ALGUNS POEMAS PORTUGUESESÍNDICE Alberto Pimenta PORCO TRÁGICO I BALADA DITIRÂMBICA DO PEQUENO E DO GRANDE FILHO-DA-PUTA António José Forte UMA FACA NOS DENTES O POETA EM LISBOA UM HOMEM RESERVADO AO VENENO AINDA NÃO POEMA AZULIANTE DECLARAÇÃO DENTE POR DENTE LIBERTAÇÃO MEMORIAL O BOM ARTÍFICE RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM TESES SOBRE A VISITA DO PAPA EXPOSIÇÃO DADA Mário Cesariny de Vasconcelos VOZ NUMA PEDRA YOU ARE WELCOME TO ELSINORE EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO DE PROFUNDIS AMAMUS LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE ÁLVARO DE CAMPOS (FRAGMENTO) AUTOGRAFIA PASTELARIA TANTOS PINTORES... TODOS POR UM A UM RATO MORTO ENCONTRADO NUM PARQUE DO CAPÍTULO DA DEVOLUÇÃO OUTRA COISA EXERCÍCIO ESPIRITUAL PASSAGEM DOS ELEFANTES HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE O HOMEM EM ECLIPSE UMA CERTA QUANTIDADE O POETA CHORAVA... POEMA Alexandre O'Neill ADEUS PORTUGUÊS A MEU FAVOR SABER VIVER É VENDER A ALMA AO DIABO POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO AGORA ESCREVO PRETEXTOS PARA FUGIR DO REAL SENTENÇAS DELIRANTES DUM POETA PARA SI PRÓPRIO EM TEMPO DE CABEÇAS PENSANTES POIS VELHA FÁBULA EM BOSSA NOVA HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM PERFILADOS DE MEDO O REVÓLVER DE TRAZER POR CASA ANIMAIS DOENTES PELA VOZ CONTRAFEITA DA POESIA O QUOTIDIANO "NÃO" EM PLENO AZUL AO ROSTO VULGAR DOS DIAS O BEIJO UM CARNAVAL António Maria Lisboa PROJECTO DE SUCESSÃO Carlos Eurico da Costa 7 Cruzeiro Seixas EPITÁFIO ANDAM DESCALÇOS OS PEIXES A TUA BOCA ADORMECEU Herberto Helder SOBRE O POEMA O AMOR EM VISITA SÚMULA (A CARTA DA PAIXÃO) AS MUSAS CEGAS FONTE BICICLETA O DIA ORDENA OS CÂNTAROS UM A UM EM FILAS VIVAS OS ANIMAIS CARNÍVOROS Luiza Neto Jorge MINIBIOGRAFIA A MAGNÓLIA AS CASAS A CASA DO MUNDO AS SOFRIDAS AMORAS RECANTO 18 RITUAL Jorge de Sena UMA SEPULTURA EM LONDRES António Ramos Rosa NÃO POSSO ADIAR O AMOR POEMA DE UM FUNCIONÁRIO CANSADO José Régio CÂNTICO NEGRO Miguel Torga ORFEU REBELDE Daniel Filipe A INVENÇÃO DO AMOR Alberto Pimenta PORCO TRÁGICO I conheço um poeta que diz que não sabe se a fome dos outros é fome de comer ou se é só fome de sobremesa alheia. a mim o que me espanta não é a sua ignorância: pois estou habituado a que os poetas saibam muito de si e pouco ou nada dos outros. mas não há filho-da-puta.o que me espanta é a distinção que ele faz: como se a fome da sobremesa alheia não fosse fome de comer também. os filhos-da-puta não se medem aos palmos. no entanto. o pequeno filho-da-puta tem uma pequena visão das coisas e mostra em tudo quanto faz . há filhos-da-puta que nascem grandes e filhos-da-puta que nascem pequenos. de resto. BALADA DITIRÂMBICA DO PEQUENO E DO GRANDE FILHO-DA-PUTA I o pequeno filho-da-puta é sempre um pequeno filho-da-puta. diz o pequeno filho-da-puta. diz o pequeno filho-da-puta. que não tenha a sua própria grandeza. por pequeno que seja. diz ainda o pequeno filho-da-puta. diz o pequeno filho-da-puta. o pequeno filho-da-puta foi concebido pelo pequeno senhor à sua imagem e semelhança. é o pequeno filho-da-puta que dá ao grande tudo aquilo de que ele precisa para ser o grande filho-da-puta. todos os grandes filhos-da-puta são reproduções em ponto grande do pequeno filho-da-puta. diz o pequeno filho-da-puta. de resto. diz o pequeno filho-da-puta. diz o pequeno filho-da-puta.e diz que é mesmo o pequeno filho-da-puta. dentro do pequeno filho-da-puta estão em ideia todos os grandes filhos-da-puta. tudo o que é mau para o pequeno é mau para o grande filho-da-puta. diz o pequeno filho-da-puta. o pequeno filho-da-puta tem orgulho em ser o pequeno filho-da-puta. no entanto. . no entanto.o pequeno filho-da-puta vê com bons olhos o engrandecimento do grande filho-da-puta: o pequeno filho-da-puta o pequeno senhor Sujeito Serviçal Simples Sobejo ou seja. II o grande filho-da-puta também sem certos casos começa por ser um pequeno filho-da-puta. diz o grande filho-da-puta. o pequeno filho-da-puta. por pequeno que seja. diz o grande filho-da-puta. o grande filho-da-puta tem uma grande visão das coisas e mostra em tudo quanto faz . há filhos-da-puta que já nascem grandes e filhos-da-puta que nascem pequenos. de resto. diz ainda o grande filho-da-puta. que não possa vir a ser um grande filho-da-puta. e não há filho-da-puta. os filhos-da-puta não se medem aos palmos. dentro do grande filho-da-puta estão em ideia todos os pequenos filhos-da-puta. por isso o grande filho-da-puta tem orgulho em ser o grande filho-da-puta. . é o grande filho-da-puta que dá ao pequeno tudo aquilo de que ele precisa para ser o pequeno filho-da-puta. diz o grande filho-da-puta. tudo o que é bom para o grande não pode deixar de ser igualmente bom para os pequenos filhos-da-puta. diz o grande filho-da-puta. diz o grande filho-da-puta. diz o grande filho-da-puta. o grande filho-da-puta foi concebido pelo grande senhor à sua imagem e semelhança. diz o grande filho-da-puta.e diz que é mesmo o grande filho-da-puta. todos os pequenos filhos-da-puta são reproduções em ponto pequeno do grande filho-da-puta. a real. assim vivemos. sem possibilidade de comunicação. Este rosto com que amamos. A noite recebe as nossas mãos como se fossem intrusas. não é nosso. nem estas palavras que envelhecem no curto espaço de um dia. o grande filho-da-puta vê com bons olhos a multipliccação do pequeno filho-da-puta: o grande filho-da-puta o grande senhor Santo e Senha Símbolo Supremo ou seja. . do nosso desespero. Procuramos a saída .e damos com a cabeça nas paredes. A nossa miséria vive entre as quatro paredes. como se o seu reino não fosse pertença delas.a Revolução é um momento. invenção delas. os nossos sonhos largam a pele e aparecem à luz diurna e implacável. perigosamente. limitados no nosso ódio e no nosso amor. os que perdem o amor.de resto. António José Forte UMA FACA NOS DENTES 0 MAIS BELO ESPECTÁCULO DE HORROR SOMOS NÓS. Há então os que ganham a ira. Já não há tempo para confusões . Só a custo. ela sim verdadeiramente nossa. a única . cada vez mais apertadas. o revolucionário todos os momentos. E essa miséria. o grande filho-da-puta. não encontra maneira de estoirar as paredes. nem estas cicatrizes frescas todas as manhãs. Emparedados. com que morremos. Ser pobre não é condição para se ganhar o céu ou o inferno. pelas cidades que chegam durante as tempestades. As visões poéticas são autónomas. para a arte. a uma pátria.Não se pode confundir o amor a uma causa. os progressistas arregalarão os olhos e em seguida hão-de fechá-los de vergonha. e em seguida mergulharem nas suas profecias. Não se pode confundir a adesão a tipos étnicos com o amor ao homem e à liberdade. pela que se extingue em cada homem à vista dos massacres. Por isso. MAS NÃO IMPORTA. Sei pela luz que passa de homem para homem quando alguém faz o gesto de matar. pelos que se aproximam de peito descoberto ao cair da noite . os reformistas. para com a sociedade uma atitude ameaçadora. como não escrever não equivale sempre a ser analfabeto. pela luz crepuscular como uma navalha nos olhos. os reaccionários.sei pelos animais feridos. declaro tudo isto de faca nos dentes e de chicote em punho e que ninguém se aproxime para aquém dos mil passos EXCEPTO TU MEU AMOR EXCEPTO TU MEU AMOR minha aranha mágica agarrada ao meu peito cravando as patas aceradas no meu sexo e a boca na minha boca conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca um ano dois anos um século . para que não me confundam nem agora nem nunca. Fechá-los como têm feito sempre. para com a amizade uma atitude intransigente. A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada. sei pelos jogos selvagens da infância. PORQUE EU SEI QUE NÃO ESTOU SOZINHO no meu desespero e na minha revolta. o meu desespero. da arte e do amor. NÃO SE PODE CONFUNDIR! Quem ama a terra natal fica na terra natal. pelos que cantam nas torturas. Não estar morto não quer forçosamente dizer que se esteja vivo. Há mortos nas sepulturas muito mais presentes na vida do que se julga e gente que nunca escreveu uma linha que fez mais pela palavra que toda uma geração de escritores. pelas que sangram. com o Amor.para com a Revolução uma atitude pessimista. declaro a minha revolta. para o amor e em seguida fecharem os olhos de vergonha às manifestações mais cruéis da vida. pelas que arrancam os lábios. Abandonarem-se desenfreadamente à carpintaria das suas tábuas de valores. Olharem para a parte inferior da própria cintura e em seguida fecharem os olhos de vergonha. a sua comunicação esotérica. por um estandarte negro sobre o coração. a minha liberdade.um a um mordem os pulsos e cantam . quem gosta do folclore não vem para a cidade. afinal. Os profetas. brandirem-nas por cima das nossas cabeças como padrões para a vida. sei pelas palavras que uivam. agora um alfinete na garganta deste pássaro tão próximo e tão vivo outro alfinete o último o maior no meu próprio plexo MEU AMOR conto pelos teus cabelos os dias e as noites e a distância que vai da terra à minha infância e nenhum avião ainda percorreu conto as cidades e os povos os vivos e os mortos e ainda ficam cabelos por contar anos e anos ficarão por contar DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE O TEU ÚLTIMO CABELO O POETA EM LISBOA quatro horas da tarde. o poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos. tem febre. arde. e a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos. segue por esta, por aquela rua sem pressa de chegar seja onde for. pára. continua. e olha a multidão, suavemente, com horror. entra no café. abre um livro fantástico, impossível. mas não lê. trabalha - numa música secreta, inaudível. pede um cigarro. fuma. labaredas loucas saem-lhe da garganta. da bruma espreita-o uma mulher nua, branca, branca. fuma mais. outra vez. e atira um braço decepado para a mesa. não pensa no fim do mês. a noite é a sua única certeza. sai de novo para o mundo. fechada à chave a humanidade janta. livre, vagabundo dói-lhe um sorriso nos lábios. canta. sonâmbulo, magnífico segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado. um luar terrífico vela o seu passo transtornado. seis da madrugada. a luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa. defende-se à dentada da vida proletária, aristocrática, burguesa. febre alta, violenta e dois olhos terríveis, extraordinários, belos. fiel, atenta a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos. UM HOMEM De repente como uma flor violenta um homem com uma bomba à altura do peito e que chora convulsivamente um homem belo minúsculo como uma estrela cadente e que sangra como uma estátua jacente esmagada sob as asas do crepúsculo um homem com uma bomba como uma rosa na boca negra surpreendente e à espera da festa louca onde o coração lhe rebente um homem de face aguda e uma bomba cega surda muda RESERVADO AO VENENO Hoje é um dia reservado ao veneno e às pequeninas coisas teias de aranha filigranas de cólera restos de pulmão onde corre o marfim é um dia perfeitamente para cães alguém deu à manivela para nascer o sol circular o mau hálito esta cinza nos olhos alguém que não percebia nada de comércio lançou no mercado esta ferrugem hoje não é a mesma coisa que um búzio para ouvir o coração não é um dia no seu eixo não é para pessoas é um dia ao nível do verniz e dos punhais e esta noite uma cratera para boémios não é uma pátria não é esta noite que é uma pátria é um dia a mais ou a menos na alma como chumbo derretido na garganta um peixe nos ouvidos uma zona de lava hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo com sirenes ao crepúsculo a trezentos anos do amor a trezentos da morte a outro dia como este do asfalto e do sangue hoje não é um dia para fazer a barba não é um dia para homens não é para palavras» e eu chegasse para dizer-te adeus de repente na curva duma estrada alguma coisa onde a tua mão escrevesse cartas para chover e eu partisse a fumar e o fumo fosse para se ler alguma coisa onde tu ao norte beijasses nos olhos os navios .AINDA NÃO Ainda não não há dinheiro para partir de vez não há espaço de mais para ficar ainda não se pode abrir uma veia e morrer antes de alguém chegar ainda não há uma flor na boca para os poetas que estão aqui de passagem e outra escarlate na alma para os postos à margem ainda não há nada no pulmão direito ainda não se respira como devia ser ainda não é por isso que choramos às vezes e que outras somos heróis a valer ainda não é a pátria que é uma maçada nem estar deste lado que custa a cabeça ainda não há uma escada e outra escada depois para descer à frente de quem quer que desça ainda não ainda não ainda não ainda não há camas só para pesadelos se ama só no chão há uma granada há um coração POEMA Alguma coisa onde tu parada fosses depois das lágrimas uma ilha. e eu rasgasse o teu retrato para vê-Io passar na direcção dos rios alguma coisa onde tu corresses numa rua com portas para o mar e eu morresse para ouvir-te sonhar AZULIANTE Este poema é da AIdina Este poema começa com um homem de tronco nu à sua mesa de trabalho e hiante a esta hora em que de oriente a ocidente se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos e ver no meio do deserto o único o magnífico devorador de rosas a comer um pão enquanto do Oceano resta apenas o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul com raiva azul como a urina violenta dos amantes com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte Choverá muito eu sei choverá muito e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo sobre o tremor de terra em que tu danças na tua roda de cigarros cada vez mais depressa cada vez mais depressa e lento o peixe de plumas de águia letra a letra dá a volta ao mundo dos teus olhos enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande uivo de oriente a ocidente Certas palavras muito duras quando a noite cai não devem ter outra origem sabes tão bem como eu porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo são as rosas com que o poeta fala à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante de costas para a luz contra o grande uivo: . de oriente a ocidente a mesma flor podre o estado segredos de estado as razões de estado a segurança do estado o terrorismo de estado os crimes contra o estado e o equilíbrio do terror de oriente a ocidente meu amor de oriente a ocidente Digo não Eu digo não digo o teu nome que diz não No entanto às portas da cidade e ao pé de cada árvore à espera que tu chegues ou passes simplesmente estão os grandes do império com o chapéu na mão para cumprimentar-te Então passas tu com a lua no peito dividindo distribuindo os alimentos passas tu devagar atirando as moedas que os dias não aceitam e gastamos depressa noite mil e uma noites de quem espera Meu amor países pátrias têm todos um nome de letras imundas que não é para escrever Se ainda podes ouvir o búzio da infância ouvirás com certeza o sinal de partir No comboio multicor sobre carris ferozes e azuis que há mil anos dá a volta ao mundo sou eu o homem que viaja nu porque eu sou o arco-íris e a rosa no trapézio e tu toda a paisagem que atravesso como se fosse de bicicleta como se fosse sílaba a sílaba a primeira frase sobre a terra tu com as tuas luvas de amianto ao lado do vulcão com a tua máscara de olhar a aurora boreal de me olhares para sempre nua eu a tempestade de coração a coração Roda sórdida da razão cínica e canto de galos depenados vivos que cantam nos intervalos da morte no meu livro de horas deste século está escrito que o homem livre fará o seu aparecimento sob a forma de um cometa de cauda fascinante que arrastará os amorosos até ao centro do mundo donde partirão na rosa-dos-ventos e este será o sinal . ódio breve e escarlate. nunca olhar de soslaio e manter a cabeça escarlate. doutores se apressaram a negá-Ia eu da cintura pra cima de alcatrão e terror e do umbigo pra baixo de quiosque chinês eu não espero piedade obrigado DENTE POR DENTE Outros antes de nós tentaram o mesmo esforço: dente por dente: não. aos vinte e oito. Entrar de costas no festivaI das letras. geógrafos. no meu reino apenas palavras provisórias. o vómito nos pulsos por cada noite roubada. o corno de cada dia nos intestinos. Pelo meu . abrir passagem a golpes de fígado para a saída do escarro. a esperança à distância de todas as fomes. Se não temos saúde bastante sejamos pelo menos doentes exemplares. os olhos postos à prova do nojo. Nem um gesto de paciência: o sonho ao nível de todos os perigos. Aos dezoito anos. nem um minuto para a glória da pele. a vida posta à prova da raiva e do amor. Fora do meu reino toda a pobreza.DECLARAÇÃO Eu de barba branca a tiracolo rodeado de fumo por todos os lados vadios menos pelo lado do mar com um incêndio à ilharga e dois artelhos clandestinos eu salvo miraculosamente para te amar e curar e esperar o teu regresso glacial e escarlate que escrevo poemas desde que um rato me entrou prós pulmões e só por causa disso eu que disse: há um cancro no mapa universal e engenheiros. de chamar o amor para a mesa . toda a ascese que gane aos artelhos dos que rangem os dentes. Despertar de lado: olho por olho: conservar a família em respeito. relógio são horas de matar. dos sanguinários. Dente por dente: a boca no coração do sangue: escolher a tempo a nossa morte e amá-Ia. LIBERTAÇÃO Descerão por paredes sangrentas e subirão do asfalto ganindo com um prego na língua com os pulsos atados às patas sobre pulmões raivosos em barcos de esterco e não olharão nem para baixo nem para o alto mas para a frente para o horizonte de fatias vermelhas e para trás para os afogados sem mar sem terra natal sem paisagens marinhas cada um com um buraco em seu peito esguichando palavras estridentes descerão atravessando gargantas e subirão pela espinha a golpes de jejum descerão empurrando palavras transportando-as ao pescoço como cintos de salvação abrindo crateras nas cabeças queridas e olhos nos olhos dos aflitos subirão do asfalto transparentes e feridos com os olhos nas mãos a cabeça no sangue chegarão aos pares ligados pela boca com um estandarte negro seguro nos dentes e descerão sempre cada vez mais e cada vez de mais alto até chegar à orla do inferno chorarem as últimas lágrimas e partirem de vez MEMORIAL As tuas mãos que a tua mãe cortou para exemplo duma cidade inteira o teu nome que os teus irmãos gastaram dia a dia e que por fim morreu atravessado na tua própria garganta as tuas pernas os teus cabelos percorridos rato após rato tantos anos durante tanta alegria que não era tua os teus olhos mortos eles também na primeira ocasião do teu amante assim como as palavras ainda fumegando docemente sob as pedras de silêncio que lhes atiraram para cima o teu sexo os teus ombros tudo finalmente soterrado para descanso de todos - mesmo dos que estavam ausentes O BOM ARTÍFICE Entretanto dez séculos mais tarde no local do drama o diabo diante do seu fomo levanta por instantes seus doces olhos para quatro mil cadafalsos Vêde mais além o bom artífice mostrando anjos ou batéis ainda uma canção se gostais de belas torturas não ouvireis nada RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM Com o focinho entre dois olhos muito grandes por trás de lágrimas maiores este é de todos o teu melhor retrato o de cão jovem a que só falta falar o de cão através da cidade com uma dor adolescente de esquina para esquina cada vez maior latindo docemente a cada lua voltando o focinho a cada esperança ainda sem dentes para as piores surpresas mas avançando a passo firme ao encontro dos alimentos aqui estás tal qual és bem tu o cão jovem que ninguém esperava o cão de circo para os domingos da família o cão vadio dos outros dias da semana o cão de sempre cada vez que há um cão jovem neste local da terra TESES SOBRE A VISITA DO PAPA 1. Ó Estado, mais uma vez podes limpar as mãos à parede do cu do papa, ficarás com as mãos mais brancas para os teus crimes. Ó partidos, da esquerda e da direita, mais uma vez podeis beijar os pés ao papa, ficareis com a boca abençoada para mentir melhor. Explorados, escolhei o crime, escolhei a mentira. Sois livres. Tu poeta, range os dentes e indigna-te. 2. o Sindicato onde estás inscrito é revolucionário e saúda a reacção. A greve geral é uma arma que não deve ferir o papa. Não haverá oposição dos pais nem da polícia. o poder temporal subordinado ao poder sobrenatural. de camelo ou às costas de um rico. ouvir. Ver. Uma pedra negra sobre Voltaire. O casamento do capital e do trabalho vai ser o grande casamento do Século. O silêncio dos ateus é o ouro do Vaticano. Nem Deus nem senhor? Maldita incurável doença infantil do Comunismo. Explorado. Paz ao inimigo. Ouvi falar de luta de classes e da revolução e do mundo . 8. escolhe a pedra para a tua cabeça. escolhe o explorador. Obedece. receber o papa com o medo do 24 de Abril. o Estado. Uma pedra branca sobre o crime. dizia Voltaire.Que o Estado venere a Deus na figura do papa. Conquistar a liberdade de expressão para não usar a liberdade de expressão. nada de escândalo. Viva a coexistência pacífica. O Estado que te submete é republicano e reverencia a Igreja. que os explorados venerem a Deus. Sobretudo. Obedece. 5. 3. sequer na forma de um cravo. o Partido em que militas é marxista e felicita o papa. Felicidades. jamais. Pode ser que o teu cadáver ainda venha a ser estandarte glorioso do Partido. que escolheis? 4. Não denunciar o opressor. tudo menos a erotização do proletariado. explorado. Abaixo a união livre. 7. Explorado. que os partidos venerem o Estado na figura do papa. não ousar atirar-lhe à cara a revolta. sê manso e obedece. Explorado. Quem disse que a religião é o ópio do povo? Explorados. por que não vomitas? 6. Ecrasez l´infâme. Pode ser que vás para a cama com a Pátria. o Partido – a trindade omnipotente. Nada contra o obscurantismo. explorado. Nunca percas a esperança. Explorado. uma pedra negra sobre a crítica. Sobretudo. Enfim. Pode ser que entres no reino dos céus. não era para que fosse pescado. que foi um erro próprio de Dada. Se houvesse cadáver insepulto de Dada. Dada quer dizer: uma forma de matar para não morrer. 1982 EXPOSIÇÃO DADA Quando em 1922 Dada foi atirado vivo e nu ao Sena. de vampiro arrependido. Tens a plavra. Só o Surrealismo. Ouviste. Fora disso não há diálogo. tudo está errado. e muito menos de cadáver esquisito. Se houvesse cadáver de Dada enterrado em vala comum. e o humor e o amor o surreal Dada. se a arte não estivesse irremediavelmente careca. O diálogo? Que diálogo pode haver entre o condenado à morte e o carrasco que o conduz ao patíbulo? O diálogo é entre amantes. . um só que seja. Não são também para efeitos de luz de museu. Se nunca foi ao dentista por causa dos dentes podres. mesmo com bigode. e ainda que seja o último. não pode agora pela mesma razão ser irmã de caridade. estava tudo certo. entre camaradas. Nunca tinha ouvido uma sereia assim. Dada cavalo marinho voador alemão de 1918 nunca foi para vir a ser para concursos hípicos. de monstro querido. não pode ter agora o sorriso de Mona Lisa. Ouvi falar de que enquanto um homem. e fosse a cantora que se sabe. Também nunca foi rei do petróleo. já todos os museus do mundo teriam ardido. Dada dador de sangue e barbeiro de Mona Lisa nunca foi para coisa nenhuma. Se houvesse cadáver de Dada. Se Dada fosse anti-Dada. entre amigos.exemplo. o que vai chegar agora aí embalsamado seria um falso cadáver. mas não há. Também não era para ser servido como dobrada à moda do Porto fria. segue-se que não há cadáver de Dada. existir desfigurado. explorado.que o proletariado tem a ganhar e nada a perder. explorado? 9. Nunca foi portanto para aparecer de suicida. Dada nunca foi goraz. Se houvesse fantasma de Dada. Ouvi falar em transforar o mundo e mudar a vida. por isso não pode ser agora peixe frito. Como não é. mesmo a mais cabeluda. de artista maldito. é que não há fantasma de Dada. cheirava mal num continente inteiro. não haverá figura humana sobre a terra. é ainda Dada. pela simples razão de ser Dada. Só Dada é surrealista. mas não há. Como ainda não ardeu nenhum. Ouvi falar das armas da crítica e da crítica pelas armas. Lisboa. Lisboa. O Dada surrealista e o Surrealismo Dada não são formas para arrancar os cabelos da arte. havia ainda hoje fogo-fátuo que dava para iluminar uma cidade . Como não cheira e tudo permanece muito às escuras. Houve a revolução Dada que ainda está a haver.A cadaverização de Dada é um segredo que nem Dada conhece. Mário Cesariny de Vasconcelos VOZ NUMA PEDRA Não adoro o passado não sou três vezes mestre não combinei nada com as furnas não é para isso que eu cá ando decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz decerto fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João nenhuma nenhuma palavra está completa nem mesmo em alemão que as tem tão grandes assim também eu nunca te direi o que sei a não ser pelo arco e flecha negro e azul do vento Não digo como o outro: sei que não sei nada sei muito bem que soube sempre umas coisas que isso pesa que lanço os turbilhões e vejo o arco íris acreditando ser ele o agente supremo do coração do mundo vaso de liberdade expurgada do mênstruo rosa viva diante dos nossos olhos Ainda longe longe a cidade futura onde "a poesia não mais ritmará a acção porque caminhará adiante dela" Os pregadores de morte vão acabar? Os segadores do amor vão acabar? A tortura dos olhos vai acabar? . mas não haverá nunca exposição de Dada. Porque a pintura Dada nunca foi pintura. a poesia Dada nunca foi poesia. e por aí fora até ao infinito: Dada. Donde: o inimigo morto que se vai exibir. para pasto dos gorilas da cultura. não é cadáver de Dada. a escultura Dada nunca foi escultura. quanto mais quem não. frágeis. palavras que guardam o seu segredo e a sua posição Entre nós e as palavras. surdamente. que deixaram de esperar há palavras acesas como barcos e há palavras homens. que esperam por nós e outras.Passa-me então aquele canivete porque há imenso que começar a podar passa não me olhes como se olha um bruxo detentor do milagre da verdade "a machadada e o propósito de não sacrificar-se não constituirão ao sol coisa nenhuma" nada está escrito afinal YOU ARE WELCOME TO ELSINORE Entre nós e as palavras há metal fundente entre nós e as palavras há hélices que andam e podem dar-nos morte violar-nos tirar do mais fundo de nós o mais útil segredo entre nós e as palavras há perfis ardentes espaços cheios de gente de costas altas flores venenosas portas por abrir e escadas e ponteiros e crianças sentadas à espera do seu tempo e do seu precipício Ao longo da muralha que habitamos há palavras de vida há palavras de morte há palavras imensas. as mãos e as paredes de Elsenor E há palavras noturnas palavras gemidos palavras que nos sobem ilegíveis à boca palavras diamantes palavras nunca escritas palavras impossíveis de escrever por não termos conosco cordas de violinos nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar e os braços dos amantes escrevem muito alto muito além do azul onde oxidados morrem palavras maternais só sombra só soluço só espasmo só amor só solidão desfeita . DE PROFUNDIS AMAMUS Ontem às onze fumaste um cigarro encontrei-te sentado ficámos para perder todos os teus eléctricos os meus estavam perdidos por natureza própria Andámos dez quilómetros a pé ninguém nos viu passar excepto claro . o nosso dever falar EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco conheço tão bem o teu corpo sonhei tanto a tua figura que é de olhos fechados que eu ando a limitar a tua altura e bebo a água e sorvo o ar que te atravessou a cintura tanto. os emparedados e entre nós e as palavras. tão perto.Entre nós e as palavras. tão real que o meu corpo se transfigura e toca o seu próprio elemento num corpo que já não é seu num rio que desapareceu onde um braço teu me procura Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco. liberal e moscovita «Tudo quanto tinha. àquele . enfiado na poltrona da sua melancolia!» «Coitado dele. num gesto largo. na algibeira em que tinha pouco. que com lágrimas (autênticas) nos olhos.os porteiros é da natureza das coisas ser-se visto pelos porteiros Olha como só tu sabes olhar a rua os costumes O Público o vinco das tuas calças está cheio de frio e há quatro mil pessoas interessadas nisso Não faz mal abracem-me os teus olhos de extremo a extremo azuis vai ser assim durante muito tempo decorrerão muitos séculos antes de nós mas não te importes não te importes muito nós só temos a ver com o presente perfeito corsários de olhos de gato intransponível maravilhados maravilhosos únicos nem pretérito nem futuro tem o estranho verbo nosso LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE ÁLVARO DE CAMPOS (FRAGMENTO) «Coitado do Álvaro de Campos!» «Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!» «Coitado dele.» «Deu hoje. descendo aos mictórios para apanhar elétricos. bocas. um banqueiro. telefonistas. há uma hora certa que um milhão de pessoas está a sair para a rua. narinas.» «Eu é que sei.» FERNANDO PESSOA. Coitado dele!» * «Primeiro o navio a meio do rio.» «Coitado do Álvaro de Campos. ponto vago no horizonte (ó minha angústia!» «Ponto cada vez mais vago no horizonte.» «Depois o navio a caminho da barra. o meio da rua. uns dentro dos outros tossicando.» «Que são pedintes e pedem. destacado e nítido. caixeiros desempregados uns com os outros. em marcha. alfaiates. varinas. desde as sete e meia horas da manhã que um milhão de pessoas está a sair para a rua. gente feliz. coitado dele!» «Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam. gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro que afinal ainda lá estava apitando estridentemente. gente gente! olhos. gente jovial a acompanhar enterros e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua . Obra Poética Há uma hora. sorrindo. saímos! Saímos: seres usuais. com quem ninguém se importa!» «Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!» «E. Há uma hora. sim.«Pobre que não era pobre. pequeno e preto)» «Depois. gente de luto. abrindo os sobretudos. gente infeliz. a sair para. que tinha olhos tristes profissão.» «Porque a alma humana é um abismo. normalmente silenciosa mas obrigada a falar ao vizinho da frente na plataforma veloz do elétrico. Saímos? Mas sim. Estamos no ano da graça de 1946 em Lisboa. arruinando. começou o seu dia sem dar inicio a coisa alguma. pensou um bocado na família e começou o dia a varina infectou a perna esquerda nos lixos da Ribeira e começou o dia o desempregado ergueu-se. correias volantes de um a outro extremo da fábrica isolada. crocodilos a rir em corredores bancários apesar das mulheres terem varrido muito bem o chão. com todas as consequências disso mesmo e a sair a sair para o meio da rua. retorcendo o fato atrás dos vidros um tiro nos miolos e muito obrigado. Há uma hora. ouvindo a sineta das nove. neste momento que horas são? a telefonista guarda o batom na mala pousa os auscultadores ligam eletricamente Lisboa a Santarém e começou o dia o pedreiro escalou para o telhado mais alto e cantou qualquer coisa para começar o dia o banqueiro sentou se. e imaginou-se banqueiro para começar o dia e o presidiário. uma velha a morrer silenciosamente em plena rua e um detido a apanhar porrada embora acreditem nele. bater de portas pás! em muitas repartições. cigarros meio fumados em cinzeiros de prata. puxou de um charuto cubano. coçando. trepidação. Agora pranto e pranto na bata da manicure apetitosa do salão Azul. regressão. isto: Lisboa e muito mais. em suma. beiços em vez de lábios. Agora fumo.menina. sempre às ordens! (a velha já morreu e no seu leito de morte está agora um automóvel verdadeiramente aerodinâmico . Agora. viu chuva na vidraça. Agora tudo isto e nada disto em plena e indecorosa licenciosidade comercial pregando partidas. Humanidade cordial. E agora. milhões de anos para trás. patas em vez de mãos. Isto! Há duas. morre todas as manhãs sem proveito nem glória e há gatos brancos à janela de prédios bastante altos! Contudo e já agora penso que os gatos são os únicos burgueses com quem ainda é possível pactuar vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista! Servem-se dela. e quem é que. gente que pôs a alegria a pedir esmola e nessa mesma noite foi comprar para o cinema porque há que ir ao cinema. tão ininteligível que já conseguem chorar. não! não! isso não!. não se atravessem nesta bilheteira!! Vamos estar tão bem! Vai tudo ser Tão Bonito! Ah.. com certa sinceridade. mas do alto.Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove) e vejo um gato branco à janela de um prédio bastante alto Penso que a questão é esta: a gente. vê o logro? A quem é que isto cheira a ranço? Porque é que a freguesa de Panos Limitada não exige três quartas de cinema e sim três quartas partes pretas de lã carneira? Porque é que a pianista compra do Alves Redol quando está a pensar nas pernas e no peito do louro galã yankee? E porque raio despede o senhor Director três humolimos empregados . lágrimas cem por cento hipócritas. calcule-se. nada. ele é por força. and you my darlyng?) Há uma hora. gente sensível e às vezes boa mas tão recomplicada. ISTO! E eu? Eu. é claro. E o certo é que ainda têm rapazes de Arte.... tão belo cosida. desdenhando-a. Eu.e a tocar telefonia: and you. a probabilidade do dinheiro ainda não estragou inteiramente o gato mas de gato para cima nem pensar nisso é bom! Propalam não sei que náusea. eu. é por amor de Deus. retira me o estômago só de olhar para eles! São criaturas. certa gente sai para a rua. é verdade. cansa-se. ah.Não. tal qual! Fizeste bem. desta vez É curioso que não te possas suicidar só porque a tua janela está ao nível do mundo e que cantes alegremente de manhã à noite com uma casa de seis andares em encima de ti. guardando em ti todas as tuas grandes qualidades vais vivendo um pouco à margem. sapateiro branco mas no rés-do-chão. ora pois. meu vizinho de baixo. . Mário de Sá Carneiro... principalmente. também te disseram: Fora. o que não chegaste a saber.quando a verdade é que já lá vão três meses e ainda não viu um que lhe enchesse as medidas? Com certa espécie de solidariedade 1embro-me de ti. mas isso é já outra história. viva Mário!.) E com uma solidariedade muito mais viva lembro-me de ti. antes a morte que isto. Poeta gato branco à janela de muitos prédios altos Lembro-me de ti.. isso mesmo. viva Mário a laçar um golpe de asa e a estatelar-se todo cá em baixo (viva. um pouco no quinto andar Deito fora o cigarro que já me sabia a amargo e decido-me a andar mas para quê ? Mas para onde ? As lojas estão todas abertas mas nunca se viu coisa tão fechada Ah! heróis do trabalho. deveras?) E agora. para dizer bravo e bravo. para saudar-te. Também tu foste empurrado. que coisas raras fazeis! Não sou um proletário vê-se logo mas odeio cordialmente a gataria e quanto a crocodilos. nem os do Jardim Zoológico me atraem quanto mais estes! E aqui é que começa o embróglio.. gato! Mas achaste isso quase natural (e não o é. Mas vejamos. pontualmente. Outras músicas. ó minha alma. se podes. falto ao escritório. saí para a rua com bastante naturalidade e que vi eu? Que é isto? (E que esperava eu ver?) Terceiro: (e aqui começa. arrumemos um pouco a casa escura que te deram. como toda a gente (ou talvez um pouco mais do que toda a gente?) Não. Recomecemos: Um: Estes versos não querem de modo algum ser versos porque quem hoje em Portugal quer de algum modo fazer versos versos está em muito maus lençóis (este o primeiro artigo da minha constituição) Segundo: Apesar de tudo. Estudemos outro papel. todas as manhãs.O pouco amor que eu tive à burguesia deixei-o todo numa casa de passe quando me perguntaram: quer assim ? Ou assim ? E agora. Outro fim. depois um ponto vago no horizonte (ó minha angústia ! ) ponto cada vez mais vago no horizonte e de repente. já depois de outra esquina. destacado e nítido. falto ao escritório. Por aqui não nos entenderemos. ao virar uma esquina. talvez. Eu estudei música. era fatal. o desembróglio) vi também um vapor que ia para o Barreiro e tive pena de não ir com ele mas não sou um proletário (não. ainda não) e atravessar a nado quem é que disse que pode? Fiquei-me a vê-lo: primeiro junto ao cais com um certo ar simpático de proletário dos mares e apinhado de gente tanta espécie dela! Depois a meio do rio. vejo uma nova espécie de enforcado um homem novo em cima de um escadote . Deito a cabeça para trás para deixar sair a gargalhada e aproximo-me do homem em cima do escadote aproximo-me tanto que ele nota alguém que se aproxima e o braço cai-lhe. pingando água num balde AUTOGRAFIA Sou um homem um poeta uma máquina de passar vidro colorido um copo uma pedra uma pedra configurada um avião que sobe levando-te nos seus braços que atravessam agora o último glaciar da terra O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte! os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada tenho um pé que já deu a volta ao mundo e a família na rua um é loiro outro moreno . curiosíssimo este gênero. Curioso. Salazar Xavier Francisco da Cunha Altinho isso que importa. Pararei sempre enquanto afixarem cartazes deste gênero. Um chefe não é grande pelo nome que arranjou.pelas suas obras. Pois os fascistas os nossos bons fascistas querem que a gente vote por um nome por um nome calcula essa coisa qualquer que qualquer fulano tem! Vota por Salazar ora pois ó meu povo vota por sete letras muito bem arrumadas em três sí-la-bas.a colar afixar cartazes deste gênero: VOTA POR SALAZAR Paro. grosso. pelo amor que inspira. Um chefe é grande . Paro de novo. por fora de mim.não foram poucos. Conversas com meteoros internacionais .também. a minha gabardina eu o pico do Everest posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca porque tu és o dia porque tu és terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola do rei morto.e nunca se encontrarão conheço a tua voz como os meus dedos (antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa) tenho um sol sobre a pleura e toda a água do mar à minha espera quando amo imito o movimento das marés e os assassínios mais vulgares do ano sou. E sou.já se arranjaram algumas. no sentido mais enérgico da palavra na carruagem de propulsão por hálito os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde passei uma só vez tudo isso vive em mim para uma história de sentido ainda oculto magnífica irreal como uma povoação abandonada aos lobos lapidar e seca como uma linha férrea ultrajada pelo tempo é por isso que eu trago um certo peso extinto nas costas a servir de combustível é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas vivas para não termos de atirá-los semi-mortas à linha E para dizer-te tudo dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou em franca ascensão para ti O Magnífico na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre lagos de incêndio e o teu retrato grande! .tenho visto qualquer coisa Viagens a Paris . já por cá passaram. Enlaces e divórcios de ocasião . do vento e da primavera Quanto ao de toda a gente . . comovida. A realidade.PASTELARIA Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura Afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio Afinal o que importa não é ser novo e galante . agradece mas fica no mesmo sítio (daqui ninguém me tira) chamado paisagem Tantos escritores A realidade.. agradece e continua a fazer o seu frio sobre bairros inteiros na cidade e algures .ele há tanta maneira de compor uma estante Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no vício Não é verdade rapaz? E amanhã há bola antes de haver cinema madame blanche e parola Que afinal o que importa não é haver gente com fome porque assim como assim ainda há muita genteque come Que afinal o que importa é não ter medo de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está azedo! Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo à saída da pastelaria. e lá fora – ah. lá fora! – rir de tudo No riso admirável de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos à mostra TANTOS PINTORES. comovida. comovida. pela certa. Titânia e a cidade queimada TODOS POR UM A manhã está tão triste que os poetas românticos de Lisboa morreram todos com certeza Santos Mártires e Heróis Que mau tempo estará a fazer no Porto? Manhã triste. agradece porque sabe que foi por ela o sacrifício mas não agradece muito Ela sabe que os pintores os escritores e quem morre não gostam da realidade querem-na para um bocado não se lhe chegam muito pode sufocar Só o velho moinho do acordeon da esquina rodado a manivela de trabuqueta sem mesura sem fim e sem vontade dá voltas à solidão da realidade. A UM RATO MORTO ENCONTRADO NUM PARQUE Este findou aqui sua vasta carreira de rato vivo e escuro ante as constelações a sua pequena medida não humilha senão aqueles que tudo querem imenso e só sabem pensar em termos de homem ou árvore pois decerto este rato destinou como soube (e até como não soube) .Tantos mortos no rio A realidade. Oxalá que os poetas românticos do Porto sejam compreensivos a pontos de deixarem uma nesgazinha de cemitério florido que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de recorrer à vala comum. vítima e carrasco Não tinha amigos? Enganava os pais? Ia por ali fora. cheira mal. minúsculo corpo divertido e agora parado.o milagre das patas .e aos médicos ele dava! Como brincar ao bem e ao mal se estes nos faltam? Algum rapazola entendeu sua esta vida tão ímpar e passou nela a roda com que se amam olhos nos olhos . apontas rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição de animal fulminado . vais até à janela . voltar atrás de repente. um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo . aquoso. fugir. servindo muito bem para agatanhar.tão junto ao focinho! que afinal estavam justas. aspiras com cuidado o oxigénio que o espaço te oferece . até a tinta e as flores e o prazer de gritar esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho no cosmos . quando necessário Está pois tudo certo.com mundo nela? Tantas preocupações às donas de casa . ó "Deus dos cemitérios pequenos"? Mas quem sabe quem sabe quando há engano nos escritórios do inferno? Quem poderá dizer que não era para príncipe ou julgador de povos o ímpeto primeiro desta criação irrisória para o mundo . olhar o cosmos como os que ainda podem interrogar as ondas e morrer mas tu ainda não sabes a que ponto morreste. Sem abuso que final há-de dar-se a este poema? Romântico? Clássico? Regionalista? Como acabar com um corpo corajoso e humílimo morto em pleno exercício da sua lira? DO CAPÍTULO DA DEVOLUÇÃO Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu leito . segurar o alimento. altos como flores parou o automóvel . e elas ambas . aves a percorrer o seu novo deserto mas sabes . o teu cansaço e a minha miséria . em fileiras angélicas e gratas . os teus braços e os meus . são as mãos de um soldado a arder em febre . a mão do homem é doce e iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre os hospitais tivemos uma história mas a história foi-se . fechar ainda a porta do teu quarto . tão claras . outra sombra . atravessar de um pulo a minha própria vida agora posso sonhar até deixar de te ver belo rio sem lágrimas OUTRA COISA Apresentar-te aos deuses e deixar-te entre sombra de pedra e golpe de asa exaltar-te perder-te desconfiar-te seguir-te de helicóptero até casa dizer-te que te amo amo amo que por ti passo raias e fronteiras que não me chamo mário que me chamo uma coisa que tens nas algibeiras lançar a bomba onde vens no retrato de dez anos de anjinho nacional e nove de colégio terceiro acto pôr-te na posição sexual tirar-te todo o bem e todo o mal esquecer-me de ti como do gato . a fazer a manhã de outras paragens. tu viste . tão seguras . lá em baixo . e mais do que eu.depois olhas para mim . olhas as tuas mãos . outros olhos semelhantes noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos . e eu não tenho mais que descer as escadas . altos como cidades . EXERCÍCIO ESPIRITUAL É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia é preciso dizer azul em vez de dizer pantera é preciso dizer febre em vez de dizer inocência é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora PASSAGEM DOS ELEFANTES Elefantes na água optimistas à solta optimistas à solta elefantes na árvore elefantes na árvore optimistas na esquadra optimistas na esquadra elefantes no ar elefantes no ar optimistas em casa optimistas em casa elefantes na esposa elefantes na esposa optimistas no fumo optimistas no fumo elefantes na ode elefantes na ode optimistas na raiva optimistas na raiva elefantes no parque elefantes no parque optimistas na filha optimistas na filha elefantes zangados elefantes zangados optimistas na água optimistas na água elefantes na árvore HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE Aos pés do burro que olhava para o mar depois do bolo-rei comeram-se sardinhas com as sardinhas um pouco de goiabada . Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde que ainda há passeios ainda há poetas cá no país! O HOMEM EM ECLIPSE Ora foi que certo dia o homem eclipsou-se a data digam a data a datazinha faz favor qual data foi por decreto que a gente se eclipsou foi só manobra espertice um dois três e pronto é noite que nem a lua apareça seja de que lado for Uns seguraram-se logo eram espertos bem se viu outros cairam ao mar com cabeça pernas e tudo quanto a mim perdi a calma fiquei desaparafusado tradição cultura estilo certeza amigos fatiota tudo fora do seu sítio um desaparafuso terrível Segurem-me camaradas sinto pernas a boiar cheiro fantasmas enxofre estou aqui mas posso voar o parafuso da língua vai partido vai saltar agarrem-me! agarra! pronto pari o mais leve que o ar UMA CERTA QUANTIDADE .e depois do pudim. para um último cigarro um feijão branco em sangue e rolas cozidas Pouco depois cada qual procurou com cada um o poente que convinha. ..Uma certa quantidade de gente à procura de gente à procura duma certa quantidade Soma: uma paisagem extremamente à procura o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha) e o problema do quarto-atelier-avião Entretanto e justamente quando já não eram precisos apareceram os poetas à procura e a querer multiplicar tudo por dez má raça que eles têm ou muito inteligentes ou muito estúpidos pois uma e outra coisa eles são Jesus Aristóteles Platão abrem o mapa: dói aqui dói acolá E resulta que também estes andavam à procura duma certa quantidade de gente que saía à procura mas por outras bandas bandas que por seu turno também procuravam imenso um jeito certo de andar à procura deles visto todos buscarem quem andasse incautamente por ali a procurar Que susto se de repente alguém a sério encontrasse que certo se esse alguém fosse um adolescente como se é uma nuvem um atelier um astro O POETA CHORAVA. O poeta chorava o poeta buscava-se todo . É pior do que isso. E matá-lo não é solução. Subsistirá. O poeta O Poeta O POETA DESTROI-VOS POEMA Os pássaros de Londres cantam todo o inverno como se o frio fosse . Viverá de tal forma que as próprias grades farão causa com ele.o poeta andava de pensão em pensão comia mal tinha diarreias extenuantes nelas buscava Uma estrela talvez a salvação? O poeta era sinceríssimo honesto total raras vezes tomava o eléctrico em podendo voltava não podendo ver-se-ia tudo mais ou menos a cair de vergonha mais ou menos como os ladrões E agora o poeta começou por rir rir de vós ó manutensores da afanosa ordem capitalista comprou jornais foi para casa leu tudo quando chegou à página dos anúncios o poeta teve um vómito que lhe estragou as únicas que ainda tinha e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro mas é inevitável é um bem é uma dádiva Tirai-lhe agora os poemas que ele próprio despreza negai-lhe o amor que ele mesmo abandona caçai-o entre a multidão crucificai-o de novo mas com mais requinte. Prendei-o. o maior aconchego nos parques arrancados ao trânsito automóvel nas ruas da neve negra sob um céu sempre duro os pássaros de Londres falam de esplendor com que se ergue o estio e a lua se derrama por praças tão sem cor que parecem de pano em jardins germinando sob mantos de gelo como se gelo fora o linho mais bordado ou em casas como aquela onde Rimbaud comeu e dormiu e estendeu a vida desesperada estreita faixa amarela espécie de paralela entre o tudo e o nada os pássaros de Londres quando termina o dia e o sol consegue um pouco abraçar a cidade à luz razante e forte que dura dois minutos nas árvores que surgem subitamente imensas no ouro verde e negro que é sua densidade ou nos muros sem fim dos bairros deserdados onde não sabes não se vida rogo amor algum dia erguerão do pavimento cínzeo algum claro limite os pássaros de Londres cumprem o seu dever de cidadãos britânicos que nunca nunca viram os céus mediterrânicos . Alexandre O'Neill ADEUS PORTUGUÊS Nos teus olhos altamente perigosos vigora ainda o mais rigoroso amor a luz dos ombros pura e a sombra duma angústia já purificada Não tu não podias ficar presa comigo à roda em que apodreço apodrecemos a esta pata ensanguentada que vacila quase medita e avança mugindo pelo túnel de uma velha dor Não podias ficar nesta cadeira onde passo o dia burocrático o dia-a-dia da miséria que sobe aos olhos vem às mãos aos sorrisos ao amor mal soletrado à estupidez ao desespero sem boca ao medo perfilado à alegria sonâmbula à vírgula maníaca do modo funcionário de viver Não podias ficar nesta casa comigo em trânsito mortal até ao dia sórdido canino policial até ao dia que não vem da promessa puríssima da madrugada mas da miséria de uma noite gerada por um dia igual Não podias ficar presa comigo à pequena dor que cada um de nós traz docemente pela mão . . A MEU FAVOR A meu favor Tenho o verde secreto dos teus olhos Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor O tapete que vai partir para o infinito Esta noite ou uma noite qualquer A meu favor As paredes que insultam devagar Certo refúgio acima do murmúrio Que da vida corrente teime em vir O barco escondido pela folhagem O jardim onde a aventura recomeça.a esta pequena dor à portuguesa tão mansa quase vegetal Mas tu não mereces esta cidade não mereces esta roda de náusea em que giramos até à idiotia esta pequena morte e o seu minucioso e porco ritual esta nossa razão absurda de ser Não tu és da cidade aventureira da cidade onde o amor encontra as suas ruas e o cemitério ardente da sua morte tu és da cidade onde vives por um fio de puro acaso onde morres ou vives não de asfixia mas às mãos de uma aventura de um comércio puro sem a moeda falsa do bem e do mal Nesta curva tão terna e lancinante que vai ser que já é o teu desaparecimento digo-te adeus e como um adolescente tropeço de ternura por ti . Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe. b. que não levantam o esparguete acima da cabeça .) Gosto do Napoleão-dos-Manicómios. mendigo: vamos fazer um esparguete dos teus atacadores e comê-lo como as pessoas educadas. vender canários que mais parecem sabonetes de limão.SABER VIVER É VENDER A ALMA AO DIABO Gosto dos que não sabem viver. vender fuliginosos passarocos implumes? Não é viver. Mas senta aqui.) com gerações perdidas.. não me bandeio (que eu já vi esse filme. também gosto de vocês! Será isso viver. de marchand de nuages?») e embarcam na primeira nuvem para um reino sem pressa e sem dever. Passarinheiros.. Gosto de Ofélia ao sabor da corrente. já rio no chão. piquena que te matas por amor a cada novo e infeliz amor e um dia morres mesmo em «grande parva. e gosto de quem lhes segue o sonho e lhes margina o rio com árvores de papel.. do Tenório-dos-Bairros que passa fomeca mas não perde proa e parlapié.. transborda e escorre.... briol. poesia pura! Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo. dos que se esquecem de comer a sopa ((Allez-vous bientôt manger votre soupe.. da Julieta-das-Trapeiras. lazeira.. que ele há tanto homem!» (Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?. Contigo é que me entendo. s. É arte. a um diabo que não espreita a alma. Direi eu: . tão sem futuro. a racionalização do [trabalho. confia-me os teus sonhos de pureza e cai de borco. POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO O medo vai ter tudo pernas . Por que não põem cifrões em vez de cruzes nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra [morrer? Gosto deles assim... nas fanfas. no tempero.. que eu chamo-te ao meio-dia. não pensam noutra coisa senão no arame. nos marcolinos.. seu irrecuperável! E tu.Todavia o manguito será por muito tempo o mais económico dos gestos! * Saber viver é vender a alma ao diabo. sont toujours gueux. nas aflitas.nem o chupam como você. sem qualquer transcendência. nos pintores.. no balúrdio e . a um diabo humanal. evitam mesmo a tempo a cornada fatal! Les portugueux.Já começou... na grana. no tojé. derradeira geração perdida. a um satanazim que se dá por contente de te levar a ti... de escarnecer de mim. nos carcanhóis. porém.. si rusés. mas gosto deles só porque não querem apanhar as nozes. na estilha. enquanto se anunciam boas perspectivas para o franco frrrrançais e os politichiens si habiles. mas o furo. Dize tu: . ambulâncias e o luxo blindado de alguns automóveis Vai ter olhos onde ninguém o veja mãozinhas cautelosas enredos quase inocentes ouvidos não só nas paredes mas também no chão no teto no murmúrio dos esgotos e talvez até (cautela!) ouvidos nos teus ouvidos O medo vai ter tudo fantasmas na ópera sessões contínuas de espiritismo milagres cortejos frases corajosas meninas exemplares seguras casas de penhor maliciosas casas de passe conferências várias congressos muitos ótimos empregos poemas originais e poemas como este projetos altamente porcos heróis (o medo vai ter heróis!) costureiras reais e irreais operários (assim assim) escriturários (muitos) intelectuais (o que se sabe) a tua voz talvez talvez a minha com a certeza a deles Vai ter capitais países suspeitas como toda a gente muitíssimos amigos . azul. o segredo Da felicidade. Uma noite sem nenhuma saída. resumindo Brutalmente a vida! A chave dos sonhos . um gemido obsceno. Decapitadas . A batata cozida do dia-a-dia.beijos namorados esverdeados amantes silenciosos ardentes e angustiados Ah o medo vai ter tudo tudo (Penso no que o medo vai ter e tenho medo que é justamente o que o medo quer) O medo vai ter tudo quase tudo e cada um por seu caminho havemos todos de chegar quase todos a ratos AGORA ESCREVO Que queriam fazer de mim? Uma palavra. as mil e uma Noites de solidão e medo... O amor feito e desfeito Como uma cama E ao fundo . no azeite.o mar . O muscular fim-de-semana. Uma vírgula trémula de medo Num requerimento azul. . Um coração que mal pudesse Defender-se da morte . Uma noite passada num bordel Parecido com a vida . As sardinhas dormindo. Como uma árvore! Ganhámos juntos o que perdemos separados: A luz incomparável. Uma palavra por dizer.. cruzámos vidas Feitas de compacta vontade . saborosa tristeza do entardecer. e calados Descemos até ao rio . Paciente e natural em cada dia. rostos frios Possuídos por uma ausência atroz. muito fora Da vida.. Fiel em cada dia. Corpos extenuados mas sem nenhum sono para dormir . dos passeios que demos Pela cidade? Dos dias que passámos Nos braços da cidade? Coleccionamos gente. agora escrevo Para alguém: Lembras-te meu amor. De dura necessidade. E a leve . Aprendemos a rir ( oh! que vergonha!. rostos simples. Inventámos destinos. esta luz quase louca Da primavera. frases De nenhum valor para além do mistério Também simples do nosso amor. Verde e simples.e ali ficámos A ver ! * O amor continua muito alto. Muito acima. . Olhos já sem angústia... Como uma carta por abrir. sem qualquer Pobre resto de vida! Seguimos a alegria das crianças. muito raro E difícil : maravilhoso Quando devia ser fiel.Mas defendi-me e agora escrevo Furiosamente. sem esperança. Profundo e ao mesmo tempo aéreo.) Com a gente " ordinária". agressiva Como carvão riscando uma parede. esta gaivota Caída dos ombros da luz. Fumegando. A força de viver. Pequeno " nariz ordinário" Que entre os meus dedos protesta E se debate... Pequeno barco subindo Nitidamente o rio. .. Não a suprema tristeza de existir .. o que não é amor.. A vertigem de conhecer Necessidade e liberdade! * Ganhámos juntos o que vamos perdendo separados. A ciência de não dar e receber. E o teu coração na minha boca ! E o amor. De triunfar da sorte. Fogo intensamente verde sobre a terra.. Não a fúria dos corpos quando trocam Desespero por desespero.inocente Cidade. A obscena arte de viver... Coração aberto pela manhã. .. Duas árvores de avanço.beijo obrevoado O teu rosto fiel. Uma corrida louca ..Ganhámos juntos o que vamos perdendo Separados: A alegria . Flechas Velocíssimas Nos sonhos voavam Em direcção à vida. A pureza . de triunfar da morte. Intensamente verde nos teus olhos. a fraternidade. Não o que destrói. a confiança. Mas o amor que se traduz Pela bondade.. E a ternura . fumando Com o seu ar importante de homenzinho. Entravam amigos. A sua indomável alegria! e N-2 e Berta. Um ao outro presos Como fantasmas. Irreprimíveis como beijos Quentes de ternura. Muitas outras vidas. Como os melhores versos.E era na vida que queriam acertar. desejos lutas E esperanças comuns. amores antigos Como navios perdidos muito ao longe Ou já imóveis sob anos e anos de silêncio. Vidas fulgurantes de vida ! Michaud. Reais ou inventadas Exemplarmente do real! Nos nossos dias entravam dúvidas e erros. Directos como palavras De justa cólera. Era na vida que queriam morder. O coração abandonado. Entravam cartas. flutuando Como um peixe morto. o que dizia A cada passo : " Et comment!" Par exprimir o seu apego à vida. um resto . Completos como pássaros Rápidos no azul ! E muitos outros ainda. Mas vivendo e ajudando a viver ! E Éluard. Leituras discutidas. A terrível solidão de certas horas Sem um ombro amigo. Recordações. versos Tão cheios de sentido como ruas E ruas plenas de ritmo e sentido. Era à vida que nos queriam ligar! Nos nossos sonhos entrava gente viva. os seus poemas Simples como gestos de alegria. Vidas exemplares. tristezas e alegrias semelhantes. evocadas: sonhos E destinos próximos . poeams . De entrar " em obras". físicas. Dúvidas. de instalar Em cada dia um " problema" E de dourar O " problema" de cada dia . Por exemplo : hoje Estão a ser realizados Os mais velhos Sonhos do homem. E a tentação de levantar andaimes.. Por exemplo . Mas não só a dúvida e o erro O coração entornado.De calor dentro do frio. teorias. Porém Tratava-se de realizar. Ideias. a cabeça perdida Entravam nos nossos dias . A agricultura realizam Certas teorias Químicas. erros. Por exemplo : a indústria. "Realizar" : fazer passar Para a realidade. Biológicas.. Pôr em prática os sonhos.mais pessoal Mas não menos importante : Em ti Via realizados os meus sonhos ! PRETEXTOS PARA FUGIR DO REAL A uma luz perigosa como água De sonho e assalto Subindo ao teu corpo real Recordo-te E és a mesma Ternura quase impossível De suportar . Basta-me fechar os olhos) Por isso fecho os olhos E convido a noite para a minha cama Convido-a a tornar-se tocante Familiar concreta Como um corpo decifrado de mulher E sob a forma desejada A noite deita-se comigo E é a tua ausência Nua nos meus braços Experimento um grito Contra o teu silêncio Experimento um silêncio Entro e saio De mãos pálidas nos bolsos Assobio às pequenas esperanças Que vêm lamber-me os dedos Perco-me no teu retrato Horas seguidas E ao trote do ciúme deito contas Deito contas à vida. SENTENÇAS DELIRANTES DUM POETA PARA SI PRÓPRIO EM TEMPO DE CABEÇAS PENSANTES 1 Não te ataques com os atacadores dos outros. O mesmo deves fazer com os açaimos. E com os botões. É assim que te faço arder triunfalmente onde e quando quero.Por isso fecho os olhos (O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da provocação. . Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção. mas sempre na tua mão. meu filho! Não faças brincos de cerejas sem te darem. Os de pedra sobre pedra. descongela a posta e oferece um bocado a cada um. melhor.2 Não te candidates. Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia. a tua filosofia.. 3 Tira as rodas ao peixe congelado. É provável que te sintas logo muito melhor. primeiro. . Era bom que esta fosse. as orelhas. às vezes. Se houver. Poderias atrapalhar os trabalhos. Pode haver. 6 Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que te puseram em cima da cabeça? Não penses no que fazer com. então. 7 Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra. Cuida no que fazer da. Esta deve ser a tua filosofia. faz um berreiro. nem te demitas. de baixo da pedra. a melhor argamassa. Depois. Assiste. Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira. 4 Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre um caixote com serradura à tua espera. 5 Tudo tem os seus trâmites. Uma palavra é. entenda-se. de facto. Quando tiveres bastante gente à tua volta.. Sai. Mas dá sempre um «Bom dia!» ao pessoal do estaleiro. Oxalá o consigas! 9 Tens um glorioso passado futurível. A criação literária não frequenta o guarda-roupa. mas não fiques de colher suspensa. e que enquanto não coaxa. que a sopa arrefece. 10 Se tiveres de arranjar um nome para uma personagem de tua criação. Assim tudo ficou em balbúrdias de língua cabriolas de mão. Assim tudo ficou até que não. POIS O respeitoso membro de azevedo e silva nunca perpenetrou nas intenções de elisa que eram as melhores. mas sempre com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo a perna da rã. VELHA FÁBULA EM BOSSA NOVA . 11 Resume todas estas sentenças delirantes numa única sentença: Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa. nunca escolhas o de Fradique Mendes. coxeia. Azevedo e silva ao volante do mini vê a elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois e pensa pensa com os seus travões Ah cabra eram tão puras as minhas intenções E a elisa passa rindo dentadura aos clarões. muito menos quando a roupa tem gente dentro.8 Deves praticar os jogos de palavras. ) HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca. Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto. Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto. inesperadas Como a poesia ou o amor. De imenso amor. (-Obrigado... Palavras de amor. formiga! Mas a palha não cabe onde você sabe.Minuciosa formiga não tem que se lhe diga: leva a sua palhinha asinha. Assim devera eu ser se não fora não querer. asinha. De repente coloridas Entre palavras sem cor. (O nome de quem se ama Letra a letra revelado . Assim devera eu ser e não esta cigarra que se põe a cantar e me deita a perder. de esperança. Assim devera eu ser: de patinhas no chão. formiguinha ao trabalho e ao tostão. de esperança louca. Esperadas. sem mais voz.. Aquele que toda a gente.No mármore distraído. Ao silêncio dos amantes PERFILADOS DE MEDO Perfilados de medo. Aventureiros já sem aventura. o coração nos dentes oprimido. do que não seremos.. os fantasmas somos nós. No papel abandonado) Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte. Decisão e coragem valem menos e a vida sem viver é mais segura. uma. . Fizeram já de mim o revólver de trazer por casa. mas não mais. Um bom revólver domesticado: Algumas noções de pré-suicídio. duas vezes na vida. perfilados de medo combatemos irónicos fantasmas à procura do que não fomos. os loucos. Rebanho pelo medo perseguido. já vivemos tão juntos e tão sós que da vida perdemos o sentido. Que a vida está muito cara e a aventura Nem sempre devolve o barco que lhe mandam. Encosta por teatro a um ouvido Que acaba por se fechar envergonhado. agradecemos o medo que nos salva da loucura. Perfilados de medo. O REVÓLVER DE TRAZER POR CASA Querem fazer de mim o revólver de trazer por casa. Guardo o mais obsceno Para quando a ilusão se der. ANIMAIS DOENTES Animais doentes as palavras Também elas Vespas formigas cabras De trote difícil e miúdo Gafanhotos alerta Pombas vomitadas pelo azul Bichos de conta bichos que fazem de conta Pequeníssimas pulgas uma sílaba só Lagartos melancólicos Estúpidas galinhas corriqueiras Tudo tão doente tão difícil De manejar de lançar de provocar De reunir De fazer viver Ou então as orgulhosas Palavras raras Plumas de cores incandescentes Altos gritos no aviário E o branco sem uso Imaculado De certas aves da solidão Para dizer Queria palavras tão reais como chamas E tão precárias Palavras que vivessem só o tempo de dizer a sua parte No discurso de fogo Logo extintas na combustão das próximas Palavras que não esperassem Em sal ou em diamante O minuto ridículo precioso raro De sangrar a luz a gota de veneno Cativa das entranhas ociosas..Quem espera por mim não espera por mim E talvez me encontre por um acaso distraído.. . Mas no meu obsceno mostruário de gestos. . Mas esse leitor aí (bem real!) já diz que não. tão a domicílio como o leite ou o pão.) e que sentia como eu a solidão e quanto ela é objecto da carinhosa atenção de quem hoje nos fornece o quotidiano «não».. pois o saco utilizado. que nunca viu no tal saco o tal «não». por todos os meios. que pode ser o do pão. recebe modestamente a corriqueira fracção desse alimento que é tão distribuído. em lugar de pão.Para dizer a verdade. eu também não. De manhã a recolhemos do saco. Mas estava confiante na sua imaginação (ou na minha. Ao que o poeta responde. desde ..O QUOTIDIANO "NÃO" Estamos todos bem servidos de solidão. Pão é claro que temos (não sou exageradão) mas esta imagem do saco contendo um pequeno «não» não figura nesta prosa assim do pé para a mão.. sem maior desilusão: . PELA VOZ CONTRAFEITA DA POESIA Dá-nos os passos os teus passos de manhã triunfal de cidade à solta os gestos que devemos ter quando a alegria descobrir os dedos em que possa viver toda a vertigem que trouxer da noite os primeiros dedos do sonho do teu sonho nosso sonho mantido mesmo no mais íntimo abandono mesmo contra as portas que sobre nós: em silêncio e noite em venenosa ternura em murmúrio e reza se fecharam já mesmo contra os dias vorazes que por todos os lados nos assaltam e consomem mesmo contra o descanso eterno a viagem fácil com que nos ameaçam vigiando todo o percurso do nosso sono interminável sono coração emparedado no muro cruel da vida desta que vivemos que morremos assim esperando assim sonhando sonhando mesmo quando o sonho ignorado recua até ao mais íntimo de cada um de nós e é o gemido sem boca a precária luz que nem aos olhos chega Não digas o teu nome: ele é Esperança vai até aos que sofrem sozinhos à margem dos dias e é a palavra que não escrevem sobre as quatro paredes do tempo ..a fingida distracção. até ao entre-parêntesis de qualquer reclusão.. o admirável silêncio que os defende ou o sorriso o gesto a lágrima que deixam nas mãos fiéis Não digas o teu nome: quem o não sabe quem não sabe o teu nome de fogo quem o não viu entrar na sua noite de pobre animal doente e tomar conta dela mesmo só pelo espaço de um sonho O teu nome até os objectos o sabem quando nos pedem um uso diferente os objectos tão gastos tão cansados da circulação absurda a que os obrigam As coisas também gritam por ti E as cidades as cidades que morreram na mesma curva exemplar do tempo estão hoje em ti são hoje o teu nome levantam-se contigo na vertigem das ruas no tumulto das praças na espera guerrilheira em que perfilas o teu próprio sono * Ah onde estão os relógios que nos davam o tempo generoso os dedos virtuosos os pezinhos musicais do tempo as salas onde o luxo abria as asas e voava de cadeira em cadeira de sorriso em sorriso até cair exausto mas feliz na almofada muito azul do sono Onde está o amor a sublime rosa que os amantes desfolhavam tão alheios a tudo raptados . pela mão aristocrática do tempo o amor feito nos braços no regaço de um tempo fácil perdulário vosso Hoje não é fácil o tempo já não é vosso o tempo viajantes do sonho que divide doces irmãos da rosa colunas do templo do Imóvel prudentes amigos da vertigem deliciados poetas duma angústia sem vísceras reais já não é vosso o tempo. Noivas do invisível não é vosso o tempo Relógios do eterno não é vosso o tempo * Impossível Impossível cantar-te como cantei o amor adolescente colorindo de ingenuidade paisagens e figuras reduzindo-o à mesma atmosfera rarefeita do sonho sem percurso no real Impossível tomar o íngreme caminho da aventura mental ou imaginar-te pelo fio estéril da solitária imaginação Tão-pouco desenhar-te como estrela neste céu infame dizer-te em linguagem de jornal ou levar-te à emoção dos outros pela voz contrafeita da poesia Impossível . Impossível não tentar dizer-te com as poucas palavras que nos ficam da usura dos dias do grotesco discurso que escutamos proferimos transidos de sonho no ramal do tempo onde estamos como ervas pedrinhas coisas perfeitamente inúteis pequenas conversas de ferrugem de musgo queixas questiúnculas arrotos comoventes * Mas de repente voltas numa dor de esperança sem razão de ser Da sua indiferença agressivamente as coisas saem Sentimo-nos cercados ameaçados pelas coisas e agora lamentamos o tempo perdido a dispô-Ias a nosso favor Porque é tempo de romper com tudo isto é tempo de unir no mesmo gesto o real e o sonho é tempo de libertar as imagens as palavra! das minas do sonho a que descemos mineiros sonâmbulos da imaginação É tempo de acordar nas trevas do real na desolada promessa do dia verdadeiro * Nesta luz quase louca . que se prende aos telhados às árvores aos cabelos das mulheres aos olhos mais sombrios falamos de ti do teu alto exemplo e é com intimidade que o fazemos falamos de ti como se fosses a árvore mais luminosa ou a mulher mais bela mais humana que passasse por nós com os olhos da vertigem arrastando toda a luz consigo EM PLENO AZUL Com horror mal disfarçado sincero desgosto (sim!) lágrima azul aflita mão crispada de piedade vêem-me passar cantando calamidades desastres impossíveis de evitar as mães as minhas a tua as que estropiam ternamente os filhos para monótono e prudente avanço da família E quando páro e faço a propaganda dos lugares mais comuns da poesia há um terror quase obsceno nos seus olhos maternais Então prometo congressos em pleno azul Prometo uma solução em pleno azul Prometo não fazer nada em pleno azul sem consultar o «bureau» em pleno azul Visivelmente sossegadas . . Homens fortes. divididos. unidos. Ao rosto vulgar dos dias. temperados. fracos.é a hora de não cumprir de recomeçar cantando calamidades desastres ruínas por decifrar * Se eu não estivesse a dormir perguntaria aos poetas A que horas desejam que vos acorde? Vamos decifrar ruínas identificar os mortos dormir com mulheres reais denunciar os traidores e atraiçoar a poesia envenenada nas palavras que respiram ausência podre vamos dizer sem maiúsculas o amor a vida e a morte * E as mães onde estão elas? As mães rezam as mães cosem farrapos de dor as mães gritam choram uivam no espesso rio de um sono já quase só animal AO ROSTO VULGAR DOS DIAS Monstros e homens lado a lado. Não à margem. Homens atormentados. mas na própria vida. Absurdos monstros que circulam Quase honestamente. . Vai batendo como a própria vida. pios.A vida cada vez mais corrente. Imaginar. razoáveis.) De algum quarto perdido no desejo? De algum jovem amor que recebeu Mandado de captura ou de despejo? É uma ave estranha colorida. loucas! De inveja as gaivotas a gritar.. Quotidianas. Imaginar é conhecer.. primeiro. * UM CARNAVAL Vam ao baile vem ao baile Pelo braço ou pelo nariz Vem ao baile vem ao baile E vais ver como te ris Deixa a tristeza roer As unhas de desespero Deixa a verdade e o erro Deixa tudo vem beber Vem ao baile das palavras Que se beijam desenlaçam Palavras que ficam passam Como a chuva nas vidraças . portanto agir. As imagens regressam já experimentadas. Um coração vermelho pelo ar. Donde teria vindo! (não é meu. E é a força sem fim de duas bocas. surpreendentes. é ver.. Ainda palpitante voa um beijo. QUrela de aves. O BEIJO Congresso de gaivotas neste céu Como uma tampa azul cobrindo o Tejo. De duas bocas que se juntam. escaracéu. .Vem ao baile. oh tens que vir E perder-te nos espelhos Há outros muito mais velhos Que ainda sabem sorrir Vem ao baile da loucura Vem desfazer-te do corpo E quando caires de borco A tua alma é mais pura Vem ao baile vem ao baile Pelo chão ou pelo ar Vem ao baile baile baile E vais ver o que é bailar António Maria Lisboa PROJECTO DE SUCESSÃO Para o Mário Henrique Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua continuar deitado até se destruir a cama permanecer de pé até a polícia vir permanecer sentado até que o pai morra Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária amar continuamente a posição vertical e continuamente fazer ângulos rectos Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo fazer gestos no café até espantar a clientela pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia contar histórias obscenas uma noite em família narrar um crime perfeito a um adolescente loiro beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina deixar fumar um cigarro só até meio Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias. E o homem sua esfera perdida em mãos alheias é o objecto de malabarismo o insecto voltejando cega a luz que lhe irradiam o límpido cristal corrompido o defunto.Carlos Eurico da Costa 7 Neste dia meu amor os meus dedos são o candelabro que te ilumina o único existente. O caminho é grande o tempo tão pouco tenhamos muita esperança e muito ódio e vítreas flores a ornar o teu cabelo porque serei o homem para as transportar e tu a última mulher que as aceitará. Aqui a hora vai sendo longínqua meu amor e solene. . E enquanto assim for erguer-se-á a nuvem de múltiplas estrelas a nebulosa que dizem estar a milhões de anos-luz mas não acreditemos bem o sabes porque em verdade a temos em nossas próprias mãos oculta para a contemplarmos agora. E este patíbulo onde o próprio carrasco se enforcará eu o digo será erguido como símbolo de todos os homens. Cruzeiro Seixas EPITÁFIO Atravessam os ciprestes bicicletas com cidades velozmente antigas na memória. Não mais haverá teatro quando os guindastes descobrirem o seu próprio sexo de aço. As palavras são verdes e as horas esperam o luar imitando as fontes. Descem as escadas de caracol em mármore que há por dentro de todos os ciprestes outras paisagens tão longas quanto transparentes e indecifráveis. E por sobre as tempestades navegarão . ANDAM DESCALÇOS OS PEIXES Andam descalços os peixes circulam dentro do seu mar interior vestidos de brocados agitando no ar campainhas de oiro. A hora indefinida tem um lago em cada face e para lá da linha esticadíssima do horizonte há túmulos esventrados até ao infinito. Atravessem embora os namorados os aquedutos. sejam ainda cinzentas as nuvens no ventre das águias navios líquidos se reproduzirão por toda parte. Mas as palavras querem voltar à terra ao fogo do silêncio que sustém as pontes perdidas na sua própria sombra. sobe ainda sem palavras. A TUA BOCA ADORMECEU A tua boca adormeceu parece um cais muito antigo à volta da minha boca. Assim é ao mesmo tempo que sou eu e não o sou aquele relógio das horas de oiro que além flutua. só ferocidade e gosto. E há um cão de pedra como um fruto que nos cobre com o seu uivo enquanto pássaros de oiro com mãos de marfim transplantam as árvores transparentes para o ponto mais fundo do mar.rumo ao porto mais distante indestrutíveis palavras sem nexo. As lágrimas que não chorei arrependidas fazem transbordar a eterna agonia do mar como um lençol fúnebre com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico dos cinco continentes que em nós existem. . Herberto Helder SOBRE O POEMA Um poema cresce inseguramente na confusão da carne. a grande paz exterior das coisas. O AMOR EM VISITA Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue. a face amorfa das paredes. único. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. a miséria dos minutos. invade as órbitas. os rios. mas com a gravidade de dois seios. E já nenhum poder destrói o poema. Cantar? Longamente cantar. a força sustida das coisas. Fora. uma mulher. — E o poema faz-se contra o tempo e a carne. a pedra pequena do sorriso de um momento. com o peso lúbrico e triste da boca. a redonda e livre harmonia do mundo. Mulher quase incriada. — Embaixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. Seus ombros beijarei. . Insustentável. Seus ombros beijarei. as sementes à beira do vento.talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. Fora. a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora existe o mundo. Com ela encantarei a noite. Dai-me uma folha viva de erva. — a hora teatral da posse. as folhas dormindo o silêncio. os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor. À tona da sua face se moverão as águas. Dai-me um torso dobrado pela música.imagem inacessível e casta de um certo pensamento de alegria e de impudor. cantarei. dentro da sua face estará a pedra da noite. cantarei seu sorriso ardendo. Dai-me uma mulher tão nova como a resina e o cheiro da terra. Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave o atravessar trespassada por um grito marítimo e o pão for invadido pelas ondas seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes. mulher de pés no branco. Beberei sua boca. um ligeiro pescoço de planta.Ó cabra no vento e na urze. sob nossos dedos. transportadora da morte e da alegria. onde uma chama comece a florir o espírito. E enquanto o dorso imagina. * Em cada mulher existe uma morte silenciosa. a curva quente dos cabelos. E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue. * Nem sempre me incendeia o acordar das ervas e a estrela despenhada de sua órbita viva.Então cantarei a exaltante alegria da morte. Com uma flecha em meu flanco. Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno. . tu sempre me incendeias. mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito. .Uma mulher com quem beber e morrer. Seu corpo arderá para mim sobre um lençol mordido por flores com água. para depois cantar a morte e a alegria da morte. os bordões da melodia. Ele . a noite . desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto. . mulher nua sob as mãos.Porém.navega o sangue. suas mamas de pura substância. a morte sobe pelos dedos. Porque é de ti que me vem o fogo. Toco o peso da tua vida: a carne que fulge. e digo: ouves. não há vindima ou água em que não estivesses pousando o silêncio criador. * Então sento-me à tua mesa. a inspiração. Minha memória perde em sua espuma o sinal e a vinha. tua vida o deseja. não te esquecem meus corações de sal e de brandura. Para mim se erguem teus olhos de longe. Inteira.imagem pungente com seu deus esmagado e ascendido. os ombros violados. Agarro tua cabeça áspera e luminosa.invento para ti a música. a paisagem regressa ao ventre. e o mar. tuas mãos descobrem a sombra da minha face. meu amor?. . Digo: eu sou a beleza. o sorriso. Entontece meu hálito com a sombra. E quando gela a mãe em sua distãncia amarga. a lua estiola. Digo: olha. Plantas. é o mar e a ilha dos mitos originais. Teus olhos se transfiguram. tua boca penetra a minha voz como a espada se perde no arco. Vou para ti com a beleza partida. descerras na vastidão da terra a carne transcendente. seu rosto e seu durar.Porém. bichos. o sangue penetrado de paredes nuas. para o tempo eu sou a beleza. Não há gesto ou verdade onde não dormissem tua sombra e loucura. E em ti principiam o mar e o mundo. E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa. Tu própria me duras em minha velada beleza. o tempo se desfibra . Tu dás-me a tua mesa. a loucura. águas cresceram como religião . eu sou aquilo que se espera para as coisas. Com minha face cheia de teu espanto e beleza. Porém. é sua carne que do minuto obscuro e morto se devolve à luz. insiste de violência a imobilidade aquática. . a carne cresce em seu espírito cego e abstracto. que ouves. eu sei quanto és o íntimo pudor e a água inicial de outros sentidos. os bichos erguem seus olhos dementes. e tudo circula entre teu sopro e teu amor. Na morte referve o vinho. * Mais inocente que as árvores. onde a beleza que transportas como um peso árduo se quebra em glória junto ao meu flanco martirizado e vivo. rarefaz-se a auréola. As coisas nascem de ti como as luas nascem dos campos fecundos. E os astros quebram-se em luz sobre as casas. a sombra canta baixo. * Começa o tempo onde a mulher começa. e a promessa tinge as pálpebras com uma imagem. Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito de sal e de silêncio. mais vasta que a pedra e a morte. arde a madeira . teu silêncio de fogo e leite repõe a força maternal. os instantes começam da tua oferenda como as guitarras tiram seu início da música nocturna.para que tudo cante por teu poder angélico e fechado.e eu nisso demorei meu frágil instante. És tu que me aceitas em teu sorriso. Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua. que te alimentas de desejos puros. E une-se ao vento o espírito. concebo para minha serenidade uma ideia de pedra e de brancura. tinge a aurora pobre.sobre a vida . a cidade arrebata-se. Bom será o tempo. Começa o tempo na insuportável ternura com que te adivinho. bom será o espírito. . eu estou no fruto como sol e desfeita pedra. . a erva incendiada que se derrama na íntima noite.E as aves morrem para nós.. ó urna salina. * Se te aprendessem minhas mãos. E o que se perde em ti. * Felizmente estás na pedra e a pedra em mim. a morte que não beijo. beijarei tuas mãos fecundas. forma do vento na cevada pura. que frescura indecisa ficaria no meu sorriso? . minha voz o renova num estilo de angústia e prata viva. E em sua medida ingénua e cara. como espírito de música estiolado em torno das violas. dom de inocência. . onde o encanto liga a ave ao trevo. o que pressente o coração engasta seu contorno de lume ao longe. boa será nossa carne presa e morosa. Se uma vida dormisses em minha espuma.Começa o tempo onde se une a vida à nossa gratidão. e tu és o silêncio.o que se perde de ti. Quando o fruto empolga um instante a eternidade inteira. taça para beber junto à perturbada intimidade em que me acolhes. a resina tinge a estrela. Oh teoria dos instintos. imagem fechada em sua pungência e castidade. o tempo onde a vária dor envolve o barro e a estrela. E estás em mim como a flor na ideia e o livro no espaço triste. a cerrada matriz de sumo e vivo gosto. e à madrugada darei minha voz confundida com a tua. os luminosos cálices das nuvens florescem.Para consagração da noite erguerei um violino. de ti viriam cheias minhas mãos sem nada. o aroma distancia o barro vermelho da manhã. . os centauros do crepúsculo. o rosto divino impresso no lodo. . descubro tuas mãos. ó mais nua e branca das mulheres. e serás uma árvore dormindo e acordando onde existe o meu sangue. O meu desejo traz o perfume da tua noite. As sombras que rodeiam o êxtase. Em cada espasmo eu morrerei contigo. uma palavra. E eu peço ao vento: traz do espaço a luz inocente das urzes. ergue-se tua boca ao círculo do meu ardente pensamento. Ver no aro de fogo de uma entrega tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus será criar-te para luz dos meus pulsos e instante do meu perpétuo instante..aspiram longamente a nossa vida. no peixe. Beijar teus olhos será morrer pela esperança. Murmuro os teus cabelos e o teu ventre. . Onde estará o mar? Aves bêbedas e puras que voam sobre o teu sorriso imenso. no linho. traz da montanha um pássaro de resina. a montanha inspirada. As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso jovem da carne aspiram longamente a nossa vida. Por isso é que nos desfazemos no arco do verão.No entanto és tu que te moverás na matéria da minha boca. * Beijo o degrau e o espaço. o mar. devo murmurar cada coisa do mundo até que sejas o incêndio da minha voz. uma lua . Por isso é que estamos morrendo na boca um do outro. os bichos que levam ao fim o instinto seu bárbaro fulgor.no amor mais impossível do que a vida. no sorriso deserto. no pensamento da brisa. a casa morta. no mosto. Corre em mim o lacre e a cânfora. no cubo.Eu devo rasgar minha face para que a tua se encha de um minuto sobrenatural. um silêncio. espadas. Eu procuro dizer como tudo é outra coisa. SÚMULA Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. coisas maravilhosas da noite. penso. E a morte passa de boca em boca com a leve saliva. Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas. Beijarei em ti a vida enorme. danças. Ó meu amor. com o terror que há sempre no fundo informulado de uma vida. casa de madeira do planalto. Falo. Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.vermelha. Ó pensada corola de linho. É sempre outra coisa. rios imaginados. * De meu recente coração a vida inteira sobe. . em cada espasmo eu morrerei contigo. uma só coisa coberta de nomes. o povo renasce. Tua voz encanta o horto e a água .e eu caminho pelas ruas frias com o lento desejo do teu corpo. imponderável em cada espasmo eu morrerei contigo. o tempo ganha alma. E à alegria diurna descerro as mãos. Meu desejo devora a flor do vinho. superstições. cânticos. Ó amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos. Perde-se entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro da tua entrega. mulher que a fome encanta pela noite equilibrada. Bichos inclinam-se para dentro do sono. envolve tuas ancas com uma espuma de crepúsculos e crateras. e em cada espasmo eu morrerei contigo. levantam-se rosas respirando contra o ar. E às vezes estou na frente dos campos como se morresse.Porque o amor das coisas no seu tempo futuro é terrivelmente profundo. . é suave. ou na lembrança total das coisas. Por vezes tudo se ilumina. Há copos. garfos inebriados dentro de mim.As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas. relembrava. Que a loucura tem espinhos como uma garganta. Eu metias as mãos na água: adormecia. Sei como era uma casa louca. eu juro. Eu jogo. . Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade. Apalpo agora o girar das brutais. Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas. Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.absoluta. Por vezes canta e sangra. como se agora somente eu pudesse acordar. Uma rosapeixe dentro da minha ideia desvairada.Era uma casa . uma rosa como uma alta cabeça.como direi? . e o que é o outono? As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento. Há no esquecimento. líricas rodas da vida. Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento como seres pasmados. um peixe como um movimento rápido e severo. As cadeiras ardiam nos lugares. devastador. Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra. outras. Era uma casinfância. . Eu digo: roda ao longe o outono. . Chovia nas noites terrestres. Eu quero gritar paralém da loucura terrestre. O leite cantante.Caneta do poema dissolvida no sentido primacial do poema. O corpo sem rosáceas. a linguagem para amar e ruminar. Eu agora mergulho e ascendo como um copo. inspirado. sentadamente completa. destilado. Nome no espírito como uma rosapeixe. exemplo extremo.Às vezes riam alto. Porque havia escadas e mulheres que paravam minadas de inteligência. . Trago para cima essa imagem de água interna. Ter amoras.Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados agora nas palavras. ou magnólia que saía da mão para o rosto da mãe sombriamente pura. folhas verdes.um sentimento onde algumas pessoas morreriam. Demência para sorrir elevadamente. com as suas maçãs centrípetas e as uvas pendidas sobre a maturidade. Teciam-se em seu escuro terrífico. à boca da noite. Era uma casabsoluta . Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras. as penumbras fulminadas. Havia a magnólia quente de um gato. Ah. mãe louca à volta. Rodear as mesas. As mãos tocavam por cima do ardor a carne como um pedaço extasiado. Prefiro cantar nas varandas interiores. Oh. Cantava muito baixo. A menstruação sonhava podre dentro delas.Era húmido. espinhos com pequena treva por todos os cantos. . Parecia fluir. Havia rigor. Gato que entrava pelas mãos. .como direi? . Havia uma essência de oficina. pensar com delicadeza. A demência lavra a sua queimadura desde os seus recessos negros onde se formam as estações até ao cimo. sensível.Ou o poema subindo pela caneta. que à imagem do mundo aberta de têmpora a têmpora ateia a sumptuosidade do coração. (A CARTA DA PAIXÃO) Esta mão que escreve a ardente melancolia da idade é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça. nas sedas que se escoam com a largura fluvial da luz e a espuma. Um movimento. feita o sentar-se. Com malmequeres fabulosos. E a mesa por baixo. poema regressando. Ouro por cima. imaginar com ferocidade. A sonhar. A madrugada ou a noite triste tocadas em trompete. Sou uma devastação inteligente. Tudo se levanta como um cravo. Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia. Tudo morre o seu nome noutro nome. uma faca levantada. Sou alguma coisa audível. Com alguma ironia furibunda. Poema como base inconcreta de criação. Ou flores bebendo a jarra. O silêncio estrutural das flores. atravessando seu próprio impulso. Cadeira congeminando-se na bacia. Ah. Poema não saindo do poder da loucura. com furibunda concepção. ou da noite e as nebulosas . o silêncio alimenta-se fixamente de mel envenenado. uma veia dentro da tua árvore. E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado. Ou ainda a fenda na fronte por onde começa a estrela animal. Queima-te a espaçosa desarrumação das imagens. E trabalha em ti o suspiro do sangue curvo. arterial. .e o silêncio todo branco. Os poros do teu vestido. Os dedos. a límpida ferida que me atravessa desde essa tua leveza sombria como uma dança até ao poder com que te toco. E o marfim amadurece na terra como uma constelação. Nenhuma estação é lenta quando te acrescentas na desordem. A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua alumia-se: O mel escurece dentro da veia jugular talhando a garganta. E eu escrevo-te toda no cometa que te envolve as ancas como um beijo. A paixão é voraz. O dia leva-o. e de alto a baixo. A mudança. As mãos carregam a força desde a raiz dos braços a força manobra os dedos ao escrever da idade. As palavras que escrevo correndo entre a limalha. essa lua tece as ramas de um sangue mais salgado e profundo. A tua boca como um buraco luminoso. uma labareda fechada. nenhum astro é tao feroz agarrando toda a cama. A idade que escrevo escreve-se num braço fincado em ti. Nesta mão que escreve afunda-se a lua. um alimento violento cheio da luz entrançada na terra. Ou um filão ardido de ponto a ponta da figura cavada no espelho. em tuas grutas obscuras. a noite traz para junto da cabeça: essa raiz de osso vivo. Em noite assim eu extinguiria minha alma cantando humildemente. as noites que crescem nos quartos. os quartos alagados. Tu és o nó de sangue que me sufoca. É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a entre os braços. Bruxelas com as traves da minha cabeça e uma grinalda de carvões em torno dos testículos de um homem bêbado da sua idade. luzimos de um para o outro nas trevas. De pé sob as luzes encantadas. Os fulcros das caras um pouco loucas engolfadas. o imóvel relâmpago das frutas. E como estrelas duplas consanguíneas. Cantaria com estes testículos . vendo queimarem-se nas trevas as vísceras tensas e os ossos e as flores dos nervos e a cândida e ligeira arquitectura de uma vida. A doçura mata. E há roupas vivas. A terra é alta. um mês. A luz salta às golfadas. És uma faca cravada na minha vida secreta. e entre os violinos e os fortes poços da noite descobriria a ardente ideia da minha vida. Fecharia os olhos sob os anéis dos astros. AS MUSAS CEGAS AS MUSAS CEGAS I Bruxelas.Os dias côncavos. Cantaria como um louco este grande silêncio do mundo. Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões da madeira fria. entre as mãos sumptuosas. O incêndio atrás das noites corta pelo meio o abraço da nossa morte. Em noites assim amaria o fogo da minha idade. ou sobre os campos transparentes e sombrios de bruxelas do mundo. E enquanto dorme o leite. . as lágrimas. E se alguém morre num lugar de searas imperfeitas. Aqui está a primavera entre luas excepcionais e pedras soando . uma fina flor vermelha colocada sobre a mesa. um vidro incandescente.Límpidas e amargas. AS MUSAS CEGAS II Apagaram-se as luzes. . o fogo de porta entre os símbolos nocturnos. Eis um tempo que começa: este é o tempo. Vergada sobre o livro onde o meu rosto ardia. é o pensamento que verga de flores actuais e frias. No círculo de pétalas veementes cai a cabeça e as palavras nascem. Era tão violenta a ideia de cantar sem fim. seus grandes lagos límpidos. a sua dor. a vida esperava com sua torres vibrantes. o lírico fervor. E eu adormecia e sonhava um homem em voz alta. E as estrelas algures aniquilam-se para um campo sublevado de seivas. A confusão espalha sobre a carne o recôndito peso do ouro. Melancolia com sua forma severa e arguta.Cantar fixa e fria e intensamente sobre a minha rasa luminosa vida.negros. até que voz consumisse esta garganta sombreada de estreitos vasos puros. o coração ao meio do nevoeiro derramando o seu baixo e aéreo sangue. a minha casa pousa no silêncio e arde pouco a pouco. para a noite que estremece fundamente. Era tão pura a ideia de que o tempo começava depois do verde e fértil e exaltado mês da carne. É a primavera cercada pelas vozes. com maçãs dobradas à sombra do rubor. com a primeira música de água. Esta é a alegria coberta de pólen. espécie de ar transparente para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra. esta mão que na treva procura o vinho dos mortos. E eu sorrio. os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas. E apagaram-se as luzes. Hoje descubro as grandes razões da loucura. Algumas vezes amei lentamente porque havia de morrer com os olhos queimados pelo poder da lua.É preciso cantar como se alguém soubesse como cantar. leve e destruído. Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego que principia. esse frio poço dos sons. É primavera. a mesa onde o coração se consome devagar. Arde além rodeada pelo sal. por inúmeras laranjas. Algumas noites amei enquanto rodavam ribeiras antigas. espécie de boca recolhida no começo? E é tão certo o dia que se elabora. Degrau a degrau devorei a alegria eu. é a casa ligeira colocada num espaço de profundo fogo. degrau a degrau subi o corpo daquela que se enchera de minúsculas folhas eternas como uma árvore. entre jarros transbordando húmidos astros. E não chames mais por mim. de grau a degrau. a escadaria daquele corpo. Ela não dormia.Onde aguardas por mim. . com esta coroa recente de ideias. estava . Apagaram-se as luzes. Por isso é de noite. pensamento agachado nas ogivas da noite. Há lugares onde esperar a primavera como tendo na alma o corpo todo nu. AS MUSAS CEGAS III Eu teria amado esse destino imóvel. e ao longe procuro no meu silêncio uma outra forma dos séculos. é primavera de noite. . de garganta aberta como quem vai morrer entre águas desvairadas. Então eu beijo. eu despertava como um espelho onde as brasas da cabeça principiam a girar. Durante um mês viveu em mim. as grandes estações do ano passariam devagar na minha confusão. Eu era um homem e tinha na boca o ofício de sorrir o fluxo encantado das imagens. E tinha palavras que um homem tem para acender. nas margens cantantes e frias das águas do mundo. e poderoso e vazio como uma guitarra. que não podia jamais dormir entre uma onda que vem do céu e da terra e uma noite que iria e viria sobre a paisagem de arcos e pontes e torres e poços tenebrosos e ocos. Eu cantava junto a esse sonâmbulo instrumento. Sinto que tocaria esse intenso violino.a meu lado. debruçadas sobre esse objecto misterioso e triste. as pequenas folhas do rosto. nessa monstruosa noite da criação. era uma gruta onde a música um instante se torna imensa. e não dormia. Foi o mês das musas. Estava iluminada por dentro. Os mortos poderiam erguer os corpos . A minha voz era esplêndida. eu era profundo e fecundo. Às vezes eu levantava um braço que deixava arder ou pensava como era forte a torrente do meu silêncio. e a noite ia e vinha sobre os arcos e os tanques e as frestas. Não dormia. O sangue passava pelos arbustos do corpo e os pensamentos ardiam em mim. Durante o espantoso mês das musas. como fogueiras. Pensava como poderia desfazer-se a carne sem que eu gritasse. e a vida mudaria. Vejo a minha vida agitada. minha dor e idade de homem. a penumbra da sua vida estava coberta de ervas puras. uma coluna de obscuridade que dormia. porque ela mesma cantaria então. Chegava um dia em que ela devia ser obscura. A meu lado aquele ser levitava. um homem disposto sobre si como a luz se dispõe sobre a luz e as palavras são em si mesmas dispostas no renovo das palavras. eu era um homem e um homem beija a sua própria boca. . Porque a obra era então mais que o mundo e as fontes e os leitos dos poderes eu. e por ele passavam as aves. Sabia agora como havia razão no oculto movimento da fantasia. Minha dor de homem de novo se inclinava sobre as formas mudas. e ao alto os telhados transparentes incendiavam-se batidos pelos raios.submersos na grande ideia universal. Mas somente para mim o vento circulava com seus archotes rápidos rápidos. os montes atingiam as corolas celestes. nunca deixavam correr as águas que atravessam os povos mais puros do mundo. poderiam ouvia a minha voz tão límpida de terrível alegria. e o meu coração ressoava. Era tenebroso e doce que a loucura me viesse deste lugar. Sobre a sombra de um mês confuso e rápido. como essa força chegava de nada e era força no próprio e puro enigma da minha vida. que fosse uma árvore sustentando a minha idade. iluminada e humilde debaixo da noite rolante. Porque a terra trabalhava para acender aquela cidade. e o sangue despedaçava as portas. Minha cabeça estremecia contra a almofada de fogo. da estupenda noite inspiradora. E amo o amor na mulher. e o peixe corre cheio de originalidade por dentro da palavra. pedra. E na palavra. . Toco o gato e a pedra. casa e gato. Toco a palavra apaixonante. e a casa e o homem que vou ser são minuto a minuto mais concretos. ou o peixe. e a mulher toma a palavra do gato no regaço. toco a pedra. A mulher da palavra. A mulher senta-se no tempo e na minha melancolia pensa-a. não só a palavra mas cada coisa que invade cada coisa que invade a palavra. o amor. o gato adormece na palavra. Uma pedra na cabeça da mulher. o movimento obscuro destas coisas que não encontram palavras. Amo. peixe. ou a casa. Anda um peixe comprido pela cabeça do gato. A pedra cai na cabeça do gato e o peixe gira e pára no sorriso da mulher da luz. e a mulher é a palavra.AS MUSAS CEGAS IV Mulher. Palavra abstracta que arrefeceu no gato e agora aquece na carne concreta da mulher. A luz ilumina a pedra que está na cabeça da casa. ou a palavra. e na cabeça da casa. e é apaixonante. Se toco (e é apaixonante) a mulher. luz e casa. Eu próprio caio na mulher. uma luz violenta. Eu olho. Deito-me e amo a mulher. Dentro da casa. Eternamente a mulher da mão passa a mão pelo gato abstracto. se toco a mulher com seu gato. enquanto o gato imagina a elevada casa. Se toco a mulher toco o gato. A Palavra. com o amor do amor. Toco a luz. E penso que sou total no minuto em que a mulher eternamente passa a mão da mulher no gato dentro da casa. Dizem o meu nome: Torre.Sou amado. AS MUSAS CEGAS V Esta linguagem é pura. Dizem: ele é uma palavra. com suas lâmpadas. e morre. multiplicado. No meio está uma fogueira e a eternidade das mãos. A profundidade das águas onde uma mulher mergulha os dedos. . . Essa mulher cercou-me com as duas mãos. e tensos na música. difundido. As coisas que são uma só no plural dos nomes. todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio. . . Escorre minha vida imemorial pelos meandros cegos. o meu único verão. Na treva de uma carne batida como um búzio pelas cítaras.Porque uma mulher toma-me em suas mãos livres e faz de mim um dardo que atira. Onde ela ressuscita indefinidamente. sou uma onda. No mundo tão concreto. E chega o verão. Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue. Esta linguagem era o disposto verão das musas.Porque me amam até se despedaçarem todas as portas. todas as coisas. subtis. e por detrás de tudo.E nós estamos dentro. E de repente eu sou uma torre queimada pelos relâmpagos. Estou secreto. num lugar muito puro. Sou esperado contra essas veias soturnas. no meio dos ossos quentes. e eu sou exactamente uma Palavra. . secreto e doado às coisas mínimas. Esta linguagem é colocada e extrema e cobre. grita abertamente as giestas. adormece. e morre. e fecundo. análogo.E é uma pedra celeste. e terrivelmente belo . AS MUSAS CEGAS VI . Pensa. . A mulher pega nessa pedra tão jovem. multiplicam-me. e a vida que se toca de uma escoada recordação. Depois levanta-se com os olhos imensos e incendeia as casas. Sou eterno. amado. Há gente que se apossa da loucura.não é nada que se diga com um nome. ou a cor que sobe pelos frutos. uma ardente confusão de estrela e musgo. Recolhe-se com a candeia de uma pessoa. Um dia acorda com toda a ciência. Amam-me. sonha alto as coisas da loucura. tão pura. Destruo as coisas. Os velozes sóis que se quebram entre os dedos. Toda a juventude é vingativa. que levo uma cegueira completa e perfeita. Deita-se. Os veios que escorrem são a imensa lembrança. faço um ruído tombado na harmonia das vísceras. Sou amado. Toda a água descendo é fria. nutre-se desse quente silêncio. aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado. E eu. Só assim eu sou eterno. Sou eu. Há gente assim. esgota-se. e atira-a para o espaço. e quente. as pedras caídas sobre as partes mais trémulas da carne. acendo lírio a lírio todo o sangue interior. fria. e vive. e canta ou o mês antigo dos mitos. ou a lenta iluminação da morte como espírito nas paisagens de uma inspiração. tudo o que húmido.acendo-lhe as falangetas. Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente. fundo-me no verbo interior da primavera como o vermelho se funde na flor futura. Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos. junto à terra nocturna. Sinto os ossos ascenderem às cobras da cabeça e a obra está nas mãos. entre as águas das noites eternas. Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam e a rutilação ascende pelas veias. como cresces. É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina os meus espinhos frios. os dedos das minhas mãos. É uma coisa estupenda a primavera que trabalha nas caveiras dos cavalos enterrados. Porque tu eras a minha água salgada. Que a tristeza me ajude. fogo sem fim circunda suas raízes leves. Cantavas o que já se não quebra com o uso das vozes. Enquanto os outros dormem. que me ajudem os dentes da minha boca. Junto à terra transfigurada. Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas. a torrente translúcida da morte. A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato. Tenho medo de erguer a voz mais alto que o meu coração. Inspiro-me na primavera com suas grutas de água atenta. terra preenchida. sangue. todos os mortos.É preciso falar baixo no sítio da primavera. Terra. a lua que inclina meu sangue ligado e o sangue da terra nocturna. . bate os seus martelos contra um milhão de estrelas. Primavera.. Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis. E os cavalos ressuscitam pela noite adiante. onde uma candeia concentra um grande silêncio. Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos. todos os que amam entre sangue no mundo. como correm nos membros reaparecidos. Tu cantavas. Desespero ou alegria. e amo a loucura a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror. Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes. há tantas finas raízes que sobem do meu sangue. Uma pancada breve. Essa criança tem boca. desde o começo. para a eternidade. mistério. evocar tuas colinas de sal. É uma doce pancada à porta. mas ressoando depois. Que eu serei até não sei quando. Uma coisa enorme. e a noite estala imperceptivelmente ou se queima como uma face. ressoando violentamente pelos corredores e paredes e pátios desta própria casa que eu sou. breve e eu estremeço como um archote. depois de baterem. reaparecem em espírito mastigando giestas.Dizer devagar na humidade da carne. Tudo em volta da primavera e da noite com uma porta no coração para passar num tremendo silêncio. Sempre devagar. A primavera cresce num núcleo de ideias. Ressuscitar uma vez com a cara extrema junto a líquenes inocentes. que a noite se move um pouco para a frente. devagar . Eu diria que cantam. .como quem ressuscita. e o sangue alimenta a loucura devagar. primeiro devagar. sem música. alguma coisa que desfaz e refaz um homem. Entre os meses saber de um só que pede a mudez aterradora. Falo tão devagar que mal distingo a noite sobre a terra da minha garganta onde os animais passam lentamente inspirados. em mim. AS MUSAS CEGAS VII Bate-me à porta. Primavera é uma palavra numa língua demasiado estrangeira. Escuta: que a noite vagarosamente se queima como a minha face. as cabras evaporam-se. Eu diria que sangra um ponto secreto do meu corpo. Um novo instrumento. Essa criança tem os pés na minha boca dolorosa. às vezes debruço-me sobre as cisternas. uma pequena lira. uma criança que ascende com uma grande música desta rede de ossos. É a minha vida. Essa criança dorme sobre os meus lagos de treva. deste espinho de sexo. por ligeiras pedras húmidas. pelos animais que movem no seu calmo halo de fogo as grandes cabeças sonhadoras.e se de tudo a sua cabeça estremecer como numa loucura. Misturava-se o vinho dentro de mim. e sonhar estes imensos arcos que os séculos vão colocando sob os astros . e há tantas finas raízes que sobem do meu sangue. e as virilhas em chama. Pensei algumas palavras para oferecer-lhe. com o vestíbulo frio.uma taça situou-se na terra. podem erguer-se de um rio de sangue. ou as pistas deixadas na neve de fevereiro. sobre o mundo um novo instrumento rodeado de campânulas inclinadas. com enormes faróis . Porque então é muito estreita com os seus espelhos detrás. misturava-se a ciência da minha carne atónita. No outono eu olhava as águas lentas. Escuta: cada vez a minha vida é mais hermética. Esqueço-me tantas vezes dos mistérios dessa porta. uma flor. Se ela um dia adormecer com cerejas junto à respiração pequena. Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos. e as vertigens. ela destrói e aumenta o meu coração. com altos picos em volta. E uma candeia. ou a cor feroz. tão brusca. Mas essa criança é tão brusca. ou a arcada do céu com um silêncio completo. Mas é tão belo uma criança ainda enevoada. da confusa pungência. escuta: da pungente confusão de um homem restrito com a sua vida tão lenta. tantas vezes penso na chuva.acendendo e apagando . Se ela morrer. Às vezes na noite veja as casas pequenas. mas que principia a engolfar-se no seu doce hermetismo . e todas as cordas se juntarem tensamente para que ela invente o seu próprio rio sem nome será ainda que do meu sangue se erguem finas raízes. será que a minha boca diz lá em baixo essas majestosas e violentas palavras dos poemas. Se um dia os archotes incendiarem essa boca. Essa criança que aperta as veias que iluminam a minha garganta. Às vezes na noite ainda jovem. escuta. Ela dorme. escuta: a minha boca. e o tenebroso tumulto das minhas sombras está no fundo. no fundo da sua ingénua vida. lá em baixo. da sua terrível vida sem remédio. e nos corpos. e nas pontes onde se encontra alguém com as cegas mãos escorrendo para o fundo o sangue de uma imensa inspiração. as rosas que se voltam para o subterrâneo e subtil ruído da seiva. AS MUSAS CEGAS VIII Ignoro quem dorme. no seu espírito expansivo que repousa. Nas crianças que enlouquecem silenciosamente dentro da sua inocência. Escuta: a sua vida estala como uma brasa. . Eu sei: despedir-se dos meses é um ofício inquieto. e as faúlhas cercarem o silêncio tremendo dessa pequena boca. está coberta de fogo. Despedir-se dos meses é uma nova tarefa. a sua vida deslumbrante estala e aumenta.escuta: se essa criança imaginar. Penso nas mulheres de pálpebras descidas. um ofício inquieto. a minha boca ressoa. é a boca desmanchada que sangra devagar. Ignoro quem dorme.tudo isso disposto para a inquietação de um ofício. a minha boca ressoa como as cavernas de um barco. livros. Mas no fundo. Eu sei: as vigas da cabeça estremecem um pouco. Mas é o homem que recebe a inspiração violenta. alguns arcos secundários. é um ofício novo e louco.as mãos rodeando uma lâmpada. Sobre um rosto eu diria: é um rosto? Sobre uma vida eu perguntaria se era a força de uma vida. uma raiva generosa nas mãos iluminadas. como objectos ardentes. As rosas que há nas palavras. Às vezes vejo que é uma invencível doçura. cúpulas. as armas antigas. É instantâneo. Porque os ossos e as veias vão de corpo para corpo. Tudo isto é uma musa. Não sei o que há tão veloz e tão firme na base de um homem. Partem-se. Ignore quem dorme. A minha tarefa inquieta de pôr a vida . Os próprios meses ressoam com espelhos ardentes. os jardins debruçados nas violas paradas. como telhados. uma pungente sabedoria. um poder. essas mãos docemente cobertas de sangue . as mesas. as palavras que estão no alto como fungos luminosos. um espanto colorido em redor de uma casa. Uma vida pode tremer do princípio ao fim. O meu ofício de despedir-me um pouco engolfado na loucura. no fundo. Minha boca ressoa. e despedir-se de tudo é um ofício inquieto. móvel. aqui e ali.As luzes. a minha boca está no fundo. as palavras que gravitam em baixo no instável momento que avança e recua ao pé da eternidade . a minha boca da minha vida é um ofício. coberta de sangue. uma tarefa perene do coração sobre quanto se ignora. eterno. o amor leve. Flores violentas batem nas suas pálpebras. algo que se aprende lentamente com as mãos e a garganta e a testa e o marulho das águas que correm profundamente em lugares inacessíveis. Nas amadas caras loucas batem e batem os dedos amarelos das candeias. a boca está coberta de um perturbado sangue masculino. E despedir-se dia a dia desta torrente de pequenas imagens alucinadas e mansas é um mester ainda jovem.na sua oculta loucura. É um violento ofício. FONTE II No sorriso louco das mães batem as leves gotas de chuva. E as mães são cada vez mais belas. alimentando as imagens. e queimando as imagens. Que balouçam. Sentam-se. enquanto o amor é cada vez mais forte. e no fundo desse ofício violento e puro. sem nomes nem janelas por onde surja a cabeça coroada de violinos. O amor feroz. pelos tendões e órgãos mergulhados. vendo tudo. e estão ali num silêncio demorado e apressado. Seu corpo move-se pelo meio dos ossos filiais. e as calmas mães intrínsecas sentam-se nas cabeças filiais. E bate-lhes nas caras. Tudo isto canta na galeria dos meses ornados de delgados mastros acesos. E as mães aproximam-se soprando os dedos frios. Gotas e candeias puras. Pensam os filhos que elas levitam. . Que são puras. Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais lá vai o poeta em direcção aos seus sinais. a fantasia esquece. . No meio do ar distrai-se a flor perdida. E o poeta dá à pata como os outros animais. o poeta pernalta dá à pata nos pedais. E a bicicleta ultrapassa o milagre. o campo plano. o amor confuso. Uma grande memória. A vida é curta. o movimento da rosa floresce sabiamente. os sinais dos dias sobrenaturais e a história secreta da bicicleta. De pulmões às costas e bico no ar. a vida é para sempre tenebrosa. O sol é branco. Dá à pata como os outros animais. Morte é transfiguração.Elas respiram ao alto e em baixo. e o dia de verão se recolhe ao seu nada. O sol é branco. BICICLETA Lá vai a bicicleta do poeta em direcção ao símbolo. aparece e desaparece uma rosa. Não há sombra de sinais. A vida é para sempre tenebrosa. Puta de vida subdesenvolvida. O poeta aperta o volante e derrapa no instante da graça. Se a noite cai agora sobre a rosa passada. O símbolo é simples. No dia de verão. a morte certa. e a única direcção é a própria noite achada? De pulmões às costas. A pata do poeta mal ousa pedalar. Entre as rimas e o suor. Entre o nascimento e a morte. violenta. O bico do poeta corre os pontos cardeais. por um dia de verão exemplar. De pulmões às costas. as flores legítimas. São silenciosas. a vida é tenebrosa. desta riqueza côncava. o poeta pedala o coração transfigurado. Se o sul é para trás e o norte é para o lado. O tempo só existe por estes corpos selados. Pela noite secreta dos caminhos iguais. deste sono. azeite. O mel amadurece com a voltagem de uma jóia onde mergulha a lua. O peso dessa vida insondável: vinho. O vinho ensombra-se. Estou cheio desta noite. Na memória mais antiga a direcção da morte é a mesma do amor. O poeta dá à pata como os outros animais.pela imagem de uma rosa. A noite cerra-lhes os corações que sorviam o caos pelas aortas de argila. . Ordena a luz o que o escuro tranca. E o poeta. E o barro suspira. O DIA ORDENA OS CÂNTAROS UM A UM EM FILAS VIVAS O dia ordena os cântaros um a um em filas vivas. As palavras encostadas ao papel. os cântaros . mel – o caos que se transforma em número. afinal mais mortal do que os outros animais. o sonho atado ao sono numa imagem concêntrica radiando dentro.profundamente. Se alguém se fecha com a noite por cima. dá à pata nos pedais para um verão interior. A imagem diurna ordena em filas que respiram as palavras profundas. E o azeite repousa. arrefecida. as crateras. A imagem multiplica a consciência. Agarrado ao volante e pulmões às costas como um pneu furado. E o poeta pernalta de rosa interior dá à pata nos pedais da confusão do amor. Flancos contra flancos. é para sempre a morte. e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos.bilhas profundas na casa mais profunda ainda. uma a uma as palavras contra o papel profundo que suspira . descobria-se sangue. o Amor aparecia e desaparecia em todos eles. Luiza Neto Jorge MINIBIOGRAFIA Não me quero com o tempo nem com a moda Olho como um deus para tudo de alto Mas zás! do motor corpo o mau ressalto Me faz a todo o passo errar a coda. mas vinha comer às nossas mãos. a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra. daquela espécie de beleza repentina e urgente. ele vinha em estado completo de fotografia embriagada. porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas. era preciso chamá-lo sem voz . e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo. e depois já se não sabia o que fazer. e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa. as coisas do mundo. as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas. Uma a uma. as mãos que as arrumam entre chama e sono. . OS ANIMAIS CARNÍVOROS Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor. de repente voltava-se e acontecera um crime. a vítima caminhava com uma pêra na mão. e fazia de estátua durante um parque inteiro. os jornais diziam.A jóia sazonada contra a morte. e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender. inspirava a mais terrível acção do louvor.difundia uma colorida multiplicação de mãos. e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso. as noites desarrumadas. as bilhas uma a uma do tesouro. ele era belo muito. Um poema deixo.na metáfora necessária. e leve. adoeço. A MAGNÓLIA A exaltacão do mínimo. um mínimo ente magnífico desfolhando relâmpagos sobre mim. esqueço Quanto a vida é gesto e amor é foda. A magnólia. subirei sem medo À cena do mais árduo e do mais escasso. a cada um onde se ecoa e resvala. o som que se desenvolve nela quando pronunciada.Porque envelheço. é um exaltado aroma perdido na tempestade. Um diminuto berço me recolhe onde a palavra se elide na matéria . ao retardador: Meia palavra a bom entendedor. assassinar-me. AS CASAS I As casas vieram de noite De manhã são casas À noite estendem os braços para o alto . Diferente me concebo e só do avesso O formato mulher se me acomoda E se nave vier do fundo espaço Cedo raptar-me. cedo: Logo me leve. e o magnífico relâmpago do acontecimento mestre restituem a forma o meu esplendor. fumegam vão partir Fecham os olhos percorrem grandes distâncias como nuvens ou navios As casas fluem de noite sob a maré dos rios São altamente mais dóceis que as crianças Dentro do estuque se fecham pensativas Tentam falar bem claro no silêncio com sua voz de telhas inclinadas II Prometeu ser virgem toda a vida Desceu persianas sobre os olhos alimentou-se de aranhas humidades raios de sol oblíquos Quando lhe tocam quereria fugir se abriam uma porta escondia o sexo Ruiu num espasmo de verão molhada por um sol masculino V Louca como era a da esquina recebia gente a qualquer hora Caía em pedaços e vejam lá convidava as rameiras os ratos os ninhos de cegonha apitos de comboio bêbados pianos como todas as vozes de animais selvagens A CASA DO MUNDO . nos rins. as janelas entre faces gregas. atiro-lhes a porta. Muros romanos. . Um espelho verde de face oval é que parece uma lata de conservas dilatada com um tubarão a revirar-se no estômago no fígado. Arca delirante arca sobre o cheiro a mar de amar. É a casa do mundo: desaparece em seguida. Acendo os interruptores. Janelas que cheiram ao ar de fora à núpcia do ar com a casa ardente. acendo a interrupção. mais claramente lembro: uma porta. nos tecidos sanguíneos. Interrompo os objectos de família. Toda a música. Luzindo cheguei à porta. O corredor lembra uma corda suspensa entre os Pirinéus.Aquilo que às vezes parece um sinal no rosto é a casa do mundo é um armário poderoso com tecidos sanguíneos guardados e a sua tribo de portas sensíveis. as novas paisagens têm cabeça. a luz é uma pintura clara. Cheira a teias eróticas. Mar fresco. AS SOFRIDAS AMORAS As sofridas amoras dos valados os fogosos espinhos que coroam os cardos Saltam ao caminho a sangrar-me a veia do poema. um armário. aquela casa. a pique. redundâncias. objectos. reais. patológicos. frenesis. conhecemos — além de nós. lascados. aços. o dente liliputiano no sorriso do arcanjo. alarmados. RITUAL a jarra tombou a água correu sobre a mesa as flores calaram-se aos poucos o espantalho tocou o acordeão a criança cansou-se do vento desatou as sandálias o mar meditou duas vezes . os resíduos. alibis.RECANTO 18 Desses «em guerra» vos falo falo dos que me seguem não os chamámos seguiram-nos todos descremos e rimos por dinheiro não trocámos projectados para a morte não traímos Eu e ele somos a espaços improváveis veículos (eu e vós) mestres voadores numa convulsão de cigarros mestres reptantes redemoinho meu ressaca viva oculto vinho oculto amor o nosso vedado o mundo tão exíguo e o dos outros (luzes água planetas mecanismos ambíguos) mais exíguo Amamos o mundo (quem?) o tempo (qual?) a luz (quando?) a treva (onde?) tudo (?) todos (?!) trepidantes trémulos com a ajuda mental de partículas de merda ou simples estados. convulsivos. — os reis. risos. Os escravos são todos iguais também: De Ramsés II. solitárias. pelas censuras e as perseguições. As dores são iguais como aquelas casas modestas. dos imperadores Tai-Ping. e toma notas. Pedro II. de Assurbanípal.diz-lhe o discípulo. panfletos. . escreve artigos. do Rei David. ou da Silésia. debruça-se sobre todas as dores do mundo. do infante D. de tijolo.qual o horizonte do sotão a galinha presa viu um avião voar uns quantos vestiram-se de negrfo viveram da morte dos outros suicidou-se uma sombra debaixo do meu pé a mulher calçou-se de branco para a ressurreição Jorge de Sena UMA SEPULTURA EM LONDRES No frio e no nevoeiro de Londres numa daquelas casas que são todas iguais. dos civilizados barões do imperador D. que nenhuma lareira aquece no seu coração. lê interminavelmente. da Rússia. de África. arde luminoso até à morte. de Cleópatra. fumegando sombrias. desde que no mundo houve escravos. esmagado pelo amor e pelos números. arde. dos Sartoris de Memphis. . Mas o coração.Eu quero ver publicadas as suas obras completas . historiando infatigavelmente até à morte. Ou das «potteries». (E o coronel Lawrence da Arábia chegou mesmo a filosofar sobre a liberdade moral dos jovens escravos com quem dormia. Henrique.) No frio inenarrável das eras e das gerações de escravos. um lugar tão espesso. e possam ser alugados sem responsabilidade alguma. Naquela noite . Os imperadores. Mais tarde. libertam os escravos. Um lugar ardente. acrescenta com esperança e amargura . para que eles fiquem mais baratos. tão espesso. criou-se mesmo a previdência social. E houve mesmo um imperador que morreu afogado em neve derretida. um bastião de amor que nunca foi traído. porque todos os escravos. as notas e os manuscritos. também tinha um contrato de trabalho.ó Spartacus lá se concentram invisíveis mas compactos. mesmo sendo o vento que derrete a neve. desde sempre todos aqueles cuja poeira se perdeu .a neve inteira derreteu em Londres. porém.creiam . Como têm sido escritas e reescritas! Como Não têm sido lidas. porque não há como desistir de compreender o mundo.responde. E. Que mais precisamos de saber? António Ramos Rosa NÃO POSSO ADIAR O AMOR Não posso adiar o amor para outro século não posso ainda que o grito sufoque na garganta ainda que o ódio estale e crepite e arda sol montanhas cinzentas e montanhas cinzentas . com os seus jovens escravos. há. Os escravos sabem que só podem transformá-lo. que é impossível atravessá-lo. olhando as montanhas de papéis. em geral.Também eu . No frio e no nevoeiro de Londres. Mas importa pouco.. O coronel Lawrence (como anotámos acima).Mas é preciso escrevê-las primeiro -. não posso adiar para outro século minha vida nem o meu amor nem o meu grito de libertação Não posso adiar o coração POEMA DE UM FUNCIONÁRIO CANSADO A noite trocou-me os sonhos e as mãos dispersou-me os amigos tenho o coração confundido e a rua é estreita estreita em cada passo as casas engolem-nos sumimo-nos estou num quarto só num quarto só com os sonhos trocados com toda a vida às avessas a arder num quarto só Sou um funcionário apagado um funcionário triste a minha alma não acompanha a minha mão Débito e Crédito Débito e Crédito a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente e debitou-me na minha conta de empregado Sou um funcionário cansado dum dia exemplar Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço Soletro velhas palavras generosas Flor rapariga amigo menino irmão beijo namorada mãe estrela música São as palavras cruzadas do meu sonho . não posso adiar este abraço que é uma arma de dois gumes amor e ódio Não posso adiar ainda que a noite pese séculos sobre as costas e a aurora indecisa demore.Não. as torrentes... pois. Corre. os desertos.. E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.. não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos. ironias e cansaços) E cruzo os braços. Ide! Tendes estradas. E nunca vou por ali. sangue velho dos avós.. foi Só para desflorar florestas virgens. José Régio CÂNTICO NEGRO "Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços.... sereis vós Que me dareis impulsos. nas vossas veias. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não. Redemoinhar aos ventos. Amo os abismos. e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos. nos olhos meus. arrastar os pés sangrentos. . (Há.. Como. Se vim ao mundo. A ir por aí. A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos. E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem.palavras soterradas na prisão da minha vida isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só. Como farrapos. ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?.. tendes tetos... todos tiveram mãe. e tratados. Violências famintas de ternura.. mais ninguém! Todos tiveram pai.Tendes jardins. que ninguém me dê piedosas intenções. É um átomo a mais que se animou. Deus e o Diabo é que guiam. Eu ergo a voz assim. Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. tendes canteiros. Tendes pátria. Mas eu. Não sei para onde vou Sei que não vou por aí! Miguel Torga ORFEU REBELDE Orfeu rebelde. sejam rouxinóis. como um facho. Gravasse a fúria de cada momento. Ah. Canto. e cânticos nos lábios. a canivete. Não sei por onde vou. E sinto espuma. Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a. num desafio: Que o céu e a terra. canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo. Saibam que há gritos como há nortadas. a ver se o meu canto compromete A eternidade no meu sofrimento. felizes. Outros. e filósofos. que nunca principio nem acabo.... e sábios.. a arder na noite escura. e sangue. É uma onda que se alevantou. pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura.. E tendes regras. . Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou. Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa. Canto. sem perguntar à Musa Se o canto é de terror ou de beleza. Canto como quem usa Os versos em legitima defesa. Daniel Filipe A INVENÇÃO DO AMOR Em todas as esquinas da cidade nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga um cartaz denuncia o nosso amor Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel numa tarde de chuva entre zunidos de conversa e inventaram o amor com caracter de urgência deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura e souberam entender-se sem palavras inúteis Apenas o silêncio A descoberta A estranheza de um sorriso natural e inesperado Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta de um amor subitamente imperativo Um homem e uma mulher um cartaz denuncia colado em todas as esquinas da cidade A rádio já falou A TV anuncia iminente a captura A policia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos e nas avenidas Onde houver uma flor rubra e essencial . é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo É preciso encontrá-los antes que seja tarde Antes que o exemplo frutifique Antes que a invenção do amor se processe em cadeia Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos Chamem as tropas aquarteladas na província Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências O perigo justifica-o Um homem e uma mulher conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los antes que seja tarde e a memória da infância nos jardins escondidos acorde a tolerância no coração das pessoas Fechem as escolas Sobretudo protejam as crianças da contaminação uma agência comunica que algures ao sul do rio um menino pediu uma rosa vermelha e chorou nervosamente porque lha recusaram Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão Aplicado no entanto Respeitador da disciplina Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação Mas é possível que haja outros É absolutamente vital que o diagnóstico se faça no período primário da doença E também que se evite o contágio com o homem e a mulher de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade Está em jogo o destino da civilização que construímos o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos a verdade incontroversa das declarações políticas . É possível que cantem mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz ... lhe lembravam a infância Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa das montanhas Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior Mas caminhou cantando para o muro da execução foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele um misterioso halo de uma felicidade incorrupta . Procurem a mulher o homem que num bar de hotel se encontraram numa tarde de chuva Se tanto for preciso estabeleçam barricadas senhas salvo-condutos horas de recolher censura prévia à Imprensa tribunais de excepção Para bem da cidade do país da cultura é preciso encontrar o casal fugitivo que inventou o amor com carácter de urgência Os jornais da manhã publicam a notícia de que os viram passar de mãos dadas sorrindo numa rua serena debruada de acácias Um velho sem família a testemunha diz ter sentido de súbito uma estranha paz interior uma voz desprendendo um cheiro a primavera o doce bafo quente da adolescência longínqua ...