O hospital revela possibilidades de comp r e e n s ã o q u e . estão condicionadas ao enquadramento q u e se confere ao problema. é u m comentário a seu respeito. a situação-problema q u e e m geral se apresenta c o m o p o n t o d e ruptura . resulta de uma situação de crise. se por u m l a d o e n c o n t r a m sua evidência na p r ó p r i a o r d e m institucional. C o m o o m u n d o da ação e d o conhecimento prático é dominado pelo motivo pragmático. por sua vez. o estilo de cognição que t e m lugar nessa esfera da realidade é determinado pelos interesses envolvidos na situação. N o Nordeste de Amaralina. A hospitalização. mas sempre à luz de u m a certa situação e de u m projeto que orienta a explicitação do seu sentido. n ã o se encerram nela. após inúmeras considerações. vacilações e dor. que permite que se iluminem alguns dos seus aspectos (Jackson.ocorre quando a pessoa c o m problema mental c o m e ç a a se afastar do âmbito doméstico. e m geral. à espera de ser apreendido por aquele que tenha a visão mais apurada ou o instrumento mais correto. quando se consegue dominar a situação. 1996). q u a n d o o conhecimento constituído pela explicitação é suficiente para o d o m í n i o da s i t u a ç ã o " ( S c h u t z & L u c k m a n n . é o fato de o mundo da vida consistir em u m mundo de linguagem. exigindo de forma premente uma solução: trata-se de um comportamento c o m o qual não é possível lidar c o m os recursos habituais e. IMAGENS DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO O hospital psiquiátrico não é algo que tenha u m sentido inerte. O conhecim e n t o t o m a .a partir do qual a doença deixa de ser manejável c o m a utilização dos recursos costumeiramente empregados . Embora a narrativa não se confunda c o m a experiência.s e suficiente até n o v o aviso. mas que perpassa toda a argumentação. " A explicitação de u m a situação ou experiência se interrompe. e vai para a rua: . O interesse na situação limita até q u e ponto há necessidade d e determinação do que está obscuro ou e m aberto.dessa nova explicitação. as explicitações são seletivamente dirigidas para as situações e dominadas pelos motivos pragmáticos. e m geral. Por fim. da vizinhança. 1 9 7 3 : 1 4 6 ) . H á possibilidades de sentido no ou do hospital (ou de qualquer objeto) que se revelam. E m r e s u m o . dar coerência e sentido às experiências. permitem que estas sejam intersubjetivamente validadas. Por meio da linguagem é possível objetivar. acerca de experiências pessoais. u m aspecto ainda não mencionado. pois os outros com quem se compartilha o mundo sustentam o senso de realidade. As narrativas dirigidas aos outros. encerrado e m si m e s m o . a gente internamos. aqueles moleques atrás dela.. Na maioria dos casos. sobre a irmã Belinha: Da primeira vez. ele tava em outro canto. Dava pra fugir.. pra ver se tava no juizado de menor. inviabiliza os esforços para se controlar. Aquele que se distancia de casa encontrase na rua e m uma situação de risco. A fuga para a rua." Ele já saiu daqui pá São Sebastião. e a gente ia percurá ele. elencam-se transtornos trazidos por essas incursões para rua. ficar bulindo com ela. né? Ela pela rua.de a pessoa. amarrava. o que produziria uma deterioração e m seu estado já declinante. sobre o filho Jorge: Internamo porque ele fugia. na hora que ela [a mãe] não for. O jeito é internar. ao menos parcialmente. Nas narrativas. Saía com o retrato dele pá tudo quanto é canto. pá outo lugar e não sabia vortá. pá tudo quanto é canto ele ia. de uma pessoa fazer qualquer maldade. né isso? Então mãinha ficou. os malandros daí da Amaralina começou a.. aqui no Vale das Pedrinhas. ia pá rádio. A gente interna. pra ver. como outros tipos de abusos (ser enganado. podendo tanto sofrer danos físicos (atropelamento. teve uma oca­ sião também que ela. vi em Itapoã. aqui no Vale das Pedrinhas. de forma alguma é negligenciável . Já pensou uma pessoa assim no meio da rua? Não se pode chegar assim e amarrar ela. Itaparica. né? Se fosse um cachorro. Liane. embriagado). entretanto. as performances públicas do doente.Liane. surras etc. mas as pessoas e m torno conseguiam monitorar suas ações de modo a mantê-lo dentro de um padrão aceitável de normalidade. para locais distantes da casa e do próprio bairro. vi no aeroporto. Não é isso? Como é que pode a gente ficar? Eu não posso ficar. né? Ε ela ficou agitada.. não raro é citado o fato que se não é o mais importante. ele já foi. Meteram um soco nela. toda hora olhando pra ela. como os candidatos à hospitalização são pessoas que usualmente já estão sob algum tipo de cuidado médico.. D. ele saía de um bairro e pegava ônibus e aí ele ia pá. pra ver se tava preso. ela não queria tomar o remédio. horrível. e a gente interna. aí nego dizia: "eu vi em tar lugar assim assim. Tem que internar. a gente não vai amarrar. outro lugar. sem saber o que tava fazendo. e m um ambiente potencialmente hostil. a gente não pode faltar dia de trabalho. e a gente ia atrás. que deu foi uma murraça assim nas costas. pá tudo quanto é canto. Outra vez foi aqui na. Mas uma pessoa.. ela . ridicularizado.. Ε outra. o indivíduo doente j á apresentava anteriormente uma série de comportamentos que discrepavam do padrão e se mostrava claramente problemático. todo dia que tiver visita. ia apelar pá polícia. Aí eu me virava. né? Até matar. eu tenho que fazer minhas coisa. O jeito é internar mesmo. e m suas ausências de casa. sobre a irmã Belinha: Sofreu muito. a gente ficou com medo. Passava dias na rua. muito. Só queria ficar saindo pra rua.). eu vou. O mais enfatizado deles é o perigo que corre a pessoa em contato c o m estranhos. Adalgisa. Feira de Santana. Além disso. vi. pá percurá ele. o sujeito deu aquele murro nela. né? Ε teve um aqui também.. Quando a gente ia ver. não seguir o uso dos remédios. pra ir trabalhar. Ah! quando eu abri a janela. abriu a janela.ou. outro na varanda. Adalgisa. eu fechei a porta e deixei um cachorro do lado de fora. Esta tendência é reforçada quando. os lábios dessa altura. mas novas demandas sobre aqueles que estão encarregados de cuidá-los. foi pra Amaralina meter mão no tabuleiro dos outros. D. ao menos. tava lá na casa do meu irmão.. associado a isto. a pessoa começa apresenta comportamentos agressivos para com os membros da família e/ou com estranhos. e ela saiu e ele não viu. ô meu Deus. os moleque... Cadê ele lá dentro? Só tava a cama pura. mãe tá aí correndo rua. se tais comportamentos são.. e um dentro de casa. às veze ele vai pra um lugar estranho. fui pro hospital. foi Deus que assoltou ela e não matou. fazem que a possibilidade de internamento . abusam ele e tudo. né? Num sei o que fazer. vei queixa aqui que ele fizesse nada com ninguém. Me sentei no só. Botava pra procurar.implica não só risco para os doentes. o. minha irmã chora. Fica se o carro tinha pegado Vadinho. no sofá e abaixei a cabeça e fiquei sentada chorando.corre daqui. Ivanilde: De novembro pra cá. onde Vadinho foi. uma vez correu um bocado de hospital. Contudo. rindo da cara dela e saiu com sacola pra cima e pra baixo. não achou. isso aqui dela ficou tudo roxiado. ficou com os lábios dessa altura. Joana. Ela bateu a boca. foi ao pronto socorro. cinco e meia da manhã. o que conduz ao internamento . Nina sobre a mãe. Essa nova faceta do problema . Correu minha Sra.. decorrentes da convivência cotidiana c o m alguém que sofre de problemas mentais: D. ela caiu pro outro lado. sobre o filho Vadinho: Aí com aquilo. pulou a janela e foi embora. no fundo. Firmina. Ε ele se levantou. eu ficava sem trabalhar e pensando dele fazer alguma coisa demais. Êta Vadinho. nego fazendo guaiafara com ela. Aí ele sumia. tava aí. Se tinha acontecido alguma coisa. o quarto. e m geral. pra poder sair.. Outras ações. tarefas e preocupações distintas adicionam-se às j á habituais. não deixa ninguém em paz. mas ele nunca..as fugas e os desaparecimentos . corre dali. Quando pensava que não. desce seguindo ela. D. aí jogam pedra nele. sobre o filho Jorge: Os menino. Eu disse: Meu Pai do Céu! Ε agora Jesus? Que é que eu faço? Zeca foi embora! Aí eu voltei naquela tristeza. xingando ela. Mãe aí. o carro panhou ela atiçou pro outro lado. Quando atiçou pro outro lado. Delineia-se claramente uma tendência à internação quando o caso foge ao âmbito doméstico. Eu acordava cedo pra poder arrumar as coisa. só Deus pra dar um jeito. travesseiro debaixo do braço. sobre o filho Zeca: Aí nesse dia. Desde quintafeira pra cá a gente não vê mãe. correu Nina Rodrigues. Ela trevessou ali aquela pista. Mas se caso precisar. que teve que internar. né? N a hora que precisa. Que melhorou nada.tome-se menos longínqua e passe a figurar como 'possibilidade problemática' . porque ela. que chorava a mais velha. No entanto. por vezes a mãe de Adélia vislumbra com certo alento a possibilidade de deixá-la por algum período em um asilo. porém . Mas foi agravando que chegou um ponto de a gente internar. O caso de Adélia (abordado também nos capítulos 2 e 8). mas como uma necessidade que se impunha acima das hesitações e dos sofrimentos que essa decisão causava a todos. que chorava eu. chorava. eu tive que ir. doentes e seus próximos. Liane. de modo que não haveria por que ficar internada. ele mandou eu ir. tinha ocasião q u e a gente internava porque era forçado a internar. Ana Amélia. Ações como a de internação não são determinadas. que a gente vê que tá precisando. não há um padrão sistemático ligando um tipo de comportamento a uma resposta específica. Nina. e não seria justo para com Adélia submetê-la a tal condenação.. em um conflito na rua. avaliando que a filha não era louca. Ela não queria ir. mas imediatamente sua mãe a trouxe de volta para casa. sucede-se na contracorrente da maioria de outros casos.. é minha mãe. sobre a mãe Ivanilde: Foi.. não tá tendo [necessidade de internar]. Ela não tá bulindo. A percepção de uma situação como crítica pede . porém. dali pra pior. a gente vai ter que internar. Nas narrativas.. tem dia que não pode deixar ela em casa. sobre mãe Bem-Bem: Por esses tempo aí. entretanto. talvez se possa entender melhor a crença no imperativo como algo instrumentalmente necessário no momento de crise. Conhecida nas redondezas da rua onde mora como louca violenta (embora sua mãe conteste esta versão). vixe. como é q u e diz. Adélia cultivava o hábito de consumir seus dias em longas jornadas pelo bairro e arredores. não tá fazendo nada. não se apresenta a hospitalização como uma ação possível entre outras opções. que ensinaram [uma casa de candomblé] a ele [o filho].quando se vêem as histórias em retrospecto . não. para que ela (a mãe) possa ter uma trégua dos infindáveis transtornos e trabalhos decorrentes da doença da filha. Envolvida. que a gente foi no Bahia. resistindo à tentação. por exemplo. a presença desses mesmos comportamentos apresentados por Adélia são determinantes na decisão de internar. pra ver se melhorava. Termina. Em muitos outros casos. sobre a irmã Belinha: A gente resolveu internar. que o primeiro internamente dela foi no Bahia. a execução de tais ações não sela de forma definitiva o destino daquele sobre quem paira a ameaça de ser confinado em um manicômio. como bem mostrou Goffman e como ilustra o caso de Adélia. No entanto. foi levada pela polícia a um hospital psiquiátrico. mas mãe chorava. em certa ocasião. aí tem que procurar mesmo. pois o hospital se lhe configura apenas como um local onde vivem os insanos. soluções de autoridade para que as pessoas possam reaver o domínio sobre suas vidas, pois não é só a vida do doente que escapa ao controle, mas a dos demais também se vê tragada pela desordem (Jackson, 1996). Apesar do alegado imperativo e dos possíveis benefícios do internamento para o doente (duvidosos) e para seus familiares, não é sem dor e sofrimento que se chega a deixar alguém confinado no hospital psiquiátrico, particularmente na primeira vez em que isto acontece. Em parte, a sensação de que se está cometendo uma violência para com a pessoa que vai ser encerrada em um manicômio relaciona-se à imagem inicial que se possui do hospital. Esta, ainda que turva, corresponde grosso modo à visão dominante no senso comum: casa onde vivem pessoas realmente loucas, submetidas a tratamentos desumanos, a torturas com choque-elétrico e camisas-de-força, o hospital não é bem um local de terapia, mas de contenção. Liane, sobre a irmã Belinha: Porque quando ela saía, por exemplo, se desse o destino de lá do Nordeste, ela saía de lá, ela ia pra Santa Cruz, da Santa Cruz ela ia lá pra Amaralina, ia lá pra Pituba, ia andando, andando, andando. (...) Tanto que eu já tinha dito a mãinha: "Oh, mãinha, a gente tem que ir num lugar mesmo. Ou no Juliano Moreira [hospital psiquiátrico], ou como é que diz, aí no Camargo [centro de saúde mental], mas se, como é que se diz, não atender, ou qualquer coisa, a gente tem que tomar uma providência, ir no Juliano Moreira, procurar um lugar pra levar. Pra ver o que que ela tem, que é pra tomar remédio, pra não perder o juízo de tudo, não ficar louca, louca." (...) Na m e s m a hora que m ã i n h a queria internar, mãinha ficava chorando, ficava com pena, né, dela: "Ah, meu Deus do céu, minha filha no meio daquelas pessoas assim, c o m o é que diz, mais agitada do que ela, oh, meu Deus, oh, minha Nossa Senhora." M ã i n h a c h o r a v a , q u e não tinha sossego. Todo dia c h o r a n d o , a gente que ficava com pena de internar ela. Os relatos tendem a confirmar as expectativas daquilo que era tomado por suposto. O foco das narrativas não recai sobre os aspectos tacitamente assumidos: não se põe em questão o fato de que o hospital psiquiátrico é um asilo para loucos; o que recebe a atenção e descreve-se de forma dramática é a situação e m que se tornou necessário o internamento. O que a narrativa propõe, portanto, não é uma contradefinição radical da concepção de hospital que predomina na comunidade, e sim o drama daqueles que se vêem obrigados a pôr seus parentes nessas instituições. Neste aspecto, a narrativa mostra u m tom de justificativa moral. Por um lado, o acordo tácito sobre o que é o hospital expressa a suposição do narrador de que seu ouvinte compartilhe consigo o mesmo conjunto de pressupostos. Todavia, se observarmos a narrativa como uma peça de retórica - em que aquele que fala se dirige a uma audiência da qual espera reações favoráveis, aceitação de seu argumento - , então pode-se interpretar a manutenção dessa conso¬ nância como uma preparação para o acordo acerca do que é dito e m seguida, uma solicitação de cumplicidade com relação àquelas partes da narrativa a respeito das quais o conhecimento é mais frágil e a aceitação, incerta. A título de ilustração, observe-se que e m u m número razoável de casos se tece u m argumento que, a princípio, pode parecer contraditório: as pessoas não negam que o hospital psiquiátrico seja uma casa que abriga loucos, entretanto, afirmam que o m e m b r o de sua família não era louco, ou não tão louco quanto os demais moradores do hospício, até ter lá entrado. Durante a temporada de convívio c o m aqueles que seriam verdadeiramente loucos, seu familiar se teria contagiado c o m a loucura reinante no ambiente, aprendendo então c o m o é ser l o u c o . Tal linha d e r a c i o c í n i o p a r e c e c o a d u n a r - s e c o m a c o r r e n t e do i n t e r a c i o n i s m o s i m b ó l i c o , para o qual o d o e n t e m e n t a l , na i n s t i t u i ç ã o , é ressocializado e forçado a permanecer como desviante. Contudo, há uma distinção importante a ser notada: para as pessoas do Nordeste, essa ressocialização decorre, e m parte, da forma de organização da instituição e, e m certa medida, da qualidade de seus habitantes. D . Firmina, no trecho seguinte, por exemplo, afirma ter seu filho adquirido u m comportamento muito mais aberrante no hospital do que aquele que o levara ao internamento. D. Firmina, sobre o filho Vadinho: Mas quando foi na Lapinha, que ele estava internado, um dia eu fui fazer visita a ele lá. Aí ele chegou, ele chegou e disse assim: "mãinha, sabe qual é o meu caso? Eu vou ficar bom, mas o meu caso mesmo, que eu não tô querendo mulher mais, agora eu tô querendo é homem." Ah, eu digo, agora tá doido demais mesmo. Eu digo, pronto! Ele ficou na Lapinha um, um mês e pouco, saiu com essa cegueira que não gostava de mulher mais. (...) Depois [da corrente de oração feita na Igreja Universal] cabou esse negócio, cabou essa mulequeira, arranjou foi mulé, que as mulé só falta se lascar por causa dele. Admitir a ocorrência de um processo de enlouquecimento resultante da internação não significa, na maioria das vezes, negar que a hospitalização fosse necessária - ao contrário - , mas também não obriga o narrador a assumir que a pessoa com problema seja louca. Esta estratégia, presente nos discursos, revela uma tentativa de acomodar propósitos distintos, quase contraditórios, qual seja, a de não se atribuir um rótulo prévio de 'louco' ao doente e, ao mesmo tempo, justificar a opção pelo confinamento de alguém de quem se diz que não é (ou não era) louco. É o caso de Zeca, narrado por Joana. Mesmo havendo declarado que o filho passara uma temporada vivendo na rua, comendo lixo, vestido com uma roupa estranha e "esquecido da casa", ela defende mais adiante, ao contar a história do adoecimento do rapaz, a idéia de que teria sido após o primeiro internamento que ele aprendera os hábitos dos loucos. D. Joana, sobre o filho Zeca: No Santa Mônica, ele só fazia dar medicação e alimentação. (...) Não gostei de lá não. Porque ele, ele... ficou assim. Não, não tomava banho, precisava que a gente mandasse ele tomar ba¬ nho. Ele ter que tomar banho. Ficou maluco mermo. Maluco não atina nada. A senhora tá aí sentada, pisa por cima, assim num pede licença, vai andando, quase que assim. Foi [no hospital], ficou assim. Foi. Diz assim: "Oi meu filho, olhe aqui a moça. Fale com ela". "Eí, boa tarde, como vai?" Assim. Era assim. Oh! Num tá maluco?. D . Adalgisa, igualmente, ao desfiar a história de Jorge, seu filho, fala de comportamentos problemáticos, que para muitos se afigurariam claramente indicadores de loucura: saía de casa sem rumo e desconhecia o caminho de volta, tomava banho nu e m uma das praias mais movimentadas da cidade etc. Ainda assim - depois de ter optado por interná-lo e m razão de sua dificuldade e m lidar com as constantes fugas do filho - , ao visitá-lo no hospital, alguns dias após o internamento, e se deparar c o m o que para ela se configurava como o espetáculo da loucura, volta atrás e tira o rapaz da instituição, percebendo que, apesar do pouco tempo de permanência naquele ambiente de insanidade, ele estava a tomarse semelhante aos outros habitantes do hospício. D. Adalgisa, mãe de Jorge'. Ele veio dopado, dopado, pegano a mania dos louco lá, que botava em camisa-de-força, né, botava ele em camisade-força. Quer dizer que ele não era violento, mas por causa do... por causa dos outro que tinha lá, aí eles fazia com ele também. Quando eu chegava lá, ele tava na camisa-de-força, eu dizia: "não, ele num é louco pra... num é... num faz nada, nada, num faz nada." Mas aí eles dizia, aqueles home que bota, ficou dizeno: "não, mas aqui a ordem é essa". Eu disse não. Aí fui com o pai dele, aí eu assino o termo e levo ele pra casa, e num trago mais. (...) Porque eles fazia demais com ele, fazia o que fazia com os louco brabo, porque tinha louco que a gente chegava lá que tirava a roupa, que ficava nu e fugia, e via a pessoa queria esganar, queria fazer tudo, então esse era forçado a fazer isso. Mas ele não, ele ficava com medo, ficava quieto no canto, com medo. Aí quando pensa que não, tá dentro da camisa-de-força, tomano choque. (...) Quer dizer que quando ele voltou, ele voltou dopado e violento. Quer dizer que toda mania de lá, ele fazia: "ó, é assim", ele chegou dizendo, "é assim que os doido faz lá, eu sou louco, viu". O reconhecimento de que a hospitalização pode causar danos ao doente leva-nos à questão da avaliação dos resultados. Consideram-se os benefícios do internamento para o doente inexistentes (lá se tomam realmente loucos) ou ambíguos. N ã o há propriamente um tipo de tratamento que seja específico e apenas realizado lá; o hospital é u m local onde se contêm e forçam os doentes a usarem os medicamentos nos horários prescritos. C o m freqüência, os remédios são exatamente os mesmos que o paciente deveria estar usando fora do hospital. Por sua vez, estes não asseguram uma melhora, tendo apenas a função de manter certos comportamentos sob controle, particularmente, possuem a virtude de acalmar. Mas mesmo essa calma é ambígua, pois o remédio dopa, destrói a capacidade de ação e iniciativa da pessoa. Portanto, não é exatamente uma perspectiva de cura ou melhora significativa para o doente que motiva a internação, mas, como j á foi salientado, a resolução para uma situação que tornou a rotina cotidiana insustentável. Givaldo, sobre a vizinha Jaci: Só sei dizer que, quando pensou que não, o que aconteceu foi esse problema, e daqui ficou no meio da rua, apanharam levaram pro médico e internou. Ε hoje Jaci tá aí. Tá uma pessoa traumatizada, que ela não pode ver grito, no lugar onde tem muito zoada, ela não se dá bem. D. Firmina, sobre o filho Vadinho: Com 15 dias que ele começou assim, aí ele foi se internar. Ε chegou lá, deu certo, se internou. Aí o médico deu injeção, deu remédio, aí ele veio pra casa. Chegou em casa melhorzinho. Chegou na outra semana, tornou a piorar. Aí foi dessa vez que ele foi pro sanatório, como é, meu Deus? Sanatório Bahia. Ele voltava melhor, agora voltava assim aéreo, sabe como é, acho que por causa dos remédios que ele tomava. D. Joana, sobre o filho Zeca: Saiu e veio pra casa, passou seis ano em casa. Ficou bom. (...) Ele ficava só no trabalho de casa, ele gosta de planta, ia ali pegar uma lata de terra, ia limpar o galinheiro lá atrás, só aqueles trabalhinho assim, pra não forçar ele. Liane, sobre a irmã Belinha: Ela nunca mais ela foi o que ela era antigamente. Quando ela teve... antes dela começar, dela começar a ter as crises. Ela nunca mais foi igual o que era dantes. Nunca mais ficava, né... como é que diz... o remédio é a salvação dela, é... é o remédio. Que ela tomano o remédio, ela dorme, ela... fica calma, mas se ela passar de... ficar sem tomar o remédio... não dá. Dirlene, sobre o filho João Cláudio: Não tá bom, tá melhor, que ele tá calmo. Agora só fala besteira. Que ele é filho de Pelé, que o pai dele é Pelé, que vai casar com não sei quem lá, que tem que viajar pros Estados Unidos. Ε fala esse tipo de coisa. Rosa, sobre a irmã, Bila: Ficava falando besteira. Aí, mãinha pegou, internou logo ela, né? Mas ela tá, agora graças a Deus ela tá boa, nunca mais teve nada. Mas ela xinga mãinha toda, xinga mãinha. Porque ela diz que tá morrendo de fome. Mentira, mãinha dá comida, ela diz que mãinha cospe na comida. Porque ela também tem um pouco de pirraça. Nina, sobre a mãe Ivanilde: Não, ficou boa, boa, quando saiu do Hospital, mas ficou dopada, praticamente dopada, ela fazia as coisas, ela lavava um prato, aí deitava e ia dormir, aí dormia, eu acho que com efeito do remédio, né? Mas a gente botava pra lavar prato, pra poder ela não ficar sempre com aquele negócio do remédio. Aí pronto, aí ela chegava, saía, ia na feira, voltava, dormia, qualquer coisa de mãe, mãe dormia, tudo por causa do remédio, aí do Bahia. Mãe ficou um tempo em casa, aí voltou tudo de novo, porque mãe jogou o remédio todo fora. Se, para o d o e n t e , os resultados positivos da ida ao hospital são no m í n i m o duvidosos, para aqueles que conviviam c o m ele e m situação de crise, as melhoras são significativas. É u m alívio para a família n ã o ter a sobrecarga dos cuidados c o m a l g u é m que freqüentemente rejeita os cuidados q u e lhe são dedicados. D. Firmina, sobre o filho Vadinho: Eu me vi foi doida com esse homem dentro de casa. Eu dei foi graças a Deus quando ele pegou a se internar. Aí eu tinha mais tempo. Aí eu entrei na igreja também. Liane, sobre a irmã Belinha: Muitas vezes era porque num tinha vaga. Telefonava pra lá: "Ah, não tem vaga." Aí vamo pra... pra outro lugar. Ε também tem às vez que, como é que diz... que muitas vez a gente a internava no, no hospital, a gente... de tanta coisa que ela pintava, não é, mãinha pedia a Deus que ficasse mais tempo lá. Em vez deles, como é que diz, dá alta com um mês e pouco, ou dois meses, mãinha, a gente pedia a Deus que ficasse por mais tempo. N ã o seria correto, entretanto, afirmar que, e m virtude de uma certa tranqüilidade, os parentes cessassem de sentir qualquer desassossego por ter alguém no hospital e deixassem o doente lá até não mais poder. Se nos hospitais há certamente u m a população de pessoas abandonadas à própria sorte pela família, tal não parece ser o destino da maioria dos casos aqui relatados. A o contrário, é c o m u m que se afirme enfaticamente que os laços entre o doente e sua família não se desfazem por causa da hospitalização. As pessoas se esforçam para mostrar c o m o , apesar d o internamento, os canais de comunicação e afeto não se destruíram. D a í a valorização das visitas hospitalares, da manutenção dos cuidados, orações etc. O doente não fica isolado, ainda permanece o vínculo, embora admita-se que n e m todos os familiares participem c o m a m e s m a intensidade desse esforço para a manutenção da ligação c o m o doente. E m geral, esta incumbência cabe a mães e filhas. 5 Joana, sobre o filho Zeca: Eles [os irmãos] - a única pessoa que sente e sinto até hoje sou eu - são assim... displicente e não liga pra nada. (....) Toda semana eu tenho que ir lá, conversar com a doutora, fico atrás procurando saber, procurando a melhora dele, procurando se ele vai ficar bom um dia. Nina, sobre a mãe Ivanilde: Todo dia, no dia de visita, e todo dia ia levar a comida de mãe, porque ela dizia que a comida de lá era de cachorro, era bonzo, que era comida de cachorro, aí todo dia levava essa comida, arroz, verduras, porque ela era diabética, né? Verduras, e quando era dia de visita, a gente levava fruta, merenda pra ela, e não era cigarro, que ela fuma era charuto, fumo, ela corta o fumo todo e faz o cigarro e fuma, e aquilo ali deixa a pessoa lerda, é muito forte. Ana Amélia, sobre a mãe Bem-Bem: Eu nem sei quanto ela ficou. Acho que foi uns três meses ou foi quatro. É, aí depois fui buscar. A gente ia, eu quero que você fique bom. a senhora doente. acredita que. cujo filho interna-se sucessivamente j á há muitos anos. constituiu uma estratégia alternativa: nem pede alta para Zeca." "Então amanhã eu vou falar com a doutora pra lhe levar sábado. eu quero ir pra casa. péra aí. eu fui falar com a doutora. ele tava assim: "E mãe. oh. eu digo. D." Aí fez assim com a cabeça." "Eu vou ficar bom. mas também quando ele saiu de lá. No outro dia. em ficar bom da sua doença. ela veio embora. se preocupe com você. Joana. não agüento mais não. do hospital. Mandou ele dá licença. aí eu conversei com ele. Eu digo: "Não se preocupe comigo meu filho. me ajoelhava na hora da oração. Sexta-feira em jejum. eu tô é ruim. quando foi na quinta-feira. A depender de várias circunstâncias. nem o deixa no isolamento do hospital. É. Quando se nega o desejo do doente.. eu quero ir-me embora pra casa. fazia pedido. tá doido mesmo.. eu pensei que ele veio pra morrer. pra eu não tar pra baixo e pra cima todos os dia. (.. por exemplo. por vezes ocorre que o interno peça ao seu familiar para retornar à casa. mãinha. Ele chegou assim: "mãinha. levava coisa pra ela. "Falo com a doutora?" Ele disse: "fale". levava roupa. Sexta-feira com fé mesmo a gente vence qualquer batalha." Assim parecendo que deram remédio demais. quando ele chegou em casa. tratar sua doença. resolve qualquer problema em jejum. que vão desde o estado do doente à situação doméstica. depois pediu pra saí.visitava. a sra. depois acho que nem deram alta. sobre a irmã Belinha: Quando a gente ia pras visita. eu aqui". Aí passou. sobre o filho Zeca: Tem quinze dia que eu fui lá. Aí quando foi na quinta-feira. debandei pra igreja com essa carteirinha. que ele ia trabalhar. Aí passou um bom tempo lá. Aí peguei uma carteirinha dele assim. eu vou ficar bom. mas a Sra.. sabia? Na igreja. tô preocupado com a senhora. Dizia: "oh. ele começou a trabalhar.." Aí eu. ela todo dia falava: "(. pra ajudar mãinha. para descansar da rotina hospitalar. que eu vinha buscar ele de licença. tá bom?" Ele disse: "tá". que ele saiu do. né. Eu quero ir pra casa. sobre o filho Vadinho: Aí ele chegou e veio embora pra casa. (. levava sapato." Joana. tenha calma que o médico vai lhe dar sua alta". mãinha. conversei com ele. meu Jesus. dizendo que não ia voltar mais." Eu digo: "tá! fique tranqüila que desta que você vai pra sua casa. oh. Firmina. "Eu já tô boa! Num tô fazeno nada. se ele tivesse bem. mas leva-o com alguma freqüência para passar o fim-de-semana e m casa. tal pedido pode ser ou não atendido: Liane.).) Eu disse a ele que. trouxe até a roupa dele. Ele ficou bom. quando pediu pra sair.. Eu quero ir-me embora. eu tô tão aborrecido.) Mas eu também. eu pedi a Jesus que não deixasse ele entrar mais em hospital nenhum. pode-se atribuir a recusa ao médico ou à instituição que não . eu não sei o que foi. Eu quero ajudar mãinha. Nas visitas. eu disse assim: "Você quer ir de licença pra casa? Quer ir de licença?" Ele disse: "Quero. ó que dia que eu vou [para casa]?" Aí eu: "tenha calma. toda "Ah. sobre a vizinha Belinha: Pois é. com aquela força. né? Ε uma coisa que não é normal. É. não gostou não. apesar de a alta ser . aí ela [a médica] disse: "o caso dela é pra internar. Este é u m aspecto relevante. não aceita. p o r é m trata-se de u m argumento apenas parcialmente verdadeiro.teria concedido alta.. Foi. com aquele. ali naquele posto. envolvendo elementos que fogem à esfera da competência médica e que se subordinam ao arbítrio da família. pega a comida dela e come. né? Sai a hora que quer. Vai ter que internar ela." Aí eu falei com o médico. A decisão de internar.) É." Aí pronto. pra conversar lá com médico do internamento. não se dô bem com a comida. Não há u m limite precisamente identificável. mais forte. ali já tinha um médico dela. internamos ela. Marina. havendo relatos de histórias e m que os internos obtiveram alta e m estados muito próximos àqueles e m que se encontravam ao se hospitalizar. do ponto de vista da medicina. porque ela dá muito trabalho. eu ia visitar. Ana Amélia. sobre a mãe Ivanilde: A gente já levou pra internar. Aí todo dia. aí. que o médico mandou um remédio pra ela tomar pra acalmar. só podia comer uma vez. demarcando qual o momento de internar. Ela ficava lá. não aceita (ficar no hospital). a gente faz a vontade (traz de volta para casa). não quer saber se tem nada. Ε mãinha disse assim: "vai ter que internar ela. A hora que quer vem. ela tá muito furiosa". as comida lá. ele deu a guia. ela respondia com aquele. sobre a irmã Belinha: Ε aí ela deu pra ficar nervosa assim. Liane. também apresenta u m elemento de negociação com a família. né? A gente foi no Juliano Moreira. Ela num parava. ela não quis ficar. Por outro lado. Mas como ela não.definida pela instituição. mas teve que ficar. ela pode piorar ainda mais. porque o internamento . Nina.. Ela teve que ficar. A gente acha que em casa. ainda que precise passar por u m crivo médico. ela vai lá. sobre a mãe Bem-Bem: É. a gente falava qualquer coisa. a gente acha. ela se sente mais. porque aqui ela fica mais solta. pra ver se conseguia levar pra internar. por exemplo. como é que se diz.. Mas ela não dava condições. ela não gostou não [do internamento].não depende exclusivamente de critérios técnicos. Sabe que lado . é uma iniciativa usualmente familiar: é a família quem regula até que ponto os comportamentos são aceitáveis e passíveis de resolução apenas no âmbito doméstico ou dos tratamentos não hospitalares. a alta do hospital tampouco obedece a u m critério claramente discernível. agitada. nem sequer de tomar um remédio. pois tanto o internamento quanto a alta resultam de uma negociação entre a instituição e os familiares. as comida lá é muito diferente daqui de casa. né? A irmã dela falou com o médico lá pra internar.a despeito de consistir. em uma operação terapêutica . Ε lá. (. Da mesma forma. porque ela não tá querendo tomar remédio. o que se pode fazer.mais do que o internamento .. a gente sabe que é um problema sério. veio com a gente. até a partir de agora.). aí internava. Chegava lá. assim. a decisão pelas internações seguintes é menos difícil. Quando ela às vez tá muito furiosa. mas. às vez. fazia tanta coisa lá dentro do hospital. Ele dizia que eu não dava remédio. aí conversa. Joaninha. Já duas vezes. ela nunca pegou ninguém. que não sei o quê. As vez. ninguém.. cuidar do Zeca. ói. então é hora de internar.nenhum vai maltrata ela. Ele mesmo. e aí o povo achava que tava doido mesmo. vamo tirar a guia médica e depois. eu fui aí embaixo. era voz chamando ele para morrer: "Umbora dar uma facada nele. os vizinhos aí conversa. ele ia direitinho (para o hospital). por enquanto. vai levar. fica: "eh. sua mãe tá boa de internar. falando besteira. a gente fica com medo e tudo. né? A saída do hospital não raro representa apenas u m intervalo entre novas internações. e m geral. é aquela besteira assim. aí eu peguei ele e disse assim: "Zeca. os enfermero não vai maltratar. n e m há tantas hesitações. e aí.. sei lá. vê tão. vá!" (. nunca bateu em ninguém. as antecipações e conseqüências incertas conduziam a uma problematização e explicitação maior do projeto a ser levado a cabo. mas depois pronto. se internava. ele. que ela começou com aquelas coisinha. sobre o filho Zeca: Aí quando acabou. Às vezes a gente interna. o irmão de doutor Reinaldo [patrão de Joana] trabalha na rádio-patrulha. a gente fica com pena. Agora. sei lá. Ele chegava lá e fazia aquela putaria toda. Ele gostava porque ele melhorava. o objetivo era ainda imprevisto. a se estabelecer u m padrão: se o doente começa a fugir ou ouvir vozes. Os projetos de ação têm graus de clareza muito diversos: há desde aqueles minuciosamente elaborados. mas depois que chega lá. tá muito. fica lá assim sozinha. umbora morrer afogado. Muitas vez. uns quatro hospícios aqui na Bahia. mas. até os que não necessitam do mesmo grau de nitidez. Diz que tava com um negócio. né. nas internações subseqüentes. não há mais necessidade de se tornar claro o projeto.. deixa de tomar o remédio. aproximadamente. nunca fez mal a ninguém. fechava as portas e metia ele dentro do quarto. Firmina. sobre a mãe Bem-Bem: Ela não é doida furiosa. quando ela tá piorada. Que ela não. no meio de tanta gente. pronto. pois se trata agora de respostas a situações tornadas habituais. com uma zonzeira na cabeça. Ε jogava capoeira lá dentro. uma voz chamando ele pra destruir ele. .. sozinha. sobre o filho Vadinho: Ele ia. N o primeiro internamento. Mas.Tava a casa cheia de sabão aqui. só nos princípio só. Ele correu parece que uns. umbora morrer debaixo do carro!" Ana Amélia. ele dizia que tinha uma vez. chega lá. cê quer?" Ele disse: "Quero. vai. vai nos levar num hospital aí qualquer pra lhe internar. aí as menina disse assim: "vai. Joaninha. Joana." Comigo. a gente levou ela lá pro Sanatório Bahia. os passos cuidadosamente pensados. e tal". Chega-se. os médico não vai maltratar. D. Eu não maltrato. ao contrário da primeira vez em que se recorre à hospitalização. se eu levava alguma coisa pra minha mãe. e m q u e se e s t a b e l e c e u m a c e r t a r o t i n a d e internamentos.. Tem dia que eles tava furiado (. que o retirou do hospital e jamais voltou a interná-lo: para ela.. Mas ele tá fumano. né? Como ela toma lá. aí ela tomava. né? Tinha vez. cinco horas tem a merenda. Ε os remédio. Joana. tá melhor.. eu passava pros outro. por meio das quais se descobre alguma normalidade subjacente mesmo ao asilo de loucos. é. sobre a mãe Ivanilde: Não.) tem dias que eles tavam normal. ficava. não. aí eu digo: "Zeca. Aí minha irmã veio: "ô Nina. para quem é próximo a uma pessoa que passa a viver e m um ciclo de reinternamentos. Então ele disse que sempre é três. Lá dentro. pode-se dizer que o contato direto c o m o hospital não propicia uma ruptura radical com a imagem veiculada na comunidade regularmente. né? Fica lá na fila. né? Eu digo: "tá bom!". as coisas delas. (. mas observa-se que esta imagem se enriquece. a gente conversava. falando. sentam juntos. que o remédio tava com maconha. aí foi piorando. ele conseguiu passar acho que três ano sem fumar em casa.) A gente conversava com as outras colega dela que tava lá. ela tomava muito remédio. ela botava o remédio debaixo da língua. M e s m o n e s s e s c a s o s . As pessoas que têm. ele gosta de dinheiro. Levo a merenda.. ouvindo vozes. a realidade do hospital adquire novos contornos.Nina. também se minha mãe tava no meio. reconhece-se a existência de certas rotinas. sobre a mãe Bem-Bem: Todos hospital a gente ia por causa dela. Tem almoço. né. menos contato com as instituições. ia pra casa dos outros. o estoque de conhecimento à mão é sempre refeito a cada nova experiência. você tá se sentindo melhor? Tá se tratando?" Ele agora disse que arranjou lá uns irmão bíbrico e tão lendo a Bíblia. levo dinheiro pra ele e a roupa . ele tá lá. mas mãe tava no meio. lê a bíblia e falar. se torna mais complexa e matizada à medida que o contato ocorre mais amiúde. tem lá um rapaz que tava na Barroquinha com a Bíblia na mão. piorando. sobre a mãe Ivanilde: Como é um tratamento? Tomar remédio. doze horas tem almoço. Nina. a gente descobriu.). dormia. A antecipação do resultado de um curso de ação previamente à sua execução é sempre uma antecipação à espera de confirmação. desse jeito vai ter que internar". Assim. toma remédio. sobre o filho Zeca: Eu vou lá.. Chega lá dentro. Por sua vez. ela tava doente. jogava fora. ela esperava lá na fila. né. modificam muito pouco sua visão inicial. Aí internou. falando. cristalizou-se a imagem do hospital como a casa onde loucos violentos são amarrados em camisas de força. como é o caso da mãe de Zeca. Ana Amélia. que a comida tava com maconha. por alguma razão. que tinha alguém querendo matar ela. primeiro eu converso com ele e vejo como ele está. Primeiro eu vou ver ele. Conversava com todo mundo lá. um tracejado com pontos vazios a serem preenchidos.. a gente tinha que ficar (. como é que tá. dava atenção. Assim. b e m c o m o a imagem de seus habitantes: são doentes. Nina.. garante-se uma parcela de normalidade ao hospital e ao doente. num sabe? Diferentes critérios de avaliação também passam a valer no momento de decidir onde internar o doente: a organização do hospital. n e m são loucos todo o tempo. o atendimento médico. Ε no Bahia teve até festa que ela gostou. gosta de andar bem vestidinho. mas n e m todos são iguais. que falou com uma amiga dele que é médica de cabeça. Joana. ela achava que era comida. era fruta. Reconhece-se a existência de rituais sociais dentro da instituição.. Ε ele gosta de andar limpo. que quanto mais os médico trata. tinha sobremesa. sobre o filho Zeca: Resolvi botar ele no Santa Mônica porque me amparava mais. Nina. tudo. Mas no Ana Nery. apesar de partirem de pontos de vista divergentes sobre ordem e ação social. eu trabalhava mais tranqüila. direitinho. (. CONCLUSÃO A teoria da rotulação e Foucault. não sei se ele é doente mental. é uma doença incurável. aí eu levava. e eu trago. me dá. eu pedi para olhar ele. ela dizia que era comida de cachorro. calçado. ou de hábitos similares àqueles de fora. mas no outro. arroz. Ele não gosta de andar à toa não. identificam na sociedade uma tendência crescente à racionalização e ordenação burocrática do mundo vivido.limpa. verdura. toalha.. e ele fica lá todo arrumadinho.. ela achava que era comida. pois é a instância que delimita quais os estilos de vida . Eu tinha que levar. a gente cuida. é uma doença incurável que ele tem. né. era Bonzo. sobre a mãe Ivanilde: Foi ele [médico. a comida. carne. Então ele é que levava todas para internar. a medicina ocupa u m lugar privilegiado. a existência de algum conhecido que componha a equipe d e profissionais do hospital etc. mais ele. ele troca a roupa suja. eu via a comida limpa. a proximidade.. que eu não ia deixar a mãe com fome. fica lá todo arrumadinho. no Bahia. filho de uma ex-patroa] quem levou pro Novis [centro de saúde mental]. esse aí já era diferente [Sanatório Ana Nery]. A visão do hospital adquire novas nuances.) Pra mim é. zela direitinho. e tinha uma pessoa da família que trabalhava na cozinha de lá. já era comida mesmo. que era arroz. arru­ mado. Neste quadro. que ele é médico obstetra. ela ficava dizendo que a comida era Bonzo. sobre a mãe Ivanilde: Não.. bem como as diferentes interpretações acerca da instituição. nem de saídas para se escapar ao poder médico. excluídos e confinados. reveladas quando nos aproximamos das visões que os leigos apresentam a respeito. Tal perspectiva abre poucas possibilidades para se explorar a utilização concreta do hospital psiquiátrico. Não se trata inteiramente de confiança na capacidade da medicina e m restabelecer a sanidade. uma relação direta c o m o conhecimento que se origina da psiquiatria e da profissão médica. tal temática adquire peso. é importante se compreender os caminhos percorridos por aqueles que chegam aos hospícios. embora reconhecendo-a como fenômeno emergente e m dado contexto social e histórico. Concebe-se a ordem institucional.. as motivações e expectativas daqueles que recorrem ao manicômio. dentre os modos não convencionais de existência. esta temática será considerada irrelevante se não se considera a existência de brechas na ordem institucional. uma expectativa de que o hospital possa funcionar como agência terapêutica e trazer benefícios para a saúde do doente mental. moldando relações sociais e identidades. mas como resultado de práticas sociais. quer mostrando como estas ciências exercem um domínio no mundo social. A o apontar para a exclusão e controle da loucura ocorridas no manicômio e para a transformação de identidade do indivíduo rotulado c o m o doente mental . Sem dúvida. O conhecimento e as práticas terapêuticas. quer apontando para as condições de possibilidade de surgimento das ciências médicas.c o m a conseqüente degradação do self e da posição social . A decisão de internar alguém comporta. enquanto tal. devem ser definidos como patologia é. como uma alternativa entre outras possíveis. mas esta não constitui a principal motivação para que a ação seja realizada. que trazem e m si um potencial de crítica à ordem estabelecida. elas trazem alguns problemas. e m ambos os casos. Entretanto. traduzem uma intenção de controlar expressões de vida diferenciadas. Até mesmo quando se pretende pôr e m xeque e redefinir as formas de tratamento para saúde mental. Estas teorias põem à mostra a relatividade do conhecimento médico e revelam suas formas de inserção no mundo social. portanto. As concepções construídas no campo leigo sobre a instituição manicomial não mantêm. sem dúvida. particularmente no caso do confinamento de pessoas que sofrem de problema mental.considerados normais e quais. como instância capaz de determinar a relação dos indivíduos para c o m ela. cujo pivô é o surgimento ou agravamento de u m problema mental. por destituir os atores sociais de sua capacidade de resistir às formas de subordinação da loucura e do louco. se a intenção não é meramente tratar o hospital como realidade monolítica. . sua prática e seus personagens. É a urgente necessidade de restaurar a ordem rompida e m uma situação de crise. Conquanto estas abordagens tenham sido bastante b e m sucedidas em seus esforços de abalar u m a confiança ingênua que poderia existir c o m relação às ciências médicas. acaba-se. n e m podem ser vistas como mera apreensão distorcida deste. ou de uma delegação de poderes para determinar quem é insano ou são. que acarreta o internamento. abrir perspectivas para se compreender como. NOTAS 1 Afirmar o peso da participação das ciências sociais no debate sobre reformas psiquiátricas não implica assumir que estas reformas foram conduzidas pelas ciências sociais ou que resultaram da discussão travadas nos círculos acadêmicos e intelectuais. mais ou menos dopados. de modo mais acentuado. suas concepções iniciais. consideram-se bastante parcos os efeitos positivos do internamento para o asilado. que aproximaria de algum m o d o o hospital psiquiátrico e seus habitantes de outras esferas do m u n d o vivido. embora mencionem-se amplamente os benefícios (alívio. O manicômio é fundamentalmente retratado como remédio (às vezes temporário) para uma situação. porém mesmo este resultado é incerto. rotinas.D e resto. mais próximas das visões difundidas e m geral na comunidade. os atores sociais encontram novos modos de vivenciar e interagir que não se encontram inteiramente determinados no quadro da organização hospitalar. relações sociais não limitadas àquelas impostas pela ordem institucional. revelar a capacidade dos atores sociais de ressignificar certos objetos implica vê-los não exclusivamente como vítimas de processos sociais de larga escala. das tentativas de resolução d e problemas. aqueles q u e tiveram contato relativamente escasso c o m a instituição pouco modificaram suas definições iniciais do manicômio. As imagens e avaliações do hospital construídas por leigos resultam deste engajamento c o m o mundo. P o r isso. Por outro lado. e m certa medida. Certamente razões de ordem política e econômica tiveram papel decisivo na reestruturação (ou não) das instituições asilares. Além disso. vislumbrando ali alguma normalidade subjacente. mesmo e m u m ambiente cujo controle é severo. passar uma temporada no manicômio não sela de forma indelével o destino dos internos: eles podem sair mais ou menos loucos. Os diferentes percursos que aproximam ou afastam as pessoas da instituição definem o conhecimento a seu respeito. O que pode figurar c o m o pressuposto e quais aspectos do conhecimento se redefinem é algo que se estabelece e m cada situação. c o m o a medicalização. N o Nordeste de Amaralina. Por outro lado. c o m rituais. dados os interesses pragmáticos envolvidos. passaram a enxergar dimensões outras da vida no hospital psiquiátrico. dificilmente saem c o n s i d e r a d o s c u r a d o s . mas restituir-lhes a capacidade de avaliação e julgamento. p o d e . E m virtude das novas experiências do manicômio.s e p e r c e b e r u m a t e n d ê n c i a a novas internações nas trajetórias daqueles que se internaram alguma vez. não para uma doença. descanso) para os responsáveis pelos cuidados com o doente. Esta nova imagem do hospital pode. aqueles que recorreram repetidamente ao hospital psiquiátrico foram levados a reformular. . contudo. Social construcionism and the development of medical sociology. 1989. Α. Trabalho apresentado no XVIII encontro da Anpocs.na expressão de Merleau-Ponty (1994) . já existia uma percepção médica da loucura que buscava desvendar sua verdadeira natureza. não se baseava na observação do louco. na medida em que este. M. Porto Alegre: Edipucrs. In: J A C K S O N .C. I. Sociology of Health andIllness. Ver o capítulo 1. do sobrevôo . P. O que é a Fenomenologia? Rio de Janeiro: Eldorado. diferentemente do que a psiquiatria faria posteriormente. A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia. Prisões e Conventos..2 Neste artigo nos deteremos apenas na experiência daqueles que não estiveram internados em uma instituição. M. Μ. A História da Loucura na Idade Clássica. JACKSON.R. Introduction. onde possa situar-se para vislumbrar os processos que determinam a vida dos homens. MERLEAU-PONTY. Bloomington: Indiana University Press. MACHADO. 1982. uma ilusão apenas dos positivistas ou de seus seguidores. São Paulo: Martins Fontes. (Ed. 1994. Rio de Janeiro: Graal. mas apresenta-se mesmo em Foucault. U. MG. GERHARDT. Ε. Este perde sua posição privilegiada. 1994. 1987. A pretensão do olhar distanciado. R. Evidentemente. Phenomenology.) Things as They Are: new directions in phenomenological anthropology. 1996. é capaz de identificar o cego ímpeto normalizador e ordenador das ciências humanas que se pretendem críticas da ordem social. 1973. (Mimeo. pois já não acredita possuir um lugar fora e acima do mundo. Caxambu. 3 4 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES. A teoria médica sobre a loucura. sua essência.M. mas que. Mas entre essa percepção e a concepção ética da loucura como desrazão não havia praticamente comunicação. 8(2):137-169. à mesma época. Londres: Macmillan. DARTIGUES. Μ. Fenomenologia da Percepção. como pensador sobre a realidade social. . Manicômios. É interessante notar que. E. sem que eles tenham consciência. 1996. Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Escolha e Avaliação de Tratamento para Problemas Mentais: o itinerário terapêutico. conceber a ciência deste modo implica aquiescer às severas limitações reservadas ao observador. situando-se pretensamente fora de qualquer enquadramento. não é. M. participaram de processos de decisão sobre internamento e travaram contato com o hospital. GOFFMAN. and anthropological Critique. FOUCAULT.1986. 1978. radical empiricism. HUSSERL. & SOUZA. São Paulo: Perspectiva. de alguma forma. Ideas about Illness.) BURY. São Paulo: Perspectiva. uma trajetória filosófica. Fenomenologia e Relações Sociais. Buenos Aires: Amarrortu. . Rio de Janeiro: Forense Universitária. P. Buenos Aires: Amarrortu. RISSER. Las Estructuras del Mundo de la Vida. A. SZASZ. J. SCHUTZ.RABINOW. Rio de Janeiro: Zahar. T. The Myth of Mental Illness. Rio de Janeiro: Zahar. SCHUTZ. 1972. SZASZ. New York: State University of New York Press. Τ. & DREYFUS. 1979. T. 1973. 1973. Hermeneutics and the Voice of the Other. El Rol de Enfermo Mental. 1997. & LUCKMANN. A. Alban): Paladin. Τ. SCHEFF. Michel Foucault . 1980. A Ideologia da Doença Mental. Frogmore (St. Η. 1995. Parte II . . O presente artigo examina algumas premissas teórico-metodológicas do estudo da enfermidade como realidade socialmente construída. Mais especificamente. Rabelo As línguas não falam. Na lida com a enfermidade. a enfermidade não é apenas uma 'entidade biológica'. conferindo-lhe significados e desenvolvendo modos rotineiros de lidar com a situação. é preciso reconhecer que a enfermidade é. crenças e valores. antes de mais nada. que se refere basicamente à forma pela qual os indivíduos situam-se perante ou assumem a situação de doença. Assim. (re)produzem e transmitem um conjunto de soluções. a . vizinhos e terapeutas) formulam. É importante ter em conta que as respostas aos problemas criados pela doença constituem-se socialmente e remetem diretamente a um mundo compartilhado de práticas. receitas práticas e proposições genéricas. que deva ser tratada como coisa. Em geral. 2 Para a antropologia. o doente e aqueles que estão envolvidos na situação (como familiares. uma expressão direta de aflição. Tal discussão requer uma elaboração mais detida acerca da constituição da enfermidade na experiência do sujeito. é também experiência que se constitui e adquire sentido no curso de interações entre indivíduos. amigos. grupos e instituições. de acordo com o universo sociocultural do qual fazem parte. dessa forma. Alves & Míriam Cristina Μ. só as pessoas. pretende estabelecer considerações sobre os processos pelos quais os indivíduos atribuem significados às suas experiências de enfermidade e. Em primeiro lugar. uma sensação de mal-estar. comunicam e compartilham com outros suas aflições.6 Significação e Metáforas na Experiência da Enfermidade 1 Paulo César B. não saberíamos a priori que estamos doentes sem que a sensação de que 'algo não vai bem' tenha sido experimentada. expressam. (Paul Ricoeur) INTRODUÇÃO Uma das temáticas mais importantes nos estudos socioantropológicos da saúde diz respeito ao conceito de experiência da enfermidade. não cabe ainda considerálo. trata-se de dois modos de vivência distintos: o primeiro. os olhos me doem. Isso não significa dizer que seja necessariamente produto de alterações ou disfunções orgânicas.) Todavia. Significa que dirijo sobre minha consciência presente. capto taticamente apenas o surgimento fixo das palavras umas atrás das outras.) Em tudo isso o corpo só é dado implicitamente: o movimento dos meus olhos só aparece ao olhar de um observador. por sua vez. A dor do outro.. indissociável da nossa subjetividade (a qual. porque não está feito: a dor não é encarada de um ponto de vista reflexivo.) Mas eis que deixo de ler.) Decerto. ou que todo processo ou estado patológico desperte u m a experiência d e s e n t i r . pois está precisamente em mim. da dor. ou consciência visão.. de repente. através dele as verdades por ele significadas. O sentir-se mal r e m e t e ao c o r p o c o m o c o r p o v i v i d o . A sensação de mal-estar. e m u m primeiro momento.enfermidade nos remete. uma vivência que não se destaca do fluxo de vivências do sujeito e que constitui. uma vivência que se fixa pela atenção reflexiva. como contrações musculares. na verdade.. (. (. Se lhe dói a cabeça. e agora fico absorto na captação da minha dor. com base nos quais construo certas inferências acerca de seu estado subjetivo (de dor).. (. Sartre precisa essa melhor essa distinção quando comenta a experiência da dor: Os olhos me doem.. o ponto de vista ou o fundo opaco sobre o qual se desenrolam suas atividades. à nossa corporeidade. não é vivida por mim. por e x e m p l o . Por mim.. no meu corpo.. Embora o sentir-se mal. O objeto de minha consciência é o livro.. o segundo. isso não significa que derive totalmente dessa experiência. é inquestionável. (. no próprio momento em que leio. a denominação dor nos olhos pressupõe todo um trabalho constitutivo que iremos descrever.. Se a enfermidade envolve a presença subjetiva de u m mal-estar. É necessário que o mal-estar seja transformado e m objeto socialmente aceito de conhecimento e intervenção. a textura atual de minha consciência . a sensação de mal-estar. uma consciência reflexiva. é sempre uma subjetividade encarnada). Leio.) Entendamos bem: se a dor se dá como dor 'nos olhos' não há nisso qualquer misterioso 'signo local' e tampouco conhecimento..(. Mas. no momento em que nos colocamos. gestos e gemidos. e. que não são dor. da sua natureza como entidade discreta e objetiva. mesmo daquele que m e seja mais próximo e íntimo. é ponto de vista e ponto de partida. se faça acompanhar de uma formulação acerca do seu significado. a m i m se m e apresenta a figura de alguém afligido pela dor. O corpo de modo algum é captado por si mesmo.s e m a l . da qual só tenho patente certos sinais externos. via de regra.. Assim. Somente que a dor é precisamente os olhos enquanto a consciência 'os existe'. não se distingue de minha maneira de captar as palavras transcendentes. 3 R a d i c a d a n o corpo. mas devo terminar essa noite a leitura de uma obra filosófica.. É dor-olhos ou dor-visão. contudo. não constitui e m si mesma a enfermidade. enfermidade é construção intersubjetiva. Tendo e m vista essas observações. U m a vez que o mundo intersubjetivo da cultura constitui o fundo necessário sobre o qual se desenrolam todas as vivências do sujeito. Tecidas e m uma narrativa. à conversão de experiências e m que sujeito e objeto não constituem momentos distintos (como no caso da dor-olhos referida por Sartre) e m experiências nas quais estes dois termos distinguem-se claramente. (. para transcender a pura qualidade da consciência da dor rumo a um objeto-dor. não faz sentido atribuir à experiência pré-reflexiva u m caráter précultural. formada a partir de processos comunica¬ tivos de definição e interpretação. isto é..é apreendida e posicionada por minha consciência reflexiva. transforma-se. 1997:418-422) A vivência pré-objetiva da dor. eventos e encontros. constitui-se e m realidade dotada de um significado reconhecido e legitimado socialmente. interpretar e comunicar suas experiências de aflição.refletida . A consciência não constitui seus objetos ex nihilo. nas quais se apresenta a aflição como parte de u m transcurso temporal de ações. A enfermidade dota-se subjetivamente de sentido à proporção que se afirma como real para os membros da sociedade.em particular. e m que ela se confunde com meu corpo e constitui o ponto de vista mesmo segundo o qual eu m e situo no mundo. Adquire significado . e m experiência de 'algo objetivo': a enfermidade. que por sua vez a aceitam como real. u m processo de construção de significado. as metáforas dão forma ao sofrimento individual e apontam no sentido de uma determinada resolução desse sofrimento: . a vivência de estar ou sentir-se mal é organizada e m uma totalidade discreta.) O movimento primeiro da reflexão é. Nas narrativas de aflição. Refere-se. toda enfermidade envolve interpretação ou julgamento e. Para a antropologia. transforma-se e m objeto e representação. 1993:269). E m grande medida. aos modos pelos quais os indivíduos logram expressar.na medida e m que m e volto reflexivamente para ela.como coisa . enquanto tal. Assim. radicada e m uma vivência subjetiva. e m enfermidade. por conseguinte. pela autonomia da interioridade subjetiva. A questão concerne. este trabalho realiza-se por meio da elaboração de narrativas. ou seja. (Sartre. Convém observar que a questão proposta não diz respeito à conversão do pré-cultural e m cultural. portanto. das instituições e dos modelos legitimados socialmente. oferecendo assim uma ponte entre a singularidade da experiência e a objetividade da linguagem. destacando-a do meu fluxo de vivências e destacando-me dela. Importa levar e m consideração que este processo não consiste em u m ato individual de se perceber uma experiência interior como problemática. Desta forma.. mediante a mirada reflexiva. que estendem sentidos habituais para domínios inesperados. uma das tarefas essenciais da antropologia da saúde é compreender como a enfermidade. É real justamente porque se origina no mundo do senso comum (Alves. minha dor . antes. portanto. as metáforas desempenham u m papel central: c o n s u m e m estratégias de inovação semântica. como a crítica contemporânea tem salientado. Dundes e D. amigos. É inegável que os grandes avanços da teoria da narrativa foram determinados pelas investigações estruturais de sistemas sincrônicos da linguagem. e m última instância. Deste modo. até o momento. os grandes paradigmas para a análise estrutural do discurso. esse . Desnecessário é dizer que não se pretende aqui exaurir a problemática teórica e empírica da metáfora. o modelo estrutural é problemático. A segunda parte exemplifica empiricamente como. Paulme) e as análises dos mitos propostas por Lévi-Strauss constituem. É no contexto dessa preocupação que se insere o presente trabalho. Assim. terapeutas . esse modelo reduz a narrativa a u m sistema implícito de entidades discretas que mantêm entre si relações auto-suficientes de oposição e diferença.familiares. O trabalho de Propp sobre o conto russo (aplicado a narrativas orais por etnólogos como A. resulta. Ao postular a semiologia estrutural como uma espécie de propedêutica a toda análise da narrativa. A discussão de u m caso empírico permite trazer à baila questões concernentes à relação entre narrativa. valendo-se de algumas abordagens da metáfora formuladas por filósofos e lingüistas. da capacidade combinatória das unidades descritivas. Sua primeira parte procura elucidar algumas questões teórico-metodológicas referentes ao estudo das metáforas. 1978). metáfora e experiência que escapam às análises centradas na linguagem escrita. Constitui tarefa do pesquisador identificar essas entidades e suas relações para decodificar o discurso. podem-se compreender as formas pelas quais os indivíduos dão sentido à sua experiência da aflição. Contudo. e que vêm sendo apontadas em trabalhos antropológicos mais recentes. o modelo estrutural transfere a questão do "o que as unidades de análise significam" para "como elas significam" (Sperber. Partindo do princípio de que os sistemas semióticos são fechados. pelo uso de enunciados metafóricos elaborados em um discurso narrativo. a significação de um discurso não remete à sua relação com uma realidade não semiótica. isto é. um recurso importante para a análise antropológica da enfermidade. O estudo dos processos discursivos pelos quais os indivíduos constroem e expressam a aflição constitui.e a desencadear nestes uma série de atitudes condizentes como a nova situação apresentada. uma vez que promove uma separação entre significados abstratos e a aquisição e uso da linguagem em situações de interlocução. como elemento-chave no processo de construção de sentido.permitem aos indivíduos organizar sua experiência subjetiva. entendê-lo enquanto totalidade integrada. 0 DISCURSO NARRATIVO Ε A METÁFORA Os estudos antropológicos sobre a natureza do discurso narrativo subordinam-se largamente a uma noção de estrutura analítica de investigação. de modo a transmitila aos outros . desta maneira. ao passo que no pólo da significação alocam-se os aspectos objetivos. a intenção comunicativa. ou sujeito e predicado. De qualquer modo. A c o m p r e e n s ã o m ú t u a e n t r e os interlocutores depende de que a significação possa preservar-se perante o evento que se esvanece. O que é comunicado. portanto. do compulsório sobre a mensagem. corresponde à correlação entre as funções de identificação . a interação.. põe entre parênteses a parole e m favor da langue. o sentido do locutor precisa ser expresso ou exteriorizado. não se pode vivenciar as experiências de outrem. Para Ricoeur. é essencialmente privada. O sentido é objetivo e imanente ao discurso. reduz a situação d e interlocução a mero acontecimento transitório e evanescente e.sobrepõe-se outra. entretanto. (Ricoeur. observa Ricoeur. estes dois pólos representam. 1987:30-31) À dialética entre evento e significação . podemos dizer que a própria linguagem é o processo pelo qual a experiência privada se faz pública. a solidão da vida é aí iluminada por um momento pela luz comum do discurso. o que o locutor faz e o que a frase faz . Ricoeur observa que se pode tomar o discurso de dois modos diferentes: quanto ao seu sentido ( Ό que é dito') e à sua referência ('aquilo acerca do que se diz'). Paul Ricoeur sugere que o discurso se fundamente e m uma dialética entre evento e significação. institui u m primado hierárquico do código.modelo sobrepõe a existência virtual do sistema ao aspecto ontológico do discurso. descrita da seguinte forma: "se todo o discurso se atualiza como u m evento. Para concluir a discussão da dialética de evento e significação. é especialmente o conteúdo proposicional do que é dito (a significação da enunciação) que orienta os participantes do diálogo.expressa como dialética entre as dimensões subjetiva e objetiva do discurso. porque nada mais são do que a elevação de uma parte da nossa vida ao logos do discurso. A exteriorização e a comunicabilidade são uma só e mesma coisa. A experiência vivida. existente no nível da frase). Para ser compreendido. é a sua significação. que lhes permite reter e compartilhar o que o sujeito da experiência intenta transmitir (o significado do locutor). entre o sentido e a referência. do anônimo.. de fato. o discurso nos remete a uma intenção comunicativa. abdicar de uma noção de estrutura na análise do discurso. superando as ambigüidades e contingências i n e r e n t e s a t o d o p r o c e s s o c o m u n i c a t i v o . C o m o evento. equivalentes ao conteúdo proposicional do discurso (a relação entre as funções de identificação e predicação. A linguagem é a exteriorização graças à qual uma impressão é transcendida e se torna uma expressão. E m outras palavras. 1987:23). ou seja. quando está e m jogo a comunicação da experiência. ligados ao significado do locutor. insignificante para a compreensão da lógica das ações sociais. No pólo do evento tem-se os chamados aspectos subjetivos do discurso. Procurando superar as limitações da análise estruturalista sem. no entanto. Remontando-se a Frege. momentos da dialética. todo o discurso é compreendido como significação" (Ricoeur. u m ato de linguagem. a presente discussão não pretende resumir a literatura consagrada a essa problemática. oferece à investigação antropológica u m caminho para compreender os processos pelos quais os indivíduos compreendem e explicam suas experiências. A linguagem conotativa assume nesta instância u m papel fundamental. que teria por função estender o sentido de u m nome. muitas vezes. a linguagem não se dirige apenas para significados ideais. "é porque existe primeiramente algo a dizer. permite aos indivíduos transmitir. para cuja expressão a linguag e m denotativa torna-se. É necessário pressupor a existência prévia do mundo e a experiência de ser-no-mundo para que os indivíduos se possam expressar pela linguagem. a metáfora designa uma das figuras (tropo) que modificam o sentido de uma palavra graças ao fato de se a substituir por outra. estados. inadequada. há vastas discordâncias sobre a natureza e o papel da metáfora no discurso. a metáfora é uma enunciação. em situações de diálogo. A referência relaciona a linguagem ao mundo. da espécie à espécie" (Aristóteles. Para além dessa definição mais geral. O estudo das metáforas. até certo ponto. Para a lingüística.. estados e sentimentos sutis. Deste modo. como diz Aristóteles em sua Poética. a teoria clássica não dá . os sujeitos procurem diversos meios para expressá-las aos outros. considera-se a metáfora uma forma 'estilística' de dizer aquilo que poderia ser dito literalmente. sem que c o m isso se acrescente alguma inovação semântica à palavra substituída. 1967:97). iniciada por Aristóteles. porque temos uma experiência a trazer à linguagem que. 1987:32). uma "transposição do nome de uma coisa a outra. A referência postula o caráter ontológico do discurso. como Wellek e Warren (1976). mas tão só tecer algumas observações relevantes para a análise antropológica acerca da construção e utilização de metáforas. transposição que se faz do gênero à espécie. é de se esperar que. inversamente.aquela que. Todos partem do pressuposto de que. pois. Nessa concepção. e o seu locus deve ser procurado no nível figurativo do discurso. perdurou até fins do século XIX . metáfora seria u m dito engenhoso. da espécie ao gênero. Segundo a retórica clássica . isto é. pessoas e eventos em situações de interlocução.e predicação no interior da frase/discurso. ao reduzir a metáfora a uma mera substituição de palavras. D a d o o caráter privado das experiências vividas. a metáfora é uma espécie de analogia e. A abordagem de Ricoeur nos conduz a algumas conclusões relevantes. um ornamento. têm submetido a concepção clássica da metáfora a duras críticas. de modo que no discurso "o sentido é atravessado pela intenção de referência do locutor" (Ricoeur. Ou seja. mas também se refere ao que é". Nas palavras de Ricoeur (1987:33). por u m a linguagem denotativa. oral ou escrito. Obviamente. c o m o elemento-chave da linguagem conotativa. ao pôr e m relação sentidos explícitos e implícitos. Remete a u m apontar intencional para coisas. Richards (1936). Muitos teóricos da literatura e filósofos. Beardesley (1958) e Soskice (1989). que se revela . para compreendermos seu papel na expressão das experiências vividas. este processo tem-se resumido a uma operação analógica: colocando um tópico A em contato com um veículo B. Uma vez que nos diz algo de novo acerca da realidade. contrastadas e comparadas entre si no enunciado metafórico. tópico pertencente tanto à psicologia quanto à análise literária e à filosofia. De acordo com alguns autores. A ênfase no conteúdo emotivo da metáfora. entre duas interpretações opostas.conta da dimensão de sentido constituída mediante o enunciado metafórico. Também Ricoeur contesta a definição de metáfora como uma simples analogia entre palavras ou conjunto de palavras. E m termos gerais. a metáfora possui mais do que um valor emotivo. conseqüentemente. conduz os teóricos da concepção imagística a negligenciar seu conteúdo semântico. Ao ressaltarem o sentido emotivo que perpassa todo enunciado metafórico e que se cria por seu intermédio. concordam entre si ao afirmar que a metáfora expressa um significado. Assim. Conforme observa Kirmayer. estende o significado do tópico. entretanto. instituindo uma tensão. as metáforas não constituem simplesmente um mapeamento isomórfico de um esquema conceituai para outro. isto é. fazendo A parecer uma espécie de B. a metáfora tem raízes afetivas. afetivos e cognitivos dos elementos justapostos (1993:172). não estabelece uma distinção entre Ό que é dito' e 'aquilo acerca do que se diz' e. combinam-se para criar novos significados. é o conflito entre ambas que sustenta a metáfora. as divergências surgem no que toca à definição do conteúdo específico desse significado e da forma pela qual é criado. Daí uma crítica que se pode fazer à teoria imagística: por menosprezar a existência de um significado semântico na metáfora. Seu argumento apóia-se na tese de que o locus da metáfora é a frase. a concepção de que a metáfora opera por meio da analogia parece ainda insuficiente para se compreender sua dimensão criadora. a metáfora retira características salientes do veículo para ressaltar o tópico. Tradicionalmente. vão além da analogia à medida que transformam o tópico pela interação com aspectos sensorials. Assim. as concepções imagísticas da metáfora baseiam-se no princípio de que a função da metáfora é criar uma imagem de uma dada realidade dotada de significação emocional. Para explicar como uma associação de imagens pode gerar uma nova significação. no seio do enunciado. pouco explica sobre o modo como as imagens. e não a palavra: as metáforas dizem respeito à função de predicação da frase: operam. é necessário analisar o processo da metaforização. O enunciado metafórico obtém sua eficácia instituindo a absurdidade. inicialmente. Desta maneira. as concepções da imagística nos permitem ir além de uma visão da metáfora como simples adorno. e a relação entre seus termos expressa fundamentalmente um conteúdo emotivo. Uma alternativa bastante interessante ao modelo clássico é oferecida pelas teorias da metáfora provenientes dos estudos da imagística. não são traduzíveis (isto é. Se. dificilmente exprimível de outro modo. preciso não reduzi-las a fenômenos meramente subjetivos. seu sentido inovador não pode ser exaurido através de paráfrases). u m 'valor de equivalência' na associação estabelecida entre as imagens. A compreensão de u m enunciado metafórico efetua-se sempre nos termos daquilo que é dado na situação de interlocução. e a sua compreensão n ã o é a p e n a s u m a projeção das atividades autônomas e reflexivas dos interlocutores. U m a ênfase excessiva ao caráter subjetivo das metáforas leva ao esquecimento de que u m enunciado metafórico tem uma intencionalidade comunicativa. graças à qual podemos descortinar u m sentido onde uma interpretação literal seria literalmente absurda" (1987:62). que serve para reduzir ou resolver a discordância inicial. A estrutura interna do enunciado metafórico possibilita que ele carregue uma nova informação (seu valor referencial). A eficácia da m e n s a g e m pressupõe que os indivíduos partilhem. rompendo criativamente com usos estabelecidos da linguagem.diferentemente das metáforas mortas. Assim. já consagradas pelo uso e incorporadas ao nosso léxico comum.logo que se tenta lhe aplicar uma interpretação literal. Segundo Ricoeur. de modo que a metáfora nos remete ao m u n d o da intersubjetividade. de situações sociais. . A metáfora emerge. portanto. é esta estrutura que nos permite compreender por que as metáforas constituem recurso tão valioso nos processos de significação da experiência. no entanto. U m a metáfora. é. a metáfora assemelha-se mais à resolução de um enigma do que a uma associação simples baseada na semelhança. Por conseguinte. As metáforas vivas ou de invenção . É este processo de autodestruição ou transformação que impõe uma espécie de torção às palavras. no seio da interação. No seio da absurdidade gerada pela discordância entre duas interpretações contraditórias. necessariamente. é constituída pela resolução de uma dissonância semântica. as metáforas permitem dizer algo novo acerca da experiência subjetiva. grosso modo. Mais especificamente. "a interpretação metafórica pressupõe uma interpretação literal que se autodestrói numa contradição significante. O sujeito compreende através do mundo partilhado de significados. e que toda intenção comunicativa envolve necessariamente a transmissão de u m a m e n s a g e m entre u m emissor e u m receptor. a metáfora introduz a semelhança. pode-se dizer que a metáfora cria u m parentesco não percebido ordinariamente. uma extensão do sentido. uma inovação semântica que não tem estatuto na linguagem já estabelecida e que apenas existe em virtude da atribuição de um predicado inabitual ou inesperado. conclui Ricoeur (1987:63-64): é uma criação instantânea.são criadoras de significado e. como 'pé da mesa' ou 'primavera da vida' . .) Aí inchou tudo. Tanto inchava como tinha brotoeja. O vizinho lhe acusara de ser feiticeira: "Ah. interpreta e constrói sua vivência da aflição.. quando atravessava u m riacho. pelo uso da metáfora.) as cobertas dava pra torcer. e como corria água do corpo. Há quatro anos. que lhe receitou algumas pomadas. O problema. No dia seguinte. tá tudo duro. oi. Ela descreve a sua experiência na igreja pentescostal: . n i n g u é m dá jeito. que médico não dá j e i t o . Foi subindo... "Quando aquele banho caiu e m meu corpo. começou a se agravar. você é tirada a feiticeira. "Foi mesmo que pegar e jogar tudo dentro do rio. Subi nas paredes. Eu fiquei parecendo um bicho. insistiu para q u e esta lhe acompanhasse à igreja. A í eu m e invoquei c o m a cura invisível. né? Ε depois foi que eu senti isso". tudo cortado (. tem pau que passa pau". mas foi quando ouviu no rádio a pregação de u m pastor a r e s p e i t o da 'cura i n v i s í v e l ' que sua vida recebeu um novo direcionamento. A mãe de D . porque eu passava. Firmina é vendedora de acarajé. "Era tudo cortado. Eu fedi a defunto. sentiu "adormecer a cabeça do dedo esquerdo do pé". o que que eu faço. Decidiu procurar aquela igreja: " A í m e plantou aqui no j u í z o . Sentia o pé 'partido'. subindo até o rosto. uma senhora de 55 anos. o que que eu faço?' Aquele negócio queimando... Ardia. D. Procurou um outro médico. Então eu vou fazer essa corrente". Firmina. não minava água. Enquanto tava só aqueles talhos. Firmina. os dedo duro mesmo.) O corpo corria água. O i . D . subindo. Deram-lhe u m banho. ao se dirigir para seu ponto de venda. Ε ela conclui: "Ele tinha me dito isso. Ela nos diz: "agora é o outro dedo... e c o m aquela dormência enjoada". D o n a Firmina freqüentou alguns cultos c o m a m ã e . Ela atribuiu inicialmente o caso a uma briga que tivera com u m vizinho alguns meses antes do incidente. que há a l g u m tempo se havia convertido à "lei de c r e n t e " e q u e n u n c a deixara de expressar seu desejo de converter a filha. porém. (. né? Essa doença é invisível. partir". foi o mesmo que morrer. habitante de u m bairro de classe trabalhadora da cidade de Salvador. aconteceu a mesma coisa com outro dedo do pé. Dona Firmina foi ao médico. então.) depois as mãos pegou partir também. resolveu procurar u m pai-de-santo. parecendo que foi um Satanás mesmo que jogaram em meu corpo". ó. no mesmo local.METÁFORAS Ε NARRAÇÃO DE EXPERIÊNCIA O seguinte relato é bastante ilustrativo para que possamos compreender como. que lhe deu "um remédio de u m jeito de uma magnésia": Aí eu piorei que parecia que eu ia morrer (. Não tô governando nenhum dedo do pé. pegou partir. Seu problema não se resolveu. não sentia alívio de nada". agora é os dois. A sua primeira providência foi passar limão e pomada nos dedos do pé. tomou numa brotoeja (. .. Ε dentro da pele tinha um bicho que corria. do meio da cabeça.Aí quando eu cheguei aí. a doença é percebida e expressa como uma entidade localizada .gradativamente se alastra pelo corpo..) Era aquele bicho que eu sentia correndo dentro do meu corpo. e veio descendo. f i n a l m e n t e . na hora de receber a cura. eu não vi que ele desceu mais. (. pela face. que aquilo foi uma feitiçaria. As metáforas do primeiro grupo constroem uma imagem de estranhamento e alienação progressiva de si: a doença . Eu curei num dia. (.) Quando cheguei em casa. quando chegou em cima do coração.) era um bicho. estados do corpo. Aí pronto.) O pé desinchou.. descendo.. Firmina é marcada pela precisão de detalhes sobre a origem. Há u m deslocamento significativo . Nesta história. A narrativa de D . toda brotoeja (. A s metáforas do segundo grupo conduzem a história ao momento de sua resolução.. no segundo. a resolução da aflição no interior da igreja pentecostal. numa tarde. por excelência.. e ia até aqui e voltava mordendo. o bicho mexeu aqui. e eu ficava me coçando. m o r t e e. (. sim. (. A dor seria o bicho correndo e mordendo entre a carne e a pele. além de toda a inframação. mandou todo mundo fecha os olhos.. expresso. veio descendo.) Eu sentia. Informações relativas a relações sociais.) Mas quando eu cheguei na hora da oração.) do pescoço até o joelho. " O corpo corria água.) Fiquei parecendo u m bicho". um gongo que tem assim no chão. eu não via. (. o corpo já tava enxugando. eu não senti mais aquilo. foi aquela manifestação horrorosa que eu não vi mais nada. sentimentos e impressões subjetivas m e s c l a m . Fiquei curada das brotoejas. u m gongo que tem uma tesoura na ponta do rabo" . friviou. tornou numa brotoeja.. Eu sentia correndo. que falou da feitiçaria... conferindo-lhe uma aparência repulsiva. (...) Depois que eu fui. (. restabelecimento da vida.. Eu fedi a defunto. dentro da minha pele. mas sentia que era um bicho daquele. (.) senti na cabeça. pronto. e aquilo não tinha jeito. construção de uma nova vida. Corria entre a carne e a pele. N o primeiro. eu não vi mais nada. descendo.. Caí. tudo. por vezes monstruosa.. me coçando. (.q u e se inicia c o m o sensação de "adormecer a cabeça do dedo esquerdo do p é " . N o ambiente do culto pentecostal. e tem uma tesoura na ponta do rabo. O lacrau é um. ou melhor. (... curso e desenvolvimento da doença.. alojada dentro do corpo..) Na hora da oração. mas ele corria daqui até aqui assim. Aí ele friviou. parecia o lacrau. toda a dormência. aí eu cheguei assim fechei. mordendo."um bicho. A doença se inscreve sobre o corpo de forma dramática e parece ameaçar a integridade do eu. A aflição assemelha-se a u m rito de passagem.. parecia o lacrau. descreve-se o processo de eclosão e desenvolvimento da doença.. manifestei.. podem-se discernir dois conjuntos dominantes de metáforas que distinguem os dois grandes momentos da narrativa. sabe de onde ele saiu? Daqui. Por fim.s e p a r a p r o d u z i r u m a i m a g e m c o m o v e n t e d e d o r . vai "subindo" até desfigurar o rosto e assim comprometer o próprio eu... que sobe. p e r m a n e c e m fincadas na experiência. t a m b é m se evidencia no caráter quase narrativo de muitas enunciações metafóricas usadas por D . a concretude das i m a g e n s . que r o m p e m c o m o domínio imediato da experiência vivida. no fato de q u e dec o m p õ e m e d e s d o b r a m a doença e m u m conjunto de ações banais. entre duas interpretações divergentes. separam-se gradativamente. A s metáforas constituem. mas porque. Essas metáforas constituem a resolução de u m enigma. que ferem diretamente os sentidos e provocam uma reação imaginativa imediata e m quem as ouve. apontam na direção de u m futuro. até a expulsão final da enfermidade do corpo do doente. considerações acerca do seu sentido não devem conduzir a u m esquecimento desta sua dimensão referencial fundamental. para uma imagem da doença como objeto b e m definido que se aloja dentro do corpo . Nisto reside uma das principais razões pelas quais o estudo das . diferentemente das 'construções abstratas ou analíticas. c o n d e n s a n d o características narrativas. c h a m a a atenção para o status m e s m o das metáforas na constituição da e n f e r m i d a d e c o m o vivência significativa. A diferença entre o trabalho realizado pelas metáforas e aquele produzido pelos conceitos abstratos.s e d e metáforas que descrevem e m a p e i a m o corpo c o m o espaço paulatinamente conquistado e transformado pelo mal . as metáforas apresentadas por D . No primeiro momento. corre. É preciso ter e m mente que antes de desempenhar u m papel específico na narrativa e m que se encontram inseridas. É justamente esse deslocamento . pode-se dizer que as metáforas servem não apenas para. para usar as palavras de Ricoeur. Assim. as metáforas tecidas por D. no processo d e significação. Porém. C o m o um todo. q u e antecipamos.que permite a resolução final do drama. no segundo. Firmina para descrever sua aflição trazem imagens vivas e bastante concretas. Dois elementos m e r e c e m ser ressaltados a este respeito: primeiramente. como também para prover possibilidades ou direções para sua reorganização. as segundas descrevem as marcas interiores da doença para mostrar a corporificação ou objetivação do mal como algo palpável. atribuir significado às experiências. interna ao enunciado. o relato p o v o a .entre estas imagens de sofrimento e dor e aquelas pertinentes ao primeiro grupo: enquanto as primeiras descrevem as marcas exteriores da doença para mostrar a transformação e paulatina alienação do eu. sem dúvida. Firmina apontam para ou referem-se a algo que existe fora do texto: a experiência encarnada do sofrimento.de uma imagem da doença como presença que recai sobre o corpo e o remodela. seu enraizamento nos sentidos e na emoção. oferecem u m panorama dessa experiência e m sua imediaticidade. Seguindo a terminologia de Ricoeur. se espalha. não apenas porque resolvem uma tensão. Firmina. embora não imediatamente visível. a doença e a identidade pessoal gradativamente se fundem. e m que a ação apresentada é finalmente encaminhada para u m desfecho. Deste modo. elemento fundamental no processo de construção de significado. A narrativa organizada ao redor da metáfora do lacrau foi. antes de ser u m texto acabado e meramente contado. Neste ponto. Firmina encontram-se imagens que expressam o envolvimento de u m sujeito/corpo na situação de aflição. convivia c o m a mãe pentecostal e seu desejo de vê-la convertida. para ressaltar a gravidade do seu sofrimento. no qual se percebe a doença como u m mal que invade o corpo. tratá-las simplesmente como elementos de uma teia de relações que opera no interior do texto é perder de vista sua dimensão existencial. A o contrário. Rabelo. arbitrário. sobre a experiência. Entretanto. Organizadas e m torno de u m conjunto de metáforas. a abordagem antropológica separa-se das análises lingüísticas. Diz Jackson (1996:9): . Firmina supor que. São metáforas vividas. embora expressem. Evocadas nas metáforas usadas por D . muito possivelmente. A o invés de agirem pela imposição de u m significado externo. ela estivesse usando a metáfora apenas como analogia. este contato se intensifica. Firmina freqüenta cultos e participa de correntes de oração. D . Acompanhando u m argumento proposto por Kirmayer (1993). ao m e s m o tempo em que revela as limitações destas últimas para dar conta da imbricação entre metáfora e experiência vivida. do que uma reflexão a posteriori sobre tal processo. as sensações corporais experimentadas durante o culto e m que se opera a cura ajustam-se à visão de m u n d o pentecostal. atuam no campo da experiência. É valendo-se dessa compreensão que a aflição passa a ser sentida como u m objeto que invade e se aloja no corpo. as imagens (ou talvez outro conjunto delas) fizeram parte do próprio drama. que é antes u m engajamento do sujeito-corpo na narrativa de cura constitutiva do projeto pentecostal. 1993). pode-se dizer que as metáforas parecem mediar entre u m conjunto de sensações corporais e uma narrativa genérica. se queremos entender o papel que desempenham na significação da experiência. Firmina já tinha contato c o m tal universo. Logo. do processo de significação que se desenrola no curso mesmo da experiência. que se torna u m lacrau. Firmina situa-se no interior do modelo pentecostal. sem dúvida. D. a metáfora revela e traduz u m modo de significação ou compreensão não intelectual. 1996:9). A experiência de cura vivenciada por D. ou melhor.metáforas é de tanto relevo para a antropologia da saúde: sua vinculação estreita com a experiência vivida. uma narrativa vivida. e a cura constitui processo público de expulsão da entidade maléfica e ingresso do doente no espaço ordenado da Igreja (cf. ao identificar sua dor c o m um lacrau. Seria fugir inteiramente do sentido almejado por D. essas imagens não consistem apenas e m recursos lingüísticos utilizados para adicionar u m a forma ou significação ao sofrimento vivido: antes de fazer parte de u m texto elaborado após a conclusão do drama real. C o m a eclosão da doença. uma síntese bastante original no quadro dos seus princípios gerais. senão que é também preciso abandonar interpretações dualistas no estudo das metáforas. evocam e mediam conexões no interior da experiência (Jackson. Não só é preciso romper com uma visão da metáfora como analogia. até ser finalmente expelido. . D . o fedor de defunto). Bem mais do que acessórias. Lançando m ã o de uma série de metáforas e associações de imagens. as metáforas invocadas dão forma a uma experiência incoativa. então o significado da metáfora está em descortinar a dependência entre corpo e mente. tópico e veículo -. de maneira contundente. Mediante a utilização de imagens plenas de sentimento. Poder-se-ia dizer q u e o efeito dessas metáforas consiste e m transportar o outro (intelectual. D . tomando tal experiência significativa e manuseável. não são meios figurativos de negar dualidades. F i r m i n a sente o b i c h o m e x e r dentro d e si. N a sessão d e cura divina. D . os cenários do sofrimento e da cura. sensível e emotivamente) para o drama apresentado. de aflição. portanto. Firmina refer e . self e mundo. Assim. Firmina constrói. A s metáforas "corpo (como) brotoeja m i n a n d o água e fedendo a defunto" e " d o e n ç a (como) lacrau q u e se m o v e mordendo entre a carne e a p e l e " afetam vários sentidos ao m e s m o tempo. como b e m o demonstra a história de D. Outro aspecto a ser comentado com relação à história de D. que podem ser definidos mais realisticamen¬ te separados um do outro. pré-objetiva. no contexto da cura pentecostal. O envolvimento dos outros/ouvintes depende e m grande medida da força das imagens evocadas. Metáforas. Segundo Fernandez (1986). p e r c o r r e n d o os centros vitais da cabeça e c o r a ç ã o . Firmina. Firmina conduz seus ouvintes ao longo de u m caminho de intenso sofrimento rumo à libertação final da doença. revelam ou realizam unidades. as metáforas estendem a experiência incoativa (poderíamos dizer pré-reflexiva) do sujeito a domínios concretos e facilmente reconhecíveis pelos outros. tanto para ela quanto para os outros. as metáforas desempenham u m papel fundamental na construção de u m campo intersubjetivo entre os indivíduos. Firmina faz mais do que prover informação sobre acontecimentos passados: provoca nos ouvintes u m a resposta emotiva. permitindo aos seus interlocutores vislumbrar vastos domínios de sua experiência subjetiva. m a s t a m b é m táteis (o m o v i m e n t o d o lacrau c o m suas múltiplas pernas e ferrão no espaço delicado sob a pele) e olfativas (o cheiro da água que mina do corpo.s e ao efeito m e s m o q u e as m e t á f o r a s p r o d u z e m n o s seus o u v i n t e s e interlocutores. A o descrever sua aflição mediante uma sucessão de metáforas. imaginá-las é ver-se imerso e m u m a série de imagens/sensações que não são apenas visuais. permitindo a si mesma organizar e desenvolver essa experiência de forma socialmente reconhecida. Este parece ser u m importante papel desempenhado pelas metáforas e m contextos rituais d e cura.se as metáforas corporais são interpretadas não dualisticamente. D. de modo que a idéia ou sensação e seus correlativos corporais não sejam vistos como sínteses retóricas e abstratas entre dois termos .sujeito e objeto. chamando-os a vivenciar imaginativamente sua experiência pessoal de aflição. radicadas na vivência do sentir-se mal.CONCLUSÃO A questão da significação da experiência reveste-se de especial relevância para a antropologia médica na medida e m que diz respeito ao m o d o c o m o os indivíduos compreendem. Tentou-se aqui explorar alguns dos caminhos oferecidos por estudiosos desses campos teóricos.que pode ser explicado e c o m o qual se pode lidar em contextos sociais específicos. expressam e comunicam suas aflições. apontamos para o papel das metáforas na construção do significado. particularmente ao desvelar a estrutura e as estratégias de operação do discurso (incluindo as narrativas e metáforas). como o sofrimento e m suas várias dimensões. em sua abordagem das relações entre metáfora e experiência no processo de significação. ambíguas. razão e emoção. enquanto u m modo de compreensão intelectual. A o abordar a questão. como também oferecem possibilidades de movimento ou ressignificação. criar ou impor significados a posteriori sobre uma experiência já transcorrida. Neste sentido. é também verdade que utilizam-se as metáforas para expressar e comunicar a aflição a outros. é preciso evitar de situar a operação das metáforas no mesm o nível da operação dos conceitos abstratos. Trata-se d e entender de que m o d o experiências subjetivas. Elas mantêmse próximas à experiência. . multifacetadas. quanto trazem essa experiência para o domínio dos afazeres cotidianos. as metáforas . enunciados que de fato se vinculam à experiência. procurou-se também mostrar como uma a b o r d a g e m antropológica da questão precisa superar o paradigma d o texto subjacente aos trabalhos de lingüistas. de criação de novos sentidos . Tal associação revela-se extremamente problemática quando saímos dos textos para entender a experiência: muitas vezes tratamos como analogias ou criações engenhosas. criando mediações entre o vivido e as significações já cristalizadas das histórias exemplares. organizam. enfurecem.a enfermidade . Conforme mostra Ricoeur. Os enunciados metafóricos tanto revelam imagens próximas da experiência encarnada da aflição. fruto d e uma reflexão sobre fatos consumados. constituem-se e m objeto . criam u m campo de significação aberto ao diálogo: não só permitem a expressão do incoativo. narrativa e performance. críticos literários e diversos filósofos da linguagem. transformando-a e m algo sobre o qual se pode falar e agir. As metáforas comovem. práticas e conversações dos sujeitos. articulando. Entretanto.porque constituem estratégias de inovação semântica. No entanto.permitem a expressão de experiências subjetivas complexas. A teoria literária e a filosofia da linguagem têm muito a contribuir para o entendimento dos processos de significação. A o aproximar diferentes domínios da experiência humana. As metáforas não operam apenas nos textos para trazer. do seu interior. corpo e mente. FERNANDEZ. jul/set 1993. J. and anthropological critique. São Paulo: Hucitec/Abrasco.1993. São Paulo: Cultrix. Obras. RICOEUR. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES.C. RABELO. 1997. New York: Harcourt. D. 1958. Entretanto. A. M. contribuem para o reconhecimento das experiências de aflição vividas por outros. J. Lisboa: Edições 70. NOTAS 1 2 3 Este capítulo é uma versão modificada e ampliada de Alves & Rabelo (1995). & RABELO. jul/set 1993. I. antes de constituir u m tropo puramente a serviço da reflexão. R. Introduction. ARISTÓTELES. 1996. 1978.C.persuadem . A. as pertubações patológicas constituem objeto de investigação das ciências biomédicas. Brace and World.W. 1986. The Philosophy of Rhetoric. (Ed. M. as metáforas situam-se e operam e m u m domínio próximo à experiência dos sujeitos. radical empiricism. RICHARDS. Saúde e Comunicação: visibilidades e silêncios. JACKSON. conhecido e experimentado em todos suas facetas. P. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. não da antropologia. KIRMAYER. Healing and the invention of metaphor: the effectiveness of symbols revisited.1987.M. Cadernos de Saúde Pública. Religião e Cura: algumas reflexões sobre a experiência religiosa das classes populares urbanas. 1995. Teoria da Literatura. Oxford: Oxford University Press. SOSKICE. Tomadas em si mesmas. Petrópolis: Vozes. SPERBER. Bloomington: Indiana University Press. Persuasions and Performances: the play of tropes in culture. 1989. Oxford: Clarendon Press. Como algo a ser suportado ou enfrentado.) Things as They Are: new directions in phenomenological anthropology. In: J A C K S O N . M. BEARDSLEY. M. Cadernos de Saúde Pública. Medicine and Psychiatry. Madrid: Aguilar. ALVES. Aesthetics. 1967. & WARREN. L.incitam à ação. Bloomington: Indiana University Press. P.J. rejeitado ou incorporado à identidade etc. articulando-a no seu transcurso e trazendo alguns de seus elementos para situações de interlocução e ação coletiva. Assim. 9(3):316-325. 1976. SARTRE. Culture.C. Phenomenology. 9(3):263-271. P. Methaphor and Religious Language. . O Simbolismo em Geral. para sua transformação em objeto de conhecimento e intervenção segundo modos socialmente legitimados. WELLEK. Lisboa: Europa-América. In: PITTA. 1936. M. A Experiência da enfermidade: considerações teóricas. Significação e metáforas: aspectos situacionais no discurso da enfermidade. 17:161-195.P. J. Teoria da Interpretação.A. . Low. abarca os signos de agitação e impaciência: descreve pessoas avexadas ou agoniadas. Rabelo & Paulo César B. o fato de este ser u m termo que abarca u m conjunto complexo de signos e ao qual se relacionam diversas situações e contextos causais. O segundo nódulo. gente que percebe provocação onde esta não existe e inicia uma briga ante a mínima provocação. seja física ou verbal . Alves INTRODUÇÃO P r e s e n t e e m d i v e r s o s c o n t e x t o s s o c i o c u l t u r a i s . A este nódulo ligam-se certos signos corporais. o n e r v o s o t e m sido vastamente documentado pela antropologia médica recente. que se mostram insatisfeitas e/ou excessivamente preocupadas diante dos problemas do cotidiano. São pessoas que se alteram com facilidade. embora encontrem-se também descrições de mulheres cujo nervoso se expressa e m termos de agressividade exagerada e/ou fora do contexto.1994).maridos que batem nas mulheres ou pais que espancam filhos por qualquer motivo. Grosso modo. a quem falta u m pouco de tranqüilidade e/ou jogo-de-cintura para conduzir a vida. 1989.7 Tecendo Self e Emoção nas Narrativas de Nervoso 1 Míriam Cristina M. 1994). usada e manipulada e m situações de interação (Rebhun. Trata-se. constitui uma aflição bastante conhecida e comentada cotidianamente. criando verdadeiras 'cenas'. característica de u m determinado modo de se pensar a pessoa (Duarte. 1994). como andar de u m lado para o . inicialmente. No Nordeste de Amaralina. conforme j á observado no capítulo 1. gritam e batem. O primeiro nódulo reúne os signos de agressividade e violência: descreve-se o nervoso como um estado e m que as pessoas facilmente apelam à agressão. bastante relacionado ao primeiro. Guarnaccia et al. xingam. os signos relativos ao nervoso compõem três nódulos básicos. Neste nódulo situa-se a grande maioria das descrições de homens nervosos. 1993. de categoria polissêmica (Davis. 1986. tanto no domínio da casa quanto no espaço público da rua.. 1989. Nos relatos produzidos por moradores do bairro sobre casos conhecidos de nervoso ressalta-se. como muitos já observaram. nervoso. fica nervoso.. Foi. uma coisa mais alta. Renilde: De vez em quando ela tá assim agitada. senão morria. Zenilda: Meu marido mesmo era super-nervoso. associado à idéia de fraqueza dos nervos. como rir demais ou chorar e m excesso e por qualquer razão. Isabel: Eu achava assim. Liga estes três eixos o tema do descontrole. aí chorou como quê. fica assim. leva tudo no peito. parece até que você tem nervoso". muda logo. Silva: [Ele] é assim nervoso. muitas vezes quer até bater na mãe. às vezes é. na.. você fala um negócio tão diferente. você tá conversando com a pessoa. ficava com as mão tremendo. deu um nervoso nela. nas irmã e tudo mais. quando a pessoa está passando necessidade.de tal forma que o nervoso parece uma reação inadequada ou desproporcional e m relação ao contexto . que ela esculhambava muito os vizinho. ressalta a noção de que o descontrole que marca o nervoso é fruto de uma situação mais abrangente de pobreza e privação.outro e tremer de corpo inteiro. bem uma coisa besta. chora. aí ela se injura demais. além de certas atitudes.) Sem ter se aborrecido com nenhum problema. Aí ela disse: "Eu tenho". (. uma coisa. com a boca tremendo. ela pegava os vizinho só faltava matar. fica muito nervosa. chorano. muda completamente o rumo das coisas. na calma. ela bate. falava muito. então eu achava que. Madalena: Ela vivia muito nervosa. deu a crise mermo forte. já vai lhe agredindo. falando. Aí. tava bulindo com ela. ele já muda pra outras coisas. se a gente bulir muito com ela. Ninguém chegasse na casa dela. a pessoa já leva aquilo. não queria ninguém lá. aí uma pessoa fala uma coisa com você. É interessante observar que o . chorano. Ele era capaz de estrangular se estiver nervoso. foi [água] com açúcar a ela. Embora as descrições destaquem a disjunção entre o comportamento da pessoa nervosa e o contexto imediato ao qual responde . começa a ficar nervoso. você fala uma besteira. uma besteira mesmo. o terceiro nódulo abrange signos de isolamento: pessoas que se trancam e m suas casas e evitam contato c o m outros. Nilma: Eu acho [nervoso] assim.. nervoso mesmo pra valê... Tudo o que a gente falava com ela. Madalena: Mas quando ela tá agitada mermo. chorano. ela mandava vir embora. Por fim. oxente. aborrecia. que impõe sérios limites às possibilidades de se conduzir a vida com tranqüilidade. foi a gente dar água com açúcar a ela. quando via os vizinhos com alguma coisa.. se altera. aí a gente dizia assim: "Justina. ou às vezes. porque ela. lhe ofende. Márcia: Fica. se bulir com ela. tava irritando ela. Do dia mermo.. sem necessidade. que quando ela estava passando fome. dizendo as coisas a ela. chamam a atenção para o caráter situado. em grande medida. Josefa disse (meio que sorrindo. entretanto. Destaca-se. ao mesmo tempo em que emerge marcado por sentimentos não referidos nos relatos em terceira pessoa. tremia toda. n u n c a visto nas r e d o n d e z a s ? " O nervoso de Josefa é um estado de intensa aflição psíquica. As histórias em primeira pessoa mostram uma clara continuidade com relação aos relatos produzidos por outros. parou em uma vendinha e pediu ajuda a uma mulher. tremor ou leveza. Josefa nunca tinha visto o tal. a imagem dos nervos desmoronando parece apontar para uma desintegração da pessoa. sentida. a materialidade ou corporeidade deste estado: o corpo treme. quando vinha descendo a ladeira. . músculos tesos etc. ora como efeito. uma vez que revelam o ponto de vista do sujeito da experiência. Ε preciso lembrar também que.discurso sobre o nervoso consiste. em um discurso sobre si mesmo. Interessa aqui justamente explorar algumas das dimensões de sentido próprias às narrativas de nervoso produzidas por seus protagonistas. Josefa sentiu-se no dever de prestar-lhe solidariedade. o nervoso articula-se à trajetória de vida. Veio andando com o homem em seu encalço. o nervoso. porém. não podemos esquecer que têm um status epistemológico distinto desses últimos. 1993). foi que lhe bateu o nervoso: sentiu que os nervos iam desmoronar. Não parecia que era Satanás. Com o intuito de introduzir a discussão sobre o nervoso na experiência pessoal. do nosso self (Lock. j á a salvo. neste caso. Sua ajuda. uma pele de cor diferente. respiração difícil. Antes de mais nada. e queria preservar-se do possível ridículo): "pra m i m foi Satanás. a cabeça fica "zuando". de modo material. para quem assim se define. observadores externos ou personagens secundários no drama do nervoso . entretanto. usava calça j e a n s . Ficou ao seu lado até despistá-lo. E m seus relatos. havia sido requisitada por u m a tia enferma e. o ônibus não demorou. Sensações corporais afloram nas diversas experiências emotivas: suor. Por sorte. enquanto emoção. tinha certeza que não era das redondezas. Neste ponto da história. Josefa não sai muito de casa. neste sentido. como angústia e tristeza. físico. Saiu de casa rumo ao ponto de ônibus e. com freqüência. percebeu estar sendo seguida por um h o m e m estranho: magro. pois pressentia a minha incredulidade.elaborando e aprofundando temas comuns . segue-se um caso contado por uma moradora do Nordeste sobre seu nervoso (registrado em diário de campo): Pessoa nervosa. Chegou à casa da tia pedindo água com açúcar. é uma condição que se desdobra em vários eventos do cotidiano. Habitante antiga do bairro. o nervoso pertence tanto à mente quanto ao corpo. Muitas mulheres tendem a falar de si mesmas como pessoas nervosas e a explicar o significado do nervoso por meio de considerações sobre suas vidas e seus problemas. As emoções. Quando chegou no ponto.. corporificado ( e m b o d i e d ) . um homem todo diferente. ora como pressuposto para se assumir uma posição perante esses eventos. magro. necessariamente representação: mais do que ser sincero. as mãos tremendo. que a qualquer momento pode decom¬ por-se em lágrimas. é preciso igualmente notar que este último nem sempre escapa ileso das próprias construções. que sua representação de si não é aceita sem problemas: o filho reprova seu comportamento. para se ter direito a determinadas atitudes e reações. o presente capítulo explora algumas indicações para a compreensão da experiência do nervoso c o m base no estudo de relatos pessoais. que quer sofrer". tentando expressar para os outros o que lhe parece dizer seu corpo (e porque o diz). Assim. explicar e justificar o mal que lhe aflige corpo e mente. . Afinal. é preciso ter-se e m conta sua função de envolver uma platéia na construção de realidade proposta pelo narrador. discute-se a construção do self e emoção na história de vida de uma mulher. a expressão de desconforto .É como pessoa nervosa que Josefa apresenta-se nas interações com seus familiares. as informações emanadas do corpo desempenham u m papel importante: os gestos tensos. os sinais do corpo sempre podem ser habilmente manipulados. Josefa exibe u m punhado de remédios que ingere diariamente. Neste processo. envolve. u m senso de self. é preciso parecer sincero. t a m b é m Josefa se alimenta das narrativas que produz no processo de envolver e persuadir seus ouvintes: ao contar a história do seu nervoso. Conforme j á dito. quando jovem. amigos. são fortes sinais da aflição de Josefa. No entanto. particularmente no que tange à identidade do self e às emoções. A própria Josefa recorda-se de que. Ela sabe. Como prova da veracidade do seu estado. Os relatos de aflição que as pessoas compõem e oferecem aos seus ouvintes (incluindo o pesquisador) articulam sensações corporais. forja para si. moradora do Nordeste de Amaralina. de m o d o que cada u m deles demonstra-se necessário e plenamente justificado. entretanto.na face. N ã o há dúvida de que. para entender melhor tais relatos. vizinhos. é a de que as narrativas permitem apreender dimensões importantes da experiência emotiva. Como observa Goffman (1959). "achava que esse negócio de nervoso era pura encenação".. persuadir. Elabora também relatos e m que procura dar sentido. atos e eventos discretos em uma totalidade .por vezes de raiva . auto-refe¬ rida c o m o nervosa. qualquer apresentação de si para os outros. que orienta a discussão sobre o nervoso. na medida que p õ e m à vista uma relação percebida entre sujeito e contexto. E m u m certo sentido. parece que procura. fundante desta experiência. via u m esforço reflexivo. dizendo que ela "faz de tudo para ficar maluca. e m sua maioria tranqüilizantes. A idéia central.o curso da história narrada . Desenvolve-se o argumento de que as narrativas represent a m recurso metodológico valioso para uma abordagem socioantropológica de questões relativas à constituição da subjetividade. mesmo amorfo (Giddens.SELF. pode-se considerar a narrativa como u m ato discursivo que: a) apresenta uma unidade semântica (significação). n e m . Importante notar que. Assim. 1991:54). o self é forjado no mundo social. não equivale exatamente a esta. altamente plástico (Wiley. encontros. Nesta direção. longe de ser u m atributo fixo ou permanente do indivíduo. U m a das abordagens mais interessantes à questão d o self a d v é m do pragmatismo americano. 1994). experimentar e m si mesmo as reações que seus atos provavelmente provocariam no outro e. embora a identidade pressuponha e se alimente de uma teoria da pessoa ou uma definição social do sujeito. e m grande parte. b) refere-se a u m mundo que pretende descrever. para quem a narrativa oferece ao indivíduo uma instância privilegiada para a compreensão de si próprio. Trata-se. Tanto seu desempenho quanto o dos outros podem ser objeto de escrutínio no curso de u m diálogo interior. monitorar sua ação. Segundo Mead (1972). Se minha vida não pode ser interpretada como totalidade singular. de fato.por mais importante que seja . As abordagens mais recentes parecem concordar que. "A identidade de uma pessoa não é encontrada no comportamento. O self define-se. E m u m a perspectiva socioantropológica. deste modo. ao sentido subjetivo que o indivíduo confere à sua trajetória singular. eu não poderia nunca desejar que ela fosse bem-sucedida. NARRATIVAS Ε EMOÇÃO A noção de self tem-se prestado a diversos significados e usos no campo das ciências sociais. 1995). que lhe permite entrever uma continuidade ou identidade sob os inúmeros e variados eventos. Essa construção biográfica é uma narrativa. que o indivíduo constrói e mantém e m curso. Nas palavras de Ricoeur (1991:190): " É preciso que a vida seja reunida para que ela possa colocar-se na perspectiva da verdadeira vida. c o m p l e t a " . assim. . Giddens propõe que a identidade do self seja. fragmentário.nas reações dos outros. 1994). portanto. uma vez que totaliza o que é vivido de m o d o pontual. que se origina e se organiza c o m base no diálogo com os outros (Wiley. antes. 1991:53). representar ou exprimir. Corresponde. Tal capacidade desenvolve-se na interação: o indivíduo torna-se objeto para si à medida que interioriza a perspectiva do outro. e m termos deste diálogo intrapessoal. de u m fenômeno fluido. é a narrativa sobre si. o self aponta para a capacidade do indivíduo de tornar-se objeto para si mesmo. 1991). realização sempre renovada. acidentes e ações que caracterizam a esfera do vivido. a qual. Dubet. isto é. então. É. 2 3 A identidade do self emerge no processo de dialogar consigo ou tornar-se objeto para si. "o self enquanto reflexivamente entendido pela pessoa e m termos de sua biografia" (Giddens. mas na capacidade de manter uma certa narrativa e m curso" (Giddens. Pode. constrói e avalia e m termos de aproximação ou fidelidade a u m ideal de sujeito/pessoa vigente (cf. A imbricação entre identidade e narrativa tem sido amplamente discutida por Paul Ricoeur. Ricoeur observa que o auxílio da ficção é de fato importante na construção de uma visão totalizadora da vida. Conforme a linha da discordância. o indivíduo atribui-lhe uma ordem. experiências. acontecimentos passados. o narrador estabelece uma organização seqüencial em que cada segmento pressupõe um outro. essa totalidade temporal é ameaçada pelo efeito de ruptura dos acontecimentos imprevisíveis que . Essa organização. uma unidade lógico-semântica que assegura a 'coerência' interna do discurso. e m o ç õ e s e avaliações . exigência do desenvolvimento mesmo da história: A dialética consiste em que. o personagem tira sua singularidade da unidade de sua vida tida como a própria totalidade temporal singular que o distingue de qualquer outro. A o pinçar e correlacionar esses elementos. A combinação pode definir-se como a justaposição lógica de dois ou mais segmentos. a u m interlocutor. manuseáveis e m contextos de interação. o qual consiste e m uma interpretação do modo como um sujeito se considera situado no mundo e a ele se dirige. conferindo-lhe uma significação básica.a s e g m e n t o s da vida d e atores/personagens. Segundo Ricoeur. Evidentemente. dentro de situações dialógicas e 'performáticas'. portanto. 4 O p r o c e s s o p e l o qual o indivíduo confere u m significado à sua história . o contigente e acidental transforma-se e m necessário.intrigas . a intriga faz emergir a identidade do personagem da própria ação relatada ao desenvolver o que chama de 'dialética da concordância e discordância'. a aplicação às histórias de vida de modelos narrativos . c) r e m e t e . se o indivíduo pretende sustentar sua narrativa e m uma situação de interação continuada com outros. o locutor sintetiza situações e eventos vividos. p e s s o a s . avaliando-os. pressupondo.s e (de forma autoreferencial) a u m locutor. contudo.m e d i a n t e a s e l e ç ã o e j u s t a p o s i ç ã o de e v e n t o s . ou seja. Entretanto. A totalidade semântica do discurso narrativo constrói-se pela relação entre 'segmentos narrativos'. a cadeia de combinações e seleções. E m uma narrativa biográfica. isto é. estrutura a totalidade da narrativa. d) v i n c u l a .envolve um misto de experiência e fabulação. a seleção dos acont e c i m e n t o s .advindos da ficção as toma mais inteligíveis e. unidades mínimas de significado (mínimas em relação ao campo de exploração escolhido pelo narrador) referentes a ações. É o conjunto seqüencial desses segmentos que confere a 'unidade semântica' da narrativa. não se pode descolar totalmente da experiência vivida. Neste aspecto. Por meio desta dialética.s e . unidade esta que se constitui por meio de duas operações significativas: combinação e seleção. a ç õ e s . os segmentos narrativos não se constituem apenas por descrições de acontecimentos fatuais. expressões e atitudes a serem j u s t a p o s t o s . imprime-lhe u m significado básico. emitindo opiniões e expressando sentimentos. A o narrar a sua vida dentro de uma determinada seqüência. segundo sua linha da concordância. o qual caracteriza a experiência de muitas mulheres pertencentes à classe trabalhadora. no Nordeste. seja de regras para a expressão socialmente adequada de estados eminentemente privados. Estes. 1988. 1984). não há consenso na antropologia sobre a natureza da experiência emotiva. de uma trama passada. seja de símbolos. 1991:175) Na narrativa.s e n t i m e n t o s p r i v a d o s a s s o c i a d o s a p r o c e s s o s psicofisiológicos . fora do universo cultural não se poderia falar propriamente de emoção (Geertz. a síntese concordante-discor¬ dante faz com que a contingência do acontecimento contribua para a necessidade de algum modo retroativa da história de vida. Aqui o acaso é transmutado em destino. a identidade do personagem corresponde ao próprio desenrolar da história. o nervoso se constrói ou reconstrói como elemento da intriga. Assim. acidentes etc. ou seja.). agora tornado fixo. resultado inevitável. Strathern. Esta perspectiva em geral d i f e r e n c i a afeto b á s i c o . . ao que se iguala a identidade do personagem. A segunda abordagem sublinha. as idéias e imagens que os indivíduos nutrem sobre si mesmos e sobre outros com quem entram em relação. e que demonstra só fazer sentido no quadro de uma cultura em que os indivíduos "sacrificam suas personalidades reais em função do papel que desempenham" (1978:252). forneceria meios (e limites) para tornar públicas as emoções. entretanto. Rosaldo. Tecidas no quadro de uma narrativa.a pontuam (encontros. 1979. sujeito e ação se constituem mutuamente: o personagem revela-se por intermédio das ações que empreende e em que se envolve. bem como sobre seus corpos e as sensações dele advindas. destacamos duas posições marcantes na literatura sociológica e antropológica sobre o tema. 1984.de emoção . necessário. referem-se a um modo próprio de estar no mundo. Gerber. Na verdade. é preciso que se delimite melhor a idéia de emoção que orientará a discussão seguinte. estas. Levy. Spiro. de uma ação que se desenrola. o papel da cultura na constituição mesma da experiência emotiva: a cultura. aparecem como desenvolvimento necessário do próprio personagem. põem à vista o caráter orientado da emoção como modo de o sujeito dirigir-se para o mundo.relativa à expressão ou regulamentação cultural desses afetos (cf. R. Antes de apresentar um desses relatos. 1985). situam-se no contexto temporal de ação de um sujeito/personagem. Lutz. 1984. associados a estímulos de natureza psicofisiológica. neste caso. Para melhor definir a perspectiva aqui adotada. ao contrário. 1978. (Ricoeur. permitiria a tradução. Narrado. 5 As narrativas de nervoso. modelaria a subjetividade humana. controle e negociação de estados subjetivos no idioma e contexto da coletividade (Hoschild. enquanto sistema de símbolos e significados. componente. neste sentido. Certamente não se pode confundir a experiência do nervoso com sua rememoração mediante relatos. por sua vez. A cultura. É precisamente nesses termos que Geertz analisa o lek entre os balineses. A primeira trata a contribuição da cultura em termos da provisão. 1975). porém. traço definidor da identidade. emoção que traduz como "terror de palco". 6 . de q u e e x i s t e m incongruências entre o papel ou ideal de p e s s o a vigente e sua r e p r e s e n t a ç ã o cotidiana ou trajetória neste papel. O lek. n ã o é s i m p l e s m e n t e p r o d u t o d e u m a cultura q u e b l o q u e i a q u a l q u e r manifestação p u r a m e n t e individual ou interior e m favor da d i m e n s ã o pública dos papéis. a idéia de emoção c o m o um 'olhar' direcionado para u m contexto de relações. Este não é uma mente ou consciência. N ã o se pode compreender experiência da emoção adequadamente sem que a análise reconheça a unidade fundante entre consciência e corpo. pode conduzir a uma ótica excessivamente intelectualizada. por parte d o i n d i v í d u o . As narrativas de emoção representam uma tentativa de interpretar essa experiência. U m a das questões centrais concerne à constituição cultural das emoções. A o se tratar a e m o ç ã o ora c o m o conjunto de estímulos q u e a cultura permite c o m u n i c a r e regular e m c o n t e x t o s s o c i a i s . As emoções sempre alimentam-se da cultura. tomando-a clara e manuseável. se situa e se orienta de maneira particular e m face de u m dado contexto. u m sujeito situado no e dirigido ao m u n d o . Isso não significa dizer que consistam simplesmente e m dados culturais: constituem. Revelam tanto os padrões culturais gerais que orientam a interpretação. segundo a qual a emoção seria u m a forma de cognição. C o m base e m Merleuau-Ponty (1994) podemos dizer que. se a emoção é significado. corpo. a m b a s as a b o r d a g e n s p o d e m c o n d u z i r a u m a visão e m p o b r e c e d o r a da e x p e r i ê n c i a e m o t i v a . A e m o ç ã o brota da forma pela qual o i n d i v í d u o apreende sua situação particular e m u m d a d o c o n t e x t o . e m u m processo prático de lidar c o m o mundo. A e x p e r i ê n c i a da e m o ç ã o supõe. mas u m self-corpo ativo. A experiência emotiva é fundamentalmente u m senso 'encarnado' da situação em que se encontra o sujeito.A p e s a r das diferenças. quanto a tentativa do sujeito/narrador de objetivar sua experiência com base nestes padrões. identidade etc. antes mesmo de ser representado. Depreendem-se alguns pontos relevantes dessa idéia de emoção. não se trata de u m sentido que é primeiro mental para depois se expressar no corpo: o sentido já está no corpo (como indissociável da consciência). neste sentido. no nível de uma experiência pré-reflexiva. E m b o r a r e p r e s e n t e u m p a s s o i n t e r e s s a n t e na s u p e r a ç ã o de u m reducionismo tanto cultural quanto biológico. corre-se o risco d e perder d e vista o elo entre sujeito e situação q u e reside na o r i g e m da e x p e r i ê n c i a e m o t i v a e q u e nela se d e s e n v o l v e . pessoas e objetos. antes. c o n f o r m e j á m e n c i o n a d o . e sim o resultado de u m a a p r e e n s ã o . explorar reflexivamente seus contornos e contextos. u m processo que envolve um self que. ora c o m o e l e m e n t o d e u m sistema ou c ó d i g o c u l t u r a l . dependem e variam de acordo c o m concepções particulares de pessoa. Assim mesmo. aí encostava. é descrito por suas filhas: perda de controle. um dia eu levantava. eu não queria que ele entrasse. sem poder falar. menos distantes.. quando eu ia despachar. parecendo um martelo. eu recebia murro pela cara. dizia assim: " C ê vai morrer". botava a cara n u m sofá. pela. E l e bebo. não podia fazer nada. órfã de mãe. O nervoso que agora a põe de cama vincula-se bastante à relação com os homens que passaram por sua vida. aquela dor de cabeça. negra. aí eu chorava. conta: Porque eu era gorda. botei ele pra fora da minha casa. os menino brigava.. sofreu muito nas mãos de uma madrinha que lhe criou. " E r a o q u ê ? " " A h . sai.. a dor de cabeça fazia. só era olhando a rua. nego xingava meus netos e eu olhando." O coração c o m e ç a v a a ficar. irritação e choro por qualquer coisa. eu abri. né? A í pronto. ó. Quando pequena. u m nelvoso assim. Assim mesmo. se eu falasse c o m u m a pessoa pedindo alguma. eu achava. chorava. numa escada. aí corria pra debaixo do quarto que fica aí... mudava de um lado. Socorro já olhou o mundo com outros olhos.. porque eu digo "eu não vou perdoar". que o freguês saía. tim. n e m o freguês despachava. me chegava a zuá mesmo. tim.NARRANDO A EXPERIÊNCIA DO NERVOSO Sobre o seu nervoso. aquele p u l a n d o .. bonita. perdoava mais de dez . eu olhava. chorava. o freguês vinha comprar e ele não queria que eu fosse despachar. aí eu falasse com você. baiana de acarajé. Assim é que o estado de Socorro. O nervoso de que sofre agora lhe deixa sem ação. Do segundo marido. Q u a n d o passou meia-noite.. eu sentia que você tava. A cabeça ficava assim pensando. por tudo. engravidou e foi largada pelo companheiro que "só fez botar o filho". arranjou logo namorado. N ã o . era b e m feita de corpo e ele tinha ciúme de mim. também moradora do Nordeste de Amaralina. A í me dava aquele ódio. Depois. Socorro é uma senhora de meia-idade.. Aqui assim.. eu n ã o podia ouvir zuada. um negócio assim. n ã o sai. Josefa diz: M e sentia assim. Se u m a pessoa. [Botou] u m a quitanda pra mim. eu sentia mal. Eu não podia ver ninguém falar. Às vezes c h e g a v a u m a pessoa q u e queria m e encontrar. eu n ã o conversava n ã o . com os olhos cheios de lágrimas. em cima da cama. olhava. isso assim.. cê sai hoje da minha casa". ele foi e m b o r a . eu ainda pari três filho dele. eu acharia aquilo.. Descrições muito semelhantes à de Josefa caracterizam a experiência de mulheres do bairro que se dizem nervosas e são reconhecidas como tal. Eu digo: "hoje cê sai. ele mais uns camarada vinha pra querer entrar.. já moça.. deitada no sofá. sempre cercada de filhas e netos que criou com muita dificuldade. eu começava a chorar. bêbado d e cachaça. ainda tive três filho dele. Quando eu não agüentei mais. você m e respondia assim c o m grosseria. meus filho doente. é pai-desanto. [eu] mandando buscar remédio.vezes. mandou e mandou dizer que não vinha não. dei dinheiro pra ele se empregar na Petrobras (.) Pois ele foi embora. Ela disse: "você não vai comer nem essa. eu digo. (. que ele mandou as compra. ela foi numa casa de macumba. mas foi coisa.. que eu botei o açúcar na boca. Arranjei outro. o processo ainda anda pelo fórum.. tinha o corpo bem feito. Meu marido era da sua cor e eu sou preta. Viveu dez anos c o m o terceiro companheiro. elas embargaram lá. Tá certo. Como é que é pra comprar remédio pra essas criança?". trouxe muitos problemas para Socorro: Ficou. sempre preocupado c o m o conforto dos filhos. beim".) Quando eu comi o açúcar aí. Eu parida.) Foi pra Petrobras. cabelo grande e tudo... nem mais nenhuma". só fazia o enterro do menino quando o menino tivesse no Nina Rodrigues [necrotério]. (. Eu meti ele na justiça. beim. tudo. quando ele chegou de Mato Grosso. e aquelas que tava ele acrescentou e botou no meio. eu não. dor.. O menino caiu doente. dor. o que é que eu vou fazer agora. então a mãe dele não queria que ele gostasse de mim. eu digo. aí ele mandava dinheiro grande.. a finada mãe dele. "Oh. passei tão mal. Lá se ia eu ficar doidinha pela rua. aumentou tudo.. mas assim mesmo ele vinha escondido e tudo aqui. quando foi meia-noite eu vi o sino fazer "beim. mas você vai comer é isso agora". Eu disse "ah.. chamei a mãe dele. Aí quando eu vi.. "Então fique aí pra senhora". falei que aquilo não era compra. que era b o m provedor. adocei meu café. dor. bonita... Dava dinheiro pra ele comprar remédio pro menino. ele bebia.. eu trabalhei. acordei e tornei a dormir. meus filho vai morrer. Aí eu deitei pra dormir. ele batia nas criança. preparou lá. Olhe. minha barriga foi nessa altura. "eu vou descer e vou devolver agorinha essas com­ pra". ele disse que não vinha dar um remédio ao menino. aí acordei. não dá porque meus filho é novo". Aí pronto. Ele sem vim aqui. meu Deus..... dor.. Mas um dia ele foi pra Mato Grosso. ele é petroleiro. ficou. disse: "meia-noite você vai ver quem foi. Aí mandou dinheiro. entretanto. também larguei de mão. arranjei outro.. Aí o caboclo dele disse: "Eu vou te tratar". mas ele era craro e eu sou preta. que eu tinha maltratado a mãe dele. "vou devolver"... Ela aí foi na rua. aquele nervoso. Cheguei lá.. me tratou. Aí me subia aquela agonia. de um homem. Entreguei as compra. eu já fiz muita miséria também... meu Deus. meu Deus. não tô acostumada com isso". tinha meus dente todo perfeito. eu mandei chamar ele. O fim da relação. comprou tudo pouquinho e mandou. vá pra casa dormir que meia noite você vai ver quem foi". a mãe dele em vida. fez de novo tudo. ele trabalha com umbanda. foi ela. Recém-nascido. Aí as compra que eu deixei lá. Ε fui sempre ousada. porque tinha ambição.. era jovem..) Eu fui numa casa. Arranjei outro. com . com aquele pouquinho de compra.. aí mandou pra ela me entregar. Quando ele chegou.. (. Mas depois eu digo.. que veio contente pra ver o filho que nasceu. "Ah. "agora não dá mais. não deu certo.. como me tratou mesmo.. eu aí fui ficando nelvosa. vi tudo isso concluído. D e certo modo. ficava mais aqui. parecem quase resultados inevitáveis de sua lida cotidiana: Quem tem criança.) Eu fiquei triste assim. ele não mora aqui. Casou. Então ele vem. eu peço a Jesus: "Me ajude. ele tinha uma noiva escondido. ele vinha. Aí agora que eu caí doente. confundido c o m ladrão ao apostar corrida com u m amigo. porque eu fui corajosa. três. foi. ele vem aqui sempre.. que ele vai ver eu ainda com meu tabuleiro na minha cabeça. isso aí.. porque eu morei dezesseis ano com esse rapaz. com dor de cabeça. que eu abri a porta. ficando encucada. já pra ter criança. o meu dinheiro. por u m policial. nunca deu uma merda aqui dentro de minha casa. Larguei de mão. eu sozinha pra dar comida. Meus filho. Daí eu fiquei nelvosa. compondo este novo quadro de sofrimento. assim. chocada. não fica muito na casa dele. além disso. Alguns anos mais tarde.. Lavando roupa e passando e entregando no dia certo. As filha saía. contava a outro. (. Aí. e ele era uma pessoa muito boa. eu com nove meses de barriga. trazia comida pra meus netos... doente todo dia de bruxaria. (. vieram aqui na porta.) Aí eu fiquei tão nelvosa. Quando eu soube. ocorre u m acidente com seu filho que.. casou. é verdade. acaba por ser baleado no pé.. já tava casado. fez o mal a essa moça e teve que casar. eu aqui nessa casa..) Esse aí. eu fiquei mais nelvosa. comecei a ficar doente. Ele casou. enchendo a casa de neto. quando veio do Rio de Janeiro. não. achou uma mulher. doença e nervoso voltaram a consumi-la. eu fico assim. era aquele.. ele tava vindo aqui quando eu tava boa pra eu cozinhar". Tempos depois. debaixo do pé-de-louro que tem. né.. passa às vez lá por baixo.. quer dizer. a pessoa vai ficando coisa. depois disse assim: "é verdade. Então disse assim: "ói. aqui tem uns camarada que quiseram viciar meus filho a roubar. elas não tinha lugar de ficar. eu disse: . não tinha medo de ladrão.. minhas filhas começaram a se perder.. me aborrecia com o patrão. o médico disse que eu tava tuberculosa. Quando disse que eu tava tuberculosa. eu já morei no morro do Estácio no Rio de Janeiro. pra ele vim me pedir emprestado e eu não emprestar". eu fiquei mais apaixonada. cavando. voltava. Três eventos se ligam. ele não vem. na minha casa. (.. ele vem. fiquei. então eu vou abandonar logo". eu sentia muito triste. entretanto. porque eu não pude pegar esse homem pra matar. um pé-derumo que tem.. Tudo isso vai.dois homem cavando.. Socorro relata que o pai-de-santo conseguiu curá-la daquela aflição. consumição. eu contava a um. tirando aí. ia. Primeiramente. quando a pessoa só gosta de outro quando tá na saúde. me trata excelente bem.. Daí fiquei. o abandono do seu último companheiro: Eu sinto.. largava dois. pr'eu viver numa vida dessa. "saia da minha porta. acabou indo. confirmado no sonho previsto pelo pai-de- . mas meus filho não vai ser ladrão. eventos. meus filho vai ser homem". aqui nessa rua é uma animação. perdeu panelas.. Quando foi primeiro do ano. velha". fui ficando nelvosa. sente que perdeu a vitalidade: "aí fui disminuindo. 'baixou' nela um espírito m i m que a forçou a encarar seu declínio: "começou a me xingar. vê-se no meio de uma briga no ônibus: o veículo em alta velocidade. indicaram-lhe uma mesa branca. não. Depois. Lá. distanciamento do mundo. eu tive uma crise. o feitiço da sogra invejosa. meus filho é home". irritabilidade por qualquer coisa. como negação do acidental. Articuladas e m uma narrativa de vida. Por u m lado. delineiam-se tramas que desvendam o presente como desenvolvimento necessário do arranjo de coisas. voltando já de madrugada do Pelourinho. distante. dizer as coisas. toalha. eu vim. porque quando eu vi ele [o filho] todo [acidentado]. dor nas pernas. homens discutindo com violência. sua nora.) Aí eu fui ficando nelvosa. nora e netos pequenos. que continuamente põem à prova o sujeito/personagem central da história... Eu pego a garrafada neles: "Oxem. ossuda. graças a Deus. Certa feita. mesmo relutante e m sair de casa. batizo meus filho. sem envolvimento. ô meu Deus. coleção de receitas e remédios. Deitada na cama. vê os eventos desenrolarem-se como se em outro plano. é descrito c o m imagens de abafamento. não lhe restou nem u m sequer dos seus apetrechos de baiana. onde estivera vendendo acarajé junto c o m filho. ele tá lá na porta sentado. quando eu vejo.. que meus filho é criado sem pai. Na história de Socorro. delírio. Certos elementos da narrativa desempenham um papel de relevo nessa construção. comecei a ficar nervosa". (. relações e qualidades vigentes no passado. c o m a gravidez j á avançada.. Assim. Nunca deixou de lado o candomblé e a sessão. quando é primeiro do ano. Logo se viu envolvida em um percurso constante a médicos. o que foi que eu fiz. constitui experiência de tristeza. calor na cabeça. disminuindo". múltiplos. tomando o cuidado de vestir três shorts para disfarçar a magreza e não dar o que falar aos vizinhos. m e chamar de seca. Dona Socorro". Os SIGNIFICADOS DO NERVOSO EM UMA TRAJETÓRIA PESSOAL O nervoso vivido por Socorro encerra significados complexos. ele deu uma crise e aí começou a me abraçar: "ô mãezinha. não fiz nada para merecer isso. meu Deus". isolamento. D o corpo. porque aqui. abará: "daí pra cá.. entretanto.. quando ele me viu. tais sensações desenham-se sobre o pano de fundo de eventos críticos. Aí fiquei nelvosa. batendo com uma panela na cabeça do motorista para que parasse. exames. Por outro. agonia. ou seja. na cabeça e nos nervos.. pronto.. Aí eu também comecei a chorar. Eu digo: "vá s'imbora.. No final da confusão. a imagem de uma mulher forte. bem-feita. que 'já fez muita miséria na vida' . Seria difícil compreender o sentido do seu nervoso se divorciado dessa dimensão existencial. de mulher/mãe/cuidadora. o homem que segue Josefa não é u m mero ladrão perverso. Esta decadência implica uma transformação do corpo/sujeito que se afirma . na narrativa. dentes e cabelos bonitos. a própria encarnação do mal. Entretanto. Socorro forja para si. doente. afirmam o caráter inevitável da dor e sofrimento que a acometem. ousada. anteriormentre descrito. que põe o companheiro violento e alcoolizado para fora de casa. Os personagens da sogra e do perseguidor representam o pólo da discordância que põe em movimento a intriga. A o falar da decadência do seu corpo. agora. U m dos fios condutores do relato de Socorro é a história de declínio do corpo. a identificação do seu perseguidor com Satanás desempenha o mesmo papel. está magra. uma vez que tal situação negaria sua condição de pessoa. amplificam a dimensão trágica dos eventos que se desenrolam: a sogra que faz sofrer Socorro não é simplesmente uma mulher corroída de ciúmes. definida segundo essa lógica relacionai. diante de u m contexto produtor de tensões e fragilidade. que ela expressa como sensação de estar 'diminuindo' ou 'descendo'. evitada pelo parceiro de anos. a inevitabilidade do seu nervoso. enfrenta marginais. mas feiticeira apoiada e m poderes ocultos. e m decorrência. Esses novos traços não se acrescentaram simplesmente pela passagem natural do tempo. mas Satanás. N o passado. marcado até mesmo pela violência infligida ao corpo. como diz Socorro. cria os filhos sozinha mas c o m honradez. N o curto relato de Josefa. Socorro não se refere apenas ao processo natural de envelhecimento. Socorro se vê obrigada a lidar sozinha com as numerosas incumbências da casa. objeto da ação de doenças e terapias. não ambígua. desenrolar sofrido de eventos que se inscrevem e deixam marcas no corpo. recusa migalhas de uma sogra maldosa.ou. a fraqueza do corpo relaciona-se a um processo mais amplo de enfraquecimento de natureza moral: surge de sucessivos e fracassados empenhos de ver preenchido o papel de marido/pai/provedor no interior da família e. imposto.). Tal imagem não é fruto exclusivo de sua criatividade individual. mas ao seu caráter quase forçado. . Sem a referência concreta de um companheiro e pai para seus filhos. apresenta-se uma dificuldade marcante de orientar a vida .e construir um senso de identidade . desejada e objeto de ciúme.santo. de vir a ocupar uma posição ideal. Duarte sugere que o nervoso da mulher vinculase e m parte ao seu ingresso no domínio masculino (mundo público. construídos como tipos que condensam ou resumem qualidades do mal. N o relato de Socorro.segundo este ideal. 7 Partindo da idéia de que o modelo de pessoa vigente nas classes trabalhadoras é essencialmente hierárquico. salientando o aspecto trágico de sua condição presente. do trabalho etc. ela era gorda. pertençam ou não ao domínio tradicional da mulher. mas pelo tempo como consumição. ossuda. Expressa no relato.para o corpo desenraizado do mundo (jogado no sofá). M. o contexto questiona e. Embora fruto de uma trajetória e uma criatividade individuais. o abandono do homem por quem é apaixonada e a quem sempre ajudou. oscilando entre uma tensão ou investida constante contra um quadro de eventos e relações. o fato de que. E m discussão sobre as emoções. Socorro relacione a crise emotiva com a impossibilidade de tomar alguma atitude para com o policial responsável. nega amparo e m momento d e doença e aflição. envolvido pelas mentiras da mãe. compõe e articula elementos de uma narrativa cultural mais ampla. A experiência que Socorro tem do nervoso. Neste prisma.compõe u m estoque cultural de figuras ou personagens femininos que circulam e m um meio de classe trabalhadora urbana. não se reduz a uma mera reação a circunstâncias adversas. ao descrever o nervoso que lhe sobreveio com o acidente do filho. uma situação de fraqueza (relativa à dificuldade de aproximar-se de um modelo de mulher e mãe dada a ausência do marido/pai/provedor) em uma experiência de afirmação de força e poder diante das dificuldades e crises da vida. a rejeição do companheiro. põe e m xeque sua possibilidade de afirmar-se como mulher forte/ousada/orgulhosa: nas situações descritas. mas advém de um senso de sua posição particular no estado de coisas. esta relação parece marcar-se por u m forte senso de descompasso entre self e contexto. É bastante esclarecedor. Rosaldo observa que "emoções dizem respeito às formas pelas quais o mundo social é um [mundo] no qual nós estamos envolvidos" (1984:143). A personagem de que Socorro se apropria e desenvolve e m seu relato permite-lhe transformar. e m última instância. C o m isso. nega as condições de possibilidade para afirmação da imagem proposta e desenvolvida para si. o nervoso que passa a afligir Socorro aparece justamente e m momentos de dificuldade e crise: a violência do marido que gasta seu dinheiro e a deixa impossibilitada de comprar remédio para o filho doente. o conflito no ônibus que a faz perder boa parte do equipamento de trabalho. CONCLUSÃO A narrativa de Socorro desvela dimensões estruturantes da vida cotidiana de mulheres de classe trabalhadora urbana. como categoria cultural salien¬ 8 . No caso do nervoso de Socorro. o que parece inquietá-la e deixá-la nervosa é a percepção de que não há como manter ou pôr em ação esta identidade. raiva e irritação por qualquer coisa) e u m desinvestimento ou desenraizamento agudo d o contexto (dado por uma sensação de distância e envolvimento decrescente com o mundo). Na história narrada. N o quadro da narrativa. neste sentido. esta experiência revela-se como ligada a um senso de impotência diante do contexto que. não se pretende afirmar que o significado do nervoso. no limite. que. cujos detalhes aparecem como se vistos por lentes de aumento (o que é expresso c o m o agonia. ainda que no domínio meramente ideal. o acidente do filho. no entanto. própria a uma vivência específica de gênero e classe. Ao contar sua trajetória pessoal.e criam. ao menos e m parte. Para u m a antropologia interessada e m compreender e teorizar sobre as relações entre subjetividade e cultura.não apenas possibilita que o indivíduo/narrador projete uma determinada definição de si para um público. sobre o nervoso. portanto. as narrativas que os indivíduos elaboram sobre si próprios não apenas refletem uma percepção do mundo. cujo desenvolvimento . encerre-se no relato de Socorro. também. desde o qual os indivíduos podem dar forma e comunicar suas experiências singulares. tais questões assumem especial relevância. A narrativa de Socorro retoma. pessoas. que o ato de narrar instaura. na medida e m que constitui uma perspectiva de primeira pessoa sobre o nervoso. desenrolar necessário de uma trajetória .o herói . Conforme procuramos mostrar. É preciso lembrar. mas conduzem a um modo específico de ser no mundo. Contudo. É esse distanciamento . a perspectiva da qual u m corpo/ self se engaja em um contexto de objetos. tornado personagem. mas que. Na narrativa. e m larga medida. N o caso das narrativas pessoais d e nervoso. captura-se essa continuidade na ordem do enredo. pois toma a si mesmo como o herói ou figura emblemática cuja saga rememora. o indivíduo assume posição de alteridade. refletidos os contextos ou quadros sociais de uma experiência individual. na construção de uma narrativa pessoal encontram-se. ao mesmo tempo em que constitui uma tentativa de fazer dela emergir u m sujeito total e coerente. a formar u m senso de continuidade subjacente ao suceder contínuo de eventos. a composição de vários elementos ou unidades de significação no quadro da narrativa expressa e configura uma identidade ao totalizar o que é vivido segundo a urgência do momento. Essa apreensão totalizante da vida se dá. entre o eu e o outro. mas também o auxilia a perceber-se como self.tomado como destino.te. Cria-se. A identificação com ou reconhecimento no outro emblemático . pode-se dizer que tanto indicam ou apontam para uma experiência vivida de fragilização e dor. quanto contribuem para constituir essa experiência. por um lado. .movimentos. e por outro. no processo da narração.que permite ao indivíduo refletir sobre o vivido e dar-lhe uma ordem.coincide com o desvelamento da identidade do narrador. desenvolvidas imagens e metáforas que compõem u m certo campo intersubjetivo. que o relato se produz no campo da ação e constitui ele mesmo ação: as histórias são contadas por meio de ou c o m u m corpo . E m outras palavras. aprofunda e dialoga c o m temas salientes nos relatos genéricos que se produzem. abre-se a novas e distintas dimensões de sentido: representa uma aproximação à experiência vivida.tornar-se como 'outro' . posturas . condições. u m distanciamento entre o eu-narrador e o eu-personagem da história narrada. mediante u m jogo imaginário. acidentes. expressões. entre moradores do bairro. compromissos. 4 5 6 7 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DAVIS. muitas das causas atribuídas à doença mental (loucura e nervoso) no Nordeste apontam para a perda de um locus bem definido no interior da família. 1989.) Saúde e Doença: um olhar antropológico. P. e mais adiante: "a emoção é uma certa maneira de apreender o mundo" (1972:80-81). (Eds. 1994. na medida que os significados são continuamente interpretados na conversação intrapessoal. setembro de 1995.D. 11:63-78. em Tramandaí. Colloque de DUBET. Conforme observado no capítulo 1. D. M. . & MINAYO. d'Alain Touraine. 1995. Sartre argumenta: "em primeiro lugar. a consciência emocional é consciência do mundo". entretanto. amplas variações na maneira de entender o termo. isolado. WIEVIORKA. podem-se encontrar dois ou mais sentidos pelos quais o narrador procura configurar a sua narração. não se trata de mera reprodução do que é dado ou apresentado na esfera interpessoal. físico-moral? In: ALVES. RS. Da Vida Nervosa nas Classes Trabalhadoras Urbanas.NOTAS 1 2 3 Este capítulo é uma versão modificada de trabalho originalmente apresentado na V Reunião de Antropologia do Mercosul. Muitas vezes. DUARTE.F. Há. F. M. Deve-se procurar a significação global do discurso no processo pelo qual o narrador enquadra a sua vida. American Anthropologist. Ver Hita & Alves (1995) para uma discussão acerca de experiências de fragilização na trajetória de vida de mulheres de classe trabalhadora de Salvador. Rio de Janei- ro: Zahar. Rosaldo (1984). Levy (1984) e Μ. In: DUBET. Neste esquema. o diálogo interior não é movimento de pura subjetividade. 1986. por outro. F. Sociologie du sujet et sociologie de l'expérience. DUARTE. (Eds. Afirmar o 'sentido básico' de uma narrativa não significa dizer que o narrador imprime ou explicita um sentido único ao seu 'texto'. psicossocial. Sob essa idéia mais geral de um ' self descentrado' (sujeito às flutuações da vida social) há. L.D. nesta perspectiva. A proposta de tratar a emoção como cognição ou julgamento tem sido diferencial¬ mente avançada por autores como Solomon (1980). pois requer a incorporação do ponto de vista do outro. & Cerisy: Fayard. o louco representaria o indivíduo não situado.) Penser le Sujet: autour Rio de Janeiro: Fiocruz.F. um processo de determinação mútua entre self e sociedade: por um lado. conferindo-lhe um sentido totalizante. A outra saúde: mental. L. (1995). tida como uma rede de relações pessoais e hierárquicas. The variable character of nerves in a newfoundland fishing village.C. Em seu Esboço de uma Teoria das Emoções. Modernity and Self Identity. R. Annual Review of Anthropology. S. L. RICOEUR. C. 1984.1994. E.T. Cambridge: Cambridge University Press. HITA. C. C : American Ethnological Society. 1984. Medical Anthropology. A. Emotion. 22:133-55. GIDDENS. 1993. P. O Si Mesmo Como um Outro.A . LUTZ. MERLEAU-PONTY. (Eds. Chicago: University of Chicago Press. A. LOCK. R . Medical Anthropology Quaterly. et al.) Culture Theory: essays of self. feeling rules. Rio de Janeiro: Zahar. 1959. & KIRKPATRICK. MEAD. Fatores de risco ou processos de fragilização? . Lisboa: Presença. In: WHITE. & PLATTNER. (Eds.) Embodiment and Experience. (Eds.) Culture Theory: essays on mind.R. (Ed. 1988. 11:47-62. Cambridge: Cambridge University Press. J. tempo e conduta em Bali. 1972. Buenos Aires: Paidós.C. A. São Paulo: Martins Fontes. Nerves and emotional play in Northeast Brazil.A. R. American Journal of Sociology. L. A Interpretação das Culturas. LOW. The multiple meanings of ataques de nervios in the Latin community.uma primeira discussão conceituai sobre a saúde mental em mulheres. Espiritu.C. 1996. Grief and a headhunter's rage: on the cultural force of emotions. In: GEERTZ. 8(4):360-382.GEERTZ. Persona y Sociedad. 1988. Unnatural Emotions. 1995. REBHUN. (Eds. 1985. GUARNACCIA. GOFFMAN. GERBER. In: BRUNER. knowing and culture. M. Cambridge: Cambridge University Press. Cambridge: Polity Press.P.A. G. E.M. New York: Doubleday Anchor. Swallowing frogs: anger and illness in Northeast Brazil. ROSALDO. Toward an anthropology of self and feeling. In: SHWEDER. A.R. & LEVINE. Washington D. A. XIX Encontro Anual da ANPOCS. HOCHSCHILD. Play and Story: the construction and reconstruction of self and society. Buenos Aires: Paidós. 85:551-575. Berkeley: University of California Press. Buenos Aires: Paidós.1979. Pessoa. Rage and obligation: Samoan emotion in conflict. M. REBHUN. La Construcción Significativa dei Mundo Social.A. 7(2):131-151. 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Berkeley: University of California Press.) Explaining Emotions. In: RORTY. A. Some reflections on cultural determinism and relativism with special reference to emotion and reason. Culture Theory: essays on mind. o Nordeste de Amaralina. segundo a qual a responsabilidade é gradativamente retirada da pessoa e. ocultam e redefinem identidades deterioradas (como a de doente mental) nas interações c o m outros. m u d a n ç a s na maneira pela qual este se vê a si m e s m o e passa a se posicionar diante do m u n d o . representação d o eu.possibilita que se levantem questões importantes para a compreensão da doença mental enquanto experiência vivida. N o âmbito da teoria sociológica. n e m sempre é bem-sucedido e m dotar de credibilidade seu projeto. Estes mecanismos e n v o l v e m necessariamente recursos lingüísticos e corporais de apresentação. Dentro de u m a tradição interacionista. possui u m projeto de normalidade que busca concretizar n o seu dia-a-dia. C o m o contrapartida a essa idéia. a própria capacidade e direito à autodeterminação. C o m o os outros. j á tendo freqüentado o candomblé. apesar dos investimentos e esforços contínuos. Goffman aborda a dinâmica d e atribuição e incorp o r a ç ã o d o rótulo de doente mental enquanto u m a trajetória de perda de status moral. Rabelo 1 INTRODUÇÃO Após u m a longa carreira de crises e internamentos psiquiátricos que logo lhe valeram o título de maluco. e m Estigma. Belisco leva uma vida relativamente calma e m seu bairro. U m a maior atenção para esse transcurso temporal de organização e reorganização do cotidiano que marca o fluir da vida d e Belisco . Ganha dinheiro pedindo esmola nos ônibus. e m decorrência. Goffman explora. os m e c a n i s m o s pelos quais as pessoas m a n i p u l a m . ou melhor. c o m ela. onde. C o m o alguns outros 'malucos' do local.8 A Experiência de Indivíduos com Problema Mental: entendendo projetos e sua realização Míriam Cristina M. . finge ataques epilépticos. a doença mental tem sido extensivam e n t e tratada c o m o processo que envolve mudanças significativas nas atitudes dos outros perante o doente e. para comover os passageiros. Diz-se paide-santo. embora mantenham essa idéia de projeto como pressuposto.como dado que reconfigura de forma radical a situação em que se encontra a pessoa . por outro lado.N ã o m u i t o distantes da p r e o c u p a ç ã o de Goffman c o m a c o n s t r u ç ã o social da enfermidade. Abordam-se aqui tais questões c o m base na descrição de aspectos do cotidiano de três moradores do Nordeste de Amaralina. Isto significa considerar tanto o caráter de faticidade do qual se reveste a doença . segundo opinião local. Dois pontos salientam-se na discussão: por u m lado. a doença é 'problem a ' e seu estudo implica a compreensão dos projetos e práticas formulados para resolver os impasses decorrentes e. q u e d ê e m início a ações que permitam reconduzir a vida cotidiana dentro de pressupostos aceitos. PRÁTICAS Ε CORPOREIDADE A concepção de que a formulação de projetos é característica marcante da relação das pessoas c o m seu meio constitui elemento-chave para qualquer teoria da ação. Neste sentido.. trata-se de u m evento a exigir.rumo a uma abordagem da doença mental enquanto experiência vivida. entre essas práticas. a atenção concedida pelos etnometodólogos às formas e contextos concretos da fala revela preocupação c o m o corpo como veículo fundamental para a construção de m u n d o s d e significados intersubjetivos. . A primeira parte objetiva desenvolver melhor o tema e precisar os principais conceitos utilizados. apresentam "problema de cabeça" ou simplesmente são loucos. PROJETOS. quanto a forma particular pela qual o indivíduo assume como sua essa faticidade. ameaça súbita a u m m u n d o tomado c o m o suposto. E m b o ra. assim. a idéia de que a vivência de uma situação é marcada pela elaboração de projetos ou antecipações de estados futuros que visam a transcender essa mesma situação. poucas abordagens orientaram-se para uma real problematização do tema. das pessoas envolvidas. bem como todo projeto desenvolvido para superá-la. busca-se discutir os projetos que estes indivíduos formularam para si e o m o d o c o m o têm procurado concretizá-los no seu dia-a-dia. normalizar a situação. Mais especificamente. Na sua dimensão social. O presente trabalho parte de algumas destas indicações . a segunda volta-se para a discussão dos casos. os trabalhos de filiação etnometodológica abordam a d o e n ç a c o m o ruptura de u m fluxo cotidiano. a teoria conceda importância especial aos discursos formulados para explicar ou padronizar o ocorrido.e desenvolve outras . a idéia de que uma dimensão corporal essencial perpassa toda situação. N o entanto. Estes estudos oferecem indicações importantes para se entender como a enfermidade se incorpora ao cotidiano das pessoas .ao mesmo tempo e m que o transforma. que passaram por sucessivos tratamentos psiquiátricos e. crenças e idéias gerais sobre o mundo que são aceitas e postas acima de qualquer dúvida. Goffman (1975) comenta as estratégias desenvolvidas por atores capazes de manipular situações sociais e controlar a impressão que produzem nos outros. portanto. guarda uma qualidade essencial de indeterminação: "projetar. todo projeto é fundado sobre experiências presentes. 1973). A realização de u m projeto envolve uma série de esforços e investimentos práticos por parte do ator. Assim. lançando m ã o de conhecimentos acerca de atos j á realizados que se assemelham (tipicamente) ao que pretende desenvolver. nem as circunstâncias e m que estes atos foram realizados permanecem as mesmas.tema exaustivamente trabalhado por Goffman e m seus estudos sobre a interação. portanto. Neste sentido. Entender projetos e sua concretização implica dar conta de uma dimensão intersubjetiva importante. traz consigo horizontes vazios que serão preenchidos apenas pela materialização do evento antecipado. É da situação biográfica que brotam os propósitos práticos que orientam o indivíduo na formulação e seleção de projetos. muitos dos quais requerem o monitoramento das relações com outros. enquanto há outros que se podem efetivamente controlar e modificar. 1973:69). O modelo de Goffman mostra a clara vantagem de fornecer u m referencial para se analisar situações sociais do ponto de vista dos esforços empreendidos pelos atores para transcendê-las. Entretanto. para o ator. diferente da mera fantasia. e não apenas da atividade solitária de u m sujeito reflexivo . Bons ou maus atores/jogadores. projetar implica a intenção de realizar o projeto e. Entretanto. conferindo-lhe a noção de que há elementos do mundo dado que lhe são impostos. Isso constitui a incerteza intrínseca de todas as formas de projetar" (Schutz. no curso da satisfação dos seus interesses. Todo projeto. como qualquer outra antecipação.Segundo Alfred Schutz. projetar é pensar no modo potencial (Schutz. o ator formula u m projeto do ponto de vista de sua situação biográfica particular. baseado em duas classes de experiências: a primeira diz respeito a opiniões. A segunda refere-se às experiências que. Este estoque de conhecimento à mão é formado por idealizações ou tipificações de toda sorte que orientam o ator na satisfação dos seus propósitos práticos. A o projetar. nem o próprio sujeito. requer que sejam levadas e m consideração certas limitações impostas pela realidade sobre a qual se quer agir. visualizando e m antecipação o ato que almeja realizar. projetar é antecipar uma conduta futura por meio da fantasia. que necessariamente adquiriu novos conhecimentos e experiências durante o transcurso temporal de realização do projeto. Utilizando-se de metáforas relativas aos domínios do teatro e do jogo. constituem sua situação biográfica particular e delimitam sua posição social. o ator se coloca imaginativamente no futuro. permitindo a identificação das habilidades e ma¬ . diz Schutz. A despeito de representar um movimento de lançar-se para o futuro. os indivíduos estão continuamente a se defrontar com situações que exigem habilidades próprias de representação e jogo. enquanto fantasiar é um ato de pensar no modo optativo. O indivíduo decide sobre u m projeto e avalia sua praticidade. o problema reside justamente e m que o modelo de estratégia empregado por Goffman se presta b e m ao esclarecimento de eventos ou situações episódicas. enfrenta u m horizonte de indeterminação que só vem a preencher gradativamente. possivelmente. e sim um sujeito-corpo inserido no mundo ou. O ator que projeta não é um ser desencarnado. É e m contextos de ação/atenção ante as coisas que os indivíduos decidem. Natanson observa (1973:XXXVIII): É claro que nem todos projetos são realizados e mesmo aqueles que são realizados raramente o são na forma pura em que foram projetados. o que implica o amadurecimento do ator no próprio curso desse processo (Schutz. é preciso evitar uma concepção mentalista. u m conhecimento acabado dos seus fins ou das regras para lidar com as situações em que deve realizá-los. Entender a elaboração e monitoração de um projeto supõe que se considere o tempo interior da fantasia. sucesso ou fracasso. sem problemas. os projetos formulam-se à luz dos propósitos práticos que decorrem da situação biográfica particular do ator ou do curso das suas experiências mundanas. como um jogador que ingressa e m uma partida. neste sentido. Importa. tende a apresentar uma visão simplificada do processo ou trajetória pelo qual os indivíduos formulam e buscam realizar seus projetos. mas desenvolvê-las na imaginação. sobre variantes como início e fim. o ator adquire novas experiências e conhecimentos que tomam mais claros para ele . um ego complexo e em transformação. mas acaba por obscurecer o entendimento do curso continuado das ações. refletir acerca da estrutura temporal própria do projetar. (.nobras que estes põem e m ação na realização de seus fins. em realidade. Ao se falar do projeto como fantasia. só após resolver mentalmente o dilema entre executar ou não a ação planejada. um ser em situação. segundo a qual os projetos são elaborados por u m sujeito desenraizado que.. 1973).os termos do projeto do qual partiu. pelas quais os atores buscam o controle das suas circunstâncias práticas. até mesmo modificam . Ε mesmo a noção do puro fantasiar é ambígua porque o 'eu' que fantasia é. o ator não possui de antemão. cujo conhecimento acerca do mundo e dos outros é tão fragmentário quanto seu conhecimento acerca de si.) nós sabemos. Segundo Garfinkel (1967). e e m que podem decidir. isso se deve ao fato de que os indivíduos nem sempre vivenciam suas situações como u m jogo de cujas regras têm uma consciência nítida. Porém. mesmo que intuitivamente. como enfatiza a fenomenologia. E m sua síntese das idéias de Schutz. modificam e monitoram o curso de seus projetos.e. Conforme diz Schutz. E m parte. 1967): projetar não é se defrontar com alternativas acabadas. parte para u m a intervenção concreta no mundo. Também durante o tempo transcorrido entre a formulação de um projeto no pensamento e sua materialização em um contexto concreto. . que o 'eu' que fantasiou não será idêntico ao 'eu' que posteriormente irá refletir sobre o ato realizado.. esclarecem. no curso de sua intervenção concreta no mundo. Deste modo. lembrança e expectativa (Garfinkel. Por outro lado. via projeto. o corpo é t a m b é m m o v i m e n t o contínuo para a realização de projetos presentes. assim. nosso futuro. orientamo-nos no espaço (ou melhor. 1994:190) O c o r p o é síntese das situações d o indivíduo. nele. Por outro lado. é marca de sua história. aponta para o fato d e que. que constituti o ponto de vista pelo qual o sujeito se insere no mundo.Isto nos remete diretamente ao papel do corpo no delineamento da situação na qual se insere o sujeito e no processo mesmo de transcender essa situação. nossa situação física. ao m e s m o t e m p o e m q u e é retrato de uma trajetória anterior d e e s c o l h a s . o corpo é .é sustentada por um 'arco intencional' que projeta em torno de nós nosso passado.vida cognoscente. Entretanto. Elaborando sobre o tema da corporeidade. o corpo não consiste simplesmente no locus e m que se agregam e se m o s t r a m as várias facetas da vida: as experiências passadas do sujeito e seus esforços concretos para intervir na realidade encontram-se integrados. C o m base no corpo ou na perspectiva que ele fornece. significa também q u e o corpo é perpassado por u m a dimensão subjetiva. c o l o c a ç ã o no espaço e posturas d o corpo revelam os projetos anteriores para cuja realização foi voltado (Merleau-Ponty. via u m a síntese espontânea (pré-reflexiva). Se é. q u e as formas d e a p r e s e n t a ç ã o . 1994:94).s e a u m m e i o definido. confundir-se c o m alguns projetos e engajar-se c o n t i n u a m e n t e n e l e s " (Merleau-Ponty. registram-se as experiências vividas pelo ator. marca do ser no mundo. por u m lado. o corpo não possui o m e s m o status que os demais objetos que percebemos e empregamos na lida cotidiana. 1994). mundano. C o m o e l e m e n t o o r g a n i z a d o r d o n o s s o e s p a ç o e c e n t r o d e instrumentalidade. Falar da unidade corpo/mente significa que as várias dimensões da vida de cada indivíduo guardam entre si uma relação fundamental (e precisam ser entendidas a partir dessa relação): 2 a vida da consciência . e m função dos quais mobiliza e (re)integra suas capacidades. observa Marcel (apud Kogan. nosso meio humano. Isso significa. nossa situação moral. Sartre (1997) fala do corpo c o m o dimensão que representa o conjunto das nossas situações no m u n d o . o espaço adquire sentido para nós) e apreendemos e manipulamos os o b j e t o s . q u e expressa a modalidade particular de ser no m u n d o desse sujeito. de sentido: é corpo vivido. assim c o m o os conteúdos culturais q u e nele se i n s c r e v e r a m e m processos de socialização (Mauss. S e é e m virtude de nossa corporeidade q u e estamos enraizados e m u m a situação. vida do desejo ou vida perceptiva . isso implica que a subjetividade é e m si m e s m a tingida pelo corporal. ou antes. (Merleau-Ponty. 1981). nossa situação ideológica. e m u m e s q u e m a corporal. "Ter u m corpo é para uma pessoa viva j u n t a r . ele se confunde com nosso próprio ser. ou antes que faz com que estejamos situados sob todos esses aspectos. 1974). projetos e experiências. trazê-lo no corpo ou tomá-lo u m prolongamento do nosso próprio ser.pois não envolve u m a operação intelectual .1996) propõe tratarse a ação a partir da idéia de senso prático. a qual.passando ao largo de qualquer discussão acerca das formas pelas quais o sujeito se adapta. é ao m e s m o tempo p o n t o de vista e p o n t o de partida. Aqui reside o ponto de ruptura entre a abordagem de Bourdieu e a de Merleau-Ponty: à medida que o primeiro tende a objetivar o habitus 4 . Bourdieu (1977.pois não é simplesmente u m a resposta pré-determinada a u m a situação singular. que é o nosso próprio corpo. A relação entre hábito e projeto é de fato essencial na compreensão das práticas e de seu fundamento corporal. Nesse sentido. Goffman. A aquisição do hábito é u m processo de remanejamento ou renovação do nosso esquema corporal.. aponta Garfinkel. esse trabalho se dá no âmbito de uma reflexividade prática que não se . nesse processo. Retomando a discussão de Merleau-Ponty. e m cuja base está o habitus: esquemas práticos de percepção e de apreciação que existem e m u m nível infra-lingüístico e que são fundamentalmente disposições corporificadas. uma "praktognosia": na esfera do hábito. mostra como o controle e a atenção ao corpo é condição fundamental para que u m ator possa sustentar para si mesmo. Projeto e situação fundem-se e retrocedem para o fundo opaco de nossas atividades. u m corpo estruturado que incorporou as estruturas do mundo e que estrutura tanto a percepção quanto a ação. Para Bourdieu. Há. se dá sem que tenhamos necessidade de colocar intelectualmente o problema a ser vencido ou a sua solução.u m determinado tipo de situação. u m projeto identitário coerente. o corpo compõe a fachada sobre a qual deve trabalhar o indivíduo para emitir determinada definição da situação. uma vez adquirido o hábito. uma tradição de estudos empíricos nos quais se têm discutido amplamente questões relativas ao uso do corpo na interação. termina por rejeitar completamente o conceito de projeto. salientando-se a importância da monitoração do corpo na realização dos projetos cotidianos dos atores.t a m b é m condição para transcendê-la. Cabe aqui. observa Merleau-Ponty. expressa uma orientação do corpo para nossos projetos. e perante os outros. na teoria sociológica. antes. nas palavras de Sartre. incorporamos a nós . O hábito "exprime o poder que temos de dilatar nosso ser no mundo ou mudar de existência anexando a nós novos instrumentos" (1994:199). Segundo Merleau-Ponty. significa incorporar esse algo à nossa existência. É o locus mais imediato do hábito e a potência para converter e m hábito os novos projetos do ator. Trata-se. 3 Habituar-se a algo. o habitus é u m corpo socializado. inicialmente. entre nossa intenção e sua efetivação. que se processa à luz do projeto.ao nosso corpo . incorpora e modifica a situação . de u m saber que está no corpo. Via de regra. o hábito não pode ser equiparado a uma forma de conhecimento . "é o corpo que compreende" (ibidem:200). Elemento-chave na representação cotidiana do ' e u ' . por exemplo.. passamos a experimentar u m acordo entre o que almejamos e o que nos é dado. A medida que. n e m a uma forma de automatismo . buscar uma definição de hábito. Assim. assumindo contornos mais nítidos ou mesm o novas direções. Projeto e significado realizam-se na sua expressão corporal. pode-se dizer que o corpo torna mais real o projeto. e m fala proferida na presença de outros. 1975). a fala m e s m a j á remete ao domínio do corpo. D a m e s m a forma que a palavra não traduz u m pensamento acabado. v e m também a dotar-se de faticidade para o sujeito. u m a vez que não abarcam u m a discussão do corpo na sua dimensão fenomênica de corpo vivido. dependem intimamente dela. isto é. tampouco o corpo é instrumento de u m projeto j á concluído. N o entanto. não só para os outros c o m o para o próprio indivíduo que o formula. Características próprias da situação face a face ajudam a entender este ponto. Parafraseando Berger & Luckmann (1985). . entre o sujeito que projeta e o corpo que executa. para q u e m a relação entre projeto e corpo assemelha-se àquela q u e une significado e palavra: e m ambas se revela uma imbricação mútua entre faticidade e sentido.desassocia dos contextos concretos de ação/interação. observam Berger e Luckmann (1985). é atualização de suas capacidades. o ego toma-se presença vivida para o alter. correm o risco de conduzir a uma abordagem da relação entre self e corpo como equivalente a u m a relação entre conteúdo e receptáculo. c o m seus projetos. o processo de tradução de u m projeto n o corpo não se assenta e m u m a relação externa. Neste processo. Obviamente. se o ator utiliza o corpo na construção de uma certa definição da situação. E m situações face a face. sua subjetividade se lhe apresenta disponível mediante u m máximo de sintomas (corporais). A o ser expresso e m movimentos e gestos. Neste sentido. dá-se ao outro uma apreensão imediata e total do ego que este jamais logra obter de si mesmo. particularmente as expressões corporais tidas como não intencionais ou de difícil controle (Goffman. instrumental. a tradução de u m projeto no corpo traz à tona para o sujeito/autor a questão da responsabilidade. os outros c o m quem interage usam os sinais que emanam do seu corpo como fonte de informações que possam confirmar ou 'desconfirmar' essa definição. E m outras palavras. Este ponto é fortemente enfatizado nos trabalhos de MerleauPonty. É preciso ter-se e m conta que o fato d e considerar que o sujeito mobiliza o corpo na realização de seus projetos n ã o implica tomá-lo como mero instrumento a serviço do eu. N a verdade. Estes trabalhos acenam. c o m hipóteses bastante frutíferas para o estudo da ação c o m o processo que se desenrola e m u m tempo e espaço marcados pela presença encarnada de outros. E m virtude de sua corporeidade. os atores podem não ser bem-sucedidos e m manter sua aparência corporal e m sintonia com as situações e identidades que visam a sustentar e m contextos de interação. o projeto é desenvolvido. sem dúvida. Jacinta reside e m uma área de invasão do bairro. que apenas com dificuldade conseguem contornar. que nasceu e criou-se no Nordeste de Amaralina. tida por bastante perigosa. quando ficava naqueles dia memo. marido para ajudá-la a criar os filhos. É de fato muito pobre. que conheceu aos 13 anos e por quem era apaixonada. quanto u m impulso para uma (re)construção ativa da situação segundo seus próprios termos. Levou os filhos consigo para o hospital. quando eu ia tomar a frente. ele foi meu primeiro namorado. eu sentir. Nos três casos a serem discutidos a seguir. m e batia. quebrou meus braços. Quando retornou. Ainda muito nova. ele lavava minha roupa. o marido j á não estava e m casa.RECONSTRUINDO O COTIDIANO: OS DOENTES Ε SEUS PROJETOS As considerações anteriores levantam questões de bastante relevo para uma compreensão da experiência cotidiana de pessoas com problema mental. e culminou por não respeitar o resguardo necessário após a operação. Tendo perdido seu pai ainda cedo. Quer dizer. ele lavava direitinho. vive de biscates. havia ido viver com a cunhada. conta Jacinta. foi morar com seu primeiro namorado. Já teve uma vida mais estável. e m decorrência. ele dava e m mim". Ainda pior. passou a notar u m interesse de Gordo por sua irmã. do melhor jeito possível. Parecia ser correspondida: Tinha um vizinho lá que falava: "Gordo gosta de Jacinta como quê". irmã de Jacinta. "Quer dizer. projetos de normalidade encontram no corpo tanto uma resistência. a situação começou a mudar: "ele m e maltratava. Quando chegava do trabalho (era empregada doméstica).não parece combinar c o m a imagem da louca que sai à rua atacando e quebrando tudo que encontra. Desempregada. tomava conta dos meus filhos. pra m i m só tinha ele de homem pra mim". Quando caía doente memo. direitinho.para quem não conhece sua história . Vive e m u m barraco com seus dois filhos. C o m o ela mesma relata. foi criada pela mãe. de 29 anos. Batia nos meninos de cabo de vassoura. tava tudo arrumado. eu gostava muito dele. u m a mulher forte que congrega os filhos e m torno de si e tem u m longo envolvimento no candomblé. crises c o m o essa j á a acometeram mais de u m a vez e. Jacinta é gorda e possui u m jeito meigo de se dirigir às pessoas. chegando m e s m o a surpreendê-los juntos no quarto. JACINTA Jacinta é u m a mulher negra. quatro longos períodos de internamento e m hospitais psiquiátricos. entretanto. C o m o tempo. quando decidiu submeter-se a uma cirurgia de ligadura. um de seis e o outro de nove anos. oferecida gratuitamente e m época de eleição. o qual . "juntou uma . A reviravolta final e m sua sorte sucedeu-se pouco depois. Jacinta não era assim. numa base de quatro a cinco dias. não queria tirar.. submeteu-se a u m a limpeza. Despida." A definição de Jacinta não foi aceita pela família. construindo o sentido que passava a conferir a seu estado. pai-de-santo bastante conhecido do bairro. Foi com essa perspectiva que chegou à casa da mãe.. Parecendo forno. Aí fiquei com a cabeça grande. a essa visão do seu problema interpunha a idéia de que sofria com algum feitiço encomendado pela irmã.. Um plástico jogado em cima. Botava uma roupa. Ε os menino tudo me jogando pedra. a menina nova não era assim. Aí eu pedia pra jogar água em minha cabeça: "joguem água. De noitinha. levou até em casa.. Essa mema invasão. sua mãe insiste e m que não se trata de santo . somado ao desgosto pela traição do marido. um monte de polícia. assim embaixo da chuva. Aí ele (um motorista de taxi) pegou. onde. de imagem de santo. Lá em casa era quatro paus. tentando explicar a origem da doença. Uns com pena e outros moleques. . acaba criando u m a "psicose". mas de u m foco na cabeça que. não tô agüentano mais. me cortando.. dava negócio de santo aqui na sala. as menina disseram que eu já comecei a rasgar minhas roupas."se ela tivesse problema de santo não ficava boa c o m os remédios".. e os menino assim. Aí. Jacinta sentiu que 'tinha santo' e precisava de tratamento no candomblé... dizendo que era Oxum. já foi c o m u m bocado de foto de santo. Fui tirando os fios de energia. Foi neste c o n t e x t o q u e Jacinta saiu de casa e encontrou abrigo n o terreiro de Givaldo. quando chegou no meio do caminho.. longe de constituir uma aflição da mente. e que deveria reorientar as atitudes dos outros diante de si. que é bom". Aí não vi mais nada. Diz que eu peguei uma peixeira na mão. pode-se notar que. Sempre eu tava sem minha roupa. e tinha uns: "não faça isso. parecendo esquentando memo.. joguem água.. fui querendo jogar meus meninos dentro da fonte do rio. Aí eu peguei. parecendo que tinham ligado um forno. u m bocado de coisa. explica . Na descrição da crise que se seguiu a tais eventos..coisa e outra". Relata uma de suas irmãs: "quando ela veio aqui. comecei me acabando toda. rasgava toda. (. Aí as meninas diz que eu fui quebrando as coisas. que eu morava na parte de cima. embaixo da chuva. diz ela. Aí as menina me chamaram: "vai pra igreja. Seu corpo expressava o ponto de vista desde o qual experimentava o enlouquecimento. Era um sol quente. a loucura confronta Jacinta como experiência corporal bastante concreta: Estava com esparadrapo (da cirurgia). Arrumei eles dois e fui. Esquentando o juízo. Não sabia se corria atrás dos menino. o povo sempre fazen­ do arrelia de mim. batia um calor. coitada". eu fiquei. um mucado de carro. umas seis e meia pra sete hora. após uma das situações de crise. eu tava morando em Santa Cruz.. uma coisa toda estranha. os home. não podia subir no ônibus pra não partir os pontos. Fazendo arrelia de mim. fui me cortando toda. uma quentura danada!" O céu ficano baixo. Diz que eu saí nua.) Depois a outra crise. é escarrerando. a contragosto da m ã e . não. Começou. eu tirava e rasgava. Aí ele disse que eu [ia] ficar com o corpo mole memo. todos tenham uma larga experiência no candomblé. como também u m conjunto de indicações para continuar interpretando esses sinais. Retornando de sua primeira experiência de hospitalização. Seu significado. possuída. não se lhe adere de forma auto-evidente e inquestionável. deve ser substituída pela idéia de que seu transe descreve a presença (e não o acréscimo ou sobreposição) deste universo cultural no corpo . e talvez mais acertada: a proposição de que Jacinta acrescenta ao corpo . tentando acalmar e pôr fim à manifestação do exu. Neste sentido. eu disse: "ô meu pai. enquanto o olhar parecia vazio. N o dia de sua limpeza. e m razão da . segurou-lhe no ombro e na cabeça com firmeza. O que se tava de ruim. séria. Jacinta manipula sua fachada corporal para lançar determinada definição da situação.uma representação. Logo após. aí vai e tira. não se recorda de nada. No outro dia a gente se sente um pouco mole. O que tava errado com a limpeza saiu. no círculo e.Para Givaldo. Ε no outro dia. Não só encontra uma audiência disposta a confirmar os sinais que seu corpo lhe parecia apontar. Entretanto. configura a situação desde a qual elabora seu projeto de ser tratada no candomblé.como base orgânica e m que se desenvolve a doença . Seu transe foi descontrolado. é matéria a ser definida e negociada e m contextos de interação. e m dado momento. sugerimos que uma outra interpretação seja possível. quanto u m espaço e m que estes significados lhe confrontam e. embora. Jacinta agora cuida de viver junto com seus filhos que. então. Jacinta tem u m exu que lhe atormenta e que precisa "tratar". obtém suporte para o projeto que seus familiares não legitimam. Pode-se dizer que essa vivência espontânea (pré-reflexiva) torna-se a base para u m trabalho reflexivo posterior. está se resolvendo. seu corpo jogado de u m lado para o outro. aí quando faz a limpeza. como ela. surpreendem. neste caso. participou da festa ao lado das outras filhas-de-santo de Givaldo: dançou. ou aquele alívio. Eu ia me sentir melhor. também ela tombou. D o transe. o corpo se lhe apresenta tanto como domínio para a negociação de significados c o m os outros. eu tô me sentindo ótima. onde lhe administraram u m banho de folhas. graças a Deus. A gente sente o corpo mole. tô com o corpo mole".o transe expressa uma síntese corporal espontânea. Jacinta passou a expressar seu enlouquecimento segundo o modelo do candomblé: foi como alguém acometida de santo que ela. distante. e m contraposição. recolhida. entretanto. conduziram Jacinta aos fundos da casa. por vezes. como o de qualquer vivência. Jacinta passou alguns dias na casa do pai-de-santo. ao invés de concluir apressadamente que. por meio da qual Jacinta vem a se colocar de forma mais aceitável e menos violenta diante da doença. é claro. Não tá mais aquela perturbação. No terreiro de Givaldo. no qual Jacinta se engaja. Tudo para mim. Aí dormi um poucadinho. apresentou-se e m casa. Assim é que Jacinta vê seu projeto desacreditado na família. Givaldo interferiu. oriunda do universo do candomblé. sem nenhum motivo aparente.. A separação dos filhos e a falta de u m lugar certo para morar são fortes sinais da doença. toda me bateno na rua. Assim resume seu projeto: ter uma casa (já se mudou muito de u m lugar para outro. aí ficava sentino isso.. corre". Por onde passava. e m uma imagem de desespero. Tava assim desse jeito e. que eu ficava me aborreceno demais.. me chamano de maluca. fazia eu ficar [nem] deitada nem sentada. Deste modo. e desde os 15 apresenta sinais de doença. tá sem calçola. e m suas romarias. que julga mais conveniente. xingando e jogando pedras. que a provocavam e jogavam pedras. tanto para Jacinta quanto para as crianças. ela vai te pegar. que se apressavam e m recolher seus filhos e cerrar suas portas.. eu ficava sentino essa agonia. C o m o tempo. opõe-se com obstinação aos conselhos da mãe. (. roubavam-lhe todos os pertences). que principiou c o m convulsões que a deixavam inconsciente no meio da m a ou a transformavam. num ficava deitada. retaliação violenta. me dano beliscão. como também. mobilizava mulheres. ficava toda hora andando prá um lado e prá outro aqui dentro de casa.. . sentino uma agonia por dentro de mim. cagona! Esticava meu cabelo. toda hora. Porque uma coisa que eu sentia assim. e exibindo todo o seu empenho e m ser boa mãe.argumenta ela ..) Eu ficava só tomano susto e depois só passano a mão aqui no meu coração. corre. que já deu cacetada nessa cabeça que deu quatro ponto. ADÉLIA Adélia tem aproximadamente 33 anos de idade. teve que deixar por muito tempo no juizado de menores. a permanência destas no juizado: seria melhor . urrando e se retorcendo na cama. Tomou-se uma das loucas mais famosas e temidas do local. e eu. passano a mão aqui ni mim. Eu ficava dizeno assim: "maluca é quem te pariu que tem a cara de xibiu". Dificilmente se encontra Jacinta sem seus meninos ao lado.que viverem na invasão. e também quando eu ficava sentada.) Aí eu ficava lá tão nervosa na rua. que Jacinta quer definitivamente apagar.doença. arrebatava u m séquito de crianças. de ladrona. Aí eu ficava abrindo a porta e saino pra rua. aí eu fiquei aviciada na rua. que. e vez por outra. atraía a atenção de algum homem. ficava deitada.. o problema evoluiu para u m comportamento social bastante inadequado: Adélia não só passou a fazer incursões constantes pelo bairro. passou a agredir as pessoas. à noite. me dava uns tapão. agonia por dentro de mim. me dava cacetada. pois cada vez que a acometia uma crise e era internada. sujeitos a todo tipo de influência e nas mãos de uma mãe doente. terminava por agredi-la além da conta. andano prum lado e pro outro. por sua vez.) É isso. obtendo.. para mostrar sua valentia. de sapatona. viada. (. cumprimentando a todos que conhece c o m seu jeito temo. (. é isso. eu ia parar toda hora. Aí ficava tantos adulto dizeno com tantas criança: "ó a maluca ali. mijona. conseguir u m emprego e criar seus filhos junto de si. Mais importante ainda. passou por sucessivas agências religiosas e m busca de cura: várias casas de candomblé. tornando-se membro efetivo. que sempre fora considerada "rude". Possui uma bíblia. Suas maneiras são tidas como masculinas e algumas pessoas julgam que seu problema está relacionado à 'falta de homem'. a mãe procura. diante da idéia de que Adélia sofre de um encosto. implicavam irregularidades na administração dos remédios . balançando o corpo de um lado para o outro. 5 C o m o fracasso das terapias religiosas e o próprio transcurso do tempo.A aparência de Adélia parecia indicar aos outros que havia algo de errado. ele mesmo bastante apreciador da vida na ma. os programas evangélicos no rádio. produziu-se u m certo desinvestimento das pessoas próximas no caso de Adélia. Continua gostando de sair. de modo que. facilmente reconhece a identidade de um tio falecido. Hoje participa dos eventos do grupo. passando a ser conduzida regularmente aos cultos por uma irmã da igreja. que lê regularmente. Adélia permanecesse em casa sem gerar confusão com os vizinhos e colocar-se e m perigo. dentro do possível. tendo sido incapaz de progredir nos estudos além do terceiro ano primário.. Demonstra cuidado na apresen¬7 . Para tal. Posteriormente batizou-se. que lhe valeu o apelido de Mexe-Mexe. Suas saídas constantes. Adélia tem uma voz grossa que adiciona certa gravidade às suas palavras. Temerosa de que algum homem se aproveite da filha. Forte. adquire u m significado próprio à luz de sua situação biográfica particular. mantê-la distante de qualquer envolvimento amoroso. que lhe roubava a vontade própria. de ombros largos e passos pesados. arrastado. passando quase todo o dia fora de casa. o modelo genérico da religião inscreve-se paulatinamente e m seu corpo c o m o sinal visível de u m a transformação. decora os hinos e memoriza trechos da bíblia que se sente orgulhosa em recitar. desenvolver u m projeto de normalidade. Suas saídas. proferidas em ritmo lento. Neste contexto. Adélia não apreciava muito o efeito da medicação. a moça de maneiras masculinas pode. Guiada pela mãe. entretanto. uma congregação da Igreja Universal e um centro espírita. e um jeito de estar sempre e m movimento. Adélia é tida como pessoa 'rude'. deixando-a dopada e excessivamente sonolenta. Cansada de tanto correr o mundo e m busca de ajuda. e um caderno no qual copia os hinos. minimamente. são agora legitimadas: divide seu tempo entre as atividades diárias da igreja e a casa das irmãs. Adélia sente que pode. sua mãe conformou-se e m interferir apenas no que concernia ao suprimento e administração regular da medicação.. Se. escuta. afirmar-se c o m o mulher dentro do modelo de feminilidade da Assembléia. ela recebeu u m convite para a congregação local da Assembléia de Deus.e vez ou outra. É bastante significativo para Adélia o fato de ser capaz de memorizar trechos inteiros da bíblia. por outro. por u m ângulo. enfim. Por outro lado. Também foi sempre submetida a tratamento ambulatorial com psiquiatras. de tal sorte que a mãe. tendo sido medicada desde o início da doença. 6 N o seio da igreja. assume o modus vivendi e o instrumental da religião. por fim. entretanto. quando pode. ela. a volta das convulsões. e veste-se de modo bastante sóbrio. A índole rueira que exibe também é sinal de certa masculinidade. Além destes traços de homem. . mais ousados.roupa limpa.e a imagem que vê ao redor. antes de mostrar-se acabada ou constituir uma identidade resolvida. só indo pra igreja arrumadinha. recorre por vezes ao contraste entre a imag e m de mulher à qual adere e que representa o ideal da igreja . Assim. Adélia fala c o m freqüência sobre as investidas que lhe fazem os homens. "Eu nem ligo". relata. Não participa mais da evangelização na rua. 'dar testemunho'. n ã o logra compreendê-los e comentá-los. tudo bem. na qual parece incluir suas irmãs. Quando vai à padaria. o que parece refletir não apenas seu interesse aguçado pelo tema. e disse assim: "agora como ela tá bonitinha". a transformação de Adélia. e todos agora só fica me dando "babai" e dizendo "oi. n e m sempre c o m muito sucesso . em outros. é e m atendimento aos seus compromissos. tudo bem". os homens lançam olhares interessados em sua direção. de m o d o que j á não anda à toa na rua. por irmãs da igreja. e m troca de algum dinheiro ou agrado. esforçando-se para manter uma postura contida. b e m como moderação nas expressões corporais: procura não se exceder e perder o controle perante as provocações das crianças. como arear panelas. Na verdade.. se encontra-se sempre fora de casa.. tentando demonstrar indiferença. . que continuamente se defronta c o m a impossibilidade de adequar-se perfeitamente ao projeto de ser ' c r e n t e ' . só indo pra igreja. Adélia esmera-se no desempenho dessas tarefas. mesmo que recebendo uma quantia irrisória por seu esforço. se é consenso que Adélia está "boa. bem bonitinha" [risos]. é também trabalho para Adélia. blusa de manga e saia abaixo do joelho . enquanto seus olhos brilham de orgulho. mas o fato de que está aprendendo e ensaiando novas facetas de ser mulher. conforme se espera dos crentes. É também sempre convidada. É especialmente gratificante para ela perceber a mudança na reação do sexo oposto. de trazê-las para junto de si e expô-las aos outros. as pessoas espelham e confirmam para Adélia a nova identidade que assume e exibe nos seus afazeres diários: Na ma não tô mais como era. comparada ao que era antes. Deste modo. como convém às mulheres da Assembléia. Por outro lado. a fazer pequenos serviços. Contudo. olha como ela anda agora direitinha. ela nos diz. Tantos fica agora alegre comigo. até lhe enviam bilhetinhos. que a vêem em processo de educação e buscam efetivamente contribuir para tal processo. um já disse assim ao outro: "ela se aceitou Jesus. fica dizendo assim comigo. sempre disponível e pronta para responder às investidas masculinas. uma vez que a angustia sua incapacidade de penetrar nas palavras.pois. A p e s a r d e decorar trechos da bíblia e hinos religiosos. varrer a casa ou lavar roupa. sente-se útil.. E m alguns lê: "ore por m i m irmã"..que recusa avanços e sente repulsa pela insistência com que os homens procuram sexo .. é trabalho para suas irmãs de igreja. Por u m lado. tantos tá dizendo que eu. "eu te amo". está claro que não é tão boa ou normal como os outros. e já disse um. dando-lhe conselhos e exemplo.. de mulher 'fácil'. consiste em um trabalho em curso. boa".tação do corpo . Se este projeto não se forjou totalmente na Assembléia. termina por enfrentar a provocação c o m sua voz grossa. quanto a outros sujeitos significativos em quem pode efetivamente mirar-se e que lhe servem de audiência para a confirmação de sua mudança. possibilidades novas que deve avaliar e pesar. mas não consegue ater-se às pregações. partindo do projeto original que assumiu. me dar entendimento e me dar mais sabedoria. Nos cultos. ao ser batizada nas águas. altera-se. dobra e desdobra os braços. É visível seu desconforto: mexe-se no lugar. ler qualquer versículo da bíblia. Sente como se o corpo lhe escapasse e assumisse a frente na condução dos seus atos. Que eu ainda desse jeito. seu corpo balança. Adélia cultiva e tenta tornar real u m projeto de normalidade: ser crente. referindo-se ao período mais crítico da doença. A Adélia que agora avalia e percebe as dificuldades de conformar-se a esse projeto. anteriormente. evitar a perda do controle. ao sabor da música. tem dificuldades para concentrar-se. tantas coisas sem entender. pendendo de u m lado para outro. sem dúvida não possui significado idêntico ao que apresentava quando ela foi inicialmente conduzida à igreja. Diz querer viver c o m u m h o m e m direito . dirige-se e m voz baixa a um e a outro a seu lado. que ela incorpora e exibe e m seu corpo. sob as quais se dá o próprio processo pelo qual o sujeito vem a visualizar. sem dúvida adquiriu novas tonalidades e adquiriu concretude ao longo de sua experiência na igreja. se a igreja lhe oferece meios para se afirmar como mulher. D e certo modo.. assumiu como seu o modelo pentecostal.. casar. e que.Num acertava fazer nada direito. este é o sentido vivido da agonia. na maioria das vezes. ao passo que os demais conservam uma postura estática ao entoar os hinos. sem entender nada direito. eu chego e num respondo nada como é as coisa. O fato de ser crente. até hoje eu tô assim. em meio a alguma crise). Adélia gosta e participa dos cantos. andar na rua sem que a apontem como maluca. boceja. Embora essa agonia já não a aflija como antes e já consiga. quando mal havia estabelecido suas opções. sua inquietação a distingue dos demais membros da congregação. fundiam-se e m u m horizonte vago de indeterminações. impõe também limitações ao que Adélia gostaria que fosse essa afirmação. ou as limitações que este impõe a outros desejos e fantasias suas. não é a mesma que. . para Adélia.não desses que se encontram 'por aí' . Algumas vezes.mas não quer ter filhos (teme cair grávida no chão. A análise da experiência de Adélia aponta para o fato de que a incorporação de um projeto pelo indivíduo esbarra muitas vezes e m contradições. Só tô pedindo a Deus pra abrir a mente. porque é u m pouco decotado. tal c o m o Adélia a descreve. A comunidade religiosa tanto lhe oferece u m repertório de signos. Também não parece entender completamente as restrições que a igreja impõe no que diz respeito ao vestir-se e enfeitar-se: é com certo descontentamento que nos diz não lhe ser permitido pintar as unhas ou usar u m dos seus vestidos que acha particularmente bonito. D e certa forma. Tampouco consegue controlar inteiramente a agonia que a acomete quando a p r o v o c a m ou quando lhe lançam algum olhar suspeito. Se a história de Adélia na igreja ilustra como a conversão representa uma reconstrução ativa do corpo, um "remanejamento do esquema corporal" - e não apenas simples aprendizado intelectual de novas idéias e formas de perceber o mundo - , mostra também como este é um processo carregado de tensões, advindas, em parte, da presença de projetos concorrentes que o sujeito cultiva e confronta, e por vezes se confronta. No caso de Adélia, vê-se um determinado projeto de feminilidade nem sempre inteiramente concordante com o ideal pentecostal que ela abraçou. Por outro lado, as tensões residem no processo mesmo de aquisição do novo 'hábito', que o projeto põe em curso. No processo de conversão de Adélia, fica claro como o corpo mobilizou e reorientou suas capacidades e m torno do projeto de ser crente, de tal modo que ela se descobriu, em vários aspectos, perfeitamente sintonizada com o ideal pentecostal, sem que para isso tivesse necessidade de executar todas as tarefas (e soluções) conducentes a esse ideal. Entretanto, também se descobriu incapaz de assumir inteiramente o modelo crente: o corpo - resultado de determinado percurso biográfico, síntese de um determinado modo de assumir ou adaptar-se à doença - , é também experimentado como resistência à construção de um novo projeto. É no jogo entre a experiência do corpo como situação que resiste e como possibilidade mesma de transcender a situação, que Adélia constrói seu modo único de ser crente. O corpo constitui, para Adélia, sinal visível de sua transformação interior e veículo por meio do qual esta se toma real e acessível para os outros. Entretanto, à medida que é vivido como resistência, faticidade que se impõe e não lhe permite adequar-se perfeitamente ao modelo coletivo da igreja, indica-lhe também a incompletude ou parcialidade desta transformação, seu caráter processual. BELISCO Belisco tem 25 anos; é negro, magro, fala rápido, com má dicção, e possui braços longos, que movimenta bastante ao falar. Como Adélia, sua carreira de doente mental iniciou-se na adolescência. Aos 14 anos, teve uma crise e quebrou tudo dentro de casa, arrancou a fiação, derrubou geladeira e chegou mesmo a rasgar dinheiro. Segundo sua mãe, desde criança apresentava um comportamento diferente, era mais agressivo que o comum dos meninos, sempre dado a brigas. O início do problema remonta, na opnião materna, a uma queda sofrida por Belisco aos três anos de idade, gerando convulsões. Não se tomou nenhuma providência quando dos primeiros comportamentos desviantes de Belisco, porém, após sua crise aos 14 anos, conduziu-se o rapaz a um hospital psiquiátrico. A esta experiência de internamento seguem-se outras, bem como um cotidiano marcado pelo efeito da medicação. As crises se sucediam, e com elas, cristalizava-se uma carreira de interno. 8 Embora recorressem ao internamento sempre que Belisco escapava a seu controle, os familiares vivenciavam essa opção com certa dor; causava-lhes sofrimento ver o rapaz completamente dopado no hospital, de modo que terminaram por buscar u m a solução alternativa, e sua avó materna o conduziu à casa de candomblé que costumava freqüentar. Neste local, Belisco foi recolhido e tratado; segundo seu pai-de-santo, seu sofrimento deve-se a u m exu que 'adquiriu' com seu costume de desfazer os 'ebós' que porventura encontrasse no caminho. C o m o tempo Belisco, conheceu a vida no candomblé e sentiu-se fortemente ligado à religião. É nos termos do candomblé que explica, ou antes, passa a vivenciar a doença. N o entanto, não se tornou freqüentador da casa onde fora tratado; c o m base e m seu conhecimento e advogando a identidade de pai-de-santo, faz suas próprias festas, e m que oferece comida às entidades. O projeto de Belisco, baseado no qual reconstrói sua relação com a doença e busca ingressar e m uma relativa normalidade, consiste no candomblé: "o candomblé é minha vida", diz, resumindo sua posição perante o mundo. Ao mesmo tempo e m que Belisco adentra mais e mais no candomblé, sua mãe toma-se crente e sua avó deixa-se influenciar crescentemente pela pregação pentecostal. Nenhuma das duas julga mais o candomblé como solução, pondo em questão os supostos resultados que este teria efetuado sobre o rapaz. Diante de um contexto familiar desfavorável ao seu novo projeto identitário e no qual experimenta, além do mais, desavenças constantes com os irmãos, Belisco passa a maior parte do tempo fora de casa. Permanece onde encontra abrigo, até que algum desentendimento - que não raro acontece - entre ele e seus anfitriões o coloque de novo e m marcha. Embora não exerça nenhum trabalho sistemático e esteja aguardando a chance de obter uma aposentadoria por invalidez, Belisco sempre se engaja e m pequenas tarefas. É possível encontrá-lo a transmitir recados para algum comerciante local ou mesmo a cuidar de uma criança pequena na rua. Sua ocupação principal, entretanto, é pedir esmolas nos ônibus. Para tal, j á tem uma encenação preparada, que parece funcionar b e m e lhe garantir algum dinheiro regularmente: enrijece os membros, entorta o corpo, fala 'embolado' e baba enquanto pede esmolas. Às vezes chega mesmo a fingir um ataque. E m geral, recolhe uma soma semanal não desprezível, comparativamente aos padrões locais. Gasta quase tudo comprando material para suas festas, comida e cerveja para as entidades e o público. Aqui reside, sem dúvida, u m forte motivo para o desgosto de sua mãe c o m a 'mania de candomblé' do rapaz: do dinheiro que o filho consegue, praticamente nada chega às suas mãos. Ainda pior, quando Belisco não tem dinheiro, compra fiado e termina com credores e m seu encalço, alguns bastante violentos. As crises de Belisco sempre se circunscreveram ao âmbito doméstico. Ele nunca criou muita confusão na rua, embora, por suas crises e internamentos, tivesse logo adquirido fama de maluco. Assim, não raro os vizinhos o acusam de algum pequeno furto e, mais recentemente, foi apontado como responsável por uma tenta¬ tiva de estupro da qual se diz inocente. D e vez em quando, envolve-se e m confusões c o m seus credores. N o geral, seu tempo parece girar em tomo do candomblé. Belisco n ã o lidera u m culto organizado, não t e m filhos-de-santo ou u m e s p a ç o regular d e culto. A p e n a s dá festas sempre que pode e onde pode, para satisfazer suas entidades. E m suas festas, só ele incorpora e só ele dança. Vez ou outra t a m b é m é c h a m a d o - ou talvez ele m e s m o se candidate - a fazer a l g u m ' t r a b a l h o ' para os vizinhos. U l t i m a m e n t e , realiza seu ritual na casa de u m a m o r a d o r a do bairro, D o n a Cabocla, q u e lhe cobra dez reais para ceder o espaço. É ela igualmente q u e m cozinha para a festa, sempre que Belisco t e m condições d e arcar c o m a despesa. A casa de Cabocla é pequena e os móveis da sala - sofá, estante, mesa reduzem ainda mais o espaço da festa. Belisco chega cedo e prepara o local, traz o atabaque e o incenso, que logo queima no ambiente. Toma banho e veste-se de branco. As pessoas chegam aos poucos, vizinhos, conhecidos; alguns curiosos espiam de fora, pela janela. Quando há comida, diz Cabocla, a casa enche-se de gente. U m rapaz novo toca o atabaque, para o quê é pago por Belisco. Este conduz os cantos, dançando e m círculo, passos curtos; algumas mulheres, sentadas, entoam o coro. Logo é possuído por alguma de suas entidades: Belisco se contorce, move-se cambaleante pela sala até que, j á sem camisa e sem sapato, seu caboclo assume o controle da cena. Neste momento começa realmente a festa: Belisco aumenta o ritmo, canta e dança com velocidade, toma cerveja, saúda o atabaque e abraça os presentes. Segue assim, c o m algumas pausas para descanso, até as dez horas, a hora de terminar prescrita por Cabocla. Cabocla: Se ele pudesse dava (candomblé) todo dia. Fica um bom menino. Calmo, calmo mesmo. Agora, se não deixar dar, eu acho que ele mata um. Se possível ele bate todo dia, todo dia, prêgêdê, prêgêdê... Eu chamo ele sacudindo...(sorrisos). Você vai vê, é daqui pra ali, prêgêdê, prêgêdê... ele tá sartisfeito (...) Pronto, aí não tem aborrecimento prá ele. Ele dança, se tiver comida, ele dá... como dá comida, dá o que beber. (...) Ele dança, dança tanto; dança não, pinota, até não agüentar mais. M e s m o que nem todos acreditem que Belisco 'tem santo', é consenso que ele não pode viver sem o candomblé. Freqüentadora das festas de Belisco, Fátima explica b e m a relação do amigo c o m os caboclos: Qualquer dia, qualquer hora. Ó, tem vez que tá só brincando, imitando o santo e a dança do candomblé, de repente o santo pega ele... Ele precisa controlar isso, porque isso não faz bem. Quando o santo pega ele, ele toma queda que só vendo. Outro dia, ele tava sentado bem aí nesse banco, tava assim mesmo encostado na parede. De repente, o santo pegou ele e arrombou a cabeça dele na parede. Eu vi a hora de matar. Eu perguntei a ele: "Belisco, sua cabeça tá doendo?" Ele disse que não, balançou até a cabeça pra eu ver. Aí eu disse: "é, meu amigo, só você mesmo pra agüen¬ tar". (...) Belisco exagera muito nesse negócio de dar santo, aí ele deixa de cuidar e não se liga. A mãe dele diz que é por causa da gente, mas não é não. A gente toda hora manda ele ir na casa da mãe, mas ele não vai. Belisco não quer nada, o negócio dele é só candomblé. (...) Umas [pessoas] acreditam, outras não. Mas ele mesmo dá o que falar, porque fica fazendo candomblé toda hora, aí o povo vê que ele não controla os santos. Belisco de fato orienta sua vida para o candomblé, organizando seu tempo e sua relação com os outros eminentemente e m razão da religião. Valendo-se do universo do candomblé, explica sua permanente doença enquanto u m agente externo que possui seu corpo (um exu), do qual não se pode definitivamente livrar, mas apenas exercer u m controle sempre precário e parcial, mediante a oferta regular de alimento e festa. Deste modo, o candomblé configura-se como condição para que possa evitar as crises: Belisco: Se eu parar o candomblé, que eu não vou batê candomblé, eu fico doente... boto sangue pela boca. O corpo todo me tremendo, o coração fica batendo, desapromando todo, aí fica aquele negócio me agoniando, um fogo na minha cabeça, esquentando minha cabeça demais, parecendo que é um fogo esquentando minha cabeça. Tem hora que eu mesmo digo que eu quero me jogar numa roda debaixo de um carro. Mas num é eu, num é eu. Aí tem hora que eu digo que eu vou me jogar... não tem a areia da praia? Disse que eu vou me jogar dentro de uma praia, ali dentro pra matar logo, afogado logo. (...) É o Tranca-de-Ferro. (...) Você vê ele. Os pessoal até, aqui fica até com medo dele. Ele tem o formato de um bicho, menino, quando ele chega ele vai pegando o que ficar na frente, vai me cortando todo aqui, ó. (...) Aqui ainda, ó, faz isso no meu braço. Belisco aponta para cicatrizes no corpo, resultado do temperamento agressivo de seu 'Tranca-de-Ferro'. Após meia-noite, explica, é ele quem vem à festa, tomando o lugar do caboclo e exibindo sua fúria para a platéia. O descontrole de exu na festa apenas sugere o que acontece fora do contexto ritual, de modo que a vinda de Tranca-de-Ferro - que, segundo Belisco, se dá e m represália ao seu descuido e m satisfazer-lhe a fome - , é marcada por muita violência, sempre contra o próprio Belisco. Por intermédio da festa - ou de uma combinação própria de fala, gestos e dança - , e m que o exu se revela e m seu aspecto atemorizador, Belisco define de forma concreta para os outros a realidade de sua doença tal qual ele a compreende. Ε nestes termos que comenta suas primeiras crises: Tá o couro comendo, aí eu disse "ôi, ôi, ôi", me acabei com minha cara, minha cara de pedra, foi garrafa pelo chão, foi televisão quebrada por dentro da casa, e o diabo só em meu corpo. D e certo m o d o , essa narrativa de doença s o m a d a à festa - que encarna e m a n t é m a narrativa e m curso - p e r m i t e m a Belisco trafegar, de m a n e i r a p o u c o problemática e relativamente aceita pelos outros, entre u m comporta¬ mento ordeiro e previsível no cotidiano e uma conduta ocasional de descontrole e excesso. Permitem-no manter uma experiência de alteridade no interior de quadros socialmente aceitos, sem que isso comprometa seriamente seu status de pessoa. Seria tentador afirmar q u e Belisco instrumentaliza seu corpo na festa da m e s m a forma q u e o faz pedindo esmolas n o ônibus, definindo, mediante u m a estratégia, u m a situação q u e lhe é vantajosa, e assim criando condições para realização de seus projetos. Contudo, embora a idéia de u m a hábil manipulação do corpo para realização de propósitos práticos pareça adequada para se entender a atividade de Belisco como pedinte nos ônibus de Salvador, mostra-se insuficiente para dar conta da construção d e seu projeto de vida n o c a n d o m blé. E m primeiro lugar porque e m u m a análise, conforme observado no caso de Jacinta, é preciso considerar o fundamento pré-reflexivo da experiência: isso nos c o n d u z a pensar o transe d e Belisco c o m o e x p r e s s ã o da maneira singular pela qual o corpo/sujeito se orienta e transcende a situação de aflição. C o m o t a m b é m j á notado n o caso de Jacinta, essa vivência pré-reflexiva sujeita-se a contínuas interpretações e reinterpretações ao longo d o diálogo e m curso entre Belisco, os freqüentadores do seu ritual, seus familiares e vizinhos. E m segundo lugar, porque é preciso perceber analiticamente a diferença entre certos episódios pontuais da vida, regidos por u m a racionalidade instrumental semelhante à q u e predomina e m situações de j o g o , e u m a trajetória ou biografia, q u e é sempre mais que o somatório de episódios pontuais. Volta-se aqui ao argumento de Garfinkel. E m certo sentido - e isso é importante - , é necessário considerar que Belisco não é senhor de sua trajetória: não dispõe de seus fins sempre c o m clareza, n e m prevê de antemão as possibilidades de ação c o m as quais irá deparar-se no curso do desenvolvimento de seus projetos. Se é por meio da festa que os outros descobrem Belisco c o m o pai-de-santo (ou, ao menos, alguém que tem santo), é também neste contexto que ele gradativamente se descobre e se constitui c o m o tal. A noção de u m plano ou esquema previamente traçado - que meramente se executa e m uma dada situação - não registra satisfatoriamente esse processo de aprendizado pelo qual p a s s a m Belisco e Adélia. Ao ser construído no e por meio do corpo, o projeto se desenvolve e desdobra e m novas facetas. Apresenta-se a Belisco como algo dado, ao m e s m o tempo e m que abre novos campos para sua investida sobre o contexto. CONCLUSÃO Objetivando abordar a experiência da doença mental com base na idéia de projeto, buscou-se aqui entender o modo específico pelo qual os indivíduos se defrontam, experimentam e entendem a doença; e m outras palavras, como transformam este dado, assumindo a partir dele certa modalidade existencial. A noção o corpo ou a consciência/corpo já anexou este dado à sua existência. de que o corpo sobressaiu e assumiu sozinho o controle sobre o agir. é preciso recuperar a dimensão corporal que perpassa toda experiência do ser-no-mundo. desenha uma seqüência linear. permite justamente dar conta desse trabalho cotidiano de exploração de diferentes possibilidades diante de uma situação e. cabeça queimando. A o longo do texto. o corpo se antecipa a essa atividade reflexiva em três aspectos significativos: e m primeiro lugar. tanto e m hospitais ou . E m segundo lugar. N e n h u m dos três casos. e m práticas situadas. Foi com base nesta concepção que se propôs analisar o 'transe' de Jacinta e o ritual de Belisco. descrevendo simultaneamente uma sensação de que esta unidade foi rompida. de tal forma que o ator por vezes descobre que realizou tarefas intermediárias sem que tivesse precisado colocá-las reflexivamente como problemas a resolver. antes de mais nada. porém. por conseguinte. As imagens dominantes de quentura. o corpo é igualmente experimentado c o m o resistência à livre realização de novos projetos. A contrapartida deste fato ilustra-se também por sua história: como situação. argumentou-se. trata-se de u m conhecimento sempre processual: no curso de sua realização no corpo. tal qual desenvolvida por Schutz. de transcendê-la. mas. A o contrário. apontam para a unidade fundamental entre mente e corpo. nos quais se haviam diagnosticado problemas mentais. assume contornos antes não vislumbrados e abre novos caminhos para uma exploração ativa da situação. uma experiência do e com o corpo. ajustando-se ou adaptando-se à situação de determinada forma. Adélia e Belisco é. o corpo mobiliza e reorganiza suas capacidades (socializadas) segundo os fins que incorpora e m estado prático. E m nossas conversas. o engajamento do corpo e m determinado projeto é mais do que a execução de um plano pré-traçado: toma o projeto real não só para os outros. Desnecessário dizer.de projeto. o fato de que antes de ser representada. Essa experiência encarnada da aflição constitui o ponto de partida para a elaboração e realização dos projetos de normalidade dos nossos protagonistas. A discussão procurou mostrar que projetos não consistem simplesmente e m elaborações abstratas de u m sujeito desprendido e momentaneamente independente de seu meio. buscou-se exemplificar essas várias dimensões do processo de elaboração e realização de projetos no âmbito da trajetória de três indivíduos. Para entendê-los. síntese de u m modo j á sedimentado de situar-se diante da doença. que principiaria na formulação mental do projeto e terminaria em sua execução corporal. A aflição de Jacinta. antes. agonia interna a puxar para o espaço da ma. Talvez este ponto transpareça com maior nitidez na história de Belisco. como também para seu autor. contribuindo ativamente para que este venha a conhecê-lo. Adélia sempre frisou u m senso de surpresa e prazer c o m as mudanças radicais que se produziram e m sua vida após a conversão. forjados e m contextos de ação/atenção perante as coisas. a doença j á é vivida. E m terceiro lugar. o projeto adquire precisão. no curso de realização do projeto. cientistas sociais. a busca da religião por Adélia. senão o instrumento que somos. E m todos três. 3 . Voltarmo-nos para a construção situada ou encarnada (embodied) desses textos permite-nos recuperar a experiência e m sua fluidez e incompletude. e m u m conjunto d e e s q u e m a s corporificados. mais próximos à experiência dos sujeitos que investigamos. mediante a qual se possa explicar de forma coerente o fluxo da experiência dos atores. e m suas contradições e ambigüidades.clínicas psiquiátricas. de normalização da vida. sobrepujá-la em direção a uma nova condição do sujeito" (Kogan. Entretanto. Por fim. 1994a. A idéia do corpo como instrumento é fortemente criticada por autores como Marcel. E m todos três. seria interessante concluir com u m comentário teórico mais geral. quanto como meio para sua realização. mais do que e m u m conjunto de princípios abstratos. facilmente se reifica tal imagem. encontrase presente u m projeto de normalidade. antes mesmo de ser representada. a razão desta constatação parece encontrar-se no fato de que toda religião consiste. Sartre observa que o corpo não é um instrumento que usamos. Os textos culturais são sempre tentativas de se criar uma imagem de ordem. há que se superar os limites de uma abordagem fundada na metáfora do texto (Csordas. tanto como fonte para a construção de seu projeto. 1993. Jacinta e Belisco não expressa u m a afinidade entre loucura e experiência do sagrado (tema j á bastante argüido na antropologia). Comentando essa idéia de Sartre. É da religião que provêm os sentidos encarnados que orientam o modo como a doença é vivida. ou melhor. tal afirmação soa óbvia. e é também da religião que derivam as imagens que guiam a interpretação dessa experiência. Por outro lado. pode-se dizer que os projetos de normalidade aqui discutidos são tematizados c o m o religiosos porque expressam "uma estratégia do self em busca de um idioma poderoso para orientação n o m u n d o " (1994b:287).. N o caso da antropologia da saúde. conforme alguns antropólogos têm argumentado mais recentemente. 14-18 de 1996. 1993). Por u m lado. Cabem aqui algumas observações a respeito. ou seja. Sartre e Merleau-Ponty. No seu estudo. Lock. a religião desempenha u m papel fundamental. curar uma ferida etc. 1981:53). Salvador. Conduzir a análise para o tema da corporeidade sem dúvida nos coloca. Parafraseando Csordas. Kogan oferece o seguinte exemplo: "tocar uma perna significa tocá-la com o objetivo de pôr uma roupa. para quem corpo e subjetividade estão essencialmente imbricados. NOTAS 1 2 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada na XX Reunião Brasileira de Antropologia. quanto em seu bairro de residência. e nisso reside sua eficácia para reorientar a vida. Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes. In: GARFINKEL.P. É verdade. T. bolsistas de Iniciação Científica do CNPq. mas essa intenção não põe as teclas do teclado como localização objetiva. part 1. LOCK. 1994a. As técnicas corporais. . 1967. 1963.F. 1974.1993. P. Suely Motta e Paula Schaepp. Annual Review of Anthropology. (Ed. Somatic Modes of Attention. Harmondsworth: Penguin Books. Passing and the managed achievement of sex status in an intersexed person. Sociologia e Antropologia. Uma análise do itinerário de Adélia por diversas agências religiosas encontra-se em Rabelo (1993). MAUSS. T. KOGAN. 8(2): 135-156. Estigma: la identidad deteriorada.: Fondo de Cultura Económica. CSORDAS. 1981. São Paulo: E.) Embodiment and Experience: the existential ground of culture and self. esses movimentos são dirigidos por uma intenção. D. Cambridge: Cambridge University Press. CSORDAS./Edusp. Cambridge: Cambridge University Press. Cultivating the body: anthropology and epistemologies of bodily practice and knowledge. 1996. São Paulo: Papirus. 1977. The body as representation and being-in-the-world. Μ. M. GOFFMAN.II. 1994b. engajado no projeto. bolsista de Iniciação Científica do CNPq. In: CSORDAS. que o sujeito que aprende a datilografar integra o espaço do teclado a seu espaço corporal" (MerleauPonty. 22:133-55. CSORDAS. ver Souza e Rabelo (1996). E. mediante observação e entrevistas. Words from the holy people: a case study in cultural phenomenology. BOURDIEU. The Social Construction of Reality. H. T. (Ed. literalmente. In: MAUSS. v. Mexico. Studies in Ethnomethodology. Buenos Aires: Amorrortu. T.1993. Cultural Anthropology. O acompanhamento da experiência de Adélia na Assembléia de Deus. In: CSORDAS. Razões e Práticas: sobre a teoria da ação. Para uma primeira discussão da experiência de Adélia na Assembléia de Deus.U. Outline of a Theory of Practice. GOFFMAN. 1985.) Embodiment and Experience: the existential ground of culture and self.4 5 6 7 "Quando a datilografa executa os movimentos necessários no teclado. Cuerpo y Persona: filosofia y psicologia del cuerpo vivido. Cambridge: Cambridge University Press. GARFINKEL. engajadas no projeto. H. E. O caso de Belisco foi acompanhado por Osvaldo Bastos Neto. Englewood Cliffs (New Jersey): Prentice Hall. T. tem sido realizado por Litza Cunha. A. 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGER. Ρ & LUCKMANN. T. 1994:200-1). P. BOURDIEU. 1975. M. T & FRY. 9(3):316-325. M. Cadernos de Saúde Pública. Collected Papers I.) Política e Cultura: visões do passado e perspectivas contemporâneas. Μ.P. (Orgs.H. NATANSON. Μ. Introduction. 1994. São Paulo: Martins Fontes. . São Paulo: Hucitec/Anpocs. The problem of social reality. I. Collected Papers I. & RABELO. 1997. A. E.MERLEAU-PONTY. SCHUTZ. Petrópolis: Vozes. M. In SCHUTZ.1993. ALMEIDA. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. SOUZA. 1973. Fenomenologia da Percepção. A. M. 1996. RABELO. The Hague: Martinus Nijhoff. The Hague: Martinus Nijhoff. Imagens do eu em uma trajetória de enfermidade. P. The problem of social reality. In: REIS. Religião e cura: algumas reflexões sobre a experiência religiosa das classes trabalhadoras urbanas. 1973. SARTRE.. J. . a passagem da doença à saúde pode vir a corresponder a uma reorientação mais completa do comportamento do doente. Trata-se. Kapferer. carregado de emoção. como espaço por excelência e m que se conduzem os doentes a uma reorganização da sua experiência no mundo. e m u m novo contexto de relacionamentos. atenção especial tem sido dedicada à análise do ritual. Tambiah. Turner. Litza A. D e fato. Vários estudos sobre o tema observam que os sistemas religiosos de cura oferecem uma interpretação da doença que a insere no contexto sociocultural mais amplo do sofredor (Comaroff. 1991). Entretanto. visando a reinseri-lo. faz mais do que simplesmente ligar tais estados a uma causa exterior (Lévi-Strauss. no contexto religioso. a questão mesma da transformação da experiência permanece pouco explorada. q u e tende a despersonalizar o doente (Taussig.1974. de contribuições valiosas para a compreensão do potencial terapêutico da religião. Imagens e Experiências de Aflição: alguns elementos para reflexão Míriam Cristina M. 1979.1969. 1980). 1978. 1967. o tratamento religioso consiste e m ação sobre o indivíduo social. quase todas as abordagens do ritual sublinham seu papel transformador: manipulando símbolos e m u m contexto extra-cotidiano. uma vez que as análises não vão . como sujeito. 1975. Diferentemente da abordagem biomédica. e diversos trabalhos objetivam identificar os meios pelos quais as terapias religiosas efetuam tal reorientação comportamental. Schaeppi INTRODUÇÃO A importância da religião na interpretação e tratamento da doença tem sido amplamente reconhecida na antropologia. Cunha & Paula B. 1985): trata-se de uma interpretação que organiza os estados confusos e desordenados que caracterizam a experiência da aflição e m u m todo ordenado e coerente e. 1979b. Rabelo. Prevalece nas análises a conclusão de que. a performance ritual induz seus participantes a perceberem de forma nova o universo circundante e sua posição particular nesse universo (Geertz. 1979a. biológico e psicológico. 1967).9 Religião. 1980. Neste sentido. deste modo. sem dúvida. Abordar a experiência de tratamento mediante u m exame cuidadoso das imagens propostas e elaboradas ao longo deste processo conduz a atenção para o ponto de vista subjetivo dos seus produtores. do ponto de vista metodológico. A primeira parte do trabalho busca precisar melhor a abordagem teórica adotada. n e m tampouco o reconhecimento da centralidade dessas composições na configuração da experiência religiosa dos m e m b r o s . O presente capítulo busca explorar alguns caminhos analíticos para uma abordagem da experiência de indivíduos que buscam tratamento e m agências religiosas. que u m dos caminhos nessa direção consiste no estudo dos modos de imaginação desenvolvidos n o curso da participação religiosa. A segunda parte visa a descrever as experiências de duas mulheres de classe trabalhadora ambas identificadas como pessoas que sofrem de problemas relativos à saúde mental .muito além da identificação dos meios (usualmente rituais) que favorecem a ocorrência de tal processo. contentandose com a descrição de processos gerais. Por fim. aqui. Argumenta-se.conduzido . Seguindo proposta desenvolvida por Csordas (1994) para u m estudo socioantropológico da imaginação. A descrição dos casos antecede-se . Trata-se de um trabalho em grande parte coletivo . A s s i m c o m o toda forma de conversão.que buscaram cura no interior de agências espíritas e pentecostais. ABORDAGENS AO ESTUDO DAS IMAGENS Descrições densas das mais variadas composições de imagens nunca faltaram às etnografias de grupos ou movimentos religiosos.por uma apresentação dos universos religioso/ritual do espiritismo e pentecostalismo. discutindo-se simultaneamente a dimensão corporal integrante de todo processo imaginativo. elabora-se uma breve revisão das possibilidades analíticas acenadas pelas teorias de Sartre e Peirce.o que vem a ser o mesmo . O problema deve-se ao fato de que. expectativas e projetos dos atores. terminam por descolar a dinâmica da performance . o modo próprio como encarnam o modelo da religião c o m base na situação vivida da doença ou . a quarta parte analisa os casos relatados à luz da discussão teórica inicial.concebida como u m processo autocontido e regulado . poucos são os estudos que buscam elucidar a perspectiva do paciente.das interpretações. todo tratamento religioso oferece a seus clientes e fiéis em potencial u m conjunto de imagens a serem trabalhadas. Trata-se de complementar as análises usuais que. priorizando a organização dos meios ou técnicas utilizados nas encenações rituais de cura.a maneira como vivenciam a doença baseados e m uma síntese (imagem) e m grande medida motivada e alimentada pelo envolvimento religioso. Ora.e contextualiza-se . se a questão a ser teorizada diz respeito à transformação da experiência. por definição ela exige uma abordagem compreensiva voltada para os sujeitos cuja experiência supostamente se transforma. sensíveis. No pensamento conceituai. por meio de imagens carregadas de sentimento. a diferença entre a imagem como objeto e a imagem como ato ou processo. Sua eficácia reside na construção social de uma situação e m que o paciente participa ativamente. Neste ponto. na imagem visa objetos corpóreos. Dizer que esse processo de reorientação se dá por meio da elaboração de imagens. A o passo que a percepção situa os objetos como existentes na sua concretude. significa atentar para o fato de que a religião não opera primeiro ou especialmente no plano do discurso intelectual. ou comentário: elas sugerem. Dois pontos importantes depreendem-se deste argumento. o que lhe permite reorientar a discussão de uma busca das características distintivas da imagem-objeto para uma investigação do modo particular de consciência que caracteriza o imaginar. Segundo. Assim é que a imagem de u m ente amado . nunca está inteiramente contido nos perfis por meio dos quais se mostra (pode sempre surpreender o sujeito na revelação de u m novo perfil). distingue-se de ambos: é "um ato que visa em sua corporeidade um objeto ausente ou inexistente. mais propriamente como imaginação. Na percepção. diz Sartre (1996:37). Se no saber a consciência visa essências. 1996:23). por sua vez.nos contextos públicos de ritual . Sartre a diferencia de dois outros modos de consciência: a percepção e o saber ou pensamento conceituai. A imagem.. Primeiramente. ou do que Fernandez (1978) chamou d e u m argumento de imagens. Nesse campo. as performances rituais que compõem uma terapia religiosa não postulam uma nova realidade para seus participantes/clientes pela apresentação de u m argumento. uma forma de se situar e de agir no mundo. A s imagens são elementos essenciais neste processo. Entretanto. visando-os na sua presença corpórea. mas a título de u m 'representante analógico' do objeto v i s a d o " . o que significa dizer que "o objeto da percepção excede constantemente a consciência" (Sartre. mas mediante imagens que apelam aos sentidos e convidam à ação. o objeto se dá à consciência mediante uma sucessão de perfis. como formas distintas de apreender e situar-se perante uma dada realidade. através de u m conteúdo físico ou psíquico que não se dá e m si mesmo. constitui-se enquanto síntese de suas aparições. abstratas. Sartre define imagem como ato. a abordagem sartriana mostra-se particularmente relevante. o contraste entre imagem e discurso intelectual. Convém nos determos u m pouco mais no argumento do autor. Para melhor definir a imagem-ato. Segundo Schieffelin (1985). descrição. apontam para qualidades gerais. mas decompõe-se e m termos de uma série de relações ideais. que almeja (re)orientar o ator na situaçãoproblema e m que se encontra e sobre a qual deve agir. o pensamento conceituai situa seus objetos como naturezas ideais ou essências universais. os objetos percebidos são tomados como signos. abstrato (seja este compreendido como representação consciente ou código inconsciente). Tratar da imagem-ato conduz a atenção para o modo como o universo religioso é gradativamente incorporado à vida. o objeto não se constitui aos poucos. mas a presença mesma desse personagem invadindo a cena. os traços pessoais do mímico desaparecem para representar qualidades gerais: ao decifrar os signos. luz etc. Na percepção o elemento propriamente representativo corresponde a uma passividade da consciência. percebemos os elementos que c o m p õ e m a cena e os tomamos c o m o signos a serem lidos. Trata-se. converte-se e m u m senso da presença da coisa representada. C o m o signos. para Sartre (1996:29). colocamos ali este alguém. a qualidade afetiva que ligamos ao objeto/personagem imitado logo se transpõe para o ator: neste momento. sustenta. proximidade com a percepção: vai e m busca do seu objeto no campo da percepção e visa os elementos sensíveis que c o n s u m e m esse campo. dando aos elementos isolados da imitação um sentido indefinível e a unidade de um objeto. papel. Na imagem. é espontânea e criadora. temos diante de nós não mais u m mímico que representa u m personagem conhecido.) que o compõem. na imagem o objeto não se dá gradativamente. mantém através de uma criação contínua as qualidades sensíveis do seu objeto. do que ocorre na percepção. É esse sentido afetivo que realiza a união sintética dos diferentes signos. Consideremos especificamente o caso de u m espetáculo de imitação: antes do advento da consciência-imagem. entrando no âmbito do pensamento abstrato. por exemplo. via u m ato intencional de síntese (que é a imagem). por sua vez. nos deparamos c o m u m campo conceituai. por inteiro. N o entanto. não transcende a consciência. de modo que o chapéu que o mímico exibe. N o argumento de Sartre. 1996:30) Embora constitua u m modo particular de consciência. senão que é contemporâneo ao ato intencional que o constitui. parece referir-se ou apontar para o indivíduo representado. Esta síntese opera-se de tal m o d o que a mirada de u m quadro ou um retrato. Diferentemente. a consciência orienta-se para a situação geral e interpreta a cena como imitação.já falecido suscita de imediato a dor da perda. é porque. ou mesmo de u m espetáculo de personificação. esse elemento. cuja síntese finalmente se completa pela ação do elemento afetivo. cores. sem dúvida. textura. de "uma forma sintética que aparece como u m certo momento de u m a síntese temporal e se organiza c o m outras formas de consciência que a precedem e seguem para formar u m a unidade melódica". mas de uma só vez. é o produto de uma atividade consciente. pode passar pela verdadeira matéria intuitiva . (Sartre. antes de um conhecimento das qualidades ideais do ser imaginado. É ele que. a imagem articulase aos outros modos e é alimentada por eles. é ele que anima sua secura cristalizada. é atravessado de ponta a ponta por uma corrente de atividade criadora. Este é u m passo importante para a constituição da consciência-imagem. é porque damos vida aos elementos (tela. A imagem guarda. que lhe dá vida e uma certa espessura. no que tem de primeiro e incomunicável. Se podemos ver alguém por trás de u m quadro ou fotografia. as abordagens de Sartre e Peirce guardam importantes pontos e m comum. q u e e m u m m o m e n to posterior passa. a tríade descreve u m processo de significação (semiose) e m que o signo volta-se para o objeto de m o d o a suscitar o seu interpretante. Santaella observa que "o signo é algo (qualquer coisa) q u e é determinado por alguma outra coisa que ele representa [seu objeto]. a semiose seria. 1996:48-9) Nos trabalhos de Peirce. ele m e s m o . sua insistência na vinculação necessária entre discurso e ação e. C o m apoio e m u m a classificação mais geral dos fenômenos.são a p r o p r i a d a s e retrabalhadas para interpretar e modificar a experiência cotidiana da aflição. objeto e interpretante. sendo esse efeito c h a m a d o interpretante" (1993:39). N a ótica de Peirce. o que contrasta fortemente c o m o caráter estático da semiótica saussiriana fundada e m u m m o d e l o diádico. u m diálogo sempre e m curso. q u e p o d e ser de qualquer tipo (sentimento. o que fica claro na idéia de semiose como processo dialógico. ação ou representação) n u m a mente atual ou potencial. 1 A semiótica de Peirce apóia-se em uma tríade: signo. A categoria do interpretante aponta para o papel do sujeito/intérprete na dinâmica da significação. essa representação produzindo u m efeito. Peirce acena c o m u m modelo bastante frutífero para se compreender c o m o imagens-objetos apreend i d a s e m c o n t e x t o s r e l i g i o s o s . a natureza expressiva. Para Peirce. Essa concepção triádica introduz dinamicidade na significação (tomada c o m o processo e m curso). sua preocupação com a relação entre experiência e significação. pode-se entender q u e as categorias da tríade representem os modos do passado (objeto). Finalmente. b e m como na concepção de u m interpretante também vinculado à ação. práticas e projetos. A contribuição central de Peirce às ciências humanas situa-se no c a m p o da semiótica. constituindo u m esforço sempre parcial e e m curso. permite-nos avançar na compreensão do processo de elaboração e interpretação das imagens na experiência social. sentimento e hábito.ou e x t r a ..r e l i g i o s o s . (Sartre. revelam elementos de uma concepção fenomenológica na base do modelo semiótico. o que contemplamos no corpo da imitadora é esse objeto como imagem: os signos reunidos por um sentido afetivo. no qual o signo estabelece u m a mediação entre o objeto e o interpretante. a funcionar c o m o signo. b e m c o m o ressalta a vinculação estreita entre significado e interesses. Embora formuladas no contexto de matrizes teóricas distintas . . e m um sentido mais amplo. isso é. acrescida à análise de Sartre sobre a formação da imagem c o m o m o d o ou ato da consciência. Buscando sintetizar as várias definições propostas por Peirce para dar conta da relação entre essas três categorias. e assim sucessivamente. encontra-se uma discussão que. Mais especificamente. a significação jamais esgota a vivência. Entretanto.a fenomenologia e o pragmatismo .da consciência de imitação. assim. tampouco se situa exclusivamente na dimensão do texto. presente (signo) e futuro (interpretante). c o m o assento d o hábito e veículo da ação . para Peirce. Sartre.Peirce elabora c o m mais detalhe cada uma dessas categorias. e o interpretante lógico. ou o sentimento que o signo produz (seu primeiro significado). n e m o c o r p o é objeto n e m a c o n s c i ê n c i a u m a subjetividade desencarnada. consistindo em uma regra ou um hábito geral de ação suscitado pelo signo. a consciência é considerada indissociável do corpo ou. por conseguinte. uma dimensão corporal e m todo processo de imaginação para a qual é preciso atentar. que corresponde ao significado convencional ou lingüístico do signo. que é o esforço (primordialmente mental. conduz-nos a considerar o papel do corpo . de sentimentos. distingue o interpretante imediato. portanto. 1997:388). E m O Imaginário.. o interpretante dinâmico.e. C o m o o signo nunca pode representar u m objeto e m sua totalidade. não parece particularmente preocupado e m explorar as implicações dessa idéia. u m a v e z q u e .e. mas também físico) produzido como efeito do interpretante afetivo. que possui u m fundamento corporal. interpretante energético. N o domínio da e x p e r i ê n c i a . idéia que Sartre expressa de forma bastante interessante ao afirmar que "não há (. sem dúvida. E m relação ao interpretante. é vista como consciência situada: o corpo é seu m o d o m e s m o de estar no mundo.conforme faz Peirce . e de dinâmico. Nas duas classificações evidencia-se que. Há.. Assumir o interpretante como hábito . e indicador de suas possibilidades. bastam as grandes divisões que estabelece nos domínios do objeto e do interpretante. o que eqüivale. pode-se dizer que a imagem-ato é criadora não porque representa uma apreensão intelectual do mundo. diferencia objeto imediato de objeto dinâmico. e o interpretante final. Mas o corpo é todo inteiro psíquico" (Sartre. interesses e projetos. mas sempre segundo certas características ou qualidades. porém.nos processos de imaginação. distingue entre interpretante afetivo. Peirce chama de imediato o objeto tal como representado no signo. de fato. Sartre n ã o e s t á a l h e i o a essa d i m e n s ã o . que consiste no efeito que o signo suscita em seu intérprete em termos de um sentimento ou ação. o objeto que encontra-se fora do signo e que este pode apenas indicar ou sugerir. nada há detrás do corpo. na p e r s p e c t i v a fenomenológica da qual parte. postular uma imbricação entre significado e ação no domínio das imagens. e m u m sentido mais geral. Prosseguindo o argumento de Sartre. para efeito do argumento aqui desenvolvido. a ele ligam-se as dimensões do diálogo e da ação .) fenômenos psíquicos a serem unidos a u m corpo. entretanto. 1996): na primeira. o que parece trair a operação da dicotomia mente- . vale para a imagem enquanto ato. constituindo o significado do signo para os projetos ou intenções do locutor. e sim porque constitui u m modo próprio de situar-se ou sintonizar-se c o m o mundo. No que tange ao primeiro. Na segunda classificação. a imagemato é fundamentalmente imagem mental e os exemplos analisados consistem quase todos e m imagens visuais. 1991. desenvolve duas classificações distintas (Rodrigues. o interpretante não se identifica exclusivamente c o m u m campo puro de conceitos e idéias. Isto. corpo tão cara à tradição ocidental moderna. Entretanto. posto que não acompanhamos essa participação e que dela possuímos apenas relatos muito resumidos. trabalhadas. merece especial atenção os processos imaginativos que desenvolveram a partir do envolvimento nessas agências religiosas. considerando-os solidários. porque envolve uma nova compreensão dos outros. limitamo-nos aqui a discorrer sobre o mundos dos espíritas e pentecostais. precisamos reintegrar os sentidos na análise dos processos de imaginação. da situação. É uma compreensão lograda com os sentidos. mas permaneceu ligada ao espiritismo. com o campo unificado dos vários sentidos que é o corpo. Alguns meses após. Trata-se. conforme apontou Merleau-Ponty (1994). pois afinal. isto é. Para melhor contextualizar tal descrição. entretanto. 2 EXPERIÊNCIAS DE IMAGINAÇÃO NO INTERIOR DE AGÊNCIAS RELIGIOSAS Nesta seção apresentam-se as experiências de doença e tratamento religioso vividas por duas mulheres moradoras do Nordeste de Amaralina. freqüentaram outras agências religiosas.enfim. Nas palavras de Csordas. Mara abandonou o centro espírita para ingressar na Igreja Universal. tratando-se no centro onde iniciara sua trajetória espírita. portanto. Lana buscava alívio para seu nervoso e Mara. norteadoras de seus rituais e da abordagem de seus terapeutas. segue-se u m a rápida apresentação dos universos religiosos do espiritismo e pentecostalismo. que advém de u m engajamento corporal no mundo. são apropriadas. U m a compreensão destas religiões possibilita que se perceba como as imagens centrais.na época e m que se iniciou a pesquisa. As duas freqüentavam o mesmo centro espírita . de si mesmo. 1994). necessária.por nossas protagonistas. desenvolvidas . mas averiguar como diferentes sentidos se integram na dinâmica da imaginação.Espíritos de Luz . A imaginação abre possibilidades de projetar e agir. "uma abordagem fenomenológica que insiste na inclusão da corporeidade e m uma definição de consciência e e m um sensorium unificado como campo da atividade imaginativa é. Lana e Mara. Se queremos compreender experiências de transformação operadas nos rituais. tratamento para u m estado que muitos consideravam como loucura. as quais se menciona mais adiante. no passado. À análise cabe não apenas identificar as modalidades sensuais e m que se dá a imagem-ato. de uma compreensão que constitui primordialmente u m reconhecimento fundado na nossa presença corporal entre as coisas e as pessoas. . Lana também deixou o centro Espíritos de Luz. o qual acompanhamos por u m período de aproximadamente u m ano e meio. imaginadas . a visão é o sentido que mais se aproxima do campo mental (Csordas. para abarcar a imaginação como domínio empírico" (1994:80). Na descrição de suas experiências. de fato. A organização do passe expressa b e m o ideal espírita. e m alguns casos. instruindo os presentes a manter silêncio e relaxar.O CONTEXTO RELIGIOSO: RITUAL Ε IMAGENS NO ESPIRITISMO Ε PENTECOSTALISMO A abordagem espírita da doença e cura apóia-se nas noções de evolução e energia. O progresso moral se faz acompanhar pelo fortalecimento de energias obtido pelo passe. que p o d e m tanto ser positivas quanto negativas. também em tomo dos corpos dos presentes. cadeiras são dispostas de modo circular. compondo u m ethos caracterizado pela postura calma e serena diante da vida. Segundo os 'entrevistadores' (terapeutas/médiuns entrevistadores).a progredir moralmente. sinal de fraqueza moral ainda a corrigir (o que configura uma situação de vulnerabilidade) e. acompanhada pela fala pausada e lenta de u m dos médiuns. São espíritos obsessores que provocam a doença. A começar. resultado da interferência de espíritos menos desenvolvidos que encontram pouso fácil no corpo dos que se encontram mais vulneráveis. Cada doente passa por entrevistas periódicas. ritual e m que. 1989. a disciplina e o estudo (aperfeiçoamento na doutrina). elas recebem orientação a respeito de como agir de acordo c o m a doutrina espírita e de quais atividades no centro devem participar. Droogers. além das virtudes cristãs da caridade e amor ao próximo. porque de fato ignoram a maneira correta de agir (Greenfield. envolvem a circulação de energias. opera-se uma transferência de energias positivas para o cliente. sejam encarnados ou desencarnados. Deve ser instruído . 1992. e m que é estimulado a falar sobre seus problemas e os motivos que o levaram a procurar o centro. 1984). impondo e movimentando lentamente as mãos sobre as cabeças e. uma ação direcionada ao espírito causador da aflição. os passistas percorrem-no de pontos e direções distintas. onde se ouve uma música suave de fundo. . a doença constitui. para onde encaminham-se os presentes em grupos menores. deve-se deixar as pessoas falarem. "se esvaziarem". Nesse quadro. que devem manter olhos fechados e o corpo relaxado. A s relações entre esses espíritos. convivem espíritos c o m diferentes graus de desenvolvimento. o autocontrole.por meio de palestras. nos casos de obsessão. c o m uma luz azulada. o que inclui. como no início da doutrinária e da mediúnica. antes de tudo. tem-se geralmente u m ambiente de penumbra. Situados fora do círculo. A cura envolve tanto medidas aplicadas ao doente quanto. A partir daí. Warren. N o mundo. Na sala do passe. O doente precisa fortalecer-se espiritualmente. entrevistas pessoais e cursos . destinados a u m aperfeiçoamento contínuo. Este ambiente não é exclusivo ao passe: a luz azul e a música suave podem encontrarse e m vários outras situações. fechar os olhos e descruzar braços e pernas. mediante o movimento de mãos do passista/terapeuta. por vezes. da recusa ao diálogo a uma crescente sensibilização às palavras do doutrinador. outros participantes (médiuns de apoio) oram e m voz baixa. . não sendo permitida a presença dos pacientes. A mudança gradual na atitude do espírito durante as sessões (que podem ser várias). causadora da doença. A sessão se inicia quando a u m dos médiuns (o médium de incorporação) manifesta-se o espírito que se aloja no corpo do doente. orientada pela imagem do ensinamento dedicado: consiste essencialmente e m tarefa pedagógica. trata o doente mediante movimentos de mãos sobre o seu corpo e mediante toque. peixe ou galinha. onde recebem o passe. por uma ação construtiva e benéfica. também elas. chama-se este tipo de tratamento de Atendimento Espiritual Irmão Paulo (nome do espírito médico incorporado pelo médium). e m cujo corpo se aloja. A 'queixa' do doente é lida e o médium. os pacientes são levados a orar e relaxar. passa a desenrolar-se um diálogo entre o médium doutrinador e o espírito. cujo conteúdo é claramente pedagógico: este deve ser persuadido a mudar de conduta. não comam carne. Enquanto o doutrinador e o espírito conversam. os terapeutas espíritas visam igualmente a contribuir para o progresso moral das entidades responsáveis pela doença.. por meio do qual o espírito de Irmão Paulo atua. Encaminha-se posteriormente este relato para o 'entrevistador'. desde impaciência e tristeza até câncer. redefine o contexto da doença.Quanto à ação sobre os espíritos obsessores . A conversa informal constitui-se no modo de comunicação privilegiado para a construção do cenário da cura. e só então dirigem-se à sala da cirurgia e deitam-se e m macas. de fato. N o Centro Espírita Protetores Espirituais. Para os médiuns do Centro Espírita Protetores Espirituais. como se fossem crianças a quem é preciso ensinar a se comportarem de maneira apropriada e motivar a substituírem a ação destrutiva. esta evolução requer t a m b é m o internamento dos espíritos obsessores. possa recuperar seu bem-estar. Enquanto se atend e m os doentes nas macas. Apenas o médium vidente é capaz de ver a atuação da espiritualidade sobre o paciente. tratadas com gentileza. que o repassa ao paciente. não há muita diferença com relação ao tratamento dispensado aos encarnados que sofrem com sua interferência. promovida por espíritos curadores por intermédio dos médiuns. outros médiuns reúnem-se e m uma mediúnica para doutrinar seus espíritos obsessores. Aconselha-se aos doentes que se irão submeter a esse tratamento que. descrevendoa para u m médium relator no momento em que a vê. A cura no espiritismo é. Tais entidades causadoras de aflição são. e m colônias de tratamento no plano espiritual. pela qual se conduzem espíritos menos desenvolvidos a estágios superiores de existência. são conduzidos a uma sala. então.desenrolada no contexto da sessão mediúnica ou de desobsessão . não bebam e não fumem. É também usual e m alguns centros espíritas a cirurgia espiritual. Encaminham-se as pessoas a esta sorte de cirurgia por vários motivos. Ao curar o doente. O tratamento envolve três etapas: na primeira. A sessão mediúnica usualmente se restringe aos médiuns do centro. E m seguida. desde a véspera. de modo a permitir que o doente. que repetem operações semelhantes em outros doentes. Fernandes.B e m distinta é a abordagem pentecostal. é categoria pertencente ao segundo plano. entretanto. sai. portanto. E m meio à profusão de vozes e orações. conformar a aflição pessoal ao modelo dicotômico do culto. ordena a Satanás e seus comparsas que se manifestem e se curvem perante o poder de Cristo. enquanto sinal de desordem. como a Igreja Universal do Reino de Deus. gritos de 'sai. sai'. o ritual de cura divina almeja conduzir o doente a perceber que moveu-se efetivamente de um universo de caos e doença para u m mundo ordenado. que na Igreja Universal consistem em vários exus (da feitiçaria. do vício etc. a cujos olhos atentos dificilmente escapa alguém sem atendimento. substituindo-se apenas o nome da entidade maléfica. Profere-se a mesma oração diversas vezes. para que possa proceder a oração de cura. C o m suas mãos sobre o doente. Tal movimento. para. quando o pastor e/ou obreiras retiram bruscamente a mão que vinham comprimindo sobre o doente. O tom ríspido e desafiador do pastor pouco a pouco se mistura às vozes das obreiras. a intervalos variáveis. com a entrada do pastor que se inicia o culto e a cura divina propriamente dita. o pastor chama doentes e aflitos à frente. enquanto emissário do poder de Jesus Cristo sobre o mal. suas obreiras e os demais fiéis oram juntos para expulsar as entidades do mal que se alojam no corpo do doente. e dos demais participantes. co-responsáveis pelo desfecho da luta encenada ao redor do corpo do doente. a oração de cura constitui momento central do ritual. para o qual convergem todas as atenções e expectativas. Podem ser rezadas individualmente pelas obreiras. A visão de mundo pentecostal assenta-se e m uma oposição rígida entre o bem e o mal. Nas igrejas que praticam a cura divina. cada qual enunciando sua própria oração. e m meio a tantas outras mãos e aflições pessoais.). Reza e m tom de comando. reforça a imagem da cura enquanto expulsão de algo que comprime e pesa sobre este. quando não os próprios orixás. o único que lhe pode garantir vitória contínua contra a enfermidade. No culto. de planos descontínuos e irreconciliáveis (Brandão. pedindo-lhes que ponham a mão sobre a parte enferma do corpo. que marcam o final de cada oração. 1982). beneficiaremse do poder purificador do óleo. A imagem da luta permeia o culto: a cura marca a vitória do b e m sobre o mal. A doença. ao chegarem ao templo. Muitas vezes. É. sob a assistência das obreiras. encena-se a cura como uma batalha na qual o pastor. freqüentada por Mara. 1980. as pessoas já encontram atividades de cura em andamento. trata-se. Podem ser convidadas a colocar suas mãos sobre uma mesa untada e m óleo. em última instância. marcando o cessar repentino de uma pressão sobre o corpo. A performance de fato oferece para seus participantes o papel de guerreiros auxiliares. A atmosfera é tensa e parece caminhar para um clímax final. Muitas vezes. pode-se distinguir. A concentração da performance no discurso (oração) e o ritmo crescente de sua enunciação conduzem à representação de um conflito que caminha para . Encenando uma batalha contra o mal. interpretá-la é forçar a entidade causadora a se manifestar durante o ritual e. . incapazes de compreender e aceitar sua opção religiosa. fecha-se o portão da rua para garantir a segurança dos habitantes.. tá entendendo? Eu sou uma pessoa que. levando-a à angústia e ao desespero: Eu num gosto de cemitério. me sinto mal. A boa situação financeira da família parece ser garantida pelo emprego do marido (funcionário da Companhia de Energia Elétrica da Bahia . posters com paisagens naturais e mensagens religiosas revelam seu envolvimento com a doutrina espírita. separada por u m grande portão de arame das ruas e moradores vizinhos. não raro objetivando. cujo caráter extraordinário aponta para a construção de uma arena especial. RELATO DOS CASOS LANA Lana tem 34 anos. é o 'nervoso'.Coelba). menos privilegiados.uma pronta resolução. Seus relatos são plenos de dramaticidade. Ela mesma exibe sinais de distinção: é branca e seu modo de falar demonstra u m nível de escolaridade superior à média do bairro. Sua experiência de aflição permeia-se de u m sentimento de proximidade da morte. aparelho de som e telefone. eu não fui. onde o poder sagrado circula. de pouco mais de um ano. não é porque eu num queira ir. vez ou outra entrecortados com exposições acerca da doutrina espírita. por isso. tenho um . Embora os vizinhos da rua também sejam mais favorecidos. certo? Mesmo quando o meu pai morreu. é porque eu chego lá e desmaio.. Lana não trabalha. Mora e m uma rua estreita. sua casa é prova de uma condição diferenciada: piso de cerâmica. é filha do atual companheiro. Sente-se efetivamente melhor situada na escala social que os demais moradores do bairro.. cortinas na janela. Apenas sua menina menor. enquanto alvo imediato das palavras e gestos proferidos. A mistura de vozes descompassadas cria uma atmosfera de tensão. são fruto de uniões anteriores. sofá e poltronas na sala. j á moças.. segundo ela mesma. Lana é bastante falante e narra c o m facilidade suas experiências de aflição e alívio p r o g r e s s i v o no espiritismo. Nas paredes. as outras. O problema de Lana. de casas de tijolos. cujo jargão ela parece dominar. vive com o marido . envolve-se totalmente o doente na batalha travada ao redor do seu corpo. Neste contexto. o próprio desenrolar do drama. mediante mudanças de comportamento. À noite. Como a rua. Lana tampouco se identifica c o m eles: são todos crentes e.que aparenta ser b e m mais velho e duas filhas.. seu discurso versa com freqüência sobre a ignorância ou falta de entendimento dos vizinhos de fora. tranqüilizantes que ela usou durante muito tempo. Você não tem ânimo pra trabalhar........ (. tá entendendo? Porqu'eu tinha aquela coisa comigo e aquele medo.... às vezes. segundo o qual todos os problemas por ela enfrentados ao longo da vida contribuíram bastante para o agravamento de seu 'nervoso'. Era por isso que eu sempre saía de mim. Nos momentos de maior desespero.. É todo dia. Meu irmão quase me interna... quando passava uma notícia que morreu alguém.. realizava-se uma série de exames.. de tanta agonia. você não tem nem vontade de fazer sexo.. entendeu? Muito mais fora de mim. aquilo me deixava muito mais nervosa. é aquela coisa ardendo assim... Os médicos a encaminhavam. apesar de muito se incomodar com a sonolência que lhe provocavam. para neurologistas e psiquiatras. diziam: "Cê sabe quem faleceu? Foi fulana de tal".. porque. "As vezes eu chegava no pronto socorro e saía correndo pelo corredor. essa pessoa olhava pra mim e aí eu dizia assim: "essa daí num vai durar quase nada aí".. eu num queria ouvir aquilo. tá entendendo? Ε pelo fato de minha facilidade de sentir. que não indicavam problema algum. (. você fica precisando daquela droga pra você sobreviver. como dizia assim: "você vai morrer agora!". eu corria e desligava o rádio e ficava me tremendo..) Então eu rui muito nervosa. Lana sempre procurava os atendimentos médicos de emergência. toda hora.. um som me buzinando aquelas coisas... você não tem ânimo pra conversar. ouvindo rádio. detesto a palavra morte. me ouvindo. às vezes. Os médicos dizia: 'essa mulher aí é doida. por causa daquilo... eu saía de mim. .. Prescreviamlhe medicamentos.) Eu sentia. tá? Eu sentia que naquele momento ali era meu fim. Você não vive sem aquele vício. eu só me sentia bem. Ε aí. o meu medo crescia muito mais. Acontecia sempre o que eu imaginava.. Você fica uma pessoa inútil..... eu mais me apavorava. gritando.. também isso causava esse pobrema. e aí... eu num falava cum meus filhos. Aquela coisa me agoniava.. e aí tira seu. então. tá entendendo? Detesto a palavra cemitério.. tira tudo. ansiedade. porque a droga tira essa vontade. um acontecimento com alguém. né? Embora não tenha encontrado alívio para seus problemas na medicina. Então eu lutava. passava por uma pessoa. Lana confere grande credibilidade ao argumento do psiquiatra.) Realmente é uma sensação horrível. Isto levava Lana a uma descrença nos médicos e a pensar na possibilidade de estar sofrendo de u m "problema espiritual". batendo o queixo.. fechada dentro do quarto. e.... enterro. eu achava que tinha que lutar pra não morrer. se o que eu pensava com os outros dava certo.grande.. (.. tem que ser internada'.. sabe? Eu sentia como se eu fosse morrer. aquele espírito ficava me vendo." Durante estes atendimentos. eu ficava o tempo todo dentro do quarto com a porta fechada. é aquele desespero... Novamente se realizavam exames que não indicavam problema algum. é aquelas vozes no ouvido. com a sensação de que estava morrendo... então eu pensava que comigo ia acontecer a mesma coisa.. eu ficava assim. Daí a pouco tempo. uma vez. seu lazer. coxinha. Eu fiz esse sacrifício. constitui uma das causas do seu problema de nervoso. cerveja. do filho que faleceu aos sete meses de idade). Quando de seu nascimento. tive quatro filho. e deixou dentro da minha casa. eu piorei bastante. Mas eu piorei mesmo.) Lá na Igreja Universal.. a cada dia que passa. foi depois que esse meu menino aí morreu (mostra a foto na parede. eles ficava apertando a cabeça da gente. Recorreu à ajuda tanto do candomblé quanto de igrejas pentecostais. tudo fedendo.) Se você já está. dizendo comigo que era o diabo. Ela derramou o sangue do bode em cima de mim. Comprei o bode. cheia de pobrema. j á exibindo então quatro dentes: .. Eu trabalhava de dia numa escola. desesperada. com dor de cabeça. como resultado do tratamento. e alguém começa a lhe chamar de satanás. Você sabe que. Tudo isso contribuiu pra eu me tomar uma pessoa nervosa.. que tinha um casamento bom. arrancou a cabeça do bode.. Aí foi que eu piorei mesmo. né? "Sai demônio! Sai demônio!". Conforme relata.. Ε aí eu comecei foi a me sentir mal. ela disse que não tava vendo nada nas cartas. mas afirma ter percebido. (. ainda. Eu fiquei pior.... né? Ε esses negócio de manifestar.. eu que tive que cuidar. (.. ia pra praia vender sonho. eu piorei bastante. nessas hora. certo? Ε não adiantou nada... Em vez de eu melhorar. matar um bode. Fiquei quase louca. Eu enlouqueci. u m agravamento do seu estado: Eu passei três dia lá na esteira.. Então eles. Em vez de melhorar.. não. 3 A maneira como Lana vivência o nervoso parece influenciar sua rejeição ou aceitação de determinada terapia. Lana diz ter-se sentado e dado risada. lavava roupa de ganho de noite e. pra acabar de completar. eu me senti mal. o fato de não utilizar este potencial. Aí mesmo foi que eu fiquei louca. Minha mãe teve 15 filho. água mineral.. entendeu? Ε depois.. nem sempre o amor fala mais alto. certo? A pulso? Lana acredita possuir u m poder de curar e fazer previsões. comecei a ter que tomar remédio todo dia. já doida.... Quando cheguei lá. e eu desesperada.. e aí fui procurar ela. refrigerante. não. os tratamento que eles fala é que vai expulsar o demônio. uma mulher disse que eu tinha que dar um bode. após os médicos haverem cortado o cordão umbilical. muito pior mesmo. Encontrou uma ricona aí. correndo. sua vida tem sido perpassada por toda uma série de acontecimentos que sinalizam a presença desse poder.Os problema todo que eu já tive na minha vida contribuiu muito pra meu nervoso.. no final de semana e feriado. e que tá amarrado. né? Eu tive que trabalhar feito uma louca pra poder criar esses quatro filho. que disse pra ele tomar conta da empresa dela.. Casei e pensei que era feliz. certo? (. colocando a língua.) Ela matou o bode e disse que tinha que derramar o sangue ali em cima de mim e... e a apertar sua cabeça e ficar querendo fazer você manifestar. Um dia meu marido saiu pra comprar um remédio e nunca mais voltou... e m sua opinião. Aí eu não fui me dando bem com isso.. os negócio.. prometeu carro e tudo.. achando que o mundo tá caindo na sua cabeça.. Eu achei que não tava ali o meu tratamento ainda. minha mãe disse que teve que me segurar.. daqui a pouco você. Certo? Eu . tá entendendo? A experiência de Lana permeia-se de um projeto de ser terapeuta. entendeu? Só que. Os choques. Associada ao seu potencial de cura encontra-se a experiência de 'choques'. quando eu nasci. Tem gente que vem a origem de uma só.. só que ela não cuidou...Os médicos saíram correndo na hora.. (. e m mais u m sinal desse poder: Eu tenho minha mediunidade que eu preciso trabalhar. não consegue se recordar de mais nada. fora do comum. modificar. Eu não.) Eu venho de uma origem de 21 entidades. no momento e m que se aproximam. você é outra pessoa.. Lana conta que. eles leva consigo as coisas negativa e deixa as positiva. Você já tomou um choque? Pois é a mesma coisa.. parecia que eu era um robô e tinham me ligado na tomada. assim diferentes. aparecem sempre que ela precisa ajudar alguém. Dois caboclos. sensações de. não ficou ninguém na sala... isso era pra minha mãe ter cuidado desde cedo. assim. Certo? Nunca me deixou e. uma força. quer dizer. e entrega a responsabilidade àquele espírito. Isso que aconteceu. vai me fazer mal. ou alguém tá algo.. como as outras pessoas que não nasce já assim. ocorrem e m conseqüência de não estar fazendo uso do seu poder para ajudar as pessoas. certo? Só que eu não consigo me lembrar o que foi que foi feito dessa coisa. e dá uma força diferente. nem nada que pudesse. De 21 entidades. daqui a pouco. é um choque mesmo. e só. colocar essa energia para fora. recebe. Você não fala mais igual. u m índio e u m africano. De um anjo-da-guarda. Aí você. isso é energia presa. a entidade toma conta do corpo da gente. porque senão. ajudar as outras pessoas. era um choque mesmo. você não é mais você. sente muita ansiedade. eu já vim de berço. seus filhos. Porque você sai de você. é apanhada assim pela aquela entidade. Quando eles vão embora. alguma coisa negativa. Ε quando você olha. Lana refere-se a inúmeros casos e m que deu provas de sua capacidade de curar.. com esses problemas.. como eu nasci. era de candomblé. Esse choque que eu sentia. sua casa. diz ela. Houve até mesmo u m período e m que fez "sessão de mesa branca" e m sua casa. só vivia fazendo macumba. Lhe pega assim. eu não precisava fazer a cabeça. Uma força energética.) Mas ele sempre deixa a sensação muito boa pra pessoa.. é pegada. aí que alguém pergunta: "Quem foi que contou a ela? Porque ela sabe isso tudo?" Porque isso? Porque lá naquele momento. Você está assim. que os outros vai dizer que você tava espiando a vida dos outros. né? Ε a gente passa a ouvir mensagens. de berço. Minha mãe era candomblezeira. fazer previsões importantes e ajudar outras pessoas a resolver problemas pessoais. Porque você começa a falar coisas. quer dizer que eu já nasci de cabeça feita.. quando partem. consistindo. Aí eu fiquei assim.. que ela sente no próprio corpo e para a qual encontra u m explicação no espiritismo. de um protetor.. Ali você sabe coisas. (. naquele momento. não comer alimentos 'pesados'. c o m q u e m conversa sobre seu problema. não relacionada c o m qualquer objeção ao que é proposto pelo espiritismo. a gente evolui de todos os jeitos. bairro de classe média. o choque representa 'energia acumulada' e a solução para o problema reside na utilização desta 'energia' na cura de pessoas doentes.. Ε ir aonde você quiser. Ε quando a gente se equili­ bra. atitudes que muitas vezes não consegue assumir. Melhora até nossa posição. E m sua interpretação da doutrina espírita.. a parte de dinheiro. por isso que eu passava pelo processo espiritual de. de você. a parte amorosa. E m u m desses encontros. o que considera como uma dificuldade sua. contíguo ao Nordeste. mas todo mundo melhora. certo? . tudo melhora.. A cura no espiritismo. para Lana. optou por permanecer apenas no Protetores Espirituais. Você consegue naquele momento sair. com fé. chega com a vida toda tumultuada. freqüenta sessões com o Irmão Paulo e encontra-se regularmente com u m a entrevistadora. ela considera necessário não ingerir bebida alcoólica. Lana participa do passe. Eu cheguei no centro dando choque. ela deveria conduzir-se de acordo c o m as prescrições da doutrina espírita. localizado no bairro. N a terapia espírita. todo mundo que freqüenta o centro consegue alcançar posição bem melhor na vida. muda. de muito grande.. tá entendendo? Cê muda mesmo. por ter muita energia.. Cê consegue tirar os pés do chão. Tal fato a tem impedido de concluir a terapia. na fronteira entre o Nordeste de Amaralina e a Pituba. e o Protetores Espirituais. segundo Lana. estar calma etc. então. arruma sua vida. u m pouco mais longe. não fica um lugar sobrando! No centro espírita. Mostra-se maravilhada não só c o m o grande número de pessoas que procuram o espiritismo... tal qual aprendida junto aos médiuns do centro. é algo capaz de curar qualquer pessoa com problemas: Quando você tá sentindo alguma coisa. logo no início de seu tratamento. por exemplo.. O espiritismo acena-lhe. Lana diz ter encontrado a solução para seus problemas. você toma um passe com fé. Isto exige uma disciplina que Lana diz faltar-lhe em alguns momentos.. Vários tipo de coisa.. Se você vê quanto carro que fica parado na porta do centro. Entidade essas que transmite vários tipo de energia. O passe. muito próximo à sua casa.. de por isso.. a entrevistadora sugeriu que Lana estava c o m o u m guarda-roupa desarrumado: para pôr as coisas em ordem. você fechou os olhos. comparece às palestras doutrinárias..venho de 21 entidades. parece ligar-se também à possibilidade de uma melhoria geral e m sua vida. Eu dava choque. Freqüentou dois centros diferentes: o Espíritos de Luz. com a possibilidade de tornar-se uma terapeuta espírita. Após algum tempo. Antes de ir ao centro. é você. mas também com a boa condição econômica dos freqüentadores desse centro. que você toma o passe. Alcancei o terceiro grau de evolução.. Todo mundo que chega no centro. de. ter dormido bem. . mostram-se bastante compreensivas com relação às atitudes agressivas de alguns dos que ali acorrem em busca de tratamento. são pessoas que num se deixam levar por qualquer coisa não. são pessoas educadas. Lana expressa tal noção ao ponderar sobre seu problema: Meu problema era na cabeça. este modelo de comportamento reflete u m ethos individualista característico das classes mais favorecidas. cada dia você tá renovando suas energias.... Ele já passa a. e quando a gente quer. em geral. Cê vê que a vida das pessoas do centro. aonde você tá sentindo as coisas. Então.. São pessoas que têm sempre uma palavra. têm sempre uma palavra amiga pra lhe dá. Os espíritos sabe tudo que você sente. por nada... renovando. ficando por algum tempo nesta posição. Ε quando a gente pára e pensa que.. Ε se todo dia você tomar. Lana participara de u m atendimento com o terapeuta e fora recomendada a deitarse sobre u m lençol branco assim que chegasse e m casa. a gente consegue". quando o médium tá dando um passe.. aí a gente começa a lutar pra ser independente. eu não tinha cabeça pra pensar em coisas boas. sentindo-se pesada. do nosso corpo e da nossa casa e do nossos filhos. C o m o j á lhe havia acontecido anteriormente. ela quer que você num chore. entendeu? Por nada [diz. renovando. o negativo já atingiu uma boa parte da nossa mente. Que você tem algum problema.. e elas consegue que você pare de chorar.... Se você chegar lá chorando.Porque o passe não precisa você pedir. Porque o passe é uma troca de energia e é uma maravilha. Eu pensava o tempo todo em coisas negativas. na atitude geral que exibem e m face da vida: as pessoas do centro falam baixo e devagar. você sai. O entusiasmo de Lana com o espiritismo sofreu certo abalo após alguns meses. com dor de cabeça.. E m seu relato. a energia no lugar certo. em tom mais elevado]. tudo que você precisa. apresentamse sempre calmas. após o atendimento de cura espiritual com Irmão Paulo. D e certo modo. não. No dia seguinte. você vai sair do pobrema.) Mas quando você sai da sala de passe. renovada. retornara à casa invadida por u m certo malestar. aponta o tratamento com Irmão Paulo como u m dos elementos marcantes neste processo de desencantamento c o m o centro espírita. ele já vai no lugar certo. era. e elas faz de tudo. Lana vê a doutrina refletida na postura dos espíritas... nos momentos difíceis da sua vida. e aí você vai conseguir fazer tudo o que você tem vontade.. então. fora ao centro conversar c o m sua entrevistadora sobre o ocorrido. centrado na idéia de um desenvolvimento pessoal rumo à independência. tá sempre disposta a lhe socorrer.... ao controle de si (e do corpo). num é nervosa.. porque ela diz: "você é dono de você mesmo. expressando uma certa tranqüilidade e serenidade e. são as pessoas que num . Certo? (.. ela não estava e Lana sentara- . pode ser o aquecimento do metal.. Aí é que é que a gente pode ver. tá? E n t ã o ele falou com. né? Isso não acontece muito. Cheia de energia positiva. com as coisas na mão e não conseguiu nada. tem a impressão de ter voado e de muita luminosidade. preocupações. que voltasse para casa. pois no Protetores Espirituais não poderia contar com aprovação ao seu tipo de mediunidade. M a s isso a gente precisava ter. No momento em que retoma..se. né? Ε a gente colocou toda a força que a gente tivesse. Além disso. Lana relata estar sendo muito boa para ela esta experiência. bastante: Foi incrível. toda força. com a força da mente eu quebrei o garfo. com as lágrimas nos olhos. as força dos fluidos ruins. cheio de luzes... então. a gente pode remover montanhas de um lado para o outro. . Com a força da mente. Lana diz que além de sentir muito calor. né? Ε depois dali me senti bem. naquele metal. um lugar... eu disse: "não.. partir em dois pedaços. Esta explicara-lhe o cerne do tratamento de Irmão Paulo: segundo ela. eu coloquei e ele disse "é um.. A gente tem que ter. que ele mandou largar a.. que me suspendia como o vento. Tava forte. aconselhara-lhe a procurar outro centro. realiza um trabalho em que pede os telespectadores que segurem nas mãos algum objeto de metal e tentem transferir para este objeto todos os problemas. né? Eu disse: " a g o r a é m i n h a vez também".. Quando voltei... em um dos bancos no pátio. seu objetivo era bloquear os guias de Lana. parti o garfo... Mas eu. energia negativa toda ali. né? Ε hoje ele disse que voltaria de novo.. me senti a própria. uma sensação de bem-estar a invade. fui parar no outro lugar. Em sua descrição. poderia reverter o processo. A idéia de ser capaz de curar-se a si própria mobilizou-a. vou contar". segundo o terapeuta. O gradativo afastamento do centro fez-se acompanhar pelo interesse crescente em um tratamento proposto por um paranormal. né? Ε aí. toda a minha energia ali. naquele momento. viu? Teve gente que ficou com. chorando.. com a força do pensamento. aconteceu com todo mundo não. comenta estar conseguindo entortar e até quebrar talheres. porque. que apresenta-se semanalmente em um programa de televisão. né? Porque não foi. eu aí fechei os olhos e aí. assim. né? Certo? Que boa j á estou. e joguei tudo o meu pensamento. junto c o m o sofá. No programa. tava corajosa.. força de vontade e ter força espiritual também. A mulher recomendara-lhe. enfim. Nossa! U m lugar bem claro. né? Eu tava muito chateada.. e aí eu consegui.. fui para bem longe de mim. mesmo. Contou-nos ter sido socorrida por uma mulher que sabia trabalhar no centro.. sua deformação ou até mesmo o seu rompimento... ajoelhada. naquele momento. Eu aí consegui. bastante força. agora dessa vez. negativo. mais próximo à linha da umbanda. e aí quando ele começou a contar. D e vez. sem dúvida. estava ótima. assim. orasse. O resultado. eu vou ficar boa"... porque eu voei aquele momento. com a força do pensamento. Aí eu saí de mim.. vou ficar melhor. Se assim fizesse.. reaparecem imagens que povoavam seus relatos da terapia espírita. tudo aquilo que os aflige. vou passar pra melhor. acendesse uma vela para seus guias e.. que ia quebrar. pedindo-lhes perdão. como uma água anda. Se eu num tomar o remédio regularmente. freqüentemente se queixa de viver na lama. atualmente. segundo seu irmão. . levou-a a uma casa de Candomblé. que a chuva invade quando intensa.. pela rua. da mesma idade. Atualmente. quando levou Mara ao hospital. Já tirei sangue de uma mocinha. Mara diz não gostar do sono que os remédios lhe provocam.. na boca. escura e fétida. e m uma pequena casa herdada da mãe. fazendo-a sentir-se inativa. É uma casa úmida. A infância de Mara e seus irmãos foi bastante difícil: tanto eles quanto a mãe foram vítimas de constante violência e abusos por parte do pai. como um 'parasita'. encarrega-se de cuidar dela e de Rosa. Embora Mara conte c o m vários irmãos e uma irmã na vizinhança. que também sofre de problemas mentais. José desconfia da interferência de causas espirituais: conta que. de fato. onde. situada e m u m subsolo que denomina de 'calabouço'. na imundície. Já internou-se e m hospitais psiquiátricos inúmeras vezes e. certa vez. sob os cuidados da mãe-de-santo. após breve consulta com o médico . e expressa o desejo de poder construir sua própria casa na laje batida sobre o teto do 'calabouço'. Mara dorme em um corredor. Inicialmente. José. não". submete-se a acompanhamento psiquiátrico no Centro de Saúde Mental. Mara descobriu-se médium e com Iemanjá por guia: "Acho que é Iemanjá né? Ε diz que essa. sofre de 'problemas de cabeça' há cerca de dez anos. imagino que a criança tá bulino em mim. esqueço de mim. conduziu sua irmã a várias agências religiosas... deixando o quarto para Rosa. Sente-se bastante incômoda neste espaço.. José. onde Mara permaneceu durante u m mês. apenas o mais velho. Além de responsabilizar-se pela administração dos medicamentos e pela alimentação das irmãs doentes.MARA Mara tem 31 anos e. recebe nova leva de remédios. talvez pelo fato de que Rosa. e eu sou dela (. as quais geralmente conduzem à decisão de internamento. Num pentio o cabelo.centrada quase inteiramente em questões sobre os efeitos e tolerância a medicação . É. o que culminou c o m a separação do casal. Mara reside c o m irmã Rosa. eu fico afetada por isso.) Diz que ninguém pode com ela". causados pela interrupção do uso de medicamentos. que faz companhia ao seu próprio filho. e m estado bastante grave. Mara descreve suas crises. Embora recorra a internamento durante as crises de Mara. j á falecida. que toma com regularidade. de aproximadamente oito anos. uma senhora que ali se encontrava acompanhando um parente. não tenha cuidado algum c o m a higiene. e onde se associou sua doença a u m "feitiço brabo". c o m o períodos de desleixo com a aparência e agressividade. parte da qual utilizou-se na construção da casa de u m dos seus irmãos. aí bato na criança. José e sua esposa também criam u m filho de Mara. pego uma criança. dei na boca. ela me guia. chamara-o à parte para dizer que tirasse Mara dali. pois seu problema era de outra ordem: "sua irmã não é louca. conforme diz. foi o choro mermo que tava preso.A estadia de Mara na casa da mãe-de-santo foi conflituosa: sentindo-se presa.) Eu ficava tensa. só tensa. que era espírita. ocorrendo logo após seu retomo de um longo período de internamento. (. me deu uma força. e tem cabelão (. Após a tentativa frustrada de tratamento no candomblé.. ela conta não ter podido chorar a morte materna: Ε eu me senti muito mal.. ficava tensa. porém não encontrando nem a cura nem .. muitas vezes entrou em confronto físico com quem tentava impedi-la de sair. mas depois voltava tudo assim..) Aí eu olhei pr'aquela santa. daqui a pouco pensaram que eu ia voltar de novo pro internato. falando por ela (. Mara passou a freqüentar. (. um entra-e-sai.. A imagem da mãe é presença constante na vida de Mara... eu tava precisando de nada. Eu fiquei nervosa pra sair de lá.. um fedor assim.. coisas que ela escuta. ou seja.. (.. a Igreja Universal do Reino de Deus. azuada. (. a mulher super-homem.. que constituiu. ninguém pode mermo não. menina. e por vezes é subitamente preenchida por seu espírito. sem dúvida. a voz dela através de mim". sob o efeito de forte medicação.. Pelo contrário totalmente. assim.) Comecei a ter a crise. eu nunca ti. É o que Mara chama de "manifestar" a mãe: "eu tava manifestando minha mãe direto (. essas coisa. Isso tudo me botava mais zoada ainda. da força do mar (.. Eu fui em cima da filha dela. que fala através de seu corpo. teria melhorado com as orações....) Eu ficava assim meio zonza. zoada de tambor. a que tem as força das águas. eu fui chorar com um mês dela falecida. nervosa menina.. o trabalho. que ela num permite.. nunca que eu arranjei aquela força assim. uma das imagens mais fortes que o candomblé lhe forneceu: disse que a santa tava em cima de mim. a santa. de tanto soro que eu tomei.) eu falando (. ela passou a comunicar-se por meio de sonhos com a mãe..) Num me sinto mal não. da. ela diz ter encontrado forças em Iemanjá..) é... é. Com o tempo. por conta própria. que estava saindo com o ex-namorado. soro e injeção que eu tomei. A situação de Mara agravou-se posteriormente com o falecimento da mãe. No confronto com sua rival. que se traduziu e m um momento extremamente difícil para ela. Eu parecia a mulher su.) e ninguém pode com ela.) Porque eu só via coisa ruim assim. onde. Mara descreve suas sensações e sentimentos durante esses momentos de manifestação da mãe: Só. Iemanjá. aí me deu uma força. muita gente..) é.. Brigou também com a mãe-de-santo e a filha. Dopada. eu me sinto muito bem.. as coisa eu lembrava tudo de novo (.. paralisada. sentia. foi.. Mara considera que o período na casa da mãe-de-santo teria sido negativo e agravado seus problemas: Do candomblé... ) Mandou me levar pra essa sala.. baixou em mim e tava muito nervosa. assim no meio.. É escuro. como uma mágica. (... com.. que Lana também freqüentava. A o voltar do internamento. vão fazendo trabalho. (.. o trabalho é esse.. que a levasse para u m centro espírita. Indagada sobre o que ocorre durante o passe.) Começa a. tem. Se ela visse uma rosa. como assim.) . Quando ela vai pro escuro... tinha um quarto fechado. Mara começou a rir e "manifestar" sua mãe. né? Isso é ajudar a me dar solução? Nunca! Aí eu m e senti completamente isolada nas Igreja.. fazer os trabalho assim na frente da pessoa. Após algum tempo de comparecimento à igreja.. ele fazia uma mímica. é por escolha própria. retornou à igreja. agora tem uma ene. porque só daí pode intervir na vida dos filhos: Eu fiz uma oração apelando por Jesus pra ela ir pro claro. que ela tava foi no escuro (. eles faz... por ocasião do passe. passar a mão pela frente assim..) É silencioso.. Assim..) Foi. a música. No primeiro dia.. né. Mara p o u c o depois entrou e m crise e foi mais u m a vez internada. ela ia piorar pra ela. onde ela tava.. na frente assim da pessoa.. o lugar é escuro. a mãe de Mara pediu a seu irmão. lá onde fica as criança." E m uma das suas manifestações. explica: Fazem trabalho também. Se for no coração.) Uma mímica. a família que ela deixou..) Ela tava foi no escuro. passando a mão assim pela frente da pessoa.) Na escuridão. José. ela tava muito nervosa..e tem a musi. distraindo comigo.. Estranhamente. feito como se fosse no tempo daquele do. de um mágico. José seguiu seus conselhos e a encaminhou para o centro Espíritos de Luz. (. a né. Mara insiste em afirmar que sua mãe é boa e habita o céu. ela procura saber ali sobre a família. Nos cultos. é dar." Apesar dessas palavras. se ela está no escuro. Mara passou a receber passes regularmente no centro.. tem uma lâmpada azulzinha..) e queria todo mundo ficar no escuro. (. com ener... preocupada comigo. que bota bem baixinha. mas ela num tá no claro porque ela num quis. na testa. Sustenta o argumento de que.. fazendo-a parar de freqüentar a igreja: " A í mandaram pra esse lugar de menino. . sem ener. decretaram-na curada e aconselharam-na a deixar a medicação. né.. né? (. mas espiritual. mandou uma obreira ficar lá conversando comigo. já passou até na televisão. fica assim ao. o espírito falou de rosas e escuridão: "Falei que n u m queria nada sobre rosas (. Bastante impressionado c o m o conteúdo da manifestação e convencido há algum tempo de que o problema da irmã não seria orgânico.a explicação para a sua doença. (... na cabeça... dizendo sentir-se bastante leve após as sessões. (. Seguindo as instruções.) Quando ela tava no escuro.... o que a deixou muito aborrecida. é mexendo assim. passaram a conduzi-la à sala reservada às crianças.. fazem trabalho assim. (.. Tampouco encontrou aceitação para as manifestações de sua mãe.. a seu ver a verdadeira causa de sua doença fora descoberta no centro: "Descobriram né. um espírito do morto por vingança". eu aceita A s repetidas manifestações de Mara durante as sessões fizeram que os médiuns decidissem administrar-lhe o passe individualmente.. porque ele me conhecia muito bem. Mara e seu irmão José. O problema de Mara foi desde logo interpretado como u m caso para a sessão mediúnica. argumentando que a manutenção de vínculos c o m pessoas mortas prejudica tanto a vida dos vivos. Mara tivera u m contato próximo com tal velho em vida. naturalmente. Mara não acata esta restrição: Mas ela num me atrapalha não.) Ε [o espirito da mãe] disse que um lado de mim tá faltando né.s e outras v e z e s . eu escuto minha mãe falar...) Mas num obedeço eles [as pessoas do centro] não..... quanto a evolução dos espíritos. né? Sonhava ele com a boca aberta. 4 . que ela identificou como o pai do seu ex-namorado e ao qual se refere como "o velho".. eu via assim na minha frente o vulto dele..) É ele [o velho]. e m obediência a ordens de Jesus. Embora os médiuns não tenham apontado a identidade do espírito obsessor ou mesmo sabido que. no início da minha. era nas costa. para Mara. Eu só sonhava no escuro e via um vulto. ni mim.... Diz tam­ b é m que via o seu vulto. de modo a não perturbar os demais participantes/clientes. com a boca aberta. que acompanha de perto suas manifestações. bastante agressivo. Ε u m morto. não incentivaram Mara a sustentar esta comunicação com sua mãe. é quando eu tô assim pra dormir (. num corre muito sangue na minha cabeça. combinando u m modelo material ou orgânico . num é pobrema de cabeça que eu tenho ni mim... que minha doença n u m é doença mental.) Foi. porém. Além de incorporar sua mãe nas mais variadas e impróprias situações. O espírito disse estar nela encostado por vingança. san. participou do seu enterro e conta que sonhava muito c o m ele morto. Sonhava com ele.e m que o problema possui u m substrato orgânico e situa-se em u m determinado lugar do corpo . tratava-se de alguém b e m conhecido. Os médiuns do centro.a u m modelo de causalidade espiritual: Tenho problema de faltando líquido na cabeça. Mara passou a manifestar um outro espírito. justificadas pelo espírito como tentativas de ajudar à filha doente. Na primeira vez.. por ela não ter ficado com seu filho.. (.. Quando num era na minha frente. (. Ε sonhava.. consideram a obsessão desse espírito como a causa de sua doença. É interessante o modo como Mara concebe a interferência do espírito na origem de seu problema.A s m a n i f e s t a ç õ e s d e sua m ã e n o centro r e p e t i r a m . vulto na minha frente.. (. do lance na cabeça. quando ela baixa assim em mim. da minha aluci. ele penetrou na. ele passava assim.) Num é todo dia e eu me sinto bem com ela (. a mesma coisa quando ele morreu. . (. tenha a gentileza de ir embora. bruto. a não ser. por vezes. em minha matéria. eu tenho. Presença constante nas narrativas de Mara...) É.. de Mara e mesmo dos representantes da religião estabelecida. no meu sentimento sou eu. né. me. o espírito é muito bom. que está no céu e obedece às ordens de Jesus.) é que eu mando em meu cor. na minha alma sou eu.. radiando assim. de... mais especificamente.Mara descreve as manifestações do velho através do seu corpo como extremamente incômodas. Ele roncano. quem manda em meu. e m oposição à sua mãe. (. Mara seguiu vivenciando o que para ela constituíam duas manifestações b e m distintas: os espíritos de sua mãe e do velho. C o m o Lana. (. todo brabo. eu tossia muito. pelo. . e m oposição às manifestações da mãe.. dizeno assim: "o senhor é muito bom. de ir embora. da mãe .. eu quero que ele se destrua. Jesus está acima de todos: do velho maléfico. Conforme a tradição do catolicismo popular. os meu sentimen. E m uma das sessões por nós presenciadas... Quando a alma né. lá no infinito... manda em mim.. agora o senhor vai embora". se Deus quiser.. do que Deus. O pessoal lá acalmando o espírito. todo grosso.. no centro espírita que ele era do deserto. Este último representa o mal que se está 'queimando no deserto'. protege e.."quem manda no nosso corpo somos nós". Ele disse até ao pessoal lá na. Mara continua 'deixando' seu corpo ser invadido pelo espírito de sua mãe e não quer abrir mão dessa experiência: Mas já me ensinaram pra eu dizer que eu mando em mim.) Eu disse que Jesus vai destruir ele. é Jesus quem ordena. me atrapalhando. os médiuns falavam a Mara que se despregasse do espírito de sua mãe e assumisse o controle do seu corpo: "abaixo de D e u s " .) Aí tossia. Mara veio a vislumbrar uma luta para destruir o velho c o m o apoio de sua mãe: Eu sei que eu tava escutando a voz dele. Apesar de repetir e m alguns momentos tal discurso. me cansano.. em ajustar-se ao modelo de relação com os espíritos preconizado pelos médiuns. né..... até castiga sua mãe quando esta apresenta algum comportamento faltoso (certa vez a proibiu de manifestar-se e m Mara porque havia mentido e xingado).. pra destruir.diziam-lhe . que tá se queimando lá onde ele tá. no meu ser. (.. quem manda em meu corpo sou eu. seguidas de tosse e dor na garganta. aí ele ba.espírito bom... pelo que me fez. Mara encontrou dificuldades em adaptar-se ao ethos espírita e.. meu né. Durante todo o período e m que permaneceu no espiritismo. tenha.. abaixe mais do que Deus. me explicam pra os mortos num ficar tomano conta de mim. (. e mando nos meu.. pra a gente responder junto com ele a palavra (... Vivendo e m seu corpo uma tensão bastante nítida entre o b e m e o mal. que ninguém mais.. debaixo de Deus sou eu.. até ele me deixar em paz.. mas ainda marcado de falhas humanas . em meu.) Fala né.) o velho se lamentando dizendo que o corpo dele tá se sentindo queimando. ele dizeno que tá se assando.. do deserto. lá.. pois naquele ambiente "tem muito morto". Decorrido algum tempo. espírito do b e m . a seu ver. a oração é forte. como parecia quase reverter a ordem natural das coisas. apresentou-o à família e vislumbrou a possibilidade de uma união conjugal. de onde veio. de uma forma que lhe soava de certa maneira intolerante. Adveio-lhe uma nova crise. Entretanto. ela m e s m a admitia faltar muito às sessões e chegar atrasada.. eu junto com minha mãe. (. já tinha dado um fim. a sair.. sente o mal batendo e m sua cabeça. u m relacionamento que parecia promissor.. minha mãe tá no céu. de muita dedicação para chegar ao cargo. quando ora. diz precisar. do inferno . afirmando que o espírito a incomoda . ele já disse daonde ele era.. as pessoas da igreja são muito mais fiéis que as do centro. explicavam-lhe c o m gentileza que necessitava deixar de vez o m u n d o dos vivos. querendo sair. Do deserto ninguém pode.u m benigno. Ambicionando tornar-se obreira na igreja. Relata que. maligno . viu? Eu acho que se eu tivesse morrido. Tratavam o velho c o m cordialidade. c o m mágoa.. segundo seu ponto de vista. né? Embora Mara afirmasse sentir-se melhor no espiritismo.) É. pois o rapaz terminou-o. quando melhor. José. mandando-a ir embora. Mara passou a freqüentar a igreja diariamente e se considerou curada. no entanto. porque ela anda pela terra um pouco. o outro.só encontrava no centro palavras amenas: falavam-lhe c o m calma e cautela. acho que aquele velho num existia lá no outro mundo. com u m crente. deixou de comparecer à mediúnica. formam-se então caroços parecidos com espinhas.pois era. onde manifestou o espírito do velho que. Iniciado. Segundo Mara. Mara deixou de tomar os remédios prescritos pelo médico. que era bruto e mau.. mas esta foi c o n t o r n a d a s e m ser necessário o i n t e r n a m e n t o . como uma senhora do centro tratava sua m ã e c o m rudeza. afinal. vagando um pouco. alegando estar desempregado. ela voltou a freqüentar a Universal e diz que não irá mais ao centro "nem amarrada". ao passo que perante o velho. simplesmente "afrouxava". Na igreja. de u m a abordagem agressiva . q u e d e s a p r o v a o envolvimento de Mara na Igreja Universal. O relacionamento. quando ia. não durou muito. exortavam também sua mãe. porém. levou a irmã de volta ao centro durante o período da crise. enfim recebeu u m tratamento adequado: o pastor chama-o de demônio. Entretanto. ela formula uma nova leitura para seu problema. Mara conta. pois não podia concordar com a abordagem ali adotada c o m relação aos dois espíritos que manifesta. ela aceitou o convite de uma vizinha crente e voltou a freqüentar a Igreja Universal do Reino de Deus. xinga-o e ordena que volte para o inferno. chamando-o de irmão. Seu discurso já revela influência do modelo pentecostal. diz Mara. A prática espírita de doutrinação dos espíritos obsessores não só fazia desaparecer o que para ela eram nítidas diferenças entre os espíritos da mãe e do velho . Merecedor. sua assiduidade no centro decresceu. mas dei o endere.Eu também sou assim. Por incentivo do pastor. Insatisfeita c o m o espiritismo. é finalmente ordenada em uma totalidade significativa. imagem que lhe permite conviver com o conflito entre a vontade de sua mãe de continuar manifestando-se e a ordem da igreja de expulsar. com quem namorava. O que essas trajetórias trazem à reflexão não é tanto u m exemplo do que pode ocorrer. sobretudo. Por mais que tente. de modo que recebeu tratamento semelhante àquele reservado ao velho: foi expulsa e chamada de exu. que já a caracterizava e m vida. os casos deixam claro que só se pode falar de significação ou mesmo ressignificação da experiência se estendermos o sentido desse termo para além de uma mudança de representações ou do aprendizado (intelectual) de u m novo modo de representar a doença. apenas para saber quando sua filha estaria curada. Em primeiro lugar. assim. Mara sabe não haver lugar no ritual para essa imagem que cultiva e que a possui. Alega comunicar-se atualmente com o ex-namorado. Neste contexto. para explicar ao pastor. e. ora proibindo-a de fazê-lo em razão do hábito. E m seus relatos. Como no centro. demostram que a idéia de que uma experiência adquire significação pode conduzir a alguns mal-entendidos. mas uma ilustração do fato de que a vida nunca se enquadra perfeitamente nos contextos de significado elaborados para explicá-la. desprovida de sentido. de ajustar- . mais uma vez recorre à imagem do Jesus poderoso e mediador. N o presente. Jesus aparece ora autorizando a mãe a seguir manifestando-se. a convivência de ambigüidades. As mudanças que se insinuam no significado das experiências de Lana e Mara expressam.porque o filho do velho. IMAGENS Ε A TRANSFORMAÇÃO DA EXPERIÊNCIA As histórias de Lana e Mara convidam-nos a elaborar o sentido que se atribui ao termo 'significação da experiência'. elucidam. a mãe de sua vida definitivamente. Mara não adere ao modelo pentecostal sem conflitos. indefinições e mesmo contradefinições. se com isso compreeendemos u m processo inequívoco e j á concluído. como qualquer outro espírito ruim. uma compreensão do contexto de aflição que corresponde menos a uma nova apreensão intelectual desse contexto do que a um novo modo de imaginá-lo. fez um trabalho contra sua pessoa. Mara praticamente não manifesta mais sua mãe: diz que puseram-na no céu errado e que está agora mais distante. que viera com boas intenções. que é vivo. M e s m o continuando a freqüentar a igreja. E m segundo lugar. em meio a um turbilhão de gritos e orações. mas diz que a comunicação se processa por telepatia. quando se tem uma adesão religiosa incompleta. e sua superposição aos novos significados e identidades propostos no ritual. Mara relata o esforço inútil de sua mãe. em termos de tratamento. de xingar e mentir. também não encontra na igreja apoio para suas comunicações com a mãe. As trajetórias de Lana e Mara na religião não descrevem um processo desse tipo. pelo qual uma experiência disforme. antes. manifestando-se durante u m culto. assim. e dizer que Lana adiciona elementos de sua vida à imagem é ainda uma descri¬ . Interpretar a imagem é encontrar sua abertura para o futuro. Esta imagem produz sobre Lana um forte impacto.. u m a sucessão de i m a g e n s ou e s b o ç o s sobre u m fundo sempre móvel de indeterminação. melhora ou piora . transportada subitamente para u m quadro que não apenas representa sua vida. Esse ponto nos conduz diretamente ao papel das imagens na elaboração de projetos. recolocando-o conforme a ótica de uma perspectiva futura (que é o interpretante do signo): oferece. e m u i t a s v e z e s redesenhados. apresentando elementos da doutrina espírita como passos. pois afinal. o projeto não é dotado da clareza que lhe atribuímos uma vez c o n c l u í d a a ação: é. antes. mas não porque foi capaz de decodificá-la. M a s e m que consiste de fato essa compreensão? Lana não capta a imagem que lhe oferecem no centro apenas como uma analogia a desvelar intelectualmente. Seu sucesso depende. vê-se envolvida na imagem. preenchendo o esboço sugerido pela terapeuta. t ê m s e u s c o n t o r n o s p r e e n c h i d o s . na configuração das experiências .de doença. mas é sua vida. Seria correto dizer que Lana compreendeu a imagem proposta no centro. um guarda-roupa desarrumado é fundamentalmente u m guarda-roupa a arramar. não apenas descreve o seu problema.interpretá-las não é desvendar esses significados . pode-se dizer que a imagem (signo) refere-se ao problema de Lana (seu objeto). busca uma confluência entre o projeto individual de Lana e o ethos espírita. da imaginação. que nem sempre corresponde a u m encadeamento de proposições abstratas. nem tampouco porque logrou acrescentar-lhe algo. senão a uma série de imagens vag a s . A terapeuta esforça-se por conduzir esse processo de imaginação. de que Lana compreenda a imagem que lhe apresenta. Compreender suas trajetórias religiosas exige uma reflexão sobre o papel das imagens. N o projeto desenha-se u m esboço de futuro. Imagens não escondem significados ocultos . Nos relatos de Lana e Mara encontramos vários exemplos do processo de imaginação que se conduz no interior de instituições religiosas. como u m esboço a ser gradativamente preenchido. Seguindo o modelo de Peirce. uma formulação que contempla à distância para compreender. É assim que se trabalha a imagem do guarda-roupa desarrumado no diálogo entre Lana e a terapeuta espírita. no curso da ação. conversão. mas especialmente por haver-se identificado ou 'sintonizado' com a imagem.que vivenciam.e transcendê-lo . Quando elaborado inicialmente e no processo mesmo de sua realização. primordialmente. q u e se e l a b o r a m . ou antes. decom¬ pondo-a e m suas unidades mínimas de sentido. como também aponta no sentido de uma solução. Lana menciona com bastante ênfase uma conversa com a entrevistadora do centro espírita (etapa prescrita do tratamento). antes. que é preciso entender: primeiramente. elementos para que se esboce com maior clareza um projeto de cura. para que Lana livre-se da desordem e m que se encontra sua vida.pela elaboração e/ou desenvolvimento de imagens. em que esta descreve seu estado mediante a imagem de u m guarda-roupa desarrumado.se . A compreensão aqui consiste.volta-se para o objeto imediato (aquele diretamente representado no signo) que é a oração proferida. u m senso de relaxamento corporal ou u m estado de calma. O mesmo sucede-se c o m Lana.e de luminosidade. imaginar é u m engajamento sensorial que neste caso envolve. a . A imagem da energia (choque) é antes tátil que visual. envolvendo uma experiência encarnada da idéia abstrata de energia: o choque (imagem) é a energia que nos fere quando "metemos o dedo em uma tomada". pode-se dizer que. neste caso. sobretudo. traduz-se em uma sensação de leveza . também o olfato (o cheiro dos caroços que rompem no rosto). O apelo que o passe exerce sobre Mara funda-se e m parte sobre essa imagem. É o caso igualmente dos caroços que Mara sente brotar em seu rosto nos rituais de cura operados na Igreja Universal: a imagem é tátil. a energia acumulada que ela identifica como elemento causador de sua aflição é um choque que sente e m algumas sessões espíritas ou quando morre alguém conhecido. M a s não se pode resumir a experiência de M a r a à simples visualização da passista-como-mágico.de "voar como o vento" . desenvolve-se u m desenlace para a situação-problema apresentada (seu interpretante): os caroços que se rompem são d e fato o mal q u e está sendo expelido. Retomando o esquema de Peirce. Da mesma forma. A imagem funciona como uma ponte entre um conceito geral da religião e uma experiência bastante cotidiana. N o caso de Lana. ou quando assiste ao programa televisivo do terapeuta. no exemplo de Mara. o movimento das mãos efetuado pela passista e m torno do seu corpo a transporta para o mundo da mágica: ela vê a passista c o m o u m mágico que produz outras realidades descrevendo círculos no ar c o m as m ã o s .não sentir mais os pés no chão constitui para ela uma experiência de fato encarnada. Apenas considerando a imaginação enquanto ato que engaja os sentidos é que se pode entender as experiências que Lana descreve valendo-se do conceito de energia. Por fim. Lana está apenas utilizando uma analogia para expressar um estado de bem-estar psicológico significaria esquecer que . N o caso de Mara. A energia positiva que sente no passe.caroços que brotam na face . Supor que. e refere-se ao objeto dinâmico (para o qual o signo aponta indiretamente. e m um engajamento ativo no mundo da imagem. além da visão. por sua vez. As experiências do passe que Lana e Mara vivenciam no centro espírita nos trazem outro exemplo interessante da produção de imagens e m contextos rituais. O passe a renova porque a toma leve. tal c o m o descrito pela própria Mara.conforme se evidencia e m sua narrativa . é sentir a energia na pele. sem jamais poder esgotar) que é a experiência de doença. a imagem/signo . que relata sair de si mesma durante o passe. mas o tato arrasta consigo a visão e. e m q u e j á n ã o se observa u m papel tão direto do terapeuta na condução do processo de imaginação. idéia-chave da doutrina espírita que ela parece ter efetivamente incorporado à sua vida cotidiana. quem sabe.ção muito pobre de u m ato de síntese (imagem-ato na concepção sartriana) que implica u m situar-se no universo da imagem apresentada. eu sou dela". dentro dos planos de Lana. Essa identidade de certo modo frágil e temporária fez de Mara uma "mulher super-homem". ao tratar dos casos de imitação.. como é o caso da manifestação da mãe.tem como objeto imediato u m conceito ainda vago ou abstrato de energia aprendido no espiritismo. senão de uma experiência de alteridade radical. como na manifestação do velho. que parece demandar de sua pessoa justamente tais qualidades. temos as imagens da mãe e do velho que Mara vivência c o m certa freqüência em seu cotidiano. Sartre descreve.no sentido de situar-se ativamente neles .. interessantemente. c o m quem "ninguém pode". como ela descreve. e ao qual podemos nos referir mediante o conceito de 'modo somático de atenção' desenvolvido por Csordas (1993): uma maneira de atenção corporal a certas situações e/ou pessoas. sua experiência de aflição. quanto u m sinal. e como objeto dinâmico. Talvez ainda se possa identificar mais u m interpretante nesse caso. ou total deslocamento para o domínio da imagem. ao invés de uma anulação de Mara no seu universo. o que pode assumir tanto contornos positivos. É como se o corpo se . de que algo está para acontecer. como possessão.. A história de Mara caracteriza-se por processos imaginativos desse tipo. parece produzir u m estado híbrido. pode-se supor que a inserção de Lana e m u m universo religioso afro-espírita (não necessariamente e m uma instituição religiosa) tê-la-ia conduzido a desenvolver experiências corporais que lhe permitem compreender determinados contextos . U m tanto distintas dessa experiência. já não parece apropriado falar e m formação de uma identidade híbrida (entre o sujeito e a imagem/objeto). ora como de outro. Elaborando essa hipótese. e m que Mara experimenta o corpo ora como seu. Nesses dois casos. E m uma situação de conflito. com quem Mara dialoga. M a r a retém e reelabora alguns traços dessa imagem genérica que admira: Iemanjá-para-Mara é a força do mar. a Iemanjá admirada toma-se também a Iemanjá vivida: Mara então se descobre Iemanjá c o m toda sua força. a santa do "cabelão" solto (tamb é m ele signo da força bruta das águas). quanto negativos. que. A incorporação da imagem caracteriza-se aqui por uma certa tensão entre ser o mesmo e ser o outro. porém. O candomblé apresenta-lhe a imagem de Iemanjá como seu orixá: "diz que ela m e guia.imagem/signo . A imagem inscreve-se no corpo .antes mesmo de interpretá-los e m uma dimensão intelectual. A sensação do choque seria justamente uma dessas experiências corporais adquiridas. e m que signo e objeto ameaçam fundir-se e m uma nova identidade: 'Mara-com-Iemanjá' (seu interpretante). O interpretante é tanto uma nova dimensão vivida do conceito (energia acumulada como causa do seu nervoso). correspondendo ao que Peirce c h a m a de interpretante lógico (um hábito suscitado pelo signo). O engajamento do corpo nos processos de imaginação é algumas vezes vivido c o m o u m engajamento total da pessoa. Imaginar é.o choque . uma fusão (ou quase) entre imagem e self. então. incorporar a realidade da imagem.é aqui uma imagem corporal de força e enfrentamento . demanda que abdique de manifestar sua mãe. produzidas com base e m u m estoque anterior de conhecimentos e experiências acumuladas. no seu caso. Neste ponto. por meio dos encontros e conflitos que continuamente envolvem Mara. arranca-se a imagem de sua existência enquanto signo para reclamar sua realidade ou. nem no centro espírita n e m na Igreja Universal. porém continua vivenciando o poder de sua energia ao assistir o programa de Urandir. os pentecostais não pregam u m controle individual sobre o corpo. a significação termina por devorar o signo.do que o individualismo embutido e m tal mensagem.tornasse palco do encontro entre dois seres: assim é que Mara escuta e responde as palavras do velho e da mãe. Mara apresenta grande dificuldade e m ajustar-se ao modelo de autocontrole pregado pelos médiuns. Se as três imagens incorporadas por Mara convergem para sínteses próprias. quanto à sua ancoragem e m contextos institucionais. diferem. p o r t a n t o da i g r e j a q u e O r e p r e s e n t a ) . A manifestação de Iemanjá parece. haviam-na ajudado a curar-se.talvez se possa dizer. ao tratar da possessão.legitimam-se no centro. E n t r e t a n t o . a manifestação da mãe falecida ou do velho não apresenta o mesmo enraizamento institucional. mas uma entrega radical e súbita do corpo e da vontade ao controle de Deus (e. Também Lana sofre dificuldade semelhante: o controle de si implicava o bloqueio dos guias que. todavia. sua mãe e o velho oriente-se pelo conhecimento que ela tem acerca de cada u m desses 'objetos'. Lana reage a tal concepção. a imagem recria uma história passada. o qual. afastando-se do espiritismo. a noção de um 'eu' bem demarcado sob o comando de uma vontade una que é a razão. a ser paulatinamente assumido como sinal de independência e evolução. N o centro espírita. no passado. a princípio. é o sentimento que motiva e permite que se complete a síntese imaginativa. sua forte ligação afetiva c o m a mãe e os sentimentos de temor e suspeita suscitados pelo velho põem em curso. as imagens que Mara vive. ao universo imaginário das classes trabalhadoras brasileiras . parafraseando Merleau-Ponty (1994:248). A admiração nutrida pelo orixá genérico. o papel da emoção na construção da imagem vivida mostra-se fundamental. que não encontram legitimação. A o passo que a incorporação de Iemanjá constituiu uma experiência aprendida na religião. constituindo o que Stoller (1997). Diferentemente dos médiuns espíritas. mantém essa história e m curso. ser aceita no terreiro freqüentado por Mara (é u m conflito pessoal com a mãe-de-santo que conduz à ruptura do seu vínculo com o candomblé).imagens que traz consigo de uma história passada . ao contrário das incorporações da mãe falecida e do velho. Nada mais estranho ao universo imaginário das duas . da qual Mara foi protagonista. Embora a identificação entre Mara e as figuras de Iemanjá. e m b o r a o m u n d o d o . Tampouco os guias de Lana . e e m larga medida sustentam. Mara volta-se para a Igreja Universal. partindo mesmo do habitus formado no interior desta. Construída no corpo. sua mãe e o velho. Mais importante ainda. chama d e memória encarnada. Nesse processo. pessoais. Neste sentido. ao se analisar os resultados alcançados nas performances que compõem um tratamento religioso. as experiências frustradas de Mara e mesmo de Lana nos tratamentos religiosos em que se envolveram podem ser compreendidas à luz dessas considerações: ingressando em determinados contextos religiosos de cura. pelas quais seus criadores adquirem u m senso encarnado da situação da doença e de seus eventuais desdobramentos. Imagens podem ser e são freqüentemente produzidas fora de um contexto institucional de tratamento. mais especificamente. como sínteses próprias. dos rituais. Chamam a atenção para o fato de que não se pode assumir de antemão que o desenrolar de tais processos enquadre-se perfeitamente no contexto do ritual de cura. as imagens elaboradas e trazidas pelos doentes para determinada instituição de cura podem ser mais sincréticas e multifacetadas do que provavelmente gostariam quer terapeutas. alimentada por um contexto mais amplo de experiência. tampouco oferece qualquer chance para uma aceitação e reconhecimento do caráter particular e benéfico das manifestações de sua mãe. e até mesmo prover. que caracteriza a experiência do sagrado de amplos setores das classes populares brasileiras. apenas estados confusos e caóticos caracterizassem o eventual cliente. Se o que observamos em um ritual de cura não consiste na operação de uma estrutura simbólica inconsciente. e que tanto alimenta quanto é. CONCLUSÃO As experiências conflituosas vividas por Mara e Lana no âmbito do pentecostalismo e espiritismo colocam uma questão bastante importante no que concerne aos processos de imaginação desenvolvidos em contextos religiosos. quer antropólogos. tomada como um mecanismo quase independente dos atores. este ponto reveste-se de uma significação especial: remetendo a uma trajetória de contato com distintos universos religiosos. elas não esperavam simplesmente 'preencher-se' de imagens tiradas do repertório oficial da institui¬ . Em parte. Assim. deve-se considerar sua abertura para dialogar com. Isto significa que é preciso reformular nossa abordagem das práticas religiosas de cura e. no qual modela-se a imaginação do doente/participante sob o efeito da encenação. persuasão e negociação que é sempre incerta e imprevisível quanto a seu desenlace. como forma por excelência em que se procedem os tratamentos religiosos. ela mesma. como se antes de buscar tratamento em uma instituição religiosa. tampouco consiste em um processo unidirecional.pentecostalismo seja mais próximo de Mara que o universo individualista do espiritismo kardecista. funcionam propriamente como elemento orientador das escolhas terapêuticas. Encontra-se em jogo nas performances uma dinâmica de diálogo. Considerando o intenso trânsito entre diferentes agências religiosas. uma certa legitimidade dos modos de imaginação que definem o ponto de vista encarnado do doente. expressa u m projeto mais amplo de sinalizar a diferença com relação aos habitantes pobres do bairro. mas sobretudo porque tais caminhos contradizem o projeto (e as imagens a ele vinculadas) que ela delineou c o m base neste estoque adquirido. é igualmente necessário trilhar o caminho oposto. questões de poder e legitimação. Lana vive em u m nicho de prosperidade no interior do Nordeste e está sempre a demarcar sua distinção. ir além do domínio estreito do ritual e m direção aos processos sociais mediante os quais as imagens são elaboradas. toma-se claro que. Lana esperara que sua mediunidade fosse reconhecida no centro. cabe notar que u m exame das histórias de Lana e Mara evidencia o papel central dos processos de imaginação na configuração e reconfiguração de suas experiências no âmbito das agências religiosas com que se envolveram. dos quais a doutrina espírita se distancia para afirmar sua superioridade evolutiva (e de classe). remodelam e mantêm e m contextos de interação. entretanto. isto é. a princípio. porque. sobre os quais aqueles se erguem. ela vê legitimado por outros sujeitos significativos com quem convive: Mara-que-incorpora-a-mãe é u m projeto de identidade que encontra certa medida de aceitação e reforço entre seus familiares. o que inclui tratar também de interesses e projetos. queriam também ver legitimados certos modos de compreender ou imaginar a situação da aflição. negociadas e legitimadas ou deslegitimadas. Enfim.ção. são alheios ao estoque de conhecimento que ela adquiriu ao longo de uma trajetória típica de classe trabalhadora urbana. Entretanto. Por u m lado. Há u m a dimensão intersubjetiva subjacente a todo processo de imaginação: imagens sempre se produzem. Mara nutrira esperanças de que o espírito de sua mãe pudesse ser reconhecido e cultivado no centro espírita . Tamb é m ela encontra certa resistência dos médiuns. cuja abordagem terapêutica parece querer 'bloquear' seus guias. se para entender-se o papel de uma experiência religiosa na transformação dos modos de compreender e lidar com a aflição é preciso 'descer' ao nível dos processos subjetivos de imaginação. Se o centro de classe média e m que se insere acena-lhe c o m uma possibilidade a mais de viver essa distinção. ao menos parcialmente. por serem vinculados demais ao mundo dos caboclos e da umbanda. ela já havia dado sessão de mesa branca. Mara não logrou identificar-se com os caminhos de imaginação que lhe foram sugeridos no centro não apenas porque os temas do autocontrole e autocentramento. Não há lugar no centro para aceitação dos guias de Lana. Falar da produção de imagens e m terapias religiosas requer. na medida que não oferece espaço para o reconhecimento da sua pretensão à posse legítima de poder sagrado.o que. afinal. é necessário produzir uma descrição densa dos mo¬ . no decorrer da discussão dessas duas histórias. u m outro de seus projetos. parecera perfeitamente compatível c o m a cosmologia do culto. e que. frustra. A adesão d e Lana ao tratamento espírita. que se dê conta de uma dinâmica relacionai. que j á haviam incorporado à sua maneira de vivenciá-la. portanto. por sua vez. 1998). NOTAS 1 Em sua análise dos modos e usos da imagem entre católicos pentecostais nos Estados Unidos. assim como é por meu corpo que percebo as 'coisas'" (1994:252-253). mesmo porque ela o funda: é preciso reconhecer como irredutível o movimento pelo qual me empresto ao espetáculo. 1996. me junto a ele em um tipo de reconhecimento cego que precede a definição e elaboração intelectual do sentido. analisado no capítulo 7. De fato. Hita.) É por meu corpo que compreendo o outro. julgamos que o modelo de Peirce.que está apoiada no corpo. ambas as dimensões da investigação interligam-se intimamente. Peirce e Sartre oferecem respectivamente os modelos de abordagem para cada uma dessas dimensões da imagem. por enfatizar o processo contínuo de significação e ressignificação envolvido na produção de todo discurso. Tanto a tríade de Peirce quando o modelo (também ele triádico) proposto por Sartre para a compreensão da imagem pressupõem e. É interessante observar que esse relato de Lana sobre o seu nervoso guarda forte semelhança com o relato de Socorro. adquirem vida por sua inserção em um contexto mais amplo de interlocução. e que guarda sempre uma dimensão de indeterminação . Na verdade. no sentido de serem efetivamente incorporados à vida. Embora concordemos com Csordas no que toca à necessidade de não subsumir a experiência vivida . (. efetivamente. 2 3 . Merleau-Ponty desenvolve essa idéia extensamente em Fenomenologia da Percepção: "não compreendo os gestos do outro por um ato de interpretação intelectual.. que sofrem de nervoso.a processos semióticos que se situam no nível dos signos e que são caracteristicamente determinados. segundo avaliação própria e dos familiares e/ou vizinhos (ver Rabelo. a comunicação entre as consciências não está fundada no sentido comum de suas experiências. quanto o modo pelo qual os doentes de fato compreendem os significados propostos no ritual. entre sujeitos situados. pois o diálogo ou síntese interna que constitui a imagem enquanto modo de consciência alimenta-se pelo diálogo externo. a associação do nervoso a uma história que combina a vivência de grandes dificuldades a um duro exercício de autonomia (propriamente constitutiva da identidade) domina nos relatos de vida de várias mulheres de classe trabalhadora urbana. Por outro lado.dos de imaginação pelos quais os participantes de um ritual gradativamente atentam para e envolvem-se no drama construído. inseparável da subjetividade. de forma a compreender tanto o processo de significação que já se iniciou antes do tratamento (e que em parte explica a predisposição para esse tratamento).. Csordas (1994) propõe que se trace uma distinção entre a imagem como signo (objeto de estudo da semiótica) e a imagem como experiência ou ser-nomundo (objeto de estudo da fenomenologia). não está tão distante de uma abordagem da imagem enquanto experiência. é preciso analisar o contexto extra-ritual. cotidiano. 7:195-23 . J. The enigma of the metaphor that heals: signification in an urban spiritist healing group.4 Conforme j á observado no capítulo 1. CSORDAS. Rio de Janeiro. healing group. A Percepção: uma teoria semiótica. SARTRE. T. Annual Review of Anthropology. The Sacred Self: a cultural phenomenology of charismatic healing. A. American Ethnologist. syncretic. SANTAELLA. J. ao localizar seu problema em um lugar específico do corpo .C. 1989. São Paulo: Experimento. Social Analysis. O Imaginário. Antropologia Estrutural. Spirits and spiritist therapy in southern Brazil: a case study of an innovative. pode preservar seu eu dos danos morais associados à loucura propriamente dita. 1:3-19. L. 1993.1992. R. Introdução à Semiótica. Lisboa: Presença. Petrópolis: Vozes. 1991.1979b. Os Cavaleiros do Bom Jesus. Introduction: ritual process and the transformation of context. 1:108-152. seguindo o argumento do capítulo 2. Zahar. Persuasions and Performances: the play of tropes in culture. DROOGERS. Entertaining demons.P. São Paulo: Ática. J. FERNANDEZ. B. (Mimeo.D. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Os Deuses do Povo. Berkeley: University of California Press. MERLEAU-PONTY. J. 1997. Washington D. 1994.) FERNANDES. Culture. A Celebration of Demons: exorcism and the aesthetics of healing in Sri Lanka. São Paulo: Brasiliense. B. 1978. KAPFERER.. RODRIGUES.1980. 1980.M. Somatic modes of attention. 1996. GREENFIELD. C.D. J. essa associação entre causas espirituais e orgânicas é relativamente comum no imaginário local. como Mara. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1985. Spirit of Resistance. Também é interessante observar.. Medicine and Psychiatry. African religious movements. CSORDAS. Chicago: Chicago University Press. LEVI-STRAUSS. COMAROFF. KAPFERER. FERNANDEZ. 1967. Fenomenologia da Percepção. 1993. Body of Power. Dimensões Pragmáticas do Sentido. Oxford: Berg Publishers Limited. GEERTZ. S. C. 1982. São Paulo: Brasiliense. Annual Meeting of the American Anthropological Association.1979a. 16(1):2352. SARTRE. Lisboa: Cosmos.R. Social Analysis. A.C. M.um lado da cabeça . São Paulo: Martins Fontes. 1986. 1996. 7(4):637-657. J. Bloomington: Indiana University Press. Cultural Anthropology 8(2):135-156. COMAROFF.P. 1994. A Interpretação das Culturas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANDÃO. A. 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