Viviane MoséPoemas do livro Pensamento do Chão, poemas em prosa e verso. Reproduzidos sob autorização da autora. quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele soprando sulcos na pele soprando sulcos? o tempo andou riscando meu rosto com uma navalha fina sem raiva nem rancor o tempo riscou meu rosto com calma (eu parei de lutar contra o tempo ando exercendo instantes acho que ganhei presença) acho que a vida anda passando a mão em mim. a vida anda passando a mão em mim. acho que a vida anda passando. a vida anda passando. acho que a vida anda. a vida anda em mim. acho que há vida em mim. a vida em mim anda passando. acho que a vida anda passando a mão em mim e por falar em sexo quem anda me comendo é o tempo na verdade faz tempo mas eu escondia porque ele me pegava à força e por trás um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo se você tem que me comer que seja com o meu consentimento e me olhando nos olhos acho que ganhei o tempo de lá pra cá ele tem sido bom comigo dizem que ando até remoçando muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos abscessos tumores nódulos pedras são palavras calcificadas . poemas sem vazão mesmo cravos pretos espinhas cabelo encravado prisão de ventre poderia um dia ter sido poema pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa palavra boa é palavra líquida escorrendo em estado de lágrima lágrima é dor derretida dor endurecida é tumor lágrima é alegria derretida . alegria endurecida é tumor lágrima é raiva derretida raiva endurecida é tumor lágrima é pessoa derretida pessoa endurecida é tumor tempo endurecido é tumor tempo derretido é poema palavra suor é melhor do que palavra cravo que é melhor do que palavra catarro que é melhor do que palavra bílis que é melhor do que palavra ferida . óleos medicinais com as pontas dos dedos.que é melhor do que palavra nódulo que nem chega perto da palavra tumores internos palavra lágrima é melhor palavra é melhor é melhor poema receita para arrancar poemas presos: você pode arrancar poemas com pinças buchas vegetais. com uma agulha . com as unhas com banhos de imersão com o pente. das vértebras dos punhos.com pomada basilicão alicate de cutículas massagens e hidratação mas não use bisturi nunca em caso de poemas difíceis use a dança. das axilas. uma forma de soltá-los das dobras dos dedos dos pés. os poema virilha . do quadril são os poema cóccix. a dança é uma forma de amolecer os poemas endurecidos do corpo. os poema olho. os poema cílio ultimamente ando gostando de pensamento chão pensamento chão é poema que nasce do pé é poema de pé no chão poema de pé no chão é poema de gente normal gente simples gente de espírito santo . os poema peito os poema sexo. uma agonia vidro.eu venho do espírito santo eu sou do espírito santo traga a vitória do espírito santo santo é um espírito capaz de operar milagres sobre si mesmo para uma nova gramática: imagine um sentimento água. um amor manga. uma forma líquida de pensar. uma vida paredes. uma emoção céu. um sentimento árvore. . uma espera pedra. um jeito casa de ser. um colorido vento sul. tenho andado muito temporal. uma alegria pássaro em chuva fina. uma solidão cordilheira. . uma perda corpo. mas de uns tempos pra cá tenho tido. sempre querendo. desejei com toda força ser a moça do supermercado. a vida às vezes transborda pelos poros. Mesmo das brigas ando tendo inveja. me atinge um estado livro. tem pessoas ponte. Ontem. Meu vizinho gritando com a mulher. As mãos dadas dos amantes tem me tirado o sono. aurora em meus joelhos. querendo. algumas carregam a gravidade nas costas. acho que hoje acordei semente.uma existência mar. já conheci gente Prosa Patética Nunca fui de ter inveja. na casa cheia de crianças. Aquela que fala do namorado com tanta ternura. minha irmã vive um momento tudo. E me faz vento. planície. Medo de que ao sair levasse a imensidão onde me deito.Me disseram que solidão é sina e é pra sempre. expulsar de mim essa Nossa senhora ciumenta. Ausência de espelhos que dissolve a falta. Confesso que gosto do espaço que é ser sozinho. região. abotoadura e silêncio. . A voz. onde tudo é grave e único. a preguiça. E me mantive quieta e muda. planura. o viço. Mas tive medo. Madona sedenta de versos. Essa extensão. pedra. desembocadura. largura. a soma das horas acorda sempre a lembrança do hálito quente do outro. a fraqueza. Tive medo de perder o estado de verso e vácuo. quis gritar com a solidão. Hoje andei como louca. No entanto. páramo. cantado. mãe. fui mal forjada. desabrocham em camadas de sentido. A mulher que engravida porque gosta de criança. Um côncavo silêncio. não tenho bons modos nem berço. Quem simplesmente ama e é amado. . quem não é poeta nem pensa essas coisas. E lê jornal domingo. E eu. Que escrevo num tempo onde tudo já foi falado. Clarice diz. que sua função é cuidar do mundo. e ressoam como gongos ou sinos de igreja em meus ouvidos. que não sou Clarice nem nada. Come pudim de leite e doce de abóbora. Pra mim tudo encerra a gravidade prolixa das palavras: madrugada. escrito. Escorro entre palavras.E mais do que nunca tive inveja. Um fluxo de líquidos. Invejei quem tem vida reta. ônibus. olhos. como quem navega um barco sem remo. Existem outras. Por exemplo a palavra vida. nesse fim de século sem certeza? Eu quero que a solidão me esqueça. Algumas palavras quando alvejadas ao sol adquirem consistência de certeza. quarar ao sol do meio dia. o que recomenda esfregar . e a palavra amor é uma delas. Receita pra lavar palavra suja Mergulhar a palavra suja em água sanitária.O que o silêncio pode me dizer que já não tenha sido dito? Eu. que são muito encardidas pelo uso. cuja única função é lavar palavra suja. Depois de dois dias de molho. pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar. mas existem aquelas. Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão. O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho em um amaciante de boa qualidade. Agora. Perda e morte na medida em que são alvejadas soltam um líquido corrosivo. que é capaz de esvaziar o vigor da língua. Agora nunca vi palavra tão suja como perda. mas nada. se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário. que atende pelo nome de amargura. O perigo neste caso é misturar palavras que mancham .e bater insistentemente na pedra. São poucas as que resistem a esses cuidados. depois enxaguar em água corrente. Dizem que limão e sal tira sujeira difícil. sendo uma palavra intensa. produz uma oleosidade que dá vigor aos sons. Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo. quando não é excessiva. Culpa. quase agressiva. já que desejo. o que não é inevitável. Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras sob o risco de perderem o sentido. esgarçar a força delicada da palavra amizade. Já a palavra força cai bem em qualquer mistura. pode. a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha. Muito importante na arte de lavar palavras é saber reconhecer uma palavra limpa. Conviva com a palavra durante alguns dias. A sujeirinha cotidiana. .no contato umas com as outras. por exemplo. plantada em sua carne. Uma palavra limpa é uma palavra possível. Ana Ela era linda. não a seu lado mas sobre seu corpo. Reinava como um rapaz . Ela era linda e mesmo pequena ocupava todos os espaços. então você tem uma palavra limpa. Macia e profunda. Tinha os olhos saltados e a boca rasgada como uma fenda. Se puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela. À noite. permita que se deite. a palavra. que passeie pela expressão dos seus sentidos. Enquanto você dorme.Deixe que se misture em seus gestos. prolifera em toda sua possibilidade. Seus cabelos negros reluziam em sua pele branca. Acho que não anda mais. Ela era grande. No quarto ao lado uma senhora que nunca senta à mesa permanece em uma cadeira de balanço. De vez em quando alguém se senta perto dela. Estudam horas. Doce como o mel dos gozos era frágil como os poetas. É maio outra vez. Grande como são as estrelas. Tem também um garoto de uns treze que vejo muito pouco. Umas lhe rendiam homenagens enquanto outras faziam vodu e pregavam alfinetes em seu peito miúdo. Os filhos duas meninas moças que parecem bonitas.afeminado. IRENE . Mesmo porque não importa o assunto. Prosinha É maio no Leblon uma família almoça sossegadamente. Tudo isso porque é maio e uma vontade enorme de escrever me empurra e eu não tenho assunto. Espalham cadernos e canetas e livros e lápis de cor. Depois arrumam tudo e preparam a mesa para o lanche. No centro da mesa pratos arrumados. Mas erguia as mãos quando fumava e os dedos caídos pediam aos deuses um espaço no Olimpo. São bem novas entre quinze e dezessete mais ou menos. Um pássaro molhado. copos. Profundamente triste apesar da alegria rubra que escorria pelo eterno sorriso felino. Ela vê televisão. E assustava as mulheres. Fecho os olhos e imagino o cheiro de carne assada ou quem sabe almôndegas de frango ou bife acebolado. O pai fuma na janela. Um tigre. As mãos se servem e parece que conversam. Seus gestos diziam tanto que mesmo sem o maior encanto embriagava os homens. Uma bem magrinha e a outra quase passa da medida em gordura. O pai de onde vejo é um tanto calvo e grisalho. talheres. Ela era linda e tão linda que um dia caiu de bruços e um brutamontes lhe comeu o cu. Um grande tigre ou dragão. E triste. A mãe se senta sempre onde não consigo ver de minha janela. E até podia ser feia e era. À tardinha as meninas fazem os deveres de casa. ao redor das crianças menores e limpas. O homem de terno escuro olha como eu gostaria de ter olhado. Marília de vestido amarelo amaria na relva o rapaz. Marília talvez fosse o nome dela. Nos sabíamos em silêncio a bordar. Nossos planos miúdos e as roscas com café entre uma pausa e outra. Alguma farpa no pé doendo. Eles se amariam. Nos sabíamos irmãs. olhando a menina moça que vende doce de leite em forminhas de empada. marcando tudo a ferro. bordamos uma eternidade. ou o amor dos dois na relva. E um nó na garganta. Se bem que o ano passou há pouco. Estado de menstruação em atraso e amor contido. e o silêncio. O rio corre ao largo sempre ralo e barrento. que nem percebe o rapaz que deu os peixes e mora na pensão. tão limpas como o paninho bordado que forra a bandeja de doces. Desvio dessas tardes. pensei: palavras como filhos. os peitos inchando e enchendo sem que haja filho. Tudo que escrevo desfio dessas tardes. mesmo com o fosso do tempo entre nós. . E o rapaz dos peixes eu o faria filho mais velho de uma mulher miúda e forte. E a ternura dos olhos da mãe fincando morada nos olhos dele. há dias espremendo cravos no rosto. Não escrevo desde o ano passado. enfiar no buraco da agulha. Quando ela morresse ele choraria enrolado no chão como uma cobra. O homem de terno escuro me pergunta e agora? ele quer saber pra onde eu vou levar essa gente e eu digo que essa gente me leva. na varanda que via o santuário. O estado de represa não é exatamente um estado de repouso mas de cheia e pressão. Caladas. A doçura do rapaz dos peixes me leva. A água molhando as rosas do jardim. a estação e a menina. O paninho bordado da bandeja de doces me leva. às tardes silenciosas quando bordávamos. amém. de terno escuro de linho e óculos. minha avó e eu. Como eu queria escrever a história de um homem sentado na janela de um trem de minas. Me lembro do vento fresco e das agulhas furando o pano. Caso pudesse suportar. não escrevo desde o ano passado. a terra vermelha. Caso não fosse eu essa represa de poros por onde tudo vaza aos pouquinhos. e escrever. Foi quando aprendi a pegar o silêncio com as mãos. somente pra que eu pudesse compor o amarelo em marília. aquela mulher e seu filho mais velho.Depois de rodopiar casa adentro sem paz nem descanso. Ele olha pra ela e depois o foguista ganha uns peixes do rapaz que um dia vai enamorar dela e casar. Escrevo a saudade dessas tardes. Escorreria entre as mãos da mãe de Marília em casa. Estorvo e não escrevo.