PSICOLOGIA APLICADA À NUTRIÇÃO RODRIGO DIAZ DE VIVAR Y SOLER 1ª edição SESES rio de janeiro 2017 Conselho editorial roberto paes e gisele lima Autor do original rodrigo diaz de vivar y soler Projeto editorial roberto paes Coordenação de produção gisele lima, paula r. de a. machado e aline karina rabello Projeto gráfico paulo vitor bastos Diagramação rafael moraes Revisão linguística marlon magno Revisão de conteúdo luciana carla lopes de andrade Imagem de capa pathdoc | shutterstock.com Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2017. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) V855p Vivar Y Soler, Rodrigo Diaz de Psicologia aplicada à nutrição / Rodrigo Diaz de Vivar Y Soler. Rio de Janeiro: SESES, 2017. 72 p.: il. ISBN 978-85-5548-506-0 1. Psicologia. 2. Nutrição. 3. Qualidade de vida. 4. Saúde. I. SESES. II. Estácio. CDD 616.8526 Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063 imagem corporal e autoconceito: elementos fundamentais da autoestima 30 3. A saúde como qualidade de vida 35 O conceito de saúde segundo a OMS 36 Introdução 36 Saúde e qualidade de vida de acordo com a OMS 36 Psicossomática. O que é a psicologia 7 O conceito de psicologia 8 Introdução 8 Psicologia ou psicologias? Esboçando uma definição 8 A subjetividade como objeto(s) da(s) psicologia(s) 13 2. saúde e contemporaneidade: aproximações e tensionamentos 40 4. sua relação com os transtornos alimentares e o bem-estar subjetivo e suas relações com a saúde 48 Introdução 48 . A constituição simbólico-cultural do sujeito 21 A subjetividade no processo de estruturação do sujeito 22 Introdução 22 Um percurso sobre a produção de subjetividade e o processo de estruturação da constituição do sujeito 22 A relevância da autoestima na constituição do sujeito e sua relação com o desencadeamento dos transtornos alimentares 26 Autoimagem.Sumário Prefácio 5 1. A saúde como qualidade de vida 47 A motivação. qualidade de vida e transtornos alimentares 48 Relações entre o bem-estar subjetivo e a saúde 52 5. Transtornos alimentares: Uma abordagem psicossocial 59 A obesidade mórbida. a anorexia e a bulimia: aspectos biopsicossociais 60 Introdução 60 Uma definição psicológica e histórica sobre os transtornos alimentares 60 Obesidade mórbida. bulimia e anorexia: identificações e tratamentos possíveis 64 . Motivação. Num segundo momento. pode-se afirmar que o objetivo deste material didático é explorar a necessidade de percebermos a saúde como uma prática integrativa entre a psicologia e a nutrição no que se refere à busca pela melhoria da qualidade de vida do sujeito. será apresentada aqui a compreensão da psicologia como ciência responsável por promover uma leitura sobre a subjetividade a partir das dimensões históricas e culturais do sujeito. serão delimitadas as contribuições da psicosso- mática e a correlação com os transtornos alimentares. Gostaríamos de convidar você a percorrer neste trabalho que ora apresenta- mos as principais correlações entre a psicologia e a nutrição no que se refere às práticas e compreensões sobre a relação entre saúde e desenvolvimento. serão trabalhadas as implicações dessas dimensões simbólicas e culturais no processo de desenvolvimento e potencialização da au- toestima e sua consequente correlação com os transtornos alimentares. O quarto momento é dedicado a compreender a prática dos transtornos ali- mentares a partir de uma perspectiva orientada pela visão biopsicossocial de sujeito. Bons estudos! 5 .Prefácio Prezados(as) alunos(as). Em linhas gerais. Num primeiro momento. Além da apresentação da definição básica de saúde segundo a Organização Mundial de Saúde. O terceiro momento será dedicado à compreensão conceitual da saúde como qualidade de vida. Por fim. o quinto e último capítulo procura apresentar os elementos direta- mente relacionados ao contexto dos transtornos alimentares a visão da psicologia com uma prática integrativa em saúde. . 1 O que é a psicologia . a química e a biologia. Em 1879. desde que respeitasse os pressupostos da grande base epistemológica existente até então. Wundt publicou um livro considerado um marco para o nas- cimento da psicologia moderna chamado Princípios de psicologia fisiológica. O leitor será convidado a percorrer de maneira transversal as contribuições da psicologia como ciência e profissão para um olhar aprofundado sobre a subjetividade como uma força política e histórica. Wundt procurava afirmar que a psicologia poderia ser uma ciência tal qual a física. capítulo 1 •8 . • Definir a subjetividade como objeto da psicologia.O que é a psicologia O conceito de psicologia Introdução Neste capitulo. o positivismo. • Elaborar uma leitura sobre a dimensão multidisciplinar da psicologia como ciência e profissão. Nesse livro. Já o segundo momento é dedicado a explorar a problemática da subjetivida- de como objeto da psicologia a partir de diferentes perspectivas epistemológicas e metodológicas. OBJETIVOS • Reconhecer o contexto histórico e social do nascimento da psicologia. Psicologia ou psicologias? Esboçando uma definição A psicologia enquanto ciência foi produzida durante o século XIX e seu criador foi Wilhelm Maximilian Wundt. apresentaremos as bases epistemológicas da psicologia a par- tir da sua criação como ciência no final do século XIX. passando por Skinner e outros autores. • Compreender as contribuições da psicologia para um aprofundamento do olhar sobre os processos relacionais de saúde e doença. um médico alemão que trabalhava na Universidade de Leipzig. Apontaremos também os principais desdobramentos das primeiras escolas psicológicas desde Wundt até Freud. Essas correntes ficaram conhecidas como estruturalis- mo e funcionalismo. Na realidade. Foram as inovações introduzidas nas universidades alemãs. sobretudo a partir do século XIX. Essa corrente epistemológica afirmava que as ciências deveriam responder a todas as demandas sociais existentes. já que sua aplicação se deu quase que por completo dentro dos laboratórios universitários da Alemanha do século XIX. Wundt pretendia estudar o funcionamento do corpo humano estudando profundamente a maneira pela qual interagiam os processos elementa- res de percepção – considerados superiores por ele – e os processos mentais mais simples. Desse modo. Posteriormente aos trabalhos de Wundt surgiram duas outras correntes epistemológicas que procuravam estudar cientificamente os aspectos psicológicos presentes no ser humano. capítulo 1 •9 . nomeado por Titchener. 11). a importância de Wundt para a história da psicologia consiste no fato de que: Levando em consideração os dois fatores acima expostos. psicólogo responsável por introduzir o pensamento de Wundt nas universidades estadunidenses ainda no século XIX. O positivismo influenciaria toda uma ge- ração de cientistas que procuraram afirmar que existe uma verdade que pode ser mensurada e observável a partir de experimentos observáveis. percebe-se como a psicologia nasce como ciência a partir de uma perspectiva experimental. o es- truturalismo procurava explorar como a mente do ser humano poderia desenvol- ver sistemas relacionais capazes de permitir ao cientista detectar a sensorialidade das experiências produzidas pelos indivíduos. Segundo aponta Araújo (2009. p. A partir do método de introspecção. é possível compreender por que a institucionalização e o rápido progresso da psicologia se deram primeiro na Alemanha. que deram à nação alemã uma posição de destaque na cultura ocidental moderna. Decorre desse processo o fato de que a psicologia moderna seria efetivamente reconhecida como uma prática científica relevante para todo o contexto da so- ciedade. juntamente com a formação de um ideal de educação universal. Titchener propunha desenvolver uma epistemologia psicológica capaz de perceber a estrutura da mente humana a partir do seu comportamento e das suas sensações. O estruturalismo foi criado por Edward Titchener. quando os elementos incestuosos passam a ser representados pela in- terdição presente dentro do contexto das práticas sociais. o superego emerge quando o indivíduo internaliza as normas e leis criadas pela cultura por meio da criação do que Freud chamou de complexo de Édipo. Essas duas correntes foram. No id. a psicanálise e o comportamentalismo. Ou seja. isto é. o conjunto de conteúdos repri- midos – principalmente na primeira infância do sujeito – e que se manifestam no que a psicanálise chama de sintoma. 1969). Por fim. o fundador da psicanálise propõe a existência do que ele mesmo chamava de psiquismo humano. sua popularização) – no caso. repousam todos os conteúdos inconscientes do indivíduo que podem se manifestar por meio de gestos como os chistes ou os sonhos. reproduziremos uma imagem que sintetiza o aparelho psíquico segundo a psicanálise: capítulo 1 • 10 . a psicanálise articula-se dentro da história da psicologia como um saber responsável por enfatizar. Já o ego opera como um agente regulador das funções sociais procurando estabe- lecer a mediação entre as vontades pessoais e as normas presentes na nossa sociedade. Criada por Sigmund Freud. Na realidade. segundo opinião de Farr (1998). Esses sintomas estão inscritos dentro da estrutura do aparelho psíquico do sujeito. inclusive. o ego e o superego. o funcionalismo criado por Willian James compreendia que a mente poderia ser estudada não apenas a partir de uma perspectiva descritiva dos seus fenômenos complexos e elementares. a psicologia sofrerá duas influências decisivas para o seu desenvolvimento (e. A seguir. no processo de constituição do sujeito. a partir da passagem do século XIX para o século XX. o primeiro núcleo da psicologia na era moderna. Entretanto. Particularmente no livro A interpretação dos sonhos (FREUD. Freud compreendia que esse aparelho era formado por três instâncias: o id. Por sua vez. o papel do inconsciente. James percebia a mente do indivíduo como um constante fluxo em interação com o meio. como a histeria. Figura 1. a psicologia ultrapassa os limites do experimentalismo laboratorial passando a ganhar um amplo sentido clínico no tratamento de várias doenças. O comportamentalismo foi criado nos Estados Unidos nos primeiros anos do século XX. Basicamente. Watson que no ano de 1913 publicou um artigo intitulado “Psicologia: como os com- portamentalistas a veem”. a importância da psicanálise para a psicologia consiste no fato de que. a depressão e a neurose. Watson acreditava que o comportamento humano poderia ser estudado. Não seria nenhum exagero afirmar que o fundamento de toda uma tradição em psicologia clínica no século XX deve-se às descobertas provenientes da psicanálise. O primeiro psicólogo a empreender esse termo foi John B. após os trabalhos de Freud.1 – Estrutura do aparelho psíquico segundo a psicanálise Conforme podemos observar. desde que a psicologia adotasse uma perspectiva capítulo 1 • 11 . capítulo 1 • 12 . é correto afirmar que o comportamentalismo pressupõe que o indivíduo. como um todo. a seguir. sem levar nem um pouco em conta seus talentos. comerciante. sofrendo. Vejamos essa célebre frase formulada por Watson (1930. Influenciado pelas ideias de Watson. Já o reforço é marcado por estímulos positivos – relativos aos eventos que inten- sificam a probabilidade de uma resposta semelhante ao estímulo originário – e negativos – relativos aos acontecimentos que podem atenuar ou mesmo extinguir os estímulos originários. à medida que vivencia suas experiências. artista.metodológica radical que afastasse toda e qualquer possibilidade de fatores volta- dos à introspecção. e eu me comprometo a escolher uma delas ao acaso e treiná-la para que chegue a ser qualquer tipo de especialista que escolher: médico. O comportamentalismo criado por Watson compreendia que o indivíduo nasce como uma tábula rasa. emite respostas positivas ou negativas. capacidades. advogado. as influências do meio no qual está inserido. Assim. tendências. 104) em um de seus artigos: Deem-me uma dúzia de crianças saudáveis e bem formadas e meu mundo específico para criá-las. Vejamos. outro psicólogo es- tadunidense chamado Burrhus Frederic Skinner acabou por desenvolver o que ficou conhecido como comportamento operante. e inclusive mendigo ou ladrão. p. vocação ou a raça de seus antepassados. era um produto de eventos situados no que ele mesmo chamava de atitudes de reforço e de punição. Segundo essas palavras. Skinner considerava que a aprendizagem. ao ser estimulado pelo meio no qual vive. podemos destacar que a proveniência do comporta- mentalismo está duramente marcada pela veia empírica. uma imagem que ilustra o processo do comportamento operante. habilidades. Alguns anos após os trabalhos desenvolvidos por Watson. Skinner observou que o índex do comportamento humano era muito mais abrangente do que pressupunha Watson. Figura 1. E no caso da psicologia? Qual seria o seu objeto de estudo? capítulo 1 • 13 . tem como objeto de estudo a natureza. é correto afirmar que a aplicação do comportamentalismo no campo psicológico está diretamente ligada à possibilidade de se treinar o compor- tamento do indivíduo na resolução e no enfretamento de problemas relacionados a sua saúde mental a partir de treinamentos funcionais que envolvem a potencia- lização da sua aprendizagem. Dessa maneira.2 – Condicionamento operante segundo Skinner. os elementos presentes dentro do contexto do comportamento operante em Skinner equivalem à formação de processos voltados para a aprendizagem. A subjetividade como objeto(s) da(s) psicologia(s) Para que toda forma de conhecimento científico seja validada é necessário que tenha um objeto. É correto afirmar que a biologia. Conforme pudemos observar. Não é à toa que os trabalhos provenientes da psicologia com- portamental desenvolveram uma série de ressonâncias sobre o campo educacional. por exemplo. tem como objeto de estudo as propriedades gerais dos corpos e as leis que podem contribuir para sua alteração. por sua vez. enquanto a física. ultrapassando suas naturalizações e seus reducionismos. Indagar-se. Mas. Podemos encontrar em alguns autores os elementos necessários para a cons- trução de uma espécie de cartografia sobre o papel da subjetividade como uma força política e histórica de compreensão do sujeito. é necessário perguntarmos: o que é a subjetivi- dade? Eis é uma pergunta que emerge a partir do momento em que a ciência se emancipa da filosofia e são colocados novos questionamentos sobre uma pergunta aparentemente simples. Figueiredo (1999) aponta que a produção his- tórica da subjetividade está diretamente relacionada a toda uma multiplicidade de epistemologias que. Freud. Ele chega à conclusão de que ao sujeito nunca é permitido conhecer a coisa em si. antes de tudo. Embora não possamos falar de um único domínio epistemológico. mas apenas os sentidos atribuídos à experiência através do método trans- cendental. portanto. Para Kant. inato ao sujeito. porém carregada de profundidade: como é possível estru- turar um conhecimento científico universal sem que um determinado sujeito venha a contaminar tal conhecimento? Um dos primeiros pensadores responsáveis por aprofundar uma reflexão sobre essa problemática foi o filósofo alemão Immanuel Kant (1999) ao ques- tionar. antes que se prossiga. é correto afirmar que o seu objeto de estudo é a subjetividade a partir de diferentes perspectivas metodológicas. a partir de Kant. isto é. em seu livro Crítica da razão pura. acaba por estruturar uma compreensão po- tencialmente crítica sobre a subjetividade a partir das dimensões relacionadas ao capítulo 1 • 14 . sobre os sentidos e os significados da subjetividade corres- ponde a percorrer os contornos de práticas psicológicas e suas distintas concepções de sujeitos. as condições de possibilidade para o exercício do conhecimento. Por exemplo. designam a subjetividade como objeto privilegiado para o campo psicológico. a subjetividade não é algo natural. pois a psico- logia é uma multiplicidade de experiências e de práticas. com seus estudos acerca do papel do inconsciente no processo de constituição do sujeito. portanto. Em A invenção do psicológico. O resultado dessa síntese configura-se com a emergência da figura do sujeito transcendental. Isso significa que. aquele que pode apropriar-se do conhecimento sem dei- xar-se contaminar pelos seus efeitos dogmáticos. todo saber que pretendesse se livrar da metafísica deveria apresentar um percurso metodológico capaz de sintetizar o racionalismo e o empirismo. mas sim uma produção relacionada a diferentes perspectivas e paradigmas. Por fim. mas sim resultado de um processo evolucionista que se origina com o macaco e resulta no homem. Enquanto as estratégias de saber são alocadas no conjunto de enunciados res- ponsáveis pela produção de certas formas de discursividades e as práticas de poder capítulo 1 • 15 . o real designa o registro psíquico daquilo que é impossível e que. Já o imaginário corresponde às fun- ções identificatórias do indivíduo que procura no Outro uma sensação de comple- tude. Para Lacan. a terceira ferida se refere ao fato de que a racionalidade é sempre sujeitada aos conteúdos latentes e inconscientes. o psicanalista francês Jacques Lacan compreendia a subjetividade como uma estruturação do inconsciente a partir do papel da linguagem. portanto. criador da corrente filosófica e psicoló- gica conhecida como existencialismo. Outro intelectual responsável por desenvolver uma concepção crítica e histó- rica da subjetividade foi Jean-Paul Sartre. Ele compreendia que o sujeito se constitui a partir de elementos relacionados à cultura de castra- ção na qual o indivíduo moderno está inserido. mas sim o sol. No seu livro Mal-estar na civili- zação.papel simbólico e representacional das experiências do sujeito. não pode ser acessado pelo sujeito. Freud aponta que o sujeito é constituído a partir de três marcas narcísicas: a primeira relacionada ao fato de que ele não é uma criatura divina. Compreendia a subjetividade como um processo que se inicia com a existência do sujeito que seria definida conforme o indivíduo procedesse uma mediação com o mundo e com o outro. as práticas de poder e os processos de subjetivação. Ele também enfatizava que a subjetividade somente era passível de entendimento quando per- cebia-se que a existência do sujeito era precedida por sua essência. antes de se definir o sujeito precisa existir. Por fim. Por sua vez. Sendo assim. A segunda é proveniente da revolução empreendida por Copérnico ao constatar que a Terra não era o centro do universo. Foucault compreendia a subjetividade como uma maquinaria relacionada à cons- tituição do sujeito a partir de três perspectivas: estratégias de saber. o simbólico implica na construção de um sistema representacional por parte do sujeito através dos sistemas de linguagem. Sartre (2005) defendia a tese de que o sujeito se constitui na história a par- tir das escolhas experienciadas por ele. Lacan (1998) considerava que o inconsciente seria uma máquina estruturada a partir de três pontos: o real. O filósofo francês Michel Foucault também é muito importante para uma contextualização crítica da noção de subjetividade como objeto da psicologia. o simbólico e o imaginário. estão relacionadas à formação de dispositivos de disciplinarização dos corpos. essencializada. a capacidade de o sujeito afetado pelo contingente de forças pro- duzir novas formas de vida perante a atrocidade e o acossamento dos dispositivos. Gilles Deleuze. em primeiro lugar. pensar a subjetividade como um efeito proveniente das relações de forças que assujeitam o indivíduo por meio de jogos de objetivação e de subjetivação. mas um artefato responsá- vel por produzir múltiplas experiências do que ele mesmo chamava de (des)territo- rialização. Devemos. a ideia de uma subjetividade naturalizada. 239) aponta que: capítulo 1 • 16 . Portanto. isto é. A esse respeito Foucault (1995. modos históricos pelos quais os sujeitos se constituem nas suas práticas. então. p. De fato. nos deparamos com a pos- sibilidade de compreender a subjetividade como objeto não de uma. É correto. Todas essas concepções têm em comum o fato de pensar a constituição do sujeito a partir de um ponto de vista crítico. descentrando. os processos de subjetivação correspondem à construção de experiências éticas presentes na relação do sujeito com ele mesmo e com os outros a partir do que Foucault (2016) nomeia como práticas de verdade. a subjetividade não é apenas um conceito. Para ele. afirmar que o que está em jogo na definição da subjetividade como objeto dessas psicologias é justamente o processo segundo o qual o sujeito se constitui a partir de uma relação histórica mediada com sua cul- tura e sua sociedade. falar em subjetividade dentro dos campos psicológicos significa. Deleuze argumenta que a subjetividade precisa ser pensada como uma força proveniente de um devir revolucionário capaz de ultrapassar todas as instâncias de captura presentes na nossa sociedade. mas de várias psicologias. Em O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia – escrito em parceria com Félix Guattari –. ou melhor. elaborará uma leitura radical sobre a subjetivi- dade compreendendo-a como efeito de máquinas desejantes. apontar para uma contextualização política das es- tratégias pelas quais somos “atravessados”. ao percorrer essas distintas compreensões. Decorre desse processo a possibilidade de entender a subjetividade a partir de múltiplas formas de vida. portanto. de tal maneira. por sua vez. no contexto da nossa sociedade contemporânea. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa desse tipo de individualidade que nos foi imposta há vários séculos. capítulo 1 • 17 . é que a subjetividade deve ser compreendida como um efeito presente em jogos de verdade. Isso significa que a subjetividade como objeto de múltiplas psicologias efeti- va-se. Uma leitura política acerca da subjetividade está solidificada nas formas de produção concretas e não nos universalismos abstratos. social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar liberar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado. mente. identidade. Essas palavras apontam para uma necessária problematização do conceito de subjetividade procurando ultrapassar os limites dualísticos no qual foi pensado. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos deste ‘duplo constrangimento’ político. Desdobra-se. A conclusão seria que o problema político. o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos. alma.. portanto o efeito de uma subjetividade naturalizada para um contexto outro envolvido no arenoso terreno da política e da história. pelas condições de possibilidade das práticas sociais que emergem tanto na ordem discursiva como nas práticas de poder e dentro dos processos de subjetiva- ção. é necessário perceber os elementos fundamentados dentro de uma proposta radical de desconstrução das formas acrí- ticas presentes no contexto das psicologias para uma leitura política das formas de subjetividades que ultrapassem os campos normativos do saber. que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno. Em meio aos dispositivos sociais e de controle produzidos pela biopolítica. como a construção de uma leitura singular sobre os efeitos de subjetivação presentes no mundo de hoje. mas recusar o que somos. Talvez. a subjetividade pode se efetivar como uma força necessária para a produção de práticas de liberdade responsáveis por fazer com que o sujeito proceda à invenção de novas estéticas da existência. etc. Através da desmontagem dos reducionismos a subjetividade se confunde com interioridade. A fundamentação dessa leitura política sobre a subjetividade é permeada. Por conta desse aspecto. por- tanto. ético. porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. 2009. Apresentar uma leitura sobre seu enten- dimento significa percorrer os caminhos da ética. 2005. 1995. 1999. Apresentamos também as duas principais escolas psicológicas do início do século XX: a psicanálise e o comportamentalismo. Saulo de Freitas. 2008. o comportamentalismo foi criado nos Estados Unidos. Enquanto a psicanálise foi criada por Freud – médico vienense – no sentido de enfatizar os aspectos inconscientes presentes na constituição do sujeito. FIGUEIREDO. Subjetividade e verdade. FREUD. São Paulo: Editora 34. FARR. O seminário: livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 1998. uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. RJ: Vozes. John. Acesso em: 1 fev. Disponível em: <http://bit. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Petrópolis: Vozes. Vimos que foi criada por Wundt na passagem do século XIX para o século XX. GUATTARI. 9-14. 2017. já que o sujeito se constitui permanentemente dentro desses espaços. WATSON. Petrópolis: Ed. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO. Temas em Psicologia. Immanuel. KANT. apresentamos um panorama sobre o nascimento da psicologia como ciência. Jacques. A interpretação dos sonhos. 1969. As raízes da psicologia social moderna. 1998. Vozes. ______. SARTRE. RESUMO Neste primeiro capítulo.ly/2qvas4t >. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. com a finalida- capítulo 1 • 18 . Jean-Paul. DELEUZE. A subjetividade orienta-se pelos critérios de um percurso no qual as psicolo- gias se encontram em constante expansão. n. época em que as ciências eram basicamente estruturadas a partir de uma matriz conhecida como positivismo. 1930. Broadus. 1999. p. Wilhelm Wundt e a fundação do primeiro centro internacional de formação de psicólogos. A invenção do psicológico: quatrocentos séculos de subjetivação. Nova York: Norton. Michel Foucault. da política e da história. O existencialismo é um humanismo. 1999. Mal-estar na civilização. Abril. Ed. FOUCAULT. Rio de Janeiro: Imago. Crítica da razão pura. Félix. Robert. São Paulo: Ed. Petrópolis. 2016. ______. Rio de Janeiro: Imago. v. 17. Luis Cláudio. ed. Michel. 1. LACAN. Sigmund. Gilles. Rio de Janeiro: Zahar. Behaviorism. 2. São Paulo: Martins Fontes. rev. Ribeirão Preto. é correto afirmar que essa perspectiva epistemológica concedia a todas as ciências o modelo da Física. 2. ATIVIDADE 1. sua contribuição para a subjetividade como objeto da psicologia corresponde à possibilidade de pensarmos o sujeito a partir das três feridas narcísicas. o leitor pode assistir ao filme Freud: além da alma. proveniente da natureza humana. Freud compreendia a constituição do sujeito a partir de elementos presentes no seu inconsciente. Já o segundo momento foi dedicado a pensar a subjetividade como objeto da psicologia a partir da contribuição de diferentes autores. Qual a contribuição dos trabalhos de Freud para o campo da subjetividade? 3. descons- truindo a ideia de que esse conceito seria algo inato. Em relação ao positivismo. Em que consiste o comportamento operante desenvolvido por Skinner? COMENTÁRIO 1. punição e generalização. da Química e da Biologia. no contexto da sociedade moderna. de John Huston (1962). Dessa forma. ou seja. portanto a sua influência sobre o campo psicológico refere-se ao fato de que a emergência da psicologia se dá. 2. capítulo 1 • 19 . Apresentamos os pontos em comum entre esses autores no sentido de pensar a subjetividade como uma força política e histórica. MULTIMÍDIA • Sobre o nascimento da psicanálise no final do século XIX. O comportamento operante designa as ações que envolvem os estímulos e as respos- tas presentes no comportamento do sujeito a partir da sua aprendizagem relacionada aos mecanismos de reforço.de de propor um método responsável por explicitar os modos pelos quais o sujeito constitui suas experiências com base no comportamento. Defina o que foi o positivismo e suas consequências para o nascimento da psicologia como ciência. a partir do desenvolvimento de ações experimentais. 3. capítulo 1 • 20 . 2 A constituição simbólico-cultural do sujeito . • Elaborar uma reflexão sobre o papel da autoestima na constituição do sujeito. capítulo 2 • 22 . autoimagem e percepção de si mesmo na construção da autoestima. • Definir a relação do processo de estruturação da subjetividade com os transtor- nos alimentares. Por fim. Isso significa que o ponto de partida para uma leitura sobre as implicações da produção de subjetividade no processo de estruturação da constituição do sujeito somente torna-se possível quando é possível perceber as práticas sociais mediadas na relação do sujeito com o mundo. Num primeiro momento.A constituição simbólico-cultural do sujeito A subjetividade no processo de estruturação do sujeito Introdução Nesta unidade. os conceitos de subjetividade e de sujeito têm distintos apontamentos metodológicos e epistemológicos. em um aspecto essas definições concordam: o sujeito se constitui na materialidade da experiência. Já o segundo momento desta unidade será dedicado a pensar as possíveis cor- relações entre as práticas de autoestima e a sua correlação com o desencadeamento dos transtornos alimentares. Um percurso sobre a produção de subjetividade e o processo de estruturação da constituição do sujeito Conforme apontamos no capítulo anterior. apresentar-se-á o percurso que liga a produção de subjetivida- de e os processos de constituição do sujeito na contemporaneidade. no terceiro momento. o leitor será convidado a percorrer os caminhos teórico-con- ceituais sobre os processos de constituições simbólicas e culturais do sujeito. exploraremos as correlações entre os processos de autoconhecimento. OBJETIVOS • Apontar os principais indicativos da subjetividade no processo de constituição do sujeito. Entretanto. capítulo 2 • 23 . a Psicologia ‘humaniza- se’ na compreensão de que viver a vida não é apenas um evento circunstancial. mas é o modo de ser do sujeito nas relações e práticas sociais. precisamos. situar a subjetividade como um processo complexo e múltiplo. é ‘choque dos sistemas’. Partindo do pressuposto epistemológico marcado pela perspectiva histórico-cultural. Isso significa que o processo de estruturação da constituição do sujeito está diretamente relacionado à mediação estabelecida entre o indivíduo e à realidade na qual ele está inserido. Não existe como pensar a condição ontológica do sujeito fora da realidade. A constituição do sujeito é dramática. mas sim de alguém que produz suas experiências a partir de uma dimensão de alteridade. Não se trata. no acontecimento que se dá em um determinado contexto concreto e histórico. portanto. Nas palavras de Molon (2011. p. necessariamente. o processo de constituição do sujeito é composto por um fluxo de sentidos e significados marcados pelas questões históri- cas e culturais. portanto o drama é a condição de vida e também o modus operandi do sujeito. A vida está repleta de lutas. Para ele. deslocando-a de seus processos meramente individuais para inseri-la no contexto das práticas sociais. nem somente um episódio ocasional. uma vez que se constitui a partir de uma perspectiva dialética entre ele e o mundo. já que perpassa todo o movimento de relações presentes na existência do indivíduo. o autor compreende que sentidos e significados são permeados a partir das relações processuais entre pensamento e linguagem a partir da consta- tação de que a consciência se efetiva como um sistema. e se dá na forma de drama. 617): Vygotsky argumenta que a consciência é histórica e semioticamente constituída e que o drama constitui o sujeito nas tramas das/nas relações imersas nas práticas sociais. O sujeito vive no mundo da realidade inescapável. engendrado pelas diferentes posições sociais ocupadas e pelo lugar singular que cada um ocupa num dado momento. Para entendermos como a psicologia compreende esse processo. Vygotsky (2001) entendia a categoria do sentido como um fator prepon- derante para se pensar a correlação entre os processos cognitivos e os processos afetivos. De acordo com González Rey (2003). o viver é o drama. de enfatizar uma concepção de indivíduo isolado. Há de se mencionar. e reciprocidades. no âmbito do pensamento e de seus procedimentos [.. 189): As pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias. A perspectiva sócio-histórica compreende o sujeito como uma construção marcada. os estudos de gênero configuram-se como uma compreensão sobre o panorama das diferenças historicamente construídas entre distintas práticas de gênero. Uma das maiores autoridades no assunto. Por exemplo. mas também as contingências do pro- cesso voltado para a relação entre o universal e o singular.] Elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esse sentimento na cultura. o sujeito se revela como sujeito real de um mundo eminentemente social. sobretudo pela contradição. capítulo 2 • 24 . Isso significa que a identidade opera como um dispositivo intrínseco à constitui- ção do sujeito no sentido de oportunizar a experiência de sua vida a partir da cons- trução de uma tessitura dialógica que envolve a possibilidade de compreensão de um sujeito protagonista dentro da nossa sociedade. Segundo Silva (2013). obrigações familiares e de parentesco. Ao sinalizar as bases de uma psicologia voltada para uma leitura dialética da realidade. p. Segundo Thompson (1981. Essa premissa aponta para o diagnóstico de que a cultura abrange tanto a internalização como a externalização do sujeito a partir da materialidade das relações estabelecidas. A questão seria a de procurarmos entender como o sujeito se constitui na relação com determinadas condições. Outra ferramenta imprescindível para a estruturação da constituição do sujei- to a partir de uma visão crítica são as questões de gênero. Para Martins (2006). como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas. o intelectual jamaicano Stuart Hall (2005). então.. Vygotsky (1994) acaba por possibilitar ao conhecimento psicológico não somente as especulações metafísicas. é inegável que percebamos como e sob quais condições a iden- tidade configura-se como um atributo imprescindível à constituição do sujeito. alguns aspec- tos relevantes que estão intimamente relacionados ao processo de estruturação da constituição do sujeito. como normas. ou ainda o que Marx (1991) define como a relação dialética progressivo-regressiva. aponta que o papel da identidade num mundo altamente globalizado como este do início do século XXI reitera o papel de um permanente confronto entre as estruturas ideológicas e simbólicas e o sujeito. No que corresponde às práticas sociais, os papéis relacionados às supostas identidades de gênero devem ser levados em conta no processo de compreensão da constituição do sujeito visando à problematização dos padrões normativos e discriminatórios nos quais se encontram determinados grupos ou atores sociais, como as mulheres e os homossexuais. A filósofa Judith Butler (2010), em seu livro Problemas de gênero, aponta que é impossível falar em constituição do sujeito sem que se percebam, atentamente, os modos pelos quais são construídas determinadas práticas que inscrevem as di- ferenças entre homens, mulheres, crianças, homossexuais, negros etc. Para Butler, a questão seria a de historicizar o corpo da sexualidade e, consequentemente, a sexualidade dos problemas de gênero. Tal afirmação corresponde à possibilidade de compreender efetivamente como a constituição do sujeito está atrelada às iden- tidades de gênero, no sentido de situá-las histórica e materialmente. A visão de uma estruturação simbólica da constituição do sujeito torna-se pertinente para que, de acordo com Zanella (2005), se possa fazer emergir a al- teridade, pensada como um espaço privilegiado de análise das mediações entre sujeito, sociedade, história e cultura. Aqui estamos diante da perspectiva crítica do fazer psicológico que se produz a partir da partilha do sensível, isto é, nas relações dialógicas tecidas entre os su- jeitos e nos processos que envolvem tanto os jogos de objetivação como os jogos de subjetivação. Somente podemos falar numa suposta apreensão da subjetividade a partir do momento que a entendemos como um processo complexo que não se limita às explicações biologicistas e naturalistas. Isso significa que os elementos simbólicos da subjetividade resultam do en- contro, de onde emerge a heterogeneidade. Rolnik (1992) irá defender a tese de que a subjetividade se caracteriza como um ponto crucial no qual se cruzam os caminhos da ética e da cultura. Por conta desse aspecto é que a subjetividade deve estar ligada aos desdobra- mentos de uma atitude transversal que nos conduz aos elementos de afetividade e de encontros entre a porosidade dos corpos. O sujeito constrói, então, a partir das práticas que vivencia, uma constelação de sentidos e significados que lhe permite vislumbrar a singularização dos objetos presentes no mundo. Não há como falar da existência de uma subjetividade deslo- cada do mundo no qual ela está inserida. Por conta desse aspecto é que podemos falar que a constituição do sujeito efe- tiva-se em ato, isto é, constituir-se como sujeito equivale a atuar dialeticamente no sentido de se autoproduzir perante as contradições existentes na realidade. capítulo 2 • 25 A relevância da autoestima na constituição do sujeito e sua relação com o desencadeamento dos transtornos alimentares No ano de 1922, o escritor tcheco Franz Kafka (1990) escreveu um conto chamado “Um artista da fome”. Nele, Kafka procura retratar a condição de mar- ginalidade vivenciada por um artista circense conhecido simplesmente como o jejuador. Em tempos anteriores à modernidade, o jejuador gozava de muito pres- tígio junto à classe artística. Aos poucos, contudo, sua condição torna-se cada vez mais precária, dado o desinteresse do grande público por uma condição que já não era um exclusivismo do jejuador, mas uma prática social amplamente difundida. De certa forma, o conto de Kafka nos incita a pensar como e sob quais condi- ções os transtornos alimentares têm se tornado, no mundo contemporâneo, uma prática recorrente. Clinicamente, podemos definir como transtorno alimentar toda condição que, segundo opinião de Oliveira e Hultz (2010), contribui para uma preocupa- ção exagerada em relação ao aumento de peso e à forma corporal. Na nossa contemporaneidade, os jovens são o público mais afetado pela in- cidência de transtornos alimentares. Dentre os mais comuns, encontram-se os quadros relacionados à anorexia nervosa e à bulimia nervosa. Entre os estudiosos, há um consenso sobre essa incidência dos transtornos alimentares entre os jovens: a existência de um padrão de beleza estipulado pela cultura ocidental que supervaloriza o estereótipo do corpo magro, associado à imagem de corpo saudável e bem nutrido. O escritor italiano Umberto Eco (2004, p. 193) costumava-se perguntar: “Que cânones, gostos e costumes sociais permitem considerar belo um corpo?” Enquanto que as sociedades renascentistas e iluministas valorizavam a opulência de um corpo marcado pela “volumosidade”, a sociedade contemporânea adota como padrão estético a magreza do corpo. Com o advento das sociedades de massa e dos meios de comunicação, sobre- tudo a partir da segunda metade do século XX, o ideal de um corpo esbelto tem se difundido na nossa cultura como um paradigma hegemônico. As campanhas publicitárias, os desfiles de moda, os filmes, as novelas, os te- lejornais e toda uma chamada indústria da beleza atuam no sentido de produzir uma biopolítica sobre o corpo, aproximando as questões existenciais a problemas tipicamente relacionados a aparência física. O corpo humano torna-se objeto de uma incessante campanha para a sua nutrição efetivamente comprometida com a perda de peso compreendida como sinal de saúde e bem-estar físico e mental. capítulo 2 • 26 Para Foucault (1979), existe, na nossa sociedade, todo um investimento polí- tico sobre o corpo do sujeito a fim de pensá-lo como uma forma de controle e de assujeitamento. Isso significa que a imagem corporal difundida pela sociedade de massa procura vender a preponderância de uma corporalidade manifestada a partir de padronizações normativas que investem toda a sua profusão consumidora na tentativa de fazer com que o sujeito possa desejar, tanto quanto possível, a busca por um corpo semelhante àqueles que estão no mundo dos sistemas de comunicação. Em um estudo realizado junto a estudantes de um curso de Educação Física, Freitas et al. (2010) apontam que a maioria de seus entrevistados compreendia como corpo ideal aquele que estivesse abaixo do peso e do índice de massa corpo- ral. O estudo ainda revelou a existência de uma insatisfação generalizada dentre todos os entrevistados com relação ao seu próprio corpo. O corpo se torna, portanto, um valor imprescindível para a nossa atualidade. Como consequência desse aspecto, um número cada vez maior de indivíduos pro- cura estabelecer uma remodelagem corporal, sobretudo através da realização de cirurgias plásticas. Outro fenômeno que vem crescendo muito com o advento da internet são os sites e blogues que procuram incentivar, principalmente os adolescentes, a desen- volver os transtornos alimentares. O padrão cada vez mais exigente e inatingível de magreza constitui-se como uma produção desejante (GUATTARI, ROLNIK 1990), aprisionando os sujeitos em atitudes cada vez mais austeras na busca desmedida por um padrão de beleza biologicamente inalcançável. A exposição frequente a uma mídia excessivamente preocupada com o consu- mo leva à produção em massa de uma multiplicidade de desordens alimentares. O medo de engordar – associado a todas as inseguranças às quais os adolescentes, sobretudo, são constantemente expostos – leva tal público ao desenvolvimento de comportamentos de risco, tais como a realização de dietas exaustivas, a realização de atividades físicas em excesso, a utilização de medicamentos e a autoindução ao vômito, por exemplo. Embora seja consenso de que os transtornos alimentares apresentam uma etio- logia multifatorial – isto é, são resultados de uma combinação de fatores como a propensão genética, os valores sociais e culturais, e o comportamento apreendido pelo sujeito em relação ao seu meio –, deve-se ressaltar que os ideais de beleza construídos historicamente apresentam-se como a produção de um corpo aliena- do aos dispositivos biopolíticos. capítulo 2 • 27 como uma atitude de aceitação ou de repulsa à determinada condição na qual o sujeito se encontra. que lhe cobra a manutenção das suas dietas exorbitan- tes. o sujeito dependente totalmente de uma ditadura corporal se vê obrigado a praticar um itinerário em busca do corpo perfeito. não pode haver um processo de autoestima eficaz contra a problemática dos transtornos alimentares. Como numa espécie de círculo vicioso. à pro- dução de uma baixa autoestima por parte daqueles sujeitos que não se enquadram diante de determinado padrão normativo. É correto afirmar. portanto. Em outras palavras. o grau de autoestima do sujeito. Se um determinado sujeito é afetado diretamente pelos padrões impostos pela sociedade na qual se encontra. dentro da psicologia. Em linhas gerais. necessariamente. menor será. portanto. A biopolítica de um corpo saudável e magro conduz. Diversos estudos apontam que entre as causas da bulimia se encontra o baixo nível de aceitação do sujeito em relação a si mesmo. Em um estudo consagrado a estabelecer as correlações entre os transtornos alimentares e a bulimia. Sopezki e Vaz (2014) apontam que a maior parte de suas pacientes. como revela a tabela a seguir. E com o corpo isso não é diferente. que a autoestima precisa ser colocada como uma questão fundamental para uma problematização desse paradigma. capítulo 2 • 28 . diante de situações estressantes. A autoestima se caracteriza. sofre tanto as sanções do outro. apresentavam severos graus de sofri- mento psíquico. ele irá desenvolver um juízo sobre determinada condição. como de si mesmo. Quanto maior for o grau de insatisfação corporal. o que ora afirmamos é que o julgamento de si mesmo torna- -se cada vez mais depreciativo em relação aos sujeitos que apresentam transtornos alimentares. Isso é o que se pode constatar no com- portamento de insatisfação corporal agravado pelos problemas enfrentados pelos sujeitos nas suas práticas cotidianas. e. Nesse caso. submetidas ao teste de Rorschach. seria como um dispositivo pelo qual o sujeito expressa um determinado valor a respeito de suas próprias atitudes. sem que exista uma aceitação de si mesmo. das asas e porque acordado de noite. ANOREXIA BULIMIA CONTROLE dois bichos mortos. não gosto da cara um pássaro grande. meio feia. fogo. pés. uma borboleta. com os de costas para a outra. tô vendo mais a carcaça. pelo enxergo comida. o patinhas. olho no batendo. é preta um incêndio. como eu eu quando pratico bulimia. velha. morcego. como se fos- feio. sendo necessário estabelecer um contingente para o seu tratamento e a sua prevenção. os elementos presentes nas entrevistas confirmam a hipótese de que a baixa autoestima favorece o desenvolvimento dos transtornos alimentares.. coxa assada. de pessoas e bichos. as asas. um morcego. uma borboleta. voando.1 – Fragmentos de verbalizações emitidas no Cartão V de Rorschach aplicado em mulheres com bulimia nervosa. tem cara de cima. meu Deus! uma borboleta. braços abertos. as asas grandes. um bichinho estranho. meio gasta. costas. se uma pose sacra. dele. feio. um morcego. Tabela 2. pés para fora. espelho ou deito na parede. é morcego. por causa das go. capítulo 2 • 29 . dorme de dia e fica é preta. toda ela é preta. uma do. é pareci. contorno do corpo. santa. ai. duas pessoas deitadas. uma duas pessoas viradas de diferente das outras. borboleta. acho que é corpos soterrados. deitadas.. mulheres com anorexia nervosa e grupo controle. parecido comi. Conforme pudemos observar na tabela. sou comilona. eu só com raiva de mim. ele tá voando. e uma coruja. que é difícil. preto. fogueira. preto. p. De um lado. encontramos a presença de um self subjetivo responsável por delimitar a presença de um cogito relacionado ao enunciado de um eu que pensa e um self objeto que reúne os elementos do conhecimento sobre si mesmo a partir da relação do sujeito com o mundo. Essa perspectiva acaba por fazer do self uma das possibilidades mais importan- tes dentro do panorama correlativo entre as formas de autoconceito e autoimagem para o processo de identificação da autoestima. Há que se pensar no processo de autoconceito como uma relação mediada en- tre o eu-percebido e o eu-ideal.] o self é uma estrutura essencialmente social.. desenvolvido na experiência das interações sociais. sendo. A perspectiva crítica dessa constatação abre espaço para que tenhamos uma compreensão humanista acerca da percepção que o sujeito tem sobre si mesmo através da relação entre as experiências e os modos pelos quais o sujeito produz a sua interação fenomenológica com o mundo. (2012. o self é reflexão social de como a sociedade gostaria que eu me comportasse. [. Ademais. capítulo 2 • 30 . Assim. o processo de conhecer-se a si mesmo dá-se pela visão que o sujeito tem da própria imagem através do ponto de vista dos outros. portanto. Em seu livro The Principles of Psychology. 4). imagem corporal e autoconceito: elementos fundamentais da autoestima O primeiro psicólogo a percorrer os limites científicos do autoconceito foi Willian James. o autor menciona o auto- conceito como um dos fundamentos do self a partir de uma dupla função.. mas sim como um processo que se estabelece a partir da mediação do sujeito com o mundo. Deste modo. É correto afirmar que o autoconceito é estruturado a partir de uma perspectiva simbólica a partir da percepção que o sujeito possui de si mesmo e as interações sociais presentes na realidade na qual ele está inserido.Autoimagem. não percebermos a autoestima como uma categoria individual. Segundo as palavras de Mendes et al. Vimos. Já o terceiro momento é dedicado a apresentar as correlações entre os processos de autoafirmação – autoimagem e autoconceito – como características intrínsecas aos modos de subjetivação no mundo contemporâneo e dentro do processo de autoestima. A subjetividade e a constituição do sujeito são forças produzidas histórica e culturalmente. a cultura e a sociedade. Qual a relação entre a subjetividade e o processo de constituição do sujeito? 3. MULTIMÍDIA • Réquiem para um sonho. ATIVIDADE 1. Num primeiro momento. mas sim como resultado de um percurso dialético voltado para as contradições existentes entre a subjetividade. portanto. capítulo 2 • 31 . RESUMO Nesta segunda unidade. 2. O segundo momento foi dedicado a pensar as correlações entre o processo de au- toestima e os transtornos alimentares no sentido de situá-las como uma das questões mais importantes da nossa contemporaneidade. Autoestima é processo de julgamento realizado pelo sujeito acerca de si mesmo. 3. de entender o sujeito como uma natureza. O que é a biopolítica dos corpos? COMENTÁRIO 1. de Darren Aronofsky (2000) • Corpo perfeito. apresentamos os desdobramentos e as implicações da pro- dução de subjetividade para uma leitura sobre a constituição do sujeito a partir dos seus elementos simbólicos. A biopolítica dos corpos configura-se como uma ferramenta de assujeitamento produzida pelos dispositivos na busca da produção de um corpo perfeito. de Douglas Barr (1997). em absoluto. Defina o que é autoestima. 2. que não se trata. o leitor foi convidado a percorrer os elementos fundamentais no que se refere às relações entre a psicologia e a nutrição. uma essência. 5. Transtornos alimentares. Thompson: experiência e cultura. Rio de Janeiro: Record. jul. 575-582. Transtornos alimentares: o papel dos aspectos culturais no mundo contemporâneo. RS: ANPEDSUL. Notas sobre constituição do sujeito. 18. 1992. Edward. Santa Catarina. p. Acesso em: 8 fev. 2017. v.ly/2rgcRDv>. Leticia Langlois. Autoimagem. Sueli.. Diversidade sexual e de gênero: a construção do sujeito social. Petrópolis./set. Um artista da fome. Fernando Luís. 2. Aline Rocha. Acesso em: 13 fev. 10. M. n. 2017. 2013. 2. 10. n. A identidade cultural na pós-modernidade. Acesso em: 13 fev. ROLNIK. Umberto. Rio de Janeiro: Graal. 2003. 12-25. Tradução de Eliana Aguiar.ly/2rxG4L8>. 2006. v. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 3. Acesso em: 12 fev. KAFKA. Disponível em: <http://bit.ly/2r4ENJV>. RJ: Vozes. Interação em Psicologia. autoestima e a técnica de Rorschach. ed. 2012. O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do sujeito. n. MARTINS. Psicologia em Estudo. Psicologia em Estudo. GONZÁLEZ REY. v. dez. MENDES. ed. Micropolíticas: cartografias do desejo. Caxias do Sul. S. Anais. Em Tese. Caxias do Sul. Acesso em: 8 fev. SOPEZKI. 613-622. Revista do NUFEN.. Daniela da Silva. set. p. 2017. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Zahar. 4. História da beleza. Acesso em: 8 fev. 2011. HALL. Cícero E. 9. Claúdio Simon. Susana Inês. 24. Maringá. v. 2012. v. 2014. In: ANPEDSUL. jan. ly/2rdojhk>. São Paulo. Disponível em: <http://bit. Rio de Janeiro: DP&A. 2010. n. HUTZ. 15. 1. 2001. 2017. 23-36. 2005. 16. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte. n. n. 2010. VYGOTSKY. capítulo 2 • 32 . O padrão de beleza corporal. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. autoestima e autoconceito: contribuições pessoais e profissionais na docência. ECO. P. São Paulo: Martins Fontes. p.ly/2qvf3nq>. Disponível em: <http://bit.ly/2rdjwwb>. Disponível em: <http://bit. Disponível em: <http://bit. A construção do pensamento e da linguagem. 2010. THOMPSON. OLIVEIRA. 3. 2004. ago. Judith. 2017. Franz. Petrópolis. Ariana Kelly Leandra Silva da. Belém. A vontade de saber. SILVA. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUTLER. FREITAS. Lev Semenovitch. subjetividade e linguagem.. Maringá. p. M. 389-404. Suely Aparecida. Acesso em: 23 mar. RJ: Vozes. 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Apresentaremos ao leitor a definição sobre o conceito de saúde a partir dos indicadores da Organização Mundial de Saúde. seja pelo fomento à implementação de vacinas. capítulo 3 • 36 .A saúde como qualidade de vida O conceito de saúde segundo a OMS Introdução A unidade três deste livro é dedicada a pensar a saúde como sinônimo de qualidade de vida. • Delimitar as principais correlações entre a psicossomática e a visão holística de saúde na vida do sujeito. Saúde e qualidade de vida de acordo com a OMS A Organização Mundial de Saúde (OMS) é uma instituição vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU) no sentido de pensar as principais po- líticas voltadas para a saúde no contexto mundial. Os programas desenvolvidos pela OMS preconizam a prevenção e o tratamento de doenças. entidade responsável por pensá-la como uma integralidade que envolve o bem-estar físico e psicológico do sujeito nas suas mais variadas perspectivas. Já o segundo momento é dedicado a explorar as correlações entre a psicos- somática e a visão holística de saúde na nossa contemporaneidade. seja por meio da elaboração de diagnósticos volta- dos para o desenvolvimento de fármacos através da criação de estratégias como o Programa Ampliado de Imunização. Partindo do pressuposto de que a saúde precisa ser concebida como uma prática voltada para a melhoria da qualidade de vida. devem ser ressaltados os aspectos transversais que compõem os elementos presentes na relação entre uma perfeita homologia entre a saúde física e mental do sujeito. OBJETIVOS • Apresentar a definição de saúde de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Na Constituição do Brasil (1988. foram inicia- dos os procedimentos necessários para a consolidação do que é proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Constituição Federal. 1 Há uma versão integral desse documento disponível em: <http://bit. s/pág. acima de tudo.ly/1x8itdQ>. É correto. no ano de 1946. os princípios basilares da saúde compreendida como um direito inalienável de todos os povos1. Não se trata apenas de um procedimento técnico – é uma responsabilidade que envolve o Estado e a população. afirma-se que: Art. assim. mas como um processo que envolveria as capacidades existenciais presentes nas práticas sociais. portanto. não a mera ausência de doenças. mental e social. os Estados- membros da ONU formularam uma Constituição da Organização Mundial da Saúde na qual são apresentados. devemos levar em conta que. de forma sistemática. quando falamos em saúde.). O fi- lósofo francês Georges Canguilhem (2002) compreendia que a saúde deveria ser concebida não somente como um produto da realidade objetiva. estamos falando da garantia de direitos básicos para toda a humanidade. capítulo 3 • 37 . 196. garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção. Podemos. de acordo com a OMS. A saúde é direito de todos e dever do Estado. O que ora afirmamos é que o Estado deve assumir a responsabilidade pelas estraté- gias da criação de serviços necessários de modo a assegurar o acesso universal de acordo com todo tipo de demanda encontrado na sociedade. afirmar que a saúde como direito apresenta-se a partir da formulação de políticas voltadas para a melhoria da qualidade de vida da popula- ção. proteção e recuperação. Logo no preâmbulo fica delimitado que a saúde é. Mas po- demos nos perguntar: qual o sentido desse enunciado? Para que tenhamos uma resposta minimamente satisfatória. Pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial. perceber como o conceito de saúde proposto pela OMS vai muito além das meras e habituais definições propostas pelo senso comum. um estado de bem-estar físico. Percebe-se como os programas de saúde devem ser pensados como forma de garantir a integralidade dos tratamentos e as ações voltadas para a população. Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1990. enquanto direi- to da população e dever do Estado. as ações em saúde correspondem a uma vitória da população. Em suma. Por fim. Fruto de um amplo debate que envolveu diferentes setores da nossa sociedade e de uma constante e ampla reivindicação social. o acesso a uma rede diver- sificada de serviços nas atenções primárias. como política efetiva de saúde. a equidade busca respaldar o respeito às diferenças entre os indivíduos. mas como uma constante luta pelo oferecimento das garantias mínimas de ações voltadas para a prevenção e reabilitação dos sujeitos. Diante dessa lógica. capítulo 3 • 38 . nosso sistema de saúde não se caracteriza como uma política governamental. O SUS precisa ser compreendido como uma estratégia em permanente aper- feiçoamento no que se refere à luta pela construção de uma sociedade mais justa e distributiva. secundárias e terciárias de saúde. Dentre os desafios encontrados para a consolidação da saúde como um di- reito. Enquanto a universalidade busca consagrar a todo cidadão o direito de as- sistência a todo e qualquer tipo de serviço prestado pelo SUS. é de fundamental importância a compreensão de que a saúde está diretamente relacionada aos processos de integralização de todas as formas de recursos. podemos destacar o intenso confronto dos princípios estabelecidos nessas diretrizes aqui apresentadas com o mercado privado proveniente dos planos de saúde e da indústria farmacêutica. sem qualquer forma de dis- criminação quanto a sua sexualidade. à administração e à capacitação permanente dos serviços es- pecializados e à fixação das normas voltadas para garantir as condições de todo o sistema de saúde. destacam-se a ampla distribuição de medicamentos. representa um patrimônio dos cida- dãos brasileiros a partir de exemplos práticos de fixação de normas e de projetos voltados para o enfrentamento das condições sociais existentes. Em seu conjunto de princípios. bem como a implementação de modelos gerenciais na aplicação de recursos públicos. na equidade e na integralidade. Podemos perceber como o SUS. volta-se para o desenvolvimento de ações que procuram operar a descentralização dos serviços voltados para o atendimento das demandas comunitárias e sociais. estratificação social e cor da pele. a integralidade refere-se à capacidade de os serviços de saúde garantirem o livre e contínuo acesso a todas as informações e formas de tratamento oferecidas pelos serviços de saúde. Dentre esses proje- tos. precisa estar solidificada no tripé composto na universalidade. a partir de uma concepção ampliada de saúde. O SUS. o SUS estabelece que a saúde. Isso significa que os conselhos gestores e as autoridades devem permanecer sob constante vigilância da sociedade de forma a garantir que todos os serviços sejam realmente oferecidos para toda a população. Trata-se de um processo político que deve ser orientando não como uma política de governo. esses dois dispositivos atuam no sentido de pensar a saúde como um mercado que deve ser ofertado a partir das regulações econômicas existentes. com a efetivação e consoli- dação da democracia participativa. Tal tema faz parte de um amplo debate político sobre os modos pelos quais se organizam as estratégias necessárias para a consolidação das formas de governa- mentalidade provenientes das práticas sociais. Responsáveis por instituir uma visão amplamente individualista e fragmen- tária da saúde. Psicossomática. portanto. nesse caso. Diferentemente do que nos é apresentado pela grande mídia. a negação da saúde é a negação da cidadania como processo contínuo. mas sim pela participação efetiva de todos os sujeitos em relação às demandas existentes. precisa ter sua orientação voltada para a promulgação de ações diretamente relacionadas à superação das profundas desigualdades existentes de forma a garantir o amplo fortalecimento de diretrizes que valorizem a integra- lidade da condição humana. A visão panorâmica da corrupção enquan- to uma crise sistêmica nos oferece a possibilidade de compreender como o enfren- tamento ante tal problema passa pelo aumento de controle da sociedade em relação aos procedimentos e recursos aplicados em todos os níveis da saúde pública. O maior desafio para a efetivação da saúde como um direito voltado para a melhoria da qualidade de vida da população está diretamente atrelado a uma vi- são econômica sobre o processo de saúde-doença. Outro fator importante para uma problematização dessa visão são as constantes práticas de corrupção em relação à saúde. A saúde. O processo de saúde tem relação direta. a saúde não é uma questão de recurso econômico. a implementação da OMS no que se refere à consolidação de uma visão crítica de saúde precisa estar diretamente associada ao enfrentamento das injus- tiças. Certamente. Esse entrave é responsável pela produção de um deslocamento em relação aos princípios estabelecidos pela OMS e pelo SUS. saúde e contemporaneidade: aproximações e tensionamentos capítulo 3 • 39 . ao propor a supre- macia do inconsciente sobre a consciência. capítulo 3 • 40 . seria a realidade a tomar maior importância. neurose de angústia e hipocondria) não há mediação psíquica e a patologia reflete. mas também para os compo- nentes psicológicos presentes no sofrimento dos indivíduos. o conflito intrapsíquico e as tentativas para sua elaboração tomariam o lugar central. Outro componente importante para o desenvolvimento da psicossomática foi o aparecimento da psicanálise. pode-se perceber como a psicanálise favorece a potencializa- ção em torno de um olhar ampliado sobre o processo de adoecimento. 2000) e deve ser compreendida como um método terapêutico responsável por correlacionar os conceitos somáticos e os conceitos psicológicos. p. A psicossomática se caracteriza como um movimento delineado pelas contri- buições de Franz Alexander e da Escola de Chicago (CERCHIARI. De certa forma. encontramos suas pri- meiras contribuições no campo da psiquiatria francesa do final do século XIX e no próprio nascimento da psicanálise. 1995. encontramos nos trabalhos desenvolvidos por Jean- Martin Charcot (1825-1893) uma importante contribuição para o desenvolvi- mento dos estudos sobre a psicossomática. 70): Nas psiconeuroses os sintomas provêm do recalcado num processo de insucesso do recalcamento e de retorno do recalcado. com existência de fantasma e neurose de transfert”(CARDOSO. consequência de um excesso ou insuficiência de descarga. Ou seja. acaba por abrir a trilha para o apro- fundamento das compreensões acerca dos traumas psicológicos e suas constantes manifestações tanto no corpo como na própria conduta dos indivíduos. 9). passando a compreender a natureza ontológica do sofrimento psíquico como categoria vol- tada não apenas para as manifestações fisiológicas. diretamente. Sigmund Freud (1856-1939). Seguindo uma evolução histórica da psicossomática. Segundo Cerchiari (2000. ficando o conflito fora do acesso do sujeito. p. uma economia sexual perturbada. Em relação à psiquiatria. Enquanto que nas neuroses atuais (neurastenia. Charcot foi um eminente médico fran- cês que ganhou notoriedade no meio acadêmico ao compreender a histeria como o resultado de traumas cuja proveniência era de natureza psicológica. Justamente. antes de tudo. entre subjetividade e corpo. No caso. Embora as doenças psicossomáticas sejam de difícil detecção. muitas vezes o pano de fundo para sua configuração passa necessariamente pela angústia como processo desencadeador do sofrimento psíquico. Os diferentes segmentos de saúde e a própria medicina. o processo delineado seria o de jus- tamente percebermos como as emoções desencadeiam formas pelas quais agimos e nos relacionamos com o mundo. a relação entre médico e paciente e a própria superação da abordagem organicista. com as experiências que vêm adquirindo nesse campo. como se fosse possível proceder à inter- venção em saúde de modo integralizador e humanista. o que está em jogo na visão psicosso- mática sobre o processo de adoecimento é o fundo emocional dos acontecimentos traumáticos vivenciados pelo sujeito. vêm percebendo que não existe separação entre mente e corpo. É neste contexto de doenças que envolvem o soma e a psique que os profissionais de saúde têm um papel fundamental de acolhida a esses pacientes que sofrem com a somatização. Ou seja. ajudando-lhes desde o diagnóstico no tratamento e na busca de uma melhor qualidade de vida. Há que se perceber como os profissionais da área da saúde não podem des- prezar a relação entre a subjetividade e o corpo. hiperespecializada. A medicina moderna. por conta desse aspecto é que essa correlação deve ser pensada a partir de uma nova possibilidade. 2017. a de se compreender como. não da separação. O holismo – do grego holos – designa a visão sobre a totalidade do sistema. o que exige desse profissional uma formação diferenciada. podendo entender a relação entre o contexto social e a doença. já que o fundamento de todo processo de adoecimento é proveniente da correlação. dentro da nossa contemporaneidade. acabou por produzir uma visão se- gregada entre a subjetividade e o corpo. Percebe-se como as doenças psicossomáticas devem ser enxergadas como per- tencentes a estados de tensão voltados para o adoecimento do corpo a partir de um fundo emocional. qual seja. p. a visão fragmentária sobre o processo de saúde-doença acaba entrando em declínio em nome do fortalecimento de práticas integrativas. (ASSIS et al. 78). há que se pensar os desdobramentos necessários para uma aproximação da visão psicossomática com o paradigma holístico. Diante desse quadro. capítulo 3 • 41 . (CAPRA. capítulo 3 • 42 . estamos falando de um processo que envolve a experiência fe- nomenológica de se compreender o processo de adoecimento como uma interde- pendência entre as relações presentes do sujeito com seu meio ambiente. biologia e psicologia — está conduzindo a uma visão da realidade que se aproxima muito da visão dos místicos e de numerosas culturas tradicionais. portanto. Tal perspectiva desdobra suas ações a partir de uma visão de cura voltada para a inte- gração do ser com a sociedade. Capra (1982) designa que o grande desafio para a formação de uma consciência holística consiste na formulação de que a saúde deve ser compreendida como sen- do mais do que um procedimento técnico. para quem a crise do paradigma mo- derno colocou em evidência novas formas de se pensar criticamente a realidade. a sociedade ocidental viu emergir uma visão crítica sobre o processo de saúde- -doença questionadora do modelo corpo-máquina da visão unilateral biologicista. Tais práticas integrativas incluem a aproximação de ações orientadas para as práticas de prevenção. 1982. não somente para o tratamento medicamentoso. Essa visão parte sempre na busca pela formação de uma consciência holís- tica que envolve a totalidade das coisas e não mais a fragmentação da realidade. Segundo Boaventura Santos (2000). em que o conhecimento da mente e do corpo humano e a prática de métodos de cura são partes integrantes da filosofia natural e da disciplina espiritual. com o meio ambiente e com sua espiritualidade. com sua cultura e com a sociedade na qual está inserido. Muda-se. p. a ideia de que a realidade é um produto fragmentado como foi produzido pela ciência médica na modernidade. Ao contrário do modelo biomédico. A perspectiva de uma prática de saúde holística entra em confronto com a perspectiva da medicalização da vida. O físico Fritjof Capra considerava que a prática holística configura-se como o grande elemento pelo qual as ciências podem se reintegrar no mundo contemporâneo. A aproximação entre a psicossomática e a saúde está diretamente relacionada ao problema das práticas integrativas em saúde. 284). Alguns autores como Foucault (2002). Goffman (1998) e Szasz (1970) apontam que. o paradigma holístico configura-se como a potencialização do olhar sobre o ser humano. considerando-o na sua integralidade. Na realidade. Para ele: O moderno pensamento científico — em física. desde a segunda metade do século XX. ly/2rOz2l0>. 2013. Brasília. Cleber Lizardo de et al. Dentro desse horizonte de possibilidades. No ano de 2006. Psicossomática: um estudo histórico e epistemológico. Acesso em: 10 mar. Através desses programas. Acesso em: 8 mar. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Porto: Afrontamentos. 40. abr. O nascimento da biopolítica. GOFFMAN. A fabricação da loucura. CANGUILHEM. São Paulo: Cultrix. p. FOUCAULT. 2 Há uma versão integral desse documento no seguinte endereço eletrônico: <http://bit. São Paulo: Martins Fontes.ly/2se8jec>. 2000. dez. 2017. O normal e o patológico. Acesso em: 10 mar. pode-se perceber como a saúde pública no Brasil vem priorizando a inserção de profissionais de saúde aptos a interagir com as demandas das populações sempre de maneira a inserir práticas preventivas. Manicômios. Tal documento possui como finalidade apro- ximar os desdobramentos da política de saúde pública no Brasil a partir de uma visão ampliada de saúde em consonância com as diretrizes da OMS e. Georges. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. p. para a melhoria do desenvolvimento da qualidade de vida. capítulo 3 • 43 . CERCHIARI. 1982. Aletheia. como a acupuntura e o uso de plantas medicinais. 20. Michel. n. São Paulo: Perspectiva. Psicologia: Ciência e Profissão. o Ministério da Saúde elaborou a Política nacional de práticas integrativas e complementares no SUS2. 64-79. prisões e conventos. 2002. 74-86. Rio de Janeiro: Zahar. Percepções e práticas sobre psicossomática em profissionais de saúde de Cacoal e Nova Brasilândia/RO. SANTOS. Fritjof. O ponto de mutação. BRASIL. também. 2002. ly/1dFiRrW>. Thomas. CAPRA. 1998. Disponível em: <http://bit. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS. é cada vez maior a implementação de programas e projetos nas áreas de saúde pública do que se conhece por práticas integrativas em saúde. Disponível em: <http:// bit. Canoas. Um discurso sobre as ciências. Boaventura de Sousa. n. 4. 2017. Disponível em: <http://bit.ly/2r4rFVi>. 2000. Erving. 1970. Ednéia Albino Nunes. a partir de um compromisso ético de se pensar a saúde como uma prática holística. SZASZ. v. 2017. dirigido por Fernando Meirelles (2009). atra- vés de sua constituição. Estabeleça as principais diretrizes das políticas de práticas integrativas formuladas pelo SUS desde o ano de 2006. uma visão ampliada de saúde compreendida como prática de direito intrínseca à condição humana. Em relação ao primeiro item. ATIVIDADE 1. capítulo 3 • 44 . 2. como a acupuntura e o uso de plantas medicinais. Em que consiste uma visão holística sobre a realidade? 3. devemos pensar a saúde como um direito universal. você conheceu os modos pelos quais a OMS acabou por fomentar. é necessário ressaltar que ações preventivas de saúde. O que significa possuir uma visão psicossomática sobre o processo de saúde-doença? COMENTÁRIO 1. MULTIMÍDIA • Se você deseja saber mais sobre o assunto. isto é. RESUMO Neste capítulo. recomendamos que assista ao filme O jardinei- ro fiel. Mais do que um mero procedimento. que deve ser oferecido a todos os seres humanos na sua integralidade. são parte do modelo de política das práticas integrativas no SUS. Já o segundo momento apresentou as contribuições da psicossomática e das práticas holísticas para uma leitura sobre a saúde a partir de uma dimensão paradigmática que per- cebe o ser humano na sua integralidade. 3. na sua relação com o meio. Em relação à visão psicossomática sobre o processo de adoecimento do indivíduo. com a cultura. capítulo 3 • 45 .2. Uma visão holística sobre a realidade refere-se a uma ampla leitura sobre o ser humano compreendido na sua integralidade. isto é. há que se referendar os processos por meio dos quais os indivíduos devem ser levados em conside- ração a partir das relações que estabelecem dentro do processo de saúde e adoecimento. com a biologia e com sua própria espiritualidade. capítulo 3 • 46 . 4 A saúde como qualidade de vida . convidamos você. a prestar atenção na pirâmide motivacional proposta pelo psicólogo estadunidense Abraham Maslow. Motivação. sua relação com os transtornos alimentares e o bem- estar subjetivo e suas relações com a saúde Introdução Dando prosseguimento à terceira unidade do nosso livro. qualidade de vida e transtornos alimentares Para iniciarmos nossas reflexões acerca do papel da motivação na nossa vida. explorar as relações entre o bem-estar subjetivo e a saúde. leitor. iremos abordar. os aspectos correlacionais da motivação com os transtornos alimentares para. OBJETIVOS • Apresentar a correlação entre a motivação e os transtornos alimentares. num primeiro momento.A saúde como qualidade de vida A motivação. capítulo 4 • 48 . • Delimitar as principais correlações entre o bem-estar subjetivo e a saúde. num segundo momento. No quarto nível dessa mesma pirâmide se encontram as necessidades de au- toestima como a confiança. a conquista e tanto o respeito dos outros como o respeito aos outros. sexo. família. homeostase. No terceiro patamar se encontram as necessidades de amor e de relacionamen- to voltadas para a amizade. a criatividade e a espontaneidade. sono. voltadas necessariamente para a moralidade. saúde e prosperidade. comida. Baseado nas contribuições do humanismo. recursos financeiros. excreção. No quinto e último nível desse sistema proposto por Maslow se encontram as questões de realização pessoal. Na base da pirâmide estariam as necessidades fisiológicas responsáveis por desig- nar os processos de respiração. água. Figura 4. Já num segundo patamar dessa pirâmide estariam as necessidades de segu- rança diretamente relacionadas aos problemas e cuidados com o corpo. com o emprego.1 – Pirâmide de Maslow. capítulo 4 • 49 . nossa sub- jetividade está diretamente relacionada aos hábitos e modos de vida adquiridos ao longo da vida. a família e a intimidade sexual. Maslow compreendia que o sujei- to deveria desenvolver seu conjunto de potencialidades a partir de uma hierarquia das necessidades. moralidade. Qual relação pode ser feita entre essa visão de motivação empreendida por Maslow e a nutrição? Conforme podemos acompanhar neste material. números alarmantes entre a população mundial. O ponto relevante de tal olhar consiste no fato de concebermos a motivação como o incremento das potencialidades a partir da correlação entre os desdobra- mentos das necessidades humanas e suas consequentes satisfações. Para que um sujeito possa crescer em sua plenitude. Antes de qualquer coisa. Como um saber voltado para a promoção da saúde na sua integralidade. e cabe ao profissional estabelecer os principais pontos. independentemente das questões de gênero. É justamente a mediação entre os projetos que estabelecemos e as condições de possibilidade daquilo que nos é oferecido que pode ser descrita como uma leitura maslowiniana da motivação associada à nutrição. muitos dos transtornos alimentares estão relacio- nados às frustrações das pessoas em relação aos seus traços existenciais. a psicologia vem oferecendo importantes contribuições acerca das relações entre subjetividade. de estratificação social e de cor da pele. emoção. como as oficinas capítulo 4 • 50 . em todos os seus aspectos. Partindo do pressu- posto de que toda conduta é motivada. é preciso compreender como essas necessi- dades são trabalhadas. nos últimos anos. há sempre que se perguntar pela facticidade de cada objetivo traçado a fim de que as mudanças sejam percebidas de maneira paulatina. Ou seja. Ultrapassando as barreiras de um paradigma biologicista sobre os indivíduos é que podemos perceber como e sob quais condições a incidência de transtornos alimentares atingiu. é preciso sinalizar os aspectos relacionados à motivação no que tange às variáveis que interferem no pleno desenvolvimento das potencialidades do sujei- to. Nesse processo. É preciso então compreender que muitas vezes necessitamos nos engajar dentro de uma rigorosa disciplina que leve em conta o estabelecimento de novos projetos existenciais. motivação e transtornos alimentares. De acordo com a visão de Maslow. o sujeito deve perceber quais condições devem ser superadas nessa hierarquia de necessidades. Nesse sentido. há que se pensar a motivação como um elemento estratégico pelo qual são ampliadas as estratégias para o enfrentamento de qualquer adversidade. que um sujeito está motivado quando se sente participante e protagonista de um determinado projeto existencial. compreendemos. Portanto. de acordo com Maslow. um modo de ser do dia para a noite. não é nada fácil empreender a mudança de um hábito. Devemos dar atenção aos programas e práticas de saúde a partir de uma inte- ração social voltada para as práticas de preparação de alimentos. provisório e através do qual procede à exploração daquilo que quer ser. Outra proposta interessante consiste na ampliação de práticas psicológicas ele- mentares. como uma proposta voltada às po- tencialidades do sujeito. portanto. diretamente implicado na descoberta de um novo sentido para a existência através da aprendizagem volta- da para a autorrealização. à neces- sidade da criação de estratégias cada vez mais integrativas dentro do modelo de saúde oferecido aos indivíduos. as experiências clínicas orientadas pela visão do plantão psicológico. Não se trata simplesmente de uma opção intelectual. como o aconselhamento voltado para a melhoria da conduta do sujeito em relação a sua autoimagem corporal e subjetiva. capítulo 4 • 51 . Conforme pudemos observar. A partir de um paradigma ampliado de saúde. os processos motivacionais ligados aos proble- mas psicológicos dos transtornos alimentares dizem respeito. o aconse- lhamento corresponde ao desenvolvimento de uma série de orientações intrínsecas à melhoria da qualidade de vida. Rogers (2001. p.relacionadas ao consumo de vegetais e frutas. portanto. No contexto do aconselhamento se encontra a possibilidade de pensarmos uma prática de saúde voltada para a psicoeducação no sentido de buscar redu- zir os graus de ansiedades generalizadas aos quais os problemas relacionados aos transtornos alimentares estão ligados. Devem ser mencionadas. A prática do aconselhamento pode provocar a constituição exitosa de novos modelos de conduta para sujeitos que apresentam problemas motivacionais rela- cionados às práticas de transtornos alimentares. O estabelecimento de novos projetos está. 155) nos lembra que: Ser realmente o que se é. portanto. dire- tamente relacionados ao desenvolvimento pleno da saúde. que prevê o amparo e o cuidado em situações de urgência e está voltado para a aplicação de técnicas e procedimentos breves. quando é livre para seguir a direção que quiser. mas parece ser a melhor descrição do comportamento hesitante. eis o padrão da vida que lhe parece ser o mais elevado. Dentro da analítica do aconse- lhamento. não transformou as práticas de cuidado e gestão no cotidiano. não estamos diante de uma posição cartesiana entre sujeito-obje- to. 835): Essa discussão possui uma interface. Trata-se. Assim. A noção de subjetividade. As estratégias voltadas para a motivação do sujeito oferecem uma compreensão crítica sobre a integralização da saúde e acabam por estabelecer uma diretriz da práti- ca integrativa da psicologia e da nutrição no desenvolvimento da qualidade de vida. muitas vezes. nos contextos de saúde. capítulo 4 • 52 . devem estar aptas a sempre desenvolver ações integradoras em relação ao cuidado ético com a saúde dos indivíduos. e a preocupação de problematizar o tema da gestão em sua ligação com a subjetividade Aqui. no campo da saúde. Isso é o que apontam Neto et al. associada a uma compreensão crescente entre vários autores da conexão necessária entre as práticas de cuidado e as práticas de gestão. Dito de outro modo. o estudo so- bre os sentidos e os significados desses dois conceitos é uma questão fundamental para todos os profissionais da área da saúde. mas sim na interdependência da relação entre os sujeitos. sendo práticas profissionais e saberes aca- dêmicos. de perceber como o processo de adoecimento e desen- volvimento dos transtornos alimentares pode. a variável externa em jogo é o reconhecimento de que a criação do aparato jurídico-institucional do SUS. auxilia-nos a pensar os modos pelos quais determinadas práticas de cuidado devem estar voltadas para a aproximação e a alteridade dos sujeitos. nesse caso. estar associado às questões que envolvem o conjunto de motivações ligadas à situação do sujeito no mundo em que vive. isso significa que. Relações entre o bem-estar subjetivo e a saúde Tanto a promoção da saúde como os processos de subjetivação são questões extremamente importantes no nosso mundo contemporâneo. Tanto a psicologia como a nutrição podem estar articuladas no sentido de compreender a saúde a partir de uma visão integral de ser humano compreenden- do-o como protagonista da sua própria condição existencial. Tanto a psicologia como a nutrição. (2011. exigindo a construção de novas estratégias com intuito de atingir tal mudança. per se. p. No contexto da contemporaneidade. na medida em que parti- cipam ativamente de todas as suas estruturas. cuidar de si mesmo corresponde a uma atitude política através da qual o sujeito procede a emergência de novos modos de subjetivação. há uma forte tensão entre a biopolítica. de uma visão de mundo pautada na reciprocidade e no respeito mútuo. Para Foucault (1985). Em seu livro A vontade de saber. no contexto contemporâneo. a possibilidade de pensarmos os processos de subjetivação e as práticas de saúde como estratégias de fundamentação de uma ética voltada para uma concepção ética sobre os cuidados necessários com a saúde. isso significa que os processos que envolvem os serviços e as demandas da população devem sempre convergir no sentido de promover a multiplicidade de formas de existência que compreendem o seu papel de protagonista em todos os processos de saúde. nesse processo. a subjetividade compõe um elemento etica- mente delineado pelas linhas de força provenientes de novas formas de subjetiva- ção e procedimentos de governamentalidade. Descortina-se. o filósofo francês Michel Foucault aponta que nossa sociedade moderna foi consolidada a partir do que se pode chamar de biopolítica. reconhecendo as delimitações e as redes de serviços oferecidos. o concei- to de saúde sem que recorramos aos seus desdobramentos políticos para uma ati- tude ética voltada para a presença de uma dimensão coletiva de práticas políticas orientadas pelas demandas existentes na nossa sociedade. 1977) A dimensão de uma biopolítica responsável pela gestão e administração da vida na nossa sociedade ocasiona uma possibilidade para a efetivação dos processos de saúde-adoecimento serem limitados sempre a uma compreensão biologicista sobre o corpo do indivíduo. (FOUCAULT. Em sua “nomenclatura política”. já capítulo 4 • 53 . No campo da saúde. percebe-se a ética como um efeito de uma prática do cuidado em que se desenvolve uma série de ações necessárias à formulação de uma conduta. Isso significa que não há como pensar. segundo opinião de Benevides e Carvalho (2015). Diante desse paradigma crítico e político. Pensar suas condições significa pensar os modos pelos quais os sujeitos tor- nam-se protagonistas em todos os processos de saúde. Isso porque. isto é. uma economia de poder direcionada para a gestão da vida e a administração do corpo espécie. os processos de subjetivação e as práticas de saúde. o conjunto de ações e de práticas de poder pro- venientes da biopolítica acaba por produzir a necessária problematização em torno da fragmentação do humano e sua consequente reificação. ou seja. na produção de um sujeito voltado para os enfrentamentos e os dilemas nos quais se encontram as questões de saúde pública. colocando-nos diante do desafio de pensar as condições de possibilidade para o exer- cício de uma crítica em relação aos processos de governamentalização da vida. por sua vez. no sentido de pensarmos uma genealogia – isto é. estudarmos as práticas – como uma crítica aos modos pelos quais a biopolítica se articula na nossa realidade. 271) enfatizam que: O processo de objetivação da saúde. Em detrimento à figura daquilo que Figueiredo (2002) chama de subje- tividade privatizada. A maneira de a Psicologia subsidiar os jogos de biopoder diz respeito à intensificação da privatividade do indivíduo por meio de práticas e procedimentos que o tornam não apenas responsável pelos processos de adoecimento.que se encontra nesse processo a produção de toda uma estratégia de responsabili- zação para com ele mesmo e. com o outro. parte das disfunções individuais para os efeitos destas no conjunto da população. aquele que é composto por múltiplas vozes e experiências. no campo da Psicologia. Essa contextualização implica. Nesse sentido. isto é. Bernardes e Guareschi (2010. p. emerge o contexto de uma subjetividade que se ocupa em pensar a saúde como um processo mediado pelas instâncias da política. a saúde pública. a capacidade de proceder- mos à prática política como um constante embate em torno do qual se organizam diferentes modos de subjetivação. capítulo 4 • 54 . Deve-se perceber como podem estar articuladas as implicações da saúde como campo polifônico. não é objeto da Psicologia. da cultura e da história. como formulada pela medicina social. As práticas de governo ‘psi’ forjam o privado/interno e justificam-no como forma de proteção do conjunto da população. na medida em que o que está em jogo é a saúde do indivíduo. mas que o mantém responsabilizável. O filósofo francês Gilles Deleuze e o psicólogo Félix Guattari (1990) costu- mavam chamar esse processo de agenciamento. Essa manutenção do responsabilizável torna-se um dos mecanismos biopolíticos da Psicologia Devemos problematizar as formas pelas quais a subjetividade se articula nos dispositivos de práticas de saúde. fundamentalmente. Essa premissa acaba por tencionar outros elementos intrínsecos à prática da saúde. Dessa forma. devem respeitar os procedimentos desenvolvidos pelas estratégias delineadas no oferecimento de serviços a gestantes. portanto. Precisamos. As práticas de subjetividade. Ela exige autoconsciência de ser saudável. adolescentes ou mulheres vítimas da violência de gênero. identidades. nesse processo. 14): A saúde deixou de ser a ‘vida no silêncio dos órgãos’. portadores do vírus HIV. Viver para fazer viver as biotecnologias. em consonância direta com uma saúde integral. gênero. a prevenção a doenças e as manifestações transversais de estraté- gias delineadas para o enfrentamento das contradições sociais existentes. criando as condições necessárias para uma série de ações responsáveis por fazer da saúde uma prática refletida cotidiana. Estamos diante do processo de construção de práticas refletidas que ocorrem no cotidiano das práticas sociais. constituindo um princípio fundamental de identidade subjetiva. usando a expressão feliz de Leriche. Segundo aponta Ortega (2004. a capacidade de percebermos como os regimes de governamentalidade correspondem à possibilidade de compreender como o campo da saúde se constitui a partir de uma heterogeneidade de forças entre as quais encontram-se os processos de subjetivação. por sua vez. de uma condição ética voltada para uma visão crítica sobre a saúde. assim. populações qui- lombolas. p. estra- tificação social. cor de pele. Essa perspectiva acaba. Tal concepção acaba por problemati- zar a visão dualista em nome do fortalecimento de uma proposta política da saúde. afirmada continuamente e de forma ostentosa. considerar a integralidade das ações dos programas de saú- de a partir do respeito às especificidades de territórios. Mas também viver para estar em boa saúde. Os processos de subjetivação fazem parte. dentre tantas outras. Saúde para a vida. Através de um diálogo permanente e aberto entre os sujeitos e as políticas de saúde é que emerge a constatação de que os procedimentos técnicos devem ser submetidos sempre a uma discussão sobre a amplitude ética de um serviço ofere- cido à população. Desdobra-se. deve ser exibida. A Saúde perfeita tornou-se a nova utopia apolítica de nossas sociedades. um sistema de saúde deve levar em conta a heterogeneidade de atores e programas necessários ao pleno desenvolvimento das habilidades sociais. Ela é tanto meio quanto finalidade de nossas ações. capítulo 4 • 55 . v. CARVALHO. v. Anita Guazzelli. Gilles. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Fortaleza. Rio de Janeiro: Graal. João Leite et al. dez. n. Botucatu.ly/2quRb39 . 269-276. 2017. 362-374. v. ______: o cuidado de si.ly/2qvfePK>. Cadernos de Saúde Pública. 1985. 27. Revista Subjetividades. Interface. Acesso em: 16 mar. Petrópolis. FERREIRA NETO. exploramos as nuances da motivação e dos transtornos alimentares. Rio de Janeiro. 14. BERNARDES. 15. Psicologia: uma nova introdução. 2004. RESUMO Neste capítulo. n. 1. p. Acesso em: 16 mar. Disponível em: <http://bit. 2015. Natal. dentro da hierarquia de necessidades proposta por esse psicólogo estadunidense. 2017. 3. 8. Michel. p. Disponível em: <http://bit. Agnes Heller e Hannah Arendt. v. Estudos de Psicologia. v. Entendemos como se faz necessário superar a visão dualista de saúde-doença e o contexto da biopolítica para enfatizar os processos pelos quais a subjetividade se caracteriza como uma atitude ética em contrapartida aos procedimentos de normalização. 1977. Pablo Severiano. n. São Paulo: Martins Fontes.ly/2rO8dgU>. 9-20. 831-842. Rio de Janeiro: Graal. bioeconomia. na realidade. Práticas psicológicas: enfrentamentos entre saúde pública e saúde coletiva. 2001. Francisco. 1990. 2017. subjetividade: uma análise das principais transformações laborais no capitalismo contemporâneo. Acesso em: 16 mar. Luís Cláudio. 5. Usos da noção de subjetividade no campo da saúde coletiva. Neuza Maria de Fátima. GUATTARI. v. Disponível em: <http://bit. Biopolítica. n. GUARESCHI. Disponível em: <http://bit. Carl. DELEUZE. Biopolíticas da saúde: reflexões a partir de Michel Foucault. Félix. observa- mos como.ly/2qsZ2m9>. há que se salientar que a correlação entre os processos motivacionais e os transtornos alimentares necessitam ser compreendidos a partir de uma visão ampla de que a saúde é. uma prática intrinsecamente relacionada à busca pela qualidade de vida. RJ: Vozes. Tornar-se pessoa. Já o segundo momento foi dedicado a pensar os desdobramentos dos processos de subjeti- vação e do bem-estar em saúde. ORTEGA. 2010. 2017. Tainã Alcantara de. ______. 15. A partir de uma compreensão epistemológica baseada no pensamento humanista de Maslow. FIGUEIREDO. 3. Acesso em: 16 mar. encontramos algumas questões relacionadas às motivações como um processo de mediação entre os hábitos e os modos de vida adquiridos por nós mesmos ao longo de nossas vidas. p. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENEVIDES. capítulo 4 • 56 . p. História da sexualidade: a vontade de saber. FOUCAULT. maio 2011. ROGERS. 3. São Paulo: Editora 34. 2002. Nesse contexto. dirigido por Marcos Jorge (2007). No segundo nível dessa pirâmide. Enumere as hierarquias das necessidades humanas segundo Maslow. No terceiro. Por que a motivação está diretamente relacionada ao problema dos transtornos alimentares? 3. Os processos de subjetivação efetivam-se como uma proposta ética conforme rompem com a visão cartesiana de saúde-doença em nome do fortalecimento de uma visão sistêmica sobre os processos de saúde. capítulo 4 • 57 . MULTIMÍDIA Como sugestão. As hierarquias das necessidades são estruturadas por Maslow da seguinte forma. gostaríamos que você assistisse ao filme brasileiro Estômago. Por fim. 2. ATIVIDADE 1. 2. Num pri- meiro plano. estão as questões de realização pessoal. Já no quarto nível. no quinto e último nível. a motivação deve estar diretamente relacionada à busca por uma melhoria da qualidade de vida nas relações humanas. encontramos os desdobramentos das necessidades fisiológicas. Por que a subjetividade entendida como um processo deve ser compreendida como uma atitude ética em saúde? COMENTÁRIO 1. nos deparamos com as necessidades de autoestima. reconhecemos as necessi- dades amorosas e de relacionamento. Conforme observamos. estão as necessidades de segurança. 3. capítulo 4 • 58 . 5 Transtornos alimentares: Uma abordagem psicossocial . tendo como compreensão uma visão de sujeito pautada na sua dimensão biopsicossocial. OBJETIVOS • Apresentar as correlações entre os transtornos alimentares e a dimensão biopsicos- social do sujeito. num primeiro momento. as principais correlações entre os transtornos alimentares e o processo de produção da subjetividade. Procuraremos abordar essa problemática a partir da aproximação da psicologia com a nutrição. assim. apresentaremos a você. sua etiologia e suas possíveis implicações para a saúde do sujeito. com a história e com seus componentes biológicos. • Definir as principais características dos transtornos alimentares. aprofundando as contribuições da psicologia para uma visão sistêmica e holística em torno da problemática dos transtornos alimentares. alguém que se constitui a partir da sua relação com o mundo. a anorexia e a bulimia: aspectos biopsicossociais Introdução Nesta última unidade deste livro didático. dada a ampla co- bertura da mídia sobre o aumento considerável de casos de obesidade mórbida. caro lei- tor. • Aproximar a definição dos transtornos alimentares a partir de uma visão integral de saúde e qualidade de vida.Transtornos alimentares: Uma abordagem psicossocial A obesidade mórbida. as definições preliminares sobre os transtornos alimentares. Uma definição psicológica e histórica sobre os transtornos alimentares Segundo Cordás e Claudino (2002). os transtornos alimentares são comu- mente analisados como um fenômeno do mundo moderno. Em seguida. Apresentaremos. isto é. bulimia e anorexia. capítulo 5 • 60 . falaremos sobre as características biopsicossociais desses transtornos. Nessa época. Tomemos como exemplo desse processo o sentido etimológico da anorexia ner- vosa. determinado sujeito pode ser capaz de. Na Grécia Antiga. segundo sua etimologia.. às práticas de saber e aos processos de subjetivação. p. no processo histórico sobre os transtornos ali- mentares encontram-se definidos.. A palavra “anorexia” tem como origem a junção das palavras gregas an – defi- ciência – e orexis – apetite. Entretanto. Como exemplo.. figurativamente. existe uma longa história de práticas psicológicas e psiquiátricas sobre os processos de adoecimento que envolvem a relação do sujeito com seus próprios hábitos alimentares. tomar como ponto de par- tida a relação existente entre doença. O que ora afirmamos é que. “devorar um boi inteiro”. presentes na vida em sociedade. uma pluralidade de significados. momento histórico em que o mundo ocidental era forte- mente influenciado pela Igreja católica. se quisermos empreender um olhar crítico sobre os transtornos alimentares.. segundo Cordás e Claudino (2002. objetivando estabelecer um controle sobre a radicalidade das práticas cristãs. a deficiência para o apetite era tida como uma questão muito importante sobre o estado de adoecimento do sujeito. isto é. capítulo 5 • 61 .. apresentou a seguinte definição acerca da anorexia nervosa: “[. Se pretendemos compreender a real dimensão sobre o problema dos trans- tornos alimentares devemos percorrer os significados da relação entre o sujeito e seus hábitos para entender como determinados processos podem afetá-lo nas suas práticas sociais. vejamos o caso da bulimia. Já no século XVIII. previamente. a Igreja acabou desenvolvendo uma série de reflexões nas quais eram apresentados. o apetite voraz pelo qual. através de textos prescritivos. necessariamente. Outro dado interessante acerca da história dos transtornos alimentares se en- contra na Idade Média.. o médico inglês Willian Gull. Conforme pudemos observar. os malefícios do jejum excessivo praticado pelos cristãos. bous – boi – e limos – fome.] forma peculiar de doença que afeta principalmente mulheres jovens e caracteriza- -se por emagrecimento extremo [. cultura e modos de subjetivação. 3).] decorrente de um estado mental mórbido e não a qualquer disfunção gástrica”. O filósofo francês Michel Foucault costumava dizer que o papel dessa história seria o de nos fazer pensar justamente quais acontecimentos estão relacionados aos elementos culturais. devemos.] cuja falta de apetite é [. 10ª edição. É inegável constatar que a presença de transtornos alimentares é um problema de saúde e. é preciso que se desmistifiquem alguns estereótipos em que estão incrustradas algumas definições inadequadas sobre tais transtornos. apresentando-se como uma condição cultural segundo a perspectiva dos estudos psicológicos a partir de uma compreensão biopsicossocial que pode auxiliar a contextualizar um olhar crítico sobre essa realidade. 1994) e CID-10 (Classificação Internacional de Doenças. sobretudo. ao contexto de uma sociedade cada vez mais espetacularizada na qual o sinônimo de saúde torna-se uma luta perene em mortificar o próprio corpo. APA. que leva as pacientes a se engajarem em dietas extremamente restritivas ou a utilizarem métodos inapropriados para alcançarem o corpo idealizado. também de políticas públicas. p. Ou seja. IV edition. é preciso ultrapassar o modelo bio- médico de tratamento dos transtornos alimentares: Os atuais sistemas classificatórios de transtornos mentais. Tal constatação recai sobre a possibilidade de entender os trans- tornos alimentares como uma condição ontológica. os dois transtornos acham- se intimamente relacionados por apresentarem psicopatologia comum: uma ideia prevalente envolvendo a preocupação excessiva com o peso e a forma corporal (medo de engordar). estamos diante de situações clínicas consideradas graves. ressaltam duas entidades nosológicas principais: a Anorexia Nervosa e a Bulimia Nervosa. com a qual se mostram sempre insatisfeitas. Ora. Tais pacientes costumam julgar a si mesmas baseando-se quase que exclusivamente em sua aparência física. é imprescindível perceber como os elementos de um pa- radigma biopsicossocial podem nos ajudar a compreender o processo dos trans- tornos alimentares como um problema cultural ligado. 1993). um olhar mais atento sobre as questões contemporâneas de gênero é suficiente para descontruir essa ideia. OMS. 7). com alta taxa de mortalidade. capítulo 5 • 62 . De qualquer forma. Entretanto. Segundo Claudino e Borges (2002. portanto. A primeira dessas definições equivocadas compreende que os transtornos ali- mentares são um problema de saúde que acomete somente as mulheres. Embora classificados separadamente. DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual. A filósofa estadunidense Judith Butler (2011) costuma afir- mar que a materialidade do corpo transcende qualquer categoria de gênero e de prática cultural. con- forme apontam Carvalho. Entretanto. considerando que essas últimas são mais acometidas por essas desordens alimentares e mais insatisfeitas com seu corpo. No mundo contemporâneo. 204): Ao possuir um papel precursor nos transtornos alimentares. capítulo 5 • 63 . Nesse sentido. diferenças nas atitudes alimentares e insatisfação corporal entre homens e mulheres. observado por meio da preocupação com o peso e com a forma física. a imagem corporal assume um lugar de importância para entender os transtornos alimentares. inevitavelmente. Diante desse quadro. Ida e Silva (2007) compartilham opinião semelhante: a busca incessante pela formação de um culto ao corpo favorece a produção de uma experiência contem- porânea em que os transtornos alimentares se efetivam como uma epidemia. em seu estudo. assistimos à proliferação de dispositivos responsáveis por fazer com que o sujeito lide com seu próprio corpo através de metas muitas vezes impossíveis de se atingir. p. exigindo dos profissionais da área da saúde – dentre os quais destacam-se psicólogos e nutricionistas – um posicionamento ético e responsável intrínseco a uma visão integradora de saúde como promoção de qualidade de vida. estamos diante da exacerbação de um padrão estético que nos con- duz. a dieta remete à vontade de emagrecer e a um possível desagrado com o próprio corpo. é cada vez maior o número de pessoas que se automedi- cam como forma de acelerar o seu processo de emagrecimento. Essa característica nos leva ao segundo estereótipo relacionado ao problema dos transtornos alimentares: a representação social de que um corpo magro é si- nônimo de saúde. para a doença. Mohoric e Durovic (2007) observaram. O engajamento pela perda de peso leva muitos sujeitos a estabelecer objetivo quase que doentia ao punir a si mesmo através de dietas cada vez mais radicais. Nessas patologias alimentares. Amaral e Ferreira (2009. Pokrajac-Bulian. o corpo se torna um objeto central de insatisfações. que influenciam fortemente a autoavaliação que os jovens fazem de si mesmos [sic]. O grande desafio aqui consiste em desconstruir a imagem de um corpo nor- mativo para que haja uma discussão ética sobre os problemas alimentares. Ou seja. os transtornos alimentares constituem- -se como um problema de saúde pública. as relacio- nadas ao corpo são. Segundo pesquisa de Novaes (2006) com frequentadoras de academias de ginástica e pacientes submetidas a cirurgias plásticas e bariátricas. A busca por um corpo perfeito.Obesidade mórbida. 2007. a bulimia e a anorexia. transformando-o em um objeto de consumo. podendo levar os sujeitos a óbito. Essas trans- formações potencializam toda uma energia emocional que pode desembocar na produção de um distúrbio alimentar. tolerando- se melhor os desvios e negligências. utilizam cosméticos para afirmar-se na condição do que é considerado como padrão estético feminino em nossa sociedade. Ao analisarmos os modos de subjetivação contemporâneos. jovens e mulheres adultas frequentam academias de ginástica. De todas as transformações a que estamos sujeitos na nossa vida. capítulo 5 • 64 . independente da classe social. nos homens. (IDA. p. Para a pesquisadora. a construção de uma imagem feminina é necessariamente atravessada por investimentos voltados para o próprio corpo. bulimia e anorexia: identificações e tratamentos possíveis Conforme pudemos observar até aqui. SILVA. percebemos que estamos inseridos em uma lógica capitalística na qual é permitido manipular e controlar o corpo das mais diversas formas. os imperativos de beleza são bem mais sutis. fazem dietas. enquanto no gênero masculino podemos falar de imagens centradas em conquistas sociais e econômicas. 420). sem sombra de dúvida. Novaes (2006) afirma que. dado o número significativo de pes- soas que apresentam modos de subjetivação cada vez mais relacionados a doenças como a obesidade mórbida. foi demonstrado que a preocupação com a beleza é presente em todas as mulheres entrevistadas e. as mais significativas. todas utilizam diversas práticas para livrar-se daquilo que entendem como feio no próprio corpo. Assim. meninas. acaba por potencializar todas as questões que envolvem quadros clínicos severos. Assim. somada às constantes frustrações presentes em uma sociedade cada vez mais acelerada e exigente. tal fenômeno é potencializado pelo fato de que a sociedade atual faz exigências e exerce um controle maior sobre os corpos de mulheres uma vez que. ainda que consideremos as transformações corporais um elemento im- prescindível para uma contextualização sobre o papel dos transtornos alimentares na nossa sociedade contemporânea. Por exemplo. os métodos empregados pela pessoa acometida de anorexia envol- vem dinâmicas radicais de busca incessante pela perda de peso através do uso capítulo 5 • 65 . o anoréxico apresenta forte receio em ganhar peso repentinamente. ou melhor. Em relação à obesidade mórbida. Em linhas gerais. pode estar associado à desconstrução das crenças alimentares do indivíduo. além de apresentar uma alta distorção em relação à própria imagem corporal. O tratamento psicológico. da aquisição de novos hábitos de vida e. Mas. pode-se dizer que está diretamente rela- cionada ao processo de acúmulo acentuado de peso. o indivíduo pode desenvol- ver amenorreia – ausência do ciclo menstrual –. Dentre as consequências orgânicas e fisiológicas. é preciso deixar claro que para além de qualquer procedimento de intervenção médica o sujeito deve mo- dificar radicalmente seu estilo de vida caso queira superar o transtorno alimentar. a correlação entre a psicologia e a nutrição efetiva-se como uma estratégia integrativa voltada para a qualidade de vida desse indivíduo. portanto. de aumento do Índice de Massa Corporal. Já a anorexia pode ser descrita como o transtorno alimentar em que o sujeito recusa-se a manter um peso adequado a sua idade e altura. nesse sentido. além de gastrite e úlcera nervosa. desde a realização de exercícios físicos sem orientação adequada até o consumo de medicamentos sem qualquer prescrição médica. Embora nos últimos anos a medicina tenha desenvolvido uma série de ações para esse público – a cirurgia bariátrica. uma pessoa acometida de anorexia pode apresentar uma taxa de 15% do peso corporal abaixo do esperado. é necessário sinalizarmos alguns aspectos direta- mente relacionados a uma possível identificação desses transtornos e seu consequen- te processo de tratamento a partir de uma compreensão biopsicossocial da saúde. observa-se que a maioria dos sujeitos portadores desse trans- torno possui um histórico voltado para frustradas tentativas de redução de peso. por exemplo –. Os problemas emocionais ligados à obesidade mórbida correspondem à di- ficuldade do indivíduo em lidar com os processos de frustração inerentes a uma prática equilibrada de busca pela redução de peso. Em geral. nesse caso. Como característica psicológica. Estamos falando. além de uma constante programação objetivan- do reforçar o seu comportamento para uma melhoria da sua condição psicológica. anorexígenos. hidroele- trolíticas e demais patologias metabólicas extremamente nocivas à saúde. Nesse sentido. Outro ponto que merece destaque no tratamento é a multi e a interdiscipli- naridade. a prática clínica da psicologia necessita estar associada ao desenvolvimento de ações integradas junto a outros profissionais da área da saúde. O bulímico tenta encontrar uma solução para o seu problema adotando um comportamento desconfortável e perigoso. isto é. ao uso excessivo de laxantes. a bulimia acaba acarretando diversas al- terações nos quadros cardiovasculares. Um tratamento psicológico adequado à pessoa acometida desse transtorno alimentar implicaria na adoção de uma busca pela extinção de regimes e dietas consideradas restritivas. por fim. Esses episódios são comumente associados a um frequente sentimento de falta sobre a conduta alimentar.abusivo de laxantes. o sujeito bulímico é acometido de uma espécie de ciclo vicioso no qual os regimes de austeridade com o próprio corpo associados às práticas de dietas restritivas acabam por influenciar todo um paradigma no qual aumenta-se o estado de provação. Por fim. além de doenças gastrintestinais. determinados acontecimentos res- ponsáveis por fazer com que o sujeito desenvolva uma compulsão na qual ingere uma quantidade excessiva de alimentos num período muito breve de tempo. sobretudo os nutricionistas. A compulsão alimentar. capítulo 5 • 66 . Em relação aos processos fisiológicos. Na realidade. pensamentos e sentimentos. Dentro do contexto da prática clínica o envolvimento de toda a família é fundamental para a potencialização da autoestima da pessoa. Dessa forma. diuréticos. compensado através de atitudes como a indução ao próprio vômito. acaba se tornando um hábito. Soma-se a isso o fato de que a repetição e a multiplicação dos quadros com- pensatórios acabam produzindo um forte sentimento de culpabilização e de fra- casso na vida do indivíduo. bem como a inserção de dietas radicais e a prática de exercícios físicos sem qualquer tipo de supervisão técnica. a bulimia nervosa pode ser caracterizada pelo que a literatura espe- cializada chama de episódios bulímicos. o tra- tamento psicológico necessita de uma ampla aceitação por parte de todos os inte- grantes do círculo intimo da pessoa. a indução a vômitos e a prática de atividades físicas em excesso. é correto percebermos a práti- ca clínica a partir da modificação de valores. diuréticos. O tratamento psicológico indicado está direcionado para a modificação dos hábitos de vida do sujeito anoréxico. Nesse sentido. v. FERREIRA. 11. p. Transtornos alimentares: uma perspectiva social. Renata Silva de. Critérios diagnósticos para os transtornos alimentares: conceitos em evolução. a bulimia necessita de um amplo acompanhamento multi e interdisciplinar. v. 3. de seus hábitos alimentares. 2017. On the Discursive Limits of Sex. set. Disponível em: <http://bit. Psicologia: Teoria e Prática. Táki Athanássios. 2017. p. 2011. Revista Brasileira de Psiquiatria. Fortaleza. 7. bem como a verificação dos mo- mentos em que sua ansiedade é acentuada. v. 24. 3. 3-6. Acesso em: 24 mar. 200-223. n. São Paulo. CORDÁS. Transtornos alimentares: fundamentos históricos. p. CLAUDINO. Transtornos alimentares e imagem corporal na adolescência: uma análise da produção científica em psicologia. Acesso em: 24 mar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUTLER. Maria Beatriz Ferrari.ly/2qvfPAV>. 24. Ana Carolina Soares. supl. Disponível em: <http://bit. Revista Mal-Estar e Subjetividade. 417-432. BORGES. SILVA. 2009. Maria Elisa Caputo.ly/2rOFk3V>. Angélica de Medeiros. 2007. capítulo 5 • 67 . Nova York: Routledge. São Paulo. Sheila Weremchuk. Acesso em: 24 mar. n. Uma ferramenta importante a ser empregada é o monitoramento. 2002. Angélica de Medeiros. p. CLAUDINO. v. 2. Judith. por parte do próprio sujeito. 2017. Revista Brasileira de Psiquiatria. IDA. Disponível em: <http://bit. Rosane Neves da. São Paulo. Da mesma forma que os outros transtornos alimentares. O estabelecimento de metas e a manu- tenção de refeições regulares podem ser um indicador da melhoria da qualidade de vida do sujeito. 7-12. CARVALHO. AMARAL.ly/2rOefhu>. Soma-se a isso o fato de que o indivíduo necessita de um forte apoio de seus familiares no que se refere ao desenvolvimento de novos hábitos alimentares e práticas de conduta que favoreçam o desenvolvimento da sua qualidade de vida. com a participação in- tegral dos profissionais da área da saúde. 2002. precisam estar amparados numa com- preensão ampla da relação saúde-adoecimento a partir da adoção de estratégias multi e interdisciplinares por parte dos profissionais da área da saúde. apresentamos nossas considerações acerca da relação entre os trans- tornos alimentares e a saúde a partir de uma visão de sujeito biopsicossocial. ATIVIDADE 1. Conceitue o que é a anorexia. RESUMO Neste capítulo. 3. MULTIMÍDIA • Você pode aprender mais sobre o assunto trabalhado assistindo ao filme O preço da per- feição: a história de Ellen Hart Pena. 2. a bulimia e a obesidade mórbida. Apreendemos também que os principais transtornos alimentares. a literatura especializada compreende a adoção. acarretando severas consequências para seu organismo e sua saúde mental. dentre os quais desta- cam-se a anorexia. Conceitue o que é a bulimia nervosa. 3. Conforme pu- demos analisar. através da culpa e do medo. Por anorexia nervosa. Conceitue o que é a obesidade mórbida. essa visão procura pensar os desdobramentos das práticas de saúde a partir da sua integralidade no sentido de favorecer ao indivíduo a melhora da sua qualidade de vida. COMENTÁRIO 1. de um regime austero de restrição alimentar que pode provocar a ausência de vontade em se alimentar. o comportamento compensatório de dispensar os alimen- tos ingeridos por meio do vômito autoinduzido e do uso de laxantes. de Jan Egleson (2000). 2. capítulo 5 • 68 . A bulimia nervosa caracteriza-se como um transtorno responsável por fazer o sujeito pro- duzir. A obesidade mórbida desenvolve-se quando o sujeito tem uma alta taxa de gordura cor- poral incompatível com sua idade. por parte do indivíduo. ANOTAÇÕES capítulo 5 • 69 . ANOTAÇÕES capítulo 5 • 70 . ANOTAÇÕES capítulo 5 • 71 . ANOTAÇÕES capítulo 5 • 72 .