POLIAKOV,Leon.EspanhaOMitoGótico.InOMitoAriano.SãoPaulo.Perspectiva,1974.pp.3-8

March 18, 2018 | Author: Vinicius | Category: Spain, Invasion, High Middle Ages, Ethnicity, Race & Gender, Racism


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léon Pol'iakovO MITO ARIANO Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos ~\i11, ~ ~ l//I\~ r~~ i ' . :.i EDITORA PERSPECTIVA n o ns-r. cff . Depois das invasões germânicas.1. Anterior1nentc." ut<'n111. ambos filhos de J afé. com re!ação àos outros grandes países ocidentais. os iberos descobriram além disso que tinham.n/111s . 11 / l. 1. só terem guardado um vago sentimento de consti tuírem uma estirpe particular. Zu rique. A . v. o Arcebispo Isidoro de Sevilha. 1111 d . H/spanla-ldee ( .:nero humano. complctan1entc latinizada. pnrti<. esta invasão assinalou igualmente com sua marca a história e as tradições espanholas. Mas a invasão de 711 faz esquecer facilmente as que tiveram lugar três séculos antes. No entanto. . e portanto tin11am adquirido os títulos ao domínio mundial 1. pp. a conquista romana tinha apagado a cultura indígena a ponto de os habitantes da Península. ele "descender dos iberos" ( não van1os entrar nos pormenores destas reminiscências tribais ou regionais nem nos den1orarmos no caso excepcional da língua e da cultura bascas). Adão e Noé por antepassados. llP.. Espanha: O Mito Gótico O fato singular da história da Espanha."'lllarmcnle pp. 103 e ss.. Com a cristianização. com o restante do gC. é o secular domínio muçulmano. 445-456. que há tempos tinham subjugado a Cidade Eterna. e H AN !'i M l!S !'i Ml!R. não deixava de conceder a superioridade à raça dos conquistadores. Em seus escritos. os visigodos invadiram o país e ali se estabeleceram de maneira estável. quando no rasto das tribos suevas e vândalas. ligando os primeiros a Tubal e os segundos a Magog. tomou a seu cargo emparentar o mais estreitamente possível entre si os iberos invadidos e os· visigodos invasores. o autor mais erudito e mais influente da Europa pré-carolíngia. 1%0. Mas os conquistados cran1 promovidos à dignidade de seus primos. provavelmente. Por seu turno.. como não o era a terra que reconquistaram e repovoaram'' 4 .O MITO ARIANO 4 Como bom servidor da dinastia visigoda. 1795.. La rcalidcid histórica de Espaiúi. Isidoro úc Sevilha era. na Espanha unificada dos Reis Católicos. pp. Oeul'res politiques. os descendentes batizados dos muçulmanos e dos 2.. jan. esta união não foi perfcita1nente sclaJa. jamais inflamaram nenhuma das facções en1 confronto. Desde 1780. . "un1a fan1ília espanhola que permanecera inteiramente loira e puramente gótica. Em 1868. na apreciação de numerosos historiu. as rivalidades genealógicas se desenrolavam sob um signo totalmente diverso. 37 ( artiQ1• · -" on Anthropology). a começar pela lenda de Alba e d~ Roma. 9 e si. afirmava que "as nações espanhola e portuguesa descendem sobretudo dos visigodos. ) . Nordstroen1 escrevia que "a expansão da Espanha cristã era uma expansão da raça gótica" (a hjstória dos godos foi muito estudada na Suécia.:ão de supremacia oficial" 3 . à maneira de Isidoro de Sevilha. As teses contrárias não faltaram.1 selar uma amizade pelo sangue não faltam ncn1 na Antrorologia nem na História. Pacíficas querelas de sábios. Mencndez y P~layo afirn1ava que "os visigodos não eram espanhóis. . t. E. a Anthropological l~evielv de l~ ondrcs assegurava que se havia descoberto.. . M<ls nc1n scrnprc foi assim. em Iucatfí . a acreditar cm Américo Castro. 3. com razão qualificú-los de alemães" 2. Depois de completar a "Reconquista" cristã. Berlim. Ainda cm 1944. 1868. que s~ valia unicamente de Tubal. Cf.ir). o sutil An1érico Castro acabava de escrever que "a aspiração a querer ser godos revela que os espanhóis da Idade Média não o eram. que. e um dos mais ilustres dentre eles.. F . Aqui intervém o passado muçulmano ou judeu-muçul- mano da Espanha. pois. animado pela preocupação d e urna coabitação pacífica: os exemplos da fusão de dois 1nitos par. os espanhóis aspiravam a ser godos.ç _ A. defendendo a parte gern1ânica. o primeiro apóstolo prussiano. e se uma espécie de cortina se interpõe entre estes eruditos polêmicos e os tempos cm que. dores espanhóis. HERTLBERG. pode-se. Editorial note. Tht Anthropological Review. criticando Nordstroem. de onde a tradição a faz prov. l. com uma certa adição dos autóctones da antiga Espanha.i~xico. ~-d . dos vândalos e dos suevos.t. é provavelmente porque. mesn10 num país tão inclinado às divisões intestinas como a Espanha ·m oderna. p . da "germanidade". o historiador sueco J. No entanto. CASTRO. detendo durante séculos uma categoria e uma posic. 1954 . o Ministro Hertzberg. os romanos e·-·Õs sarracenos ( . i. e esta 111ácula. Assim. :. ou scrvian1-lhcs de pretexto. a divisão era feita não cn1 função da "gern1anidadc" ou da "iberidade" dos antepassados remotos.oologic111e sur lc ge11rc l111mai11. . p. estin1ulando o frcncsi nobiliário. a ''querela das duas raças" se desenrolava. relegados na casta quase intocável dos Cristãos Novos ou conversos. 1960 . o inflcctir o curso da história 5 . SIC!lOM-. de sangue i1npuro: portanto. que se estendia até aos trabalhadores e freava a ascensão de uma classe burguesa. ~e sangue". esta clivagc1n radical. legado <lc seu passado n1uçuhnano. mas cn1 virtude <la ortodoxia ou heterodoxia c. Este singular c. 161. a falsa crença dos n1ouros e dos judeus tinha n1aculado outrora seu sangue. na história européia. 'T'al capricho é anúlogo àquele dos fidalgotes de entre o R.. Paris.ispiraçõcs paratribais podem ter livre curso para rcn1odelar a seu talante as ideologias.fieclc. B. tinha sido transn1itida hcreditaria1ncntc até seus rcn1otos descendentes. A con1paração era provavcln1cnte defeituosa. e "estatutos de pureza de sangue" divic.ESPANHA: O MITO GóTICO 5 judeus foran1 convertidos cn1 objeto de infân1ia. e os Cristãos Novos. ou "nota".1pítulo <la história espanhola. 1827. J9ú 1. Lcs controverses des status de "purcté de sang" cn Espagnc d11 XVc a11 XVIII• . 6. nun1a conjuntura propícia. 1\dão. SAINT-VINCENT. essai . pela primeira vez. de .lestes. con1 5. pois na França moderna.o<lcrn_~' ver nossa obra De Mahomet a11x h1arru11cs. l'ans. como o vcre1nos. nlas considerava ql1c a rejeição de Cristo havia corrompido biologic:uncntc os conversos. O certo é que o "1nito gótico'' conservou adeptos até na Espanha 1nodcrna. Paris. Con1 rel ação ao problema da "purc1.Jiranl os espanhóis ern duas castas. provavclincnte. Nos tcr1nos de uma teologia elaborada por teólogos espanhóis. Estes predon1inava1n tradicional1ncntc nas ativida<lcs artesanais e con1crciais: as rivalidades cconô111icas acobcrtavatn os ódios sagrados. confundiu os traços de un1a clivagen1 sociorracial que ren1onta a uma época pré-1nuçulmana. o antropólogo francês Bory de SaintVincent escrevia: "Os godos tinham adquirido tal renon1c que u1n castelhano só se considera nobre quando descende <lc uma família goda. un1 racisn10 institucionalizado se manifestava. afJstando parlícular1ncnte os ''Velhos Cristãos" das atividades produtivas. Assim é que. na E spanha 111. Comparando-o cn1 1827 ao "1nito franco" da França.cno e os Pircneus que não querem ser gauleses e se <lizcrn francos" 6 . Deve-se notar que os teólogos que claboraran1 esta doutrina não ncgavan1 que as duas categorias de cristãos descendcsscrn <lc um pai con1un1. I . teve grande peso na história da Península Ibérica. desprezando o dogma da virtude regeneradora do batismo.'l10111 mc. ao mcs1110 tCfflpo cconô1nica e genealógica. os Velhos Cristãos. de puro sangue. ass!m cumo A. atribuído ao "cavaleiro do sol" (caballerQ del Fecho) .6 O MITO ARIANO uma intensidade bem diferente. M OREL-FAT IO. Ser godo. se esforçassem na r ealidade de sua conduta como filhos de uma r aça conquistadora. vangloriar-se de ser nobre. . 169. que foram os artesãos da Reconquista. M adri. foi pois a de uma " realidade psíquica". eis que esclarece por seu turno a fórmula de Américo C ast ro sobre os cspanl1óis que aspiravam igualmente a ser godos.. o dobre da cavalaria em Espanha soava também para o mito gótico. 10 . ser de nobreza antiga" 7 • No início do século XX. parecia uma flecha lançada contra o alvo através <los ·séculos . Contudo. o dicionário d a Academia espanhola registra ainda. A ação exercida pela " herança gólica". . colocado no cabeçalho do Dom Quixot e. tudo se passava como se os príncipes cristãos da Espanha m edieval. qualificava em excrgo Don1 Quixote ele (Jodo quijoto. Em outras palavras. M ais adiante. acrescenta: A tradição da hera nça gótica.. Ccrv ~u1 tes. que acabou por se espalh ar por toda a Espanha. illustro y claro 9 : neste sentido. estimulados p ela convicção de serem godos. o historiador espanhol José Maravall escrevia recentemente: A ilusão do legado gótico certamente tinha valor de um mi to. El concepto de E spaíía en la edad media. o termo revestira-se de um valor sobretudo irônico. MA RAVALt. Mas os príncipes e os cavaleiros da Idade Média. A. se toda uma série de rei s e de príncipes agiram corno o fizeram. n1as. pp. ~tudes sur l'Espa gne. é porque ouviam di zer cn1 torno <le si que eram os herdeiros dos godos. Na origem. e o mesmo já se passava na literatura do Século de Ouro espanho1. de acordo com a terminologia freudiana. 1923 . A. evidentemente não pode ser considerada como uma versão autêntica dos acontecimentos que tiveram lugar no decurso de nossa Idade Média. J. Com efeito. os latino-americanos tratavam de godos os espanhóis apaixonados pela nobreza 8 • Portanto. Quanto a isto. deve-se reconhecer ne la un1 tios fatores mais vigorosos desta idéia e da ação política que di sto derivava 10 . mas de uma tradição destinada a dar um sentido a atos e a uma série de afrontamentos belicosos. ·"'i4. estudando a história cio conceit o de Espanha nesta época. mesmo sabendo que não 7. e esta tradição acabou por adquirir cm nossa hi stória medieval a eficácia de uma crença coletiva. Paris. mais do que qualquer outra. •. mas procurando por assim dizer suas palavras. tal con10 no-la descreve Maravall de m odo sugestivo. levavam tão a sério seu passado visigodo como sua dignidade feudal. 9. Estas indicações n os foram amavelmente fornecidas por M arcel Bataillon.p. por exemplo.. Esta fórmula encontra-se num soneto.. em seu artigo " Godo": "Hacerse de los godos. D aí o si ngu lar caráter dinfln1ico de nossa hi stória medieval que. provavelmente não se tratava da explicação de um fato real. 320 e 354. 8. LUING.. seja o que é caduco e reprovável ("bti rbádc gótica'' ). os P adres da Igreja e os cronistas o havian1 ni n1bado de uma auréola que refletia o p:1vor e a ad1ni raçâo que os vencedores e os novos senhores de Ron1a. há oito séculos de distância. V. Atribui-se a Carlos V a opinião segundo a qu:. C f. Poder íamos mul tiplicar estes exemplos. Jalir/11111dert. cir. '"G o thic" i 111 17. SAM UE L K LIGEn. Cf. T11.rvar<I. p. ] . alternativamente inccn:-. Leipzig. BoRST. os búrbaros godos. n1ns Santo Agostinho via neles o instrumento especial da providência divina. Entrcn1cntcs. 1954. C f. passageira na 1ngl:1tcrra. 14. Colôn ia-Graz. desde o Rcnasci1nenlo. 13. 'Iltc Gotl1x i 11 E11xfa11d. Jhe inspiravan1. 12.1 1 quase toda a nobreza européia descendia d os godos da I::scandinúvia 14 . p. testemunh ando a prodigiosa impressão que a queda da Cidade E terna produziu sobre os contemporâneos 12. Estas c. Btr::or::R. 1921. Assi m. o "go ticisn10" conheceu fortuna . Cf. 985. v. o delegado do Rei João II de Castela ainda se valia do sangue visigodo de seu rei para obter no Concílio de Basiléia a precedência sobre os enviados dos outros prínci pes. . seja o que é sublime e eternamente jovc1n ("liberdad es gó ticas").. enquanto Salvião fazia contrastar seus costumes puros e jovens com os da Roma decadente. Goten 11nd Wa11 dale11. Em 1436. e que assitn procuravam se identificar a r eis que se prevaleciam de sua incomparável linhagem . nssinalar que o non1c godo era prestigioso em tod. e uma fortuna ainda melho r na Suécia. wul J8.ados ou 1na]ditos. pp . 1nas que n líl'1gua nlcn1fi a nuança não deixa de ser significativa qualifica de "n1igraçõcs de povos" ( V oclkerwa11deru11ge11) . tuna moderna e variável do epíteto "gótico" para designar. Assim é que . identificados co1n os gcrn1anos 13. as culturas e as próprias línguas. Santo Ambrósio con1par ava-os aos terríveis gigantes Gog e M agog da Bíblia. 1952 .11g. É sabido que na Alemanha. e J o1m HA SLA<i. op . É destes escritos que h aure sua pritneira origem a for-. " escrita gótica" designa ainda cm nossos dias uma escrita e. Cabe. Ill/ L . Desde a Antiguidade. Ila.) parece finalmente ter arbitrado este debate. 61. Zurique. G cscl1icfite der G erm a11enforscl11. HANNO HF. 3-52.is épocas.m desuso considerada con10 escrita nacional. r~ítria lendá ria dos godos.ESPANHA: O MITO GóTICO 7 o cran1.1 a Europa. compreendidos aqui aqueles que dcsccnd ian1 dos "god os do Norte" 11. O juízo estético ("catedrais gótiças.Iicussõcs e estes termos f ortcmente evocadores vivificavam c1n todos os países a lembrança de acontecimentos semi1cgcndários conhecidos cm todas as línguas romanas sob o non1c de "invasões bárbaras 11 . como sinônin10 de "germ anismo". l % 3. dialogavam cada 11. A. depois. a linhagem de Magog. notemo-lo desde já. onde o mito gótico cedo estiolou. o mito do sangue. Com efeito. primeiramente sob a forma de linhagens ligadas a outros personagens bíblicos. da pureza de uma linhagem. é primeiramente a preocupação com a pureza da fé. a antiga tendência a superestimar o sangue germânico. ferozes no século XX. A originalidade da história espanhola poderia ser. em detrimento da linhagem indígena de Tuba!. rica em ensinamento.8 O MITO ARIANO uma a seu modo com o passado que se tornaria a era de referência das mitologias patrióticas das principais naçocs .. e uma casta impura. colocou o dogma em ridículo. o certo é que as pu1sõcs agressivas da coletividade com muita freqü ência eram derivadas. uma vez relegado o pai universal Adão ao museu das antiguidades. O verdadeiro afrontamento travava-se doravante entre uma casta pura. que esteve na origem do estabelecimento da Inquisição espanhola. Na Espanha. uma vez esmagado o "Infame''. concluindo. em proveito dos tun1ultos internos. mais tarde dita semita. que era tida como da linhagem jafética. é um racisn10 pensado e expresso em termos teológicos que lhe sucedeu. Para a Espanhu 1 podemos observar. Este afrontamento acompanhava uma história rica cm lutas intestinas. rapidamente. na hora ·da reunificação do país. surdas na Espanha do barroco. . europeias. determinadas por inumeráveis fatores sobre os quais os historiadores estão longe de concordar. mas. sob o signo das ideologias nacionalistas ou racistas dos tempos modernos que também ostentavam origens comuns (históricas ou biológicas). Reencontraremos tendências análogas cm outros países. . do ponto de vista aqui considerado.
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