Per Musi - Revista Acadêmica de Música

March 30, 2018 | Author: Álefe Junior Sutil da Trindade | Category: Chord (Music), Harmony, Pop Culture, Guitars, String Instruments


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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICAvolume 22 julho/dezembro - 2010 ISSN: 1517-7599 Editorial Este volume 22 de Per Musi - Revista Acadêmica de Música, juntamente com o volume 23, são volumes temáticos dedicados ao estudo da música popular, uma das sub-áreas que mais tem crescido no meio acadêmico brasileiro, finalmente refletindo uma das mais fortes vocações musicais deste país. O grande número de textos selecionados – 38, incluindo três partituras inéditas - permitiu alguns agrupamentos temáticos (como o hibridismo na música popular brasileira), manifestações tradicionais (como o lundu, choro, samba, canções, bossa-nova, baião, repente, ragtime, jazz moderno e musicais) ou mais recentes (como o axé, o mangue beat, música infantil e a nova música instrumental brasileira) e personalidades referenciais (como Ernesto Nazareth, Pixinguinha, K-Ximbinho, Gnattali, Guerra-Peixe, Tom Jobim, Hermeto Pascoal, Baden Powell, Egberto Gismonti, Victor Assis Brasil e o grupo UAKTI). O renomado etnomusicólogo inglês Philip Tagg aceitou o convite de contribuir com dois artigos. Neste volume, nos traz um inusitado e fascinante estudo em torno da canção Yes we can, que embalou a campanha presidencial norte-americana de Barack Obama. A partir de seu original sistema de análise da música popular, ele compara materiais harmônicos, melódicos, rítmicos, de instrumentação e da relação texto-música em canções de ícones como Bob Dylan, Beatles, Bob Marley e Dixie Chicks, entre outros, para estabelecer ligações entre estilo, política e poder. A partir da história de vida de Hermeto Pascoal, Fausto Borém e Fabiano Araújo explicam o desenvolvimento das linguagens harmônicas na música eclética do genial “bruxo” da música brasileira instrumental. Luiz Costa-Lima Neto analisa uma faceta pouco conhecida do multi-instrumentista, compositor e arranjador Hermeto Pascoal, qual seja a multiplicidade de recursos vocais e vocal-instrumentais que utiliza para dar vida à inquietude e originalidade de suas ideias musicais. Fausto borém e Maurício Freire Garcia revelam o entrelaçamento dos aspetos musicais e religiosos na obra-prima Cannon para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados de Hermeto Pascoal na interpretação do próprio compositor, a partir da análise melódico-harmônica da partitura restaurada, das práticas de performance e relações texto-música percebidas na gravação, e das experiências místico-religiosas na vida do compositor-intérprete. A partitura de performance de Cannon para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados de Hermeto Pascoal, transcrita e editada por Fausto Borém a partir de sua gravação e desenho artístico de Ruy Pereira no disco Slaves Mass (1977) é aqui apresentada integralmente pela primeira vez. A partir dos textos de Vinícius de Moraes e José da Veiga Oliveira, ambos ligados ao emblemático LP Canção do Amor Demais, Liliana Harb Bollos discute as fronteiras entre o popular e o erudito na Bossa Nova. Silvio Augusto Merhy discute o embate entre letra, melodia e arranjo na canção O morro não tem vez de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes e seus desdobramentos frente à divisão geográfica e social do Rio de Janeiro: favelas e Zona Sul, escolas de samba e Bossa Nova. Carlos de Lemos Almada nos traz uma inovadora abordagem analítica ao adaptar procedimentos schenkerianos para compreender a música popular, revelando estruturas harmônicas, melódicas e intervalares que dão unidade a Chovendo na roseira, obra-prima de Tom Jobim. Vera Lúcia Rocha Pedron Peres aborda a multiplicidade e o pós-modernismo na obra Rimsky (quinteto para cordas e piano) do compositor Gilberto Mendes, revelando sua intertextualidade e justaposição de estilos em que convivem referências muito díspares da música erudita (atonalismo, serialismo, cadenza) e música popular (música de cinema, rock, fox trot, ritmos nordestinos, bossa nova, tango), além de citações que homenageiam o inspirador, Rimsky-Korsakov. Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas aborda um dos aspectos mais marcantes do ritmo na música popular, a síncopa, desde o seu valor nos antigos tratados eruditos, suas relações com alturas, harmonia e ornamentação até sua presença nos “modernos” da música popular, ilustrando com trechos de Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Tom Jobim, Hermeto Pascoal, Edu Lobo e Gilberto Gil. Para refletir sobre a relação entre música, teatro, rádio e infância, Eugênio Tadeu Pereira, Cristiane da Silveira Lima, Gabriel Murilo Resende e Reginaldo Santos falam de sua experiência com o programa experimental “Serelepe – uma pitada de música infantil” da Rádio UFMG Educativa. Maura Penna discute o processo de autonomia dos jovens em relação aos seus pais, sob o prisma da sociologia e da psicologia, tendo como pretexto canções populares brasileiras das duplas Roberto de Carvalho e Rita Lee, Marina Lima e Antônio Cícero e Fábio Jr. Jorge Luiz Schroeder apresenta seu conceito de corporalidade musical a partir da performance de dois dos mais reconhecidos violonistas da música instrumental brasileira: Baden Powell e Egberto Gismonti. Sob o ponto de vista dos estudos culturais, Álvaro Neder discute conceitos e ferramentas de análise aplicáveis à música popular (e à música popular brasileira, em particular), visando afirmar a música popular como área autônoma, com demandas teóricas e metodológicas próprias e irredutíveis àquelas originadas nos campos erudito e tradicional. A partir de pesquisa de campo realizada em Sergipe e Pernambuco, Yukio Agerkop discute o fenômeno do mangue beat na expressão musical regional e híbrida de quatro grupos: Sulanca, Naurêa, Maria Scombona e Chico Science e Nação Zumbi. Tocando em um tema normalmente evitado na academia, Armando Alexandre Castro propõe uma visão alternativa do gênero Axé music, tendo como subsídio a tabulação de dados coletados em Salvador, epicentro de um dos gêneros mais populares e rentáveis da música popular brasileira. Cruzando as visões dos estudos literários, das artes cênicas e dos estudos em performance, Conrado Vito Rodrigues Falbo discorre sobre perspectivas teóricas para a análise da palavra cantada no âmbito da música popular. Fausto Borém entrevista Fernando Bustamante, Ana Taglianetti e Daniel Souza sobre o Projeto Teatro Musical, gênero em franco crescimento no Brasil que integra as áreas artísticas do teatro, da dança e da música com tradições populares e eruditas. Lembramos que todos os conteúdos e capas de Per Musi, desde janeiro de 2000 até o presente volume estão disponíveis para download ou impressão gratuitamente no site de Per Musi Online, no endereço www.musica.ufmg.br/ permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected]. Fausto Borém Fundador e Editor Científico de Per Musi PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião do Editor ou dos Corpos Editoriais. PER MUSI está indexada nas bases do Scielo, RILM Abstracts of Music Literature, The Music Index, EBSCO e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música). Fundador e Editor Científico Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte) Corpo Editorial Internacional Aaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra) Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA) Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra) Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA) Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Portugal) Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Canadá) João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Portugal) Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA) Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA) Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Inglaterra) Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica) Melanie Plesch (University of Melbourne, Melbourne, Austrália) Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra) Silvina Luz Mansilla (Univ. Católica, Univ. de Buenos Aires, Argentina) Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha) Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA) Corpo Editorial no Brasil Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis) Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas) André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte) André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro) Ângelo Dias (UFG, Goiânia) Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte) Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília) Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas) Cristina Capparelli Gerling (UFGRS, Porto Alegre) Diana Santiago (UFBA, Salvador) Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas) Fabiano Araújo (UFES, Vitória) Fernando Iazetta (USP, São Paulo) Flávio Apro (UNESP, São Paulo) Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte) José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas) José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa) Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba) Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte) Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro) Luciana Del Ben (UFRGS, Porto Alegre) Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande) Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte) Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte) Norton Dudeque (UFPR, Curitiba) Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador) Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte) Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas) Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba) Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro) Sônia Ray (UFG, Goiânia) Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro) Vladimir Silva (UFPI, Teresina) Universidade Federal de Minas Gerais Reitor Clélio Campolina Diniz Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton Pró-Reitor de Pós-Graduação Ricardo Santiago Gomez Pró-Reitora Adj. de Pós-Graduação Andréa Gazzinelli Correa de Oliveira Pró-Reitor de Pesquisa Renato Lima dos Santos Escola de Música da UFMG Diretora Maria Inêz Lucas Machado Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG Coord. Sérgio Freire Sub-Coord. Flávio Barbeitas Sec. Geralda Martins Moreira Sec. Alan Antunes Gomes Planejamento e Produção Isabela Scarioli - Cedecom/UFMG Camila Rodrigues (estagiária) – Cedecom/UFMG Projeto Gráfico Capa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMG Diagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG Tiragem 100 exemplares Acesso gratuito na internet www.musica.ufmg.br/permusi Endereço para correspondência UFMG - Escola de Música - Revista Per Musi Av. Antônio Carlos 6627 - Campus Pampulha Belo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090 Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747 Fax: (31) 3409-4720 e-mail: [email protected] [email protected] ABM O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 22, julho/dezembro, 2010 Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2010 – Revisão Geral Fausto Borém Maria Inêz Lucas Machado Assistente Editorial Sandra Pugliese n.: il.; 29,7x21,5 cm. Semestral ISSN: 1517-7599 1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG .... 107 Postmodern characteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes Vera Lúcia Rocha Pedron Peres ................................................................................ 7 The Yes we can chords Philip Tagg (Tradução de Fausto Borém) Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica ........... 44 The singer Hermeto Pascoal: instruments of voice Luiz Costa-Lima Neto Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos em uma obra-prima para flauta ....... e Ed...... 63 Cannon by Hermeto Pascoal: musical and religious aspects in a flute masterpiece Fausto Borém Maurício Freire Garcia Cannon (dedicada a Cannonball Aderley)............. 99 Chovendo na roseira by Tom Jobim: a Schenkerian approach Carlos de Lemos Almada As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes.......................................................................................... humming na flauta e sons pré-gravados ....................... 90 Lyrics. for flute........... melody.. a milestone of contemporary Brazilian popular music Liliana Harb Bollos Letra............Sumário artigos científicos Os acordes de Yes we can do vídeo da campanha presidencial de Barak Obama .... arrangement: elements in tension in Favela by Antonio Carlos Jobim and Vinícius de Moraes Silvio Augusto Merhy Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana ........................... 83 Canção do Amor Demais [Song of Too Much Love]: more than the presentation of Bossa Nova................................................................................ melodia..... para flauta........................................ arranjo: componentes em tensão em O morro não tem vez de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes ....................... flute humming and pre-recorded sounds Hermeto Pascoal (Transc.......... 22 Hermeto Pascoal: life experience and the formation of his harmonic language Fausto Borém Fabiano Araújo O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz . 80 Cannon (dedicated to Cannonball Aderley)....... de Fausto Borém) Canção do Amor Demais: um marco da música popular brasileira contemporânea ...... ................................................................... 181 The cultural study of Brazilian popular music Álvaro Neder Circular cidade: poesia e groove na expressão musical de quatro grupos da região do mangue nordestino ............... dad”: dialogs between fathers and sons in Brazilian popular music Maura Penna Corporalidade musical na música popular: uma visão da performance violonística de Baden Powell e Egberto Gismonti ............................................................................................................................... 218 The word in motion: some theoretical perspectives for the analysis of the song within the framework of popular music Conrado Vito Rodrigues Falbo ENTREVISTA Entrevista com Fernando Bustamante................................ 150 Music and childhood on radio: the Serelepe program at UFMG-Educativa station Eugênio Tadeu Pereira Cristiane da Silveira Lima Gabriel Murilo Resende Reginaldo Santos “Escute............ 127 Memory and the value of syncopation: on the difference between what the old and the modern teach Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas Música e infância no rádio: o programa Serelepe na Rádio UFMG-Educativa ................................ verdades e world music ......................................................... 167 Musical corporality in popular music: a view of Baden Powell e Egberto Gismonti´s performances on the guitar Jorge Luiz Schroeder O estudo cultural da música popular brasileira .................. truths and world music Armando Alexandre Castro A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas para a análise de canções no âmbito da música popular ........... Ana Taglianetti e Daniel Souza about the Teatro Musical Project Fausto Borém 6 ......................................... Ana Taglianetti e Daniel Souza sobre o Projeto Teatro Musical .......A memória e o valor da síncope: da diferença do que ensinam os antigos e os modernos............... 157 “Listen to me................... 203 Axé Music: myths....................... 196 Circular cidade: poetics and groove in the musical expression of four groups from the mangue (mangrove) of northeastern Brazil Yukio Agerkop Axé music: mitos................. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras ...................................................... 232 Interview with Fernando Bustamante........................................................................................................ Departing from IOCM and PMFC identification of the musematic analysis (TAGG. numa similaridade intertextual que também foi observada por diversos de meus alunos em Montreal. Palavras-chave: Barack Obama. . What becomes of the brokenhearted (1966) de Jimmy RUFFIN e Southern man PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. o progredir harmonicamente “para um lugar inesperado” e o aspecto do “conforto e segurança” relativos da sequência de seu turnaround plagal (2) Allan  Moore sugeriu similaridades com progressões de outras gravações. 2008). A partir da identificação de IOCMs (Materiais Interobjetivos de Comparação) e PMFCs (Campos Paramusicais Conotativos) da análise musemática (TAGG. Vernallis estava se referindo ao vídeo de mesmo nome da campanha presidencial de Barak Obama (ADAMS. Yes We Can is compared to harmony. KING. 2009).. Os acordes de Yes we can. . 2008) lançado durante a campanha presidencial de Barack Obama nos Estados Unidos. instrumentation and lyrics found in iconic popular songs of the Afro-Bristish-American tradition.br Resumo: Estudo sobre o loop de quatro acordes ║: Sol Maior – Si Maior – Mi Menor – Dó Maior :║ na canção Yes we can [Sim. Os acordes de Yes we can do vídeo da campanha presidencial de Barak Obama Philip Tagg (Faculté de Musique. harmonia da música popular. Ela lançou a pergunta: “Alguém já se perguntou sobre a progressão harmônica de Yes we can (Sim. música e sociedade.” (“Quando a noite. (6) Finalmente. (4) Matthew Bannister apontou similaridades com No woman no cry (1974) de Bob MARLEY e os Wailers e possíveis conotações antêmicas (do inglês anthemic. intertexto. Université de Montreal. música e política. musematic analysis. 2 (3) Barbara Bradby se referiu à Sitting on the dock of the bay [daqui para frente chamada apenas de Dock of the bay] (1968) de Otis RED­DING. popular music harmony. Keywords: Barack Obama.Aprovado em: 15/03/2010 7 .. 2008) released during the 2008 US presidential campaign of Barack Obama. ou seja.22. Canadá) philtagg@sympatico. music and politics. 1 As respostas dos membros da IASPM podem ser sumariadas nos seis pontos descritos a seguir: (1) Mike Daley  e  Allan Moore refletiram sobre o potencial do acorde de Si Maior. rhythm. MG) [email protected].”) na canção Stand by me (1961) de Ben E. . nós podemos] do vídeo de Will. 2010..net) em Janeiro de 2009. com uma melodia fácil de cantar por muita gente e com o caráter digno ou solene dos hinos [anthems]) em Another girl another planet (1978) da banda de rock norte-americana THE ONLY ONES. . nós podemos). music and society. 2010 (1970) de Neil YOUNG.22.dez. ..i.7-21. The Yes we can chords Abstract: Study of the four-chord loop ║: G – B – Em – C :║ in the song Yes We Can from the video by Will.ca Tradução de Fausto Borém (UFMG. de instrumentação e de letras de canções populares da tradição afro-britânico-americana.am (ADAMS. análise musemática. sobre as canções populares que ela pode ecoar?”.am (ADAMS. intertext. 1 – Introdução Este artigo surgiu como uma simples resposta a uma simples questão enviada por Carol Vernallis à lista online da IASPM (International Association for the Study of Popular Music. compara-se Yes we can com materiais harmônicos. melódicos. como Jungle (1973) da banda ELECTRIC LIGHT ORCHESTRA (ELO). 3 Recebido em: 21/06/2009 . David Uskovich fez referência à canção Don’t stop be­lieving (1981) da banda de rock norte-americana Journey. (5) Danilo Orozco sugeriu similaridades com matrizes harmônicas de origem espanhola na América Latina. p. 239 p. also taking into consideration the attitudes of relevant composers and performers engaged in social and political issues. ou mesmo. veja www. melody.TAGG. rítmicos. Montreal. sobre seu conteúdo musical. Belo Horizonte.iaspm. n. P. levando-se também em consideração as atitudes de relevantes compositores e intérpretes populares social e politicamente engajados. Ela também observou uma similaridade melódica entre a frase cantada em 0:31 [aos 31 segundos da gravação] de Yes we can no vídeo de Obama e a frase incial “When the night. jul. Per Musi. 2009). Belo Horizonte. html#IOCM). p. como mostra o Ex. ouve-se esta sequência harmônica se repetir nos primeiros 2:28 do tempo de duração total de 4:26 da canção. que podem ser uma semínima ou duas colcheias com uma batida que vai do grave para o agudo. cuja nota Dó aguda (primeira casa na corda Si) é substituída por uma nota Ré (terceira casa na corda Si) para criar um efeito de Cadd9 (acorde de Dó Maior com nona maior acrescentada) com pedal. seguida das notas restantes do acorde. todas elas mostram alguma característica estrutural comum. Com exceção do acorde de Dó Maior (IV grau).1 – Os quatro acordes do turnaround de Yes we can (ADAMS. 4 Primeiro. nem sempre é audível. Não consigo pensar em nenhuma música. Referências intertextuais apresentadas por alguns dos meus alunos e por mim mesmo. 2008. no qual a análise musemática está na ordem do dia e no qual todas as referências são relevantes.22. todos os acordes são tocados na primeira posição. sobre as estruturas convencionais da progressão harmônica com a qual estamos lidando. realizado com uma pestana a partir da segunda casa na corda Lá.2. com a batida mostrada no Ex.. nenhum acorde contém notas estranhas às tríades comuns (terças) em questão. com o andamento q =100. Por exemplo. assim como aquelas dos colegas na discussão online da IASPM. A fundamental de cada acorde geralmente aparece com a duração de duas colcheias. P. A não ser pelo acorde de Si Maior (III grau) no segundo compasso. embora umas mais do que outras. tocada em um violão acústico com seis cordas de aço (e não de nylon). Crédito das fotos: Dindão) Ex. tangendo as três ou quatro cordas superiores do violão. n. fotos em substituição às fotos originais publicadas no YouTube. 2 – Os quatro acordes Antes de iniciar a análise musemática de Yes we can. gostaria de esclarecer. em termos relativos. Os acordes de Yes we can. a segunda ligeiramente abafada. ║:I – III – vi – IV :║. Assim como meus colegas da IASPM. a nota mais aguda do acorde mostrado acima. além de Yes we can. precisamos olhar as referências intertextuais com um foco mais preciso. Mas. veja glossário de termos da análise musemática ao final desse artigo e mais detalhes em www.1. como normalmente aconteceria em um seminário respeitável sobre música popular.. escutei o loop de quatro acordes que ocupa quatro compassos quaternários ║: G – B – Em – C :║ ou. dentro do possível. do inglês Interobjective Comparison Material. Ex. como veremos. alguns dados comparativos podem se mostrar mais relevantes do que outros.org/articles/ptgloss.7-21.2 – A batida do violão em Yes we can 8 . Per Musi. Esta lista de associações intertextuais contribui para um razoável conjunto de IOCMs (Materiais de Comparação Interobjetiva. 2010. 5 Todos os quatro acordes na sequência de Yes we can são ritmicamente articulados de maneira semelhante (ou idêntica) àquela mostrada na batida do acorde de Sol Maior do Ex. um Sol.TAGG.2. que corresponda exatamente a todas essas características descritas acima. Belo Horizonte. Em outras palavras.tagg. tendo a função dominante no tom de Mi Menor. (3) geralmente são duas vezes mais longos. Embora possamos especular a partir de possíveis bases comuns divergentes da imagem sônica triádica da harmonia “clássica”. ligada à europeidade urbana do século XIX. alterado ascendentemente para incluir a sétima Ré #. ambas. quatro harmonias Investigar o significado de uma sequência de acordes é o mesmo que tentar encontrar exemplos intertextuais de todas as harmonias presentes. que tem o Ré natural). tiple ou charango é ainda muito mais comum. que encerra algum potencial de finalização real. entre os acordes finalis e initialis seguintes. porque a matriz termina com uma inequívoca cadência perfeita V-i (acordes de Si Maior – Mi Menor). p. Belo Horizonte.22. for considerado como tônica principal. óperas de Wag- Ex. Esta obviedade deve ser reafirmada porque é fácil subestimar um dos mais importantes aspectos tonais do loop de acordes: a harmonia do último acorde do turnaround e sua volta para o primeiro. nem plagal nem de dominante. isto é representado pelo movimento da cadência plagal dos acordes de Dó Maior para Sol Maior (IV→I). a exemplo da matriz de quatro acordes C – G – B – Em. especialmente o acorde do V grau (Si Maior. na maioria das vezes. tentarei restringir as comparações. Por isso. como ocorre na progressão de La Folia (mostrada acima). Considerando outros parâmetros da expressão musical associados com os acordes de Yes we can. escutarmos essa matriz no tom de Sol Maior (o tom do acorde initialis). 6 Os acordes de Guardame las vacas mencionados por Orozco são semelhantes àqueles da canção La folia 7 cuja ubiquidade em toda a Europa na alta renascença é comparável àquela do blues de doze compassos nos Estados Unidos do século XX. qualquer instrumento harmônico de cordas é mais rápido do que quando dedilhado. mas sim 3/4 ou 6/8.8 Resumindo esta breve incursão pelas matrizes da alta renascença e andina. n. o acorde de Mi Menor é sempre precedido ou seguido apenas por tríades maiores de Ré (bVII) ou Si (V). ao invés das tríades específicas Si Menor e Ré Maior do tom.3. Per Musi. (4) os andamentos dos IOCMs andino e da alta renascença.TAGG. Além disso.. rock folk e o rock baseado no blues quanto é raro no universo das sonatas de Corelli.bIII – V . vale a pena lembrar que. o timbre de um violão com cordas de tripa ou nylon é mais comum (o som do violão “espanhol”). (2) se iniciam na tríade da relativa maior ou da subdominante relati- va maior. (6) quando tocado com batidas do tipo rasgueado. Os acordes de Yes we can. em itálico. country modal. seria relevante também observar que. a qual pode ser encontrada na versão de Quiaquenita (incluída em La flûte indienne. 9 .Quatro acordes. e não o movimento V→vi (acordes de Ré Maior para Mi Menor) no meio do loop. por outro lado. por exemplo.7-21. Se.. e o timbre mais agudo e metálico de uma bandola. P. será que a linha de baixo. esses acordes.3: Se o acorde finalis nessa matriz de oito compassos. aos materiais que mais de perto lembram os acordes de Yes we can. 2010. tanto quanto possível. as razões acima me levam a pensar que as similaridades estruturais não são suficientemente marcantes para defender uma comparação interobjetiva mais aprofundada nesta direção. principalmente no tom de Mi Menor. seria a mais correta? Bem. O mesmo acontece em muitas progressões harmônicas no estilo andino huayño. uma sequência de três acordes contém três harmonias. de fato não. um Mi Menor. 1966) de LOS CALCHAKIS.3 – Sequência harmônica da canção renascentista La Folia. De fato. (7) se o timbre de um violão com cordas de aço é pouco comum. Não consigo ouvir esta progressão como sendo totalmente no tom de Sol (IV – I – III – vi): para mim. diferentemente daqueles de Yes we can: (1) terminam como cadências envolvendo a dominante (V-i) no tom menor. não há uma relação cadencial no turnaround. a não ser que a matriz comece e termine no mesmo acorde. (5) sua métrica geralmente não é 4/4. 9 O movimento plagal no sentido horário do círculo das quintas é quase tão comum em estilos como gospel. Uma variação comum da matriz de La Folia se desenrola como mostrado no Ex. 3 . uma sequência de quatro acordes contém quatro harmonias e assim por diante.i. a gravação de Guardame las vacas a que ele se refere.A alta Renascença e a bi-modalidade andina As referências de Danilo  Orozco às matrizes harmônicas que Carlos Vega provavelmente teria chamado de bi-modais são significativas porque há um denominador comum entre os acordes de Yes we can e. Em Yes we can. Além disso. Embora possa soar tautológico. ou uma combinação de ambas formando hemíolas. são mais rápidos que q = 100. sempre soa como bVI . em termos da harmonia triádica europeia. então as funções relativas dos outros acordes serão aquelas da linha do meio mostrada no Ex. 4 . é esta harmonia. ainda. 11 Por isso. sons e palavras de artistas como Alice Cooper. o passo que leva o ouvinte da ausência musical a algo musical. devemos considerar aquele que é o primeiro passo de fato. 15 Mas não é tanto a acessibilidade poïética em si mesma que é semioticamente importante. provavelmente também I→ii e I→iii são. Uma vez que esse tipo de “intuição” não é muito útil em si mesmo. Grand Coulee Dam (1946) e Two good men (1946?). [10] Woman is the nigger of the world (John LENNON. ideias e situações que os acompanham. tentarei identificar e explicar as diferenças nos parâmetros da expressão musical que se articulam aí e em conexão com o passo harmônico inicial . 1975). Em outras palavras. Os acordes de Yes we can. que é. 1963).  1929).  1979). partindo do antes e fora da música para o primeiro som da canção. o número de peças. canções de câmara vitorianas. por exemplo. 17 Inicialmente. 1957). 1964). com levadas rítmicas ou simplesmente dedilhados. we can!. 1961). ” (“É hora de mudar. mesmo pouco. é fácil para qualquer violonista amador que encontramos em festinhas ou acampamentos. 2010. Este ditado certamente se aplica às partidas harmônicas porque o segundo acorde em qualquer sequência é o que cria a primeira impressão de uma progressão ou direção harmônica.TAGG. ou seja. Belo Horizonte. . tem aprendido a associá-los às palavras. ou seções de peças. de fato. ser a marca de conclusão harmônica preferida em muitas canções no amplo leque das tradições da canção popular na língua inglesa.   [4] Crazy (Patsy CLINE. menos comum do que o IV-I. . stand­ards de jazz etc.. mas sim o seu significado para a maioria dos que não tocam violão. I→bI II  or  I→bVII. Podemos até escutar a referência plagal em algum Amém. a maioria da sociedade. virtualmente idêntico ao primeiro som de diversas canções populares de reconhecidos cantores-compositores norte-americanos associados com políticas progressistas e mudanças sociais. I→V. Entretanto. Se estas alusões são intencionais ou não em Yes we can. e com um andamento moderado ocorrem no início das seguintes gravações de Bob DYLAN: The Times  they are  a-changing (1964a). ”) de Obama e The Times they are a-changing (“Os tempos de mudança”) de DYLAN. n. talvez seja menos usual do que I→II. 16  [8] Dock of the bay  (Otis Redding. 1968). mas provavelmente mais comum do que I→bVI (veja MOORE. ner. 10 As harmonias do turnaround plagal de Yes we can podem.  [3] The Charleston (GOLDEN GATE ORCHESTRA. provavelmente. que começam com I→III que chamaram minha atenção dentro do repertório relevante. 10 entre o “It’s time for a change. em um violão acústico com seis cordas de metal. constituir uma razão pela qual nós provavelmente escutamos essa música como popular.   [5] Creep (RADIOHEAD. Os acordes de Sol Maior. conectadas a figuras muito menos apropriadas dentro das tradições da música popular norte-americana do que Woody Guthrie e Bob Dylan. existe muito mais correspondência. o qual. descobri que apenas três dessas onze canções soavam suficiente parecidas como Yes we can para serem usadas como IOCMs convincentes para a sequência de acordes em questão. assim como os outros dois acordes na primeira posição que se repetem (Mi Menor e Dó Maior). as promessas de mudança e justiça social da recente eleição presidencial dos Estados Unidos. canção gospel ou canção folclórica baseada na escala pentatônica maior mas. 1925).7-21. Outro ponto significativo a respeito do acorde de Sol Maior. teoricamente. 6 – O passo harmônico inicial I→III O passo harmônico inicial I→III (acordes de Sol Maior para Si Maior em Yes we can) não é o início mais comum e nem o início mais incomum dos encadeamentos harmônicos da música popular na língua inglesa: I→IV. I→vi. 1992). Em todo caso. por outro lado.22. 1970). certamente poderiam estar.. mesmo.  [2]  Bell-bottom blues (Eric CLAPTON. ao invés de nos determos aí. Graças ao fato de que tocar esses acordes fáceis está dentro da capacidade de uma significativa minoria da população que toca violão.  1992). 13 O primeiro som em Yes we can é. John Wesley Harding (1967). com suas quatro cordas soltas e terça dobrada (Si nas cordas Lá e Si) é que. por sua vez. . O acorde de Sol Maior na primeira posição do violão acústico em Yes we can é importante porque sua sonoridade cria a primeira impressão real da canção. antes de discutir o passo I-III de Yes we can. vamos investigar o passo harmônico inicial da sequência. ou pelo menos parcialmente relevante. tanto do ponto de vista da letra quanto da sonoridade. não apresenta nenhum desafio técnico para o músico amador de habilidade mediana. o segundo acorde de Yes we can.12 Esse acorde de Sol Maior também ocorre como primeiro acorde da tônica com frequência em um razoável número de canções de Woody GUTHRIE como.  [9] Who’s sorry now (Connie FRANCIS. que priorizam o sentido anti-horário do círculo das quintas. mais comuns do que I→III. George  Jackson  (1971)  e  Knockin’ on heaven’s door (1973).   [7] Nobody knows you when  you’re down and  out [daqui para frente chamada apenas de Down and out] (Bessie SMITH. sem saber o porquê. Exemplos de acordes de Sol Maior na primeira posição no início de canções. por meio da exposição repetida a estes acordes de uma maneira simples no violão. E pode. é difícil falar especificamente sobre o IV-I sem falar que esse encadeamento harmônico é muito idiomático nos outros estilos. P. . p. Mi Menor e Dó Maior são acordes que milhões de norte-americanos podem saudar com um yes. como norte-americana e não como clássica e europeia. Basta imaginar as imagens. Oklahoma Hills (1937). não impressiona. Per Musi. It  ain’t  me babe (1964b). Charlie Daniels ou Barry White como acompanhamento musical para uma plataforma eleitoral de um governo responsável! 14 Obviamente. listadas a seguir em ordem alfabética:  [1] Abilene (George HAMILTON IV. E mesmo o acorde de Si Maior.   [6]   Jungle (ELECTRIC LIGHT  ORCHESTRA. que pode ser entendido como um acorde de Lá Maior tocado com uma pestana na segunda casa. 5 – Primeiras impressões: → I É dito que a primeira impressão é a que fica.  [11] A World without love (PETER e GORDON. Achei apenas onze. conotativamente. em outras palavras. Além disso. tanto na gravação de Bessie SMITH (1929) quanto na de Eric CLAPTON (1992). do ponto de vista da semiótica. C).. Mi [Ré] e Dó. p. acordes invertidos com linhas do baixo por grau conjunto se tornaram um confiável símbolo pop de “eruditismo” ou “pop clássico”. na verdade. segundo. por outro lado. As duas canções country (Abilene e Crazy) podem também ser eliminadas como IOCMs por razões semelhantes de incompatibilidade de instrumentação. progridem como I→III5→vi→[I5→] IV  (as notas do baixo. na sequ- 11 . P. o passo I-III inicial de Down and out segue com uma progressão de quintas descendentes que inclui o VI grau (E ou E7).. = 90. = 90. etc. rítmico ou tonal. com o próprio CLAPTON (1970) ou Stevie WINWOOD (1966). PROCOL HARUM. Antes de tudo. que estão próximos entre si no círculo das quintas. comum entre Yes we can e as onze peças comparativas.7-21. 20 As canções Down and out (q. por exemplo. no caso de Who’s sorry now. o piano e a tuba (na gravação de Bessie Smith) ou a guitarra elétrica. Bach.TAGG.experimente o efeito de tocá-los. embora sejam tocadas em um andamento semelhante ao de Yes we can (q =100). depois.  1731. o I e o IV graus (Sol Maior e Dó Maior no tom de Sol Maior). Per Musi. depois inclui o ii grau (Am) e. passa por harmonias como #IVdim  (C#dim).  V7 (D7)  e  I  (G). elas se assemelham mais a Yes we can do que The Charleston. Esta é apenas um das razões para tratar uma similaridade estrutural óbvia como a partida harmônica I→III com cautela. Por exemplo. o órgão Hammond e a bateria (nas gravações de Clap­ ton e Winwood). Who’s sorry now. G/D. rítmica e prolongamento harmônico. somente duas das dez peças que constituem IOCMs (Dock of the bay e Creep) apresentam I→III no início do loop de quatro compassos. Por exemplo. Todas as notas do baixo do loop de Yes we can coincidem com a fundamental das tríades. ao invés do vi grau (Em). todas as gravações de Down and out. Esta canção foi concebida em um idioma diferente. sua sonoridade semi-amplificada dos pop combos da década de 1950.II  (G - B - C - A).  Dock of the bay e Creep) e. Em. Sitting on the dock of the bay (REDDING. incluem encadeamentos de harmonias com dominantes do círculo das quintas (sentido anti-horário) incompatíveis com o idioma tonal geral de Yes we can. I-III. Graças a precedentes famosos como Whiter shade of pale / Ária de BACH (I-V3-vi-I5. enquanto que os acordes Yes we can são apresentados em colcheias sem swing iiiq . que é tocada com a simplicidade de notas e tríades de um violão acústico. participação popular que pode ser exemplificada pelo estilo de violão toque-e-cante de Yes we can e suas tríades na posição fundamental. Outra razão harmônica para por em dúvida a relevância de uma comparação que envolva I→III é o prolongamento harmônico. Apesar disto. ao repertório pop internacional angloamericano pós-1955. Fá#.  1967). 21 Além disso. quanto (2) sua sonoridade lo-fi 18 típica dos discos de 78 rpm. Abilene e Crazy. Os acordes de Yes we can. tendo como acompanhamento a corneta. n. A sequência de Dock of the bay é interessante também porque consiste em dois pares de acordes: primeiro. Tanto (1) a orquestração tradicional de jazz band em The Charleston. seja nos aspectos tímbrico. Embora nenhuma destas canções apresente a batida simples de acompanhamento do cantor com violão acústico. sejam elas com q. Muitas das outras canções. parâmetros como andamento. existem diversas diferenças estruturais importantes entre as três canções em discussão (Down and out. (3) quanto. Sitting on the dock of the bay (q = 103. por outro lado. padrão de acompanhamento e instrumentação podem também fazer algumas harmonias I→III soarem bastante diferentes daquelas de Yes we can. é em colcheias contínuas e sem swing iiiq e apresenta os quatro acordes de sua sequência virtualmente no mesmo andamento (q =104) de Yes we can:  I – III – IV . Esta sequência de Dock of the bay é notável porque não contém nenhum passo harmônico plagal (IV→I) ou de dominante (V→I). que se torna mais típica ainda com as tercinas constantes no piano. são muito diferentes em termos de instrumentação. mesmo quando notado como o). todas elas tem o acompanhamento shuffle do blues lento ( ¼ . em Bell-Bottom  Blues (1970). uma progressão que contém dois acordes com inversão.. ao contrário. Não se ouve nenhum acorde diminuto ou uma extensa progressão com dominantes no círculo da quintas em qualquer parte de Yes we can. ambos para o lado dos sustenidos no círculo das quintas (longe dos graus I e IV) e separados entre si apenas pelo VI grau (Mi Maior). sejam muito mais lentas. 4/4) e Creep (q = 92. As músicas The Charleston (q = 96) e Who’s sorry now (q = 88). 12/8). utiliza uma linha descendente no baixo por graus conjuntos de tal forma que os acordes. Somente uma ponte de 19 segundos (1:24 . de fato. por outro lado.1:43) do total dos 2:45 da canção inclui uma breve progressão: bVII→V→I  (1:37 1:43) que leva de volta à sequência de acordes harmonicamente estática que ocupa toda a gravação. o III e o II graus (Si Maior e Lá Maior no tom de Sol Maior). A utilização de acordes invertidos e graus conjuntos na linha do baixo elitizam a peça. 2010. Este processo de eliminação deverá melhorar o foco para se observar as características mais salientes do loop de acordes de Yes we can. e os acordes seriam G. 1968). no tom de Sol Maior seriam Sol. exceto por alguns segundos. métrico. Trata-se de um mecanismo que retira esta canção-arranjo da esfera de participação popular. padrão de acompanhamento e prolongamento harmônico. todas.22. que são amigáveis para os metais e saxofones) são outras indicações óbvias dos estilos mu- sicais e conotações de um mundo distante daquele de Yes we can. Ré/F#. Belo Horizonte. 4/4). em relação à natureza do passo I→III: a linhas do baixo e o prolongamento harmônico. Mas esses quatro acordes não são tocados nessa disposição .  para seguir com  II7 (A7). O prolongamento do I-III em The Charleston e Who’s sorry now em uma sequência de dominantes em quintas descendentes (I-III-VI-II-V-I nas tonalidades de Si b Maior e Mi b Maior. enquanto que CLAPTON. Yes we can. seguem no mesmo caminho de Yes we can e pertencem. remanescentes do jazz “clink-clink-clink” de Stan FREBERG (1956) 19. há duas características estritamente harmônicas que se destacam. são opções comparativas muito longínquas de Yes we can. Um raciocínio semelhante pode ser aplicado à canção Woman is the nigger of the world  (1975) de John LENNON. com função plagal). Si Maior e Lá Maior.”]). Todas estas diferenças me deixam relutante para fazer referência aos acordes da banda ELO como um IOCM para os acordes de Yes we can de Obama. aquela frase de Yes we can chega muito perto da declamação inicial “When  the  night. e não quatro. o guiro [tipo de reco-reco da América Central].”]. ou . . (5) o governo presidencial de Obama marca outra grande mudança positiva nos Direitos Civis dos Estados Unidos. . Mesmo que o caráter de vai-e-vem harmônico da gravação de Redding. em termos relativos. e são espaçados assim:   | h.  etc. Após esta cesura no meio da canção. . (2) a música daquela época estava associada a uma imagem mais esperançosa e assertiva entre os afro-americanos nos Estados Unidos. Eu também caracterizaria essas frases como sendo frases tipicamente masculinas dos cantores soul da década de 1960 (por exemplo. (4) essa canção também contém o mesmo passo harmônico I-III como ocorre em Yes we can. parece haver aí 100% de correspondência. uma vez que esta correspondência perfeita não soa exatamente como os acordes de Yes we can. mas parte de uma sequência de um chorus de oito compas- . Além do fato de que a sequência de John Lennon não é um loop. n. cowbell. ele canta “Watching the tide roll in. IV→(I→V) →II). a canção da campanha presidencial de Barak Obama. é no mesmo andamento de Yes we can  (q=100).. um bem audível e denso string pad [um sample sintetizado do naipe das cordas orquestrais].  C→A). ência G-C-A-B ou. ou qualquer outra padrão similar para cada acorde. sinceras e apaixonadas. para ser mais preciso).”). com função dominante)  e Dó Maior → Sol Maior (IV→I. . mencionada por Allan Moore. . situa-se distante não apenas um ou dois passos harmônicos de quinta da primeira tríade. . 22 Nada disso significa que Sitting on the dock of the bay é inadmissível como uma evidência IOCM dos acordes de Yes we can. .7-21. Mas há um problema. q |.” [“Nada irá mudar. estão ausentes. . e não um compasso inteiro de . preenchida com instrumentos tropicais do tipo “world music” associados. mas a uma distância de quatro passos harmônicos no círculo das quintas (Sol Maior→(Ré Maior→Lá Maior→Mi Maior)→Si Maior ou. (4) a instrumentação é totalmente diferente. Este movimento de vai-evem em Dock of the bay. sua ponte repete uma curta frase melódica (no trecho “Nothing’s gonna change. que é sublinhado pelo acréscimo de efeitos sonoros de praia como ondas que vem e vão. KING.q |h.Dó Maior (Yes we can. que é um tipo de I-VI em Dó Maior. (3) um dos mais famosos desses cantores foi Otis Redding. 2010. é claro.  “I can’t do what ten people tell me to do. . Os acordes de Yes we can. cuja sequência de acordes contém dois passos harmônicos de tonalidades vizinhas muito claros: Si Maior → Mi Menor  (III→vi. estivessem mais perto um do outro no círculo das tonalidades. (2) a sequência da banda ELO segue com uma cadência V→I (A→D) repetida. Eu acrescentaria que as frases melódicas em cada uma dessas três canções podem ser caracterizadas como proclamatórias. . . com apenas uma nota para cada acorde. . . como no encadeamento I-III (na primeira metade do loop. P. Mas não é o caso. . Sua corrente de conotações contém os seguintes tipos de elos indexadores: (1) a frase melódica de Yes we can lembra arquétipos melódicos cantados por cantores homens de música soul na final da década de 1960. . Belo Horizonte.” (“Sentado na doca da baía. . p. Per Musi. como o título da canção: Jungle (Selva). Não haveria nada de especial a respeito desta divisão da sequência em duas partes se os dois acordes triádicos.. .  1:24-1:37) que recorre de maneira semelhante em 0:31 de Yes we can  (“It was sung by immigrants.” [“Quando a noite. Seus três primeiros encadeamentos harmônicos são idênticos àqueles da canção de Obama: Ré Maior – Fá # Maior . . ” (“Olhando a maré que chega. G-B-A-C[-G] -. Se há alguma validade nesta análise da frase no ponto 0:31 de Yes we can. . Marvin Gaye). no tom de Sol Maior). . 1974). (3) os quatro acordes cobrem dois compassos. G→B). Existem pelo menos quatro razões para não se encaixarem: (1) os acordes da banda ELO não são utilizados em loop. . em termos relativos. . então.Sol Maior (Jungle.” [“Não posso fazer o que dez pessoas me pedem para fazer. seu prolongamento harmônico e sua orquestração divirjam claramente de Yes we can. “Na mosca!”.”) na segunda metade do loop de acordes (no seu encadeamento  IV→II . uma vez que I e III  (G→B) pertencem à mesma frase que Redding canta “Sitting on  the dock of the bay. apesar da correta similaridade em termos de uma teoria harmônica convencional. em Yes we can. I→(V→II→VI)→III) e a uma distância de três passos harmônicos no círculo das quintas (Dó Maior→(Sol Maior→Ré Maior)→Lá Maior ou. . a conexão com o I-III de Dock of the bay se reforça ciclicamente por associação-cruzada. pelo menos na cultura musical urbana e nãotropical do “primeiro-mundo”. É isto que faz a sequência de Dock of the bay soar como dois acordes vai-e-vem (shuttle chords) semelhantes. .Mi Menor . Estas duas canções simplesmente não soam suficientemente similares. o que dá a ela um definitivo caráter de repetição e não de vai-e-vem duplo.” [“Era cantado pelos imigrantes. um após o outro – um constante movimento para frente e para trás – ao invés de uma sequência única e repetida de acordes como I-vi-IV-V ou I-V-bVII-IV. no tom de Ré Maior)  =  I  III vi  IV =  Sol Maior – Si Maior . em cada metade. que estão associados à luta norte-americana pelos Direi- 12 tos Civis e com o tipo de engajamento social que Michael Haralambos documenta em Right on! From blues to soul in black America (HARALAMBOS. embora por diversas razões de dessemelhança. wood block e maracas. respectivamente. A canção Jungle (1979) da banda ELO. poderíamos pensar.22. ”] em Stand by me  (1961) na voz de Ben E. depois da qual ele respira. refletindo o mesmo tipo de distância harmônica de terça. Mais ainda – e já fora da conotação deste campo (ou selva.Si Menor . A segunda tríade de cada par.TAGG. De fato.. Otis Redding. “]. sendo Sitting on the dock of the bay um de seus maiores sucessos. 23 Como apontou bem Barbara  Bradby na seu e-mail na lista da IASPM. Posso escutar instrumentos que lembram o agogô. Wilson Picket. Woman is the nigger of the world de Lennon. Quando vier. [ponte] Aqui vou esperar. neste caso. que tipo de mensagem paramusical World without love contem? Vejamos seus versos [com o texto original após a tradução]: [verso 1.I (acordes de Mi Maior . inclusive da Golden Gate  Orchestra) e Down and out com Bessie Smith etc. o I-III-vi-vi em World Without Love não ocorre regularmente no início de cada verso em compasso 4/4 sem swing. sos (|| I - III - vi . até lá.ii . Belo Horizonte. isto para não citar The Charleston (que recebeu muitas gravações. [v.IV - iv. O meu ponto de vista. 1964) de Lennon e McCart­ney e Creep da banda de rock inglesa Radio­head (RADIO­HEAD. Não me importo com que dizem. provavelmente porque a única nota melódica no quarto compasso. não sei quando. enquanto que sua instrumentação pop simples tem muito mais em comum com Yes we can do que Jungle da banda ELO. sendo que a música de Lennon inclui um piano percussivo. Além disso. Cada loop cobre quatro compassos. isto significa que a parecença harmônica mais importante entre A World without love e Yes we can é o fato de ambas compartilharem os mesmos passos harmônicos iniciais I→ III→ vi. here I’ll stay with my loneliness. perco. [bridge] Here I wait and in a while I will see my lover smile. trabalhei equivocadamente achando que os primeiros quatro compassos de cada verso de A World without love eram harmonizados com os acordes Mi Maior | Sol # Maior |Dó # Menor | Lá Maior (I−III−vi−IV). de fato. prenda-me longe daqui e não permita o dia aqui dentro.TAGG. A estética da essência crua em Creep se alinha bem com o caráter sem firulas do som do violão em Yes we can.Mi Maior) em World without Love permanece dentro do mesmo idioma de tríades comuns no estado fundamental como em Yes we can. virtualmente sem reverberação ou qualquer outro tratamento de sinal sonoro etc.I . o registro vocal mais agudo e o timbre mais rascante do que em Yes we can. A sequência harmônica na canção Creep de Radiohead é o loop ║: I→III→IV→iv :║ (Sol Maior | Si Maior | Dó Maior | Dó Menor) com  q=92 durante os quatro minutos que dura a canção. I know not when. Restam apenas duas músicas de IOCM I→III para discutir.. 1992). aqui ficarei com minha solidão.e ‫ ׀‬eq e no baixo. que vão de Dó Menor para Sol Maior (iv→I) é plagal como o turnaround de Yes we can. I  don’t care  what they say I won’t stay in a world without love.22. When  she  does I lose. E a toquei com harmonia errada muitas vezes sem que qualquer ouvinte ou colega músico tenha reclamado.7-21. a mesma progressão relativa do loop de acordes de Yes we can.iv . vai do relativo desespero e escuridão a uma relativa esperança e luz. Há também diferenças radicais de instrumentação entre as duas canções. so baby until then. I’m OK. estas partes são mais semelhantes ainda ao padrão iq q do violão acústico de Yes we can do que aqueles de Dock of the bay. diferentemente de Dock of the bay. um saxofone estridente em primeiro plano e eventos de alta intensidade na bateria. o I→III em World without love não compartilha com Yes we can alguns elementos estruturais comuns. guitarra e contrabaixo elétricos. a canção A World without love (PETER e GORDON. [v. por isso baby. 13 . n. Entretanto. ou seja. a batida da canção de Lennon é suingada (12/8  feel). não vou viver em um mundo sem amor.. soa bem tanto sobre um acorde de Lá Maior quanto de Dó # Menor. p. Não se ouve nenhuma dessas características na canção de Obama. ou o padrão |iiq iiq| de Who’s sorry now. She may come. e os padrões de acompanhamento são todos epítomes de um estilo pop-rock sem firulas (desenhos de ximbau standard simples na bateria.Lá Menor . da mesma forma que Yes we can. com um acorde por compasso e rítmica de quatro colcheias ou semínimas sem swing na bateria e no violão ( iiiq no ximbau) e o padrão de simples q.Si Maior . as harmonias do turnaround do loop de Radiohead. Mas a sequência de Lennon e McCartney soa diferente de Yes we can principalmente porque: (1) a primeira é cantada em um andamento mais rápido ( = 134). ou o padrão suingado |q eq e| de Down and out ou de Woman is the nigger of the world. q| da banda ELO. a gravação de Peter & Gordon não contém nenhum elemento de soul or gospel que dirija o ouvinte em direção a qualquer tipo de conotação relativa aos Direitos Civis. Se isto é verdade.3] Please lock me away and don’t allow the day here inside where I hide with my loneliness. o efeito geral da intensidade sonora muito mais alto.I || no tom de Mi Maior). Considerando o movimento de acompanhamento como um todo. 2010. daqui a pouco verei o sorriso do meu amor.Mi Maior . De 1964 até recentemente. I  don’t care  what they  say I won’t stay in a world without love. arpejos simples no violão.2] Birds sing out of tune and rain clouds hide the moon.1. se pudermos simplificar. as divagações deste jovem e apaixonado rapaz não têm nada a ver com a luta. Dito isto. não vou viver em um mundo sem amor. 25 Como em Dock of the bay. E.I . onde me escondo com minha solidão.Mi Maior . A sequência. verso 3] Por favor. se uma sequência de acordes em uma música soa como uma sequência de acordes de outra música. Os acordes de Yes we can. um Dó #. Per Musi.I .Fá # Menor . o prolongamento harmônico I . P. v. Ela virá. basta escarafunchar um pouco abaixo da superfície da letra de Lennon e Mc­Cartney para encontrar um paralelo: um processo emocional que.V . Neste contexto.). [verso 2] Pássaros cantam desafinados e nuvens de chuva escondem a lua. é sugerir mais uma vez que a correspondência harmônica exata não é necessariamente o fator mais importante. como acabei de afirmar. repetidos sobre o mesmo período de quatro compassos em 4/4. (2) o acompanhamento é dominado pelas pela pesada figuração “one-five oompah” do baixo de Paul McCartney.I . certamente. 24 (3) o seu I-III-vi não se repete em loop. é Mi Maior | Sol # Maior | Dó # Menor | Dó # Menor (I−III− vi−vi). com um acorde por compasso e com a batida do acompanhamento básico do violão acústico. esperança e coisas cotidianas que podemos encontrar nas frases de efeito dos discursos de Obama que ocorrem ao longo de Yes we can. Além disso. eles são. Assim. sempre com o mesmo sentido de determinação. E. Estou bem. são muito mais próximos da canção de Obama do que o padrão |h. À primeira vista. mesmo que pouco audível na mixagem. Não me importo com que dizem. a letra de The Weight conta uma história de experiências negativas e positivas. Este acorde de Dó Menor. n. Puff the magic dragon (PETER. Assim como Hangman. Além disso. p. Per Musi. Incipts harmônicos  I-iii no estado fundamental não são incomuns em outros tipos de canção da música pop anglofônica. do tipo para cima e para fora que se observa no baixo ascendente I-III-vi e no movimento melódico 5 . 1965). contra a nota Ré # ascendente do acorde de Si Maior. The Weight (THE BAND. É verdade que não há uma linha do baixo em graus conjuntos cobrindo o intervalo de uma quarta justa ou intervalo maior nesta sequência. em termos relativos. 1966) são Bb → Dm → Gm → Eb (ou. em termos de direcionalidade de condução de voz. e que este movimento para cima e para fora indo para um lugar diferente é essencial tanto para expressar confiança na superação de dificuldades – “yes. 1974). conexões interobjetivas eventuais entre elas são improváveis de fundamentarem uma parecença harmônica audível. com piano. semelhante ao que se ouve em 0:31 na canção de Obama possa atenuar algumas das diferenças acima mencionadas. Infelizmente. todas essas canções pertencem aos repertórios folk e folk  rock  norte-americano. 1970). 1963). como ocorre em A Whiter shade of pale  (PROCOL  HARUM.Ré# . enarmonicamente contrastando. mas o Mib repetidamente reverte este movimento para baixo fechando novamente sobre o Ré natural e Sol. 14 7 . nós podemos”’). A questão é: como uma canção raivosa de auto-comiseração. 28 Soma-se a isso o fato de que a canção da Mowtown é claramente orquestrada de maneira muito diferente. Apesar das claras diferenças entre Yes we can e Creep. enquanto que Sukyaki (SAKAMOTO. O loop de acorde de Yes we can não tem a escorregada cromática descendente de Creep. a de que o encadeamento apresenta uma forte qualidade de movimento para um lugar diferente. backing vocals e percussão. Isto significa que. para aprofundarmos na questão do significado dos acordes de Yes we can. embora o turnaround em ambas as canções sejam plagais. passando antes pelo iii grau. todas começam com I-iii-IV. 1963) 29 e Hasta mañana da banda sueca Abba (ABBA. we can” (“sim. cordas. De fato.Mi) já mencionado.IV Os quatro primeiros acordes de What  becomes of  the brokenhearted? (RUFFIN. Para ser mais preciso. o acorde de IV grau (Maior) em Creep ocorre um compasso antes. como ocorre em Yes we can. P. este não é o IOCM curinga que precisamos. as duas canções de Dylan e as duas faixas da banda de rock canadense The Band (que acompanhou Dylan entre 1964 e1967) apresentam letras que divergem da temática de amor. precisamos examinar o material comparativo que apresenta os outros dois acordes do loop da canção de Obama: vi e IV. é claro. nem seu encadeamento I-III. O encadeamento harmônico ocorrendo mais no meio da canção e progredindo do I grau para o IV ou vi graus.#5 . há outra diferença importante: enquanto que Yes we can repete a sequência I-III-vi-IV. Além disso. Yes we can não contém nenhum cromatismo descendente. no qual x é um alternativa para III como meio viável de passar de I para vi. Bell-Bottom blues (DEREK AND THE DOMINOES. Se for o caso. quanto para vociferar aversão a qualquer coisa que gere auto-repulsa. 30 Exceto por Sukiyaki e Hasta Mañana. seguido pelo segundo encadeamento IV-II (Dó Maior . I5→iii3→   vi→   IV3): três das quatro tríades estão invertidas. diversão. Nenhuma das similaridades acima mencionadas pode refutar o fato de que há claras diferenças entre Creep e Yes we can. raiva adolescente e nostalgia do pop.6 (voz interna Ré . assim como Bell-bottom blues de Clapton. PAUL & MARY. que trata de um personagem pilantra e esdrúxulo pode ter alguma coisa musicalmente significativa em comum com um personagem que afirma uma crença coletiva na esperança.7-21. em termos relativos. com sua nota Mib. Apenas uma das canções.. Bb/F → Dm/F → Gm → Eb/G (ou. o  loop em Creep segue o encadeamento  IIII-IV-iv.. Talvez o iiiq em 4/4 e com q = 100 com timbre de voz masculina. Entretanto.Lá Maior) direcionalmente “de engano” de Dock of the bay. as inversões das tríades e o caráter de nota pedal na linha do baixo na canção de Ruffin criam um efeito parcial de estaticidade harmônica que não se resolve em um movimento substancial até muito mais à frente na peça.TAGG. 2010. essas duas canções definitivamente compartilham mais coisas em comum do que o encadeamento inicial I-III do loop quaternário de quatro compassos em Sol Maior. 1968) e Dan­iel and the sacred harp (THE  BAND. 1970). assim como em pontos proeminentes de It’s all over now Baby Blue (1965: I-iii-IV) e I pity the poor immigrant (1968: I-iiivi) de Bob DYLAN. precisamos encontrar IOCMs que apresentem loops harmônicos no esquema  I – x - vi - IV. iii ou V (no tom de Sol Maior: Si menor ou Ré Maior). também ocorre em Hangman (Pe­ter. Os acordes de Yes we can. imprime ao loop de Creep um caráter único que pode contribuir para o dramático sentido de desesperança da canção: 27 o Ré # sobe para o Mi natural. porque a sequência de acordes na verdade se apresenta com inversões. 1967) ou. I→iii→vi→IV). Belo Horizonte. no lugar do Mi Menor (vi) de Yes we can e a tríade de Dó Maior (IV grau) de Yes we can ocorre na mesmo posição do loop do Dó Menor (iv grau) de  Radiohead. que parece ser o que estamos procurando. O acorde x mais comum seria. Paul and Mary. possui nenhum dos efeitos para frente-e-para trás daqueles dois acordes vai-e-vem daquela canção. Por exemplo. ambas apresentam a progressão Iiii-vi. The Weight. a canção Hangman.I – iii – vi . utiliza um loop de acordes.22. a sequência inicial de What becomes of the brokenhearted? não é em loop e seu prolongamento contém harmonias incompatíveis com os acordes no estado fundamental e sistematicamente sem swing de Yes we can. Uma razão poderia estar na ideia levantada por outros membros da IASPM. na voz de  Clapton. I-iii-IV-I com q = 124 em um 4/4 regular com um acorde por compasso. 26 Harmonicamente. sendo a mais óbvia a gritaria nervosa e alienada e a guitarra elétrica com um poderoso overdrive ocorrendo em 39% do tempo da faixa rock de Radiohead. . embora todas essas canções apresentem um violão com batidas simples em progressões I-iii-IV ou I-iii-vi. claramente. que é o vi grau.I  - V  - vi  - IV A segunda de nossas duas alternativas para o III grau como elemento de ligação entre o I e o vi graus (entre Sol Maior e Mi Menor em Yes we can) é o V grau (Ré Maior em Sol Maior). Dois deles (No woman no cry e Not ready to make nice) repetem a sequência I-V-vi-IV pelo menos duas vezes em seguida. ao recorrerem a tradições específicas da música popular em língua inglesa. como ocorre em Yes we can. no caso da canção de Obama. Embora nenhuma das quatro canções mencionadas no Ex. justapõe experiências de dificuldades e esperança. “consertar este mundo”. Let it be. Mais ainda. há boas razões para acreditar que os acordes de Yes we can. Os acordes de Yes we can.TAGG. a coluna três também abrigaria “eles forjaram um trilha”. a sequência de acordes da canção de Obama utiliza um andamento e um ritmo de discurso que têm muito mais em comum com as canções extremamente populares mencionadas antes. determinação da tabela acima (Ex. contribuem para co15 . A simples questão harmônica que se coloca é que o V grau é o relativo maior do iii grau (uma tríade de tonalidade específica em estado fundamental no terceiro grau da escala maior) e que.5. apenas de passagem. 35 Esta sequência de acordes também ocorre em canções barulhentas e otimistas de rock como We’re not going to take it (TWISTED SISTER. transcorrem com a regularidade de um acorde para cada compasso ao longo de períodos de 4 compassos em métrica 4/4. A coluna Problemas. com andamento q =108  em  4/4 e sua taxa de ritmo harmônico de um acorde por compasso.4. o “coro de cínicos que fala mais alto e mais dissonante”. assim como Yes we can. Além do slogan “Yes we can” que diz tudo. “os trabalhadores [que tiveram de] organizar”. 8 . também em 4/4 e com taxa de um acorde por compasso.22. do inglês Paramusical Fields of Connotation) podem ser sumariados. um padrão que parece ter sido disseminado amplamente na música pop de língua inglesa. enquanto que a letra de todas as canções. o V grau contém duas notas adjacentes à tríade alvo. todas elas têm um caráter antêmico. Country roads e Not ready to make nice. Resumindo. Todas elas são eminentemente cantaroláveis e todas elas apresentam letras que expressam esperança ou estímulo frente a problemas ou tempos difíceis. emoções. “os obstáculos [que] estão no nosso caminho”. bem como. 36 De fato. como uma unidade de três acordes.4).IOCM em combinação Seria realmente uma surpresa se houvesse qualquer outra canção que contivesse o mesmo tipo de loop de acordes. como mostra o Ex. Per Musi. e mesmo assim. e “a garotinha que estuda na escola desmoronando em Dillon”. “curar esta nação”. seria preenchida com citações como “escravos e abolicionistas”. Mas a história não acaba aí. realmente precisamos buscar similaridades harmônicas mais convincentes em outras plagas. P. atividades. sem firulas dos acordes de Yes we can. No woman no cry. Tudo bem. a letra de Country roads menciona. a grosso modo. 8 . pode ser escutada no início de cada verso de Let it be (1970:  q =76  |C  |G  |Am  |F) dos BEATLES. “as mulheres [que tiveram] de lutar pelo voto”. 2010. contrastantes. Resumindo. instrumentação e tipo de impostação vocal nessas canções seriam uma tentativa muito distante do caminhar relativamente tranquilo e ordenado. As características estruturais mais importantes e seus principais PMFCs (Campos Paramusicais Conotativos. 34 Mais especificamente. experiências tanto de dificuldades quanto de esperança. 1978: q =156). apenas uma delas (The  Weight) apresenta um loop de acordes. tocada com andamento semelhante e de maneira semelhante em relação à instrumentação. Deve-se deixar claro também que aqueles elementos estruturais específicos são geralmente associados àquelas tradições com noções. Convenhamos que esta sequência soa bastante similar ao início do Canon de Pachelbel – ║: V │vi -iii │IV-I │ IV-V :║ –. 1984: q =144) ou Another girl another planet (THE ONLY ONES.. O vídeo Yes we can com a canção Yes we can encapsula os tipos de sentimentos listados na coluna Esperança. e não de quatro. “imigrantes [que desbravam] os confins implacáveis”. “nunca houve nada de falso com a esperança” etc. o IOCM apresentado acima mostra que uma variedade de elementos encontráveis na tradição da música pop de língua inglesa está incorporada na sequência de acordes de Yes we can. Por outro lado. com todos os acordes no estado fundamental. n. eventos e processos que. O mesmo I-V-vi-IV também acompanha a deixa do coro em Country roads (1971: q =80 |D |A |Bm |G) de   John DENVER e Not ready to make nice   (2006: q=86 ║: G |D |Em |C :║ ) da banda country norte-americana DIXIE CHICKS. estímulo.” – mas todas as outras apresentam. todas elas. Belo Horizonte. rítmica. com taxa de dois acordes por compasso. . enquanto que o I-iii-vi de I pity the poor immigrant de Dylan acompanha a virada em direção à justiça no final de cada verso. p. .. na tabela do Ex. tonalidade e métrica. atitudes.4 apresente um acompanhamento de violão de seis cordas com batida simples. “oportunidade e prosperidade”. 6 Por outro lado. mesmo que haja similaridades e algumas possíveis referências às canções folk e folk rock norte-americanas com letras sérias. All together now. incluindo Yes we can. assim como o ii grau ou o III grau. nenhuma das canções tem a progressão I-iii-vi-IV. em No woman no cry (1974:  q = 78  |C  G3|Am  F) de Bob MARLEY.7-21. 32 Esta alternativa do segundo acorde muda o loop de I-III-vi-IV (Yes we can) para I-V-vi-IV. constroem um campo semântico razoavelmente coerente e conotativo. mas o andamento. “Rei que nos levou ao topo da montanha e nos apontou o caminho da Terra Prometida”. juntos. a sequência I-V-vi-IV. que seria a variante mais próxima do I-III-vi-IV de Yes we can. 33 Esta progressão de acordes constitui toda a base harmônica de All together now (1991) da banda de Liverpool THE  FARM. um discreto arrependimento – “Tenho a sensação de que deveria ter voltado pra casa ontem. [“… antepassados morreram.] “Mother Mary comes to me“. “Ainda uma chance”. “Não estou disposto me retirar“.. democrático. “Pare a matança. “palavras sábias”.] Ex. “‘hope remains”.] “I’m through with doubt“. do povo Ex. mulher. Per Musi. participativo (“Amém”) I  - V  - vi  - IV Pop. [“O quintal do governo em Trenchtown”.  Noth­ ing  learnt  and  nothing  gained”. “too late to make it right“. [“Paguei um preço e continuarei pagando”. triste história”. P. estímulo. “sad. “Haverá uma resposta”. participativo. “seque suas lágrimas“. Belo Horizonte. politicamente progressista Orientação para cima e para fora. “got to push on through“.  “the  broken  hearted  people”. 16 .. [I won’t] “do what… you think I should“. “temos que continuar”. participativo. Canção Problemas The  Farm: All together now (1991) Esperança. n.7-21. vamos para casa”. let’s go home”. “Dividirei com você”.] “No woman no cry“. “o povo desiludido”. “my life will be over“.] “The government yard in Trenchtown“. “…unidos”. “There will be an answer“. “A light that shines on me“. “tarde demais para consertar”. [“Não. country rock IV  - I Gospel. antêmico.. “observing the hypocrites“. soul. nós podemos” I  - III Pop I  - iii  - vi Folk. “All  those  tears  shed  in  vain. politicamente progressista. determinação “…forefathers  died.TAGG. folk rock.] [“… eles pararam de lutar e se tornaram um só”. determinado. “…they stopped fighting and they were one”. rock Vai da dificuldade ao estímulo. não aprendemos nada e não ganhamos nada”. não chore”.] “I’ve paid a price and I’ll keep paying“. afirmativo. 2010. “a esperança permanece”.] “times  of  trouble”. [“Mãe Maria venha a mim”. sad story“. “good friends we’ve lost’“. possivelmente problemático Narrativo. “observando os hipócritas”. “os bons amigos que perdemos”. rock Pop de lingual inglesa. “All together now”. “sim. …”joined together”. “a noite está nublada”. “minha vida será finda”. perdidos entre milhões pelo orgulho de um país”. “Still a chance“.4 – Tabela comparativa com frases-chave ”superando dificuldades” em letras de canções pop antêmicas que apresentam a variante I-V-vi-IV dos acordes de Yes we can Características estruturais gerais (sempre 4/4 em andamento moderado) Conotações (PMFCs) Gênero(s) (anglófono[s]) Sol Maior e outros acordes fáceis em violão acústico com 6 cordas de metal Relacionado ao folk Fácil de tocar. “words  of wisdom“.22. “Todos juntos agora”.  lost  in   mil­lions  for  a  country’s  pride”. “I’m not ready to back down“. determinação e esperança.  “the  night  is  cloudy” Beatles: Let it be (1970) Bob Marley: No woman no cry (1974/5) The Dixie Chicks: Not ready to make nice (2006) [“tempos difíceis”. “‘Stop the slaughter.5 – Tabela-resumo dos IOCMs harmônicos e seus respectivos PMFCs em Yes we can. “triste. [“Chega de dúvidas”. “Não farei . Os acordes de Yes we can. “Uma luz que brilha em mim”. “Todas aquelas lágrimas derramadas em vão. p. o que você acha que eu deveria”.. “dry your tears“. “I’ll share with you“. fora do escopo deste artigo. à percepção da música. Otis Redding). Para o conceito original. Comparação interobjetiva (Interobjective comparison): Neologismo criado por Phillip Tagg em 1979 para descrever a comparação musical de intertextos de um ou mais elementos estruturais de uma obra musical com outra. busca descrever um elemento da estrutura do ponto de vista de suas qualidades conotativas percebidas. “acorde menor com sétima maior”. por exemplo. um neologismo criado por Phillip Tagg em 1979 para descrever intertextos musicais. ou seja. o papel do rap e da pregação religiosa em Yes we can. p.76). E canções nesta forma – que chamo de charity stringalong (canções de solidariedade com solos de cantores) –. Os acordes de Yes we can também se referem a outras tradições da música popular anglófona. country-rock e folk-rock (por exemplo. Pode-se argumentar. o Texas. abolicionistas. “allegro” ao invés de “con sordino”. vale a pena acrescentar que as Dixie Chicks utilizaram uma variação do I-V-vi-IV do loop de acordes de Yes we can para acompanhar sua determinação de desafiar as ameaças pessoais que resultaram do fato da banda expressar a vergonha que sentiu pelo fato do ex-presidente norte-americano George Bush ser do mesmo estado natal que elas. veja o artigo de Charles Seeger On the moods of a musical logic no Journal of the American Musicological Society. Esta fusão certamente parece se alinhar com os objetivos de unificação e colaboração de Obama. Per Musi. em que há a superposição de quartas. musicalmente.13. um depois do outro. Campo Paramusical de Conotação: veja PMFC. mesmo. a primeira formação do Radiohead etc. Basicamente.TAGG. org/articles/xpdfs/harmonyhandout. “som de detetive”. The Band) e soul (por exemplo. com um tipo de comunidade beneficente e participativa em prol de uma causa humanitária. fundindo-os em um único produto. afirmação.pdf Acordes vai-e-vem (chord shuttle): neologismo criado por Phillip Tagg em 1993 para descrever a oscilação entre dois acordes. nas palavras de Dylan.. Embora este artigo já passe de 8. ao invés de simultaneamente é simplesmente uma outra maneira de. por exemplo.html Para uma lista de termos e abreviaturas de harmonia veja p. é um adjetivo relacionado à aesthesis. ao invés de sua construção. trechos de outras obras musicais nos quais pode se demonstrar semelhança com a obra musical que é objeto de análise. 1977.. A justaposição entre dificuldade e esperança que se observa no IOCM I-V-vi-IV (Ex. P. Do They know it’s Christmas? da BAND AID (1984). pelo menos. tríades comuns. que o caráter antêmico do IOCM I-V-vi-IV não seja de grande importância para Yes we can e para sua letra. notações de estímulo. e sua relação com o contexto político no qual o vídeo foi produzido e utilizado – estão. “pentatonicismo” etc. foi um tempo para mudanças e. imigrantes. ou seja. entre as tríades de Si  Menor e Sol  Maior no início da Marche funèbre de Chopin. infelizmente. ao contrário da harmonia quartal. os Beatles. por assim dizer.22. como a banda de rock formada por quatro homens (por exemplo. Material de Comparação Interobjetiva: veja IOCM. re-publicado no livro Studies in Musicology 1935-1975 (Berkeley: University of California Press.4) corresponde às citações do discurso de Obama sobre escravos. Estésico: Do francês esthésique (Molino. apresentar um sentido de comunidade. Musema: Menor unidade de significado musical.7-21. “delicado”.000 palavras. Além disso. também conhecido como “pêndulo eólio” (BJÖRNBERG. acordes de sétima.tagg. mulheres e sua determinação em superar as diversas formas de injustiça. Glossário: Para uma lista completa de termos e abreviaturas da análise musemática. os tempos são. Os acordes de Yes we can. que se pode comparar a um salmo ou hino. p. Yes we can combina. musema é definido na p. IOCM: Abreviatura de Material de Comparação Interob- jetiva (Interobjective Comparison Material). o universo harmônico comunitário progressista da revista Sing out! 39. ainda há muito mais a ser dito sobre a música do vídeo da eleição de Obama e suas conotações. existem no gênero das canções pop reconhecidamente desde. todas essas questões – a inclusão musical de expressões da comunidade. 1989). Entretanto.). espera-se. Harmonia de terças (tertial harmony): Neologismo criado por Phillip Tagg em 1998 para descrever harmonias baseadas na superposição de terças que se entrelaçam (por exemplo. p. v. 37 Nas palavras de Obama.64-88. Olhando de perto um exemplo muito mais recente e específico. o mesmo que recepcional e o oposto de construcional ou poïético. Yes we can acrescenta o rap e a pregação afro-americana àquela mistura de estilos. via Nattiez). “quarta aumentada”. divisão do poder e participação democrática que parece fazer parte do ethos e programa político de Barack Obama. de “mudanças prá valer” (“a-changing for real”). 1960). engajamento.org/articles/ptgloss.224-261 (SEEGER. invariavelmente envolvendo uma chamada de participação em uma causa nobre. veja www. 38 Este cantar ou declamar consecutivamente.). n. Mas este argumento se esvazia em pelo menos um ponto: quais gravações consistindo de frases curtas chamativas apresentadas por diversos artistas. por exemplo. Belo Horizonte.abretagg. que é quase totalmente falada. Na música. Paramusical: Qualidade de um elemento semiologicamente relacionado a um discurso musical específico sem ser estruturalmente intrínseco àquele discurso. formando uma série de conclamações. 17 . Neologismo criado por Phillip Tagg em 1983 que significa literalmente “ao lado da música”. 2010. trabalhadores. ao invés da produção/construção/criação/realização musical. acordes de nona etc.27-30 do Tagg’s Har­mony Handout em www. 18 . gravado em 31 de janeiro. 1963. Göteborg. Do They Know It’s Christmas?. VEGA. PMFC: Abreviatura de Campo Paramusical de Conota- ção (Paramusical Field of Connotation).youtube. Alice.. ______. Basicamente. babe. Country roads. Turnaround: Sequência repetida de acordes. 1984. 2008. na frase “vamp till ready”). CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL. 1989. She loves you. The Long way round. no. Nobody knows you when you’re down and out. ou invés da percepção musical. Polydor 2 LP-2625-005. The. CBS 25AP269. CLINE. (Acesso em 19 de outubro de 2009). ocupando uma frase de dois a quarto compassos. Charlie. Tagg’s harmony handout. A Few more rednecks. Derek and the Dominoes.ca. CBS 25AP271. p. Bob. prayers and promises. The Times they are a-changing. The. a sequência de acompanhamento I-vi-ii/IV-V. ______. ______. Buenos Aires: Losada: 1944. www. via Nattiez).org/ articles/ptgloss. FEED 1 [single]. ______. A Hard rain’s gonna fall’. “allegro” etc. 9208) www. DK 1. Referências de áudio: ABBA. The Freewheelin’ Bob Dylan. CBS 2105. (Acesso em 19 de outubro de 2009). Na música.html. Bell Bottom Blues. CLAPTON. www. 1970. DANIELS. v. Warner K56007. ou seja. Philip. por exemplo. 1964b.am”). p.22. n. IASPM . 1992. Allan F. 2008. 2008). 1971.73-106. ao invés de suas qualidades conotativas percebidas.tagg. Don’t think twice. DEREK AND THE DOMINOES. Os acordes de Yes we can. DYLAN. 2006. 1971. Waterloo. Radio special. 1963. ANDERSSON. OpenWide/Columbia 82876 80739-2. 1964a. Alf. Mardi Gras. DENVER. 1961.11.1.org/others/bjbgeol. Not ready to make nice. Poems. Parlophone 5015. London: Eddison Press: 1974. Parlophone PCS 7027. “acorde menor com sétima maior”. BAND AID. abbreviations. Air. Hasta mañana. On aeolian harmony in contemporary popular music. COOPER. Poïético: Do francês poïétique (Molino. “pentatonicismo” ao invés de “delicado”. Archiv 423 492-2 (1988). “quarta aumentada”. busca descrever um elemento da estrutura musical do ponto de vista de sua construção. Veja DEREK AND THE DOMINOES. Nobody knows you when you’re down and out (unplugged. William (“Will.. o fazer musical.i. used in writings by Philip Tagg. A Day In the life. 1970. Epic 1780. BACH. Crazy.tagg. etc. Patsy. Eric. MOORE. 1973.Nordic Branch Working Papers.com/watch?v=jjXyqcx-mYY (Acesso em 2 de fevereiro. é um adjetivo relacionado à poïesis. 1972. Org.org/articles/xpdfs/harmonyhandout. 1970. ADAMS. ______. Carlos. Patterns of harmony. BEATLES. ______. It ain’t me. Polar POS 1175. n. HARALAMBOS.html) (Acesso em 18 de março. P. “som de detetive”. Let it be.pdf . The Sound of Patsy Cline.youtube.tagg. Johann Sebastian. Referências de textos: BJÖRNBERG. foi denominando de EMFA (Extramusical Field of Comparison).7-21. Right on: from blues to soul in black America. 1974. TAGG.com/watch?v=5aDykZEATzk (Acesso em 2 de fevereiro de 2009). Popular Music. Orchestral Suite in D Major (BWV 1068). Another side of Bob Dylan. 2009). www. The Long way round. Apple PCS 7096. De 1979 a 1990. MCA MUP 316. Lena. 2010. John. DIXIE CHICKS. 1989 (também disponível online em www. It’s all right. Polar POLS 252. por exemplo. Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Panorama de la música popular argentina. por exemplo. também conhecida como vamp (termo usado. um neologismo criado por Phillip Tagg em 1991 para descrever um campo semântico conotativamente identificável que se relaciona com estruturas musicais (ou um conjunto delas). Let it be. YouTube. RCA Victor SF 8219. “con sordino”. Hej du glada sommar. also on Six Brandenburg concertos and four orchestral suites (Ouverturen). Glossary of special terms. 1731. o mesmo que construcional e o oposto de estésico ou recepcional. Per Musi. 1967. Leipzig: VEB Deutscher Verlag fur Musik (1973). Fantasy 4C062-9339.TAGG. geralmente em número de três ou quatro. Someday never comes. Belo Horizonte. Michael. 1992. Yes we can. neologisms. School’s out. THE PLASTIC ONO BAND. Capitol SW 425. 2008. The Great pretender. n. 1965. Legendary Woody Guthrie. Jungle (single com Shine a little love no Lado B). Fri information. Woman Is the nigger of mankind. 1966. ______. RÖDA KAPELLET. Mercury MT 117.youtube. Grand Coulee Dam. Jive ZB 44241. Bessie. 1973. George Jackson. Columbia TC 37408. lay. Shut up and sing (Cabin Creek Films/Weinstein. WILL. 1963. 1992. 2006).22. London.com/watch?v=JdxkVQy7QLM (Acesso em 8 de fevereiro de 2009). Odeon 7-1-3030. Stand by me. Bárbara. THE ONLY ONES. ______. also No Woman no cry live at The Lyceum. JOURNEY. Columbia River Collection. Hey Lolly Lolly. We’re not going to take it. Bringing it all back home. lady. KOPPLE. Belo Horizonte. HAMILTON. 1990. RADIOHEAD. Per Musi. Otis.I. CBS 45516. WINWOOD. 1963. 1975. 2010.1944b. THE FARM. 1974. Daniel and the sacred harp.AM. PROCOL HARUM. No Woman no cry. Deram DM 126. Nobody knows you when you’re down and out. Solidaritetssång för Chiles folk. THE BAND. Island IDBD1. Columbia KC 32460. 1. ______. Warner WEP 617. Rounder 1819 (2000). p. The Greatest songs of Woody Guthrie.. BOB & THE WAILERS. I can’t get enough of your love babe.. 1968. Instant karma. 1966. SPENCER DAVIS GROUP. Pat Garrett and Billy The Kid. Pye Int. Vol. Warner WEP 601. 1972. Imagine. 1967. PETER & GORDON. Capitol 45-CL 14571. FREBERG. The Asch Recordings. 1955.1961. A World without love. Sukiyaki. Topic TSCD 448 (1988). Barclay Panache 920014. ______. The Weight. Ben E. Who’s sorry now? MGM 12588. 1967. Hangman. 1945.TAGG. Neil. GUTHRIE. Shaved fish. Abilene. 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Puff (the Magic Dragon). 1973. 1974. ______. 7N25661. This Land is your land. 78 Columbia 14451-D. Röda Kapellet. 1944a. Lynyrd Skynyrd. Two good men. ______. Tradition 2058 (197?). 1963. Baby Blue. MCA DMCL 1798. Free bird. 1965. 1967. 1974. Smithsonian Folkways 40100 (1960). Connie. SMITH. 1971. ______. ______. All together now. Parlophone TCR 6078. GOLDEN GATE ORCHESTRA. Its all over now. WHITE. ______. 2010.  [IV]  I  hope  some  [V]  day  you’ll  [I]  join  us  [III  ‐ IV]  and  the [V]  world  will  [I]  live  as  one” {traduzindo: [IV] “Você pode [V] dizer que sou um   [I] sonhador  [III] mas não [IV] sou o  [I] único. 17.  enquanto que os de Crazy são G|B7|Em|Em|D  |D7  |G  |G  [D]| (balada um pouco lenta). Sol Maior. Per Musi.i. 11. Há. a quinta em relação àquela nota. Por exemplo.en. foi assistido mais de 21 milhões de vezes..22. Veja também as versões de CLAPTON (1971. é melodicamente bi-modal. Para cada acorde. A versão de Elida Nuñes de Uruchaqina. Os acordes de Yes we can. I shall be released (com swing). I Can’t get enough of your love babe (WHITE. enquanto que. Notas 1. Mas não se caminha ao redor de uma linha reta entre dois pontos. se baseiam claramente na direcionalidade V-I e não IV-I. Belo Horizonte. o que também acontece na área do pitch do jogo inglês rounders. Sobre o comentário de VEGA (1944) a respeito de bi-modalidade. Fá# e Si para o acorde de Si Maior (V) no tom de Mi Maior (I). Don’t think twice (com palhetadas sistemáticas. e “pah” são semicolcheias pesadas no registro médio. pela matriz VI–III–V–i  (F–C–E–Am). n. 4. O jazz modal e o free jazz estabeleceram outras regras tonais. 23. geralmente com alguns milisegundos de atraso. [“ ‘Sim. Veja www. sim. o andamento é q.  e os acordes The Charleston são B|D7|G7|C7|  F7|B  no tom de Si Maior e andamento q= 96. 18. não pelo menos dentro da física de Newton. começa com um acorde de Sol Maior com cordas soltas. na verdade. Por exemplo. 1963) e It’s all over now Baby Blue (Sol maior. foi disponibilizado online em fevereiro de 2008 e. consideravam a peça em Lá Menor. assim como os pioneiros que se embrenharam no oeste contra a natureza inóspita. Mi e Si para o acorde de Mi Maior. 2. as Dixie Chicks utilizam o mesmo efeito de nona adicionada (add9). 19. mais ela se parecerá com o círculo. Mi Menor. nós podemos’ ”. Infelizmente. 1972). o baixo toca primeiro a fundamental do acorde da cifra e. It  was  sung by immigrants as  they  struck  out  from  distant shores  and  pioneers  who  pushed  westward  against  an  unforgiving wildeness. mas sua ausência também acontece. A Few more rednecks (DANIELS.Am:║ de Southern man não será discutido neste artigo. Veja a paródia de Stan FREBERG (1956) da música The Great pretender dos THE PLATTERS (1955). ‘Sim. Lay. 15. No passo harmônico vai-e-vem. na verdade. É. O vídeo é de autoria de “Will. P. O termo lo-fi (low-fidelity.  ‘Yes  we  can’ “. Todos os músicos envolvidos nesta performance. 16. 20. mas quase todos os outros tipo s de jazz. Por exemplo. Estou considerando o tom da peça como Sol Maior (I grau). chama de pendu­lum) e o loop de acordes. O acorde da tônica Sol tocado na primeira posição marca o início de outras canções de GUTHRIE. referida por Orozco.am (Acesso em 15 de março de 2009). temos: [IV]  “You  may  [V]  say  I’m  a  [I]  dreamer  [III]  but  I’m  [IV]  not  the  only  [I]  one. comparando-se a sequência C  G  D  A  E  (plagal) de Jimi Hendrix com a sequência (B)  E A D G  (função dominante) de Sweet Georgia Brown. De fato. fazer acordes com pestana como aquele Si Maior de Yes we can.7-21. 1965). na primeira posição. As DIXIE CHICKS. lady. o acordes vão e depois voltam. 20 . O loop de acordes ║: Em |C . veja a nota anterior no presente artigo. também conhecida como Les folies d´Espagne e que serviu de tema para muitas variações no século XVII. O diamante que se forma no campo de baseball norte-americano tem quatro ângulos (as “bases”). embora a canção seja m Ré Maior com o loop de acordes ║: G|D|A|D :║. youtube. Meus comentários foram enviados à lista da IASPM em 19 de Janeiro de 2009. são Mi Maior. harmonicamente. Os acordes mais fáceis de se tocar no violão. A mudança de Si Maior para Mi Menor pode ser um tipo de progressão mais direcional. 1968). terminam ambas Not ready to make nice e Taking the long way round (2006) com V–IV[–I]. com função dominante (como um tipo de cadência interrompida).com/watch?v=IHH8bfPhusM (Acesso em 6 de fevereiro de 2009).160). 5. mas no loop. quando eu estava produzindo uma canção de solidariedade no Chile com nossa banda RÖDA KAPELLET (Solidaritetssång för Chiles folk. em modos que apresentam a 7ª maior a partir da tônica. Os acordes de Who’s sorry now são E|G7|C7|F7|B7|E   etc. Esta característica tonal pode ser derivada de sua preponderância relativa. School’s out (COOPER. Algumas vezes. no tom de Mi Maior e andamento  q = 88. que nunca foi oficialmente sancionado pela campanha de Obama. mas posso produzir esses oito acordes sem dificuldade. inclusive o bebop. lay (com órgão e violão de aço. a ordem pode ser inversa quando for o acorde do V grau. certamente. 12. Dó Maior. até julho do mesmo ano. que foi cantada nas festividades de inauguração da campanha de Obama. provavelmente de origem portuguesa. O modo jônico e o passo harmônico V-I aparecem em alguns tipos de música country. quero dizer a levada do contrabaixo em que “oom” são semínimas pontuadas leves no grave nos tempos 1 e 3. Seria interessante incluir neste estudo a progressão I–III–IV que ocorre na sequência ao final de Imagine de John Lennon (1971): IV–V–I–III–IV–V–I. optei. como All you fas­cists are bound to lose e Hey Lolly Lolly (1944). Por exemplo. O vídeo. Quando digo “one five oompah” [“I-V um-pá”]. No acorde de Dó Maior no início de Not ready to make nice (2006).TAGG. na gravação de CLAPTON (1972). p. A tonalidade menos comum seria Ré Menor. quando se lançaram de praias distantes. depois. ou “baixa fidelidade”) foi criado por Murray Schafer como antônimo de hi-fi (high-fidelity). termine em Dó Maior (IV grau). uma sequência mais idiomática do que V-I. Sol # e Ré # para o acorde Sol #. Fonte: www. Não tive qualquer instrução no violão. Pode-se caminhar ao redor de um quarteirão completamente retangular. 22.Am:║  / ║:Em - Em7 - C . Posso mesmo. Por exemplo. Dó# e Sol# para o acorde de Dó# etc. 8.] 24. Sitting on the dock of the bay também contém os sons de gaivotas na praia obrigatórios. Incidentalmente. As seguintes canções são também em Sol Maior. mas com uso do capotraste preso no braço do violão. filho de Bob Dylan. Note a distinção entre os acordes vai-e-vem (que BJÖRNBERG. São necessários três pontos pelo menos para se criar uma forma tri-dimensional. 10.wikipedia. mas na sua performance. tive de excluir esta referência porque o seu III grau não é um passo harmônico inicial e nem é seguido pelo vi grau. cantaram os imigrantes.org/wiki/Will. Não consigo lembrar de uma única “canção de protesto” popular dentro das tradições do folk ou folk rock na língua inglesa que não esteja em uma daquelas oito tonalidades. mas ocorre tão claramente no meio da sequência que apresenta mais o caráter de uma progressão tonal temporária do que de uma finalização. La Folia foi uma canção bastante popular no início do século XVI. mesmo que a matriz e a gravação ao final. Ocorre o mesmo com as sequências de acordes. 14. 1992) e WINWOOD (1967). p. 1969). embora sejam articuladas de maneira diferente do que acontece em The Times they are a-changing ou Yes we can: I pity the poor immigrant (em 3/4. Lá Menor. Os acordes de Abilene são G|B|C|G|A|D|G  C|G  [D]|  (com swing  4/4 rápido). uma variante dos acordes vai-e-vem (shuttle chords) no modo eólio (BJÖRNBERG.1989. 3. dentro das músicas tradicionais afro-britânico-americanas. Sol Maior e Ré Maior estão entre as tonalidades mais comuns neste tipo de música. e não em Dó Maior. 13. além do barulho das ondas do mar. 1974). se referindo à musica nessa tradição. segue quase como Quiaquenita — G  C  E  Am  (VII–III–V–i). Ré Maior e Ré Menor. os acordes giram ao redor. uma espécie de fluxo permanente entre Lá Menor e Dó Maior. 1989). Com a letra. 21. O contexto desta frase na letra de Yes we can é o seguinte: “ ‘Yes we can’. Lá Maior. Quanto maior o número de ângulos em uma forma bi-dimensional. Sol Maior é uma das tonalidades preferidas de DYLAN. 7. 1974). = 56. sem refletir o porquê naquela época.i. não se observa nenhuma mudança de campo harmônico. [IV] espero que algum [V] dia você se  [I] junte a nós [III  ‐ IV] e aí o [V] mundo  [I] viverá como um só]. Mesmo a sempre popular This land is your land (1944) de Guthrie. mais Pedro van der Lee (musicólogo e performer argentino-sueco e tocador de huayño). 9. Como explica Carlos VEGA (1944. por exemplo. Polo Margariteño também é bi-modal — G  D  (B)  Em  Am  B  Em —  e Rio Manzanares. 1989).. “No hay melodias en mayor y melodias en minor: hay simplemente melodias bimodales” [não há melodias em maior ou menor: há simplesmente melodias bi-modais”. 6. As outras canções mencionadas por Oro­zco apresentam características semelhantes.am”  (nome artístico de William  Adams) e foi dirigido por Jesse Dylan. nós podemos”. antes.html (Acesso em 18 de março. 1976). o qual tem sido conectado. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista. O Ré e o Fá# do acorde de Ré Maior no tom de Sol Maior são ambos adjacentes à fundamental da tônica de Mi Menor. 2010. do repertório político de esquerda da banda de rock da qual fui membro de 1972 a 1976.22. ensino e pesquisa. Sem qualquer consciência dessa conexão.TAGG. Vale a pena mencionar que esta canção aparece no “. A linha vocal é cantada por vozes masculinas jovens de maneira lírica e simples. A letra se refere ao tratamento injusto recebido por aprendizes na indústria e sua determinação de mudanças para melhorar de vida. álbum Spartacus. 27. . três capítulos de livro. ║: D|A|Bm|G :║. Menahen Pressler. Voltando a falar.  q = 120). Além de outras inversões de tríades. Toninho Horta. 25. Hear’n aid (1986) e Disco aid (1986). os suecos Svensk rock mot apartheid (1985).) dos Beatles. Sukiyaki começa com acordes vai-e-vem plagais (I-IV-I no tom de Sol Maior) mas. Belo Horizonte. 39 Entre os fundadores da revista Sing Out! estão Pete Seeger. Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). sem esperança. dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. 33. Bill Mays. Co-fundador da International Association for the study of Popular Music (IASPM) e mentor da Encyclopedia of Popular Music of the World (EPMOW). Henry Mancini. geralmente com respostas do tipo alienado. 34.║: I |V|vi|vi ] IV|IV|V|V :║ com o grau IV no compasso 5 iniciando uma segunda frase. 36. Para um hilariante pot-pourri de canções de derivadas do Canon de Pachelbel. Se várias pessoas cantam ou falam. entre elas Röda Kapellet. A história completa do incidente no teatro O2 Shepherd’s Bush Empire em Londres. seguindo até a ponte de 8 compassos ou até o final|. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro. Kristin Korb. 2009) Philip Tagg é Professor de Musicologia na Faculté de Musique da Université de Montréal (Canadá). assim como ocorre com as referências de RÖDA KAPELLET (notas de fim 7. Woody Guthrie. the saints are coming through” [“Cuidado. (2) uma bateria simples e discreta. mas elas o fazem consecutivamente e não simultaneamente: daí o termo stringalong. Tavinho Moura. bastante antêmica e politicamente progressista é a icônica canção sueca Man måste veta vad man önskar sig (1972. Brokenhearted contém um acorde de Mi diminuto e apresenta alternâncias bem marcadas para o campo de Dó Maior-Lá Menor para depois voltar a Si Maior-Sol Menor. elas certamente estão em companhia umas com as outras (e também com a canção). Na verdade. veja PARAVONIAN (2006). dentro do conhecimento que tenho sobre outras canções que se baseiam na sequencia do loop I-III-IV-iv.   A gritaria e o overdrive ocorrem em dois pontos desta gravação: 1:02 -1:24  (22”) e 2:06-3:08  (1:02”). .tagg. teórico. embora seu conteúdo contenha bastante drama e desesperança.singout. 30. etnomusicologia da música popular e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais. 35. Paul Robeson. Per Musi. com raiva. uma de cada vez e sucessivamente durante uma canção. quando a cantora Natalie Maines das Dixie Chicks expressou sua vergonha de ter nascido no mesmo estado que o presidente George Bush e suas consequências para aquelas três heróicas musicistas jovens do Texas é contada no tocante documentário Shut up and sing (PECK e KOPPLE. Um outro exemplo de rock antêmico com I-V-vi-IV em Sol Maior é Free bird de LYNYRD SKYNYRD (1973. n.. compositor e professor. A canção Creep é única. é uma expressão coloquial que significa “estar em companhia de”. O iii‐vi reaparece logo antes do ral­lentando final ao final de cada verso de I pity the poor immigrant com Joan Baez no disco A Hard Rain concert. fraternidade e futebol americano”  (artigo All together now da Wikipedia  (Acesso em 17 de março de 2009). 31. 1976). desesperado.org é um dos sites de musicologia e etnomusicologia da música popular mais visitados em todo o mundo. harmonia e semiologia relacionados à música popular. 2006). dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição. A progressão iii-IV em Baby Blue ocorre mais ao final de cada verso (em “Look out. Recebeu diversos prêmios nas áreas de composição. (4) um órgão Vox acompanhando com string pads praticamente inaudíveis junto com a melodia do verso no break instrumental. de acordo com o mesmo dicionário.. p. Os acordes de Yes we can. 28. Juarez Moreira. Experimente substituir o acorde de Dó Menor por Ré Maior ou Ré Menor ou Fá Maior. etc. significa “uma canção que alguém pode cantar junto” ou “uma ocasião de canto comunitário”. 29. onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. com temas favoritos da banda [The Farm]. Entretanto. Don’t stop believing  (1981) de JOURNEY tem um andamento mais moderado (q = 122) do que  as faixas de Twisted Sister e Only Ones. os pesadamente pontuados “one-five oompahs” de Paul McCartney. A instrumentação da canção consiste de: (1). Baseio esta interpretação de dramática desesperança não tanto na letra da canção. em 2003. suas quatro semínimas duras. corresponde a 1:34. 29. esta sequência harmônica faz parte de um período de 8 compassos . mas na harmonia. Egberto Gismonti. musicologia. onde orientou mestrandos e doutorandos e desenvolveu cursos de musicologia. Seu site www. (3) uma batida simples do violão. A sequência de acordes nos 12 compassos dos versos de A World without love é a seguinte: ║: E|G#|C#m|C#m|E|Am|E  |E  |F#m  |B  |E  ||1ª casa:  C  B turnaround :║ 2ª casa: E . análise. . Roberto Corrêa. 39%  da canção Creep. . os santos estão passando” no verso 1]. escreveu obras corais e canções populares. The Weight e I pity the poor immigrant de Dylan também ocorre em outra canção bem conhecida que utiliza a partida harmônica  I-iii [-vi] em andamento andante: A Day In the life  (1967: “I read the news today” [“Leio as notícias de hoje”]. Mais apropriada. O tipo de letra contando histórias que se observa em Hangman. Para uma descrição e história da revista.. É autor e colaborador de diversos programas de rádio educacionais relacionados à música popular. Mesmo assim. revelam uma instrumentação muito diferente de Yes we can. amplificadas no piano e arpejos de semicolcheias pseudo-clássicos na guitarra elétrica. 21 . 32. pela última vez. 38. com sua letra que clama alguém a não desistir (“Não pare de acreditar”).  q = 120) da banda progressiva sueca HOOLA BANDOOLA. Grupo UAKTI. O verbo string along. como é comum no tipo de análise musical exagerada que os alunos geralmente apresentam. Túlio Mourão e Fabiano Araújo Costa. e não em inglês. que dura 4:00. 37. Trabalhou também na University of Göteborg (Suécia) e Swedish Council for Research in the Humanities and Social Sciences (Suécia). Foi professor do Institute of Popular Music da University of Liverpool (Inglaterra). 26. 33). a letra é em sueco. Mas.D - Em - C) para acompanhar as seções narrativas da montagem de 10 minutos de Lärling (RÖDA KAPELLET. Midori. progride harmonicamente para I-iii-vi-V no compasso 5 do verso. tais como socialismo.  “A crowd of people stood and stared” [“Uma multidão de pessoas parou e encarou”]..org/sohistry. publicou dezenas de artigos nos mais prestigiosos periódicos. Alan Lomax e Irwin Silber. É organista erudito e tecladista em bandas de rock e pop. nossa banda também utilizou este I-iii[-IV] por razões narrativas semelhantes em Revolutionens vagga (RÖDA KAPELLET. talvez valha a pena comentar que utilizamos o loop I-V-vi-IV em Sol Maior (G . mesmo com raízes estilísticas na tradição pop/rock anglo‐americana. Arnaldo Cohen e músicos populares como Hermeto Pascoal. análise. Yoel Levi. a canção tem algum valor antêmico. veja www. Entretanto. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma. no qual dispobiniliza gratuitamente significativa parte de sua extensa obra didática e de pesquisa. Como compositor. P. Alguns exemplos destes grupos são Artists united against apartheid  (1985). de acordo com o Oxford Concise English Dictionary (1995). Singalong.7-21. e repete o loop I-V-vi-IV  durante os versos. cínico etc. 1974). na música erudita. os procedimentos peculiares de Hermeto (músico de formação intuitiva. aos termos tonalismo. harmonia. Belo Horizonte. arranjador e multi-instrumentista Hermeto Pascoal ao longo de suas fases musicais. F. música da aura. mas autodidata como Hermeto Pascoal). música popular brasileira. a teoria não me usa. religiosa e profissional) podem ter influenciado a combinação vertical de sons na sua criação musical. harmony. modalism. “Eu uso a teoria. dentro da sua obra. social. Transformação. atonalismo. polimodalism. autodidacticism in music. paisagem sonora e música concreta. aura music. musical analysis. Vitória. iron scraps music and present-body method. Per Musi. auto-didatismo em música. modalismo.com Resumo: Estudo panorâmico sobre a trajetória musical e a formação das linguagens harmônicas do compositor. polimodalismo. ARAÚJO. .22-43. atonalismo. F.22. jul.BORÉM. Acordes Vagantes)..22. It is observed how elements of his life experience (cultural. racional. Regiões Intermediárias. ao tonalismo. assim como sua grafia especial de cifras (que PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. Palavras-chave: Hermeto Pascoal. SCHOENBERG (2004. Conhecer o percurso não-convencional de sua formação nos mostra como surgem. . Hermeto Pascoal: life experience and the formation of his harmonic language Abstract: Panoramic study about the musical trajectory and development of the harmonic languages of the Brazilian composer.br Fabiano Araújo (UFES. música dos ferros e método do corpo presente.. bem como a sua proposta e utilização de conceitos como música universal. Substituição. Belo Horizonte. Keywords: Hermeto Pascoal. São observados como elementos de sua experiência de vida (cultural.” Hermeto Pascoal (CAVALCANTI. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. 2010 22 explicita a condução de vozes). Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica Fausto Borém (UFMG. languages which are usually associated with the “classical” terms tonalism. etnomusicologia brasileira. arranger e multi-instrumentalist Hermeto Pascoal through his musical phases. religious and professional) may have influenced the vertical combination of sounds in his musical output as well as his proposition and usage of concepts such as universal music. n. paisagem sonora e música concreta. se acomodam e se integram.. ES) armoniah@gmail. que tem sido associada. bem como a maioria de sua vasta produção. Brazilian ethnomusicology. Regiões. modalismo. as diversas nuances de sua linguagem harmônica.. Tonalidade Suspensa. social. polimodalismo. universal chord notation. Entretanto. p. Tonalidade Flutuante. 2010. se associa à música tonal. linguagens que são geralmente associadas. 2004) 1 – Introdução Este estudo panorâmico tem o objetivo de apresentar a formação da linguagem harmônica na trajetória musical de Hermeto Pascoal. podem revelar um pensamento estruturado que. o europeu Arnold Schoenberg (músico de formação erudita. soundscape and concrete music. se nasceram de sua intuição e autodidatismo brasileiros. . na música erudita. atonalism. Brazilian popular music. cifragem universal.. Ao desenvolver o princípio da Monotonalidade (ou seja. encontram eco e explicação nos princípios sistematizados por outro importante compositor do século XX. a manutenção de apenas uma tônica em uma peça ou porções significativas da mesma) e seus conceitos relacionados (Tonalidade Expandida. O conjunto de 366 peças do Calendário do som.Aprovado em: 13/03/2010 .dez. 239 p. 1999) buscou simplificar as explicações para os crescentes afastamentos harmônicos proporcionados Recebido em: 21/08/2009 . análise musical. não letrada) de se afastar e de se aproximar dos centros tonais em cada uma delas. MG) fborem@ufmg. 2001. melodias da fala. shows nacionais e internacionais com outros solistas e grupos. Caruaru. ainda não terminou este trabalho. Lúcia CAMPOS (2006) abordou a influência do forró. desenvolvimento da notação musical. VI (1978-1993): consolidação da Escola Jabour com Hermeto Pascoal e Grupo. Torres. politonalidade e atonalismo. Luiz COSTA-LIMA NETO (1999) estudou a caracterização de elementos rítmicos. 2010a. Grosso modo e quase cronologicamente. Entretanto. timbre e contorno melódico. VII (1994-2002): socialização da Escola Jabour. período de prática instrumental e trabalho informal como músico (fole de oito baixos/pandeiro) em Lagoa da Canoa e adjacências. II (1943-1949): da infância à adolescência. cujo repertório e práticas de performance quase sempre evitam os conceitos de modulação. música e tecnologia. muitas vezes conflitantes. experiência com gravadoras de pequeno porte. 2009d). arranjador e multi-instrumentista. a trajetória musical de Hermeto Pascoal pode ser dividida em oito fases: I (1936-1942): do nascimento à idade escolar. Agradecemos a Hermeto Pascoal. TABORDA (1998) busca explicar a obra de quatro músicos populares brasileiros (Hermeto Pascoal. melódicos e timbrísticos no período de Hermeto pascoal e Grupo (1981-1993). 2000. Luiz COSTA-LIMA NETO (2000. vídeos e gravações). O site oficial do compositor informa que o escritor baiano Roberto Torres “.44-62). . 2007). 2008. Aline e PASCOAL. 2008. ainda há uma grande dificuldade de obtenção de fontes consolidadas e atualizadas sobre esse tema. . IV (1958-1968): migração para grandes centros do Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo). Neste cenário. vida e música de Hermeto Pascoal para crianças (VILLAÇA. textos. está escrevendo a biografia do Hermeto há mais de 20 anos. choro e bandas de pífanos na rítmica do compositor. grupo e big bands. consolidação profissional (sanfona/pandeiro) e experimentação com o piano. gravações como solista. pois oferecem discussões substanciadas em fontes etnomusicológicas primárias. 23 . instrumentos musicais e festas do interior em Lagoa da Canoa (Alagoas). 2009c). MORENA e PASCOAL (2009a. RODRIGUES (2006) analisou o pianista Hermeto Pascoal juntamente com mais sete outros destacados pianistas da música popular brasileira. Entre os trabalhos acadêmicos sobre o compositor. . ARAÚJO. p. Quando não indicadas por citação. CAMPOS (2006). a partir de conceitos harmônicos de Schoenberg (sistematizados e discutidos por DUDEQUE.BORÉM.22-43. .. Jards Macalé e Chico Mello) com base em matrizes eruditas europeias. F. entrevistas com o próprio compositor e seus parceiros em grupos diversos. Ao que tudo indica. 2009b. Jovino Santos Neto e Itiberê Zwarg por terem generosamente revisado as informações históricas deste artigo. ARRAIS (2006) focou em aspectos do ritmo. VILLAÇA (2007). n. PRANDINI (1996) concentrou seu estudo nos elementos rítmicos. as informações históricas incluídas neste artigo resultam de um cruzamento e concordância de dados das seguintes fontes: PASCOAL (2009a. por Paulo José TINÉ (2002) dentro do contexto do ensino da música popular. mudança do foco de sanfoneiro de regional para pianista de grupos instrumentais. Hermeto Pascoal e sua obra constituem um rico manancial de temas de estudo. F. É grande o número de discrepâncias em relação a datas. que seria “. Dentro do viés da semiologia. 2009b). Per Musi. educação musical. em que a trajetória musical de Hermeto Pascoal serve de contexto para focos diversos. por notas alteradas estranhas à tonalidade inicial. 2010b). 2009b. shows com seu duo. . rompimento com as grandes gravadoras multinacionais e projeto de socialização da obra de Hermeto Pascoal na internet (partituras. No mesmo site.”. SIXPACK (2009). organologia. projetos musicais isolados. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. e proveria temas para diversas áreas de pesquisa em música: composição. Esta perspectiva inovadora foi aproveitada. harmônicos. nomes de pessoas. Aline Moreno. desenvolvimento como compositor e multi-instrumentista e experiência em festivais da canção. período de atenção e familiarização com sons de animais. Belo Horizonte. V (1969-1977): viagens aos Estados Unidos. o pesquisador que mais conhecimento de causa tem a respeito da vida e obra do Hermeto” (MORE- NA. K.. 2009c. procurando avançar a proposta de TINÉ (2002). A maioria das informações históricas nestes estudos quase sempre parte de artigos divulgados pela mídia. João Pessoa). 2010a. consolidação internacional como compositor. . III (1950-1957): migração para grandes cidades do Nordeste (Recife. Caetano Veloso. harmônicos e melódicos característicos em improvisações que transcreveu de gravações de Hermeto Pascoal. ARAÚJO (2006). no Brasil. como a escrita do Calendário do som. Hermeto. etnomusicologia. VIII (2003-presente): parceria com Aline Morena e formação do duo multi-instrumentista Chimarrão com Rapadura. Luiz Costa-Lima Neto e Lúcia Campos são exceções. explicando a manutenção e afastamento de centros tonais na música de Hermeto.22. COSTA-LIMA NETO (1999. objetos. músicas e lugares a respeito de Hermeto Pascoal. desenvolveu um modelo de análise harmônica aplicado à realização de leadsheets de peças selecionadas do Calendário do som. 2010. 2006). destacam-se sete dissertações de mestrado. sociologia e psicologia da música. performance.. encontra-se também uma errata de duas páginas (provida por Aline Morena e pelo próprio Hermeto Pascoal) sobre outra fonte importante: o livro para crianças O Menino Sinhô. 2010b) se destaca como o autor que mais publicou trabalhos sobre a vida e obra de Hermeto Pascoal em periódicos no Brasil e no exterior (veja seu artigo O cantor Hermeto Pascoal: a voz como instrumento neste número de Per Musi às p. PRADINES (2006) e MARCONDES (1998). A trajetória musical eclética de Hermeto Pascoal “A minha música começou no meu cordão umbilical. Do universo musical de sua infância. . as festas e cantos populares de Lagoa da Canoa. a tocar pandeiro na rádio. aquela hastezinha. podia assistir aos ensaios de grupos orquestrais com os maestros Guerra-Peixe. Fabíula [escrito assim mesmo!] e Flávio. eu tô é frito!” (VILLAÇA. Juntos. Hermeto Pascoal nasceu em 22 de Junho de 1936 no sítio Olho d’Água em Lagoa da Canoa. . CD 4. . nome imposto pelo produtor da rádio Amarílio Niceias e referência à cor rosada e cabelos avermelhados dos três albinos.8-25). p. . onde foram contratados pela Rádio Tamandaré. os gritos dos vendedores na feira da vizinha Arapiraca (VILLAÇA.26). rock-and-roll.. . para a rádio de Garanhuns.5-7). para comprar um bonito para você” (BARROSO. e Vergelina Eulália de Oliveira – ou Dona Divina]. . iniciou-se no fole de oito baixos. que antes de morrer considerou Hermeto “o Beethoven do século XX” (SIVUCA. F. viu “aquela bola branca. p.” Hermeto Pascoal (BARROSO. . os músicos Vicente Cego e Juvenal Tatu que vinham tocar no bar do pai. ao que respondeu: “Maestro. Per Musi. teoria ia me atrapalhar” (BARROSO.22. apenas com botões. Vim até aqui para aprender como é que se escreve a música!” e logo decidiu que “Música não é para ver. F. 2007. sem teclado. Fátima. O maestro Giusepe Mastroianni da Rádio Difusora de Caruaru percebeu que o jovem talento tinha ouvido absoluto. Resultado: suspenso do trabalho por quinze dias. No início de sua carreira profissional. Hermeto foi enviado para a rádio de Caruaru e. eu vou vender aí uma vaca. Na década de 1960.. . Hermeto. . Hermeto Pascoal percorreu um caminho ligado à prática de música ao vivo nas rádios. apesar da tentativa de Sivuca.”. em meio ao oceano desconhecido de símbolos musicais. onde passa a tocar sanfona no regional de choro da Rádio Jornal do Commercio. p.51). Aos 11. . Esse oito baixos em Dó de seu pai era essencialmente diatônico. também conhecido como harmônico ou péde-bode. p. o meu primeiro som foi esse. se você ficar nesse negócio de tocar pandeiro. Flávia. no trio foi também imposto a Hermeto o apelido de “Sivuquinha”. mudou-se para o Rio em 1958. recebeu da família o carinhoso apelido de Sinhô (VILLAÇA. viu surgir a Bossa Nova. revezando fole e pandeiro em bailes da região (VILLAÇA. retorna ao Recife. os três formaram o trio O Mundo Pegando Fogo. segundo relata Hermeto em uma entrevista a Álvaro CAVALCANTI (2004. Aí. ao ver o talentoso filho tocando escondido seu fole. Atraído pela efervescência musical do sudeste do Brasil. n. com apoio da família. mas incluía um Fá sustenido. as sobras de ferro do avô ferreiro Sena da Bolacha. a Jovem Guarda. pela simplicidade. Mas deste ouviu que não poderia aprender música ali devido à sua deficiência visual. então. por não aceitar tocar apenas pandeiro e ser chamado de “Sivuquinha”.4243). “filho de agricultores [Pascoal José da Costa . Conheceram Sivuca. RODRIGUES. deixou de lado esta aprendizagem. para tocar sanfona com Pernambuco do Pandeiro em rádios. você não vai pra frente não. Não conhecer o clássico do frevo em Recife foi fatal. (BARROSO. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação.. . Belo Horizonte. mesmo sem saber ler música.48-49). porque aquela “. 2000) e o ajudou a ingressar na Rádio Jornal do Commercio. ainda de calças curtas. quatro tempos. 2009). 2007. p. Zé Neto. 2000). . Hermeto teve contato com diversos gêneros musicais – “bossa-nova. 2009). ouça a faixa única entre 7’:48’‘ e 8’:05’’). o que levou Hermeto a procurar a escola de música do maestro e violinista Laranjeiras. os animais. Seu Pascoal se animou. o que o levou a ser incluído no time de instrumentistas . 2010. o grupo agradou. tocou no regional de Romualdo Miranda. aos 19 anos. também albino. Zé Neto mudou-se para o Rio de Janeiro a convite de Luiz Gonzaga. no município alagoano de Arapiraca. formou a dupla Os Galegos do Pascoal com o irmão Zé Neto. um boi. Os Galegos do Pascoal mudaram-se para o Recife em 1950. Hermeto foi obrigado. No ambiente das rádios. p. Mas uma simplicidade dentro da qual Hermeto já vislumbrava combinações pouco usuais. . . até o momento em que o locutor pediu Vassourinha. 2009). papai vai comprar um para você. samba-jazz” (VILLAÇA. Música é para sentir. o Método para Acordeon do carioca Alencar Terra onde. de lhes salvar a pele. 2. No progra24 ma ao ar livre A Felicidade bate à sua porta. 2007. cuja filha Ilza tornou-se sua esposa em 1954. sem ensaio e com instrumentos novos que Hermeto e Zé Neto mal conheciam (sanfonas de 80 e 120 baixos. 2007. Jackson do Pandeiro lhe deu um conselho: “Hesmeto [Jackson não conseguia falar Hermeto].ou Seu Pascoal. Não vê eu. Ainda no Recife. pelo menos por um tempo. também faziam partes as flautas (pifes) de talo de mamona (carrapateira). em meio aos festivais da canção. Fábio (músico multi-instrumentista como o pai). Aos sete anos. que sentiu em Hermeto “. onde seu irmão já estava. com quem viveu 46 anos e teve seis filhos: Jorge. albino e de olho virado” (O. . a mínima pretinha. Logo se familiarizou com os sons que o rodeavam e vinham de fontes diversas: o fole do pai. p. Hermeto parece ter se identificado com aquele que é considerado o mais sofisticado harmonicamente. Foi quando eu nasci. estou começando a cantar. 2007. para recomeçarem da estaca zero (VILLAÇA. Duda e Joaquim Augusto. Mas pediu ao amigo Zé Gomes que lhe comprasse um livro de música.22-43. . . pela primeira vez e aos dezesseis anos. “. 2009). Na estreia do grupo no Largo da Paz. 2003). Embora não se alinhe a nenhum destes movimentos. Música eu já sei. Se eu deixar de tocar só porque não consigo ler as notas no papel. Aceitando o convite de trabalhar no regional da Rádio Tabajara em João Pessoa. p. o sino da igreja. as canções de protesto e o Tropicalismo. não vou ficar no pandeiro toda hora não”. [para] marinheiros da base militar americana” (VILLAÇA. Clóvis Pereira.BORÉM. 2007. Com o convite do guitarrista Heraldo do Monte para trabalhar na Boate Delfim Verde. 2007. ‘o fogo sagrado’ ” (SIVUCA. eu não preciso das aulas para aprender música. Por parecer um pequeno homenzinho.36-37). ao invés do fole de 8!). ARAÚJO. transfere sua técnica da sanfona para o piano e aprende a tocar “jazz para americano ouvir.você vai agora é tocar. começou a compor e construiu uma grande reputação na Paraíba. . No Rio de Janeiro. Uma vez eu dei uma porrada nele. Em 1972 e 1973. Em 1985. .22. foi inaugurada uma escola municipal com seu nome em Campestrinho (Alagoas). . ele está sendo tratado como um modismo. flautista e saxofonista Copinha no Hotel Excelsior. Eu acredito nisso. teoricamente. mas sentia que não poderia se submeter para sempre às exigências dos shows. em dezembro de 78. . O conflito de Hermeto com a intelligentsia urbana representada por Geraldo Vandré [diversas vezes acompanhado pelo Quarteto Novo]. errei e dei uma porrada nele. Em 1969. . ele chegou e disse: ‘Que pena que eu não posso gravar todas as suas músicas!’. mas que fazia parte do instrumental básico das rádios e boates. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. participou dos LPs Natural Feelings (1970) e Seeds On the Ground (1971) de Airto.1979-1980b. dois. recebeu o título de cidadão honorário de Arapiraca. de outro. Dave Holland. 2006. Hermeto e Miles Davis se conheceram.” (COSTA-LIMA NETO.24) “Nem modernismo nacionalista.83). que eram bem diferentes de tudo aquilo que ele fazia.1979-1980b.124). p. sempre atento e autodidata. afirmou Theo de Barros. . 2010. Em 1984. Disse que queria colocar algumas no disco dele e eu me senti à vontade para brincar e dizer que eu veria quantas músicas deixaria ele colocar no disco dele. instrumento caro e trancado a “sete chaves”. Através de Airto. . . e com a vanguarda da música popular [termo que não se aplica aqui.. 2002) Ao final. marcaram o caminho pessoal que Hermeto escolheria em seguida. ex-companheiro de Hermeto no Quarteto Novo. 2010a. 2008. Lá.77). de uma verdadeira maratona de música improvisada. p.]” (BAHIANA. Tocou piano no conjunto e na boate do violinista Fafá Lemos.. Art Farmer. três shows. Wayne Shorter. E. Aí ele fez o show dele. . p.22-43. Depois. segundo Hermeto Pascoal] representada por Gilberto Gil [o qual o Quarteto Novo recusou acompanhar na música Domingo no parque]. portanto. John McLaughlin. . sob a patrulha ideológica do nacionalista Geraldo Vandré. fez parte. mudou-se para São Paulo onde. Dizzy Gillespie. atuando como compositor. A partir daí. entre outros. . . em 78 – o Festival de Jazz de São Paulo. . 2008. p. Substiuindo o acordeonista Chiquinho do Acordeom. eu assisti o show. Laura Fygi. de um lado.14) Finalmente. Ao ponto de eu ir pra casa dele e a gente lutar boxe. A partir daquele dia houve aquela simpatia geral. de fato. em 1964. recebeu os prêmios de Melhor Solista e 25 .49) e de Pernambuco do Pandeiro na Rádio Mauá (CAMPOS. . Quando eu cheguei lá e tal.Festival Internacional da Canção de 1972 e de O Porco da festa cantada por Aleuda e ele no Festival Abertura da Rede Globo de Televisão em 1975. .82-83). Hubert Laws.BORÉM. Herbie Hancock. só começou a registrar dados positivos de crescimento a partir de 1974. Opa Trio (grupo uruguaio que acompanhava Flora e Airto). cidade vizinha à sua cidade natal. . . F. dedica-se ao estudo da flauta e saxofone. . Abdullah Chhadeh. . os primeiros murmúrios da música instrumental – sem texto. a convite da cantora Flora Purim e do percussionista Airto Moreira. 2000. arranjador e instrumentista. além de Hermeto e Airto Moreira. meio carrancudo. . a música instrumental tinha no Brasil pelo menos dois grandes nomes. e a tendência ao modismo. Acompanhou cantores de festivais como Geraldo Vandré. . Ron Carter e Thad Jones (COSTALIMA NETO. Jhonny Griffin. incensurável e livre – se fizeram ouvir. 2000). A música dele eu não achava boa naquela época. que se interessou logo pelas suas músicas: Mostrei a ele umas 12 músicas. n. Hermeto logo expandiu sua cultura musical tanto na música instrumental quanto acompanhando cantores em boates.’ ” (BAHIANA. o vácuo após o relativo declínio da canção brasileira com o fim dos grandes festivais abriu o espaço para a música instrumental. Isso foi antes de começar o show. se apresentou como compositor de Serearei. A realização. p. F. conheceu Miles Davis. .Quando acabei de tocar. através de Airto. Aí eu falei: ‘Mas como você sabe que eu quero te dar todas pra gravar? Eu vim também pra gravar aqui.79-81) “Ao se encerrar a década [de 1970]. ele se sentou. Hermeto lembra da súbita amizade que se estabeleceu entre os dois: “Aquele jeitão dele. Mas ele aí me ligou e disse que queria me ver de qualquer maneira. Hermeto trajava terno e gravata e mantinha o cabelo bem curto. dois nomes que exemplificavam perfeitamente essa passagem da linha jazz/bossa para uma linguagem mais misturada e mais ampla: Egberto Gismonti e Hermeto Paschoal [sic. . você tem que acreditar em alguma energia celestial. senti um vibração bonita dele. que mandava notícias otimistas de sua experiência de tocar com Miles Davis. Hermeto sabia que acompanhar cantores era o ganhapão mais certo. p. Jack DeJohnette. após um show do jazzista norte-americano. ‘Não sei se felizmente ou infelizmente. participaram muitas lendas do jazz: Keith Jarret. Mais tarde. 2009). nem cosmopolitismo antropofágico. Barney Kessel. Joe Pass. Nesse disco histórico. levei um violão. Além de tocar em casas noturnas como Stardust. que levaria Hermeto a uma era de maturidade e autonomia musical: “O predomínio do texto atingiu seu pique máximo com os festivais. depois eu fui em um. . ‘Ouço muita gente falar do Hermeto.” (COSTA-LIMA NETO. aquele rock. em setembro – serviu para atestar a existência inequívoca de um interesse pelo gênero. Steve Grossman. ARAÚJO. . p. Per Musi. . a convite de Airto Moreira. . mas o jejum forçado imposto às plateias não criou de imediato um interesse por música instrumental. . Edú Lobo e Marília Medalha (com Ponteio. Para estudar o piano. Eu vou escolher as que eu quero te dar’. 1º Lugar no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record em 1967). Hermeto viajou para os Estados Unidos. fora incluídas Nem um talvez e Igrejinha no disco Live evil lançado por Miles Davis em 1972. rádio e TV: “. toquei um monte de música[s]. do Trio Surdina com Fafá Lemos e o violonista Garoto. . Hermeto tem recebido muitas homenagens e prêmios como reconhecimento pelo seu trabalho. 2007. como a Chicote. extremamente bem sucedida. Belo Horizonte. só cresceu o reconhecimento de Hermeto em todo o mundo e a experiência de interagir com grandes artistas como Stan Getz. participou do conjunto do maestro.. Pedro Jóia. Hermeto contou com o “jeitinho brasileiro” de Heraldo do Monte na Boate Delfim (VILLAÇA. Chick Corea. fundou o Sambrasa Trio (ROBINSON. (IVANOV. brevemente. cantando e solando. p. “herdeiros ou continuadores (muitas vezes sobreviventes) da linhagem da bossa-nova” por Ana Maria BAHIANA (1979-1980b.” (BARROSO. nos derradeiros anos 60 e primeiros 70 – e quando a censura empenhou esforços para emudecer a música brasileira. Joe Farrel. cantada por Alaíde Costa no VII FIC . Em 1961. com o fim do Sambalança Trio (que tinha o pianista César Camargo Mariano). Joe Zawinul. Mas poucos entendem’. p. 2009) e passou a residir com ela em Curitiba. Por Diferentes Caminhos: Piano Acústico (1988). buzinas. clavinete. ruídos e gritos da voz. . Melhor Arranjador . maestro e instrumentista convidado em diversos discos.br (PASCOAL. lançou Brazilian Octopus. assustado com a violência no Rio de Janeiro.2 (1958) com José Neto e seu Conjunto. no disco de estreia Caminhos (1964) do baiano pioneiro da bossa-nova Walter Santos. os discos em que participa como um dos solistas principais ou discos em participa como arranjador ou diretor artístico: Hermeto (1971). vol. perus. sua apresentação no Queen Elizabeth Hall foi considerada pelo jornal The Guardian como o maior concerto de música popular da década. No Rio. n. chaleira. assovio. . . sobre sua obra. gansos. Evil (Sony.22.. o DVD Chimarrão com Rapadura foi escolhido como um dos dez melhores em todo o mundo pelo historiador e produtor de jazz Arnaldo DeSouteiro. Festa dos Deuses (1992). máquina de costura. e a convidou para dar uma canja no dia seguinte com o seu Grupo em Maringá. F. Só Não Toca Quem Não Quer (1987). Melhor Disco Instrumental com Por Diferentes Caminhos e Melhor Música Instrumental por Pixitotinha em 1989 e Melhor Arranjo pelo disco Kids of Brazil do duo de violões Duofel. Ensinoulhe viola caipira. cravo. começou a gravar música instrumental em trios e quartetos: o disco Conjunto Som 4 (1964) com o Som Quatro. Per Musi. 2006).” (ALBIN. Cantiga de Longe (1970) de Edu Lobo. fole de oito baixos. triângulo – e em instrumentos exóticos. Em 2004. bacias. 2010. bandola. F. garfos. Em 2002. p. . Chimarrão com Rapadura (2006) em CD e DVD em duo com Alina Morena. p.22-43. Seu site oficial www. sapho. panelas. bombardino.. 2009a). como bocal de tuba. Hermeto Pascoal: eu e eles (1999). Tide (1970) de Tom Jobim. Lagoa da Canoa. Pau Brasil e Hermeto Pascoal ao vivo. 2009c) lista 35 gravações comerciais. o disco Em Som Maior (1965) no qual liderou o Sambrasa Trio. Hermeto Pascoal/Renato Borghetti . Melhor Disco Instrumental em 1993 com o disco Festa dos deuses. disco que ainda recebeu dois troféus no Prêmio Tim de Música. . Em 2007. 13th Montreux Jazz Festival (1982) junto com Elis Regina.BORÉM. versátil multi-instrumentista e dotado de grande curiosidade em relação aos timbres. Maraponga (1978) de Ricardo Bezerra. Estreou como pianista em gravações no disco Boate em sua casa. o que inclui apenas os discos em que é o artista principal ou líder de grupos. harmônio. Hermeto aparece como arranjador. 141): No meu Brasil é assim (1954). surdo. violão. Série Música Viva (1993). pandeiro. 2009c). no fim de 2003. Robertinho no Passo (1978) de Robertinho do Recife. Hermeto Pascoal é mais conhecido tocando sanfona. ARAÚJO. Live. Ainda na década de 1960. Estima-se que Hermeto Pascoal tenha composto mais de 4. objetos e animais. aparecendo também como compositor pela primeira vez com a música Coalhada. gaúcha com alagoano) no Sesc Vila Mariana em São Paulo (MORENA e PASCOAL. durante um workshop em Londrina conheceu a cantora Aline Morena. cavaquinho. balas. descrita por um crítico argentino como “Impactante. ao vivo (1993). Elis Regina. pratos. piano. con una capacidad vocal asombrosa” (MOUJÁN. 2006. colocou à venda sua casa na Zona Oeste. recebeu o Prêmio Sharp de Música por cinco vezes: Melhor Grupo em 1987. Cérebro Magnético (1980). caixa. Em São Paulo.92-97.. Em seguida ela o acompanhou ao Rio de Janeiro e.59. viola caipira. órgão. baldes. Taiguara (1976) de Taiguara. respectivamente. facas. recém-aprendida. Kids of Brasil do Duofel (1996) e Stephan Kurmann Strings Play Hermeto Pascoal (2008) de Stephan Kurmann. apitos. flauta de bambu. Para citar panoramicamente alguns de uma enorme lista. craviola. fluguel. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. Zabumbê-bumá (1979). Hermeto Pascoal & grupo (1982). garrafas. temos: Roteiro Noturno (1964) de Mauricy Moura. . foi homenageado pelo SESC com a exposição Hermetismos Pascoais. patos e coelhos (PASCOAL. o disco que teve o mesmo nome do . tem se expressado como virtuoso nos discos (e shows) em muitos outros instrumentos convencionais. hermetopascoal. Instrumento do CCBB (1993) de Renato Borghetti (com Hermeto Pascoal). 1972) de Miles Davis. O Melhor da Música de Hermeto Pascoal (1998). uma de suas músicas mais tocadas até hoje. o qual recebeu o nome do grupo e no qual incluiu O Ovo. estreou com ela o duo Chimarrão com Rapadura (ou seja.CCBB. Em outubro de 2002. não lançado comercialmente). Natural Feelings (1970) e Seeds On the Ground (1971) de Airto Moreira. muitas das quais estão sendo editadas pelo exdiscípulo.000 músicas até 2007 (VILLAÇA. Belo Horizonte. galinhas. Slaves Mass (1977). “. mangueira com voz. escaleta. berrante. trumpete. iefone. A estreia de Hermeto em gravações comerciais foi como sanfoneiro em três discos de Pernambuco do Pandeiro e seu Regional (CAMPOS. PRADINES. entre eles teclados eletrônicos diversos. pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. You Can Fly (1976) e Encounter (1977) de Flora Purim. Município de Arapiraca (1984). porta do estúdio. Hermeto. flautas e saxofones. em março de 2004. Orós (1977) de Fagner. Gravou também no disco Ritmos Alucinantes (1956) do maestro Clóvis Pereira. A sua produção fonográfica também é grande. bateria. Ao Vivo Montreaux Jazz Festival (1979). Ainda em 2002. especialmente 26 se levarmos em consideração as dificuldades históricas que as gravadoras lhe impuseram. Mundo Verde Esperança (2002). Missa dos Escravos (1977). piano e percussão e. o disco Quarteto Novo (1967) com o Quarteto Novo. Batucando no Morro (1954) e No arraial de Santo Antônio (1958). brinquedos. porcos. os flautistas da Pró-Música do Rio de Janeiro o escolheram como tema do espetáculo O Aprendiz de feiticeiro. grupo de seu irmão mais velho. The Real Bobby Mackay (1969) de Bobby Mackay. p. 2007. gravou flauta. 2009b. Em 1994. Em 1969. no qual Hermeto foi homenageado como Artista do Ano e Aline Morena com Artista Revelação. Mundo Verde Esperança (1989. Open Your Eyes. A Música Livre de Hermeto Pascoal (1973). zabumba.com. Mas. pianista e professor Jovino Santos Neto. 2007). recebeu o Troféu Monsueto no 3º Prêmio Rival Petrobrás de Música na categoria Música Instrumental pelo disco Mundo Verde Esperança. Brasil Universo (1985). são frutos do período de extrema dedicação à prática musical. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. de um projeto da Companhia Balé da Cidade de São Paulo para homenagear o pintor Cândido Portinari. O álbum duplo Hermeto Pascoal Ao Vivo – Montreux Jazz (1979) foi seu primeiro disco ao vivo. Márcio Bahia. além de se tornar sua esposa. Hermeto participou. Brasil Universo (1985). ‘Que esquisito. Paulo Braga. por que você bateu?’ Primeiro ouvia. Chimarrão com Rapadura (2006) reflete a mais recente parceria de Hermeto Pascoal: Aline Morena. e mais 13 músicos da Itiberê Orquestra Família. no qual se consolida o trabalho de Hermeto Pascoal e Grupo.1 à p. sapatilha. .31) A trajetória vitoriosa de Hermeto Pascoal contrapõe-se aos muitos nãos e hostilidades que recebeu ao longo da vida. A mãe.. olhava pra Hermeto.”. Em Mundo Verde Esperança (2002). como gravar dois álbuns sozinho. Nenê. gravado nos Estados Unidos. de as mocinhas lavando roupa no rio começarem a fazer troça com o menino. que se refere ao fato do compositor tocar todos os instrumentos nesta gravação. o compacto Hermeto Pascoal (1975) foi o primeiro disco solo orquestral (com Porco na Festa de um lado e Rainha do Mar do outro). 8). André Marques. olha como ele é branco! Você enxerga bem?’ Hermeto tinha pronta a resposta: ‘Levanta a 27 . F. criado para musicar os espetáculos promocionais de empresa Rhodia (Marcelo Dolabela. 2000). p. Bola. Hermeto sempre foi receptivo com músicos que quiseram conhecer sua rotina diária de ensaios. Nele. convencionais e exóticos. Só Não Toca Quem Não Quer (1987) e Festa dos Deuses (1992) . 2010.BORÉM. mangueira com voz. bota. . Jovino Santos Neto. Hubert Laws e Ron Carter. . apresentando-se com cinco formações diferentes: solo. recorreu a dois porquinhos de estimação de dois garotinhos do Texas (veja foto do Ex. Os músicos da assim chamada Escola Jabour (ZWARG. n. Nivado Ornelas. em duo com Aline Morena e à frente de big bands e orquestras sinfônicas. uma multiinstrumentista que. . de piano solo. com o grupo de mesmo nome (1993). Em Cérebro Magnético (1980).Itiberê Zwarg.Zabumbê-bum-á (1979). 2007. A fluência de Hermeto em todos os instrumentos que conheceu permite a ele realizar projetos arrojados. Fábio Pascoal – também passaram pela Escola Jabour os músicos Zabelê. com o violonista Sebastião Tapajós e o pianista Gilson Peranzzetta. ‘Você falou que eu sou feinho?’ E pá neles. “grupo mais estranho surgido na música brasileira”. Arismar do Espírito Santo. p. 2007. Vinícius Dorin.era mais fortinho. informando também que isto ocorreu “. como Pau Brasil e Hermeto Pascoal ao vivo. na música Vitor. citado por CALADO. Mazinho. Joyce. de 1981 a 1993”. Hermeto Pascoal/Renato Borghetti . No primeiro disco lançado no exterior. mas nunca se sentiu inferior nem desenvolveu complexos . o que é corroborado por COSTA-LIMA NETO (2008. como a porta do estúdio onde gravaram. dava também aquela proteção. ‘Filho.. vestido de copos de iogurte. Em 2003. O triunfo do autodidatismo que o acompanhou até a maturidade sobre o academicismo tem raízes na sólida e afetiva estrutura familiar: “Hermeto sempre soube que era diferente. sempre aparecia um pai ultrajado. antes de sair de casa (VILLAÇA. Joe Farrell. e Nivaldo Ornelas. ARAÚJO. aos 14 nos. A Música Livre de Hermeto Paschoal (1973) foi seu primeiro disco solo gravado como artista principal no Brasil e no qual consolidou seu primeiro grupo (Nenê.65 nesse número de Per Musi). chapéu de castanholas. a molecada da escola colocava um apelido atrás do outro. Nas 19 faixas deste disco. entre outros. ainda homenageia Vitor Assis Brasil. . eis um caso em que se pode afirmar: muito pelo contrário.e ele nem aí. Ainda era menino. Sete LPs . faca.pela prática diária matinal. Acontecia. entre outros. Zé Eduardo Nazário.22-43. mas que não deve ser confundido com Pernambuco do Pandeiro). Em Slaves Mass (1977). percussão com água e boca. 2009a) ensaiavam todos os dias “from 2 to 8 pm”. Mazinho. dona Divina. Ricardo Silveira. segundo entrevista do músico Jovino a GILMAN (2009). p. saia de alumínio. . tranquilo. Cérebro Magnético (1980).22. cujo título explicita uma integração entre o Nordeste e o Sul do Brasil (gaúcha com alagoano). balde.aliás. F. Anunciação. Alberto e Anunciação). em Lagoa da Canoa. Per Musi. Atualmente. E bastava um chamego para a turma cair em cima: ‘Como é que você namora um cara desses. plástico no tablado. ele não enxerga direito e o olho dele vira!’ Na saída. juntamente com outros compositores como Caetano Veloso e Egberto Gismonti. por exemplo. quando os músicos ensaiavam os trechos mais difíceis de suas partes individuais . Isto se deve. p. depois acrescentava: ‘Então fez certo’. além da composição e arranjos. em um disco que 13 das 14 músicas receberam nomes dos netos de Hermeto. Alfredo Dias Gomes. fez o desenho da capa.’ Seu Pascoal. . Hermeto gravou alguns discos com formações menores. Belo Horizonte. Era tão talentoso e divertido que no fim as meninas mais interessantes gostavam dele. era aquela zuada . Mais tarde. com seu grupo.O afeto. Antonio Luis Santana (mais conhecido como Pernambuco. entre outros. sendo que esse tempo de ensaio era acrescido “. . garfo. Hermeto ia em um por um . na guarânia Camila (CALADO. ‘Seu filho bateu no meu.CCBB. Carlos Malta. Hamleto. e o disco Hermeto Pascoal: eu e eles (1999). durante doze anos consecutivos. a alegria e apoio familiar contra as dificuldades do mundo “Como será a cidade grande? O mar. 3 . em grande parte. abraçou sua concepção de música universal. Depois da dissolução do Grupo do Jabour. Hermeto mantém uma agenda cheia de compromissos no Brasil e no exterior. o duo utiliza dezenas de instrumentos. Além daqueles que se tornaram membros efetivos de longa duração no seu grupo .. os jazzistas convidados dão uma mostra do reconhecimento internacional do compositor: Gil Evans. Seu Pascoal e Dona Divina.2. compondo parte da trilha sonora com base no quadro Baile na roça (VILLAÇA. Jane Duboc. Hermeto (1971). Como será o som do mar?” Hermeto Pascoal. Hermeto Pascoal e Grupo (1982). Cacau. 2003). depois de 12 anos. ao vivo (1993) e Solos do Brasil (2000). chaleira. Hermeto volta a contar com a participação de Hermeto Pascoal e Grupo. Lagoa da Canoa Município de Arapiraca (1984).59). sem outros instrumentistas: o disco duplo Por Diferentes Caminhos (1989). ao apoio que sempre recebeu dos pais. Aleuda. ouça que maravilha! A ágata dá um som danado! . p. ‘Sou uma árvore muito original’. ‘Respondeu certo.. . .” Na volta ao Recife. já saudado por Sivuca como o “O Maior Sanfoneiro do Agreste” (BARROSO. Hermeto fala do episódio em que foi convidado para gravar um disco como artista principal na Continental: “O primeiro contrato que eu fui assinar era na Continental. . p. Para CABRAL (2000. Não faltaram produtores que quiseram manipular seu talento em prol da indústria fonográfica. .” (GONTIJO. que compreende os poetas-músicos criadores de uma obra marcadamente individualizada. p.. mostrar pra esse cara. .” Dentro desta música artesanal. isso é só um penico – zombou um deles. E lá iam as mocinhas fazer queixa do galego com dona Divina. Não abro mão do jeito que eu quero gravar. . desculpa. não encontrou depois nos professores de música que procurou: “Há muitos anos. . como foi mostrado acima.. teve só uma professora na vida: dona Zélia. se acha bonito. Ele se arriscou. que se agigantou nos chamados anos 70. mesmo em discos de cantores.7) distingue “. ensinava a fazer. A paciência que Hermeto encontrou na sua primeira e amorosa professora. . que tanto tocava na feira. E eu estava na faixa dos 20 e poucos anos. ainda assim sempre quis ser músico . . depois. [Hermeto:]”As minhas músicas. . 2007. Minha intenção ao trabalhar com eles foi abrir a cabeça deles. é quase religiosa e deixou uma produção histórica. 2000. não são músicas. graças a seu Pascoal e a dona Divina. mas ele se recusou porque eu não enxergava direito.” (BARROSO. modéstia parte. arranjaram um professor para me ensinar teoria. menos disposto. Olhe minha filha. . . O seguinte diálogo.22-43. 2009). pela determinação e pelo talento. Não quero que ninguém me convide. Nem oito nem oitenta [baixos]!. .22) Numa carta de 30 de abril de 2003 a seu ex-aluno do curso primário. 2007. E tem mais: fui eu que ensinei. trancado. Isso aí que o senhor me falou.O máximo que Hermeto conseguiu foi arrancar o riso de seus companheiros. . WISNIK (1979-1980. 2009). RODRIGUES. eu acho que Sinhô ta doido! Meu filho tá doido! Sabe aqueles ferros que o senhor joga fora? O Sinhô pegou uma porção deles!. um papel com um monte de nomes de músicas. .39). com um produtor de disco e os produtores eram ‘donos dos músicos’. F.2). diretores. A opção de Hermeto por uma música instrumental mais sofisticada. . das flautas de carrapateira que fazíamos na escola. Isso aí eu toco na noite algumas vezes. Quando eu fui convidado pra gravar. p. n. . a própria educação. . uma ou duas dessas”. Per Musi. ricas experiências. Ele não abre mão de sua posição radicalmente oposta à linha comercial geralmente imposta pelas gravadoras e mídia: “Essa turma não evoluiu nada. . tem que ser como eu quero tocar. que Hermeto se gosta.22. Tá muito ruim. . assumindo sozinho. vai ter que tocar pandeiro. dois modos de produção diferentes. eu acho que quem está doida é você! Ele está tocando. como se tornou chavão na gíria cultural brasileira. . p. . em Caruaru. . 2009). dos pandeirinhos de latas de goiabada que Dona Divina. Escutar um negócio desses com 14 anos de idade. .Que loucura é essa? O que é isso? . . Se for assim eu gravo. já conhecido como bom sanfoneiro. VILLAÇA (2007.Os objetos têm sons. 2003).. mas. . “a fazer concessões”. se eu tocar música conhecida eu não vou ficar conhecido. .” (O.E ele tá lá até agora. mas eu não quero gravar nunca. pra mim era uma grande chance. [Produtor:] “Já escolhi as músicas pra você gravar”. que eu não quero gravar nunca a não ser as minhas músicas e como eu quero tocar. 2004). tensos mas interpenetrantes dentro dela: o industrial. satírica. Que primeiro ouvia. são letras. . mostra seu avô tranquilizando sua mãe sobre seu talento musical: “Pai. um nicho ainda menos comercial. ”. Em Recife. . “Hermeto Pascoal é um desses brasileiros que. se não for assim. Hermeto 28 não guardou ressentimentos contra o produtor da Rádio Jornal do Commercio Amarílio Niceias: “Eu não fiquei revoltado com nada disso. não quero nada” (BARROSO. . p. e o artesanal. . épica e parodicamente. F. Mas isto não foi empecilho para o determinado músico: Sempre prevaleceu seu otimismo: “Siga em frente! Você tem o dom da música! Confie em você!”. batendo nos ferros. as minhas músicas todas debaixo do dedo para tocar.44-45) reconstrói o diálogo entre ele e os colegas músicos galhofeiros: “. . Nascido e criado em uma região desprovida de escola de música. . Eu disse: “Mas eu quero ficar conhecido. sua mãe. uma oportunidade de gravar. Falando sobre a música comercial-popular brasileira. . ele podia ter feito um mal se eu fosse um cara que não tivesse a força que eu tenho. Estão só esperando para serem usados como instrumentos. Hermeto ficou sério: .’ É por isso. Belo Horizonte. . ARAÚJO. . que ele me fez um bem.12). com o crescimento das gravadoras e das empresas que controlam os canais de rádio e TV.” (CAVALCANTI. . Hermeto encontrou muitos obstáculos. conseguiram superar as deficiências do nosso sistema educacional. ter ficado desgostoso. onde a subjetividade se expressa lírica. p. sem raiva dele. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. . Eu quero que as minhas músicas também fiquem conhecidas e que eu fique conhecido através das minhas músicas. e começou a ler. [Produtor:] “É. . 2007. . o senhor me desculpe. ainda. Aí ele pediu para eu sentar. eu quero lhe agradecer. Se quiser continuar na rádio. não me fez um mal.. Deixe o menino brincar. Eu poderia ter me dado mal. Hermeto achou uns penicos de ágata em um ferro-velho e os levou para tocar em um estúdio da rádio. . Certo dia.o baião Asa Branca de Luiz Gonzaga. Quando eu chego lá. [Produtor:] “Mas menino! Você vai perder uma chance dessas de gravar na Continental?” Eu digo: “Porque eu vou gravar? Porque eu sou bom músico ou não?”.Não. que o alfabetizou. Já reconhecido como excelente instrumentista no meio musical em São Paulo. 2003).40).” (VILLAÇA.” (GAIA. quem escolhe sou eu. p. Você não tem é jeito pra música!” (VILLAÇA. . mas você tem que escolher música conhecida”. Zélia Gaia se lembra “.11). pode avisar para todos seus amigos empresários. não é só hoje não. dizia para si mesmo (VILLAÇA. Não estou precisando de nada. p. saia que eu digo’. Quem me chamar para gravar com alguém. recuperado da infância de Hermeto. Hermeto criou. . Hermeto ainda era visto cinicamente por boa parte da crítica especializada como “hermético” (CABRAL. ouviu: “Você não toca bem a sanfona.Isso é música. . 2000. Do produtor musical da Rádio Jornal do Commercio e patrão Amarílio Niceias. e disse: “E agora? Está bom essas músicas aqui?” Eu digo: “Pra que?”. 2010. tava lá uma lista.BORÉM. quadrado. pois queria apenas “. . . Ele.. Hermeto e seus músicos não retornaram ao palco. . não foi música. Eu sei que as músicas são deles. ARAÚJO.Arthur Moreira Lima. a improvisação. 2000). Tumultos. Hermeto interrompeu a apresentação. Polygram (1973 e 1992) e WEA (de 1977 a 1980). . como Johnny Alf e Guinga. como Som da Gente (1981-1993) e Maritaca: “Convites eu sempre tive. Eu quero é isso. Ganhou muito dinheiro. nas lojas). . Eu nunca recebi mil reais no Brasil. disse que gostaria de ‘tocar para a imprensa’. Como o meu amigo Fagner. . . p. jogou a flauta no chão e se foi. . F. rico e harmonioso. Caetano Veloso e Gilberto Gil. . . mas parou ao ouvir o barulho entre o público que se acotovelava a sua frente. .o próprio Hermeto recomenda que todos que vão assistir seus espetáculos devem levar gravadores.. Depois reclamou do barulho. . . 2003). . Entre as cantoras.9). p. . ter visto nascer musicalmente” (MILLARCH. Belo Horizonte. que às vezes parece beirar o transe religioso. As lâmpadas foram acesas e o público deixou o teatro entusiasmado com a música que ouviu naquela noite mas. . Egberto Gismonti e Wagner Tiso: “. Mas se eles não tocarem. o mesmo show. MILLARCH (1979) relata que “. Hermeto mostra-se muito exigente. . . Todas são Ladras. foi o que mais me surpreendeu e se soltou. elogia a “genial Jane Duboc. praticamente pedindo para se integrarem ao seu som totalmente inusitado.” (MILLARCH. quando tocou simultaneamente no palco com três outros grandes pianistas brasileiros . mas que ninguém consegue comprar. pedindo o retorno do grupo. .”. né? Aliás isso tem a ver com aquilo que falei sobre o não evoluir. como EMI (1967). 2002) A imagem messiânica de Hermeto Pascoal que seus admiradores adotam parece derivar da religiosa obsessão com que vive a música no seu dia-a-dia. . sentiu-se tolhido ao saber do tempo que teria e “. diz. estou mandando piratear. Apesar do estímulo de Rob Crocker. começou às 23 horas e prolongouse até às 4 horas da madrugada. 2010. 2002). deles pedindo uma autorização para lançar meus discos. Da editora na França eu recebi seis mil reais da primeira vez. mas as dificuldades crônicas com a política comercial das mesmas o direcionou a pequenas gravadoras. que lhe havia telefonado à tarde . . O Arthur. isso já passa no rádio. .” (CALADO. um dos mais populares apresentadores da WQCD-101. Em relação às cópias domésticas do LP Brazilian Octopus no formato CD que estavam circulando em São Paulo. Eu já falei: PIRATEIEM MEUS DISCOS. mas para todos discos eu tenho direito autoral. pois “.não fez por menos: após demorar-se em falar numa homenagem a alguns amigos presentes . irritado. apresentando-se no Rio Monterey Jazz Festival em 1980 no Rio de Janeiro. nos bastidores. Na sua segunda apresentação durante os concertos do festival Som da gente no Town Hall em Nova Iorque em 1989. Deu um aviso prévio. experimentou vários instrumentos e fez alguns trocadilhos. “. p. . e com nomes internacionais como McLaughlin. pirateiem. . essas pessoas têm que copiar mesmo. Hermeto trabalhou com grandes gravadoras multinacionais.. Mesmo no meio puramente instrumental. com o tema que apresentou em Montreux (gravado no LP da WEA. que criticava a TV Globo e acabou cedendo. a quem diz “. . mas recebido com vaias. confirmou a coisa toda com um riso. . começaram a mostrar a belíssima composição. quebramos tudo que tinha direito” (PASCOAL.22. . brincando à sério. . aqueles que valorizam a criação.Miles Davis. . 1979). que era o erudito. . A [Rádio] MEC é uma rádio pobre. 2008. . Me tratam como aquela jóia exposta na vitrine para deixar as pessoas com água na boca. tocaram por cinco horas e meia” (COSTA-LIMA NETO. Aqui. mas não passaram dos primeiros acordes. saiu do palco. .” (MILLARCH. mas cadê a alegria interior?” (CALADO. ‘Foi aquela coisa que se imagina que vai ser muito bom e acaba não sendo. o show Virada do milênio realizado no ATL Hall no Rio de Janeiro em 1999. . Hermeto falou muito. 2003) A saída encontrada por Hermeto para o tratamento hostil e explorador que as gravadoras lhe destinam é extrema e tem resultado na liberação ou perda de seus direitos autorais. não teve paciência com o público e sua interferência: . às vezes. Carregamos os outros nas costas’. Em outra oportunidade.BORÉM. . em pé. foi categórico: “Se a gravadora não se interessa em fazer o CD. As minhas Gravadoras lançam os meus discos e não me dão satisfação. Elas não evoluíram nada. Ele não tem boas lembranças do encontro que seria o sonho dos fãs da música instrumental brasileira. mas diz que não ouve “figurões” como Chico Buarque. A noite mais longa do festival acabou mais cedo. pois nunca há a mesma sequência. . dizendo que o seu tempo de show havia acabado. na qual Hermeto e seu grupo “. 1989c). Não toco em rádio. durante o 1º Festival Internacional de Jazz. .referiu-se a uma suíte de 20 minutos que ainda está compondo. como em uma inauguração de uma casa de jazz em Pendotiba (Niterói). Esta devoção. Nenhuma delas tem um recibo assinado por mim lá. . . eu dou essa porra também. . é aparente também nos shows. mas eles apelaram: foram fazer música para novela. Era para ser algo de improviso e o Egberto e o Wagner se prepararam para isso. a Rádio 29 . . F. sob vaias. no fundo sentindo que Hermeto não tivesse mostrado mais de seu som original.22-43. aplaudia e gritava o seu nome. n. Per Musi. ‘mas que gostaria de apresentar’.101-102) e dedicou a balada Dá-lhe coração a Eliane Elias. Cita alguns. . eu assumo. .” (IVANOV. . Arthur [presente à entrevista]. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. . 2000a. É o único jeito que o público tem de ouvir a nossa música” (CALADO. 1989b) Em outra oportunidade. o show de Hermeto “. depois.” (IVANOV. para um demorado abraço) ou ausentes . Esta obstinação em que cria um mundo particular com a música e que não se enquadra dentro dos limites de horário dos teatros onde se apresenta tem rendido a Hermeto algumas dificuldades. Hermeto parece se identificar apenas com aqueles dispostos a uma interação mais flexível e menos óbvia com a parte instrumental. Chick Corrêa e Stan Getz subindo ao palco e. . realizado em São Paulo em 1978. estão me roubando e vão me roubar até eu morrer. vendam.” (MILLARCH. mas não quero mais gravar por gravadoras grandes. 1980a) Depois das primeiras experiências de gravação com grupos de regionais. Mais tarde. é do governo. Pirateiem os discos do Hermeto. E. Nós queremos a cultura. Todos retiraram-se para os bastidores enquanto o público que lotava o Town Hall. . Querem gravar comigo só para dizer que têm Hermeto Pascoal no catálogo. . . já assinei 70 recibos no ECAD de Brasília e nunca foi [equivalente a] mil reais. Perguntado sobre seus cantores preferidos. Foi uma briga. apesar de gostar deles.como a pianista Eliana Elias e o baterista Dom Um Romão (que subiu ao palco. Voltou minutos depois. Começou a fazer um belíssimo solo de flauta. Quem está dizendo sou eu. deixa transparecer sua revolta com os impedimentos de socializar sua obra com o público: Meu discos estão sendo pirateados pelas Gravadoras. múltiplo. confusão. n. em que ele aparece como autor de Corcovado (Tom Jobim) e Aos pés da Santa Cruz (Marino Pinto e Zé da Zilda) no disco Quiet Nights (1962). para big band e. Mas a vingança de Hermeto “tocando viola de papo pro ar” contra a indústria fonográfica já começou. para os músicos do Brasil. Aline Morena comenta sobre a política injusta das multinacionais da gravação: “Então. p. Heraldo. Que boa nada. no humor. alguns dos arranjos para nosso Grupo. Agora estamos perto de publicar um livro com parte de sua música para piano solo. como subir nos ônibus coletivos. foi o Quarteto Novo . atributos realçados pela barba de Papai-Noel despenteada e a massa de cabelos brancos anelados que repousa sobre sua cabeça como tirinhas de papel de empacotar”. dois saxofones. claro. Mas jamais eu. SOUZA e ROCHA. começamos a sair do palco com o piccolo. O advento da internet ofereceu a Hermeto um instrumento ideal para socializar sua música. quartetos de cordas. Jovino. só pagando direitos após ameaças judiciais e mil broncas de Airto. Em 2008. senti que nunca havia encontrado alguém mais alegre. Se você quiser. nos festejos populares nas ruas do Brasil. a gravação em CD de todas as minhas músicas que constam na discografia deste site [www. obeso. Numa época em que os produtores do grande trompetista de jazz não se preocupavam em dar os créditos de músicas de outros compositores. posso tocar até você!’ . porque vamos oferecer tudo gratuitamente. . Juntos. Hermeto também aprendeu a lidar com constrangimentos profissionais de uma maneira positiva. Hermeto: “Meus filhos estão duvidando que eu toco na televisão”. [digo que] jamais ele ia fazer isso comigo. tendo feito isto com ‘Igrejinha’ de Hermeto Paschoal. então. ele se escondeu atrás de um cenário. A esposa de Hermeto nem precisa da resposta para entender que mais uma peça da mobília acabara de se tornar um instrumento musical. . ele arranca cada um dos ganchos torneados e [acha o som] que precisava e [que] somente pode ser obtido esfregando um no outro. Nunca mais sumiram com ele. o diretor apareceu para ver o que estava acontecendo. Eles já viram esta história se repetir muitas vezes. . Hermeto não teve seu nome incluído como autor das músicas Nem um talvez e Igrejinha gravadas no disco Live evil. tudo foi resolvido” (COMODO. F. entrar nos bares e. Desfilamos por um tempo e. Em seguida. citando outra escorregadela de MiIes Davis.22-43. tem que vender em qualquer lugar. como na reencarnação das bandinhas. que Jovino presenciou como membro do Grupo: MILLARCH (1988). ..Hermeto.” O. . 1996). tínhamos milhares de pessoas dançando atrás da gente nas ruas. comecei a editar algumas peças em computador.Fiquei uma tarde assistindo à banda de Hermeto [Hermeto Pascoal e Grupo]”. Logo. algumas vezes circular centenas de metros longe do teatro. o compositor documenta sua postura universalizadora: “Eu. . Este mesmo humor com que tem driblado os obstáculos que encontra pela vida. Sempre fui uma espécie de bibliotecário dos manuscritos. Saiu mesmo o nome dele nas minhas músicas. um aliado para brincar com situações difíceis: “Pouca gente lembra. . adeus às grandes editoras que fizeram isso até hoje. 2007). “Eles deviam me achar muito feio pra mostrar. . .com. 2009) . viriam música para grupos de flautas. Testemunha: Aline Morena” (PASCOAL. Em uma folha colorida a lápis e emoldurada com desenhos de fermatas. Em segundos. .BORÉM.” Numa dessas grandes noites. Mas se redime dizendo que “. tuba e percussão e depois.. Aproveitem bastante. nas ruas. RODRIGUES (2003) relata outro trecho que sugere a rejeição da mídia ao aspecto visual de Hermeto. .” (GILMAN.hermetopascoal. Hermeto Pascoal. Hermeto Pascoal. de fato. Hermeto decidiu declarar livre acesso para aqueles que quiserem gravar sua obra. p.” Com os colegas.. anunciam na rádio dizendo: “Nas boas lojas”. Curitiba 17 do 11 de 2008. pelo conhecimento que eu tenho com ele.br]. voltamos para o teatro pra terminar o show. useiro em se apropriar de temas alheios.” (CASTRO. De vez em quando. 30 são e.com. sou o responsável por isto e considero minha missão garantir que este acervo musical surpreendente seja conhecido e ouvido. . organizando-os e guardando-os.” (BARROSO. para fora do teatro. Algumas vezes. ARAÚJO. Entretanto.hermetopascoal. peças sinfônicas. mas em 1967. Entre seus projetos estava a ideia de transformar em música uma fita que recebeu de um gago alemão recitando poemas de amor (COMODO. fala sobre o que considera sua missão após a dissolução do Grupo: “Desde que saí do Hermeto Pascoal e Grupo em 1993. que tem. . ‘Posso tocar qualquer coisa.que ajudou “Ponteio”. como no polêmico episódio com Miles Davis. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. trechos do festival são reprisados e quase nunca se vê Hermeto no palco. lançado em 1972. mais tarde. no III Festival de Música Popular Brasileira da Record. disponibilizar sua música para músicos em todo o mundo se tornou uma de minhas prioridades.117-118) comenta que Hermeto poderia ter razões para ser infeliz: ”. 2009). Aquilo criou situações extremamente engraçadas. que guarda boa parte dos originais da obra de Hermeto. A plateia nos seguiu. . 2010. nortear a vida de Hermeto Pascoal. acidentes musicais e um auto-retrato. só suas mãos tiritando na flauta. Ao comentar sobre o projeto de disponibilização gradual e gratuita da obra de Hermeto Pascoal no site www. MEC fez cinco mil discos. . .br a partir em meados de 2007. 2009). nem com ninguém” (BARROSO. Trabalho diretamente com o Hermeto neste projeto e esperamos ter o primeiro livro em breve” (GILMAN. a chegar ao primeiro lugar. Com o humor cáustico que permeia os relatos de sua expedição para conhecer de perto a música brasileira. 2008). . Belo Horizonte. F.22. Que elas aproveitem enquanto podem. o humor e a alegria fazem parte da memória afetiva de Hermeto. em 1982. e do mundo. a partir do momento em que entrei na sua casa no subúrbio do Rio [no Bairro Jabour]. aparece na sua música. Quando sua devotada esposa aparece perguntando pelo cabide. 2009). um olho-virado. durante o concerto no Teatro IBAM. Théo de Barros e Airto Moreira . Tenho cerca de 1. A determinação e a alegria parecem. o que será muito trabalho. Quando me mudei para Seattle. [que] desaparece escada abaixo e volta com um cabide de paletó.” O erro não deixou Hermeto magoado: “Houve uma confu- “Certa vez. .000 peças em arquivo. o jornalista norte-americano John KRICH (1993. mas não tem distribuição. declaro que a partir desta data libero. de Edu Lobo. 1996). explicando que “Eu gravei no disco do Miles Davis duas músicas minhas e saiu que o Miles tinha roubado as minhas músicas. o grupo morre de rir. o chama de “. Eles falam. Per Musi. tocando alguns temas que o Hermeto havia escrito para aquela formação. naturalmente.. . os pássaros. Agora não precisava mais escolher a musiquinha pra eles. que fica aquele som assim. boi. . Terra verde. trabalhando duro. sem prejudicar o vizinho. ameaçadas de destruição (MILLARCH. Nascente. . . Eles me entendiam porque eu via a ação deles. ele pára. Hermeto Pascoal relaciona seu pensamento ecológico-musical com uma filosofia de vida que aprendeu no interior do Brasil: “Eu. no mesmo disco.” Hermeto Pascoal (O. aquelas harmonias” (COSTA-LIMA NETO. 4 . fiz assim na calça. Hermeto resgatou imagens da infância. . acha que o animal não tem espírito.. . youtube. . Hermeto fala sobre a natureza e. que sou um cara da roça. . . incluindo suas melodias e harmonias. RODRIGUES (2003) Em entrevista sobre o primeiro disco Mundo Verde Esperança (1989. É conversa fiada. comecei a me lembrar desse sonzinho. . aquele canudinho da mamona. escondidos. Já adulto.. . 1999. você toca aquilo ali. do vento. aquele som novo assustou os bichos. acompanhou Hermeto no seu contato com as outras músicas: “Quando eu era pequenininho tocando a oito-baixos. Por exemplo: Quando o cavalo via uma visage. nas dificuldades encontradas pela vida. vale pra todos eles. bois. E isso que eu tô falando vale pra vaca. Já no vídeo Hermeto Pascoal and the music fom the frogs (disponível em www. Para Hermeto. tocando uma flauta de bambu ininterruptamente. Quando eu tocava o primeiro som na flauta. F. em São Paulo. de céu da boca. Você começa a analisar suas coisas de criança. foi aumentando. sempre”. . Hermeto Pascoal e Grupo foram temas do vídeo ecológico Bagre Cego de Ricardo Lua (disponível em www. .’ Uma das coisas que encanta Hermeto é o que ele chama de ‘sonzinho’ das formigas. porcos. . motivações para traçar seu caminho e viver bem. com todos os animais.78).’ O. com 8. a gente se entendia. “O atonal é a coisa mais natural que existe”. Por exemplo. que não pega fogo. Esta mesma memória afetiva que lhe remete sempre às suas raízes. O porco. saltando como um sapo. saiu algo interessante. improvisando pedidos de prenda em uma típica procissão nordestina do santo casamenteiro. uma coisa espiritual.Então a gente inventava. Água limpa. Fauna universal. . . mas não é: é calça jeans! Você vê que tudo é música. Que o animal é muito sensível. No segundo dia já tinha dois. Foi quando eu comecei a ver esse lado todo.youtube.’ O. 2003) A bandeira ecológico-musical de Hermeto pode ser apreciada nos títulos de suas músicas. Na gravação de um disco. Seu Pascoal. passarinhos. das pancadas que eu dava nos ferros. desaparece sob as águas.BORÉM. ‘Aquela areia branca.A natureza “Os animais são meus maiores professores. . e que. Na gravação de Santo Antônio. Eu sabia os sinais. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. uma energia. passou a subsidiar o sistema musical singular de Hermeto. Esta trindade sonora paradigmática. Você sentia a felicidade dele. Batucando nas Matas.” (BARROSO.22-43. 2010. Eu pegava um talo de abóbora. Peixinho. . feito com muito cuidado. . . E também em vídeos. antes mesmo dos tons e semitons do pé-de-bode de seu pai. . à sua família. e com uma faquinha fazia uma flautinha e começava a tocar. . Tudo era bem feito. Primeiro. empurra no céu da boca. O porco é tido como rude. Ele queria justamente [ouvir] um instrumento médio. Hoje em dia. ‘Os animais são meus maiores professores. aumentando. casamento e quando eu pegava na oito-baixos. . rachar no meinho com uma faquinha. não. . talvez o animal mais rude que tem. . RODRIGUES. Deus botou os animais como o espelho verdadeiro da vida. umas músicas muito doidas. . . . O quê que é uma visage? É uma visão. sapos. SOUZA e ROCHA. elas se arrastando na areia. da chuva. ele descobriu as formigas em travessia. 2007). Muito antes do conceito de paisagem sonora de Murray Shaffer: “Até os 14 anos fiquei lá em Lagoa da Canoa em contato total com a natureza. . . O técnico se assustou. . não orientada pela tradição europeia. está deitado lá na estrada e não quer deixar os vaqueiros passarem com a boiada. que eu conversava com os animais. cavalos. A voz do pai. entre outras. é onde ele descobre o som da areia e percebe as vozes da alma. Os sapos são gênios! São gênios.com). Eu extraía dos ferros. 9 anos de idade eu tava tocando forró. do mato. Quando as aves se encontram nasce o som. 1986).190) a propor a perspectiva de uma trindade sonora experimental cujas raízes estão na infância do músico alagoano. 2004). . .’ E é na terra natal que Hermeto recebe as primeiras bênçãos do sol.  segundo a qual som musical e ruído são equivalentes. 2009). entra em um poço de um riacho e gradualmente. com cuidado.” (CASTRO. F. em que ele e seus músicos aparecem fazendo música nas cavernas do Vale do Ribeira. . p. RODRIGUES (2003) Esta aprendizagem inicial. . eu já ’entortava‘ a oito-baixos. . A gente põe eles no lugar errado. o porco vai delirar com você. Eles são gênios.1999): Um dia. Não é à toa que a frase escolhida por ele para finalizar cada uma das 366 partituras do Calendário do som foi o voto generoso e otimista “tudo de bom. ‘Eu arrancava um pedaço de carrapateira. Eu inventava muito. Aí pronto. formigas. como Dança da selva na cidade grande. “.com como Hermeto e Grupo.” (CAVALCANTI. Os sons da natureza foram os primeiros sons musicais a habitarem a mente de Hermeto Pascoal. não lançado comercialmente. Este envolvimento com a natureza é antigo. o lado dos animais. Caminho do sol. Tiveram de chamar seu Pascoal em casa: ‘Seu filho ficou maluco. para eles se acostumarem. o que levou COSTA-LIMA NETO (1999. Ballad for a blind albino catfish). os sapos.22. já comecei a tocar um forró. . mais tarde. baile. e sopra como se fosse aquelas gaitas escocesas. a ponto de eu tocar tudo que quisesse. cavalo. eles vinham e cobriam a árvore. o cavalo fazia com a orelha. . Belo Horizonte. na estrada até Lagoa da Canoa. Saudade do Tietê. Ele relata: “Eu comecei a tocar no mato tudo que tinha de coisa . Hermeto gravou sua mãe Dona Divina descrevendo um ritual típico do interior. Cordilheira do Andes. como gaita escocesa. Eles entendiam tudo. de sua comunhão com a natureza e as reverte em música. Eu começava a tocar uma melodiazinha e ficava naquela só. Você escuta um som que parece zabumba. . como em Mercosom do álbum Hermeto Pascoal: eu e eles. eu posso fazer com sax soprano. Creio que isso acontece na música também. que fui criado na roça. no disco disco Zabumbê-bum-á (1979). excluídos por nós. . No terceiro. ARAÚJO. p. Mas aos poucos. via muito bem que o dono do cercado tinha o cuidado de fazer uma vala do tamanho do terreno e plantava um negócio chamado macambira. Música das nuvens e do chão. é derivada de três fontes 31 . n. O espírito deles é tão elevado quanto o nosso. incluiu na faixa São Jorge. não escutava nem rádio porque nem havia luz elétrica. Hermeto achou. p. . o motiva musicalmente. eram sons de altura “indeterminada” (cuja fundamental não é claramente distinta ao ouvido humano). Os sapos já dão a aula do que é orquestração natural. o segundo Mundo Verde Esperança foi lançado em 2002). Per Musi. . para que o dono do outro terreno pudesse preparar o terreno para plantar. BORÉM. 2009) Na faixa Três coisas. nas pessoas ele percebe a música da aura. E quando eu escuto a voz da pessoa. Embora outros tentaram algo similar.1). parou” dos locutores esportivos Osmar Santos e José Carlos Araújo.135) observa a intenção programática nas indicações de pedal e de fermatas sucessivas. 32 . . p. ele percebe a música dos ferros. o som da aura que percebi desde minha infância.” (COSTA-LIMA NETO. Uma análise auditiva de três destas músicas . ele utilizou os famosos trechos onomatopaicos de narração esportiva “tiruliruli-tirulirulá” e “parou.22-43. modalismo. se nos objetos.” (GILMAN. bacurau. 2010. 2000. (2) apresentação da fala sozinha primeiro. nós somos pássaros também” (entrevista a Luís Carlos Saroldi da Rádio MEC em 1997. . p. a faixa Quando as aves se encontram. harmonias contrastantes (atonalismo. Hermeto descreve o procedimento para a realização da música da aura. descobrindo redundâncias de células rítmicas na declamação poética de Mário Lago e as acompanhando com levada e instrumentação de baião. na faixa Som da aura. n. município de Arapiraca (1983). No disco Lagoa da Canoa. p. que conceituou com música da aura: “Os pedaços de ferro já tinham alguma coisa a ver com a música da aura. . acompanhadas com levadas de gêneros diversos (samba e valsa).” (COSTA-LIMA NETO.. como uma representação da reverberação que descreve os sons de pedaços de sucata de ferro do avô ferreiro Sena da Bolacha que povoaram sua prática musical na infância. é o que chamamos de fala. eu toco aquilo que estou escutando” (ESSINGER. na minha concepção. (3) repetição da fala com dobramento instrumental de teclados (piano e harmônio) aproximando de suas alturas “indeterminadas” e ritmos. o que resulta em um contorno melódico atonal heterofônico (um “quase-uníssono”). coincidindo cadências da fala com tríades perfeitas maiores e menores. Hermeto Pascoal. que são instrumentos musicais esperando para serem tocados . as alturas “indeterminadas” traduzidas para o piano resultam em clusters acompanhando uma melodia atonal e fragmentada (Ex. 1989b) -. 2000). Entretanto. . percebidas por Hermeto graças a sua escuta ampliada: sons de animais. . galo. (4) acompanhamento com acordes esparsos em encadeamentos não funcionais ou atonais.94-96). estas “. O próprio Hermeto percebe uma relação do atonalismo que chama de “fala dos objetos” com o atonalismo que ouve na fala humana. distintas. Assim. elementos harmônicos simples como as tríades.Pensamento positivo (a partir de uma fala do Presidente Collor de Melo). . 1999. sabiá. cromatismo). marreco) com um tratamento mais sofisticado: há solos a cappella alternando com trechos acompanhados (com Hermeto nos teclados). pode-se apreciar várias instâncias de música da aura. mas os elementos primários aqui são as “vozes” de aves (uirapuru. em minha opinião.” têm raízes em “. pode imaginar um filme em que os diálogos do atores é também a trilha sonora? . tonalismo. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação.1 – Exemplo de música dos ferros com clusters atonais em Ferragens de Hermeto Pascoal. Aula de natação (a partir de uma aula ministrada pela filha Fabíula Pascoal) e Três coisas (a partir de um poema de Mário Lago recitado por ele mesmo) . . fogo-apagou. observa que “A música da aura ainda está nos seus estágios iniciais. F. Do ponto de vista harmônico. respectivamente. No disco Festa dos deuses (1992). Per Musi. corvo. sons dos objetos e sons da voz humana. . . . . Jovino. Belo Horizonte.131-132). ARAÚJO.22. Embora a transcrição musical de can- Ex. . Ainda no disco Festa dos deuses. nasce o som também pode ser considerada música da aura. quando se deu conta de que “O cantar das pessoas. dobramentos que se entrelaçam. Jovino Neto e Fábio Pascoal avançaram um pouco além desta fórmula básica acima. . simples para ele que tem ouvido absoluto e uma prática de reconhecimento auditivo enorme: “É muito fácil tocar o som da aura.. COSTA-LIMA NETO (2000. F. parou. que foi quem tocou piano e harmônio nestas três faixas. . somente Hermeto conseguiu capturar a essência musical da fala. p.177). 1999.como os “resultados incríveis” das moedas de 25 centavos de dólar (além do pé esquerdo de seu sapato!) que colocou entre as teclas de um Steinway para provocar o público novaiorquino (MILLARCH. células manipuladas com loops. . que nada mais é do que a energia do som de cada pessoa através da música. Na sua análise da música Ferragens para piano solo.mostra procedimentos comuns: (1) escolha de trechos da fala humana pré-gravadas como ponto de partida para a criação musical. . citado por COSTA-LIMA NETO. combinações harmônicas complexas. p. O conceito de música da aura surgiu na década de 1980. .. Assim como os pássaros. . 2. a abordagem de Hermeto é única no sentido da eclética liberdade de compor com os motivos que descobre nos cantos e as associações que faz com a rítmica popular. chamado Floriano. 33 . o gado atravessando o rio. “naturalmente afinados” em alturas diferentes. cujo nome é uma referência ao arco-íris. em 72. ambas de Hermeto Pascoal. três meses de uma fazenda para a outra. Hermeto Pascoal sempre encontrou caminhos alternativos diante dos impedimentos de uma educação formal em música que lhe foram impostos. transcrição de Jovino Santos Neto. o resultado sonoro de sua superposição polimodal não pode. p. em que um cluster no registro médiograve sobre uma 4ª justa no baixo imita o zunido do tipo de abelha que dá nome à música (Ex. . 1977). por não terem tido a oportunidade de estudar a música erudita. 1975). sintetizam e norteiam o processo de formação de sua linguagem harmônica. 1999. na coda. ARAÚJO. Hermeto utiliza trechos com gravação de guincho de dois porquinhos. F. ser considerado tonal. . Esse atonalismo “natural” ou ruidismo “ecológico” pode ser apreciado nos primeiros 16 compassos de Arapuá. quem sugeriu que ela [Flora Purim] experimentasse improvisação vocal sem palavras. às cigarras e aos amoladores de facas (COSTA-LIMA NETO. 2000. p.140-142). 2010. 5 – Três princípios da Música Universal “A Harmonia é a mãe da música. que é uma redução da transcrição de Jovino Santos Neto do original para piccolo. transcrição de Jovino Santos Neto. citado por COSTA-LIMA NETO. p. p. tos de pássaros nos remeta à iniciativa do compositor e ornitologista Olivier Messiaen. auditivamente.” (McGOWAN e PASSANHA. ele recorre a um cluster na região médio-aguda do piano para emular as “cores indefinidas” .130). Embora as vozes sejam baseadas individualmente em escalas diversas. p. Foi ele “.129). 1999. piano e contrabaixo elétrico sobre uma gravação da fala do papagaio de Hermeto.parciais inarmônicos . quando Hermeto ganhou o prêmio de melhor arranjo com O Porco da Festa (MILLARCH. 1999. saxofone tenor. 2000) aponta vários exemplos da relação que Hermeto faz entre as vozes dos animais e sua tradução atonal na partitura.136). o barulhos dos cascos na água. no Maracanãzinho.. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. em torno dela. Hermeto recorre mais uma vez às vozes da natureza: “Você já viu uma boiada de 3 mil reses em movimento? Eu via e ainda vejo essas boiadas viajarem dois. 2008) O primeiro. como grunhidos.de um pedaço de ferro sendo percutido (ou amolado) (Ex. 43 anos de idade. Essa incorporação de uma grande variedade de efeitos vocais. Ao descrever a Sinfonia do boiadeiro (1995). o mito de uma cultura superior e inatingível.” (CABRAL.2. . Se nos exemplos acima o atonalismo hermetiano resulta de uma abordagem vertical e homofônica. 1984). Já em Cores (disco Hermeto Paschoal e Grupo. o terceiro e o décimo-quarto princípios da música universal de Hermeto Pascoal. Eu memorizava muito as Ex. o aboio. A valorização dos sons de animais pode ter inspirado Hermeto em alternativas de utilização da voz que não a fala humana. Município de Arapiraca. o vaqueiro tangendo. p. 2000. citado por COSTA-LIMA NETO. em Papagaio alegre (disco Lagoa da Canoa. o ritmo é o pai e a melodia ou o tema é o filho” “Bom gosto não se aprende na escola” “A prática é quem manda” Princípios da Música Universal de Hermeto Pascoal (MORENA. COSTA-LIMA NETO (1999. “. listados na epígrafe acima. A ideia dos porcos retorna no Festival Abertura da Rede Globo de Televisão em 1975. 1999. rangidos. 1982).15). vim a aprender teoria com 42. F. ‘executados’ por [Airto] Guimorvan [Moreira]. . em torno do registro de Sib3 (COSTA-LIMA NETO. p.. proposta que Hermeto já tentou aplicar no Festival da Canção de 1972. . emulação de distorções eletrônicas. Muitos dos animais que povoaram a infância de Hermeto reaparecem na sua obra.167). 2000. .151-161. Ainda em Cores. Ele relata: “.2 – Clusters imitando o zumbido da abelha arapuá na música Arapuá (transcrição de Jovino Santos Neto) e os parciais inarmônicos de um pedaço de ferro percutido na música Cores (transcrição de Jovino Santos Neto).22-43. como mostra o trecho do Ex. por exemplo. scatting aleatório e ondas de glissandi ajudou Flora Purim a vencer o prêmio de Melhor Cantora da Revista Down Beat por quatro vezes e ser nomeada duas vezes para o Grammy. é fruto da escrita linear e polifônica. Diferentemente de muitos músicos populares que. .22. É essa a sinfonia. Belo Horizonte. Per Musi..BORÉM. e quase o levou à cadeia” (MILLARCH. p. n. choros. No disco Slaves Mass (1977). p.129). por isso criam. 2000. Hermeto utiliza o Lá4 de uma cigarra “gravada no jardim de sua casa” como um pedal agudo sobre dois pianos cuja somatória harmônica soa como um cluster (COSTA-LIMA NETO. COSTA-LIMA NETO. incluída no disco Brasil universo (1986). .3. embora não faça exatamente aquilo que os americanos pensam a respeito do jazz. ele viu-se atormentado com as frequentes perguntas de repórteres ávidos de saber sobre sua educação musical: Quando fiz os meus 50 anos. ” (VILLAÇA. A constatação de seu autodidatismo vitorioso e tão eficiente quanto qualquer formação acadêmica. eu não sei dizer como foi que eu aprendi. . mestre da arte da composição e do arranjo. Com Edú Lobo. 2006.” (entrevista de Jovino a COSTA-LIMA NETO.109). Poderia-se descrever seu som e estilo como uma lembrança e improvisação de Rachmaninoff com a força do fogo latino-americano”. diretamente com músicos de formação tradicional ou via outros estilos populares influenciados pela música erudita (como o jazz moderno). que em entrevista à Jazz Magazine em 1984 (citado por COSTA-LIMA NETO. . não seria conhecido?.eu falei para minha esposa Ilza. p. estou me sentindo órfão. estou um pouco preocupado. My Funny Valentine e Round Midnight. em Los Angeles. . admirava os ensaios do erudito-popular Radamés Gnattali. embora Hermeto não considere muito o peso desta experiência na sua formação. . mais ou menos uma hora de ônibus. . . . . característicos do músico letrado. e com o pianista Alberto Figueiredo. Per Musi. . que tocava só Chopin.22. Até breve! Haja mão esquerda”. p. Ex. p. Não é o caso de Hermeto. . improvisando em torno de standards da música americana . formada em canto lírico pela Universidade de Passo Fundo” (CASTRO. 1989a) É muito provável que o contato com procedimentos da música erudita. ia cantando. .. 34 No Rio de Janeiro. tão achando que eu estou escondendo alguma coisa. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. . Um importante contato de Hermeto com partituras de música do século XX parece ter ocorrido “. 2007) Percebe-se. não tenho um professor aparente. p. A influência da música erudita aparece em algumas músicas do Calendário do som. com típicos gestos do pianismo romântico: repetidos arpejos em colcheias marcando as mudanças de harmonia e arpejos em quiálteras num jogo polirítmico de seis notas no acompanhamento contra quatro na melodia. Ah. . tenha inspirado Hermeto em harmonias e métricas mais complexas. ‘citações’.3 . quanto a questão da técnica no piano: “Esta música é muito erudita e cheia de modulações. p.81). “. não sei escrever e nem tenho gravador. 2007. incluída no LP Brazilian Octopus (1969) e a ária Kein Wort do Segundo Ato da ópera A Flauta mágica de Mozart.6). . F. incluída no mais recente CD/ DVD Chimarrão com Rapadura (2006). até chegar no lugar em que eu toco”. . Quando eu viajava para São Paulo. F. . .Atonalismo resultante do contraponto polimodal em Papagaio alegre (transcrição de Jovino Santos Neto) de Hermeto Pascoal. não sei música.”. as pessoas estão cobrando muito de mim. certamente tocou muitas vezes a Pavane de G. Hermeto comenta tanto sobre a questão da harmonia. . . o crítico do The New York Times Stephen Holden fala mais de uma referência erudita do que do jazz norte-americano: “. Sintomaticamente. 2007). aquele filho que nasceu e gostaria de conhecer os pais (CAVALCANTI. . . . p. .22-43. (CASTRO. p. Em Recife. [que] lia a partitura e criava” (CAMPOS. Ainda refletindo uma prática erudita. . . ARAÚJO. . n. . “.ofereceu momentos de virtuosismo no piano. 1999. Hermeto se maravilhava com os ensaios de Guerra-Peixe. diletantes e leigos. Belo Horizonte. teve a oportunidade de conhecer metrópoles mundiais da música erudita na Europa e nos Estados Unidos..36). Eu preciso ir cantando essa música até chegar na boate. pois “. 2004). coisas. 1999. . . o automatismo de associar sofisticação musical e formação erudita. Dava uma gorjeta ao cobrador e dizia: “Não sou doido. entre músicos. 2000a. O baterista Nenê conta que.. . então pianista do Quarteto Novo.4) disse: “Eu adoro tocar música ‘clássica’ ”. mas após quase 40 anos de profissão. . têm a mão esquerda realizada. sua parceria com Aline Morena. .BORÉM. . composta em 1967 para a trilha do filme Um Caminho Para Dois). Mas o mesmo Hermeto. . Para descrever o estilo improvisatório de Hermeto. “. em todo o livro. . não implica em um desconhecimento de sua parte dos valores musicais mais racionais e menos intuitivos. Hermeto. o Edu [Lobo] ficava mostrando umas partituras do Stravinsky para ele. . . somente esta música e mais quatro.como Two for the Road (de Henry Mancini.211). (MILLARCH. 2010. como pianista do Quarteto Novo. . eu não tava muito interessado nisso não. 2006. o motivou a compor para este último álbum uma música chamada À Capela. Em 8 de dezembro de 1996 (PASCOAL. SOUZA e ROCHA. Fauré. ainda hoje. Em Pintando o sete de Hermeto. entretanto. Hermeto tocava “Garota de Ipanema em 7/4” (CAMPOS. SOUZA e ROCHA. .vocês acham que se alguém fosse meu professor não estaria feliz de ser meu professor. nada fazem. dificuldades profissionais da classe de instrumentistas – onde se incluem desde os músicos de sinfônica até os integrantes de bandas carnavalescas. Carlos Malta estudou na Escola de Música da UFRJ e na Escola de Música Villa-Lobos. ícone da música brasileira que melhor integrou as músicas erudita e popular. em grande parte devido à incompetência do “. .” Márcio Bahia tocou na Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. . . também se podem reconhecer diversos padrões assimétricos. Belo Horizonte. .Padrões de [4/4 + 3/4] e [2/4 + 2/4 + 6/8] na métrica 7/4 em 1º de Fevereiro de 1977 de Hermeto Pascoal.BORÉM. Isaac Karabtchevsky. assimetria do compasso 7/8 cria o efeito de estranhamento em relação à música popular convencional. mesmo. Jovino. n. “três andares” (superposição de três acordes) (ZWARG. nada reivindicam. F. música da aura. resultam em improvisações extremamente bem concebidas e finalizadas. as regras formais e harmônicas. Hermeto lhe dedicou Mestre Radamés. ARAÚJO. a Ordem dos Músicos . Apesar de não ter tido professores eruditos. As “. ao mesmo tempo fluente. Suíte Pixitotinha. . COSTA-LIMA NETO (1999. . F.22-43. No “chorinho em sete” (um 7/4). . “pendurada” (acento contramétrico). . p. 2006.. em tempo real e com extraordinária riqueza de ideias: “A surpreendente originalidade dessas ideias e a grande variedade de procedimentos composicionais empregados. . música dos ferros e utilizar o método do corpo presente. p. . que hoje leciona no Cornish College of the Arts (Estados Unidos) no qual compositores avant-garde como John Cage. . música centrada em um complexo solo de bateria.120-121). Admirador de Radamés Gnattali. 1996). . a “fusão e alternância de células rítmicas” e a ausência ou “poucas barras de compasso” (CAMPOS. 2006. 35 . a proximidade de Hermeto com a música erudita é visível na suas obras sinfônicas que compôs.1979-1980b. que aparece na música 1º de Fevereiro de 1977 do Calendário do som (CAMPOS.4 . [formando um grupo] semelhante a um conjunto de música de câmara. ainda muito pouco conhecidas.72) lembra que “. Suíte Norte. Suíte Mundo Grande. podendo Ex. . Itiberê estudou piano clássico. “garfinho” (síncope). como Sinfonia em Quadrinhos. ” (BAHIANA. quando o regeu à frente da Orquestra Jovem de São Paulo no Teatro Municipal. .12. instabilidade profissional e. Ironicamente.86-87). Hermeto alcançou um nível criativo em que a improvisação tornou-se muito próxima da composição. p. 2006.78). . Oeste.4. não economizou elogios: “Ele sempre me impressionou pelo domínio instrumental aliado a uma inventividade rítmica e melódica. 13). “chão” ou “fora do chão” (ênfase nos tempos ou contratempos). geraram (e têm gerado) uma desilusão. Sinfonia Vale do Ribeira e Sinfonia do Boiadeiro. “quebrar” (sair da ênfase nos tempos) (CAMPOS. Joshua Kohl e Jarrad Powell foram compositores residentes. ” (ARRAIS. cuja partitura revela “melodia de timbres”. . Sinfonia Berlim e sua gente. a “coexistência de diferentes pulsações”. que não se relacionam com as métricas aditivas afro-brasileiras apontadas por SANDRONI (2001). com exceção do percussionista Pernambuco. declarou a GILMAN (sem data) seu plano de re-orquestrar A sagração da primavera de Stravinsky para 10 músicos apenas. Suíte Paulistana. 2006. .22. a “. Leste. Favorecendo a prática. que engloba uma visão de todos os sons num resultado fantástico” (COMODO. como [4/4 + 3/4]. p. Per Musi. 2009b).102). “frases ritmico-melódicas deslocadas”. cifragem universal. na sua rotina musical. sindicato. Não estar preso à formação tradicional de música também lhe permitiu criar conceitos mais amplos como música universal. [2/4 + 2/4 + 6/8]. 2010. pelas sonoridades que diziam respeito à sua percepção e pelo vocabulário próprio da aprendizagem oral. os problemas crônicos enfrentados pelo músico erudito no Brasil podem ter favorecido Hermeto ter se cercado de instrumentistas de alto nível e com experiência sinfônica. mas provavelmente com uma leitura jazzística de práticas eruditas. mostrados no Ex. . provocado a evasão das orquestras. . 2009). p. preferindo se guiar pelo resultado da realização musical. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. e não a teoria. Daí surgiram termos como “cacho de uva” (acordes).. Um dos ícones da música erudita brasileira. Mas Hermeto não reteve as terminologias eruditas. .” de que falava Plínio Marcos. p. os demais integrantes do Grupo [do Jabour] tiveram passagens pela música erudita e a abandonaram para se dedicar à música popular . p. Sul.. criado por Itiberê Zwarg (MORENA. aprendem a escutar todos os instrumentos. Partimos do som. mesmo para outros músicos. de uma vez só. soa sempre novo e inesperado. a harmonia para o pianista. p.150). p.” e. em que] haviam os cantadores de embolada. . Belo Horizonte. Outro recurso de complexidade harmônica comum em Hermeto. José Carlos Prandini observou a existência de padrões que dão unidade à sua música criada espontaneamente. p.”(CALADO. escreve o que executou.89-90. obviamente. . o que é radicalmente diferente do que é ensinado na maioria das escolas. no qual a composição e a performance são processos quase simultâneos e participativos. na . superposições de elementos originários de outras áreas tonais. gerando a sensação de caos pela simultaneidade de diversas pulsações. . é o dobramento da mesma linha melódica por outro instrumento transpositor sem se preocupar em manter a mesma tonalidade COSTA-LIMA NETO (1999. a memória de cada um dos músicos é acionada pelo estímulo do som e não pelo estímulo gráfico. . ou emprego de tonalidade expandida. . . p. 2009) Na música De bandeja e tudo. Por exemplo. . . a superposição de materiais desconectados. . ARAÚJO. que José SIQUEIRA (1981) identificou no seu Sistema Modal na música folclórica do Brasil. ele não segue as progressões harmônicas usuais. . como na música 10 de setembro de 1996 do Calendário do som.102). Por exemplo: faço uma frase melódica e passo para o clarinetista. As músicas amadurecem muito rápido. presenciando [grifo nosso] e participando de todo o processo de criação. . . O contraponto. . Após analisar alguns solos improvisados no período entre 1985 e 1992. como ocorre ao final da improvisação em O Tocador quer beber. [na feira de Lagoa da Canoa. podem remeter às experiência sonoras de sua infância. .” (BARBOSA. os vendedores anunciando. . ser ouvidas e estudadas independentemente de seus temas de origem. Ele explica: “. 2009c) Jovino procura explicar as raízes do conceito harmônico de Hermeto.a música vai sendo executada quase simultaneamente à sua criação. a capacidade de compor na hora. e não pela teoria. é mais provável que estas sonoridades tenham surgido na sua música mais a partir da conformação de suas mãos sobre os instrumentos (sanfonas e teclados. desenvolver o conceito de método do corpo presente. Mixolídia e Tons inteiros). As músicas vão surgindo segundo o método de corpo presente. ao invés do método tradicional . valsa e muito mais. Só depois de parte da composição e arranjos prontos é que cada um dos instrumentistas com a ajuda de meu monitor. .. . . na maioria. p. antes. Mas observa também que ocorrem “. solene e místico” resultantes dos acordes com quartas e quintas justas sem terças. . ele deixa claro seu pensamento contrapontístico nas partituras.4 da segunda partitura do Anexo I) fala da improvisação de Hermeto como um frequente “grande adensamento de notas”. . .23). . por isso. O saxofonista Carlos Alberto relata a importância que Hermeto confere à sofisticação de sua criação musical: “Só que. formados por tríades simples empilhadas umas sobre as outras. remanescente dos trovadores renascentistas. PRANDINI (1996. na música erudita. 2001) “Conforme vou compondo. 1999. . . os discos do Luiz Gonzaga tocando no megafone. um elemento típico da música erudita. “herdeiro” das práticas musicais de Hermeto no Jabour. 2000). . demonstrando complexidade e nível artístico de composições previamente elaboradas PRANDINI (1996. bolou uma linha contrapontística para duas flautas para acompanhar o repetitivo tema da música O Pássaro do guitarrista Lanny Gordim. desenvolvendo a habilidade da escrita musical. até as quintas diretas dos power chords do rock. tercinas e fusas dentro de um “pensamento diatônico” junto com os quais podem aparecer a fixação em um acorde apenas. Reproduzir de ouvido o que vou criando desenvolve a percepção rítmica. “. o contracanto tinha sumido da gravação. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. desde os organa medievais. COSTA-LIMA NETO (1999. inspirada em Tom Jobim (PASCOAL. samba. forró.148) reconhece ecos modais e sonoridades de “. e em seguida vou abrindo as vozes para todos os instrumentistas. superposição que. .BORÉM. na hora da mixagem. e apesar da possibilidade de Hermeto ter ouvido estas referências na sua vida de músico profissional maduro entre músicos letrados. em menor grau. F. a escalas Menor melódica. 2010. ficar na oficina do avô ferreiro. embora seus acordes sejam bastante elaborados.22-43. Novamente. batia na peças de ferro e tentava emular todos os harmônicos que ouvia no seu fole de 36 oito baixos. burilando as músicas ali no contato com os instrumentistas. do modalismo típico nordestino. com predomínio de semicolheias. muitas vezes complexas. os quais normalmente se associam. como o recorrente acorde X4568) e mesmo. A orientação pela prática. andamentos e atmosferas é relatada por ele mesmo. o olhar cravado na partitura. efeito imponente. oriundo das exaustivas práticas de ensaio diárias e não da teoria. melódica. e era tudo isso junto. terá o mesmo efeito prático da politonalidade. ele disse que costumava. “fala e ruído de animais”.22.. Tudo 100% instrumental. Embora tenha utilizado uma amostragem pequena e tenha simplificado a harmonia de Hermeto nas suas transcrições e grafia. . passando pelas harmonias paralelas de Debussy. . mesmo. Da mesma forma.” (ZWARG. Em Pedra do Espia há chorinho. são. . da referência auditiva.91). como relata Jovino: “É necessário compor e escrever como se fosse improviso e tocar como se fosse escrito” (COSTALIMA NETO. . . Mas a simultaneidade de linhas melódicas na música de Hermeto não parece derivar de suas experiências com música erudita mas. . pertence ao vocabulário de Hermeto desde o início de sua carreira. Per Musi. p. O Hermeto ficou tão bravo que queria pegar o técnico. característica fundamental no processo criativo e coletivo da Itiberê Orquestra Família. uma preferência pelas escalas Lídia. o que pode ter servido de modelo para ele na “. n. . 2000a. . Ensaiamos muito. F. . na infância. . p.. . harmônica e a memória musical. Muitas vezes. parte por parte. . O que sai dessas reuniões de corpo presente é delirantemente variado. Isto nos dá a oportunidade de criar música sem ser baseada na utilização de escalas e modos. .que usa a visão. . os quais aprendeu na Escola Jabour e levou para o exterior: É sempre difícil explicar os conceitos harmônicos de Hermeto. p. . Na gravação do disco Brazilian Octopus (1969). ”. em um instrumento qualquer. Superlócria e Dórica (e. permitiu ao discípulo Itiberê Zwarg. Tenho mostrado este conceito aos meus alunos aqui na [Escola de Música do] Cornish College of the Arts em Seattle [Estados Unidos] e é surpreendente como reagem quando descobrem que simples acordes podem criar harmonias complexas (GILMAN. . bandinha da escola. a diversidade harmônica que se encontra nas composições de Hermeto também parece estar presente em suas improvisações e é fruto de sua abordagem. Mais do que isto. p.134). misturar sem preconceitos. o documento com dezessete Princípios da Música Universal criada por Hermeto Pascoal. . organizado pela discípula a atual esposa Aline MORENA (2008). Ex. G 4568/F. em apenas 24 compassos contendo uma cifra cada. só com modulações” (PASCOAL. F. .BORÉM. todos os estilos e todas as tendências. 2000a. que ele descreve assim: “compus esta música nos doze tons. . p. Estão claros os dois procedimentos nos quais Hermeto se baseou para compor os encadeamentos harmônicos desta música: o mesmo tipo de acorde com fundamentais diferentes. são todos os mundos. . mas com bom gosto. . Hermeto precisou criar um para dar conta da diversidade que é o princípio básico de seu conceito de música universal. . máxima variedade de acordes e ambiguidade tonal de Hermeto Pascoal na música12 e novembro de 1996. Per Musi. mas sobre o mesmo baixo (como nos c. 2010. é alimento para a alma”. é visionário e valoriza atitudes como “. . só busca encontrar-se.24-25) identifica na música universal opções de estilo de vida. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. tanto em obras mais antigas quanto mais recentes. .22-43.. com 4ª. ARAÚJO. Ab 4568/F. o mesmo tipo de acorde com a mesma fundamental. 2008). . como “arte” e “qualidade”.. sem perder a coerência do discurso tonal tradicional da música popular. COSTA-LIMA NETO (2008. um passeio “bem-temperado” por todos os acordes das tônicas dos 24 tons maiores e menores. 5ª. 2006. criar. . em muitas músicas. a predominância de um tipo de acorde sobre os demais é muito comum. 1980). p. imaginar e se inspirar nos sons da natureza. . no manuscrito do compositor de O Ovo (PASCOAL.. p. 2006. n. sendo o país mais colonizado do mundo. aquela mistura bem feita . Como se fosse um Bach da música popular do século XX. esporadicamente.13: B 4568/D#.5 – Economia de meios harmônicos. Geralmente ele recorre à repetição dos mesmos tipos de acordes e a transposições de encadeamentos harmônicos (sequências). 6ª e reforço da oitava).165). consegue utilizar uma variedade máxima de acordes. . Já em Amor. Aqui.7). em oposição a “dinheiro” e “quantidade”. peça gravada pela primeira vez no disco Quarteto Novo (1967). . . que ele diz ter composto “com um tipo de acorde. . Por exemplo. B 4568/D). A economia de meios é ainda mais evidente em 22 de agosto de 1996. p. De fato. Este conceito torna a música uma experiência mais ampla do que apenas o fazer musical. como afirmou em uma entrevista à revista eletrônica Jungle Drums (citado por ARRAIS. Uma das características do estilo composicional de Hermeto Pascoal é a economia de meios na utilização do vocabulário harmônico. 37 . atravessado de propósito para ver a marcha ficar trocada. p. paz e esperança (PASCOAL.2 % do total de 41 acordes da peça (juntas. essas versões maior e menor deste acorde equivalem a 78% do conteúdo harmônico utilizado!).22.5). .”.6 % dos 45 acordes da peça. ele consegue concentrar. . ” (CAMPOS. ele recorre mais uma vez ao típico acorde X 4568 (sem terça. no qual cabem “. Avesso a rótulos. ao invés de configurar modulações (Ex.8% e os acordes do tipo X479 correspondem a 29. Tal coerência poderia ser explicada alternativamente como ambiguidades ou polarizações em torno da tônica e da supertônica. amar. baseando-se em apenas dois tipos de acorde (X7+ e Xm 479). a confraternização e o amor entre os povos. Desta forma. . qual tocava tambor. Eb 4568/F) e. Belo Horizonte. não poderia ser outra coisa . os acordes menores do tipo Xm479 correspondem a 48. . O Brasil. . . maiores e menores” (PASCOAL. mas sobre baixos diferentes (como no c. 2000a.83). nota-se que a recorrência de acordes do tipo X4568 / 4 ocupa 75.9-10: Bb 4568/F. A genialidade harmônica de Hermeto fica evidente com a solução encontrada para sua concepção planejada para a música 12 de novembro de 1996. F. . E eu tocando o Hammond. foi com muita alegria que musiquei sua imagem. . A religiosidade de Hermeto aparece nos títulos de muitas músicas. Então nesse meu disco agora. Ele diz: “Eu vivi nesse meio e tenho muita experiência que o pai dela passou pra mim sobre . finalmente. Hermeto está atento às tradições religiosas indígenas e afro-brasileiras. Comecei a tocar e sentia muito a presença dele na minha mente. como sussurros. nas procissões dos benditos e nas rezas das novenas (CAMPOS.69).1982). .. . que som. enquanto o andamento acelerava até o final free. . . 1999): “Essa música com o Miles foi o seguinte.. Bolão e Princesa adensavam a textura geral. COSTA-LIMA NETO (2010a). 6 . . Aí o Miles correu de lá e disse: ‘Oh. por ser um gênio. Mentalizando a cruz (disco Brasil Universo. que começa a capella. A amizade que estabeleceu com Miles Davis refletiu-se na música de Hermeto muito tempo após a morte do jazzista norte-americano. como em um recitativo (recto tono) de uma missa católica medieval. de fato. 1979). improvisado” (COSTA-LIMA NETO. . Missa dos escravos (disco Slaves Mass.1984). 2007). Brazilian adventure). No processo de gravação de Magimani Sagei (1982). p. [para] retribuir.2) “Eu rezo com a música. um duo de porcos grunhindo dialoga com o solo vocal de gargalhadas. e nos expressa isto.10). horrível. Igrejinha (gravada como Little church no disco Live evil de Miles Davis). 2006. tecladista do Pat Metheny Group diz que “Ele tem uma verdadeira devoção com o fazer musical. religião escolhida por muitos familiares de sua primeira esposa. e uma série de aliterações com palavras em torno do título: “. eu não precisei escrever partitura nem nada. Uáaaa. chiados. p. tanajura”). A superposição incomum dos dois andamentos em “Mestre Mará” indica a presença de duas dimensões simultâneas. pioneiro da filosofia cósmica afro-futurismo] Sun Ra e um individualista como [o multi-instrumentista e militante Afro-Americano] Rashaan Roland Kirk ” (McGOWAN e PASSANHA. p. Os latidos dos cachorros Spock. . o técnico de estúdio Zé Luiz inventou. da revista Down Beat. De fato. e que tem correspondência com uma alta entidade espiritual na umbanda: “.. As experiências religiosas estão presentes desde sua infância em Lagoa da Canoa. Hermeto recorre a “. município de Arapiraca. nesta música o alagoano revela outra faceta de sua espiritualidade ao cantar: ‘Ô Mestre. . ecumênico. 1971. poeta. 1977). o compara com outras referências místico-musicais: “. Na gravação é que estava muito mais forte a intuição. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. Santo Antônio (disco Zabumbê-bum-á. Magimani Sagei (disco. mas não era nada mais do que os morcegos dentro da igreja” (CASTRO. filósofo. ogorecotara. que coisa bonita isso aí’. Falando da “cosmologia pessoal” de Hermeto Pascoal. música com clima de dança tribal que se refere à índia cabocla Magimani Sagei (um possível “alter-ego de Hermeto”). . acompanhada pelo naipe dissonante de flautas e tendo como base os batuques dançantes dos tambores da bateria. em uma mesma nota grave contínua. RODRIGUES. . . um cara tão musical. a pedido de Hermeto. 2010. aparentemente inspirada nos cantos de rezadeiras e nos benditos e incelenças do catolicismo popular nordestino (COSTALIMA NETO. . aconteceu agora. . .” (McGOWAN e PESSANHA. .. mais rápido. choro e gritos de Flora Purim. . A música parece. glissandi. . eu conversando com ele. aumentei o volume e o som veio pela intuição. superpostos a uma melodia lenta tocada na flauta transversa em uníssono com a voz cantada. Ecumênico. tocando samba no flugelhorn.161). Uáaa. 2009) Hermeto. que ele mesmo relata: “Com 8 anos.11-12). Santa Catarina (1984). ao lhe dedicar a música Capelinha e lembranças (disco Eu e eles. a melodia cantada por Hermeto está numa velocidade (andamento) lenta. 2000. palavras com sonoridade tupi (“oirê. . 2003) A religião. não são duas músicas. e das tradições musicais relacionadas ao catolicismo popular do nordeste. Per Musi.22-43. Dona Ilza. Religiosidade (disco Cérebro Magnético. 1999. 38 Em outro exemplo do sincretismo afro-indígena no Brasil. Nesta música. com o instrumento indígena ‘maracá’. .BORÉM. Mestre Mará (1979). 1980). acredita que o Calendário do som (2000) é “uma obra sacra ‘inspirada por Deus’”. p. . que eu fiz essa música e dediquei a ele. Novena (disco Hermeto Pascoal e Grupo. Devoção. Lyle Mays. 1982). . especialmente aquela dos ritos populares brasileiros. tosse. ARAÚJO. enquanto. aquele convite que ele fez no disco dele [que] . 2008. p. gritos” para criar a ambiência afro-brasileira de Mestre Mará (1979). Em Missa dos escravos. ataques glotais. Ele aprendeu gravando essas músicas no estúdio. o nome do mestre ‘Mará’. me comunicando muito com ele espiritualmente. . Aquilo é a introdução da melodia” (BARROSO. técnica muito comum na embolada nordestina. F. . recebi sua mensagem. achava que era alma. 16 de março de 1997 do Calendário do som (dedicada ao médium espírita Doutor Fritz e seus irmãos espirituais). . Pascoal é um líder pan-global como [o compositor e pianista de jazz. recursos vocais não convencionais. e ficou. . enquanto o coro explorando recursos vocais não convencionais está em outro andamento. tocando num órgão elétrico que ele tinha lá. . além da Umbanda. para associar a denominação do ritmo afro-brasileiro ‘maracatu’. F. . . . São Jorge (disco Zabumbê-bum-á. . 2008. Ou Deuses. relançado em CD como Hermeto Pascoal. p. ele aprendeu essas músicas minhas [Little church e Nem um talvez no disco Live evil de Miles Davis]. O jornalista Howard Mandel. 1985). p. além do gato-do-mato (na língua indígena) ‘maracajá’ e. n. sopravam apitos e gritavam. com os quatro flugelhorns. . Monte Santo (disco Lagoa da Canoa. . 1979). incluída no disco Slaves Mass. No final. admira a doutrina espírita. entre outras. 25 de dezembro de 1996 do Calendário do som (dedicada a Jesus). . SOUZA e ROCHA. . sempre fez parte do mundo musical de Hermeto Pascoal. . Hermeto Pascoal (O.. . . . p.22. Mesmo os músicos estrangeiros e que tiveram pouco contato com Hermeto percebem a religiosidade com que ele abraça a música. Belo Horizonte. do espiritismo.11). aquilo é uma música só. . colocaram como se fossem duas músicas. brincando com ele.Hermeto Pascoal: “Minha religião é a música” (GONTIJO. nos breques instrumentais. pode-se observar novamente a voz como elemento típico da música ritualística: “A frase cantada ‘Chama Zabelê pra poder te conhecer’ é entoada hipnoticamente num crescendo. como Velório (disco Hermeto. os músicos falavam palavras desconexas.’ O ‘mestre’ em questão parece estar relacionado a outra figura que Hermeto denominou ‘O Dom’ ” COSTA-LIMA NETO (2008. ser um instrumento religioso de comunicação para Hermeto. com o instrumento”. 1991. depois dele lá no outro plano.160). nos mistérios das crenças. sem centros modais definidos (que.BORÉM. . . dentro do seu eclético estilo composicional. onde pretende-se a discussão sobre música e seu papel na melhoria do ser humano (PAULA. . autodidata. os clusters atonais da segunda escola de Viena. a sua religiosidade tornase explícita na intenção de emular uma sessão musical espírita no estúdio de gravação e se comunicar como o colega jazzista Julian “Cannonball” Adderley (19281976).22. inclusive os eruditos. basta acompanharmos a trajetória musical deste músico genial.. p. que terá o acervo do Hermeto. as manipulações eletroacústicas remanescentes de Pierre Schaeffer e Pierre Henry. p. mas os resultados sonoros não ficam aquém daqueles do tonalismo. não tradicional. uma sala onde haverá o acervo multimídia. entretanto. ecos derivados diretamente de estilos eruditos. Não é preciso olhar para trás. . p.” A linguagem atonal geralmente aparece na música de Hermeto Pascoal como música da aura. além de disponibilizar manuscritos originais. vão estar disponíveis os vídeos de shows. .2). recebe os fenômenos sonoros cotidianos. Sempre que lhe perguntam sobre religião. No caso de Hermeto. 1977. mo- 39 . segundo sua esposa e parceira musical Aline Morena. p. no longo trecho de piano solo que inicia a música.42-43) identifica em Hermeto Pascoal: o “espelho do tempo e da sociedade”. 2007). meu filho. SOUZA e ROCHA. .” (CASTRO. mesmo. por isso. coragem. Além de acontecerem espetáculos de música universal. . 2007). . . 2010. p. para reconhecermos. superposições politonais e emancipação rítmica de Stravinsky. COSTA-LIMA NETO (2008. 2000. como melodias acompanhadas chopinianas. vê?” (O. como Ilza na feijoada.Deus fez uma escada infinita e a deu de presente a cada um de nós. aos Deuses e ao meu dom espiritual e musical”. nesse volume de Per Musi. ninguém de Alan Kardec na TV pegando dinheiro. terá uma função educacional. F. Hermeto parece preparado para deixar o legado de sua missão na terra: “. Uma análise da gravação e das partituras (veja a partitura original desenhada em forma de espiral no presente número de Per Musi [PASCOAL e PEREIRA. n. “.11) diz que “. . O caminho é outro. . e. . Sol Eólio/Menor Melódico) que sugerem as etapas de uma sessão espírita: o contato. Murray Schafer. acordes paralelos debussynianos. Per Musi. os contrapontos. Você não vê. as paisagens sonoras de R. F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. na qual “. . com polarizações modais (Sol Dórico/Eólio e. revela uma utilização expandida da linguagem harmônica modal. mesa branca. o som que embala a alma. Não é algo separado das atividades do dia-a-dia.63-79 no presente volume de Per Musi). performance. . resultando uma melodia totalmente atonal e de ritmo assimétrico” (COSTA-LIMA NETO. não-letrado. as premissas da economia política da música de Jacques Attali que COSTA-LIMA NETO (1999. por exemplo. p. a incorporação espiritual.. recém-falecido. 2006. a “ação crítica”. formada em educação física. 2007). “Tudo o que sei e serei agradeço a Deus. . . . . Entretanto. Deus me disse: ‘A religião de vocês aí. recém-falecido. transpõe as diferentes durações e alturas da voz falada em prosa para o piano. veja artigo completo às p.176) ou o som percutido de peças de metal de natureza programática como em Ferragens. Embora seus ouvidos de “gravador infinito” estiveram (e estão) literalmente atentos a todos os sons que o cercaram. O Templo do Som Hermeto Pascoal.a tendência em buscar referências musicais ao mesmo tempo consagradas e generalizantes (música erudita. Alan Kardec. 1999. as transcrições de Messiaen de sons da natureza para o piano.e centrado na transmissão oral do conhecimento. gravada no disco Slaves Mass por Hermeto PASCOAL (1977). . 2010. É o que vocês gostam de fazer na vida’ ” (GONTIJO. cujo projeto arquitetônico “. e a despedida com a alma de “Cannonball” (BORÉM e FREIRE.]). já na sua infância. (PASCOAL. Em Cannon. p.” Já em Mentalizando a cruz. O familiar é tornado exótico e vice-versa. ARAÚJO. em que faz referência à atividade da esposa desde seus tempos no Recife. arranjo e improvisação. os ruidismo musicais de Luigi Russolo. a música conceitual de John Cage. jazz). . porque a vida já é um espelho. um teatro. para o qual não existe divisão entre composição. é o trabalho. “. as superposições métricas e harmônicas de Charles Ives.80-82. Hermeto alterna um modalismo extremamente instável. como numa psicografia.18) 7 . já está pronto e é assinado pelo arquiteto Mário Biselli” será um espaço que. ou Aula de natação que retrata a lida diária da filha Fabíula Pascoal. a complexidade rítmica de Boulez.” motivada por emulação de sons de altura não definida como a fala humana (como em Aula de Natação. 1992 ) revela Hermeto recitando sobre “.” (CASTRO. RODRIGUES. pode ser percebido como quase-atonal). o “atributo do poder político e religioso” e o “germe da revolta”. seu processo de aprendizagem é único – resultado de suas experiências de vida musicais e não-musicais .Considerações finais Ouvidos desatentos às experiências de vida de Hermeto Pascoal podem reconhecer.78) não se aplica. teria ‘soprado’ esta música aos seus ouvidos. em que “meu ouvido absoluto.70] e a partitura restaurada [PASCOAL e BORÉM.” (CAMPOS. . Estou subindo os degraus e vou continuar subindo. Uma escuta atenta da música Chapéu de baeta (disco Festa dos deuses. p. Hermeto diz que “Minha religião é a música. Este interesse nas tarefas comuns e trabalho dos que cercam Hermeto também se reflete nos títulos de suas músicas. foi composta por Hermeto e dedicada ao músico Paulo Cesar Wilcox” e que “Hermeto parecia convencido que o homenageado.22-43. o transe. de workshops..é sair com fé. o culto à música por Hermeto e seus seguidores tem tomado a forma de um local público que abrigará. . quem premedita não procura e jamais encontra . 2003). depois. Belo Horizonte. . gravações raras e imagens. Em Canon para flauta solo. os modelos modais de composição e de improvisação oriundos do jazz. . SOUZA e ROCHA. Aos poucos. 2000b. p. com muita meditação. 2ed. paisagem sonora e música concreta da música erudita. CAMPOS.cliquemusic. arranjos de Paulo Jobim. 2000.graffiti76. 2004).uol.22. Org. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos em uma obra-prima para flauta. . 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Foi professor da FAMES (Faculdade de Música do Espírito Santo) Atualmente é Professor Assistente do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Egberto Gismonti. Rio de Janeiro: UNIRIO. 2009). Bernardo. 2009). dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. José. Adauto Novaes. Pretextato. VILLAÇA. São Paulo: Editora Senac. Fábio Mechetti. RODRIGUES. o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa.68-82. 2000. Flora. In: www. 2001. Késia Decoté. Ed. ______. 2005 (CD duplo). June. Glossário universal.htm>.com/airto. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista. Harmonia.. PURIM. In: Slaves Mass. Eduardo Seincman. A música universal. Org. Eduardo Seincman.com. Música de Invenção. In: http://www. 2003. O minuto e o milênio ou por favor professor. João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura / Diretoria Geral de Cultura.itibereorquestrafamilia. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma.nscottrobinson. 2002. Relese 07: Compor de corpo presente. 2000 (contra-capa). Toninho Horta. 43 . Kristin Korb. ______. Per Musi. Sistema Modal na música folclórica do Brasil. 2009). WISNIK.com. 2009b (Acesso em 20 de janeiro. Suas gravações incluem o CD Brazilian Music for the Double Bass. São Paulo: Via Lettera. Henry Mancini. compositor e professor. teórico. Este desenho. Fabiano Araújo é Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG e Bacharel em Música Popular pelo Centro de Artes da UNICAMP. Rio de Janeiro: UFRJ. In: Autores e intérpretes. três capítulos de livro. Trad. José Miguel.php (Acesso em 10 de janeiro. Bill Mays. n. In: www. Apresentação de Sérgio Cabral. SIVUCA. p. In: www. Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).slipcue.021). In: www. acesso em 9 de fevereiro de 2009) TINÉ. Paulo José de S. SIXPACK.. Itiberê Zwarg e Itiberê Orquestra Família. Modern Drummer. Rio de Janeiro: Europa.com. 2007. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar.22. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro.com.br/sesc/hotsites/mpb5. n.vidasimples. TÁRIK DE SOUZA. v.. Cifragem universal. ARAÚJO. Editora Mandruvá.br. SANDRONI. N. dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição. análise. Hermeto. Revista Internacional VIDETUR-LETRAS 6. 2009a (Acesso em 20 de janeiro. 9 de dezembro. 2009).com (Acesso em 10 de janeiro.22-43.. Dezembro. Gravadora Maritaca. P. TABORDA. com a participação do contrabaixista norueguês Arild Andersen do baterista Alexandre Frazão (Brasil/Portugal) e do saxofonista Guto Lucena (Brasil/Portugal). uma década de cada vez. Seu novo trabalho de interpretação de nove peças do Calendário do Som de Hermeto Pascoal foi gravado e publicado em Portugal. Arnold. Arnaldo Cohen. SCHOENBERG. 2009 (Acesso em 20 de janeiro. Disponível na Internet :<www.br. São Paulo: Editora UNESP. etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais. Calendário do som. a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire. onde leciona Harmonia. Edmiriam Módolo. 2009). Roberto Corrêa. Guide to Brazilian music. Yoel Levi. Trad. 2009).br. Otávio. Música popular instrumental brasileira (1970-2005): uma abordagem subsidiada pelo estudo da vida e obra de oito pianistas. Leonard Stein. A Harmonia no Contexto da Música Popular – Um Paralelo com a Harmonia Tradicional.6. Itiberê. onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi.BORÉM. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação. Trad. Leonard Stein. São Paulo: Via Lettera. Luiz Otávio Santos. Estruturação. musicologia. In: Anos 70: 1 – Música popular. ROBINSON. vida e música de Hermeto Pascoal para crianças. In: www. Midori. ______. In: www. Improvisação e Teclado. mas. bateria.NETO. Alagoas) é conhecido no Brasil e no exterior como um músico multi-instrumentista. oficialmente. arranjador e compositor. além de revelar que a sua música e a sua personalidade partilham uma mesma ética. de teclas. um tema devidamente contemplado nos estudos acadêmicos. nós somos pássaros também (PASCOAL. Hermeto Pascoal (nascido em 22 de junho de 1936. 1. The singer Hermeto Pascoal: the voice’s instruments Abstract: Article about Brazilian composer Hermeto Pascoal’s utilization of his voice in his music. voz.dez. in which the voice is the instrument. este não foi. até então. Hermeto Pascoal. culminando o longo “namoro musical” com o canto. Depois. a voz se tornaria um instrumento tão importante quanto os sopros. shouting. com objetos sonoros não conven­cionais ou. ainda. flauta. no timbre de uma voz. tossindo. De fato. música popular brasileira. n. sozinha ou simultaneamente com instrumentos de sopro.. o cantar de cada um de nós. a voz foi algo que o motivou “para fazer música”. com os demais instrumentos. desde quando ele era criança. sax. da qual a voz é instrumento. non-conventional sound objects or even other forms. jul. Brazilian popular music. Além disso. gargalhando. C-L. sua atual companheira. Ao invés disso..22.. Eu me inspiro mais na pintura. praying.22. ela parece integrar. Entretanto. as cordas. Per Musi. whispering. contrabaixo. 2010.) O cantar das pessoas. Hermeto Pascoal também utiliza a voz. Jane Duboc e Luciana Souza e. A quantidade numerosa de composições gravadas onde a voz se faz presente na obra do alagoano demonstra sua importância. produzindo sons guturais. sussurrando.44-62. laughing. instrumental music. in a comprehensive way. whether singing.1 ao invés de limitar-se a utilizar somente instrumentos como piano. em seus discos autorais Hermeto sempre contou com a participação de cantoras como Flora Purim. alone or simultaneously with wind instruments. etc. um continuum indivisível que perpassa o território sonoro da Música Universal. é o que chamamos de fala. música instrumental. as well as revealing that his music and his personality share the same ethics. de maneira abrangente. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz Luiz Costa-Lima Neto (UNIRIO. nem um compositor de canções. 239 p.br Resumo: Artigo sobre a utilização da voz na música do compositor Hermeto Pascoal. apesar disso. um cantor. mesmo não sendo ele. coughing. teclados eletrônicos. falando. p. Hermeto vem sendo considerado apenas como um compositor “multiRecebido em: 21/08/2009 . (. PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. In considering the use of the voice in the work and life of Hermeto Pascoal. Zabelê. Assim como os pássaros.com. L. seja cantando.Aprovado em: 20/03/2010 . . Rio de Janeiro) lclneto@yahoo. Belo Horizonte. – além de instrumentos não convencionais –. 1997). ao longo de sua carreira profissional. I am seeking to show a lesser known facet of the versatile composer from Northeastern Brazil. producing guttural sounds. 2010 44 Na citação utilizada como epígrafe deste artigo Hermeto Pascoal relata que. o compositor se casou com a cantora gaúcha Aline Morena. na minha concepção. talking.Introdução Eu me inspiro mais nas outras coisas para fazer música. conforme Hermeto Pascoal designa a sua música inovadora. Eu não escutei música para compor. Não. em aproximadamente 60% das músicas gravadas em 13 discos autorais lançados a partir de 1972. rezando. no Olho D’água da Canoa. Palavras-chave: etnomusicologia.. Ao contemplar a produção vocal na obra e na vida de Hermeto Pascoal. de outras formas. Keywords: ethnomusicology. keyboards. whistling. Hermeto Pascoal. os teclados e a percussão. que problematiza a separação entre os pólos popular/erudito e nacional/internacional. assobiando. pretendo mostrar uma faceta pouco conhecida do versátil compositor alagoano. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. voice. gritan- do. Hermeto Pascoal chegou a acreditar que tinha algum problema auditivo. Entretanto. intitulado simplesmente Hermeto. a música abrangeria tanto o som. dos sons dos animais e dos objetos cotidianos. entrevista com o autor. Ela inclui não apenas os animais e as matas.2 Nelas. Ao fundir o “natural atonal” e o “convencional modal e tonal” ele cria a sua Música Universal. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. se Hermeto Pascoal está. O experimenta­lismo musical já transparece na peça Velório. ritmo. A partir destas entrevistas relacionarei a vida e a obra de Hermeto Pascoal a certos personagens no imaginário popular do Nordeste. durante uma tempestade” (PASCOAL. para chegar ao atonalismo. como a voz falada. Ainda na epígrafe do presente artigo Hermeto Pascoal afirma que.). Esta percepção ampliada e precocemente experimental surgiu na infância do músico. Per Musi. Som musical e discurso. Muitas pessoas pensam que Dó. nota por nota. C-L.. o “cantar das pessoas é a fala”. os demais instrumentos e os elementos da sintaxe musical (timbre. Não se trata de uma metáfora. ele provava para si mesmo e para os outros que não era “aluado” e nem tinha problemas auditivos. são har­monizadas e arranjadas para outros instrumentos. Hubert Laws. Hermeto Pascoal cria uma dicotomia entre. 1999). depois. de outro lado. narrações e os títulos das composições de Hermeto Pascoal. relacionado a estes e a outros gêneros musicais importantes. Desta maneira. como. o frevo. que só ele parecia es­cutar. ele os ultrapassa através da utilização de fontes sonoras que. instrumentista” vinculado às tradições da música instrumental popular. mas não é. mas “pode estar também num carro na Avenida Brasil. aleatorismo e outros “ismos” Hermeto Pascoal não frequentou escolas de música nem dependeu da música europeia de concerto. os gêneros e estilos modais e tonais. depois. Esclarecerei melhor meu argumento a seguir.4 a voz é utilizada pelo compositor alagoano. como. Hermeto realmente escuta as falas das pessoas como se fossem melodias cantadas. da natureza. etc. não são consideradas “música”.. palavra cantada e palavra falada podem ser considerados como instrumentos da voz. então. desde a sua infância no Nordeste. o compo­sitor decidiu se libertar dos fantasmas que o assombravam desde a infância. é apenas o convencional (. de um lado. Sol. ele escutou atentamente o que estava a sua volta. uma estrela de primeira grandeza em sua música.. composição que exemplifica a importância da voz e dos objetos sonoros não convencionais na música de Hermeto Pascoal. Através do “natural”. mas sem negá-lo. a análise etnomusicológica realizada neste artigo contemplará não apenas o canto. 2010.). inclusive. Hermeto é dotado de ouvido absoluto e de uma escuta ampliada através da qual tudo parece se tornar música. Dó é natural.22. Hermeto ultrapassa o “convencional”. L.. p. do jazz norte-americano ou de qualquer outro gênero musical. por outro lado. Ao invés disso. presente em gêneros e estilos. tendo lhe causado. ruidismo. pela cantora Googie e pelo casal Flora Purim e Airto Moreira. O atonal é a coisa mais natural que existe” (PASCOAL. E. na natureza e no cotidiano. n. A fala se tornaria. Sua própria mãe o chamava de aluado (“lunático”) devido à insistência in­comum do garoto e. textura. denominando-as músicas da aura. Estes dados serão complementados pelas entrevistas realizadas com membros de sua família. acredito que a partir de seu relato podemos depreender uma interpretação adicional: se “o cantar das pessoas é o que chamamos de fala”. Começou. entrevista com Gonçalves e Eduardo. como também as letras. 1999). as bandas de pífano ou o jazz.) é tudo o que você vê pela frente”.44-62. alguns problemas junto aos familiares que não compreendiam por­que o menino insistia em dizer que essa ou aquela pessoa estava cantando enquanto falava. por exemplo. através da música da aura. 1998:48). Nesta composição. o “natural” (as sonoridades universais e atonais da fala. As vozes são an­tecedidas e sucedidas por uma orquestra dissonante e atonal constituída por 36 garrafas (00:02 – 01:40). nacionais ou internacionais). nos teclados e. o choro. rurais ou urbanos) e. as vozes de Hermeto. Desta forma. Como demonstrei em outro estudo (COSTA-LIMA NETO. onde estive em 2008. É o que pretendo realizar neste trabalho. o “convencional” (o canto e os demais instrumentos. nos EUA. onde o músico nasceu – um local praticamen45 . em sua concepção. Como Hermeto Pascoal afirmou: “A natureza é o cotidiano (. As notas e ritmos foram escritos por Hermeto em partitura e. por exemplo. Belo Horizonte. demonstrando a maneira paradoxal como o compositor alagoano exerce a experimentação através dos sons cotidianos e daquilo que é mais prosaico. Flora e Airto são ouvidas logo na seção inicial (00:14 – 01:11) e imitam a paisagem sonora dos enterros na terra natal de Hermeto ao simular rezas-dedefunto5 entreouvi­das em meio a sussurros e murmúrios aleatórios. complementando a afirmação anterior: “Eu sou o oposto de muitas escolas. convencionalmente. o forró. regionais. Embora na citação utilizada como epígrafe Hermeto esteja se referindo ao papel fundamental que a musicalidade da fala teve na gênese de sua Música Universal. lançado em 1984. tais como Joe Farrel. Pelo contrário. a palavra e os sentidos por ela enunciados.NETO. também. e utilizou aquelas sonoridades em sua música.O cantor Hermeto Pascoal Em quatro das nove faixas do primeiro disco autoral lançado em 1972 (Buddah Records).3 2. um pouco surpresos com seus novos instrumentos de sopro. Mi. na região de Lagoa da Canoa. de fato. na hora do rush. A fala humana forneceu para ele os rudimentos de sua Música Universal ao lhe ensinar as primeiras melodias – atonais e ritmicamente assimétricas. Décadas se passaram e somente a partir de seu LP autoral. harmonia. Os objetos sonoros não convencionais foram os primeiros instrumentos de Hermeto Pascoal no Olho D’água da Canoa. Desta forma. Município de Arapiraca. intitulado Lagoa da Canoa. como Zumbi dos Palmares. as melodias da fala são reproduzi­das. Lampião e Antônio Conselheiro. as partes foram interpretadas por jazzmen de renome. a gravar em disco as melodias da fala. desta maneira. Ron Carter e Thad Jones. A orquestra é introduzida na terceira seção. na qual Hermeto Pascoal se alterna improvisando no safo (01:42 – 03:29). apelidado Sena da Bolacha. a peça chega a quarta e última seção. Antes. festas e bailes em Lagoa da Canoa. em seguida. de maneira algo irônica.NETO. a composição intitulada Cores (1982). é uma “mistura de berim­bau com máquina de escrever”. 1975) As tradições musicais regionais ou “folclóricas” não são.8 Após a introdução atonal da música Velório. forrós. isto é. A ironia com que Hermeto e os músicos parecem emitir os glissandi merecem um comentário à parte. Nos sons inarmônicos dos sinos. entrevista com Ezequiel Neves. Ilustrando a influência dos sons inarmônicos em sua Música Universal. quando criança. Hermeto Pascoal revelou em entrevista comigo (1999) que os sons dos ferros percutidos serviram como modelo para que ele. mas um brasileiro que faz música.294). tocava sanfona de oito baixos. destemperada. com o tutti. Airto e Flora passam a entoar glissandi “fantasmagóricos” em “u” e “a” (01:22 – 01:42). presente na maioria dos instrumentos melódicos e harmônicos da orquestra. há uma distorção na afinação. algo a ser preservado visando à perpetuação de uma suposta “autenticidade” das “verdadeiras raízes” nacionais. as vozes de Hermeto. acredito que outra explicação faz-se necessária. exercer a experimentação. Em sua obra. Talvez a forma suíte ocorra na música de Hermeto Pascoal porque o músico. sucedidos pelo solo estridente do safo (ou sapho). fabricado no Japão. cujas notas correspondem aproximadamente aos parciais de uma placa de ferro percutida. p. Lá. e vice-versa. L. descobrisse acordes atonais e dissonantes na sanfona de oito-baixos. apresenta acordes tocados por dois pianos. segundo Hermeto Pascoal (citado por CABRAL. enquanto Hermeto Pascoal improvisa na flauta transversal baixo (08:00 – 08:32). a mais longa da peça. O próprio Hermeto Pascoal parece fornecê-la: “Todas as minhas composições começam com uma ideia e terminam com mudanças de estilo. De fato. através da qual o músico e “o onipotente” se aproximam gradativamente. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. constituíram a “tríade” paradigmática experimental da música de Hermeto Pascoal. O resultado psico-acústico é que o som inarmônico é percebido sem uma altura definida. (. sempre tendo a “cozinha”9 ao fundo (05:43 – 07:32). estavam associadas às melodias da fala que hoje integram as músicas da aura. “as parciais estão em relação não-harmônica. p. gongos e outros objetos metálicos. de acordo com a vontade dos dançarinos. porque apresentam pequenos aglomerados de ruído” (idem). em Palmeira dos Índios e em povoados próximos. Folclore? O que é isso? Pra mim só existe música. (PASCOAL.11 . 2000). por sua vez. enquanto lá fora todos estão esgotados. quando garoto. ainda. num continuum sem rupturas. n. uma suíte. Belo Horizonte. Per Musi. As duas explicações. mas as consoantes têm características espectrais “muito mais complexas. carrilhões. Na série harmônica. Acima dos “acordes inarmônicos”. popularmente denominada pé de bode. assim como os sons inarmônicos de objetos musicais não convencionais. por exemplo. um instrumento de cordas. Quanto à forma livre denominada rapsódia.. o músico alagoano recorre à tradição para. No que diz respeito aos sons produzidos pela voz. muitas vezes a forma musical das composições de Hermeto Pascoal parece resultar deste ritual religioso. as frequências parciais mantém com a frequência fundamental uma distância “igual à multiplicação desta [fundamental] por um número inteiro” (CAESAR7). nem preconceito algum. primeiro com os metais da big band. em uma relação matematicamente não inteira com a frequência mais grave” (idem). as vozes imitando as rezas-de-defunto.6 As melodias da voz. Sucedendo a seção inicial atonal ocorre a segunda seção.22. atonal. os sons dos pássaros e de outros animais. especialmente da música nordestina. A transcrição destes parciais para os pianos foi possível graças à percepção ampliada de Hermeto Pascoal. em seguida. sou universal. o qual. as danças contrastantes eram encadeadas livremente. Hermeto Pascoal acrescentou o silvo agudo de uma cigarra. como a declaração a seguir esclarece: Aqui [no Brasil] estão sendo feitas as coisas mais novas e mais importantes. utilizando os modos Dórico (safo e flauta) e Mixolídio (piano). muitas vezes a modernidade parece emergir das tradições populares. cantando. enquanto que o som das garrafas da peça Velório parecia estar relacionado às flautas artesanais e ao carrilhão.. a forma irreverente 46 através da qual o alagoano lida com a tradição. a meu ver. O piano solo utiliza a textura bordão. Porque. 2010. como exemplifica a peça Velório. cercado por todos os lados pela natureza. como as cordas graves da viola de um repente nordestino (07:34).10 Nestes bailes. te inabitado. Após o clímax orquestral. C-L. Um esclarecimento terminológico. 2000. é interessante observar que as vogais têm parciais harmônicos.” (PASCOAL. Ela é universal e está acima de rótulos ou marcas. para Hermeto. Dessa maneira. depois com as cordas e.44-62. como músico. ou compunha suas primeiras peças percutindo um carrilhão artesanal de ferrinhos roubados do monturo (lixo) de seu avô ferreiro. combinadas. com várias partes ou seções. A sucessão de seções musicais contrastantes presentes nesta composição sugere uma rapsódia ou.) Mas isso não quer dizer que eu vou sair brandindo as raízes ou fazendo afirmação de nacionalismo musical. Por quê? Respondo eu: é porque a música é universal e o onipotente não tem fronteiras. o garoto albino se divertia tocando em duo com os pássaros utilizando flautas feitas por ele mesmo com folhas de mamona. e no piano (04:54 – 05:42). com exceção de alguns instrumentos de percussão. na flauta transversal em Dó (03:29 – 04:54). novamente no modo Dórico. por sua vez. pois demonstram. pandeiro e triângulo em feiras. a partir dela. como o carrilhão de ferros. denominação que o próprio Hermeto adota para intitular suas composições mais extensas. Eu nunca digo que sou um “músico brasileiro”. permitem-nos formular a hipótese de que a construção musical desenvolvida por Hermeto Pascoal encadeia contrastes sucessivos para simular uma “dança” improvisada. Toré (também chamado tolê. Cannonball Adderley.22.44-62.”13 Os títulos e referências aos alimentos na obra de Hermeto Pascoal podem significar que em sua música ocorrem misturas de “substâncias” (isto é. Entretanto – utilizarei novamente a metáfora antropofágica 47 . Mata verde. De bandeja e tudo. gêneros e estilos musicais). além de Coalhada. entre Hermeto Pascoal e os “nativos”. Ilza na feijoada. acredita absorver suas qualidades. quentão. 1998) definiu a si mesmo como um “índio diferente”. os instrumentos convencionais da big band e da orquestra de cordas (terceira seção). através da flauta e da voz. os remanescentes dos Xucuru-Kariri estão tentando redescobrir e reinventar suas tradições e parecem estar presentes na Música Universal de Hermeto Pascoal – não está ele também. ao que tudo indica. além de instrumentos percussivos. acredito que a antropofagia como conceito etnomusicológico poderia ser utilizada na análise da Música Universal. Observo inclusive que. a flauta parece ser um instrumento com caráter quase sagrado. p.NETO. Apesar deste nunca ter feito. tornando-se originais. apenas uma piada. após serem fundidas. “com a morte significando o nascimento de um outro ser no canibal” (ULHÔA. ao comer ritualmente o inimigo. C-L. na música de Hermeto Pascoal. isto é. para Hermeto. milho. sendo utilizado como um meio de as etnias espalhadas pelos estados da região afirmar sua identidade cultural. e. os quais perderam sua língua nativa e a maioria dos indicadores mais visíveis de sua condição indígena. sofrem transformações em sua “aparência” e “sabor” iniciais. muitas vezes o compositor e os músicos da banda entravam em cena imitando gritos de índios. (re)inventando tradições? O alagoano compôs várias músicas que aludem à cultura indígena (Tupizando. À cozinha estão associadas as classes populares – que tradicionalmente arrumam a mesa e servem a comida para as classes favorecidas economicamente –. etc. nos quais estive presente no período 1985-1992. Pimenteira (1979b). 1997. aos quais recorrem para obter orientação. ao fim do pro­cesso. inter-relaciona o cantar e o comer. um pouco irônica. a atonalidade e o ruidismo foram sucedidos pelo modalismo nordestino e ambos foram amalgamados com os timbres característicos do jazz norte-americano e da orquestra clássica europeia numa fusão prenunciada. instrumentos que.Tacho e Geléia de Cereja (1977). devorado ritualmente pelos índios Caetés. Neste sentido.12 Explorando a faringe como a porção da anatomia humana que. Mais do que isso. pela bateria e a percussão. ritual. torém) é um misto de dança. que. referências a metáfora da antropofagia cultural (ANDRADE. isto é. cura. escritos ou improvisados das seções atonais e modais da peça Velório ocorrem sem costuras apa­rentes. piabinha. laranjas e puxa-puxa. quando vivia em contato com a natureza e construía flautas artesanalmente. Segundo Oswald de Andrade a antropofagia teve como seu marco inicial a morte do primeiro bispo católico do Brasil. O próprio Hermeto (PASCOAL. Hermeto Pascoal “vira a mesa” e reverte os papéis sociais convencionais. será útil verificarmos a relação – pouco explorada academicamente. não era. Além de exemplificar como os planos material e espiritual estão interligados na obra do “índio” Hermeto Pascoal. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. bacalhau. 1976 [1928]). canto e música instrumental utilizando principalmente flautas. outros títulos de músicas compostas por Hermeto Pascoal mencionam ou fazem alusão a alimentos ou utensílios de cozinha. por exemplo. neste número). até então –. sem dúvida. os índios alagoanos. Desta maneira. saindo da “cozinha” para assumir o local mais nobre da “casa”. falecido em 1975 (ver o artigo excelente de BORÉM e FREIRE. os instrumentos solistas safo. imbuzada. vozes e sons pré-gravados. Através do Toré os índios festejam e acreditam contatar os encantados. batatadoce. O conceito se origina do canibalismo religioso praticado pelos índios Tupinambá no século XVI. Magimani Sagei. Apesar dos revezes advindos da colonização brutal. ao conectar o nariz e a boca à laringe e ao esôfago. pelo título de outra composição deste mesmo disco: Coa­lhada.92). A Taça (1982). maxixe. enquanto reafirma sua identidade cultural e valoriza sua condição de imigrante nordestino. Constitui uma espécie de língua franca dos índios do Nordeste. ao mencionar a sua infância. com as seções se imbricando umas nas outras num fluxo ininterrupto. Dança da Selva na cidade grande) e nos shows de Hermeto & Grupo. proteção. peixe. o estado natal de Hermeto. de maneira semelhante às flautas utilizadas pelos Xucuru-Kariri em seus Toré rituais. o espírito do saxofonista de jazz. verduras. um termo utilizado na música popular para designar a formação instrumental constituída pelo contrabaixo. Além destes títulos. na costa do estado de Alagoas. em 16 de julho de 1556. O músico cresceu numa região ainda hoje habitada pelos índios Xucuru-Kariri. Per Musi. camarão. são alçados à condição de solistas. Mais há ainda outras interpretações possíveis relacionando música e comida na obra de Hermeto Pascoal. Na prática antropofágica. o piano e a flauta transversal baixo (quarta seção). através do “som-comida”. em ordem cronológica: O Ovo. na qual Hermeto invoca.14 Um ritual semelhante ao Toré ocorre na composição de Hermeto Pascoal para flauta transversal solo. n. A imitação. intitulada Cannon (1977). mandioca. contudo. 2010. entretanto. (1967). feijão. finalmente. sinestesicamente. a flauta transversal em Dó e o piano (segunda seção). seres espirituais. nos rodapés das partituras do Calendário do Som (2000) Hermeto mencionou uma quantidade grande de alimentos: “carne. Quiabo (1987) e Vai um chimarrão (1999). é interessante observar que. como. L. Nesta música ocorre uma “sessão espírita”. Cannon demonstra que o compositor alagoano “incorpora” alguns aspectos musicais do jazz norte-americano. vinho tinto. O tocador quer beber (1985). “gaitas” e outros instrumentos de sopro. banana. As mudanças entre os trechos falados e tocados. entrevista com Mário Adnet. os alimentos estão associados à “cozinha”. Este continuum interliga num gesto único: o som das 36 garrafas e as vozes “rezando no Velório” (primeira seção). Belo Horizonte. o canibal. p. Dom Pero Fernandes Sardinha. em Lá menor. em ostinato vocal. simultaneamente. parecem exemplificar o cantabile característico do estilo de Hermeto Pascoal.99). ainda. o jazz é apenas um dos “temperos” de um “banquete universal” no qual o “prato principal” é definitivamente outro: a “panelada” misturada de sonoridades. por este motivo. por exemplo. Como mostrarei na segunda parte deste artigo. solfejando-a mentalmente (muitas vezes sem o auxílio de instrumentos). a cantora pediu seu conselho a respeito do repertório constituído de canções da bossa-nova e standards do jazz com o qual pretendia se lançar no mercado norte-americano. Zabelê. Bebê. enquanto utiliza o ouvido absoluto para imaginar a harmonia que a acompanharia. Carinhoso e Gaio da Ro­seira). uma outra música deste mesmo disco. por exemplo. além de ser utilizada percussivamente (Aquela valsa e Geléia de Cereja). Per Musi. uma canção sem palavras. com a flauta transversal (em Cannon – dedicado a Canonball Adderley). “é uma espécie de inhambu ou ave silvestre. Na música que empresta o título ao disco. p. Missa dos Escravos é a primeira composição gravada de Hermeto Pascoal na qual o músico utiliza sons de animais. tê-lo auxiliado na construção da imagem pública de experimentador autodidata. C-L. Hermeto imaginou um grupo de escravos que havia fugido de uma fazenda. 2010. e depois de dias correndo pela floresta. por outro lado. o compositor alagoano geralmente escreve primeiro a melodia.. há um solo vocal de Flora Purim no qual ela integra um trio inusitado com dois porcos cantando. como. O compositor alagoano disse-me que desaconselhou Flora a trabalhar com tal repertório. enquanto que. Montreux (1979a). Observo ainda que. ainda que possam. na música Velório. de origem oriental.18 Assim.44-62. que integram o mo­tivo que estruturará toda a peça. a voz forneceu a matéria-prima para a composição de uma peça na qual a presença vocal está como que oculta nos sons dos instrumentos. seria uma de suas marcas registradas e que lhe renderia fama. assim como várias outras composições instrumentais de Hermeto Pascoal. grunhindo. três das seis faixas são. O Farol que nos guia (1992). timbres. isto é. Rainha da Pedra Azul. –. em nada menos que seis das sete faixas do disco: solando simultaneamente com o piano (Escuta meu piano). Na parte final da música. dentre outras. Eles se reuniram e celebraram a liberdade com uma missa no mato. es­calas e ritmos previamente definidos. Na parte central da composição as vozes masculinas cantam. procedimento que. como se o próprio músico estivesse cantando através dos instrumentos. Hermeto Pascoal sugeriu à cantora que fizesse algo diferente. pois este seria demasiadamente convencional e já bem conhecido pelos “gringos”. São Jorge (1979b).22. justamente as duas primeiras notas da melodia de Bebê. a voz é bastante utilizada. 2008). entidade geralmente associada à ma­gia e à sexualidade. n. Essa identidade cultural parece constituir a sua verdadeira “cidadania”. originalmente.15 Por estar aberto a influências sonoras de todo o mundo e. que aparentemente foi comida pelas [culturas] mais ‘complexas’. Em seu processo criativo. Assim. Belo Horizonte.Fá). Esta peça foi composta no violão e teve como inspiração as primeiras tentativas de fala de seu filho caçula. texturas. canções (Asa Branca. Escolhi como objeto de análise. Em alternativa. 1997. mie. Continuando a análise da música Missa dos Escravos. Hermeto Pascoal define sua música como Universal. intitulado Bebê. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. por parte do “índio” Hermeto Pascoal. na realidade as incorporou em seu ritual de re­novação” (ULHÔA. com teclados eletrônicos (no longo solo 48 de Hermeto Pascoal em Tacho). gêneros e estilos musicais. em alguma medida. no início da década de 1970. que canta um pio melodioso” (SANTOS NETO.NETO. europeus – e nem brasileiros –. Missa dos Escravos. 2008). se recusar a negar as raízes brasileiras. Sua Música Universal exemplificaria como “a cultura nativa. um recto tono de uma missa medieval. entretanto. intitulado Slaves Mass (Missa dos Escravos). por exemplo. encontrou um outro grupo também fugido. Hermeto Pascoal contou-me em entrevista (1999) que. Desta maneira. formas. faça os sons mais . Compo­ sições como. multifonicamente. Mente Clara (1987). No LP lançado em 1977. Hermeto Pascoal utiliza instrumentos que não são norte-americanos. nos EUA. No LP lançado em 1973 (PolyGram Brasil). Flávio. Os sons vocais incomuns produzidos por Flora se revestem de certa teatralidade e parecem remeter à personagem conhecida na Umbanda como Pomba-gira. Acompanhada pelo batuque dos tambores da bateria e pelo naipe dissonante de flautas transversas a frase hipnótica parece simular um (en)canto indígena ou. duas notas separadas por um intervalo de semitom (Mi . com os animais (SANTOS NETO. modos escalares. a frase que cresce hipnoticamente: “Chama Zabelê pra poder te conhecer”. uma das composições mais famosas de Hermeto Pascoal. especialmente do Nordeste do Brasil. que “lalava”. L. o baião instrumental. quando esteve nos EUA com o casal Airto Moreira e Flora Purim. o tornaria alvo de críticas por parte de músicos eruditos e populares puristas. (gravadora Warner).17 repetida­mente. mais tarde. acredito que a denominação Música Universal pode ser considerada como a expressão consciente de uma tendência antropofágica inconsciente. intitulado A música livre de Hermeto Paschoal (sic)16 seu primeiro disco autoral lançado no Brasil. Hermeto Pascoal confere a suas peças uma qualidade cantabile. que utilizasse a voz à maneira de um instrumento e/ou que empregasse recursos e sonoridades vocais não convencionais (“grite. a ecologia e os sons dos animais desempenham um papel importantíssimo na vida e na obra de Hermeto Pascoal e não são fruto da “excentricidade” do compositor ou um artifício de marketing pessoal visando à autopromoção – como parecem sugerir alguns de seus críticos –. o solo vocal não-convencional improvisado por Flora Purim utiliza choros e gargalhadas aleatórias ao invés de notas. p. a partir das quais Hermeto Pascoal fez arranjos instrumentais para orquestra. como o safo. Santa Catarina (1984). neste caso. é. 2008. ao mesmo tempo em que ajusta os teclados – explorando a regulagem do vibrato do clavinete –.22 Segundo SANTOS NETO (2008). Caruaru (1952) e Rio de Janeiro (1958) e nos conjuntos de baile das boates de São Paulo (1961-1967). Devido a grande procura por entradas. Segundo SANTOS NETO (2008). Corcovado (Antonio Car­los Jobim) e Asa Branca (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira). Surpreendidos. Refiro-me ao encontro breve. ritmo e andamento. como Hermeto era contratado pela gravadora Warner. A escolha da escala utilizada por Hermeto Pascoal recaiu inicialmente no modo Mixolídio. A promessa foi descumprida pelo produtor logo após a morte inesperada da cantora. o dueto bem sucedido com Elis Regina demonstrou como Hermeto Pascoal aprendera algumas lições importantes com as cantoras e os cantores durante sua carreira como intérprete contratado. Os dois músicos acompanharam-se mutuamente combinando melodias afinadíssimas e re-harmonizações dissonantes. que a jam session entre a cantora e o alagoano ocorreu após os bis do show de Hermeto & Grupo (e não o contrário) e. Não foi. apesar do desafio imprevisto. Contudo. e assovia no microfone. os músicos. os instrumentistas eram solicitados pelos(as) vocalistas a transpor. parece desmentir o relato do mega-executivo da Warner demonstrando exatamente o contrário. apoteótica” (MIDANI. ao vivo. um encontro memorável. flauta. combinando-os às músicas regionais. enquanto que os demais músicos do Grupo permaneciam no palco porque não sabiam se a Suíte Paulistana. 2010. Per Musi. além de fazer arranjos rapidamente. Dentre as músicas do disco gravado por Hermeto Pascoal & Grupo no Festival de Jazz de Montreux (1979a.44-62. o modo utilizado tornou-se Dórico. que o show de Elis não foi o sucesso esperado.NETO. de Her­meto Pascoal com Elis Regina na noite brasileira do Festival Internacional de Jazz em Montreux. em 1982 (MIDANI. antes de lançar-se como compositor. 2008). Confirmando a importância do aprendizado nas escolas práticas dos regionais das rádios e dos conjuntos de baile das boates noturnas. L. a meu ver. ao vivo. a gravadora assumiu a produção do show e escalou. bem como definir. mas este seria rapidamente abandonado e. quando Hermeto e Elis interpretaram as músicas Garota de Ipanema (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes). junto com Elis. Segundo SANTOS NETO (2008) Hermeto Pascoal & Grupo20 foram convidados a participar do Festival de Montreux após o diretor do Festival.187-188). que. p.185). Hermeto Pascoal afirma que: “para solar bem. Enquanto Itiberê e Nenê tocam ao fundo. onde Hermeto Pascoal tocou piano.e. recriando as três canções no calor da improvisação. 2008. se tornariam de fato a marca registrada do es­tilo vocal popular-experimental de Flora Purim. n. contrabaixo (!) – ou qualquer outro instrumento que lhe rendesse eventualmente um cachê –. respondidas. testando o equipamento (05:17). coco e scat singing. nos grupos regionais das rádios de Recife (1950). indígenas e afro-bra­sileiras. em pé. em cima da hora. características estas que. que. A apresentação noturna de Hermeto Pascoal & Grupo durou mais de quatro horas e provocou “uma comoção enorme. escolhi como objeto de análise a peça intitulada Que­brando tudo!. entretanto. A gravação em vídeo feita durante o Festival. a primeira. à noite.. intitulada Suíte Paulistana (1979b). O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. p. que estava na coxia escutando o Grupo executar sua música. O compositor. mesmo após o 3º. então pianista do grupo de Hermeto. É interessante observar que o relato de André Midani sobre o dueto de Elis e Hermeto é bem diferente do de Jovino Santos Neto. ambos tiveram que estabelecer quais canções seriam interpretadas.21 Controvérsias à parte. o que se viu a seguir foi. em 1978. combinado à levada suave da bateria de Nenê. malucos”19). C-L. 2008. seria retomada. mas antológico. antes é necessário saber acompanhar” (Itiberê Zwarg citado por PRADO. tocando notas cromáticas descendentes no clavinete. no qual a música permaneceu até o final. em uníssono. interrompida no meio. bis o público estava eufórico e não parava de aplaudir. começou então a fazer efeitos de eco. é a segunda parte de um solo com mais de 10 minutos de duração criado improvisadamente pelo virtuose. em ritmo de baião e andamento moderado. p. com o abaixamento do 3º grau. na verdade. uma jam session improvisada entre Hermeto Pascoal e outra grande cantora. Claude Nobs. acompanhado somente pelo contrabaixista Itiberê Zwarg e pelo baterista Nenê. Claude Nobs queria que Hermeto & Grupo tivessem uma noite inteira somente para eles. foram programadas duas apresentações em Montreux. a própria Elis exigiu que Midani jurasse que nunca lançaria o show em disco. além disso. Inicialmente escutamos o acompanhamento executado por Itiberê Zwarg. em contratempos e síncopes. além de mudanças inesperadas de compasso. bem como a “tocar de ouvido” novas canções. irrompeu repentinamente no palco e começou a improvisar o solo de Que­brando tudo!. Passada a fase de teste dos teclados e do microfone e já definida a gama escalar principal. i. contudo.184). O produtor executivo André Midani (da gravadora Warner) aproveitou para “empurrar” Hermeto de volta ao palco. p. Hermeto Pascoal. teria sido um grande sucesso. “com onze pedidos de bis!” (MIDANI. ou melhor. à tarde e. Midani parece tentar favorecer a cantora ao afirmar que a jam session com Hermeto teria ocorrido após o show de Elis. na Suíça. WEA). Belo Horizonte. em 1979. este solo surgiu no meio de uma outra composição. a outra. mais tarde. Hermeto Pascoal inicia o solo.22. ainda segundo o produtor. não poderia passar aqui despercebida. pela sua própria voz. a cantora Elis Regina para abrir os shows do alagoano. Uma parceria. De fato. tê-los assistido no Festival de Jazz de São Paulo. Por achar que não tinha cantado bem. as tonalidades das canções. utilizando vogais isoladas e a sílaba “tá” (05:30) numa estranha mistura de embolada. 49 . as tonalidades de cada uma delas. o compositor alagoano viajou com Airto Moreira e Flora Purim aos EUA para lançar-se em carreira solo e misturar. Evidentemente. estou aqui apenas arriscando uma hipótese. à paisagem sonora guardada na lembrança de Hermeto. que estivesse relacionada. uma concepção experimental inovadora. Pra não dizer que não falei das flores. n. além das fronteiras estéticas do Brasil e dos EUA. parece ter possibilitado sua comunicação com o famoso jazzista Miles Davis – já que ambos falavam línguas mutuamente ininteligíveis. por assim dizer. no disco Live-Evil (1972. durante uma sessão de estúdio. muito antes de ter tido contato com o free jazz norte-americano ou com a música erudita experimental Hermeto Pascoal já tinha desenvolvido. . por sua vez. 1999. ao mesmo tempo. do som dos animais e dos objetos sonoros inarmônicos de sua infância no Nordeste. mas compreensível internacionalmente. como muitos hinos católicos. após terem se mudado do Olho D’água da Canoa para a cidade de Lagoa da Canoa. por sua vez. Hermeto Pascoal percebeu isso. cantor a quem o grupo acompanhava. anunciando a hora de rezar a ave-maria. 46-47. na década de 1970. após a dissolução do Quarteto Novo. farei alguns comentários explicativos ou digressões com o objetivo de contextualizar minha análise. A música parece estar relacionada à infância do músico brasileiro em Lagoa da Canoa. às seis da tarde. estilo moderno de jazz que. a utilização puramente sonora da voz sem a preocupação com o sentido gramatical. “dé”. de maneira mais ampla. O scat singing foi inventado casualmente pelo trompetista e cantor Louis Armstrong. livremente. geopolíticas e os nacionalismos tacanhos. o garoto e seus parentes moraram próximos à igreja. por mim confirmada junto aos parentes de Hermeto Pascoal em Lagoa da Canoa. etc. como o alagoano me contou em entrevista (1998). A partir desta informação de Villaça. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. é semelhante ao volume sonoro (fraco) com que os fiéis fazem suas orações na igreja. L. além da ironia e da comicidade presentes tanto nos vocais de Louis Armstrong ou de Ella Fitzgerald. o bebop e o baião cantados ou tocados pelos artistas do Brasil e dos EUA demonstravam como a diáspora africana nas Américas produzira uma arte popular de altíssima qualidade. da Música Universal de Hermeto tenha influenciando o trompetista norte-americano a convidar o brasileiro para ingressar em sua banda fusion e participar. a embolada. de maneira modificada. p. por exemplo. aos ritmos afro-cubanos e às harmonias da bossa-nova. ainda. Belo Horizonte. o free jazz23 e a música experimental erudita estavam no auge e o espaço era propício para que Hermeto Pascoal ousasse. autodidaticamente. Estas características incluíam.NETO. tinha uma mercearia pequena (visitada eventualmente por índios Xucuru-Kariri. Nos EUA. paradoxalmente.44-62. o “nacionalista” Vandré conhecia a música nordestina muito menos que o “jazzista” Hermeto.24 A meu ver. C-L. p. que emprega vogais e sílabas nonsense (“da”. harmonizada dissonantemente. em Quebrando Tudo!. blues. enquanto que a embolada e o coco nordestinos presentes. em busca de alimento). Assim. Além disso. Por isso. intitulada Little Church (ou Igrejinha). p. misturado ao samba. a paisagem sonora polifônica das rezas-dedefunto do Nordeste brasileiro e os timbres exóticos e a atonalidade da orquestra de garrafas tocadas na peça Velório (1972) apresentavam semelhanças surpreenden- 50 tes com o aleatorismo e o ruidismo praticados no jazz de vanguarda e na música erudita experimental norteamericana. De fato. tentou eliminar as tendências do fraseado cromático rápido do bebop ao basear suas improvisações exclusivamente nas escalas modais e nos ritmos nordestinos. “poliglota”. “bu”. o jazz. por sua vez. O alagoano Hermeto Pascoal sentia-se à vontade no Quarteto Novo. a família Pascoal ouvia o tocar do sino.) e possibilita aos cantores e cantoras inventarem ritmos e melodias utilizando a voz à maneira de um instrumento de sopro. 50. contudo. cantadas e assobiadas por Hermeto Pascoal (Little Church. Este grupo pioneiro.9). mas. antes que o músico ingressasse no Quarteto Novo (1967). em 1969. curiosamente. nos EUA. algumas canções de Vandré. antes de voltar ao solo improvisado de Que­brando tudo! Scat singing é um tipo de improvisação vocal do jazz. todas as influências musicais e sonoridades que lhe viessem à cabeça. que as duas peças compostas. pareciam mais influenciadas pela guarânia paraguaia (compasso ternário ou binário composto. mas parece confirmá-la o fato de a melodia de Igrejinha ser tonal. como. Como expus em trabalho anterior (COSTA-LIMA NETO. a liberdade estética que Hermeto encontrou na década de 1970. A seguir. um pouco a contragosto. era tocado por Hermeto Pascoal no Som Quatro e no Sambrasa Trio (1966).22. o timbre da melodia de Igrejinha é resultado do assobio de Hermeto. por exemplo. Observo que. Segundo informação de Villaça (2006. era policiado pelo nacionalismo musical xenófobo que norteava as ideias de Geraldo Vandré. o scat. “du”.28. A intensidade suave da canção. na mesma casa onde Pascoal José da Costa. a partir do modelo fornecido pelas melodias da fala. como compositor e intérprete. é uma canção tonal modulante e lenta. é possível supor que Igrejinha fosse uma reminiscência de hinos religiosos cantados pelos fiéis na igreja próxima à casa dos Pascoal ou. o scat foi utilizado no bebop. Depois. a mestra do scat. 54). rock e funk do disco de Miles. algumas características em comum com o scat singing do jazz tradicional e com o bebop. o mestre dos cocos. A capacidade do alagoano se expressar utilizando um idioma musical brasileiro. como nos malabarismos vocais de Jackson do Pandeiro. Per Musi. a partitura com a letra da canção interpretada por Armstrong caiu no chão e o trompetista teve que seguir cantando improvisadamente. Sony). Todo o dia. 2010. Nem um talvez) nada tinham a ver com a fusão eletrificada de jazz. A primeira composição. quando. partilhavam. cuja importância musical ultrapassa(va) as fronteiras raciais. “ba”. pai de Hermeto. Suponho que esta característica. o coco. representou para ele a possibilidade de se reencontrar com as suas próprias raízes (experimentais) nordestinas – e expandi-las. tom menor) do que pela música popular brasileira. Observo. Na realidade. ainda. C-L. Lagoa da Canoa está situada no limite que separa. com cerca de 20. porque eu vou quebrar.NETO. Os músicos chegam então ao clímax. no contexto jazzístico norte-americano. Na se­quência. A seguir. A região de Arapiraca foi. risos e gargalhadas (06:11). vem. centro comercial do Agreste e segunda maior cidade do estado de Alagoas. entoadas inicialmente fora de ordem: “ó”. Hermeto Pascoal alterna os dedos polegar e indicador da mão direita para articular rapidamente uma nota pedal no clavinete – a fundamental do modo –. com Hermeto Pascoal fazendo glissandi em clusters ao deslizar as duas mãos no teclado.44-62. seguidas de “ru” e “ri” (05:50). caótico e free. onde a atividade econômica principal é a agricultura de subsistência. (Pascoal IN ZAGO) Lagoa da Canoa é uma cidade pequena. O jogo vocal incluiu. da canção Nem um talvez. No meio caminho entre o sertão e o litoral. arroz e mi­lho.22. como ele chamava Hermeto. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz.. num crescendo progressivo. Lampião. a entrada do quentíssimo sertão alagoano. acompanhado por Itiberê e pelos rulos frenéticos da bateria de Nenê. na verdade. com um sinal com a mão esquerda. utili­zando. “bá” e “pá”. em transe aparente. no cluster final. enquanto subdivide o ritmo. A força dos coronéis. feijão. agora tocando e cantando solo. enquanto a voz percorre. mas também por personagens do imaginário popular do Nordeste. impondo fronteiras arbitrárias ao seu som brasileiro-universal. durante muito tempo. Selim. Eu tenho sempre que compor porque minha cabeça se enche de ideias. internacionalizá-lo. “o”. E uma nascente quer que alguém venha buscar a água. ecoando um passado nem tão distante de revoltas e insubmissões populares de escravos. escalas rapidíssimas e frases em quartas paralelas. suplantada apenas pela capital. além de tapas percussivos no teclado (07:56) – desferidos com certa violência –. no Olho D’água da Canoa e cercanias. Minha cabeça é uma fonte. o que fez a cidade ostentar o título de Capital Brasileira do Fumo. as duas canções do alagoano assemelhavam-se. lido ao contrário. acompanhados de notas e clusters tocados com a mão direita na região aguda do clavinete. 3 . não havia sido composta por Miles Davis. até Hermeto Pascoal solicitar. 2004). olha. A aproximadamente 150 km. os dez anos de idade 51 . até explodirem. L. dizendo ao microfone: “sim. o músico abandona as vogais e retorna às sílabas iniciadas com consoantes explosivas – “dá”. uma nascente. contudo. Quebrando tudo! terminou com os aplausos. O autodidata Hermeto Pascoal parece se dar conta da “bagunça” e ar­ruma a ordem das vogais. As composições de Hermeto Pascoal estão relacionadas à história pessoal do músico e para analisá-las satisfatoriamente não basta descrever os sons que delas fazem parte. mas não demora a chamar os músicos de volta. ao contrário. O improviso vocal começou a “esquentar” quando Hermeto Pas­coal passou a intercalar duas notas do teclado em uníssono com a voz. de outro. próxima a Arapiraca. Nenê e Itiberê respondem ao chamado e voltam a tocar. O andamento acelera e. Santo Antônio e Antônio Conselheiro. então. O baião-jazz-experimental Quebrando Tudo! é. de um lado. “a”. respondem ao tensionamento rítmico do solo de Hermeto e aumentam o volume do baixo e da bateria (07:20). É seu “grito de guerra” contra aqueles que querem nacionalizálo ou. “i”. as letras “ipssilone” (ípsilon) e “z” (07:00). gritos e assovios da plateia e com os três músicos ensopados de suor. a meu ver. Talvez essas semelhanças musicais tenham contribuído para que o trompetista negro se identificasse com o “crazy albino”.Os instrumentos da voz Para mim. juntos. eventualmente gritando ou dando mais gargalhadas (09:40). Hermeto Pascoal continua seu improviso. a zona litorânea. ainda mais rápido e forte que antes. aproximadamente. de clima ameno e. n. Volto à análise de Quebrando Tudo!. de autoria de Hermeto Pascoal. que os mú­sicos Itiberê e Nenê o deixassem improvisando sozinho (08:10). os semitons da escala cromática (06:24). incluindo. A pesquisa de campo por mim desenvolvida em Lagoa da Canoa. Per Musi. de Maceió e a apenas 20 minutos de carro a partir de Arapiraca. compor é algo muito fácil. Maceió.000 habitantes (IBGE. descendentemente. eletrizado. o solo passa a incluir arpejos. dos grandes latifúndios e dos engenhos dos tempos coloniais ainda se faz sentir no estado de Alagoas. “bá” e “pá” –. estampando a cor verde desta planta nos dois lados da estrada que liga Maceió a Arapiraca. A casa onde Hermeto Pascoal nasceu e viveu com seus pais e irmãos até. Contudo. ampliará a análise etnomusicológica desenvolvida neste artigo. Sebastiana. ouvimos as vogais do alfabeto. “é” (06:40). cangaceiros e peregrinos. Seja como for. Após o breque do baixo e da bateria. percussivamente. cantando-as em intervalos de terça com as notas do te­clado. voltada principalmente para o plantio da mandioca. o plantio do tabaco vem sendo substituído gradativamente pela monocultura da cana-de-açúcar. inseto que parece gostar de “cantar” ao cair da tarde – no mesmo horário da ave-maria. depois de sucessivas campanhas do Ministério da Saúde. O público aplaude. não. as sílabas “dá”. Lagoa da Canoa parece ser habitada não apenas pelos moradores da cidade. de uma fase anterior da carreira de Miles Davis. “u”. Tratava-se. por sua vez. que vai sendo substituída. como uma citação do coco famoso de Jackson do Pandeiro. como numa cadenza experimental de um concerto pop. utilizando figuras de duração cada vez mais curta. produzindo uma sonoridade semelhante ao silvo agudo de uma cigarra. dominada pela cultura do tabaco.. Belo Horizonte. uma metáfora antropofágica da desterritorialização promovida pela Música Universal de Hermeto Pascoal. como Zumbi dos Palmares. p. 2010. O fato é que Miles Davis intitulou a primeira faixa do Lado B de Live-Evil como Selim – o nome de Miles. Itiberê e Nenê. Prosseguindo. às baladas cool. em novembro de 2008. não tenha medo!” (08:40). em Fá Lídio. As vozes da mãe de Hermeto. parecem possuir uma veia artística forte. ela revela que “no imaginário social há um leque de representações a partir do desdobramento de um mesmo símbolo” (Silva citado por SÁ. fa­zei com que Ele nos [incompreensível] com seu amor. pinto. dois trechos da “narração polifônica” ocorrida nesta composição (00:55 – 01:21.NETO. vasilhames. bem como a paisagem sonora vocal das procissões ao Cruzeiro estão bem ilustrados na música Santo Antônio. restando somente as duas flautas em uníssono. com divisão rítmica composta. ou mesmo a pé. acompanhadas pelo piano. de carroça. contrabaixo. macaxeira. Além disso. polifonicamente. o próprio Hermeto Pascoal relatou25 que. a cavalo. Na continuação – como num flash back da entrevista que Dona Vergelina acabara de conceder 52 –. ovos. . gravada no LP Zabumbê-bum-á (1979b). Cito. . Dona Vergelina Eulália de Oliveira é entrevistada pelo filho. além das vozes de Zabelê e Pernambuco. No alto de um morro próximo ao local onde ficava a casa dos pais de Hermeto Pascoal no Olho D’água da Canoa. [Canta] Glorioso Santo Antônio com seu menino nos braços. os vizinhos da família Pascoal iam ao Olho D’água. todos os parentes de Hermeto Pascoal que tive a oportunidade de conhecer e entrevistar em Lagoa da Canoa. certa feita. diariamente. Per Musi. farinha. por exemplo. enquanto outros. arroz. talvez o leitor esteja se perguntando. a figura de um santo e a de um cangaceiro. outros cantam ou tocam instrumentos percussivos. sua mãe teria se escondido na mata próxima ao Olho D’água da Canoa. Airto Moreira e Flora Purim simulavam rezas-de-defunto. como. tocando uma melodia nova. Pernambuco e de Dona Vergelina Eulália de Oliveira. ó de casa. em direção ao qual as procissões seguiam nos Dias Santos. nos jegues. noutro canal de gravação. quero feijão.44-62. padroeiro dos pobres e santo “casamenteiro” (00:00 – 00:49). aumentada. saúde e felicidades. Ao mesmo tempo. antes de a família se mudar para a residência próxima à igrejinha na praça central de Lagoa da Canoa. pra Santo Antônio nos dar sorte. contraditória. Zabelê e Pernambuco produz uma textura semelhante àquela do primeiro exemplo analisado neste artigo. Hermeto Pascoal. “Rei do Cangaço”. junto com ele e seus outros irmãos pequenos.Ó de casa. ao local onde o músico havia passado os primeiros dez anos de sua vida estavam associados. 2010. paradoxal ou mesmo. 100). nas duas músicas. pode significar que um mesmo objeto ou pessoa se apresenta de maneira complexa. religioso. na qual Hermeto Pascoal. Na parte final. de Zabelê e de Pernambuco retornam.É esmola pra Santo Antônio casamenteiro. (1946). com seu menino nos braços. investido na função temporária de “etnógrafo”. mãe de Hermeto Pascoal). No início da gravação. (Vozes de Zabelê. batata-doce. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. contudo. a composição Velório (1972). em Ré Dórico: “Glorioso Santo Antônio. Assim. há um Cruzeiro. com a ajuda de nós todos. ouvimos Dona Vergelina cantando uma melodia modal. presença viva no imaginário da família Pascoal. Mixolídio com 11a. A música está presente no cotidiano da família Pascoal como um todo. gerimum. abaixo. Esta duplicidade ou multiplicidade polifônica de representações a partir do mesmo símbolo. Uns divertem-se rimando enquanto falam. polimodal e polimétrica. qual a relação que poderia ser estabelecida entre personagens aparentemente tão contrastantes como Santo Antônio e Lampião e o que ambos teriam a ver com Hermeto Pascoal? O nome do cangaceiro surgiu nas entrevistas por mim realizadas com os parentes de Hermeto Pascoal no Olho D’água da Canoa. Esta composição sinaliza a presença do que denominarei neste trabalho de ética musical comunitária.Pra fazer um leilão no dia 13 de junho. ainda. A sobreposição das vozes faladas por Dona Vergelina. não é. durante três dias consecutivos. um exemplo inusitado de como a percepção ampliada de Hermeto sobrepõe sonoridades contrastantes. alimentos e outros donativos (00:50 – 01:21). Mas. Belo Horizonte.” (03:28). .22. dançam festivamente.Com todo prazer e alegria. vem dá uma esmolinha pra Santo Antônio. com medo de que Ma­ria Bonita quisesse sequestrá-los. 03:31 – 04:00): . Dórico e Lídio) é executada em terças por duas flautas transversas. . dos moradores de Lagoa da Canoa e dos alagoanos e nordestinos em geral. apenas um procedimento composicional interessante ou. os instrumentos saem. p. e é entremeada por frases esporádicas ditas pelos “fiéis” pedintes. Os laços de solidariedade e de reciprocidade presentes nos núcleos familiares de pequenos agricultores e comerciantes de Lagoa da Canoa. C-L. improvisam versos e melodias utilizando o coco e a embolada. em ambas as músicas. A banda principia a tocar na parte central. Curiosamente.É esmola pros festejos de Santo Antônio. panelas ou botijas cheios com o líquido precioso. no Olho D’água da Canoa ou em vilas pequenas e municípios próximos. A melodia sincopada e modal (modos Eólio. 2000). próximo ao Cruzeiro para onde se dirigiam procissões como a descrita na música Santo Antônio. em Girau do Ponciano. alcunhado Lampião. L. Acredito que este é o caso de Virgulino Ferreira da Silva (1897 – 1938). Mais do que isso. gradativamente (03:12 – 04:07). Por estar próxima a uma nascente de água natural. Ela faz parte de seu dia-a-dia e parece ser uma atividade quase tão natural quanto beber água. pra Santo Antônio ajudar você. Instrumentos metálicos de percussão completam a textura polifônica. o local recebeu a denominação de Olho D’água da Canoa. escutamos sua voz falada. Da nascente jorrava a água de que os moradores de Lagoa da Canoa dependiam para sobreviver. um baião modal em compasso binário e andamento animado (ut.. ainda. n. . presente tanto na personalidade como na obra de Hermeto Pascoal e sobre a qual me deterei mais à frente. A polifonia de vozes faladas. de casa em casa.. jarros. Assim. bateria e percussão (01:22 – 03:11). tudo serve. era um pouco afastada desta cidade. e podemos ouví-la descrevendo os preparativos e a procissão do dia de Santo Antônio. voltando com seus tonéis. simulando os fiéis pedindo. nos quais “a orientação da ação social (. regiões. taumaturgo e santo popular de Juazeiro.. comprar um CD ao preço sugerido pelas gravadoras é simplesmente impossível para a maioria (. p. estivera localizada a casa dos pais de Hermeto. afirmando que o “banditismo social” também era praticado em outros contextos. como exemplifica a declaração polêmica de Hermeto Pascoal. no Olho D’água da Canoa. A profecia parecia antever significados inusitados que o conceito de “banditismo social” adquiriria na contemporaneidade. eram considerados heróis ou ícones da resistência popular. latifundiários e pela polícia.77). o conceito sofreu modificações passando a incluir as redes de comunidades virtuais da internet.26 “Comunidade”..2. quando estive em frente ao local onde. Contudo. O Cangaço sempre evocou representações sociais díspares. para o compositor alagoano. L. onde os homens e mulheres finalmente encontrarão um lugar para realizar seus sonhos de justiça social” (DaMatta citado por SÁ.22. 2010. um dia. na música citada. de acordo com outras fontes. Por isso podem colocar minha obra na internet. Universal. O termo ‘ética’ deriva do grego ethos (caráter. países e classes sociais distintas.227-243). supostamente dotado de poderes sobrenaturais de “clarividência e do dom da invisibilidade” (idem. os peregrinos. Neste sentido. mas. mas que. Sony. ao retirá-los da terra.. ou seja. além de padroeiro dos pobres e santo “casamenteiro”. 53 . C-L. no Ceará. bem como na narração polifônica da música Santo Antônio –. A música depois de gravada pertence ao mundo. referindo-se a uma forma de re­sistência pré-capitalista praticada nas sociedades rurais. Warner. Assim. O “banditismo social” é um conceito formulado pelo historiador Eric J. pois “ambos teriam sido capazes de produzir uma outra realidade. não tem essa de gravadora. Compreende um conjunto de valores e princípios que norteiam a conduta humana e o bem comum. ainda. não deveria. 7) afirma que: “O mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar”. por sua vez. por causa do “brilho irradiado por sua pessoa” (GRUNSPAN-JASMIN.43). os piratas de CD não são vistos como bandidos (.28). também é invocado popularmente para se achar objetos perdidos. pois o tesouro desapareceria instantaneamente. pela variedade exuberante de escalas modais. Por dividir com os pobres o produto de seus roubos Lampião era considerado por uns como um bandido social. nos títulos das composições. vizinhança ou classe social. Bahia e Sergipe.. aos olhos de outros. Ceará. Neste sentido. Estes “sonhos de justiça social” daqueles que erram “em busca da terra da promissão” integram o que antes denominei de ética musical comunitária. outros estudiosos ampliaram o conceito de Hobsbawn.90). em hipótese alguma. a palavra “lampião” se refere a uma lanterna ou candeeiro) foi assim alcunhado devido “a luz que emanava de sua arma quando ele atirava” ou. libertando a música dos sequestradores econômicos e devolvendo-a ao povo. p. Pernambuco. de outro lado. a sobrinha do músico contou-me uma sugestiva narrativa mítica sobre supostos tesouros roubados que Lampião teria escondido em buracos cavados na terra.) baseia-se em um sentido de solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos participantes” (Weber 1987. Hobsbawn (1969). 1999. de fartura hiperbólica” (Travassos citada por COSTA-LIMA NETO. como no alto mar. a narrativa mítica acima mencionada o aproxima de Santo Antônio. Não se sabe ao certo se o caminho trilhado pelo bando de Lampião teria cruzado com o Olho D’água da Canoa. no sertão (a palavra significa “deserto grande” ou “desertão”) brasileiro. formadas por indivíduos de cidades. O herói mítico inglês. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. pelos cangaceiros. assim.NETO. Robin Hood. Ro­berto DaMatta faz uma aproximação interessante entre. p.). da mesma maneira que os donativos solicitados pelos fiéis na procissão descrita na narração da música Santo Antônio. Lampião (no Nordeste. são diametralmente contrários à ética musical comunitária e aos “sonhos de justiça social” nutridos por Hermeto Pascoal. demonstram como. uma mesma “natureza encantada e abundante. os bandidos sociais e cangaceiros e. seus crimes e crueldades frequentes o tornavam. a seguir: [As grandes gravadoras] é que estão me pirateando. seria um exemplo de bandido social. Posteriormente. 2006. modo de ser de uma pessoa). Rio Grande do Norte. prendem o meu trabalho lá somente para exibirem meu nome no selo e não pagam meus direitos autorais corretamente. BISHOP (2004. Per Musi.. p. Belo Horizonte. um justiceiro cruel temido principalmente pelos comerciantes. de um lado. Os bandidos sociais eram camponeses fora-da-lei vistos por seus patrões e pelo Estado como criminosos. expressa. diz respeito aos núcleos populacionais organizados a partir de laços de parentesco. p. Lampião. ao mesmo tempo. BMG. pois o último. onde a música ocupa um papel tão definido de expressão cultural. p. Paraíba. presente na personalidade e na Música Universal de Hermeto Pascoal. um projeto alternativo de um mundo novo”.27 As referências constantes aos alimentos na música de Hermeto Pascoal – por exemplo. reza a profecia apocalíptica atribuída a Padre Cícero. Nas sociedades de “baixa-renda” pelo mundo. Era devoto fervoroso de Padre Cícero e tido como um herói miraculoso. p. 2008). entrevista com Garcia. Maria Bonita e seu bando de cangaceiros em suas andanças errantes percorreram o sertão dos estados de Alagoas. Na América Latina. olhar para trás. os sons e as músicas são semelhantes aos alimentos e a água da nascente próxima à casa de seus pais. Devem ser socializados e repartidos. Neste sentido. Na modernidade.. Em muitos casos são como Robin Hood. Quero ser pirateado! (PASCOAL. pelos coronéis. “tanto o peregrino quanto os bandidos sociais rezam e caminham em busca da terra da promissão. sob a ótica da sociedade camponesa.44-62. Sons e alimentos integram. EMI.). Acredita-se popularmente que a pessoa que encontrasse estes tesouros. como que por encanto. o conflito permanente entre Hermeto Pascoal e a indústria fonográfica parece ocorrer porque as políticas opressivas e os altos padrões de lucro impostos na América Latina pelas cinco maiores gravadoras do mundo. n. pelos piratas ou. Confirmando a multiplicidade polifônica de representações sociais relacionadas a Lampião. que declamou o seu poema Monte Santo sobre a gravação feita dois anos antes e. além do solo improvisado na sanfona. Município de Arapiraca (1984). depois que tombaram os últimos defensores do Arraial – dois homens. que a ele se reuniram para viver em comunidade no arraial de Canudos. Euclides da Cunha. De fato. anunciar Ressurreição. p. Antônio Conselheiro.29 “Santo Antônio Aparecido” é. à vitória. O início da narração de João Bá (“Do céu desceu uma luz. neste caso. Nave-Mãe terminou por ser deixada de fora do LP mencionado.. Ao investir contra o monopólio das gravadoras transnacionais incentivando os downloads gratuitos e o compartilhamento de sua obra pelos fãs na internet (veja a quantidade impressionante de vídeos de Hermeto Pascoal no Youtube) o compositor alagoano subverte a lógica do sistema capitalista baseada no valor de compra e venda da música-mercadoria. 1996 [1977]. em 1775. Assim a República. O município de Monte Santo está localizado no sertão da Bahia. como mencionei na introdução. aos “ideais elevados” da ciência e da razão que caracterizariam o litoral do país. além de ex-escravos sem emprego. passaram a cons- . por isso. A peça. (.133).. originalmente. apenas de acordes tocados por Hermeto Pascoal no harmônio. de fato. assim. próximo à Terra Indígena de Massacará. se contrapunha. pela primeira vez na história da indústria da música os consumidores se tornaram eles mesmos. Após meses de combates árduos. possui em si mesma o germe da revolta. seria incluída no LP lançado em 1982. a música é. A interrelação entre o músico e os peregrinos. ameaçada pelos ideais republicanos.22. um instrumento de conhecimento. p. que Jesus Cristo mandou.NETO. o “peregrino-cangaceiro” Hermeto Pascoal escala um monte santo metafórico em sua vida e obra. dos castigos nos livrou. referindo-se ao livro (Os sertões) que acabara de escrever sobre a Guerra de Canudos: “Serei um vingador e terei desempenhado um grande papel na vida – o de advogado dos pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha. é harmonia numa nova” (ATTALI..133) de que novas maneiras (não-comerciais) de fazer música indicam a emergência de uma nova sociedade. a voz acompanhou a música. durante o período colonial. produtores de música através dos duplicadores de CD que. chegando a um olho d’Água (!) na subida da serra ficou impressionado com a semelhança da mesma com o calvário de Jerusalém. por ele considerada anti-cristã e defendia a volta da monarquia. Tendo testemunhado a resistência tenaz dos seguidores de Conselheiro e a crueldade da degola. O ruído de sua ética musical comunitária adquire desdobramentos político-econômicos claros. Hermeto Pascoal e os músicos do grupo conheceram casualmente o poeta baiano João Bá. n.) e os rebeldes de Canudos. à maneira de troféus macabros. anunciar. “O que é [considerado] ruído numa velha ordem. Per Musi. um trecho da narração do poema. O fanatismo religioso do sertão. O Monte Santo teve importância estratégica na guerra que se instaurou entre 54 as tropas militares enviadas pela República e os cerca de 20 mil seguidores de Antônio Conselheiro. profetizando o futuro pós-capitalista. pela primeira vez. como uma primeira audição desta composição poderia sugerir. assim como a manutenção do poder da igreja católica. intitulado Hermeto Pascoal & Grupo28 e consistia. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. assim como Zumbi. na verdade. as melodias da fala que o acompanhavam desde a sua infância. Os cadáveres de ‘Santo Antônio Aparecido’ e de seus fiéis foram decapitados. p. Nesta nova sociedade. a seguir.35). porque sendo concebida como ordenação do ruído – em outras palavras. região supostamente “incivilizada” e “inculta”. durante o Estado Novo. simultaneamente. Quem ouvir e não aprender. Santo Antônio Aparecido. ela reflete a relação entre o ser humano e a sociedade de uma determinada época. de duas quadras sertanejas supostamente de autoria dos rebeldes da Guerra de Canudos. a guisa de ilustração (02:11 – 03:54): Do céu desceu uma luz. verificadas desde o período colonial.. como profecia. Segundo SANTOS NETO (2008) o processo de criação de Monte Santo ocorreu em duas etapas.. confidenciaria depois a um amigo. quem souber e não ensinar.) Era Antônio Conselheiro (. cujo som foi processado através de efeitos eletrônicos (harmonizer). enquanto que. 1902. um espelho e uma profecia e.2-3). misto de profeta religioso e líder político de milhares de caboclos sertanejos pobres. por sua vez. Mas o rumo que os fatos tomaram no combate em Canudos inverteria este enunciado falso. proclamada alguns anos antes. sua alma penará”) consiste. o mesmo disco no qual Hermeto gravou. gravada no LP Lagoa da Canoa. Desta maneira. a partir dos anos de 1990. é um meio de perceber o mundo. e Lampião. C-L. covarde e sanguinária” (Cunha IN GALVÃO. a música seria partilhada por uma comunidade planetária. e não o contrário. Penitentes e contritos. A subversão levada a cabo por Hermeto parece confirmar a afirmação de ATTALI (1977. lá no dia de Juízo. como tática de intimidação. Antônio Conselheiro era contra a República recém-instaurada. preservava intactas as desigualdades entre o sertão e o litoral. estar relacionado a certas figuras do imaginário popular do Nordeste. Entretanto. p. Como espelho. p. ela apresenta certo potencial subversivo. o título inicial da composição foi alterado. mais do que um objeto em si mesma. como controle da desordem –. 2010. Deve seu nome ao Frei Capuchinho Apolônio de Toddi. Confirmando o papel profético que Jacques Attali reserva à música. Belo Horizonte. o até então defensor da causa republicana. na sagrada procissão. Segundo este autor. cujo título inicial era Nave-Mãe. que.44-62. um velho e uma criança. os militares chegaram.. sem fronteiras rígidas entre os intérpretes e os compositores e entre a produção e o consumo. L. por fim. Incluo. Em 1984. na bandeira de Pilatos. foram exibidas para a população. é sugerida pela música Monte Santo. apesar de o compositor não seguir partidos ou ideologias políticas. Hermeto Pascoal parece.” (Voz de João Bá). como demonstrado por BISHOP (2004. Suas cabeças cortadas. sua alma penará. maiores ou menores (00:49 – 01:17). criador/criatura. Por isso. a natureza. o granulado do silvo destemperado da cigarra. Parecendo confirmar a minha comparação. em se tratando dos dois primeiros e. ora como um “bruxo dos sons”. através do qual constitui uma comunidade planetária e homenageia a todos os seres humanos através de 366 composições. ainda. de pio melodioso. à maneira de um Lampião contemporâneo. A harmonia acompanha o aumento de tensão. o ar é puro. música e amor –.17-18). por sua vez. cuidando de tudo que é belo. Na obra do compositor alagoano os ruídos da natureza e dos animais compartilham. através da música. estes indivíduos possuem. O “lado mago do bruxo” compõe o Calendário do Som (2000). por exemplo. p. Hermeto Pascoal constrói estes e outros acordes dissonantes tendo como inspiração as sonoridades inarmônicas dos objetos sonoros não convencionais. de um lado. O título inicial da composição Monte Santo. os donos das matas vão se encontrando. C-L. passando. talvez igual a um passarinho. como. religiosa. tituir um acessório padrão nos computadores pessoais. há. que é linda. além de sons percussivos sutis e de apitos imitando os pios dos pássaros (00:43). as composições Rede e Missa dos Escravos estabelecem um continuum entre a natureza. cantado pela intérprete Zabelê: Me dê a rede.). ainda. O “lado bruxo do mago”. a cantora que declama e canta um poema sobre os pássaros e a natureza. Maria Bethânia. as dissonâncias e tensões harmônicas (como na afirmação de Hermeto antes citada na introdução: “O atonal é a coisa mais natural que existe”). a deficiência visual. fez parcerias com Jane Duboc e arranjos para estrelas da MPB. social e político-econômica. a incluir estruturas poliacordais (00:30). nas matas. há uma associação musical entre. nas matas. por sua vez. Zabelê é uma pessoa de carne e osso. 174-178. as gargalhadas e os gritos de Flora Purim se fundiram aos grunhidos ruidosos de dois porcos “cantores” –. Os mo- mentos de maior tensão harmônica coincidem com o trecho do poema no qual Zabelê declama: “E logo o dia vem clareando. na Música Universal de Hermeto Pascoal. o pio dos pássaros. grunhidos.22. 7as. ecológica. os donos das matas vão se encontrando. Observo ainda uma inversão curiosa de papéis: enquanto que a letra cantada de Missa dos Escravos mencionava a ave “Zabelê”. modernidade/tradição. repetidamente. por exemplo. finalmente. os risos. como exemplifica a declaração algo messiânica a seguir: “Logo senti que estava diante de uma grande missão (. a civilização e os seres humanos. Quebrando Tudo! (1979a) e Mestre Mará (1979b) demonstram os procedimentos vocais não convencionais utilizados por Hermeto: tosse. Como demonstrei em estudos anteriores (COSTALIMA NETO. os animais e. natureza/cidade. confirmando a fusão de opostos presente em sua música. como. pro sono vir devagarinho. Utilizando sua percepção ampliada. na peça Rede. A letra desta música é um poema criado por Hermeto Pascoal (bem antes de a ecologia ter se tornado moda). junto com o crescendo de intensidade. ruídos/notas. isto é. através de certas se­ melhanças físicas. isto é. p. 2010. cuidando de tudo que é belo” (00:49 – 01:17. por exemplo. E logo o dia vem clareando. fazer com que. andando e voando. Assim. e 9as. depois. sendo inicialmente constituída de acordes em quartas com 2as. Os sonhos de justiça social – nos quais há fartura simbólica de alimentos. por sua vez. com relação à voz. gritos. As notas e ritmos tocados inicialmente de maneira suave pelo piano elétrico simulam uma rede rangendo e balançando. 1999. De maneira semelhante ao que ocorrera no final da música Missa dos Escravos – no qual o choro. Quero sonhar bem diferente. O “mago” tocou com Elis Regina no Festival Internacional de Jazz em Montreux. Em suma. 2000. os animais. o “índio diferente” Hermeto Pascoal afirmou na citação que serviu como epígrafe neste artigo: “nós somos pássaros também”. uma fusão de pólos aparentemente opostos: fala/canto. A barba e a longa cabeleira. Analogias entre Hermeto Pascoal. Como assinalei em outro artigo (COSTA-LIMA NETO 2010b). que é linda assim.. vou ver o sol nascer sozinho. etc. finalmente. por exemplo. além dos sons produzidos pelos animais (mesclas de sons com espectro harmônico e de ruídos). etc. como exemplifica a música Rede (1979b). atingindo.90-98. que é linda. pela ecologia. Num tensionamento progressivo. ao mesmo tempo. as pessoas se amem cada vez mais. em andamento moderado e compasso quaternário.30 Zabelê declama o poema de Rede (00:11) tendo ao fundo o som do piano. com acordes dissonantes formados por 2as. o mesmo espaço sonoro com as vozes e os demais instrumentos musicais. o piano. ainda. 2000. p. Hermeto Pascoal é visto publicamente no Brasil ora como um “mago”. não vou sair. perso­nalidades multifacetadas nas quais os terrenos do sagrado e do profano se inter­penetram como as vozes de uma trama polifônica sócio-musical. sem nenhum tipo de preconceito” (PASCOAL. 05:01 – 05:24). o cricrilar dos grilos. na música Rede Hermeto Pascoal adapta e transpõe estas sonoridades naturais inarmônicas e ruidosas para os instrumentos convencionais. quando acordar de manhãzinha. o 55 . declara guerra permanente contra as grandes gravadoras e a indústria cultural. Per Musi. n. Canto a natureza.NETO. mais um pouquinho. nos ares cantando. Sua concepção estética é. L. pouco a pouco.. o andamento é acelerado. quero dormir. gargalhadas. como. animais/seres humanos.125-137). andando e voando. de outro lado. sonho inconsciente/vigília consciente. sons guturais. o coaxar dos sapos. que é declamado e. “democraticamente”. Balance com força. são complementados. nos ares cantando. no que diz respeito ao músico e ao cangaceiro. exemplifica como a ética musical comunitária de Hermeto Pascoal apresenta uma interface mística. chiados.44-62. p. ainda. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. A “transposição inarmônica” ocorre. na música Rede. o clímax. em seguida. Músicas como. NaveMãe.31 enquanto que. ataques glotais e consonantais. Belo Horizonte. ajuntadas (00:01 – 00:29). de fato. Antônio Conselheiro e Lampião ocorrem. Monte Santo. parece ser apenas um rótulo. estaria na testa. as classificações se tornam sempre problemáticas. enquanto que.Conclusão: o lençol de águas subterrâneas O público. respectivamente. muitas vezes. Além do paladar. Igrejinha e Bebê. Hermeto Pascoal compõe músicas que serão tocadas por outros instrumentos (Bebê. Montreux. que passa então a interligar o mundo material ao espiritual. em se tratando de Hermeto Pascoal. os jornalistas. os intérpretes e os pesquisadores relacionam Hermeto Pascoal às tradições da música popular e. Suas composições questionam não apenas o rótulo de “música instrumental”. O fato de o músico alagoano não ser reconhecido publicamente como cantor parece ocorrer porque suas experimentações vocais ultrapassam aquilo que o senso comum espera convencionalmente de um cantor. C-L. sinestésica ou multi-sensorial. por ocasião da jam session de Hermeto e Elis Regina). mais especificamente. populares ou eruditas. E pela internet. pois. etc. por exemplo. Missa dos Escravos. Confluem. 2001). L. ambos. Integram a ética musical comunitária de Hermeto Pascoal. improvisa Quebrando Tudo! e “invoca” espíritos em Velório. Mestre Mará) e utiliza a sua voz e a de outros intérpretes de maneira não convencional (Velório. os intérpretes. Avesso às tradições cristalizadas.22. comercializado e consumido. com cara de velho”32). Mais do que isso. a versatilidade de Hermeto Pascoal dificulta conceitualmente esta classificação. Entretanto. o “problema” é que Hermeto Pascoal é um cantor original. Cannon. a crítica e os pesquisadores (incluo-me na lista). na voz. ao sabotar as grandes gravadoras transnacionais. enquanto profetiza o surgimento de uma comunidade planetária unida pelo som. por possibilitar o compartilhamento gratuito de músicas. O problema quanto à denominação “músico popular instrumental” é aumentado ainda mais porque algumas das composições de Hermeto Pascoal estão no limiar da não-música e do não-humano. De forma só aparentemente despretensiosa. Através da voz. os jornalistas. “bruxo”. 4. etiquetando-o. Neste sentido. As fronteiras que separam a palavra falada. Hermeto Pascoal acredita que existem sentidos extra-físicos: a visão verdadeira. Quebrando Tudo! Nem um talvez. “terra da promissão”. as músicas da aura (baseadas nas melodias da fala) e as músicas utilizando sons de aves. Assim. 2010. poemas. ocorreria na região da nuca e não apenas nos ouvidos (JARDIM e CARVALHO. segundo ele. as composições contempladas neste artigo e muitas outras músicas criadas por Hermeto Pascoal (totalizando quase 60% das composições gravadas nos seus discos) demonstram que. Monte Santo. zona Agreste do estado de Alagoas. Contudo.NETO. além de tocar instrumentos de cordas. porcos.44-62. as músicas da aura). O primeiro pretende erigir um “Templo do Som da Música Universal”33 e compõe músicas como Santo Antônio. insetos. o “peregrino-cangaceiro” contraria interesses poderosos. uma simplificação criada com o objetivo de classificar um artista inovador. mas também a própria noção de “música popular” – muito embora. sopros e percussão. de maneira ainda mais ampla. músicas regionais. O seu ruído não se restringe somente a música e alcança a sociedade. envolvendo-o numa embalagem e transformando-o num produto capaz de ser identificado. como os dois lados da mesma moeda. ao dirigir a atenção para a matéria puramente sonora produzida pela voz-instrumento. Belo Horizonte. MPB. n. a música regional e a MPB (“Esse pessoal que toca chorinho. Cannon. p. nascido no Olho D’água da Canoa. Exemplos adicionais revelaram que o compositor cria ou utiliza falas.. um Macunaíma da música brasileira. por outro lado. letras. como exemplificam. critica acidamente o choro. Entretanto. o segundo. frequentemente. no timbre de uma voz” (meu grifo). Missa dos Escravos. a visão e o tato também estão amalgamados em sua obra. as peças do Calendário do Som). Igrejinha). que subverte parcialmente o primado da palavra e da imagem sobre o som vocal. começa a tocar que nem velho. . o frevo ou o jazz. a aura verbovoco-visual. o “mago” e o “bruxo” são um só indivíduo. a economia e a política. os sentidos físicos estão inter-relacionados na poiética do compositor alagoano. apesar da denominação “músico popular instrumental”. Ao “Quebrar Tudo!” e questionar as categorias estéticas e os rótulos comerciais. num ponto equidistante entre os dois olhos. um artista que desestabiliza as hierarquias pré-estabelecidas. numa espécie de “pirataria transcendental”. Hermeto Pascoal cria novos paradigmas. toca e canta ao mesmo tempo. A denominação a ele atribuída de “músico popular instrumental”. o som e a imagem resultam de um processo físico e extra-físico. não sejam reconhecidas como “música erudita”. a meu ver. e é menosprezado pelas grandes gravadoras e pelos produtores musicais (como demonstrou a controvérsia com o produtor André Midani. à música instrumental presente em gêneros como o choro. enquanto a escuta. a relação entre o falar. De fato. a palavra cantada e a palavra tocada no processo de criação musical de Hermeto Pascoal são bastante tênues. Per Musi. Santo Antônio. este “músico instrumentista” também canta (O Galho da roseira. As palavras são muitas vezes desmembradas em sílabas e letras sem conteúdo semântico. com valor apenas sonoro. como demonstrou a citação utilizada como epígrafe neste artigo: “Eu me inspiro mais na pintura para compor. Hermeto Pascoal é um experimentador iconoclasta. isto é. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz.  Na verdade. por sua vez. ele também canta e. Esta constitui um aspecto fundamental da ética musical comunitária do músico alagoano e ocupa um lugar central em sua vida 56 e obra. imagens e narrativas que acabarão sendo transformadas em música (Rede. A multi-sensorialidade está relacionada. o cantar e o tocar parece estar inserida numa dimensão mais ampla. à religiosidade de Hermeto Pascoal. como exemplificaram os títulos e letras de suas músicas relacionadas aos alimentos. que Hermeto Pascoal parece alçar a uma condição semidivina. desafiando a si mesmo e o público. para muitos brasileiros. na França. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. As músicas executadas por Hermeto e pelos intérpretes que o acompanharam nos discos e shows surgem desta fonte que fala. “vocal”. Os artistas são abandonados à própria sorte e se vêem à mercê da ditadura do mercado e dos interesses exclusivamente comerciais da indústria musical transnacional – isto num país que tem na música um símbolo de nacionalidade (!).” (PASCOAL. continua Treece.NETO. Neste sentido. L. o bacurau. a tradição de pensamento nacionalista no Brasil vem utilizando conceitos (“democracia racial”. ao mesmo tempo. a realidade dos fatos contrasta fortemente com este discurso conciliatório. grita. à musicalidade universal da fala.de ser brasileiro. por exemplo. come. A saída encontrada pelo músico significou para ele. Desta maneira.“universal” . estamos cantando e. Ao incluir. de outro? Folclórica. dos animais e dos objetos cotidianos. desmatamento e extinção de espécies animais e vegetais o que parece ser mais vital do que recriar musicalmente os sons dos seres vivos. No que diz respeito aos índios. “luso-tropicalismo”) e ideologias neocolonialistas (“Marcha para o Oeste”. Esta crise parece ter como causa principal a falta de políticas culturais realmente eficazes por parte do Governo Federal. de um lado. a libertação: viajou em 1970 para lançar-se em carreira solo nos EUA. Hermeto Pascoal dava voz aos animais e reafirmava sua identidade cultural nordestina. “integralismo fascista”) para construir uma narrativa mítica como uma “pedra de toque para uma história pacífica de integração política. a natureza ainda é um Inferno verde. estilos e sonoridades da cidade e do campo não estão separados. assim continuando as experiências iniciadas em sua infância. conforme demonstrado pelos exemplos de Zumbi dos Palmares. Entretanto. de um lado. assim aplicando a ética musical comunitária numa escala planetária. p. desde a década de 1970. sinaliza para a existência de uma crise generalizada na produção e na difusão musicais no Brasil. incluindo as críticas e atitudes dissonantes. uma nascente” (Pascoal. 2008. abordados neste artigo. citado por ZAGO). E um ato de resistência. 2010.000 no início do século XX.. sem exceção: o ex-presidente Fernando Collor de Mello. título do livro de Alberto Rangel. C-L. 1999). a ecologia sonora em sua música. “Minha cabeça é uma fonte. canta e toca. ainda abaixo do valor mínimo (1. Todos. É exemplo deste discurso de “assimilação” o pronunciamento (absurdo) feito em 1969 pelo coronel Costa Cavalcanti. por fim. nos EUA. p. sem dúvida nenhuma) pode ter adquirido. pois: “ninguém consegue ensacar o som!” (PASCOAL. como um índio pós-moderno. o exílio e. pois “a natureza é o cotidiano. social e econômica” (TREECE. em plena ditadura militar: “Nós não queremos um índio marginalizado. e “instrumental”. popular ou erudita? Brasileira ou internacional? Modal. Uma observação: enquanto este tipo de crítica rasteira ainda ecoa por aqui. Após ter migrado de Lagoa da Canoa para as grandes cidades brasileiras em 1950 – e se ver cercado pelos nacionalismos de direita e de esquerda na década de 1960 –. A quem interessa dividir arbitrariamente a música em duas metades. então presidente da FUNAI. Nunca sentiram em torno. p. incluindo a selva de pedra das cidades grandes? Voltamos. paralelamente a música de Hermeto Pascoal vem sendo estudada cada vez mais nas universidades brasileiras e no exterior. o marreco e o Papa João Paulo II. n. sussurra. sem que nós percebêssemos. Como Treece bem assinalou. A opinião de que Hermeto Pascoal é não mais que um “músico instrumental” (excelente. tonal ou atonal? Para o compositor. Através das músicas da aura descobrimos que ao falarmos. Lampião e Antônio Conselheiro.44-62. por exemplo. a mitologia integracionista invocou continuamente sua assimilação pela sociedade dominante. uma conotação um pouco conservadora. ao privá-lo de sua voz e de tudo aquilo que ela diz. escapar ao controle político-ideológico e estético. dois termos utilizados contra ele de maneira depreciativa. desde 1500. por isso. Hermeto Pascoal ultrapassa(va) permanentemente os limites impostos pelas fronteiras geopolíticas e estéticas nacionais e in- ternacionais. o poeta e militante comunista Mário Lago. multi-instrumentista e cantor Hermeto Pascoal. Per Musi. todos somos cantores. Belo Horizonte. com os sons da fala. p. o que queremos é um índio produtor. anárquico ou apolítico? Tendo como inspiração inicial o sotaque “cantado”. para o imigrante Hermeto Pascoal os gêneros. de outro. prefaciado por Euclides da Cunha com palavras ainda atuais: “Faltam-lhe em geral [aos cartógrafos] a intimidade da Terra. o  nordestino Hermeto Pascoal teve que descobrir uma maneira de exercer sua arte e. enquanto. 2008.22.. ao mesmo tempo.48). Em tempos de aquecimento global.7%). na Inglaterra ou no IRCAM.35 Existiria algo mais democrático. rural e “indígena”. através das músicas da aura Hermeto Pascoal amplia os limites da aldeia e da vila rural para abranger todo o globo terrestre. o império formidável do desconhecido” (CUNHA. 1909). Entretanto. O problema por ele levantado com relação à pirataria digital. “emigrava para dentro do som universal”. criado por Pierre Boulez.11). 57 . entre as vicissitudes das explorações longínquas. da natureza e do planeta como um todo.0%) definido pela UNESCO. apesar de a população indígena ter sofrido. entrevista ao autor. no Olho D’água da Canoa. um índio que seja integrado no processo do desenvolvimento nacional” (Cavalcanti citado por TREECE.12). reza. sua obra é como uma viagem acústica.34 Ocorre que. Assim ele  criava sua maneira . um verdadeiro genocídio. 1998. reclama. típico da região Nordeste. cujo orçamento anual destina atualmente à cultura apenas uma percentagem pífia (0. caindo de cerca de 5 milhões para apenas 100. Não se tratava de mera “excentricidade” ou de “exotismo”. a música é uma só. 44-62. Referências ANDRADE. Benoit. Per Musi. Acesso em 02/02/2010. NEVES. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguar­distas. 1999b. André.48-57. 279. Jack.” In: TELES. Actas del IV Congreso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estúdio de la Música Popular. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos em uma obra-prima para flauta. 2006. 5ª edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. Revista eletrônica da ABET. 177. o forró e as bandas de pífano na música de Hermeto Pascoal. Rodrigo de Azeredo (org. Fragmento de manuscrito (rascunho) em um caderno.html. p. 1909. p. 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Conferir. e 2002. 18 Ver as cenas de Hermeto Pascoal compondo e solfejando as melodias do Calendário do Som.20. 11 Para uma inter-relação entre os elementos musicais (forma. Ver CASCUDO. Ver Elis Regina falando sobre a jam session com Hermeto Pascoal em http://br. Acesso em 02/02/2010. além da música Balanço n° 1. todos dividindo. 14 Sobre o Toré.). 23 Termo cunhado em 1967. 2008. no qual Hermeto Pascoal participou como compositor. p. 20 O Grupo que acompanhou Hermeto Pascoal no Festival de Jazz de Montreux era constituído pelos músicos Itiberê Zwarg. reside. bateria e percussão. 15 Observo que. no mesmo ano.ufrj.com/watch?v=B_jEaktTVSQ. Ver http://br. a segunda. II. onde se apresentaram novamente. 2001. acesso em 29/01/2010. 2 Conferir as músicas da aura intituladas Tiruliruli e Vai mais garotinho (1984). 1972. Jovino Santos Neto. Elis Regina e seus respectivos grupos viajaram para Tóquio. além de música cigana no conjunto de Fafá Lemos. em Recife. Sobre Lampião e o Cangaço ver FACÓ. no Youtube. p. as faixas Pensamento positivo. criada por Hermeto Pascoal. a qual.174-9. composta por Hermeto sem o auxílio de instrumentos. O Galho da roseira. de Airto e Flora Purim.youtube. ver VILLAÇA (prefácio escrito por Zélia Gaia). no Rio de Janeiro. 1964. (em BILLON. isto é. 1979a. p.scielo. cantadas e assobiadas por Hermeto Pascoal no disco Live-Evil. 1999. MELLO. cuja grafia correta é “Pascoal”. n. COSTA-LIMA NETO. 1999. Sobre a dicotomia entre o “natural” e o “convencional”.youtube.com/watch?v=XOgHxIXyTKc&feature=PlayList&p=11E7EE48CA15EC8F&playnext=1&pla ynext_from=PL&index=54>. e significa: 1) Tocar com “paixão”. bombardino. a voz é utilizada em cerca de 90 composições. p. p. 2006.22. Dona Zélia Gaia.305. 26 Ver http://portal.com/watch?v=W821bgUU_mY. tuba). na qual este descreve o processo composicional de Hermeto Pascoal e a maneira cantada pela qual o músico alagoano compõe suas melodias instrumentais. Galo.br/pdf/icse/v9n17/v9n17a03. Segundo informação de SANTOS NETO (2008) após o Festival de Jazz de Montreux. 1984.) e a religiosidade de Hermeto ver a noção por mim formulada de Continuum separação-fusão paradoxal. Três Coisas e Quando as aves se encontram.6 e COSTA-LIMA NETO. 29 As duas quadras foram citadas por Euclides da Cunha.171. 13 Para uma discussão a respeito da sinestesia sob o ponto de vista etnomusicológico ver MERRIAN. online. 1985. 24 Hermeto Pascoal conheceu Jackson do Pandeiro na Rádio Jornal do Commercio. 2005. Escutar a balada Montreux (1979a). para designar um tipo novo de jazz que se utilizava de improvisações atonais e assimétricas. Conferir o solo vocal embolado de Hermeto Pascoal na faixa musical Remelexo. se tornou parte do dicionário da música popular no Brasil. 9 “Cozinha” é um termo utilizado na música popular para designar a formação instrumental básica constituída de contrabaixo.com/watch?v=SrgveUpwCnM&feature=related. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. a professora que alfabetizou a Hermeto Pascoal. acesso em 25/01/2010. em 1988.44-62. segundo informação do biógrafo de Hermeto. Sobre a música da aura. p. Ver SANTOS NETO. 16 Neste disco de 1973 talvez tenha sido iniciada a confusão com o sobrenome de Hermeto. Nenê. em Lagoa da Canoa. (em HINRICHSEN. Finalmente. 10 Sobre a inter-relação da música de Hermeto Pascoal com as feiras.129-154.pdf. p. foi denominada Quebrando Tudo!. 1995. 17/02/2009). ‘Quebrar tudo!’. 1982. L. 2006. bailes populares e rodas de choro ver CAMPOS. em 1956. 27 Ver http://www. Hermeto fazia a sua primeira gravação como instrumentista. o solo é apresentado como foi tocado ao vivo. sob o título Hermeto Pascoal.761. teclados. 28 O Grupo que o acompanhava nesta época (entre 1981 e 1993) era constituído pelos músicos Antônio Luis Santana (Pernambuco – percussão). ritmo. reproduzindo as dicas que ele transmitiu para Flora Purim.” (GUINGA). C-L. harmonia. 2004. Fernando Collor de Mello e do poeta Mário Lago.youtube. 6 A informação a respeito do apelido do avô de Hermeto Pascoal é de VILLAÇA. pelo Sambrasa Trio e. Fábio) e.youtube. além de “auralizar” os cantos das aves: Uirapuru. 7 Em: http://acd. 1992. 2006 [1928]. Em entrevista com Ezequiel Neves. Sony). Per Musi. do compositor de frevos. Zabelê. cantada e sussurrada pelo músico no disco Seeds on the ground (Buddha Records. p. 21 Ver o vídeo das três músicas em: <http://www. 5 Conjunto de orações rezadas em voz alta ou cantadas diante do morto. em Sol menor.24-25. finalmente. 1987. significa construir musicalmente tudo. Hermeto Pascoal teve gravada sua composição Sete contos pelo grupo Cinco-pados e pelo pianista Ely Arcoverde. de Miles Davis (disco gravado em 1970 e lançado em 1972. Fogo-apagou. relançado por outra gravadora (Muse Records). 1971). nasce o som. 1980. ver COSTA-LIMA NETO. Márcio Bahia (bateria. 2010b. ver COSTA-LIMA NETO. Quebrando tudo! começa aos 04:44. pelo saxofonista norte-americano Ornette Coleman. 2010.1-33. Bacurau e Marreco. e 2010a (no prelo). 1963. sobre as rapsódias das “melodias infinitas” nordestinas ver ANDRADE. Incluam-se na lista mais duas composições de Hermeto Pascoal – as baladas Little Church e Nem um talvez –.36-55. 1997.com/watch?v=X7Kv1TpZkTQ>. 4 Segundo SANTOS NETO. 1975. ver COSTA-LIMA NETO. seu irmão e seu pai para tocar nas festas da cidade. a “doçura” da música de Wolfgang Amadeus Mozart e as sobremesas batizadas com o nome deste compositor) ver NETTL. apenas algumas horas antes do show realizado no Festival de Jazz realizado na cidade de mesmo nome. 1999. compostas a partir de narrações futebolísticas feitas pelos radialistas desportivos Osmar Santos e José Carlos Araújo. a partir da década de 1950. Coalhada foi gravada originalmente em 1965.mec. do ex-presidente do Brasil. 2) “Tocar como se cada show fosse a final de um campeonato” (PASCOAL. Ver HINRICHSEN. no mesmo disco gravado no Festival de Jazz de Montreux (1979a). p. 1993. ainda hoje. Nivaldo Ornellas e Cacau. 188-194.youtube. a “cozinha” é tão importante quanto os demais instrumentos.br/lamut/cropsite/home. para uma inter-relação entre os compositores clássico-românticos e a culinária (por exemplo. 2001 [1902]. Conferir a entrevista com o pianista e compositor Jovino Santos Neto. 2006. p. <http://www. em COSTA-LIMA NETO.br/seb/arquivos/pdf/livro082. No vídeo postado no YouTube. As músicas de Hermeto Pascoal referidas neste artigo podem ser escutadas.10. 25 Ver o depoimento irônico de Hermeto Pascoal em PRADO. em 1959. arranjador e intérprete. 1987. 3 Para uma abordagem mais completa sobre a Música Universal. 127-143. 19 Hermeto. “com amor”. p. Ver BERENDT.85-102. na infância do músico. 3) “Pelo contrário.NETO. “dando tudo de si” (PASCOAL. acesso em 29/01/2010. 2001. (1992). 48–57. 2000. flautas).youtube. Escutar Hermeto Pascoal fazendo a música da aura do ator francês Yves Montand em: http:// br. que está escrevendo uma biografia de Hermeto Pascoal. Ainda em 1965. e que fazia uso musical dos ruídos. 1977. o mesmo palco. Brazilian Adventure. Nove anos antes. p. 75-98. em Recife. Hermeto Pascoal tocou canções francesas e italianas nas boates. estilo. 12 Segundo informação de José Roberto de Barros Torres (email ao autor. p. p. 17 Segundo informação em SANTOS NETO.45-50. Hermeto). 1997). Mário de. isto é. Observo que na cidade de Palmeira dos Índios. este primeiro disco autoral foi. 1999. <http://www. no disco Ritmos Alucinantes. acesso em 26/12/2008. 1999.119-42. p. 61 . Observo que a expressão “Quebra tudo!”. Luis Santana/Pernambuco. e TRAVASSOS. maestro e arranjador Clóvis Pereira. etc. Itiberê Zwarg (contrabaixo. 2001. desta vez. Nestas três faixas Hermeto Pascoal faz a música da aura. José Roberto de Barros Torres e da família do músico.pdf.com/watch?v=zGnqyIfyXOI&feature=Pla yList&p=EC7003ABE3BF4C61&playnext=1&playnext_from=PL&index=8>. Jovino Santos Neto (piano. 22 No LP com a gravação do show ao vivo de Hermeto & Grupo no Festival de Montreux (1979a) este solo está subdividido em duas faixas: a primeira recebeu o título de Maturi. enquanto que. 1973. no disco Órgão de Vanguarda. Sabiá.9. 32 PASCOAL. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. ver CAESAR. Luiz Costa-Lima Neto é Bacharel em Composição musical pela Universidade Estácio de Sá.com/article. gravada no CD lançado em 1985. 62 . intérprete e arranjador. entrevista com Yoda.fr/equipes/repmus/Rapports/ mathieu2002/outils-analyse-BM-2002.44-62.br/lamut/cropsite/home. 30 Para maiores noções sobre bio-acústica. interpretada por Jane Duboc. Acesso em 02/02/2010. sobre educação mu­sical. MATHIEU. do CD Maria Bethânia. 35 Ver CD lançado em 1992.php3?id_article=21. L.br. e sobre teatro. Per Musi.com. doutorando na mesma Universidade.com/ watch?v=3BOga_GhZjE&feature=related. n. Desenvolve pesquisas sobre os índios Xavante (Brasil Central). em: http://br. mestre em Musicologia brasileira pela UNIRIO. acesso em 29/01/2010.com/watch?v=wEiQSeyUkCM&feature=related.youtube. 25 anos (1990) em: http://br. Licenciado em Educação artística com habilitação plena em mú­sica pelo Conservatório Brasileiro de Música.22.pdf. p. mas esta não foi incluída porque o Vaticano não concedeu a autorização. Professor de música na Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena e no Curso de Pós-graduação em Arteterapia da Clínica Pomar/ ISEPE. C-L.24-38. 31 Conferir a composição de Hermeto intitulada Peixinho. Mário Lago e dos pássaros Hermeto Pascoal fez a música da aura do papa João Paulo II.ircam. Em: http://www. Escreveu artigos publicados no Brasil e no exterior sobre a música de Hermeto Pascoal. Conferir a música Tomara (Rubinho Valença/Alceu Valença). Em: http://recherche. Acesso em 02/02/2010. http://acd. É compositor.youtube. acesso em 10/12/2008. acesso em 10/12/2008.html. 2010. Rio de Janeiro.musimediane. Além das músicas da aura de Collor. música e raça na cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX. e sobre a música na obra teatral e crítica de Luiz Carlos Martins Pena (1815-1848). integrou a banda Tao e Qual na década de 1980.NETO. 34 Ver CHOUVEL.ufrj. Belo Horizonte.hermetopascoal. 33 Ver http://www. p. participou como compositor em Bienais e Panoramas de Música Brasileira Contemporânea. It presents an original analytical approach of the work based on the “paradoxal separation-fusion continuum”. os mundos terreno e espiritual. Cannon by Hermeto Pascoal: musical and religious aspects in a flute masterpiece Abstract: Case study on Cannon by Brazilian composer. music analysis. 2010. in which opposing elements dialog: improvisation and the layers of prerecorded sounds. Brazilian popular music. F. Belo Horizonte.. free jazz) e erudita (música concreta. Belo Horizonte. Belo Horizonte) fborem@ufmg. 2010. A combinação das análises formal. spiritism and music. a performance individual e a coletiva. It also includes a context of the religion role in the music of the so-called “mago” (wizard) of the Brazilian popular music.Aprovado em: 18/03/2010 63 . acoustical sounds and manipulated sonorities. planejada como uma sessão espírita musical e gravada pelo compositor no disco Slaves Mass (PASCOAL. a estabilidade e a instabilidade modal. n. Belo Horizonte) [email protected]. 1977). p. escalar e proporcional da partitura e seu cruzamento com a análise espectral da gravação revelam grande unidade e uma íntima relação entre os conteúdos musicais e extra-musicais da obra. GARCIA. modal jazz. Belo Horizonte. a sonoridade acústica e os sons manipulados. p. em primeira mão. obra para flauta. arranger and multi-instrumentalist Hermeto Pascoal. proportional analyses with the spectral analysis reveal an intimate relation between the musical and extra-musical contents of the work. PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. música popular brasileira. atonalism.. modalism. incluída neste volume de Per Musi às p. 239 p. 2010 Recebido em: 21/12/2009 . devised and realized by ethnomusicologist COSTA-LIMA NETO (2009). electro-acoustical music. cadenza. Departing from an artistic drawing of a music staff spiral included in the internal covers of the same LP (PASCOAL e PEREIRA. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. Keywords: Hermeto Pascoal. música eletro-acústica. . 1977). MG. the popular (the Brazilian embolada. análise musical. na qual elementos opostos dialogam: a improvisação e as camadas de superposição de sons pré-gravados. Inclui uma contextualização do papel da religião na música do “mago” multi-instrumentista.80-82). F. a work for flute.80-82). humming na flauta e sons pré-gravados. 1977) e de uma transcrição baseada na faixa gravada. Palavras-chave: Hermeto Pascoal. jul. 1977) and a transcription based on the listening of the track in the same disc. recitative) languages. M. Per Musi. stable and unstable modalities. the earth and the spiritual worlds. included in this issue of Per Musi. The combination of formal. espiritismo e música. designed as a musical spiritism session and included in the LP Slaves Mass (PASCOAL.22.dez.br Resumo: Estudo de caso sobre Cannon de Hermeto Pascoal. A partir do desenho artístico de uma pauta espiralada na capa interna do mesmo LP (PASCOAL e PEREIRA. 2010. atonalism.BORÉM. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos em uma obra-prima para flauta Fausto Borém (UFMG. the score of the work was reconstituted and edited in detail (PASCOAL e BORÉM. recitativo). scalar..br Maurício Freire Garcia (UFMG. jazz modal. as linguagens popular (embolada. a partir de ferramenta etnomusicológica criada e realizada por COSTA-LIMA NETO (2009). free jazz) and the classical (musique concrète. Apresenta também. atonalismo. modalismo. atonalismo. cadenza. a abordagem analítica do “continuum separação-fusão paradoxal” da obra.63-79.. bimodalism. a partitura da obra foi detalhadamente reconstituída e editada (PASCOAL e BORÉM. flute humming and pre-recorded sounds. arranjador e compositor da música popular brasileira. MG. individual and the collective performances. meditação e ritos indígenas. Na faixa que dá nome ao disco. pela prática diária matinal. . 2010. Hermeto Pascoal (RODRIGUES. . p. . 2000. 2010b. 1993. Apesar dos pedidos do público. ao lado de nomes como John McLaughlin. Flora Purim sobre Hermeto Pascoal (PURIM.9). estilo da música popular . apresentado por Airto Moreira. . Um relato detalhado de suas experiências religiosas relacionadas à música pode ser encontrado no artigo Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica. escolhemos a faixa Cannon. Chick Correa e Stan Getz. 2009). observa-se uma ampla utilização ritualística da voz (choros. Per Musi. . Belo Horizonte. gargalhadas. ensaiavam diariamente. espiritismo. publicado no presente número de Per Musi (BORÉM e ARAÚJO. p. começou às 23 horas e prolongou-se até às 4 horas da madrugada. convenceram Hermeto a se mudar temporariamente para Nova Iorque. “Minha religião é a música”I. Concorrem também para esta aura místico-religiosa as fotos na capa (Ex. M. destaca os longos cabelos brancos de Hermeto que mostra. para gravar o disco chamado Hermeto (1971). Depois das dificuldades iniciais.1. aumentou muito o trânsito de músicos brasileiros decididos a desenvolver sua carreira musical no exterior na década de 1960. em 1989. gritos. F. salpicando sua numerosíssima obra.BORÉM. . 2008. . quando ele morresse. ao mesmo tempo.63-79. em 1978. Assim. Hermeto Pascoal revela um pouco do lado espiritual: “o repórter [da Radio France disse] ‘. o Miles Davis esteve aqui dando uma entrevista pra mim e eu perguntei pra ele se.48). .. superposição de sons pré-gravados) e sonoridades exóticas (porcos grunhindo). no lugar dos olhos. p. Hermeto não retornou com seu grupo (MILLARCH. 2009a). revoltou-se contra esta limitação que tentaram lhe impor na duração do concerto e. . p. 2010. ele gostaria de ser músico? Aí ele falou que gostaria de ser um Músico que nem o Hermeto Pascoal’. . Deste disco. 1988. p.. em pé. quando os músicos ensaiavam os trechos mais difíceis de suas partes individuais .22. Hermeto voltou aos Estados Unidos para gravar Slaves Mass (1977). . o que já é sugerido no próprio título do álbum. durante doze anos consecutivos.575). a vocação brasileira para o sincretismo religioso e musical. Em Pendotiba (Niterói). Na esteira do prestígio da bossa-nova nos Estados Unidos. após iniciar uma música.“ (MILLARCH. p.5-6). Hermeto consolida a atmosfera mística do disco com a utilização não convencional da voz em seis das sete faixas (COSTA-LIMA NETO. . É muito comum ele escolher temas musicais.1999.tão único e diferente dos outros. Foi esta dedicação e respeito religiosos pela qualidade musical que tornaram lendários os ensaios diários na casa de Hermeto no Rio de Janeiro. p. teclados refletidos em seus óculos . São comuns os depoimentos de músicos que abdicaram de seus estilos de vida. de 1981 a 1993”. um dos pioneiros do hard-bop (POLITOSKE. F. .2 e 8): “. 2010. declamações. o que é corroborado por COSTA-LIMA NETO (2008. . sendo que esse tempo de ensaio que era acrescido “. 1977) 1 – Hermeto Pascoal e Cannon: contextos musical e religioso A relação entre música e espiritualidade na vida de Hermeto Pascoal é muito imbricada e transparece tanto na sua produção artística quanto na sua filosofia de vida.22-43). que faz uma alusão à cultura afro-brasileira: missa dos escravos. que se mudaram para os EUA em 1967. segundo entrevista do músico Jovino a GILMAN (2009). p. “from 2 to 8 pm”.1) – uma foto de Tom Copi cuja luz.2) “Eu rezo com a música. das 14:00hs às 20:00hs. em forma de aura. . cuja sonoridade parece nos “. 1979). ficaram animados com a receptividade de seu trabalho. p. 2001.e na contra-capa do LP – uma foto avermelhada de Joel Sussman com Hermeto segurando um dos dois porquinhos texanos utilizados na gravação da faixa-título Slaves mass (veja BORÉM e ARAÚJO. umbanda. nesse volume de Per Musi). sua coragem de experimentar com todo e qualquer tipo de música num nível muito avançado”. cidades de origem e trabalhos só para fazerem parte de seus grupos ou de seu convívio. . Hermeto sintetiza.48). 2010b. Menos de uma década mais tarde.” (COSTA-LIMA NETO. e também com um intenso experimentalismo instrumental (técnicas expandidas da flauta. eu disse pro cara também: ‘Se eu morresse eu gostaria de ser um músico como ele’ “ (BARROSO. parou e saiu do palco alegando que o tempo dado a ele tinha se esgotado. ZWARG. Hermeto e seu grupo prolongaram o show de inauguração de uma casa de jazz por mais de cinco horas (COSTA-LIMA NETO. no qual ficou ainda mais claro sua predileção pelo lado místico da música. n. Ao falar de sua empatia com Miles Davis. vocalizes). p. remeter à personagem conhecida na Umbanda como Pomba-gira.” A devoção e envolvimento de Hermeto com a música muitas vezes sugere um estado de transe. 2003) “. a exemplo do casal formado pela cantora Flora Purim e o percussionista Airto Moreira. com o instrumento”. No seu segundo concerto do festival Som da gente no Town Hall 64 em Nova Iorque. . . Em 1969. o show de Hermeto “. COSTA-LIMA NETO.22-43. . É comum encontrar. John KRICH. No 1º Festival Internacional de Jazz de São Paulo. principalmente. . Hermeto Pascoal (GONTIJO.1 reflexos das diversas experiências religiosas que tem vivido. v. criar atmosferas de rituais derivados do catolicismo. Para Hermeto. especialmente após seu contato profissional com Miles Davis. esse transe parece fazer parte de um processo que não pode ser interrompido como um evento meramente artístico com hora marcada para acabar. GARCIA. especialmente na fase da Escola Jabour (BARBOSA. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. 1989). . . títulos de música e. que atuou com Miles Davis até 1958 e se destacou também no free jazz na década de 1960 (KERNFELD. composta por Hermeto em homenagem ao jazzista Julian “Cannonball” Adderley (1928-1976)2. talvez como fruto do que COSTA-LIMA NETO (2010a) considera ser “.5 e mais detalhes na próxima seção deste artigo). 2006. não só com a sua utilização instrumental tradicional virtuosística dentro da linguagem modal expandida e dentro do espírito da cadenza de concerto.63-79. em casa. nos teatros. pois poderia ter origem na experiência do compositor com vidas passadas. quatro eventos superpostos e independentes ao mesmo tempo (CAMPOS. n. os aspectos musicais estão intrinsecamente ligados à sua visão mística e religiosa do mundo.. apesar de nunca ter frequentado escola de música alguma. vocalizações diversas (gritos. três.87-90.1 – Misticismo nas fotografias da capa e contra-capa do disco Slaves mass (1977) de Hermeto Pascoal (Fotos de Tom Copi e Joel Sussman). poderíamos associar este evento ao momento em que de fato se estabelece o contato entre o médium e o espírito desencarnado. Para Hermeto. Esta peça é centrada na performance de Hermeto na flauta transversal solo. No primeiro trecho rítmico e alegre da música. com referenciais tanto populares quanto eruditos. entram em fase (tornam-se sincronizados) momentaneamente (c. Seu início pode lembrar tanto a liberdade harmônica e intervalar da música erudita expressionista ou pós-1950. Ex. risos. . Do ponto de vista musical. Cannon ilustra a formação eclética de Hermeto.BORÉM. acredita ter aprendido a tocar ‘em 3/4’. erudita. mas também por explorar eficientemente. Como se trata de uma “sessão espírita musical”. 65 .”. 2010. Cannon pode ser considerada uma obraprima do repertório da flauta por diversas razões. segundo a visão do espiritismo. A linha melódica principal (flauta + humming. veja Ex.9 à frente). nas ruas. Belo Horizonte. . sua cultura e religião acontece no encontro com o povo. . p. ou seja. quanto o experimentalismo do free jazz (veja Exs. . com um “Eh. canto) e percussão. pelo mundo. Segundo. Brasil!” (c. assíncronos. F. antes assíncronos entre si. numa proporção equivalente à seção áurea. podemos especular sobre a métrica ternária de Cannon e as influências que o próprio Hermeto diz ter recebido do outro mundo.3 à qual foram mixadas diversas camadas de som gravadas e manipuladas previamente (o que nos remete ao campo erudito da música concreta). Mas a métrica ternária deste trecho permite também outra leitura.134). a cantora Flora Purim reage saudosa e instintivamente.5 e 6 à frente). Observação: hummings são vocalizações no bocal da flauta) e o “coração batendo”.. vidas de formação mais tradicional. F. um grande leque de formas de ataque e técnicas expandidas. para flauta e fita magnética. fora de fase. Ainda do ponto de vista do timing de distribuição dos eventos ao longo de Cannon. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. recordações que o alagoano supõe ter sido de sua outra ‘encarnação’ em Viena.39.22. observa-se uma ocorrência notável próxima a 2/3 de duração da peça. nos bares. p. trata-se de uma obra em que se vislumbra uma escrita altamente idiomática da flauta. neste caso. a aprendizagem de seu caminho pelo mundo. até onde sabemos. em Hermeto Pascoal. . . como falas em português e em inglês. para resistirmos à tentação de associar este procedimento à prática histórica de polimetria de Charles Ives no começo do século XX (e cair no erro da decantada ideia de que procedimentos musicais “cultos” ou “sofisticados” sempre vieram do estrangeiro). M. . veja Ex. basta lembrarmos das experiências da infância de Hermeto na praça de Lagoa da Canoa ouvindo dois. [03:4703:52]. Finalmente. para depois seguirem cada um seu próprio caminho. Do ponto de vista religioso. importante centro cultural da música erudita européia. parece tratar-se da primeira peça surgida no cenário da música brasileira. Primeiro. A análise de Cannon demonstra como. . esteticamente afim à música erudita aleatória. no meio da gravação.”. GARCIA. É ele mesmo quem diz que “. Per Musi. a cadenza de concerto). no contexto da obra. notadamente uma em inglês e outra em português. deixada pelos pais da música concreta – os franceses Pierre Schaeffer e Pierre Henri (EMMERSON e SMALLEY. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos.em [03:57]: (Voz masculina) “how beautiful. [02:17]. reduzimos a velocidade de reprodução em 25% e 50%.. [04:10]. [04:35] e [04:37]). estrategicamente distribuídas ao longo da forma musical. por exemplo).em [04:18]: (Hermeto) “agora você está bastante livre para andar em todos os ares.Análise dos dados eletro-acústicos da gravação de Cannon Texturalmente. . Essas vozes e percussões “oitavadas”.” . na época da gravação do disco (final da década de 1970). gritos.em [00:52]: 66 .em [01:46]: (Hermeto) “vejo em você uma alegria imensa. trechos que. Brasil! . Finalmente. Repetidas e atentas audições de Cannon permitiram a anotação dos seguintes trechos de fala sem manipulação de alturas. sem fim. é a hibridação de práticas de performance que fazem referência a gêneros populares (como o jazz. . em 1983.” . de fato. percussão esparsa em metal entre [04:05] e [04:36]. [00:52]. [01:56]. . [04:20] e [04:48]). Belo Horizonte.em [00:45]: .em [04:36]: (Hermeto) “estou gostando deste trabalho“ .I am sure I´ll see you” .63-79.em [04:10]: (Hermeto) “mas é isso aí!” .em [04:21]: (Voz masculina) “toda a vida You ´ll be always here” . p. um recurso de realização . culturas e maneiras de tocar.. Outro aspecto que torna Cannon revolucionária e que também transgride a barreira entre os mundos erudito e popular. surgem vozes faladas. (risada) ” . . . pois nem sempre são audíveis e há uma grande superposição de sons manipulados e não manipulados. GARCIA. . is your soul” . Surgem também fragmentos percussivos. a sua alma” . [04:18].em [01:41]: (Voz masculina) “forever”.em [01:19]: (Voz masculina) “I think I´m going to see you. palmas em [03:14] e [03:24]. daqui para frente.em [04:24]: (Hermeto) “todos os cantos (?) “ . feita com o aumento de 100% da velocidade do sinal original. [01:46]. possivelmente a de Airto Moreira (pode-se observar que é um brasileiro quem fala pela escorregadela na gramática da língua inglesa “everybody can express [sic] myself” em [02:12]). what to say” . Airto Moreira..em [03:40]: (Hermeto) “como é linda. [03:40]. 2001. além de mudanças de canal e seu efeito de espacialização: (Voz masculina) “quem falou?”. Hugo Fattoruso. beautiful. e lembrar antigas trilhas de filmes ou seriados de TV que. o que permitiu notar que a maioria dos efeitos foi.. os recursos tecnológicos de manipulação sonora ainda estavam mais próximos da herança da final da década de 1940. vocalizes agudíssimos. As falas femininas são de Flora Purim. Hermeto. (?) “ Em segundo plano. deixando irreconhecíveis os limites entre a composição prévia e a improvisação.em [03:42]: (Voz masculina) “som! (soul?)” . you are free!” . criam uma atmosfera não-terrena crescente e apropriada para a sugestão de um ritual místico: lembram vozes do além. [02:12]. Cannon foi construída com base em um solo de flauta ininterrupto sempre em primeiro plano.músicos ou pessoas envolvidas no projeto de Slaves mass presentes no estúdio Paramount em Los Angeles: Hermeto Pascoal.em [02:43]: (Voz masculina) “forever” . e utilizando o recurso de aumento de velocidade de reprodução da fita magnética (o que resulta na transposição de uma oitava ou mais acima das alturas originais. em Cannon. F. (conosco?)” .em [01:39]: (Flora Purim) “I think I´m going to try again. M. junto com Flora Purim. risadas. 2001. Esses fragmentos. espíritos desencarnados). linda. de crianças.em [01:00]: (Voz masculina) “forever” . [02:02]. a música eletro-acústica.em [02:04]: (Voz masculina) “everybody can throw (?). como sons sibilados com a boca em [02:08]. especialmente.. foi quem ciceronou e parece ter sido o porta-voz de Hermeto na sua estadia nos Estados Unidos (Hermeto aparentemente falava pouco inglês na época). . ainda assim sujeita a erros.em [04:32]: (Voz masculina) “Now. .BORÉM. 2010. . . como multifônicos e. Flora Purim. percussão mais rítmica em [04:42] e como um “rulo” em [04:47] e [04:49]. declama fragmentos em português em [00:38]. ao qual gradualmente se sobrepõe sons pré-gravados (vozes e percussão) produzidos por seis pessoas . . . . continua fazendo muito mais” . todos os recursos composicionais.. gritadas ou cantadas (Flora Purim faz vocalizes modais em [01:48].60) . serão chamados simplificadamente de “oitavados”). sempre liderando o grupo. F. o humming. a porção eletro-acústica de Cannon pode soar “datada”. todos os lugares” (Voz masculina [Airto Moreira?]) “forever” (Hermeto) “o que você fez aqui.. . mas também a função social da música de uma maneira mais ampla. Nessa obra. slow. . . Hermeto Pascoal atingiu a expressão de um ritual religioso-musical que reflete não apenas a importância da experiência mística na sua vida. instrumentais e de técnicas de gravação em estúdio são utilizados de maneira integrada. funcional e criando grande unidade musical. Assim. Per Musi. psico-acusticamente. Devemos ter em mente que. para muitos dos ouvidos de hoje. p. a embolada ou o repente) e às práticas eruditas (como o modalismo quase-atonal. sem manipulação e falas e sons vocais em segundo plano.em [00:03]: . Airto Moreira.em [01:24]: (Voz masculina) “I don’t know.61) e das facilidades de manipulação sonora dos modernos softwares (como a técnica de alterar o andamento sem alterar as alturas. Raul de Souza e Laudir de Oliveira. relacionamos com seres alienígenas (ou. quase sempre são seguidos de livres e esporádicas traduções para o inglês por outra voz masculina. As vozes aparecem em dois planos distintos: falas em primeiro plano.22. sons de aves. n.em [00:38]: .em [02:12]: (Voz masculina) “everybody can express [sic] myself” .e ainda distantes do advento.em [04:37]: (Hermeto) “o negócio é que. glissandi etc. 2 .em [02:40]: (Flora Purim): “êh. Para tentar reconhecer o conteúdo das falas e outros sons “oitavados”. do protocolo MIDI no processamento de eventos e sinais sonoros (EMMERSON e SMALLEY.em [02:15]: (Hermeto) “você conforta todas as vidas neste mundo” . p. com manipulação da velocidade de reprodução. que aproxima diferentes povos. . (Hermeto) “o que você fez aqui .em [01:34]: (Voz masculina) “a friend” . na voz de Flora Purim: “I think I’m going to try again.em [05:07]: (voz masculina“oitavada”) “pode acabar” . nesse volume de Per Musi) e reflete a “. what to say. um teste de microfone (“som!” em [03:42]). p. .em [03:57]: (voz masculina “oitavada”) “abre o livro” (repetida 3 vezes) . em [00:35-01:15]. um comentário sobre detalhes da gravação (Hermeto: “mas é isso aí!” em [04:10] “o negócio é que. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. to you” (“não sei o que dizer a você”) em [01:24].22’ (continua na Seção B) Seção B: nos c. . seja em detalhes do possível ritual (“abre o livro”. .em [01:11]: (Voz masculina “oitavada”. . Mas. malandro. . repetido três vezes em [04:45]). . rítmicos. F. a satisfação musical na gravação (Hermeto: “estou gostando deste trabalho“ em [04:36]). .43’ Seção A’: no c. .em [04:45]: (voz masculina“oitavada”) “pode acender” (repetida 3 vezes) . ao dizer “corpo presente”. 2010. a São Francisco. continua fazendo muito mais” . . Tanto a flauta quanto os sons pré-gravados acontecem. pelos rios(?)“ em [04:18]. cantos. todos os lugares” em [00:38]. percussão em metal. linda é a sua alma!”) em [03:57]. is your soul!” (“que linda. malandro. dur. . . “vida”. como veremos mais à frente. . .” de que fala Flora PURIM (1977). .(outra voz) de corpo presente”.tenho certeza que vou ver você”) em [01:19]. composicionalmente. a repetição de materiais temáticos tanto na flauta quanto no emprego dos sons pré-gravados parece remeter a uma complexa e estruturada improvisação motívica. “alma”. na voz Hermeto Pascoal.em [00:45]: (Hermeto “oitavado”) “você chegou” .22-42. beautiful. “a friend” (“um amigo”) em [01:34]. em [02:47-03:07]. . note que. “friend”. em [03:07-03:29]. . pontuando todas as seções da forma musical (a forma A (ba) B A’ Codetta é explicada mais à frente no Ex.Heia!. que parecem guardar uma relação direta com o assunto da música. um dos presentes utiliza um vocabulário religioso). melódicos. dur. “toda a vida You ´ll be always here” (toda a vida você estará sempre aqui) em [04:21]. . . por exemplo.Hei!. .) contribui não apenas para criar a atmosfera mística.83-124.7-15.63-79. . .em [01:38]: (sons guturais). A repetição de frases completas (“o que você fez aqui” aparece três vezes. coragem de experimentar com todo e qualquer tipo de música. Além das vozes..45-55. “free” etc. . GARCIA. . sons de aboio “oitavados”) “Hei!. “I don’t know. de articulação e tímbricos) que utiliza.Heia!. possível referência ao hábito dos músicos de comerem ou fumarem dentro do próprio estúdio (“saco de batata assada” [02:02] ou “deixa que eu mato” em [05:10]). Essa habilidade de Hermeto de transformar qualquer som em música é característica desde a sua infância (BORÉM e ARAÚJO. p. . “agora você está bastante livre para andar por todos os lugares. adicionados ao canal principal da flauta. “forever” (para sempre) em [02:43]..em [03:38]: (voz masculina “oitavada”) “let’s go! (?)” .em [00:27]: (Hermeto “oitavado”) “o que você fez aqui. dur. continua fazendo muito mais” em [00:52].de corpo presente” em [01:45]. mas também para. M. “everybody can express [sic] myself” (“todo mundo pode se expressar”) em [02:12]. .em [05:10]: (voz masculina“oitavada”) “deixa que eu mato” Percebe-se claramente que algumas das falas não têm relação direta com o tema da sessão espírita de Cannon. . seja dando orientações de performance para o grupo (“vamos falar mais coisas” em [01:38]). Belo Horizonte. na maior parte de Cannon. aboio) “Háh!” . a sua alma” em [03:40].em [01:02]: (Voz masculina “oitavada”) “viagem. prá São Francisco. São frases comuns do dia-a-dia dos estúdios.140. “Now.em [04:20]: (aboio. sendo uma vez “oitavada”) e recorrência de algumas palavras (“alegria”. em [04:45:-04:46].. sem fim” em [01:46]. “o que você fez aqui. Por isso. como possíveis falas sobre a necessidade de silêncio e concentração no início dos takes de gravação (“quem falou?” [00:03]). que seriam um dos sinais da vida depois da morte de Cannonbal e uma prova de sua comunicação com Hermeto e seus músicos. Mas Hermeto utiliza. ..”. Hermeto exerce um grande controle sobre os materiais temáticos (harmônicos. como elemento unificador de Cannon. Esta relação texto-música fica mais evidente na utilização de sons não manipulados.5 e no texto que o precede): Seção A: nos c.22. . cânticos. nas interações quase imediatas e fragmentadas em inglês. a necessidade de deslocamento entre cidades da Califórnia (“viagem. dar unidade à obra. Per Musi. .em [02:02]: (voz masculina “oitavada”) “saco de batata assada” . recorrem cinco vezes (veja Ex. “como é linda. n. slow” (“acho que vou tentar de novo. “forever”.I am sure I´ll see you” (“acho que vou ver você.5 à frente). os sons da fala (e também vocalizes e percussão) manipulados. “estou gostando deste trabalho” em [04:35]. dur. repetido três vezes em [04:57] e “pode ascender”. observamos que o disco estava sendo gravado na cidade de Los Angeles. em português. .. (Hermeto “oitavado”): ”vamos falar mais coisas!” . “I think I´m going to see you. “how beautiful.em [03:15]: (vozes em risos. As “batidas de coração”. de forma declamatória. então. you are free!” (“agora você está livre!”) em [04:32]. .. Embora o clima seja de improvisação (Flora afirmou que foi assim.40’ Ponte ba: nos c. . Hermeto “oitavado”) “Eita!” . em [03:4304:26].22’ e nos c. dur. bastante simples e muito utilizado por compositores de música concreta desde a década de 1950. devagar”) em [01:39]. segue uma listagem de trechos de sons (falas e percussão) manipulados e superpostos que puderam ser compreendidos por meio da redução da velocidade de reprodução de Cannon: .BORÉM.em [00:47]: (Voz masculina “oitavada”) “meu dedo!” . . 2010. . Ou.1’ (uma batida só!) 67 .56-68 (continuação da Ponte ba). Abaixo.. boa parte do tempo.. “você conforta todas as vidas deste mundo” em [02:17]. “vejo em você uma alegria imensa. principalmente (e possivelmente) na voz de Airto Moreira: “forever” (para sempre) em [01:00]. F. Hermeto utiliza a manipulação de outros sons pré-gravados.. que lidera o grupo: “o que você fez até aqui. como vimos acima). linda. “ em [04:37]). (3) flauta e voz em uníssono ou em oitavas e (4) o mais difícil. mais confortável. conhecidas com soffio ou sons eólios) e quase sempre sem vibrato. 28. logo no início da peça). E vai além. Rahssan tam68 bém se destacou no hard bop e free jazz. Na faixa de mesmo título. próximo ao final da Seção A) até o final da obra.91-94). Abaixo. 2001. esporadicamente inseridos na linha melódica. 2010). Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. à frente).117-124.2: (1) uma composição de parciais muito regular. (2) pedal na voz com melodia na flauta. Codetta: bicorde de segunda menor Lá-Sib sustentado por 10 segundos (c.143. à frente). em que pode ser observada uma frequencia fundamental mais forte que os harmônicos superiores. p. crescendi súbitos). Ponte ba: . e utiliza a linguagem modal (pentatônica em Sol).29). realizando o humming nasal e um longo humming em terças paralelas. Uma importante referência que Hermeto Pascoal pode ter encontrado na sua viagem aos EUA.51-55.240) na década de 1930 e reafirmado por João Gilberto na década de 1960 (GIRON.13’. dur.BORÉM. sem vibrato. Codetta: nos c. p.. 1995. ou seja.humming com a flauta em movimentos contrários (c. . uma das mais destacadas autoridades da flauta contemporânea. 58. 13-14. em [05:00-05:13].1-9) e finais (c. 2001. . assim como Hermeto em Cannon. à frente). 10-11.humming em uníssono com a flauta (c. pode-se observar. Hermeto prefere utilizar outros efeitos expressivos (como diversos tipos de glissando. GARCIA. Seção B: . as “batiads de coração” finalizam a música sozinhas Outro elemento unificador em Cannon é a recorrência de materiais cromáticos (algumas vezes causando instabilidade modal) em pontos de articulação importantes. ou antes dela. descreve os quatro tipos de humming na flauta: (1) pedal na flauta com melodia na voz. Em relação às técnicas instrumentais expandidas da flauta. 34. 79 e 89) e de terça maior (c. na qual explorou técnicas instrumentais expandidas e técnicas de estúdio como uma ferramenta composicional.7.143. à frente) e cromatismo Mi-Mib-Ré ao final (c.humming em uníssono com a flauta (c.36-50). 18. Rahssan também tinha um lado místico. Seção A’: modalismo instável em toda a seção (c. p. Do ponto de vista instrumental. o que é um dos grandes desafios na performance desta obra. .63-79.22.9. veja Ex. 2010. no solo de flauta sem acompanhamento. durante exaustivos 2’58”. n. a 3ª e a 6ª notas. timbres (como a aproximação da fala humana) e técnicas expandidas (como multifônicos e diversos tipos de humming). segundo ele) com uma embocadura relaxada (que resulta em sonoridades com mais ar. no início ou final das seções da forma: Seção A: o início (c. Seção B: apojaturas cromáticas e terças cromáticas descendentes próximas ao final (c. à frente).31-32). Belo Horizonte.2.51-55). .11. Utiliza também a técnica do humming extensivamente.6 e Ex. . F. Fechando o conjunto de similaridades e coincidências.55-91). F. RAHSSAN (1964) começa com uma quinta justa ascendente (Mi-Si).12. Thijs van Leer e Ian Anderson da banda Jethro Tull (RAHSSAN.10. seguindo uma tradição que se consolidou na música popular brasileira a partir do modelo do canto liso e declamado deixado por Mário Reis (GIRON. é a música revolucionária do multiinstrumentista cego de jazz norte-americano Rahssan Roland Kirk (1935-1977).humming em uníssono com a flauta (c.em anacruse.22-26.30-33) quase-atonais (veja Ex. Hermeto toca a flauta em uma posição mais diagonal em relação ao corpo (menos horizontal. contrastes de articulação (como o staccato e o marcato). foi pioneiro das práticas de música concreta na música popular. veja Ex. . desde o c.33-35). embora quase sempre com a voz dobrando as mesmas notas da flauta. por meio de gravações.humming em uníssono com a flauta (c. M. Hermeto demonstra toda sua genialidade como compositor e intérprete realizando esses vários tipos de humming (dois dos quais são mostrados no espectrograma do Ex. Per Musi.137-138).119). veja Ex.humming nasal sem o som da flauta (três primeiras notas do c. 1964). veja Ex.17). Hermeto utiliza glissandi (c. A sonoridade e técnica característica de Hermeto Pascoal na flauta pode ser apreciada no espectrograma mostrado no Ex.5.humming cromático descendente com pedal na flauta (c.31 (em [02:15]. que indicam ruídos de ar característicos do som de flauta de Hermeto Pascoal.95-103). colaborou com Cannonball Adderley e veio a falecer no ano de lançamento do disco de Hermeto. se tornando o modelo para importantes seguidores como Jeremy Steig. como ilustra o nome de seu disco I talk with the spirits (Limelight. próximo ao final (c.33). seguem as ocorrências e tipos de humming de Hermeto Pascoal em Cannon: Seção A: . Nola´s Penthouse Sound. Ainda no Ex..139142. 69-72. p. Pierre Yves-Artaud. Ponte ba: a escala cromática descendente completa. .3). 16. (2) uma sonoridade non vibrato. Na flauta transversal (que também tocava assoprando pelo nariz) se destacou como um pioneiro do humming. flauta e voz com melodia independentes o qual “. .6.é extremamente complexo e requer um controle perfeito” (ARTAUD. Assim como Hermeto em Cannon. caracterizada pela ausência de oscilação detectável de frequencia ou intensidade no espectrograma) e (3) uma “nuvem” de frequências agudas. 140-142) e multifônicos de oitava (c.humming em terças paralelas com a flauta (c. Rahssan também utiliza o humming extensivamente. a maneira particular com que ele termina algumas notas abruptamente (como a 1ª nota . 2010.124-138).47-55. a gravação permite perceber que há muitas simplificações e discrepâncias na partitura original. apesar de desenhada por Ruy Pereira (que não tinha formação musical).humming em uníssono com a flauta e depois descendente com a flauta em pedal (c. Por exemplo. Seção A’: . F.humming em uníssono com a flauta (c. foi possível verificar que faltavam 19 compassos na partitura do disco (os c. na verdade. ausência de vibrato e “nuvem de frequências agudas (medidas no eixo vertical em Hz).139-142). GARCIA. 1977).119-124). . n.humming em terças paralelas com a flauta (c. Codetta: . F. depois. faz um humming cromático descendente.63-79. A transcrição publicada em 1977 não é completa e. M.104-116). Per Musi.22. 3 – Análise do contexto.4). segundo nos informou Jovino SANTOS NETO (2009).143). Depois. . na qual está notado parcialmente o solo de flauta de Hermeto Pascoal na música Cannon (PASCOAL e PE- REIRA. partitura e performance de Cannon Para a parte interna da capa do LP Slaves Mass.BORÉM. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. . “Nuvem” de frequências agudas Fundamentais fortes e sem vibrato Interrupções entre notas Ex. em movimento contrário ou em movimento contra um pedal sustentado) decorrentes da utilização 69 . No seu texto de apresentação desse disco. enquanto a flauta segura um pedal em Sol). de fato. 1977).117-118) . foi feita pelo próprio Hermeto. foi necessário “desenrolar” os 124 compassos do desenho da partitura espiralada. Belo Horizonte.2..humming em uníssono com a flauta (c. o artista plástico Ruy Pereira criou um desenho artístico que inclui uma pauta em espiral com um coração no centro (Ex. não foi anotada nenhuma das vozes (em uníssono.humming em terças paralelas com a flauta (c. referentes a um trecho lento em que a voz faz um humming em uníssono com a flauta e. p.Espectrograma mostrando a sonoridade de Hermeto Pascoal na flauta no início de Cannon: composição de harmônicos muito regular.humming em portato paralelo a com pedal da flauta (c. a cantora Flora Purim fala sobre a “transcrição” que Ruy Pereira realizou “nota por nota” (PURIM. a partir da audição da gravação.. Para comparar a versão da partitura publicada na capa interna do disco com a gravação. o que deixa Cannon com 143 compassos. Além disso. GARCIA.. Per Musi. n. Belo Horizonte. p. em oitavas paralelas. (2) humming em “uníssono” (c.22. humming nasal Flauta + humming em uníssono Flauta + humming em movimento contrário Ex. 2010. devido à transposição da voz uma oitava abaixo).Espectrograma com dois dos vários tipos de humming realizados por Hermeto Pascoal em Cannon: (1) humming e voz em movimentos contrários (c. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. 70 .3 .63-79. F..4 – Partitura espiralada de Cannon desenhada por Ruy Pereira a partir da transcrição de Hermeto Pascoal no LP Slaves Mass (PASCOAL e PEREIRA.BORÉM.31). M. F. na verdade.33. Ex. 1977). c . (2) o clímax..c .56 c.... .140 c..... Na verdade..xx ..” Uma análise formal de Cannon revela uma obra altamente estruturada e unificada..BORÉM.. seção áurea e principais eventos com timing e número de compassos aproximados) 71 ..Ι -----Ι-----Ι---. Esta forma ternária em arco é apropriada para emular o caráter progressivo e em arco de uma sessão espírita – (1) o contato gradual e crescente. cujo nome de nascimento era João de Souza e foi mudado por sugestão de Ary Barroso]. Comentando este episódio. 2010). Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos..c.. A partitura completa de Cannon..139 [04:40] Forma (materiais temáticos contrastantes c... M......-xxxxx . As Seções A e B apresentam muitos contrastes entre si em relação ao andamento.c.c.. . grande amigo de todos os músicos participantes da sessão e a quem a faixa era dedicada....27 -----.. Embora a escrita um tanto rapsódica de Cannon possa sugerir uma sucessão de eventos desconectados.xxx . .143 v oz es -.-xxxxxxxxxxxxx xxx x...1 [00:00] c...143 Instáv el -------------------Sol Dóri co/ -----------------Sol E ó l i o / ---i nstáv el ------Sol Eólio -------... Airto e Flora Purim . ‘uma verdadeira sessão de espiritismo realizada no estúdio’ segundo o relato que o próprio [Airto] Guimorvan [Moreira] nos prestou na semana passada.. 2010.. Raul de Barros [sic..... ..Ι -----Ι-----Ι----..1 ----------------------..Sol Dórico------. A finalidade foi de se preparar uma sessão espiritual e tentar comunicação com Cannonball... Hugo Fattoruso. amigo de Airto Moreira.30 ---------c.5 apresenta uma esquema gráfico detalhado com as seções formais.22.... equivocados ou difíceis de serem lidos.. seção áurea e os principais eventos da obra.. os 143 compassos de Cannon duram 5’13’’.Ι -----Ι-----Ι----..124 c. especialmente com a superposição de diversas camadas sonoras (com vozes soli declamadas em português e inglês.. sua forma pode ser descrita como uma forma canção A (ponte ba) B A’ Codetta.-xx . articulações. está publicada no presente número de Per Musi..Sol Eólio ---------------.xxxxx.-xxxxxxx -xxxxxxxxxx -xxxxxxxxx x ..bati das de c oração . dançante Lento ad libitum Sons pré-gravados c. confirma que teria ocorrido “.. reconstruída em detalhe com base na gravação de Hermeto de 1977.... F.) Seção A Ponte ba Seção B Seção A’ Coddeta c..x. .-xx..36--------------..xxxxxx c. 1977).. vozes faladas ou cantadas coletivas e manipuladas em segundo plano.143 [04:57] [05:13] Harmonia modal c.... p. .. Per Musi.. tivesse ‘baixado’ sobre eles....----Ι-----Ι----..-xx .. ...36 [02:37] c. Belo Horizonte. O Ex.levou seis horas.-..83 c....56 [03:07] c.----Ι----Ι----...40 c.1 Lento ad libitum Rápido/Ad libitum/Lento Rápi do. Finalmente.... percussões manipuladas em segundo plano) sobre o solo da flauta (e flauta com humming).10 ------------------------.c.87 c.x. Laudir de Oliveira.80-82 (PASCOAL e BORÉM.. An damento c. de humming por Hermeto.x . com indicações de número de compasso e timings. ..143 Ex....1 c.Ι -----Ι----Ι---....58 c. trata-se do trombonista Raul de Souza. ± 2/3 0 1 Ι Ι 2 ± 1/3 3 Ι 4 Ι 5 Ι Ι -----Ι-----Ι----.. Na gravação do disco Slaves mass.7 c.. Flora Purim ainda acrescenta que a transcrição de Cannon “.56----------------------..xxxx.-xxx..95 ------------.-x .139-----..v oz es mani pul adas. métrica..-xx .c ... como se a alma de Julian ‘Cannonball’ Adderley (1928-1976)..15 c. sendo que a ponte ba é construída com materiais temáticos contrastantes das Seções B e A.i ns táv el --.. às p.... o jornalista Aramis MILLARCH (1977)..-----Ι-Linha do tempo (divisões de 10 em 10 seg. métricas e sinais gráficos inconsistentes. F. ritmos.5 – Esquema gráfico analítico de Cannon de Hermeto Pascoal (seções formais.... sentiram algo de espiritual ocorrer..x.-xxxxxxxxxxxxxxxx xx .xxx.que participaram da faixa.63-79. GARCIA..... Alguns de nós o fez [sic.xx.-xxx. e (3) a despedida gradual e decrescente.Ι -----Ι-----Ι---.xxx.----Ι----Ι----..xxxxxxxxxxxx.” porque foi uma experiência de total improvisação. n.. materiais harmônicos e contorno melódico.----Ι-----Ι----.. Hermeto...1 c..ins tável Eólio Menor Harm... há muitas notas..] com muito sucesso” (PURIM...-xxxxxxxxxxx xxx xx. Em seguida. Fá. F. 2’37’’). dur.30). Dó e Sol se sucedem em um curto espaço de tempo (c. exibem contornos melódicos com saltos e intervalos incomuns para a música popular. Per Musi. Ré. que primeiro oscila entre Sol Dórico e Sol Eólio (c. além do solo de flauta.3 acima). Ex. Sol. com frases típicas da música erudita atonal. Mib. Digno de nota neste trecho é o crescendo finalizado com ataque brusco e respiração na nota Dó do c. depois. em que os centros modais passageiros de Lá. o que lhe confere um caráter de recitativo. a articulação também é em Ex.Início da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: contorno melódico com saltos e portamenti. é caracterizada por uma grande instabilidade modal inicial. poderia ser chamada de “Preparação para o contato com o mundo espiritual”. entre Sol Eólio e Sol menor harmônico (c.7 – Final da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: contorno melódico com saltos e instabilidade modal. A Seção A termina instável harmonicamente (Ex. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. Ex. Si-Fá#. M. Sib. quanto as primeiras técnicas da música eletro-acústica (afinal. articulação emulando swing e instabilidade modal..31-35.22. ainda que realizando três vozes diferentes (c. Harmonicamente. Fá. p. n.10-26) e.27-29). Dó#-Sol#. Nos trechos de polarização modal. no trecho central da Seção A.31-32): (1) uma declamação suave e sincronizada com (2) uma melodia ascendente na flauta e (3) um baixo cromático descendente em humming na flauta (veja Ex. embora não ocorra uma definição de um centro modal. como tocar a fita gravada de trás para frente em um decrescendo. F. a articulação é em legato cantabile com muitos saltos melódicos. dentro do programa do obra (uma sessão espírita musical). devido à sucessão de quartas justas descendentes Láb-MIb.1-35. 72 .1-12.6). A Seção A (c.63-79. 2010. [02:15-02:37]) contém um dos momentos mais delicados de Cannon e pode ser descrito como uma ”reza” íntima de Hermeto Pascoal. Belo Horizonte. Nos trechos modalmente mais instáveis da Seção A. mas sim uma polarização. mais ainda do que no início.BORÉM. Lá-Mi. tudo o mais em Cannon foi construído com técnicas de estúdio).6 . que sugerem um legato cantabile.7). Láb. gerando um ambiente quase-atonal. As frases. que “resolvem” em dois trítonos: Sol#-Ré e Fá#-Dó (c. É em andamento Lento ad libitum.44. Apenas ele participa. criando um efeito que tanto pode lembrar as performances programáticas dos pífanos nordestinos. com métrica quaternária na maior parte do tempo (há dois compassos 5/4 e um 3/4). [00:00-02:37]. O trecho final da Seção A (c.. GARCIA. observa-se maior estabilidade harmônica. Ela epitomiza o encontro das culturas musicais Ex. volta a se repetir no c. ritmo repetitivo e dançante. com seu andamento Lento e frases em legato cantabile de contorno melódico com saltos. mas também flautista. como Hermeto). sem swing. M. que também será a última nota da música (superposta a um Sib!. F. Per Musi. poderia ser chamada de “Contato inicial entre o mundo terreno e o mundo espiritual”.. são a nota inicial Lá. como as volates em arco que saem do grave para o agudo e retornam ao grave (c. com seu andamento rápido. antecipando a comunicação e homenagem ao jazzista e amigo Cannonball Adderley (saxofonista.44.17 da Seção A. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos.44-46. 28-29). É uma combinação de materiais temáticos das Seções B e A (Ex. 0’12’’) é uma recordação da Seção B. Ainda dignas de nota. falecido um ano antes da gravação do disco. 73 . mas há grande recorrência de graus conjuntos que se organizam em gestos virtuosísticos mais prováveis de serem encontrados em cadenzas da música erudita tonal (Ex. que tem a notação Alegre de Hermeto na partitura original (a única indicação de andamento. 0’08’’) é uma antecipação da Seção B (que se inicia no c. n.8). por sinal). assim. tornam-se mais presentes no meio da Seção A e regridem ao final da mesma.36-44. 1’33’’). A segunda parte (c. [02:37-03:07].2 acima). p. dur. As vozes superpostas retornam. veja Ex. 0’30’’).63-79.56-138. dur. continuam e se intensificam na Seção B. em primeiro ou segundo planos). já simulando a articulação do swing do jazz (em que as notas de apoio são um pouco mais longas) e.47-55.36-55.13-16. derivados das Seções A e B. que tem o mesmo caráter Alegre (embora não marcado por Hermeto na partitura original) do início da Ponte ba. A Seção B (c. Outra referência a esta comunicação que vai se estabelecer é o surgimento da primeira de uma série de cinco batidas de coração. [02:5503:07]. A primeira (c. 2010. dur. A tessitura da Seção A é mais ampla de todas.BORÉM. (c.Parte central da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: escrita virtuosística erudita sugerindo cadenza. F.. como veremos à frente) e a articulação tipicamente hermetiana em staccato (nas 1ª. 0’10’’) é um amálgama de características da Seção A (a cadenza com volates ascendente e descendente) e da Seção B (o andamento rápido e a articulação em marcato). [03:07:04:40]. tonalmente estável em Sol Eólio.8 . compreendendo duas oitavas e uma quinta justa (Dó3 a Sol5). As vozes superpostas (“oitavadas” ou não. 27. Belo Horizonte. dur. 3ª e 6ª notas.56).9 – Materiais temáticos nas três partes da Ponte ba em Cannon de Hermeto Pascoal. O cromatismo ao final é um elemento articulador da forma que Hermeto lança mão nesta e nas outras seções de Cannon. GARCIA. [02:45-02:55]. que ocorre em [00:35]. O crescendo finalizado com ataque brusco e respiração que havia ocorrido antes no c. A Ponte ba (c. legato. A terceira parte.9) e se divide em três pequenas partes. dur.22. Ex. 20-21. [02:37-02:45]. e ocorrendo no primeiro compasso da música. poderia ser chamada de “Comunhão entre o mundo terreno e o mundo espiritual”. tessitura restrita e articulação em marcato. BORÉM.. n.10 – Trecho da Seção B em Cannon de Hermeto Pascoal: encontro dos gêneros repente/embolada (ritmo dançante com notas repetidas.22.63-79. Assim. as blue notes Réb e Fá natural (c. faz referência aos gêneros da embolada e do repente. Mas talvez o evento mais importante na Seção B seja a sincronização temporária (como são os contatos entre médiuns e almas desencarnadas) entre a flauta de Hermeto e as “batidas de coração” de Cannonball (c.139-142. GARCIA. modalismo com tessitura estreita. Belo Horizonte.56-94) e Sol Dórico (c. p. no jazz. imitação da voz do repentista nordestino no humming em terças com a flauta) e jazz (light swing. à herança modal dos históricos discos Milestones (1958) e Kind of blues (1959) de Miles Davis (KERNFELD.10. poderia ser entendida como uma coda. o que é típico nas danças populares: uma oitava e uma quinta justa (Dó3 a Sol4). rítmico.104-124). 03:52]). A insistência na repetição de notas. modalismo pós-Miles Davis). 0’17’’). p. com um light swing. v. que chamaríamos de “Volta ao mundo terreno”.11 – Seção A’ em Cannon de Hermeto Pascoal: recapitulação de materiais temáticos da Seção A. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. 1988. 2010.273. percebe-se que a construção do clímax da obra segue a proporção áurea (veja Ex. Ex. mas seu contraste com os materiais temáticos que a antecedem (Seção B) e o significativo retorno ao clima inicial da obra confirmam Ex. do nordeste (a embolada e o repente de Hermeto Pascoal) e dos Estados Unidos (o jazz de Cannonball Adderley). F. F.1. [04:40-04:57]. [03:47. As vozes superpostas e percussões se intensificam ao longo de toda a Seção B e continuam na Seção A’. proporcionalmente. A tessitura é mais estreita.87-90.95-138). Per Musi.5 acima). a cerca de 2/3 da duração da obra e coincide com a seção de maior atividade rítmica.116-117). como mostra o trecho no Ex.91-94 e c. A Seção A’ (c. com articulação em marcato e métrica ternária na maior parte do tempo (apesar de se iniciar com um provocante 7/4 + 3/4). é caracterizada por uma grande estabilidade modal em Sol Eólio (c. dur. Além do swing. blue notes. p.. 74 . com suas frases gravitando na maior parte do tempo em torno da tônica Sol3 e das dominantes Ré3 e Ré4. É em andamento Dançante. M. 1981) ou. Esta estabilidade modal é enfatizada pelo humming da voz e flauta simultâneas de Hermeto em terças paralelas (c.107-108) são outro elemento jazzístico nesta seção em que a alma do norte-americano faz contato com os brasileiros. Esta sincronização ocorre. o que pode nos remeter tanto ao modalismo nordestino (SIQUEIRA.2. associadas à imitação da voz do repentista nordestino no humming em terças paralelas com a voz. Harmônica e melodicamente. v. Após crescerem. Depois. Observa-se aí a recapitulação não apenas da forma em arco de Cannon. F.55) até o Sol3 (c.143. Depois. Também retornam as “batidas de coração”. pela sua natureza complexa e concentração de eventos e significados musicais. 4. GARCIA. foi anotada na clave de Sol. cresce a profusão de vozes “oitavadas”. 123. ou seja. 76. um dos mais importantes pesquisadores sobre a música de Hermeto Pascoal (veja seu artigo O cantor Hermeto Pascoal: a voz como instrumento neste número de Per Musi às p. o ambiente modalmente instável se instala com o movimento oblíquo entre a flauta (que permanece no Síb3) e o humming da voz (que retorna para o Lá3). As vozes superpostas e percussões continuam em toda a Seção A’ e adentram na Codetta. O último compasso pode. o mesmo coração (de Cannonball Adderley?) que Ruy Pereira colocou no centro da espiral de sua partitura artística (veja. 28. o fechamento em arco da forma (e da sessão espírita musical) de maneira sintética. no exato final de Cannon.4462. mas também de eventos importantes que ocorreram ao longo da obra (Ex. lembrando o cromatismo que permeou todas as seções. as vozes manipuladas desaparecem com glissandi em fading.17.33). Este bicorde de segunda menor é sustentado como pedal por cerca de 10 segundos. Per Musi. A voz cantada de Hermeto Pascoal. desde o Sol1 (c. o Dó3 (c. Como ocorre na Seção A inicial e em apenas quatro compassos. ou seja. o que é pouco comum na música popular. Consultado so- Ex.119). Do ponto de vista da orquestração da flauta e da voz utilizada no humming na flauta.00’16’’). Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. p.63-79. ser considerada uma Codetta (c.11). vai. em seguida. temos aí o mesmo andamento Lento ad libitum. A flauta vai desde sua nota mais grave. uma extensão de duas oitavas e uma quinta justa. já havia se interessado em investigar Cannon pelos seus lados exótico.5 acima). 2008. em som real. restam apenas umas poucas “batidas de coração”. que na partitura publicada neste número de Per Musi (p. de sua seção áurea e de materiais temáticos das Seções A e B..e místico. no qual identificou a “voz do próprio Hermeto. 26. espelhando também a proporção áurea da obra como um todo. 2010. sobe para o Síb3.BORÉM.22. a mesma instabilidade modal. que ocorreu na Seção B (veja Ex.11).14). e142) até um Sol5 (c. mais comuns na música erudita. 46.12). [04:57-05:13].80-82). 100.12 – Codetta em Cannon de Hermeto Pascoal: um único compasso com recapitulação da forma em arco da obra. o cantabile das frases em legato e os contornos melódicos com saltos (Ex.Análise do continuum separação-fusão paradoxal de Cannon por Luiz Costa-Lima Neto Como toda obra complexa. no qual identificou “sons de pássaros” . Sobre este pedal. como se estivesse rezando” (COSTA-LIMA NETO. 2010a). mas soa sempre uma oitava abaixo. Luiz Costa-Lima Neto. p. Cannon permite múltiplas leituras analíticas. M..4 acima). Este adensamento de texturas se dá por volta de 2/3 da duração da Codetta. 75 . Ex. uma extensão de duas oitavas. Belo Horizonte. pouco comum tanto no canto da música popular quanto no humming erudito prescrito por ARTAUD (1995. COSTA-LIMA NETO. F. Está presente a mesma nota Lá3 do início da música (humming + flauta) que. n. p. a métrica quaternária. Cannon utiliza tessituras amplas. dur. o estado de vigília é parcialmente restabelecido. positiva.7-55). o contexto ritualístico sugere uma invocação espiritual (c. . a consciência e a inconsciência. GARCIA.56-138) e que.7-55.” Para ele. Do ponto de vista da instrumentação. . saltos e volates. hummings. precedida de introdução e finalizada por uma coda. mesmo aqueles gerados no cotidiano. . manipulados ou não. sobre a improvisação na flauta.. que chama de Melodia ou embolada de opostos [numa alusão ao gênero nordestino]. .16). tanto nas peças improvisadas como nas composições escritas. por ser a primeira utilizar a manipulação e utilização de sons pré-gravados em estúdio junto a um solo instrumental. criam um grande sentido de unidade em Cannon que. o ‘Outro-eu transcendente’ (conceito cunhado pelo etnomusicólogo inglês John Blacking). . o ouvinte passaria por uma preparação da sessão espírita (introdução. n.movimento de relaxamento (parcial) e. [00:00-00:35]). c. no clímax encontram com a alma que procuram (Cannonball Adderley). now you’re free!.. . popular ou. c. Cannon pode ser compreendida como uma forma binária AB. Na quarta fase. vozes declamando em português e inglês) ao mundo terreno e os sons manipulados (falas. . Na primeira fase de Cannon. M. simultaneamente. Varèse e Synchronisms N. Density 21.que o espírito do jazzista Cannonball Adderley ‘baixou’. Mais do que isso. às vezes sem nenhuma relação com o programa ou materiais temáticos da obra. como falas e ruídos. . [04:40-05:13]) equivaleria ao fechamento da sessão espírita. O gradual acréscimo dos sons pré-gravados. finalmente. até fundi-los. a utilização de uma linguagem modal instável que beira o atonalismo e a bi-modadidade. citados anteriormente) que criam uma “Atmosfera lúdica. vocalizes e percussão “oitavados” pelo dobramento da velocidade de reprodução da fita gravada) ao mundo espiritual. Na segunda fase. . timbres ruidosos) e expandidas (multifônicos de oitava e terça. popular-erudito. .”). até onde sabemos.. c. ao lado de outras obras primas afins do repertório solístico da flauta – como Syrinx (1913) para flauta solo de C. em que “os opostos estão se aproximando. os espíritos encarnados e os desencarnados. como nos ensina a natureza universal de Cannon e Hermeto Pascoal. seja esse repertório erudito. . Do ponto de vista ritualístico.139-143).139-143. é um retrato da 76 genialidade e dom de Hermeto Pascoal para transformar qualquer som em música. com a exploração de melodias de grande tessitura. Cannon apresenta uma construção complexa. que chama de Separação. . c. .. Podemos caracterizar Cannon como uma música funcional. há um retorno à atmosfera inicial. retenção do tensionamento. cujo objetivo foi prover uma sessão espírita para Hermeto Pascoal e seus companheiros brasileiros nos Estados Unidos se comunicarem com o recém falecido músico norte-americano Cannonball durante a gravação do disco Slaves mass em 1977. Podemos observar. Mais do que isso. levaria a um retorno da consciência (coda. F. sua abertura para uma música sem fronteiras entre o popular e o erudito. as blue notes indicariam “. a cadenza do concerto clássico. em que o doutrinador e demais médiuns primeiro rezam. deveria resgatá-la do ostracismo para fazer parte. música concreta). de técnicas instrumentais avançadas (harmônicos.. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. mas a consciência e a inconsciência não estão separadas como na fase inicial.56138. 2010. que levaria ao transe da incorporação (B. finalmente.. a tranquilizam e. Cannon é bem ilustrativa da linguagem eclética e híbrida de Hermeto Pascoal.”. . . espiritual. que chama de Harmonia de opostos.. Ele desenvolveu esta ferramenta metodológica a partir da observação da fala de Hermeto Pascoal e sua percepção poiética do imaginário. a qual apresentamos aqui em primeira mão. Debussy. (c. Luiz Costa-Lima Neto nos propõe uma análise etnomusicológica com base no que chama de “continuum separação-fusão paradoxal” (COSTA-LIMA NETO. (c. 2009). por si só. cujas proporções apresentam uma estrutura em arco cujo clímax e principal sincronicidade (quando os duplos Hermeto/flauta e Cannonball/“batidas de coração” entram em fase) coincidem com a seção áurea da obra. Per Musi. . se despedem para retornarem ao mundo terreno. COSTALIMA NETO (2009) identifica a abertura da sessão espírita (c. que pode ser constatado “. em todos os mundos. que chama de Fusão paradoxal. . e sobre a pertinência de possíveis dados extra-musicais na sua gravação. juntamente com sua criativa integração dos recursos expressivos eletro-acústicos ao seu conteúdo programático. a complexidade de Cannon é aparente em níveis mais locais em toda a obra. repente) e estrangeiros (jazz. ao longo da forma.. . A terceira fase. adequada ritualmente à sessão espírita musical”.Considerações finais Cannon é uma obra pioneira na música popular brasileira.1-6. bre nossa reconstrução e edição da partitura de Cannon. [00:35-03:07]) coletiva do “doutrinador” (Hermeto Pascoal) com a ajuda dos outros “médiuns” (demais músicos presentes na gravação. realizada apenas pela flauta solo.” 5. p. gritos.1 (1962) para flauta solo e tape com sons sintetizados de Mario Davidovsky -. gerando um conjunto integrado de quatro fases inter-relacionadas. Belo Horizonte. que levaria à busca e estabelecimento de contato com o espírito desencarnado (A. é de tal ordem organizado que estimula o ouvinte. A sofisticação da escrita composicional e idiomática de Hermeto Pascoal para a flauta. nesta obra. risadas.” e que se liberta (“Agora você está bastante livre para andar em todos os ares.”. à sensação de presenciarem um ritual espírita completo. da maneira como “sobrepõe pólos opostos. sem fronteiras entre os estilos tipicamente nacionais (embolada. convivem o sonhar e o estar acordado.5 (1936) para flauta solo de E. mas diferente pelas reminiscências do transe atingido na terceira fase: “. podemos ainda associar os sons não manipulados (flauta. com uma “prece sem palavras”. mais comum na música erudita. vários tipos de humming).BORÉM.63-79. glissandi. Por outro lado. depois entram em transe. [03:07-04:40]) equivaleria ritualmente ao clímax e transe do contato e incorporação espiritual: em meio à multitude de efeitos instrumentais e vocais. .. pois foram unidas e englobadas por uma instância supraconsciente. F.22. Daniel. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica.1). Hermeto. Flora Purim (voz). BARBOSA. Música brasileña en pareja. COSTA-LIMA NETO..br/boletim/bol1285 (Acesso em 7 de janeiro. n.5. 2009). Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos.com. GONTIJO. Fender Rhodes. http://www. 13 de maio. 1993. Vida simples.alfanet.lanacion. ______. 2001. 15 de abril de 1979. publicado anteriormente no Estado do Paraná.hermetopascoal. ARAÚJO. Sorcerer’s apprentice.org. The New Grove dictionary of jazz. agora eu falo: Hermeto Pascoal.com. p.22. Flûtes au présent: traité dês techniques contemporaines sur lês flûtes traversières à lúsage des compositeurs et des flûtistes. ano 26.br (Acesso em 12 de janeiro. p. 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Cannon. craviola. 5 Para uma discussão aprofundada sobre a substituição histórica do portamento pelo vibrato na música erudita veja LEECH-WILKINSON em Per Musi. brinquedos. José de Lima. WEA/Warner: BS2980. facas. pratos. 1977. trumpete.85. Os segmentos equivalem a 0. Hermeto pascoal (voz. In: www. M. humming na flauta e sons pré-gravados. seria um bemol no Si do c. Airto Moreira. iefone. 5. flauta de bambu.br. como bocal de tuba. p. n. Fausto. piano. tem demonstrado sua versatilidade e virtuosismo em muitos outros instrumentos convencionais. Fás no c. Para outros exemplos do uso da seção áurea em música veja o livro Bela Bartók: An Analysis of His Music (Lendvai. Ruy.20-21 anotadas como semicolcheias. 2 O nome “Cannonball” é uma corruptela do apelido “cannibal”. entre eles teclados eletrônicos diversos. (LP) RAHSAAN. Nola´s Penthouse Sound. João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura – diretoria geral de cultura. 1964 (LP re-masterizado como CD de áudio. p. surdo caixa. objetos e animais. órgão. Raul de Souza (trombone e voz). bandola. omissão de um grande trecho lento .c. WEA/Warner: BS2980. máquina de costura. baldes.382 do todo.59) e PRADINES (2006).BORÉM. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. 1977. A música universal.com. Lendvai and the Principles of Proportional Analysis (Howat. VILLAÇA.5). mangueira com voz. vida e música de Hermeto Pascoal para crianças. voz e porcos). BORÉM. Ron Carter (contrabaixo acústico). clavinete. panelas. escaleta. In: Slaves Mass.32.124?).133 simplificadas como uma colcheia). 2009b).119 ou 120. galinhas. ruídos e gritos da voz. garfos. 3.. 4 Seção áurea é a divisão de uma linha em duas partes de maneira que a proporção do segmento menor para o segmento maior é igual à proporção do segmento maior para a somatória dos dois segmentos. Entretanto. 2007. inconsistência na notação da forma (repetição no c.22. F.7-25). zabumba. Flora Purim (voz). Hugo Fattoruso (voz). O Menino Sinhô. chaleira. falta um bequadro no c. uma referência ao grande apetite do músico Julian Adderley na infância (KERNFELD. piano. É mais conhecido como virtuoso da sanfona. apitos. diferenças na notação de notas. GARCIA. 2009a (Acesso em 20 de janeiro. Raul de Souza e Laudir de Oliveira. Sistema modal na música folclórica do Brasil. saxofone e clavineta). Si natural..63-79. fluguel.83. cravo. sapho. F. 1983). Hugo Fattoruso. Edmiriam Módolo. observa-se apenas um crescendo no c. fragmento sonoro disponível em www. acidentes nos Lás do c. harmônio. semicolcheias do c. 1988. berrante.30. o c. garrafas. Esta proporção é também encontrada com bastante aproximação na Série Fibonacci (1. guitarra e viola de doze cordas). Fender Rhodes. cavaquinho.6). violão. 2010. omissão de várias notas no c. p. fusas do c. 2010. quando o correto é um ternário.111. Hermeto. flauta doce e transversal.itibereorquestrafamilia. 8. triângulo – e em instrumentos exóticos. Limelight. balas. fole de oito baixos. 1. 2009). PASCOAL. assovio. pandeiro. efeitos e dinâmicas (nenhuma voz realizada em humming é anotada. Cannon (Partitura transcrita por Hermeto Pascoal e desenhada por Ruy Pereira). 78 . Per Musi. flautas e saxofones. Partitura transcrita e editada por Fausto Borém a partir da gravação do compositor no disco Slave Mass (1977). o que é aproximadamente 2/3 e 1/3.30.47-55 . sextinas do c. Hermeto Pascoal teria escrito mais de 4. viola caipira.em que há um humming cromático descendente com o pedal da flauta em Sol.15 (2007.000 músicas até 2007. Hermeto. colcheias no c. buzinas.). (LP) Referências de gravação PASCOAL.29 simplificadas como colcheias. ZWARG. efeitos como glissandi e multifônicos não são anotados. patos e coelhos (PASCOAL. Cannon (dedicada a Cannonball Adderley) para flauta.80-82. notação simplificada de vozes. perus. 3 Hermeto Pascoal é um dos mais reconhecidos multi-instrumentistas da história da música popular. Roland Kirk.27.22. p. 13 etc. 1971) e o artigo Bartók. Itiberê. I talk with the spirits. fusas dos c. 2. bacias. bateria. 2009a. 6 Há muitas discrepâncias entre a transcrição de Cannon por Hermeto publicada na capa interna de Slaves mass (1977) e a gravação da música no mesmo disco. quaternário nos c. violão. In: Slaves Mass (capa interna do LP). n. Laudir de Oliveira (voz).com/Talk-Spirits-Rahsaan-Roland-Kirk) Notas 1 Segundo VILLAÇA (2007. p.618 e 0. Carta de Zélia Gaia. Per Musi. Alphonso Johnson (contrabaixo elétrico). Referências de partitura PASCOAL.amazon. Ilustrações de Rosinha Campos. 1981. porta do estúdio. ritmos e métrica (mínima no c. São Paulo: Ática.15 anotadas com quiálteras. Algumas das diferenças relevantes são: dúvidas na notação de notas (Lá3 ou Dó4 no c. n. Belo Horizonte. Chester Thompson (percussão). surdo. Hermeto pascoal (flauta e voz) com participações vocais de Flora Purim.13. bombardino. SIQUEIRA. gansos. porcos.88).69 é anotado como um compasso quaternário. Belo Horizonte: UFMG. David Amaro (violão. J. F. Mantém. GARCIA. Trabalhou com importantes compositores como Thea Musgrave. Luiz Otávio Santos. análise. compositor e professor. lançado em 2009.. Choros de Abel Ferreira e diversos CDs com a OSESP. Per Musi. Fábio Mechetti. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos. p. Yoel Levi. e no Grupo de Música Contemporânea da UFMG. 79 . com quem realizou uma série de recitais na Alemanha em 2008 e gravou um CD. apresentou-se ao lado do pianista Nelson Freire no Festival Piano aux Jacobins em Toulouse. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista. tem atuado como 1º. Roberto Corrêa e Túlio Mourão. o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa. dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição. Em Boston se destacou como solista junto à Boston Chamber Music Society. desde 1998. com honras. Kristin Korb. Graduado pela mesma instituição em 1987..63-79. n. musicologia. Egberto Gismonti. Toninho Horta. Ezra Sims. Tavinho Moura.BORÉM. a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire. três capítulos de livro. é o único flautista a receber o título de Doutorado. Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal. M. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro. 2010. Mauricio Freire Garcia é Professor Adjunto da UFMG. onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. no New England Conservatory. Já se apresentou nas principais salas do país além dos EUA. Arnaldo Cohen. EUA. Midori. Em 2005. um dos principais grupos de música contemporânea dos EUA. H. Suas gravações incluem a Suíte em Si menor de Bach.22. os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos). Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Henry Mancini. Juarez Moreira. o New England Conservatory Bach Ensemble e Contemporary Ensemble. Belo Horizonte. Suas gravações incluem o CD Brazilian Music for the Double Bass. Europa e América do Sul. Grupo UAKTI. dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais. Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling. onde já atuou como Diretor da Escola de Música e Diretor Adjunto de Relações Internacionais. duo com o pianista Miguel Rosselini. F. França. Bill Mays. Desde 2003. Koellreuter e Eduardo Bértola atuando no Boston MusicaViva. Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier). Flautista Solista convidado da OSESP. teórico. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma. Menahen Pressler. e Ed. . . œ œ ¥ œ . . . bœ œ bœ [voz masculina: ".22. ."] . œ ˙ J √‰ œr j [voz masculina: "Forever"] . malandro. œ œ œ œ .œ #œ bœ #œ œœ > J œ . œ. œr >œ œ [00:45] [voz oitavada: "você chegou"] 9 & [vozes oitavadas] [voz oitavada: "viagem prá São Francisco. Fausto Borém [00:00] Flauta . œ œ. vocalize oitavado] sibilados] [02:12] √ . . Belo Horizonte. 2010. para flauta. . todos os lugares"] œ. Per Musi. . r bœ œ ‰œ œ œ œ œ œ b˙ J [percussão] Rall. . œj . assíncrono com a música] .. humming na flauta e sons pré-gravados Transc. Rœ ˙ &4 . . p. . Hermeto. œ œ œ œ bœ bœ vocalize oitavado]b œ . c ˙ [Hermeto oitavado: ". n. œœ œ œ . [01:30] œ [01:38] [01:39] [01:34] [voz masculina: [01:46][Hermeto: "Vejo em . [Flora Purim: "I think "a friend"] . ."] "vamos falar mais coisas. 3 u . . U √ acelerando œ œ . . œ nœ bœ bœ u[00:42] [01:00] [voz masculina (Airto Moreira?): "Forever!"] bœ œ œ ˙ bœ œ œ œ œ [voz oitavada: (aboio) "Hah!"] ["coração batendo" cessa] œ bœ œ œ bœ œ ˙. œ œ b œ œ œ œ . 5 œj œ . jul... œ œ . . [Hermeto oitavado: . . 2010 80 Recebido em: 10/12/2009 . . . b¥ O U j b˙ bœ œ bœ bœ œ b œ . b œ b œ. .to you"] √ [01:48] r [Hermeto: ". 6 J u .. . imensa . u >3 > 3 [02:02] [voz oitavada: "saco de batata assada"] 28 [Flora Purim: [02:08] [percussão: sons [voz masculina: "everybody can express [sic] myself"] PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. . œj .22. . œ œ n œ.PASCOAL. [01:55] ¥ 45 ≈ ¥ œ bœ œ œ b œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ c œ bœ œ œ œ. . . œ b œ œ c b œ .Aprovado em: 18/02/2010 etc. œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ [01:11] [01:24] [voz masculina: j œ œ. sem fim!] 24 [Flora Purim: vocalize oitavado] r r œ œœœœœœ œœœ œœœ & œ. ‰ j b œ & 4 . J #œ "I don´t know. #¥ j 43 # œ œ. œr œ -œ bœ œ œ œ [01:19] [Voz masculina: "I think I´m going to see you."] [01:02] œ & bœ nœ œ œ œ 13 [01:04] &œ 16 [00:27] [Hermeto oitavado: "O que você fez aqui. .dez. ad libitum] [voz: "Quem falou?" + vozes no fundo] [00:01] œ œ œ b œ.. bœ bœ bœ œ [00:52] [Hermeto: "O que você fez aqui. b œ œ œ œ œ b œ œ. Jœ . . . œ œ. b œ œ . j œ œ b œ œ œ œ œ b œ n œ c œ œ œ & #œ nœ œ#œ œ #œ #œ nœ ‰ œ œ œb œ œ œ . . Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley).œ œ œ . what to say. J u r œ œ œ bœnœ œ œ [00:38] [Hermeto: "o que você fez aqui.de corpo presente"] œ œ.vocais U. 239 p.I am sure I´ll see you"] œ bœ. . . ..80-82. œ b œ œ b˙ J œ bœ bœ œ > œ œ. .. œ I´m going to try again. œ [00:35] ["coração batendo" inicia. œ œ œ œ œ bœ œ œ . . slow"] 20 œ œ b œ œ ® œ œ œ 3 œ œ œ."] [Lento.œœ œ. . ... continua fazendo muito mais"] [00:47] [voz oitavada: "meu dedo!(?)"] [voz oitavada: ". " ] r j œ bœ c œ bœ œ œ œ œ œ œ œ. continua fazendo muito mais"] b œ. ≈ b œ &œ œ > 3 [00:29] 6 ∫ œ. etc. . [Flora Purim: b œ œ . [Flora Purim: vocalize oitavado] [01:56] œ bœ œ. você uma alegria .. Cannon (dedicada a Cannonball Adderley) Hermeto Pascoal para flauta. . . . . . . Per Musi. ˙. . 2010.22. Brasil. assíncrono com a música] a voz de Hermeto Pascoal soa sempre uma oitava abaixo. rítmico. . . . .PASCOAL. [02:43] [voz masculina: "forever"] [vozes oitavadas (aboio)] [02:47] ["coração batendo" inicia. ˙. [02:17] [Declamação sincronizada com flauta + humming] [Hermeto: vo . &˙ [03:15] [na 2a vez: percussão esparsa (palmas ). . n. r œ . . p. 4 œ . ˙ [marcato sempre] .. . Hermeto.cê con-for -ta to .. . # œ nœ œ bœ œ bœ ˙. . . .. 47 & 47 60 [Dançante. . . ^ ‰ œj œ œ œ œ œ . . [02:40] [Flora Purim: "Êh.Heia!. . linda.. .te mun do >j > > > > > > > > > ‰ j œ œ 3 & 4 b œJ ‰ ‰ Jœ œ œ œ œ œ œ œ œ b œ œ œ b œ œ œ .. œ 2. rítmico. 81 . [sempre dançante] & bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ 66 .das [02:29] Humming nasal Œ ≈ ≈ Œ ‰ Humming + flauta em uníssono . 7 œœ > > > > > j œ œ j 3 j 3 j . aboio oitavado: "Hei!. nœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ bœ œ ˙ œ .b œ œ ˙ . ["coração batendo" inicia. 4 ˙. . 31 ≈ 3 Alegre [02:37] [Rápido. &˙ 72 . . sem swing] des . . . .Hei!. .. .. . . [Hermeto: "Como é linda.das as vi . b œ œ n b œ˙ œ . . œ œœ œœ ‰ Œ ‰œ b Jœ œ œ œ b œ ˙ ˙ J Humming * (voz descendente) + flauta (voz ascendente) u . . . .Heia!. . .80-82. . assíncrono com a música] [02:45] [Ad libitum] ˙ œœœ œ œœ ˘ b œ Uœ œ œ œ œ œ œ c b œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œœ bœ œ œ œ œ. sempre Humming + flauta em uníssono U 35 42 &œœœœœ ˙. .. œ bœ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ 4 ˙. . Belo Horizonte. Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley). œ œ œ œ œ œ ["coração batendo" cessa] [vozes oitavadas cada vez mais intensas] bœ œ ˙ ˙ œ œ œ œ œ œ œ^ [03:38] œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ [voz oitavada: "(?) "Let's go!" (?)] O . u [vozes oitavadas [vozes oitavadas cada vez mais presentes] u (aboio) "Eh!"] [02:55] [Lento] [risadas oitavadas] [03:15] Humming (voz descendente ) com pedal (flauta) & 43 œ œ œ œ b œ œ œ œ œ b œ œ œ ˙ . a sua alma" [03:40] [voz masculina: "som!"] & bœ œ œ œ œ ˙ 78 47 1 . . . . >> > > > > > > [marcato sempre] Humming + flauta em uníssono sempre [03:07] ["coração batendo" continua] 56 3 4 * Humming: vocalizar notas dentro do bocal da flauta. . . light swing] O. . para flauta.œ # œ n œ ˙œ . ‰ ¿ ¿ ¿ ¿¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ j‰ œ œ œ &˙ 43 # œ˙ œ . . . .. ."] œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ˙. ."] ˙. . . . . . b œ . ."] [vozes oitavadas soam como risadas de bebês] [04:10] [Hermeto:". 2010. œj œ œ b œ .por todos [voz oitavada: os lugares. .. > ["coração batendo". . 3 u 3 [04:37] [Hermeto:"o negócio é que. .... . œ œ œ œ œ J J J J Humming + flauta em uníssono 91 & œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ ˙. œ œ œ œ œœœ œ oitavado] ¿ ¿ ‰ ¿æ Ó ‰ ¿æ b œ œ b œ n œb œ œ œ b œ œ œ . free . .. ˙. #˙. u 3 uma pulsação só] Rall. .fading + gliss. voz) em terças paralelas ["..PASCOAL. . 112 [04:18] [Hermeto: "Agora você está bastante livre para andar. . voz) [03:47] ["batidas de coração" sincronizadas com a flauta] 85 [vozes oitavadas: em terças paralelas ["batidas do coração" tornam-se assíncronas] [03:57] "Abre o livro!" (3x)] [voz masculina: "How beautiful. . . œ œ œ œ bœ œ ˙. . [". Per Musi.. œ^ .. . . . [Legato] [04:20] ˙˙ . . ."] 132 &œ fl b œœ œœ œœ œœ b œœ œœ b ˙˙ . . . . . your are . & œ. vai"] [04:42] [percussão oitavada] Flora Purim: [vocalise oitavado] 3 [04:47] [04:40] [Lento] [Ad libitum . # œ J .] [05:03] ["coração batendo" inicia. œ bœ œ œ œ ‰ œ bœ œ bœ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ [04:45] [voz oitavada:"pode ascender (3x). 106 & b œœ œœ œœ œœ b œœ œœ b ˙˙ . p. b n ˙˙ . para flauta."] ¯ ¯ ¯ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ b œ œ œ œ œ b œ œ œ œ œ œ œ b œ b œ˙ œr œ œr œ b œœ œœ œœ œœ b œ œ . . 82 [04:16] [Humming portato + flauta legato em terças] batendo" cessa] [Rítmico] [marcato sempre] j j œ. . . Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley). . .22. . ."] U œ œ œ œ œ bœ œ ˙. & b œœ œœ œœ œœ b œ œ œ œ œ œ œ b œœ œœ œœ œœ b œœ œœ b ˙˙ . . cantabile] ¯ ¯ ¯ œ œr œ œr œ œ b˙ R . . a partir da gravação e da partitura espiralada desenhada por Ruy Pereira na capa interna do disco... .. mas é isso aí"] [percussão em metal oitavada] œ œ œ œ œ œ œ b œœ œœ b œœ œœ œœ œœ b œœ b ˙ . Belo Horizonte. . . .voz) + flauta (2a. . . [Flora Purim: [voz masculina: "toda a vida vocalize oitavado] you´ll be always here"] ["coração [04:19] [Hermeto: " .voz) + flauta (2a.beautiful. . œ bœ œ œ œ œ bœ œ & œ œ œ œ œ œ œ œ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ [03:52] > > > > > > > > Humming (1a. . . œ œ œ œ. Esta edição completa foi revisada e editada por Fausto Borém (2010). . ˙. . œ œ œ œ. Humming + flauta em uníssono [04:32] [voz masculina: [04:35] [Hermeto:"estou gostando deste trabalho"] "Now. . . . ´ œ [04:21] ˙˙ Œ > 139 ¿ & c œ œ œ œ bœ flflflfl fl œ^ œ œ b œ œ b œ œ œ œ œ ˙ œ >j > > [som de metal >j . # ˙˙ ."] 98 [04:04] Humming (1a. n. nœ ˙. & œ œ œ œ œ œ bœ œ œ 127 œ¨ œ^ . Hermeto. cessa sozinho] [05:07] [voz oitavada:"pode acabar"] [05:10] [voz oitavada:"deixa que eu mato!"] . . œ œ œ œ œ œ œ œ.pelos rios (?)"] "Eita!"] 119 & œœ b œœ œœ œœ œœ œœ b ˙˙ . .. O jb œ œ jb œ œ œ œ œ bœ œ bœ œ œ œ œ . .. . c [04:57] [humming + flauta: de uníssono para 2a. b œj œ œ b œ . ." Œ .. . . . is your soul . [05:13] [falas e gritos oitavados] [cresc.80-82.. . Cannon foi gravada e transcrita por Hermeto Pascoal no disco Slaves Mass (1977). menor] œ bœ U ˙˙ . .. œj œ œ b œ œ œ œ b œœ œ j œ nœ œ œ œ œ œ œ œ b œ œ . . As the a starting point. provocou uma reação imediata de músicos. A fronteira existente entre o popular e erudito fica menos evidente neste disco. críticos. tendo em vista que ali se deu a apresentação de João Gilberto em disco e da batida do violão que iria simbolizar a Bossa Nova. A forma com que o violão foi tocado. quando chegou à capital federal para integrar o grupovocal Garotos da Lua como o novo crooner em 1950. Pela primeira vez a batida que simbolizaria a bossa nova estava sendo gravada. por causa da participação de João Gilberto ao violão nesse disco.dez. Introdução É sabido que a Bossa Nova surgiu no cenário musical brasileiro em meados de 1958 com a canção Chega de Saudade (Antônio Carlos Jobim/Vinícius de Moraes). 2010.br Resumo: Discussão sobre a importância do LP Canção do Amor Demais dentro do panorama da cultura brasileira. Mas esse disco nos trouxe algumas outras características imprescindíveis para que entendamos o fenômeno Bossa Nova dentro do panorama da cultura brasileira. Keywords: Bossa Nova. Brazilian Culture. Per Musi. e também da gravadora Odeon. n.com. Tom Jobim. H. de unir a música e a poesia de ambos em disco. São Paulo. que instantaneamente convidou Gilberto a gravar o seu primeiro single. simplificando o samba e ao mesmo tempo fazendo uso de harmonia mais sofisticada e densa.. Jornalismo Cultural.83-89.Aprovado em: 13/03/2010 83 . p. em 29/01/1965. Cultura Brasileira. com “Chega de Saudade” de um lado e “Bim Bom” (João Gilberto) do outro. seria utilizada por ele no início de sua carreira. José da Veiga Oliveira. Canção do Amor Demais [Song of Too Much Love]: a milestone in contemporary Brazilian popular music Abstract: This article discusses the importance of the LP Canção do Amor Demais (Song of Too Much Love) within the panorama of Brazilian culture. the introduction of João Gilberto and the guitar rhythms that would come to symbolize bossa nova. jul. Em sua coluna para o Diário Carioca.BOLLOS. a partir do texto de Vinícius de Moraes na contracapa do disco e da crítica de José da Veiga Oliveira. a acentuação rítmica das sílabas tônicas sempre se dava nos tempos fortes e o uso do vibrato ainda persistia. this discussion uses the LP’s liner notes by Vinícius de Moraes and the critique by José da Veiga Oliveira to demonstrate that the existing border between popular classical music become less evident with this album. Essa característica vocal da geração do samba-canção que João Gilberto passou a abolir a partir de sua volta ao Rio de Janeiro em 1957. EMESP Tom Jobim. mais do que do âmbito da música popular em si. Brazilian Popular Music. João Gilberto já se apresentava na noite carioca em 1957 e Jobim. Cultural Journalism. acompanhando-a ao violão em duas faixas do disco: PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. convidou Gilberto para participar do disco da cantora. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea Liliana Harb Bollos (Faculdade de Música Carlos Gomes. José da Veiga Oliveira. Muitos autores também mencionam a importância do LP Canção do amor demais (Festa. que ficara impressionado com o som inovador do cantor baiano.. porém a forma de cantar de Elizete Cardoso era ainda convencional.22. Música Popular Brasileira. mais do que do âmbito da música popular em si. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. por conta do alto grau composicional das canções e pelos arranjos assinados por Jobim. Palavras-chave: Bossa Nova. Vinícius de Moraes relata o nascimento da canção “Chega de saudade”: Recebido em: 07/07/2009 . Irineu Garcia. 239 p. Tom Jobim. SP) lilianabollos@uol. João Gilberto. . interpretada pelo cantor e violonista João Gilberto e foi alvo da primeira grande manifestação de crítica de música popular nos jornais brasileiros. much more than simply within the area of popular music itself. Belo Horizonte. A cantora Elizete Cardoso fora convidada por Vinícius de Moraes e Tom Jobim para participar do projeto idealizado pelo proprietário do selo Festa. Vinícius de Morais.22. poucos meses depois do disco da cantora. 2010 “Chega de Saudade” (Jobim/Moraes) e “Outra vez” (Jobim). FT1801) da cantora Elizete Cardoso. 1. L. This is due to the high compositional quality of the songs and arrangements by Tom Jobim. Vinícius de Morais. João Gilberto. p. Portanto. O disco Canção do amor demais revisitado por Vinícius de Moraes O repertório do disco. mas cujo nome já estava implícito na criação. Vimos. criando uma contraposição clara entre os grupos de jazz. como foi o caso desse disco. na sua interpretação. consagrou. como já dissemos. razão pela qual acreditamos que os músicos eram os mais interessados naquele disco. os pesados arranjos orquestrais eram baseados em uma voz condutora acompanhada por uma orquestra que lhe servia de base. caminhando numa direção a que não saberia dar nome ainda. impondo ao violão um lugar não somente nas rodas de samba. criando uma sonoridade “nacional”. depois dos sambas do Orfeu. alcançando prestígio e reputação.45). Koellreutter e de outros grandes compositores universais como Chopin. subitamente a resolução chegou. n. que têm o piano como instrumento central 84 (acompanhado de contrabaixo e bateria) e a nova sonoridade adquirida pelo violão. o violão foi escolhido pela classe menos favorecida. transformandose no instrumento mais significativo da música popular brasileira. Este último afirmou que ele teria passado a Jobim noções de harmonia e contraponto clássicos e “rudimentos de execução pianística”. afinal. e não as composições ou tampouco os arranjos do disco. a pedir apenas. O impacto que essa música provocou foi enorme. o samba. 20 tentativas. No entanto. é todo composto de músicas da parceria Jobim-Vinícius. poucos meses depois de ter participado do LP de Elizete Cardoso. Uma manhã. Nessa época. porém. Assim. Quando o cantor e violonista João Gilberto lançou o seu primeiro single com “Chega de Saudade” e “Bim Bom”. introduzido nas casas da alta classe média no século dezenove. L. Além do violão de Gilberto nas duas faixas. de modo geral. 8). rica. apesar de ter musicado a peça de teatro Orfeu da Conceição de Vinícius de Moraes em 1956. cada nota uma saudade de alguém longe. poucos críticos perceberam que a influência benéfica desses arranjos veio também de grandes músicos brasileiros. nove (“Chega de saudade”. Cláudio Santoro. O que causou espanto. Mas a letra não vinha. nesses arranjos tão pouco comentados é que estão a chave da renovação. 2010. durante todo o século XX. marca de um estilo inconfundível que João Gilberto. estampado no “Suplemento literário” do jornal O Estado de S. além de ter estudado harmonia com Hans Joachin Koellreuter. por sua vez. considerada pelos opositores como influência direta do jazz americano. depois da praia. Debussy e Ravel. Queria. H. Em pouco tempo o cantor baiano impôs um novo padrão estético à música popular brasileira. brasileira. ainda hoje ouvimos que a batida do violão é que chamou a atenção no disco Canção do Amor Demais. O próprio poeta Manuel BANDEIRA disse que “para nós brasileiros. a bossa nova.BOLLOS. das treze canções do disco. inventando um diálogo entre a voz e o violão. 2. Muito embora consideremos que a música erudita. não havia um jogo contrapontístico de vozes e instrumentos que pudessem participar do arranjo.se propagou por toda a obra jobiniana. Com isso. o violão tinha que ser o instrumento nacional. João Gilberto. Um samba todo em voltas. conseguiu com que o violão migrasse também para a classe média. p. porém. racial” (1955. fazendo uso de poucos instrumentos. mas também influenciando o estilo de compor de vários músicos.22. sintetizados nesse disco com uma harmonia densa. tão comum na época. a recepção do disco foi bastante tímida. Não por acaso o LP Canção do Amor Demais teve uma importância fundamental para a música brasileira. a transição do samba tradicional para a bossa nova fazia-se presente não somente na batida do violão de Gilberto. como Villa-Lobos. mas sobretudo na voz ritmicamente convencional da cantora contrastando com os arranjos econômicos de Jobim. simplificando sua instrumentação. o público imediatamente notou a originalidade. desde a sua primeira gravação com Elizete Cardoso no LP Canção do amor demais. com desenvoltura. ainda desconhecido da grande mídia. espaço para o violão em algumas músicas. J. Fiz 10. Era realmente a bossa nova que nascia. muitas vezes substituindo o piano como instrumento harmônico predileto.Paulo. foi uma influência mais significativa em Tom Jobim do que em outros músicos da bossa nova. mas também nas casas de concerto. pois o que interessava ao professor era dar ao aluno uma instrução “globalizante” (Koellreutter apud Cabral. sendo que algumas canções foram interpretadas quase a capela. a divisão que João Gilberto descobriria logo depois (MORAES. difícil. Notemos que as treze canções do disco possuem orquestrações muito diferentes uma das outras.83-89. transformando o violão em instrumento participante do processo criativo e não somente um “acompanhante” da voz. apresentar ao meu parceiro uma letra digna de sua nova música: pois eu realmente a sentia nova. neste disco? Alguns músicos comentavam sobre a “batida” diferente do violão de Gilberto. Radamés Gnatalli e também do professor de Jobim. foi decisiva para que muitos jovens se interessassem em tocar esse instrumento. Jobim preferiu conferir um caráter quase camerístico ao disco de Elizete Cardoso. assim. p. ou pelo menos. com a exceção do texto de José da Veiga Oliveira. considerada um verdadeiro divisor de águas. ainda em 1958. se é que realmente podemos fazer algum julgamento neste sentido. H. a partir de Gilberto. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. A batida que ele imprimiu. para citar somente três. e não a crítica. a estranheza daquela música. Na verdade. Per Musi. a relação desses dois ambientes musicais – erudito e popular . onde cada compasso era uma queixa de amor. Infelizmente. mas é sabido que Jobim foi aluno de piano de Lúcia Branco e Tomás Terán. o violão toma o lugar do piano. “Caminho de . percorrendo o choro. quando as rádios começaram a tocar. que o violão começou a ser utilizado na música norte-americana. 29/01/1965). abrindo. ou seja. Belo Horizonte. todos os arranjos do disco levam a assinatura de Tom Jobim. evidentemente por ser mais barato e portátil. gerando as primeiras críticas jornalísticas. Léo Perachi. não há como reduzir o trabalho composicional ou pianístico de Jobim somente dentro dos parâmetros da música popular. acompanhadas somente de piano e contrabaixo. a partir de “Chega de Saudade”. Ao contrário do piano. 83-89. “Eu não existo sem você”. época em que Di Cavalcanti. Vinícius expõe com cuidado que o tipo de voz dela “respira acima do popular”. João Gilberto gravaria o single “Chega de Saudade” e “Bim bom”. Em pouquíssimo tempo. Em 2005 foi publicado o livro Bossa Nova e Outras Bossas . assim como a música do disco: Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida para cantar este LP. atenta aos dilemas do seu tempo. Chamamos a atenção ainda para as palavras de Vinícius de Moraes. 1958). Certamente Canção do amor demais foi um marco da música popular brasileira contemporânea.. muito embora tenha sido Dolores Duran convidada primeiramente. nada mais natural que ele se refira a sambas. E. “Outra vez”) pertencem somente a Jobim. desenharam várias capas de livros. O importante. dono do selo. Assunto que tem inspirado muitas polêmicas e discussões. L. se preferirem) e eu nos associamos para fazer os sambas de minha peça “Orfeu da Conceição”.) Este LP. n. é “mostrar uma etapa do caminho de amigos e parceiros no divertidíssimo labor de fazer sambas e canções. “Estrada branca”. H. transcrito parcialmente abaixo: Dois anos são passados desde que Antonio Carlos Jobim (Tom. para que eu volte a falar delas aqui. “Se Todos Fossem Iguais a Você” e. por ela interpretado. pois fica sendo a obra conjunta de três grandes amigos. 85 . (. convidada por eles para integrar o projeto. no decorrer de sua evolução. quando este se refere às composições de Canção do amor demais como sambas e canções. o que realmente iria acontecer com o lançamento do disco Chega de saudade de João Gilberto. 1958). sobretudo. também tomaram conhecimento da música americana e tampouco foram questionados quanto às suas influências americanas dentro de suas canções. duas (“Serenata do adeus”. que se tornou o disco de apresentação da bossa nova.) Nem com este LP queremos provar nada. Nesse sentido. uma voz experiente. uma grande amizade. É o caso de Vinícius de Moraes que apresenta o disco de Elizete Cardoso. No caso dos LPs. 176). a bossa nova surgiu de uma série de acontecimentos e influências. afinal. nesse disco apareceu palavra bossa nova duas vezes. para Vinícius. gente que se quer bem para valer. herança do Modernismo. numa época em que ainda não se sabia como chamar aquela nova música. em qualquer circunstância.. então. sobretudo o cool jazz. Belo Horizonte. tanto por parte de entusiastas quanto de opositores. quando o andamento da composição for mais rápido e a canções para músicas mais lentas. mas sem nacionalismos exaltados” (MORAES. músicos e cantores” (JOBIM. por conta da repercussão desse disco. Tarsila do Amaral. sobretudo. contar um com o outro. expondo de forma carinhosa o projeto. Mas a diversidade dos sambas e canções exigia também uma voz particularmente afinada. crestada pela pátina da vida. influenciou toda uma geração de arranjadores.. se danando para estrelismos e vaidades e glórias. uma vez que a obra (o disco) que eles realizaram era uma busca de renovação. Aliás.22. de sua gente. o samba tem recebido características próprias da evolução de seu tempo. apareceram os textos de apresentação nas contracapas dos discos. que se deve ao ânimo de Irineu Garcia. com um registro amplo e natural nos graves e agudos e. tanto pela concepção moderna e inventiva dos arranjos e composições. mas acabou pedindo um cachê alto demais para o humilde selo Festa (CASTRO. Uma tradição que se formou a partir dessa época da Bossa Nova é que os encartes dos long-playng eram verdadeiras obras de arte. 1959). cada vez mais libertas da tendência um quanto mórbida e abstrata que tiveram um dia. contendo fotos e gravuras de artistas plásticos.BOLLOS. de seus músicos. 2010. e dar alimento aos que gostam de cantar. como qualquer outra obra artística nova. principalmente. (. quanto pela participação de Jobim. ele nos acrescenta ainda mais. Per Musi. “Modinha”. pedra”. que são brasileiros. talvez. E assim foi que a Divina impôs-se como a lua para uma noite de serenata (MORAES. entre outros. o que reforça que o projeto estava focado na obra de Vinícius e Jobim e não na cantora Elizete Cardoso. Vinícius reitera o motivo pelo qual Elizete Cardoso foi escolhida para fazer esse trabalho. Como não dizer que o jazz. guitarristas. justamente sobre este assunto. de timbre popular brasileiro mas podendo respirar acima do puramente popular. No entanto. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. essa dimensão menos historicista e mais estética que ele anteviu. “Janelas abertas”.A Arte e o Design das Capas dos LPs de Caetano RODRIGUES e Charles GAVIN (Viva Rio/ Petrobrás). Mas gostaria de chamar a atenção para a crescente simplicidade e organicidade de suas melodias e harmonias. que são brasileiros mas sem nacionalismos exaltados. voltado para os valores permanentes na relação humana (MORAES. influenciou e muito os músicos brasileiros que deram origem a esse movimento? Mas alguns músicos brasileiros da chamada Época de Ouro. p. não nos esqueçamos de que não foi por acaso que esses três artistas foram considerados os mentores de uma nova proposta musical que estava surgindo. 2002. p. gente que pode. Vinícius e João Gilberto na concepção e confecção do disco. “Medo de amar”) são composições somente de Vinícius e duas (“As praias desertas”. “Vida bela”. e a construtividade do seu espírito. gente. A contracapa do disco também merece destaque. alguns meses mais tarde. de que restou um grande sucesso popular. que é coisa que ajuda a viver. a escolha por Elizete veio ao encontro do gosto dos compositores. Na letra de “Desafinado” (“isto é bossa nova. 1958). é a maior prova que podemos dar da sinceridade dessa amizade e dessa parceria. “Canção do amor demais”) são parcerias de Jobim e Vinícius de Moraes. além do trabalho gráfico interessante. impregnada de novas características renovadoras advindas de várias fontes. Em seu texto. uma vez que Dolores era a escolha de Irineu Garcia. pois há um texto de Vinícius de MORAES que elucida bem o projeto da parceira. isto é muito natural”) e no texto de Jobim em que ele afirma que “João Gilberto é um baiano “bossa-nova” de vinte e seis anos. “Luciana”. de seus intérpretes. como Custódio Mesquita ou Ary Barroso. A graça e originalidade dos arranjos de Antonio Carlos Jobim não constituem mais novidade. senão mostrar uma etapa do nosso caminho de amigos e parceiros no divertidíssimo labor de fazer sambas e canções. com a pungência dos que amaram e sofreram. assim como Tom Jobim faz a apresentação no disco Chega de Saudade de João Gilberto. É claro que. O que mostra a inteligência de sua sensibilidade.. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. todos presentes na música de Jobim. Paulo. 1955). de uma só vez. Pela relevância da crítica e importância da publicação em jornal de grande projeção. a voz condutora. Esses intelectuais. Alguns artistas norte-americanos foram muito apreciados por músicos bossanovistas. como por exemplo. dentro do ambiente musical. p. a grande contribuição da música erudita brasileira. a Bossa Nova realmente sofreu influência do estilo cool jazz em vários aspectos. contraponto e harmonização sutil. foram os responsáveis pela publicação da revista Clima na década de 1940. o trompetista Chet Baker e o pianista Lennie Tristano. as três figuras mais proeminentes da música popular moderna: João Gilberto. Hans-Joachin Koellreutter e Cláudio Santoro. pela redução de instrumentos acompanhantes. cultura e comunicação. aproximaram-se do novo estilo que estava se formando nos Estados Unidos. detenhamo-nos à análise e transcrição parcial da crítica sobre o lançamento do novo disco de Elizete Cardoso: A “Canção do Amor Demais” (Festa. uma leitura construtiva acerca do novo disco. M-11026) em 1949 que estabeleceram esse novo estilo de jazz. Paul Desmond. que reuniu ensaios acadêmicos em diversas áreas. LDV 6002) obteve grande aceitação por quatro motivos: a música admiravelmente comunicativa de Antonio Carlos Jobim. Se a bossa nova se impõe ao deslocar alguns códigos de convenções musicais vigentes até então. Per Musi. foi tímida. De fato. muitas ressalvas quanto à influência de Santoro sobre a obra de Jobim. Ruy Coelho. gerando uma diminuição do volume do arranjo. n. pausas. os compositores da Geração de Ouro Dorival Caymmi e Ary Barroso (para ficar somente nesses nomes) e. Esta publicação praticamente definiu o destino intelectual do grupo e representou a entrada de cena de uma geração importante de críticos que iria convergir contato entre universidade e público. muitos meses depois do lançamento musical. L. Décio de Almeida Prado. pois propõe. tais como o trabalho que estava sendo desenvolvido por diversos artistas na época que traziam características inovadoras como os cantores Dick Farney e Lúcio Alves. o pianista e compositor Johnny Alf. Álvaro Bittencourt e Alberto Soares de Almeida. mais suavemente. o cool jazz. Com características quase camerísticas como suavidade. Não houve. Publicada no lendário “Suplemento literário” do jornal O Estado de S. Entretanto. por conseguinte. uma seleção de canções musicadas por Santoro sobre poemas de Vinícius. H. para que houvesse alguma outra publicação sobre a bossa nova nesse caderno. esse estilo de jazz se impôs. à medida que se estuda. que mostrou a Jobim quando se conheceram. consideramos vários outros fatores que foram imprescindíveis para o surgimento da bossa nova. Acreditamos que a música de Jobim é 86 tão fenomenal porque teve muitas assimilações que a enriqueceram excepcionalmente. 1953) e a cantora Julie London com o disco Julie is her name (EMI-Br 799804. entre outros. entre outros. Música e crítica por Veiga Oliveira: análise e compreensão à altura do disco A recepção do LP Canção do amor demais. o conjunto-vocal Os Cariocas. como não poderia deixar de mencionar. sem ressentimentos. sobressaindo. Há. O único texto que emite comentário sobre algum integrante do movimento é o de José da Veiga Oliveira. primeiros formandos e depois professores da Faculdade de Filosofia da USP. detinham poder e impunham o gosto musical. Villa-Lobos. de 06/10/1956 até 29/06/1963. o disco Canção do amor demais de Elizete Cardoso apresenta. com o guitarrista Barney Kessel. tendo como colaboradores críticos do Grupo Clima como Antônio Candido. Tom Jobim e Vinícius de Moraes. essas primeiras manifestações de renovação só demonstram o quanto significativa aquela música em formação viria a se tornar. quando sua letra reitera que “isto é bossa nova. a voz . como o trompetista e cantor Chet Baker. tempo suficiente. nos anos 1950. Em certa medida. inclusive os que defendem a possibilidade de plágio por parte de Jobim.22. ao lançar o LP The Birth of the Cool (Capitol. O Suplemento Literário era uma das publicações jornalísticas mais prestigiosas da época e tornou-se uma espécie de ponte importante entre a universidade e imprensa. 2010. a crítica “Canções de modinhas nossas” do crítico. os violonistas Garoto e Luis Bonfá. alguns artistas brasileiros que buscavam uma saída para aquela música abolerada. Paulo em 28/02/1959.83-89. analisa e aprende uma obra. época em que os programadores de rádio. a assimilação ocorre inevitavelmente. lançado em abril de 1958. a dissonância moderna de “Desafinado”. procurando se distanciar do modo nervoso do estilo bebop. Lee Konitz e Stan Getz. sete meses depois do famoso concerto no Carnegie Hall. exercitando na voz a possibilidade de um instrumento de sopro. sobretudo o disco The best of Chet Baker sings (Pacific-EUA 792932. cujo trabalho resultou na obra Canções de Amor (para canto e piano). desde o primeiro número do suplemento. assim. o arranjo musical e. sem vibrato. além da influência do jazz. a poesia de Vinícius de Morais. De fato. o arranjador Radamés Gnatalli. Tivemos a oportunidade de pesquisar no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) cerca de 344 resenhas de música do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Antonio Branco Lefèvre. como por exemplo. juntamente com as grandes gravadoras de discos.BOLLOS. imposta pelos meios de comunicação. musicólogo e professor José da Veiga Oliveira comenta dois discos recém-publicados. Belo Horizonte. Em meados de 1950. 3. isto é muito natural”. Este último já se aliara em parceria com Vinícius de Moraes em 1955. mas foram o arranjador Gil Evans e o trompetista Miles Davis. Não podemos nos esquecer de que. O cantor passa a se exprimir sem força. Canção do amor demais e Modinhas fora de moda da soprano Lenita Bruno. com exceção de uma resenha que merece especial atenção. a influência que a música popular americana exerceu em todo o mundo é grande. Entre os principais representantes do cool jazz destacam-se os saxofonistas Gerry Mulligan. portanto. como Koellreutter e popular. por vezes mínima. uma espécie de erupção de criatividade no campo de uma música que não era erudita mais. além de trombone em “staccato”. onde a atenção nada dissocia. abre a primeira faixa. Quando ele se comprime num medalhão. O Estado de S. Ao estabelecer comparações entre a letra-música de Vinícius-Jobim e o Lied alemão de Schumann-Heine. cálida e flexível de Elizete Cardoso e um registro sonoro dos mais perfeitos já produzidos no país. Em seguida. motivos. Belo Horizonte. se na música popular ou na erudita. seja na introdução. Sem nenhum tema poético que sirva de motivo-condutor (“Leitmotiv”) recorrente ou unitário. uma das melodias mais apreciadas da série. “Serenata do adeus” (Moraes). apropriando-se ao mesmo tempo de elementos mais sofisticados. funcionando uma como complemento da outra. situadas na mui imprecisa fronteira que permeia os dois gêneros. a poesia de Vinícius de Morais (grafado com ‘i’ pelo crítico). colorido). Também têm evidência. que segue sua análise com a próxima música. do qual o crítico muito bem conhece. Este último foi um dos primeiros músicos a transitar com fluência pelos dois mundos da música. e não afirmar. Desnecessário seria ressaltar tal circunstância em nossa canção de câmara. em qual tipo de música esse disco estaria inserido. um trio perfeito de composição-arranjo-interpretação. 28/02/1959). mas na verdade o instrumento que é tocado na gravação e tem destaque é o clarone. A linha melódica converte-se. 1959). o crítico expõe sua dúvida diante da música que encontra no disco. era popular. Veiga Oliveira segue sua análise com “As praias desertas” (Jobim) e “Caminho de pedra” (Jobim/Moraes): “As praias desertas”: imagens poéticas de imensos horizontes marinhos. nenhuma falta contra o pensamento e o bom gosto” (OLIVEIRA. como a maioria faz. com pontualidade e agudez. onde nenhuma ficção desvia nem anestesia. Oliveira segue seu texto comparando o lied alemão com as canções do disco: O que mais me impressionou foi a fusão indestrutível de poesia e música. é de feitio improvisatório. a canção que abre o disco: “Chega de saudade”. em arranjo primoroso de Jobim. à colação).22. impressionista. os trombones (com surdina). cujos textos encontraram compositores à altura (Goethe e Moericke. apesar de ter sido “Chega de saudade” a canção que mais chamou a atenção do disco. Quando o Lied se alarga para o grande painel. Curiosamente. Poderse-ia considerar a “Canção do Amor Demais” como um ciclo de melodias (“Liederkreis”) à maneira dos de Schumann sobre textos de Heine ou Eichendorff. H. num recitativo modulatório. saxofone em plangentes escalas descendentes. L. lançada há quase um ano antes desta crítica. embora tenha elementos da música popular (ritmo. observa-se. mas um popular mais sofisticado. Veiga Oliveira delineia os motivos pelos quais o disco tinha sido aceito: “a música admiravelmente comunicativa de Antonio Carlos Jobim. assim como a música sofisticada de Jobim e Schubert. a harmonia grosseira. em momentos distintos da música. funcionando uma como complemento da outra”. inovador. discreta percussão. Longe de mim a audácia de estabelecer apressadas equiparações entre obras definitivamente incorporadas ao patrimônio artístico universal e o ciclo de Jobim-Vinícius. como Léo Perachi e sobretudo Radamés Gnatalli. Nesta música o crítico destaca a melodia do saxofone. Oliveira questiona o pertencimento do disco (“Primeira indagação: será música popular ou erudita?”) ao propor uma questão. Depois de afirmar que. por vezes. Flauta. p. cerebral. Schubert e Wolf poderíamos trazer. que só uma artista como Elizete Cardoso poderia interpretar com verdadeira dignidade artística (OLIVEIRA. muito embora algumas das melodias estejam próximas aos melhores “Lieder”. estabelecendo. Daí a citação dos dois grandes poetas românticos alemães do século XIX. seu conteúdo poético e harmonia estão mais para o outro gênero musical (erudito). um samba. “Pizzicatti” dos contrabaixos. motivos. Ao lançar um olhar à obra. cujo principal representante é Tom Jobim. como não poderia deixar de ser. seja pela riqueza e originalidade da composição ou pelo acompanhamento de João Gilberto ao violão. sobre o qual só o tempo dirá de sua permanência no repertório. próprios do mundo erudito. n. No arranjo. O que ainda não sabíamos na época era que aquela música iria desencadear algo novo no cenário da música popular no Brasil. dentro de um âmbito particularmente envolvido com questões de mercado e cultura de massa. situando a obra na “imprecisa fronteira que permeia os dois gêneros”. onde sobressai a voz da cantora Elizete Cardoso. iniciando sua análise por “Chega de saudade” (Jobim/Moraes). sua tolice. a voz cálida e flexível de Elizete Cardoso e um registro sonoro dos mais perfeitos já produzidos no país”. o crítico consegue perceber “a fusão indestrutível de poesia e música. Disse Marcel Beaurfils a propósito do binômio verbo-música no “Lied”: “O Lied acha-se ligado a seu texto.83-89. cada instrumento tem uma intenção. 1959). Tínhamos evidências. Não podemos deixar de mencionar que Jobim estudou com professores da chamada música de vanguarda. Tudo se passa numa concentração de espaço e dos sentidos. Nessa melodia encontramos a “Wande- 87 . Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. o crítico faz um comentário de cada faixa do disco. as madeiras (que preparam o canto). O menor desvio da palavra torna-se sua ferida. uma unidade de escrita musical (“durchkomponiert”) que permite ouvir todo o microssulco qual uma única melodia distribuída entre várias partes.BOLLOS. figuras rítmicas das cordas no registro médio imitam o ranger do carro de bois: “Caminho de pedra”. Na primeira frase de sua crítica. um elo entre a alta poesia de Vinícius de Moraes e Goethe. Música erudita ainda não é. imagens. Piano. Paulo. sutil. acompanhado em seguida de cordas ou fazendo contracanto com a voz. erudita. por isso essa capacidade dele em situar-se no popular. Primeira indagação: será música popular ou erudita? Daquela possui todos os elementos de ritmo. também. A singularidade dessas partituras reside na ambivalência. assim. a harpa e o violoncello (em pizzacato). sem que o plano artístico se veja afetado (OLIVEIRA. formando. de que o crítico realmente tentou compreender a obra. colorido. Acreditamos que essa música popular nada mais é do que uma nova tradição da música popular brasileira com características eruditas. menos o primarismo do conteúdo poético. Per Musi. ela não recebe qualquer análise do crítico. A harmonia. quando abre a faixa. seu impudor. portanto. a margem de liberdade reaparece. aí nenhum artifício é mais possível. desse modo. todavia. imagens. defectiva e rudimentar. Texto e som: tudo é gravado. introduzindo o ouvinte à “Serenata do Adeus”. 2010. ao mesmo tempo que propõe uma leitura construtiva sobre a suposta fronteira entre o erudito e popular. Oliveira profetiza sobre a dupla Jobim-Vinícius. Canção nostálgica. uma balada grave e emocional. entre outros. com acompanhamento leve. do ambiente erudito da música ou do popular. E para conseguir fazer uma análise do disco cercou-se de seus conhecimentos teórico-musicais para conseguir propor uma compreensão acerca da obra. precedendo em alguns anos à temática samba/ morro da bossa nova do começo dos anos 1960.BOLLOS. Não temos dúvida de que o crítico tem conhecimentos musicais. tem uma introdução com flautas.. de um supremo desconsolo. percussão em destaque. Apesar de tentar evitar equiparações entre obras definitivamente incorporadas ao patrimônio artístico universal. Já a interpretação de “Modinha” (Jobim/Moraes) de Elizete Cardoso só é comparável à de Elis Regina em Elis & Tom (1974).22.. 1959). O que o crítico escreve como “discreta percussão” são vários acordes arpejados que o piano faz interpondose à voz de Elizete Cardoso. ao comentar cada música. não recebe acompanhamento de seção rítmica. à distância (OLIVEIRA. p. por assim dizer. enquanto que a trompa é o instrumento que imita o ranger do carro de bois. 1959). A obra de Vinícius-Jobim é um marco da música brasileira contemporânea (Oliveira. que Oliveira se cercou de conhecimentos sobre a canção alemã Lied para fazer um paralelo com o disco de Elizete Cardoso.83-89. crucificado a uma ilusão que é só desilusão. que dá o título à coletânea. com acompanhamento de bateria. imprimindo um ritmo cadenciado. numa rítmica persistente e sincopada. Para o crítico: Chegamos à “Modinha”. L. para finalizar seu texto. aos espaços infindos e solitários: “Vou caminhando com vontade de morrer. mas um arranjo farto de instrumentos orquestrais.. de uma intensidade expressiva que desafia qualquer descrição (OLIVEIRA. que é essa qualidade que deve ser valorizada em um profissional do jornalismo musical e é tema de pesquisa desta autora (Bollos. De certa forma. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. E parece que o tempo acabou mostrando que o crítico tinha razão. Breve concisa na forma. de caráter impressionista. sutil. não destoa do caráter conciso. como o próprio Vinícius de Moraes escreve que o disco é composto por sambas e canções. porém um de cada vez. 1959). “Não! Não pode mais meu coração viver assim dilacerado. construtiva. contrabaixo e piano. o arranjo leve e inovador de Jobim destoa dos arranjos pesados da época. anda suavemente. seguindo com sua análise: “Luciana” apresenta um tempo de valsa. Rica harmonia das cordas. visto que o próprio crítico se indaga de onde provém aquele disco. propondo uma escuta atenta. rung” dos românticos alemães. violão e percussão. A música como que move-se. Per Musi. predomina o violão. No instrumental. 2010. E. depois da exposição do tema. Jobim traduziu perfeitamente o texto de Vinícius. compondo bem a interpretação da cantora com a poesia e.. Que a ninguém iluda o titulo despretensioso. trazendo o disco para o universo clássico. Canção embaladora. moderno. O que nos surpreende é que ele.” Ecos da “Winterreise” schubertiana numa paisagem tropical brasileira?” (OLIVEIRA. Enquanto “Serenata do adeus”. impensável para os padrões atuais de crítica musical. “Vida bela”. de matizes africanos” (OLIVEIRA. “soa quase folclórico em seu modalismo. para o crítico. esta canção destoa das outras composições do disco. finalmente em “Estrada branca” (Jobim/Moraes) Jobim acompanha a cantora ao piano. seja pela interpretação grave e intencional de ambas. a “Canção do amor demais”. Palavra e música dão-se idealmente as mãos. quase nor- 88 destino. Aliás. mas acima de tudo.. o clássico ¾. e que não são poucos. Apesar de ser um sambacanção. Em “Outra vez” (Jobim) João Gilberto conduz o acompanhamento da música ao violão. o conteúdo poético é antes trágico. ao sustentar todo um edifício harmônico. reticente é “Medo de amar”: “Vire esta folha do livro e se esqueça de mim. Belo Horizonte. ter conhecimentos musicais que o ajudem a entender a mensagem da obra. não basta somente escrever bem. sua análise era bastante diferenciada? Acreditamos que para escrever críticas jornalísticas na imprensa. pois a parceria Jobim/Vinícius tornou-se uma das mais importantes obras da música popular brasileira . o violoncelo funciona magnificamente como apoio da linha melódica. em que a voz de Elizete Cardoso compõe o arranjo de forma primorosa e envolvente. “Janelas abertas” realiza-se através de belíssima poesia. Novamente o crítico faz analogia ao Romantismo alemão. Em “Janelas abertas” (Jobim/Moraes). Como dar conta de uma obra sem o conhecimento específico de música? Vimos. 1959). Os acordes menores que se repetem dão essa ideia de modalismo que o crítico escreve.. Mui apreciado tornou-se “Eu não existo sem você”. 1959). aliás. Para ele. de sambas e canções. Já em “Caminho de pedra” (Jobim/Moraes). já em “Medo de amar” (Moraes) o arranjo torna-se mais denso. Sobre fundo musical reticente. cativeiro e libertação da alma. “As praias desertas”. consegue compor o instrumentário de cada faixa magistralmente. temos novamente um samba-canção de caráter pré-bossanovista. será que não poderíamos afirmar que também para os padrões de crítica musical da época (1959). 2007). . 28/02/1959). “sobre o qual só o tempo dirá de sua permanência no repertório”. a terceira faixa. com canções da parceria Baden Powel/Vinícius de Moraes ou mesmo Tom Jobim (“O morro não tem vez”).” Qual segunda voz. H. sentido e dolorido da precedente composição. n. dolente. Canção praiana. Nas palavras de Veiga Oliveira: “retornamos à natureza. paralela e subjacente ao canto. ao ponto das palavras expirarem em melismas imponderáveis. o violoncelo revela a infinita riqueza de suas possibilidades. o violão é presente durante toda a música desde a introdução com a flauta. acima. esses arpejos são colocados como sussurros. vários instrumentos se interpõem e tocam a mesma melodia da voz. proporcionando diferentes timbres ao arranjo. este último faz contracantos com a voz durante toda a música. repleta de luz e sombra.” (OLIVEIRA. com apoio de “pizzicatti” dos contrabaixos. valsa brasileira. esta faixa é um samba-canção. Pensamos. a caminhada infinda. Aliás. Aqui. Veiga Oliveira assertivamente afirma: Por fim. “Outra vez” é um samba-canção com violinos em contracanto. Rio de Janeiro: Lumiar. Antônio Carlos Jobim: uma biografia. sobretudo musicais. Antônio Carlos. Tese de Doutorado. Caetano. o que colabora para a boa compreensão deste dentro do campo jornalístico. tanto do ponto de vista histórico quanto estético. 3. Paulo. PUC-SP. Texto da contracapa do disco Chega de saudade. Desde 1999 é professora da Faculdade de Música Carlos Gomes onde leciona piano popular. 1958. Áustria (1996) e Bacharel e Licenciada em Letras (USP. p. Tom Jobim. Música Hodie. 2007). Per Musi. propondo um olhar atento às invenções e inovações que estavam surgindo. Belo Horizonte. O Estado de S. três grandes mentores do movimento musical em constituição estavam juntos no mesmo projeto. 2007) e em várias unidades do Sesc. Contemporânea. L. Fernando Corrêa Quarteto. Canção do amor demais. entre outros. CABRAL. 10. 2002. autor de letras e de várias músicas. 28 fev. Sérgio. de modo geral. Franca e Rio Claro. Rio de Janeiro: EMI-Odeon. Fernando Corrêa e Sérgio Schreiber) com o qual foi um dos grupos premiados pelo ProAc da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Canções e modinhas nossas.22. 1965. onde palavra e música dão-se idealmente as mãos. FT 1801. Mas. Bossa Nova e Outras Bossas: A Arte e o Design das Capas dos LPs. 4. Certidão de nascimento III. 2007. Diário Carioca. Orquestra Sinfônica de Santo André e Duo Fel. Elizete. Literatura de Violão. demonstrando que sambas e canções podem ser levados a sério. JOBIM. Referências BANDEIRA. FT 1801. MORAES. por Veiga Oliveira ser um musicólogo e por atuar na imprensa escrita como crítico de um dos mais importantes jornais brasileiros na época. ________. Festa. Chega de saudade. Charles. o jornal O Estado de S. Na capa do disco aparece ao lado do nome de Vinícius de Moraes o termo poesia ao invés de letra. Poucos anos depois o movimento bossanovista viria a se tornar um sucesso internacional sem precedentes na história da nossa música. da mesma forma no seu texto da contracapa do disco. Coralusp e Ruy CastroSabá Quinteto. Vinícius de Moraes e João Gilberto (como músico). CASTRO.BOLLOS. BOLLOS. Rio de Janeiro: EMI-Odeon. porque. Manuel.83-89. possam ser avaliados em Canção do amor demais. 1987). principalmente. 1955. Como pianista já se apresentou com Al aíde Costa. O primeiro por ser um dos mentores do disco. Ruy. Festa. GAVIN. 2010. n. “Canção do amor demais”. no Projeto SESI Música (Araraquara. Rio de Janeiro. Foi professora de piano popular do Festival de Música de Ourinhos (2005) e do Curso de Férias de Tatuí (2007). Tem publicado diversos artigos em revistas (Opus. despertando interesse em conhecer esta nova obra. Já Oliveira impõe à crítica musical um olhar respeitoso diante do disco. 1958. H. CARDOSO. GILBERTO. música e interdisciplinaridade e Faculdade de Música Carlos Gomes). João. 89 . n. Revista da Música Popular. ed. mas também pela representatividade que tem diante da cultura brasileira. Não por acaso esses dois textos de Vinícius de Moraes e Veiga Oliveira são colocados lado a lado neste trabalho a fim de que vários aspectos. Texto na contracapa do disco. Paulo. Ambos perceberam a relevância do disco. Revista Comunicação & Sociedade. José da Veiga. Chega de saudade. Liliana Harb. Rio de Janeiro. Mestre e diplomada em Performance / Piano Jazz pela Kunst Universität Graz. Mais do que o disco de apresentação da bossa nova. entre outras) e livros (Ensino. RODRIGUES. Ambos demonstram que a fronteira existente entre o popular e erudito fica menos evidente por conta do alto grau composicional das canções e pelos arranjos assinados por Jobim. Considerações Finais Tanto o texto de Vinícius de Moraes na contracapa do disco quanto a crítica de José da Veiga Oliveira para o jornal O Estado de S. com rigor e leveza. Um exame da bossa nova pela crítica jornalística: renovação na música sob o olhar da crítica. São Paulo. harmonia popular e prática instrumental pedagógica. 1959. Paulo reforçam a importância desse disco de Elizete Cardoso para o desenvolvimento da música popular brasileira. 1997. Com o Quarteto Imago (com Renato Correa. 1959. 1CD. Liliana Harb Bollos é Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP. out. É professora de harmonia popular e percepção no Conservatório de Tatuí e é professora de história da música popular e pianista correpetidora da EMESP Tom Jobim. Watson Clis e Fernando Corrêa) já atuou no Festival de Inverno de Ouro Preto (2007). 1959. São Paulo: Companhia das Letras. São Paulo: Viva Rio/Petrobrás. 29 jan. afinal. por emergir justamente no momento anterior que o fenômeno bossa nova. É integrante do Quarteto Sonoro (com Daniel Allain. 2005. língua portuguesa. Canção do amor demais é o marco que colaborou para renovar a música popular brasileira. Vinicius. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. 1 CD. OLIVEIRA. Mark Murphy. Suplemento Literário. uma espécie de unidade orgâRecebido em: 27/05/2009 . melodia e arranjo faz brotar questões sobre a classificação dos gêneros. obra e fruição. favelas cariocas. suporte sonoro da canção. 2010. and most of all consider them as belonging to a vast social net. arranjo: componentes em tensão em O morro não tem vez de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes Silvio Augusto Merhy (UNIRIO. slums in Rio de Janeiro. reflexão. o modo como se combinam letra. A análise musical aprofunda a apreciação e transforma todo o processo em objeto. O conjunto letra – melodia é absorvido pelos consumidores com naturalidade. recompose. pode colocar em tensão a combinação letra e música e até mesmo deslocar o sentido do conjunto. tanto nas gravações quanto nas apresentações em público. jul. ele próprio transformado em um dos elementos da análise. Lyrics. ele pode escolher se ouve pelo prazer puro e simples ou se o deixa de lado para PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. Transformar música em objeto de análise caracteriza-se por ser atividade restrita a um grupo qualificado de pessoas. RJ) simerhy@globo. Some recordings of O morro não tem vez by Tom Jobim and Vinicius de Moraes disclose contradictions and tensions in what is called Bossa Nova and make it a permanent question. A análise pretende isolar o objeto e. Per Musi. . Tom Jobim. as a kind of song frame.Vinícius de Moraes. A.. A audição crítica é deixada de lado quando a fruição e o prazer prevalecem.. Through song recordings it is possible to decompose. Contudo.A fruição e a análise das canções populares Produzir música tem como principal finalidade proporcionar fruição e prazer aos ouvintes. melody. A gravação de canções populares permite prontamente decompor. samba.. 239 p.Aprovado em: 13/03/2010 . a análise e a crítica podem ser estimuladas pelo simples prazer de ouvir música. analisar. de certa forma. melody and arrangement poses the question of classifying genres.22. enquanto que na análise isso nem sempre é possível. em que o gosto está sempre presente. logo ao primeiro olhar. etc. Putting together lyrics. revelam desarmonias intensas entre seus componentes. componentes em tensão em O morro não tem vez. melodia. Os ouvintes muitas vezes nem se dão conta de que a produção de sentido sofre interferências com as desarmonias e desequilíbrios que ocorrem na produção ou nas performances das canções. pois implicam em uma atitude distraída que une música e ouvinte pelas sensações. Algumas das gravações de O morro não tem vez de Tom Jobim e Vinícius de Moraes revelam contrastes e tensões que tornam uma questão permanente o que se classificou como Bossa Nova. Antes ocultas ao prazer distraído. can break apart the former sense of the combination lyrics/melody. Ocasionalmente. arrangement: elements in tension in Favela by Antonio Carlos Jobim and Vinícius de Moraes Abstract: Records have made easier to think over a musical issue as a document.MERHY. analyze. A determinação de isolá-lo da audição crítica nem sempre é necessária. not exclusively as an aesthetic object. Belo Horizonte. diante do analista. não apenas como objeto de apreciação estética. n. Palavras-chave: canção popular brasileira. Quando submetidas ao exame dos estudiosos. recompor.90-98.dez. junto com a fruição. Bossa Nova. Keywords: Brazilian popular song. 1 . explicação. tensões que não são percebidas na simples fruição e que agora. interpretação. Musical arrangements.com Resumo: O registro fonográfico tornou mais fácil pensar uma produção musical como documento. Rio de Janeiro.. 2010 90 empreender processo de exame. extract components. as tensões agora surpreendem pela evidência.22. p.. etc. envolvendo ao mesmo tempo produção. melodia. O arranjo musical. arranjo. S. Tom Jobim. Letra. samba. distanciar o ouvinte. Vinícius de Moraes. Letra. Bossa Nova. No caso específico do analista. destacar partes e pensá-las como objeto pertencente a uma rede social de amplitudes quase infinitas. surgem nas canções populares. como ocorre na apreciação musical. A.22. A gênese social e o impacto cultural dessa partilha se perpetuam como marca da geografia. localizado exatamente em frente à sede do clube Bola Preta. com sucesso de público garantido. em suas muitas versões. como uma cidade partida. 3 . A menção à temporada de ópera e às escolas de samba aponta para situações extremas. concertos e ballets com grandes nomes internacionais e estrelas nacionais sempre fizeram parte da programação da música clássica no Rio.. fruto da partilha. o ambiente em que ocorre é desprezado. na produção artística – música de concerto/música do morro. o contraste entre música de concerto e samba carnavalesco é percebido como realidade indisfarçável.Modalidade de ocupação habitacional A ocupação dos morros é um dos problemas que se eternizaram e que se tornaram característicos do Rio de Janeiro. componentes em tensão em O morro não tem vez. E os valores. onde se localizam as Escolas de Samba..Divisão geográfica e social da cidade A cidade do Rio de Janeiro. tem sido vista. pode se tornar incompleta se. A caracterização das práticas musicais. aos seus compromissos profissionais. expressa os contrastes da cidade partida de forma menos explícita. de algum modo. muitas vezes. modificadas ou simplesmente encomendadas. Por isso consulta-se o modo de pensar e de pesquisar dos profissionais de Ciências Humanas e Sociais. Letra. importante casa de concertos. brindada por recorte montanhoso privilegiado. é compelida a considerar que a unidade orgânica de tal conjunto – a canção – não passa na verdade de ideia naturalizada que não se sustenta frente às suas condições de produção. sem que se corram riscos de resultados insatisfatórios. os ensaios do Bloco Cordão da Bola Preta podem ser ouvidos alegremente durante os intervalos dos concertos no Theatro Municipal. Alguns deles não carregam marcas tão óbvias de sua origem social. fenômeno tributário dos morros e das comunidades cariocas. A favela. O panteão de nomes do samba tem sido sistematicamente cultivado e reverenciado. na esperança de buscar auxílio para as explicações e análises. e o ambiente do samba. marcam comportamentos. A análise pode revelar como se dão estas conexões e que tensões elas podem criar. O descaso perdura no poder público e os moradores tiveram que se adaptar. O samba O morro não tem vez de Tom Jobim e Vinícius de Moraes de 1963 (MARCONDES. capital federal brasileira até 1959. conectados ao tipo de prática e ao perfil do grupo onde ela ocorre. centralizada na programação do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. modelo de urbanização caracterizado pela precariedade. embora tal desejo assombre constantemente muitos dos pesquisadores que têm a Música como objeto. Em âmbito mais amplo as canções se colocam numa rede de produção que ata o processo de criação às canções anteriores compostas pelo artista. em regiões geográficas (a cidade também é dividida em norte-sul). Per Musi. Hoje revitalizada.1 A cultura do Samba tem sido noticiada desde o princípio do século com relatos sobre as rodas de samba. sendo o asfalto e a favela uma das metáforas mais eloquentes dessa divisão. criando condições de sobrevivência que se naturalizaram através da geografia da cidade. Mas há evidências de que a realidade das relações sociais ou da vida em grupo não pode ser simplesmente omitida ou ignorada. 2010. A análise. Outro embate: a Sala Cecília Meireles. os desfiles carnavalescos e a formação das primeiras Escolas de Samba. arranjo. durante ou depois da composição das melodias.90-98. etc. No caso da música a divisão mais óbvia se exemplifica no contraste entre o ambiente da música de concerto.2 Na cidade do Rio de Janeiro. revelando forte tensão entre grupos humanos. As temporadas de ópera. montadas. 2 . em qualidade de vida. O público se interessa pelas assinaturas de temporadas onde os grandes nomes internacionais se somam às estrelas locais. p. mudando o sentido da música.MERHY. A uma partilha que se apresenta visível entre asfalto e favela (o morro constituiu-se como sinônimo de favela) correspondem outras divisões: em classes sociais. 1977). Belo Horizonte. embora favelas tenham sido plantadas também em regiões planas. podem ser agregadas. nica resultante da união perfeita entre a palavra e os intervalos musicais. modos de vida e até oposições sociais. Durante o período de carnaval. ao público. a música de concerto e o samba não se limitam a constituir apenas opções de programa cultural. Revelar por completo a rede social de relações em que as canções populares estão inseridas não é. É necessário que se descrevam os elementos característicos que estruturam o produto artístico considerando-se o seu impacto no mundo social. em universos culturais. melodia. Morro e favela são usados como sinônimos. 91 . S. Em alguns momentos. As funções dos elementos que estruturam a forma artística estão. de modo que a luta contra e em defesa das favelas já se consolidou numa história de décadas. nas estatísticas policiais. ao sistema de reprodução das artes em que ele está inserido. O samba e o choro podem ser ouvidos até nas calçadas em frente à Sala. n. na descrição. por exemplo. contudo outras situações revelam oposições mais dissimuladas e contrastes menos intensos entre os gêneros musicais. tradicional reduto do samba e da boemia carioca. no entanto. têm sido igualmente combatidos e defendidos. a Lapa concentra agenda significativa de shows de música popular. à manutenção da sua imagem junto aos pares. A divisão e a tensão são visíveis na arquitetura – favela/bairro. é o ambiente urbano predominante no recorte montanhoso. está localizada no bairro da Lapa. Em alguns aspectos o ambiente do Rio expõe o marco da divisão urbana. No nível mais imediato constata-se que letras de músicas podem ser criadas antes. por certo. uma aspiração deste estudo. no comportamento – violência/cortesia. à critica. Letra. condomínio construído no bairro vizinho do Leblon.112) de que o maior número de estudos foi conduzido por sociólogos estrangeiros. É um gênero musical exaltado como produto de prestígio para as “comunidades” e incensado como criação “autêntica” destes grupos. A gênese das favelas é explicada por diversas hipóteses. O autor se queixa (PINO. termo que atualmente designa os grupos sociais que habitam favelas. plantada ao nível do mar.6 Outra ideia de promover a cidadania utiliza a defesa da cultura local. em uma das regiões mais nobres da cidade. talvez porque. Em alguns deles prevalece a ideia de transformar as favelas em bairros. gás encanado. examinou. ONG localizada no bairro de Vigário Geral. Belo Horizonte. p. projeto político do governo federal. foram criados vários bairros nos subúrbios do Rio. Talvez tenha sido o primeiro prefeito a planejar a transferência dos moradores das favelas para condomínios ou bairros. Em certas canções elas têm o fito de propagar os valores éticos das “comunidades” e concorrer para elevar o mérito artístico das músicas. pretendia construir Parques Proletários Provisórios. Mas é a marca simbólica das favelas e morros cariocas que mais fortemente tem repercutido na sociedade e ganhado visibilidade nos meios de comunicação. componentes em tensão em O morro não tem vez.90-98. têm surgido em muitas outras cidades brasileiras. fontes documentais que lhe permitiram balizar a ocupação ilegal de áreas no Rio de Janeiro desde 1898. redes de água e esgoto. “Comunidades”. como o Grupo Cultural Afro reggae. a de transferir os moradores para condomínios especialmente projetados. em outros. XX. O interventor Henrique Dodsworth (1937-1945). mostrando a cidade ocupada por 661 favelas. no artigo Sources on the history of favelas in Rio de Janeiro. Uma das mais aceitas é a da expulsão dos moradores pobres. Nos bairros pobres a presença da autoridade do Estado pode ser sentida. professor associado do Departamento de História da Kent State University. No projeto. Talvez tenha sido o momento em que mais moradores foram transferidos em toda história da cidade. O samba. tem sido até hoje acusada de causar o despejo truculento dos moradores. inclusive por iniciativas governamentais. n. PINO (1997. A. .MERHY. Os estudos das demandas dirigidas pelos moradores das favelas ao poder público mostram deficiência na oferta de serviços como escolas. lançou a Cruzada São Sebastião. alguns deles ficaram bem famosos. dos valores dos próprios moradores das “comunidades”. ”barracão” aparecem em muitas letras de sambas e de outros gêneros de canções brasileiras. “Morro”. A Praia do Pinto4 era uma favela à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas. mesmo que de forma incipiente.. conhecida hoje pelo mais alto índice de desenvolvimento humano. etc. O prefeito Carlos Lacerda (1961-1964) desenvolveu projeto semelhante de transferência compulsória dos moradores de todas as favelas da cidade. Nas favelas do Rio. é historicamente associado à gente que vive nas favelas e nos morros cariocas. que pode ser absoluta durante certos mandatos. Contudo. Variados projetos com variadas feições culturais surgem em todos as localidades brasileiras. O condomínio existe até hoje encravado no bairro.A favela como tema A ideia de “resgatar a cidadania” através de projetos culturais tem sido muito difundida nas duas últimas décadas. objeto de grande polêmica. O deslocamento gradual das favelas dos morros para os subúrbios ainda está na ordem do dia. correio.5 A ideia de favela-bairro resulta da discussão de legalizar as favelas e tratar este modo de ocupação como modalidade não totalmente condenável. As condições de urbanização dos morros atestam a ausência do poder público. Em 1955 Dom Hélder Câmara.111) data 1940 como o marco de uma era explosiva no crescimento das favelas na capital federal. encarregada da Secretaria 92 de Serviços Sociais da Prefeitura. Entretanto. As comunidades que habitam as favelas e os bairros pobres dos subúrbios cariocas são estigmatizadas. nas favelas ela sempre se caracterizou pela ausência. usando o discurso da autenticidade para valorizar sua cultura. As soluções para os problemas de moradia no Rio de Janeiro têm sido encaminhadas por visões antagônicas: retirada (quase sempre truculenta) de moradores para condomínios especialmente destinados a esta população ou urbanização dos locais de ocupação. nomeado prefeito por Getúlio Vargas. ressentindo-se da falta de estudos de história social que descrevam como as favelas foram construídas e quem são seus moradores. não só no Rio. p. a preocupação da sociedade e das autoridades tenha se tornado mais aguda. arranjo. melodia. 1997. 4 . Não só os intelectuais e o governo como os próprios moradores fazem essa defesa. cientistas políticos e criminologistas. luz elétrica. ocasionada pela execução do plano de saneamento e urbanização do Governo Rodrigues Alves (1902-1906).. Per Musi. Em muitas situações a presença dessas palavras é percebida como proselitismo ou como retórica em defesa de determinados grupos sociais.3 Julio César Pino. A deputada Sandra Cavalcanti. a situação das moradias ilegais se mantém até os dias de hoje. A ideia de transformar as favelas em bairros se assumiu como projeto governamental a partir de 1994. “favela”. O artigo registra levantamento de 1991. A construção das avenidas Central e Presidente Vargas levou a demolições e impediu que os moradores pobres permanecessem na região saneada. neste período. No estudo observa-se que a maioria das fontes citadas é da década de 60 do séc. 2010. há tempos elevado por consenso a traço de identidade nacional. S. produzido pelo Instituto de Planejamento do Rio de Janeiro (IPLANRio). p.22. bispo de Recife e bispo auxiliar do Rio de Janeiro. telefone. para abrigar os moradores da favela Praia do Pinto. filme premiadíssimo de Marcel Camus lançado no Brasil com o título de Orfeu do Carnaval.O poeta autor da letra A letra do samba é o elemento que. manifesta de forma explícita a defesa cultural dos valores das comunidades do Rio de Janeiro. Belo Horizonte. o próprio compositor criou para Favela belo solo de piano no Lp Antonio Carlos Jobim.7 Alguns deles são tocados ainda hoje. 1977] na mesma faixa). Os integrantes do BR6 contam que o grupo nasceu sob a inspiração do conjunto vocal americano Take 6. com canções de gêneros variados sobre o mesmo tema. assistidos por ele. paulista do interior que chegou a São Paulo durante a década de 1950. O jornalista Sérgio CABRAL (1997. Per Musi. p. Ave Maria no morro. através da voz dos artistas. O autor da letra de O morro não tem vez. nas condições de gravação. Selecionamos algumas das que podem evidenciar as diferentes concepções e as contradições que colocam em questão a coesão da própria criação. o tema da ocupação ilegal para moradia transbordou das letras de canções e ganhou tons de radicalização e de conflito público de ideias entre os compositores e cantores. Letra.497) listou trinta e oito (38) lançamentos diferentes de O morro não tem vez. no Cd BR6 o samba aparece como um dos vocais do grupo. Há contrastes no perfil dos artistas de capa.MERHY. A letra do samba é um dos aspetos importantes da análise: O morro não tem vez e o que ele fez já foi demais Mas olhem bem vocês Quando derem vez ao morro Toda a cidade vai cantar Morro pede passagem Morro quer se mostrar Abram alas pro morro Tamborim vai falar É um é dois é três é cem é mil a batucar O morro não tem vez Mas se derem vez ao morro Toda a cidade vai cantar 6 . no Cd Garrafieira ele surge na voz de Mariana Bernardes. gravado e distribuído nos Estados Unidos e reeditado no Brasil pela Elenco com o título de Antonio Carlos Jobim. componentes em tensão em O morro não tem vez. A escolha recaiu sobre gravações que apresentam fortes contrastes. O cantor ganhou fama nos anos 60. tornou-se argumento da produção cinematográfica francesa L´Orfée nègre. ao carioca da Conceição. O Garrafieira nasceu com a marca de ser predominantemente instrumental e o BR6 exclusivamente vocal. Sua intenção foi então prestar uma “homenagem ao negro brasileiro”.11 mas tem a mesma fonte de inspiração. Ao ser examinada de perto. de Roberto Martins e Valdemar Silva (lançado em 1936). É possível compor lista numerosa. o músico do morro. O cantor Jair Rodrigues incluiu O morro não tem vez como faixa do Lp O samba como ele é. permanece inalterado em todos os registros.9 Os ritos de macumbas nas favelas. (samba carnavalesco lançado em 1953). na voz de Jair Rodrigues. o músico grego..O samba O morro não tem vez e a escolha das gravações O samba O morro não tem vez de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes se destaca na numerosa lista sobre o tema por características que variam de gravação para gravação. mas atuou de forma diferente. A criação e a produção de Orfeu da Conceição. A universalidade do drama foi enfatizada pelo teatrólogo Guilherme Figueiredo no programa da peça. na concepção e estilo dos arranjos. no lançamento e consumo da canção. n.. nos ambientes onde as canções populares eram produzidas.22. as dos Cds do BR6 (2003) e do Garrafieira (2004). não aparecem na lista de Sérgio porque foram feitas após a edição do seu livro. O samba tem sido gravado e regravado em diferentes épocas e em diferentes situações. Duas das gravações examinadas.A canção transfigurada O morro não tem vez não faz parte do Lp Músicas do Orfeu da Conceição. melodia. como Oscar Niemeyer para a cenografia e Tom Jobim para a música. a história de suas gravações mostra que o seu sentido sofre mudanças e se transforma sensivelmente. Examinamos aqui apenas seis deles. entre 1963 e 2004. p. encenada por atores negros. que associa Orfeu. não se envolveu com a canção popular brasileira da mesma maneira que Tom Jobim.10 A montagem da peça reuniu os nomes dos artistas mais importantes na época.1 (Agostinho dos Santos canta O morro de Tom Jobim e Billy Blanco de 1955 [MARCONDES. escrita por Vinícius. mas experientes.8 quando guiava um amigo.90-98. com Nelson Riddle e sua orquestra. Canções populares com esses temas foram produzidas já nas primeiras décadas do século XX. A. A associação da etnia às favelas e ao samba permanece ainda hoje no nosso imaginário de modo muito semelhante ao que ele concebeu. o escritor americano Waldo Frank. Envolveu-se também intensamente. Garrafieira e BR6 são grupos musicais formados por músicos cariocas jovens. A peça Orfeu da Conceição. de Herivelto Martins (lançado em 1942). quando se sentiu “particularmente impregnado pelo espírito da raça”. 7 . em visita à favela da Praia do Pinto. O texto foi entendido como uma elevação dos dramas da população negra do Rio de Janeiro à condição de “universalidade”. marcaram um episódio notável na biografia de Vinicius. O próprio poeta descreveu como nasceu a ideia da peça. como os sambas: Favela. 5 . arranjo. Barracão de Luis Antonio e Oldemar Magalhães. o poeta Vinícius de Moraes. 2010. S. algumas os expuseram até nos títulos. Antonio Carlos Jobim estreou como cantor na faixa Favela incluída no Lp The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim. the composer of Desafinado plays. tinham algo a ver com a Grécia clássica. apesar de ter surgido bem depois. no 93 . Elis Regina incluiu-a no pot-pourri final do Lp No fino da bossa – ao vivo – vol. Além de uma carreira teatral de sucesso. A primeira gravação foi feita em 1963. No início dos anos 60. outros já estão esquecidos. dentre os comentados. com a voz de Agostinho dos Santos. Jair Rodrigues e os compositores listados no seu Lp certamente não faziam parte deste grupo. componentes em tensão em O morro não tem vez. fez parte do repertório selecionado para o disco. marca ainda mais o contraste entre o clima expansivo do programa ao vivo da TV Record e o disco de 1974.14 É menos conhecido. A expressão vocal de Elis é cheia de bossa (o mote do programa).2..245). cujo sucesso resultou na criação do programa. o Zimbo Trio. Samba do avião. n. Despedida da Mangueira de Benedito Lacerda e Aldo Cabral. em parte pelos fãs que compravam discos de Sinatra e de Nat King Cole. tendo como artista de capa o compositor brasileiro. é anterior e foi criado por Tom Jobim para a Sinfonia do Rio de Janeiro. O samba de Elis. não restrito à classe média moradora da Zona Sul do Rio. abandonando-se . o tema do morro não parece ter sido escolhido como expressão de luta em defesa dos grupos sociais. p. com vocal feminino e naipe de metais.1. melodia.15 saiu de cena substituído por um acompanhamento ao violão. O pot-pourri 13 final de No fino da bossa . arranjo. O morro não tem vez é faixa do Lp O samba como ele é. Só danço samba. que transparece em todas as músicas. sempre habitou a Zona Sul.70) o sucesso de Jair Rodrigues está listado no mesmo capítulo em que estão resenhados os mais famosos títulos criados por Tom Jobim e Vinicius de Moraes: Garota de Ipanema. O ambiente da gravação é de festa e alegria eufórica e não de protesto. O morro não tem vez de Tom Jobim e Vinicius de Moraes é a oitava faixa. e contém repertório constituído basicamente de canções compostas por compositores não originários da Zona Sul do Rio de Janeiro. junto com os demais. mantendo o caráter suave. alegre e com muita bossa. liderado por Elis Regina e Jair Rodrigues.ao vivo – vol. sutil e delicada em todas as faixas. p. o qual lembra o clima intimista da Bossa Nova. criando contrastes quando a euforia toma conta do grupo. Deixa isto pra lá.. A tradução literal para o inglês – Somewhere in the hills – está registrada na Ipanema Music Co. Per Musi. S. gêmeo musical de O morro não tem vez. A sua participação no programa O fino da bossa. com trêmulos e outros recursos vocais. Foi uma escolha ambiciosa. cantado por Elis Regina. Mas o título escolhido para os dois discos produzidos nos Estados Unidos. por sua sonoridade contida. A faixa reúne. bastante lento em O morro. o estilo extrovertido de cantar. Tom assinou contrato com a gravadora e Nelson Riddle foi indicado para escrever os arranjos. o único que não chama a atenção para a harmonia. apogeu da Bossa Nova e seu maior sucesso. 2010. sem preocupação com sutilezas de dinâmica. pois Riddle era um dos mais conhecidos arranjadores americanos. Letra. dos moradores de favelas submetidos a condições de vida desfavoráveis. A dupla Jair/Elis gravou inicialmente o Lp Dois na Bossa. A maioria dos compositores que criaram os sambas lentos da Bossa Nova morava na Zona Sul da cidade ou circulava por ela. p. Lembra os arranjos estilizados dos programas de auditório das Rádios. lançado em 1964. No pot-pourri do Fino da Bossa.90-98. é considerado o primeiro rap brasileiro. que se apresentou.16 foi gravado e lançado nos Estados Unidos pela companhia Warner. responsável pelos discos dos cantores e cantoras mais famosos dos Estados Unidos e do mundo. A. mas faz também a defesa dos “valores do morro” não reconhecidos pelo “asfalto”. Elis Regina (1945-1982) mantém-se ainda hoje como o modelo mais almejado de cantora brasileira. que por vezes soam exagerados ou inade- 94 quados. O título do Lp O samba como ele é reivindica autenticidade (o samba como ele realmente é). No entanto. Durante o período em que atuou no Fino da Bossa na TV Record predominou. A introdução com cavaquinho pretende mostrar que a origem do samba está nos morros cariocas e continua na Zona Norte da cidade. Jair voltou a reviver o clima extrovertido das gravações de 1965 e apresentou O morro não tem vez em show para reverenciar o Lp Dois na bossa. Do programa surgiram três Lps intitulados No fino da bossa e comercializados até hoje. para um público mais diversificado e numeroso. Lucio Alves e Agostinho dos Santos. Meu fraco é mulher de Heitor de Barros e Conde e Feio não é bonito de Gianfrancesco Guarnieri e Carlos Lyra. Em 2000. proporcionou-lhe um público mais amplo. Não há cavaquinho na Bossa Nova. como convidado do programa O fino da bossa. O arranjador era também conhecido no Brasil. Está presente no pot-pourri pela voz de Agostinho dos Santos. O cuidado da produção. sem nenhuma semelhança com os sambas lentos e intimistas. tornado um ícone da Bossa Nova. que a acompanhou durante vários programas. Elis gravou com Tom Jobim um dos discos mais famosos e reverenciados da MPB: o Elis e Tom (1974). cujo título foi traduzido para Favela. Antonio Carlos Jobim. sociedade pertencente ao produtor americano Ray Gilbert e é mencionada por Sérgio CABRAL (1997. melancólico e. Tom Jobim. foi mesmo Favela.12 ao lado de O que se leva desta vida de Pedro Caetano. também não se caracterizava por um estilo intimista ou jazzístico e se expressava no palco com muita intensidade. O arranjo desta gravação é. Elza Soares. extrovertido. reafirma o gosto pelo samba e mostra a sua força de comunicação na televisão. Sua atuação no auditório da Record não nos faz nem de longe pensar com indignação na situação dos favelados do morro. O morro não tem vez. Contudo o conjunto oficial do programa. v. O Lp The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim. com a voz de Tom Jobim e arranjos de Nelson Riddle. Sua carreira artística é muito conhecida e muito difundida. não se assemelha ao ambiente das escolas de samba e dos compositores tradicionais dos morros do Rio. the composer of Desafinado plays e The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim. Belo Horizonte. em Los Angeles. No registro de Jairo SEVERIANO e Zuza HOMEM DE MELLO (1998.MERHY. além de O morro não tem vez.22. Dez anos mais tarde. com energia em excesso e muita movimentação de palco. da TV Record. O Zimbo Trio. estreado em maio de 1965 com grande e duradouro sucesso. foi gravado em 30/11/1965 e tem o “morro” como tema. O samba-canção O morro. em parceria. na sua interpretação. o compositor de maior prestígio. Zelão de Sérgio Ricardo e O morro de Tom Jobim e Billy Blanco. n. Tom Jobim se apresenta como solista no estilo de one-finger piano. Um dos objetivos da reedição foi sem dúvida a sofisticação e a qualidade da produção. mas tampouco contém as dissonâncias acrescentadas nas rearmonizações. Somewhere in the hills. Só que escapar do “samba de morro” não parece ter contrariado ninguém. enquanto que nas outras gravações predominam a reelaboração e a rearmonização. entretanto.Os elementos de tensão não evidentes A ideia da “influência do jazz” surge quase sempre associada a um estilo harmônico determinado. O trabalho de Riddle foi recebido com restrições. um ambiente jazzístico na progressão do final da segunda parte F7(#9) E7(#9) D7(#9). preferindo A7 Bb7 A7 Bb7.. O estilo instrumental desautoriza pensar em qualquer conexão possível com os versos do samba. Não há nenhuma menção ao jazz ou à Bossa Nova. A sua insatisfação com Nelson Riddle18 e a sua satisfação com o trabalho de Claus Ogerman revelam a face mais sofisticada da música brasileira. Nas duas gravações de Favela. A harmonia utilizada nos discos Antonio Carlos Jobim da Elenco e No fino da bossa com Elis Regina ainda mantém a relação diatônica com a melodia como predominante. IV grau do modo menor melódico com nota estranha ao acorde. que em certas regiões é local de moradias de privilegiados e não de necessitados. A crítica muito elogiosa na review de Pete Welding. também distante do “samba de morro”. um ano depois do elogiado lançamento da matriz americana com o título de Antonio Carlos Jobim. a aproxima do jazz. é um samba acompanhado por big band. não fazia parte do vocabulário de acordes da maioria dos sambas. mas se houve falhas não foi por desmerecer o “samba de morro”. A utilização do modo menor natural. mas soa exótico e distante. A progressão harmônica Am7 Em7 em modo menor natural. One-finger piano é um elogio porque se refere ao despojamento da execução. mas por desentendimentos quanto à estética bossanovista que deveria predominar. Belo Horizonte. O songwriter Tom Jobim e o letrista Vinícius foram deixados de lado. Ave Maria no morro de Herivelto Martins e Barracão de Luis Antonio e Oldemar Magalhães veremos que o estilo harmônico é outro. Talvez a canção brasileira. parece ao contrário bem mais jazzística do que a de Nelson Riddle. assinou a contracapa brasileira e Claus Ogerman tornou-se arranjador muito prestigiado por aqui. Nela se fundem o estilo jazzístico e a qualidade musical. aparentemente despretensiosa já proporciona. que proporciona à melodia um sabor modal através do uso do V grau menor Em7. O morro é o foco. Per Musi.MERHY. a harmonização mais simples é a de Claus Ogerman. com solo de piano de Tom Jobim e arranjos de Claus Ogerman.21 inserida no original e na íntegra. imaginada por Riddle. Letra. Os arranjos posteriores seguiram alterando a harmonia. p. Se examinarmos Favela. durante todo o disco. deixando notar um certo constrangimento. melodia. A harmonização. o resultado do Lp.17 foi lançado em reedição no Brasil em 1964. Considerando-se este dado. embora as relações profissionais e de amizade entre os dois o fossem. A. Esta afirmação não se aplica à gravação de Jair Rodrigues em que o elemento principal é a letra. apresentadas com arranjos de Claus Ogerman e de Nelson Riddle. mas concordou em cantar. A progressão final descrita aparece em todas as gravações. com a cadência em D7(#9). O Lp Antonio Carlos Jobim da Elenco.. que jamais surgiria ali. Refrescante porque é um dos álbuns mais cheios de lirismo. principalmente considerandose o proselitismo da letra. 8 . O grupo Garrafieira preferiu utilizar a harmonização A7 G7 A7 G7 A7 G7 A7(#9) Dm7 G7(13) C#m7 C7 F6 E7 Am7 Em7 Am7. O próprio produtor. tivesse semelhança com os modelos americanos de gravação dos grandes astros ou das canções românticas feitas para dançar. na contracapa. 2010. no Lp The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim. Aloysio de Oliveria. não é comum nas canções brasileiras gravadas na mesma época ou em épocas anteriores. arranjo. the composer of Desafinado plays.19 A letra brasileira de O morro não tem vez desapareceu na gravação e com ela sumiram as reivindicações. É esta a harmonização escolhida para 95 . a qual nos tem inundado no último ano. O título Favela permanece nos créditos. mais orquestral e harmonicamente mais elaborada.22. S. componentes em tensão em O morro não tem vez. um breve texto de apresentação para dar espaço à crítica da revista Downbeat. A harmonização que se ouve nas gravações é um dos elementos que geram tensão. Aloysio de Oliveira escreveu. que por ser instrumental. a mesma progressão escolhida pelo conjunto BR6. cuja qualidade está no puro “feeling”. A harmonia inicial abandonou o modo menor natural. A harmonia inicial do pot-pourri de No fino da bossa acrescenta o acorde E7 produzindo dissonância de nona aumentada com a nota Sol da melodia. completamente incorporada à melodia. No disco The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim a faixa Favela foi rearmonizada e sofisticou-se ainda mais.20 O texto elogia apenas o Tom Jobim melodista e instrumentista. a face que. Pete WELDING (1963) afirma que Este é o álbum mais ‘curiosamente refrescante’. Tanto que. O que se ouve em Favela. deixou a todos entusiasmados com o trabalho do arranjador e com o estilo instrumental jazzístico que predomina no álbum. mais encantadores e deliciosos que resultaram da onda da bossa nova. apreciada pelo próprio compositor. o autor do texto disponível na contracapa de Antonio Carlos Jobim da Elenco. requisitado tanto por Tom Jobim como por João Gilberto. de Roberto Martins e Valdemar Silva. instrumental. escapando tanto da Bossa Nova quanto do “samba de morro”. fala em “bossa nova movement”. para muitos. Tom Jobim teria se queixado. Curioso porque. É fácil entender que uma tradução literal poderia se afastar muito da ideia inicial de morro como sinônimo de favela e não como uma colina genérica. não teria sido dramático o abandono da letra na concepção do arranjo e da gravação americana de Claus Ogerman.90-98.Talvez o compromisso político de Tom Jobim com a luta contra as partilhas sociais injustas não fosse tão intensa quanto o do parceiro Vinícius. que harmoniza o início do samba no Lp Antonio Carlos Jobim. apesar disso. mantemos como real a ideia de que a canção possui uma unidade orgânica de pertencimento recíproco: aquela letra pertence àquela canção e aquela canção àquela letra. O original italiano E po che fà pouco se conhece.Considerações sobre uma prática naturalizada A naturalização das categorias musicais ocorre como um processo constante. A cantora Marisa Monte ficou famosa com o pop Bem que se quis do italiano Pino Daniele com versão de Nelson Motta. outras durante décadas. Algumas canções estrangeiras tornam-se grandes sucessos e. 2010. De todas as gravações já mencionadas. esta é a mais movimentada e animada. Algumas são construídas durante anos. convocou a cavaquinista e vocalista Mariana Bernardes para o solo vocal de O morro não tem vez. porque a sensível Sol # não é usada na melodia. O feeling é.1. o seu casamento com a defesa dos ideais sociais. compõem melodias para letras já existentes. sem sobressaltos ou contrariedades. a transcrição apresentada na coleção de Almir Chediak Tom Jobim (JOBIM. é o componente mais importante. O gosto pela harmonia sofisticada está bastante difundido e permite. criado em 1917 como peça instrumental. não só os arranjos são bem distintos. p. O arranjo de André Protásio mantém a tendência de valorização da harmonização com acordes alterados. são gravações que reproduzem climas bastante distintos. bastante valorizada pelo Garrafieira. Letra. O solo de piano se ambienta em um espaço no qual a “comunidade” do morro. que valoriza os instrumentistas. O que chama a atenção não são as situações eventuais.22. O Cd. a ideia de organicidade ganha existência e age sobre a canção dando vida a um produto “pronto”. não dispensou a presença da letra de Vinícius de Moraes na faixa gravada. componentes em tensão em O morro não tem vez. A. Teria a linha melódica predominado sobre a letra e absorvido toda a atenção do arranjador americano? Parece ser um divórcio que se acentua ainda mais na gravação do Lp Antonio Carlos Jobim ao piano. Seguem o modelo de valorização da harmonia e das notas estranhas aos acordes. Sabemos que o choro Carinhoso de Pixinguinha. p. No entanto. porque a identifica e restringe as possibilidades de adaptação ou modificação dos versos. Belo Horizonte. O morro cantado pelo Garrafieira e pelo BR6 não causa espanto nem é desconcertante. S. Acionada. Podemos fazer uma longa lista de situações semelhantes ou contrastantes com esta. jamais se sentiria em casa. criado pelo regente Marcos Leite. são apropriadas pelo público como brasileiras. porém. O arranjo ao vivo para Elis Regina No fino da bossa parece ainda acreditar que o canto do morro vai descer para o asfalto. em movimento oposto. culturais ou educacionais. imprimido pelos instrumentistas do grupo. recebeu apenas em 1936 a letra de João de Barro que conhecemos. arranjo. Talvez por essa razão sejam menos autorais e mais instáveis ainda que os orquestrais. que profetiza que ”Quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar”. v.22 Muitos compositores oferecem suas músicas para poetas colocarem letras ou. acompanhada por mil tamborins. Nas duas gravações. Há certamente quem possa pensar que a favela ganha “universalidade” quando inspira música capaz de sensibilizar pessoas tão distantes quanto um crítico exigente da revista Downbeat. que apagamos da memória em favor da ideia de uma unidade orgânica natural.. 96 sendo tocada em andamento mais rápido que as demais e tendo o swing como elemento importante. garantem para o samba a possibilidade de ser ouvido de outra maneira. Embora haja semelhança quanto à valorização da harmonia e quanto ao gosto por acordes alterados. tocado na trilha sonora da novela da Rede Globo O salvador da pátria de 1989. O balanço apreciado na época em que se gravou No fino da bossa fez um longo percurso até o swing proposto pelo Garrafieira. é preciso assinalar que a sua conexão plena com a melodia e a harmonia pode ser questionada.. O estilo predominante nas harmonizações tende a causar a impressão de que a harmonização “esqueceu” a retórica da letra. [1990]. Já no arranjo de Nelson Riddle para The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim não há nenhum tamborim e a percussão e os metais soam pesadamente sem nenhuma conexão com a letra. BR6 cultiva o gosto pelas alterações de maneira semelhante à que o grupo Os Cariocas o fez nos anos 50 e 60.90-98. mesmo dispondo desta informação. melodia. mais adequado aos clubes dançantes do que à paisagem das favelas. A letra é o elemento mais estável da canção. 9 . Do ponto de vista dos ouvintes parece aceitável que uma harmonia bastante sofisticada possa sustentar poesia tão cheia de proselitismo. As versões em português são às vezes as únicas gravações conhecidas pelo público. grupo de grande prestígio nas últimas décadas.89). A harmonia. sem dúvida. e o andamento mais rápido. . Sob este ponto de vista. desenvolvida pelos Cariocas e retomada pelo Garganta Profunda. São as duas principais referências na elaboração dos arranjos vocais. mesmo quando se percebe o balanço da bossa aflorando na voz do solista Eduardo Braga e a batucada ilustrando no início da faixa a origem do samba. Os arranjos vocais têm destinação prévia específica. Garrafieira se caracteriza por cultivar o samba urbano. A tradição dos grupos vocais na canção popular brasileira é tributária dos grupos americanos e de Os Cariocas. O contraste entre o estilo harmônico e a letra é evidente.MERHY. depois de receberem a versão em português. mas o fato de que. sobretudo na forma instrumental. como a maneira de tocá-los também. n. Na prática ocorre que a canção é criada entre percalços reais. São direcionados desde a concepção para o grupo que vai cantá-los. a dominante E7 é pouco efetiva. Em todos os padrões descritos. Per Musi. sancionadas pelas estruturas políticas. de modo que o tipo de conjunto funciona como um dado previamente conhecido. As cordas não lembram nem o samba nem o balanço da bossa. transformado num colaborador a soldo. Nas gravações de O morro não tem vez os arranjos foram determinantes e interferem significativamente no sentido que se produz. 32. Nem o próprio compositor. Antonio Carlos Jobim. pois a revisão dos songbooks. o artista que se anuncia é o cantor e não o arranjador. ed.. Per Musi.(org). é claro. CALDEIRA. 97 . A história contada por quem viu. pois a dimensão autoral se esvai após a performance.Paulo: Arteditora. passou. Paulo: Lumiar. A preocupação com a “preservação de valores autenticamente brasileiros”. pelo menos o suficiente para não perturbarem o prazer dos ouvintes. A ênfase reiterada dos arranjos nas notas estranhas à harmonia diatônica não fez com que se deixasse a canção de lado. a eles se atribui função autoral. É o cantor que dá nome ao disco. Pittsburgh: The Latin American Studies Association. pelas suas mãos. Elenco ME-9. Almir Chediak. com a “música de raiz” e com a “identidade do samba” ainda não abalou o gosto por O morro não tem vez. 3 pp. se aceita com tranquilidade a sua condição de categoria técnica e de trabalho derivado. Não há do que se queixar. Julio C.22. A. Org. Eles são os artistas e não o arranjador. Paulo: Editora 34. SEVERIANO. 1998. S. Rio de Janeiro: Lumiar. WELDING. [1990]. S. José. 1997. Se for escrita uma história da recepção das suas gravações talvez se revele mais claramente como estas lutas de representação se mantêm apaziguadas. n. MARCONDES. Ele permite que os arranjadores ajam como compositores de fato. 1977. S. Ao contrário. p.MERHY. cujas definições disponíveis ainda são insuficientes para dar conta de suas especificidades e para caracterizá-lo como prática distinta da criação musical e da composição. M. Enciclopédia de Música Brasileira. O ponto de vista que considera que o arranjador é um técnico coloca em risco a figura do artista criador. Antônio Carlos Jobim. personagem social muito valorizado. Vol.. que contém rearmonizações da canção. Belo Horizonte. 1999. 2 v. O poeta da paixão. Rio: Companhia das Letras. Pete. Tom Jobim. CASTELLO. São tratados como trabalho derivado e não como obras autorais autônomas. O samba continua sendo gravado com sucesso e continua seduzindo músicos e ouvintes que desprezam todas as contradições e incongruências. 2. associado ao compositor das canções. Latin American Research Review. parece ter reclamado das transformações. A canção – unidade de melodia e letra – é resultado de naturalização tanto quanto o é o arranjo musical. divulgação e consumo. JOBIM. PINO. componentes em tensão em O morro não tem vez. melodia. A canção no tempo. É possível a aceitação de grandes contrastes no perfil dos artistas de capa e na concepção e no estilo dos arranjos. No. mas antes parece ter estimulado as regravações. sendo sua função restrita a esse momento. Sources on the history of favelas in Rio de Janeiro. Jorge (org). No momento da produção de um disco. São Paulo: Mameluco.90-98. Tom. corporificam o momento da produção musical. No entanto. que se renovam desde 1970. que. 2010. Zuza Homem de. 2v. 1963. escritas ou não. elementos que certamente determinam o tipo de produto que se quer distribuir. Referências CABRAL. Sérgio. Texto na contracapa do disco. S. 2. Os arranjos musicais são de fato composições porque são criações. Também são bem absorvidas as estratégias de gravação. 2008. Os produtos dos arranjadores ainda não se definiram como obras autorais porque só interessam aos instrumentistas que os executam. naturalização que afasta a possibilidade de inconformismo ou de luta efetiva pela condição de obra artística e por um lugar no âmbito da arte musical. 1997. 3 v. Song book Tom Jobim. arranjo. nem sentenciou sua rejeição. É a melhor comprovação de que a existência de contrastes e tensões entre elementos de uma mesma peça pode não causar estranheza nem se transformar em fator de rejeição. Jairo e MELLO. 111-122. ed. deve ter apreciado as harmonizações. O arranjo interfere na produção da canção como obra de criação e tem força de significação para produzir sentido e modificar a própria canção. Letra. depois se fixou nos Estados Unidos. 8 A declaração aparece no programa da montagem de estreia da peça. “a mais conceituada revista musical dos Estados Unidos. e que nós temos o privilégio de oferecer a você. REGINA.gov. _____. Arranjador. concertos e ballets que incluem artistas internacionais se formou desde o momento da inauguração do Theatro. nascido na Prússia (hoje parte da Polônia). Belo Horizonte.22. Refreshing. 1963. 1994.162 L.. 7 As datas estão todas indicadas no livro de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. 2004. 11 Long Play 10”. the composer of Desafinado plays. (c. componentes em tensão em O morro não tem vez. GARRAFIEIRA. Dean Martin. The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim. Atualmente. 10 O cineasta francês Marcel Camus transpôs Orfeu da Conceição para o cinema com o título de L’Orphé Nègre e teve uma premiação triunfante em 1959. 9 José CASTELLO (1999. a Orquestra Sinfônica do Theatro teve como solista o tenor italiano Tito Schipa.153-154) conta que o próprio Pixinguinha informou a data de 1917 como sendo o ano da composição. Ele produziu arranjos para vários cantores como Frank Sinatra. Cd. O compromisso de temporadas de óperas. A. 500 anos de folia – vol. Ainda na UNIRIO. p. Elenco MEV06.V1.MERHY. Mestre em Música pela UFRJ (1995) e Doutor em História Social pela UFRJ (2001). Possui proficiência em russo. Trama T500/196-2. Ella Fitzgerald. nota 8) 5 Informações completas no site da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. entre outros. Per Musi.1. representando a França. Verve. produzido pela gravadora Continental. p. RODRIGUES. A peça instrumental teve muitas gravações. Lp Philips (P 632. que idealizou e executa o projeto favela-bairro. _____. (www. because it is one of the loveliest and most deliciously lyrical albums to result from the bossa nova wave with which we’ve been inundated last year. Luís Chaves no contrabaixo e Rubinho Barsotti na bateria. Atua no ensino de música principalmente com Harmonia de Teclado. sob a regência de Francisco Braga. 18 Sérgio Cabral conta que a expectativa de Tom Jobim foi frustrada. foi Diretor do Instituto Villa-Lobos e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Música. plays what amounts to one-finger piano. S.242) 19 Ele fez os arranjos do LP Amoroso de João Gilberto.2. 2000. p. Jair. arranjador e orquestrador cuja carreira se expandiu a partir do final dos anos 40. trabalhou na Alemanha. Judy Garland. francês. BR6. (1997. p. (1997. sendo a primeira a de Orlando Silva em 1937. Cd.11-V030. 2003. n.447). é Professor Associado II na UNIRIO. Ele não se entendeu musicalmente com o arranjador americano. for during the entire length of the disc.162 L). 1963.514) 15 O Zimbo Trio é um conjunto instrumental brasileiro surgido em 1964 e formado originalmente por Amilton Godoy ao piano. Nat King Cole. p. Biscoito Fino. Odeon MODB 3056. no seu concerto de estreia. _____. Bacharel em Piano pela UFRJ (1968).Velas BR . descreve também a visita à favela. Biscoito Fino.ao vivo – vol. Garrafieira. _____. (1921 – 1985) foi um conhecido bandleader americano. who is the featured soloist.) é um músico de origem alemã. Antonio Carlos. Peggy Lee. 1965. Jr. 2 Paulo da Portela é personagem principal nas histórias do samba. Ele compõe verbete da Enciclopédia de Música Brasileira onde se descreve com muitas cores a sua participação nos desfiles carnavalescos e nas rodas de samba do subúrbio de Osvaldo Cruz. seu biógrafo. inglês.br/ habitat/favela_bairro. v. 1963. melodia. 3 Interessante a introdução e a reportagem sobre a revolta da vacina no livro organizado por Jorge CALDEIRA (2008.1. p. que considerou este disco um dos melhores da temporada. Antonio Carlos Jobim. Discografia BR6. 13 Pot-pourri é sinônimo de medley.htm) 6 No site do Grupo Cultural aparecem os dísticos “Música para combater a violência” e “Arte para transformar a realidade”. contudo após receber a letra em 1936 o número de gravações cresceu muito. 98 . Jobim. [1965]. espanhol e noções de grego. O samba como ele é. lançado em 1956..f.” 21 “O texto habitual de contracapa que aqui deixa de figurar.” 22 Severiano (1998. 17 Claus Ogerman (1930 . 16 Nelson Smock Riddle. Notas 1 O Theatro Municipal do Rio de Janeiro informa no seu site que. Elis. Silvio Augusto Merhy é Bacharel em Direito pela UFRJ (1968). 14 1954 é a data indicada por Sérgio Cabral para o disco Sinfonia do Rio de Janeiro. 4 A favela da Praia do Pinto teria inspirado Vinícius de Moraes a criar a peça Orfeu da Conceição. Foi uma excelente divulgação para a música de Tom e Vinícius e para a canção popular brasileira. 20 “As the Schwepps man woud say. Letra. é substituído neste caso pela transcrição da crítica de “DOWN BEAT”. alemão.125). Curious. No fino da bossa . regente e compositor. Tornou-se muito conhecido no meio musical brasileiro ao compor arranjos para discos de Tom Jobim e de João Gilberto. Antonio Carlos Jobim. a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Warner WS 1611. arranjo. 12 LP Philips P 632. 2010. Transcrição da Canção e História da Música Popular. this is a most “curiosly refreshing” album.90-98.rio. JOBIM. Antonio Carlos Jobim com Nelson Riddle e sua orquestra.rj. Elenco ME-9. termo mais usado hoje. RJ) calmada@globo. L. It is especially remarkable the ubiquity of the interval of the perfect fourth. no entanto. o que recebe ainda pouca atenção no âmbito acadêmico. Schenkerian analysis. which is embedded in several of the aspects of musical construction. O que PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. Recebido em: 27/11/2009 . análise schenkeriana. o que é em geral atribuído a dois tipos de preferências construtivas: pelo acréscimo de tensões nos acordes (nonas. C. de maneira a se ajustar apropriadamente às características dessa peça específica.1 Inúmeras canções de Antônio Carlos Jobim. . os acordes pertencentes à classe dos chamados empréstimos modais). Tom Jobim. Keywords: Chovendo na roseira. which reveal relationships that are unusual in a popular music piece. exigiu certas adaptações. Para tal.com Resumo: O presente artigo examina a canção Chovendo na roseira. and form. 2010 mais impressiona em algumas dessas peças. entretanto.dez. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana Carlos de Lemos Almada (UNIRIO. focando as relações estruturais aprofundadas existentes entre melodia.. É especificamente marcante a onipresença do intervalo de quarta justa. que recebe aqui algumas adaptações. 239 p. This was accomplished by using procedures of the Schenkerian analysis. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. é a existência de relações melódico-harmônicas “subterrâneas”. em comparação com a de outros gêneros da música popular brasileira (em especial.99-106. it is possible to observe a consistent and hierarchical integration among the several melodic-harmonic phenomena present on the musical surface and some of the internal layers. em todos os níveis estruturais observados. revelando relações inusitadas para uma peça de música popular. algo que não traz por si só qualquer novidade. infiltrado nos mais diversos aspectos da construção musical. Rio de Janeiro. o qual. Como resultado do processo analítico observa-se uma integração consistente e hierarquizada entre diversos fenômenos melódico-harmônicos presentes na superfície musical e em camadas estruturais internas. Palavras-chave: Chovendo na roseira. harmonia e forma.22. é frequentemente qualificada como “sofisticada”. a análise schenkeriana apresentou-se como o mais adequado método de abordagem.Aprovado em: 13/03/2010 99 . ancoradas em camadas estruturais mais profundas. por vezes também alteradas) e pela escolha de relações remotas entre estes e o centro tonal de referência (em especial. tendo em vista algumas características da referida canção (tais adaptações serão explicitadas no decorrer do estudo). reconhecidamente o principal compositor do gênero. From the analytical process.2 O presente artigo pretende examinar uma das mais peculiares estruturas melódico-harmônicas dentro da música popular brasileira: aquela que dá corpo à canção jobiniana Chovendo na roseira.ALMADA. here adapted for better adjustment to the characteristics of this specific piece. 2010. p. harmony. décimas primeiras e décimas terceiras. Introdução A harmonia da bossa nova. Chovendo na roseira by Tom Jobim: a Schenkerian approach Abstract: The present article examines the song Chovendo na roseira by Brazilian composer Antônio Carlos Jobim with focus on the deep structural relationships that exist among melody. in all structural levels considered. Isso é realizado através do método da análise schenkeriana.22. de Antônio Carlos Jobim.. n. formam um perfeito exemplo desse tipo de tratamento harmônico. Tom Jobim. o samba). jul. Per Musi. Belo Horizonte. Tal aspecto da melodia (saliente na própria superfície musical) é suportado pelo plano harmônico. L.1ˆ (na alternativa Ré maior). p. incorporadas às tríades diatônicas tradicionais.4 É precisamente tal aspecto que justifica a presente abordagem. Chovendo na roseira possui algumas características inusitadas dentro do universo bossanovista.5ˆ . na terminologia schenkeriana). é aqui ampliado para quinta (inversão intervalar da quarta).1 apresenta a seção A da canção e três sucessivas reduções analíticas. .1-b).1ˆ (no caso da opção pela centricidade em Lá) ou 5ˆ . propagando-se em sequência. Per Musi. ao contrário do que se observa em uma análise schenkeriana tradicional.12) e Mi e Si (c. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. após a qual segue-se um da capo (c. • Como se observa no Ex. em diferentes medidas.30-36). mas a um acorde de qualidade de sétima dominante sobre a fundamental Fá#. descrevendo também um intervalo de terça..e.6 • O Ex. C (c. • Chama também a atenção no superfície musical a onipresença da relação intervalar de quarta justa ascendente entre as fundamentais dos acordes em cada metade da seção.22. o que implicaria uma simples prolongação harmônica da fundamental à terça. em diferentes níveis estruturais.2 resume sucintamente toda a seção A.1-b. mutuamente conectadas em nítidas relações de hierarquia. seja ela 8ˆ . porém descendente (Lá-Fá#). Fica evidente na redução a existência de uma melodia composta. repetido nos c. a canção Chovendo na roseira apresenta um notável planejamento arquitetônico em várias camadas de significação musical.3-c.3ˆ . é nitidamente implícita.3-a uma segmentação simétrica dos 14 compassos da seção B em duas metades (c.19-22). a despeito do Sol# expresso na armadura de clave da partitura. como sua quinta. de acordo com as diferentes camadas consideradas: • • • 100 Uma evidente centricidade em Lá e a presença constante (na harmonia e na melodia) da altura Sol.2ˆ . como se constata no Ex.23-29 e c. No entanto. às assunções mais fundamentais da teoria elaborada por Schenker. sugerem uma organização harmônica modal (Lá mixolídio) para o trecho. em um nítido esquema de sequenciação estrita de modelo por intervalo de segunda maior descendente.1-22). Observa-se. apresentam-se aqui como elementos harmônicos estáveis (i. opto por deixar temporariamente a questão em aberto.3 Segundo o autor. B (c. Em vista dos desdobramentos futuros. No exame das demais seções a ubiquidade do intervalo de quarta será ainda mais enfatizada.6ˆ .8 Como se observa no Ex. embora não presente na partitura.1-18) e F#7 (sus4) (em alternância com F#7 entre os c.2ˆ .1-a.1-13) e uma coda (c.23-36).4ˆ . tanto nos aspectos melódico quanto rítmico. É possível subdividí-la em três seções: A (c. a partir de sua própria superfície.52-62). 2000). D7M9 e C7M9.9-10).3-b. cendente (Urlinie). Uma interpretação alternativa seria considerar toda a seção A como uma prolongação do acorde dominante de Ré maior. Sobre a análise do trecho é possível fazer as seguintes observações.ALMADA. É também interessante a organização harmônica da canção. O Ex. através da nota de passagem Si. em cujo âmbito a nota Sol$. C. A análise da seção B (c. o motivo melódico principal da canção. idiomáticos na bossa nova (assim como na valsa-jazz).7ˆ . Como será aqui demonstrado.3ˆ . das quais a mais importante e determinante para a justificação do emprego do método é que a peça a ser analisada apresente uma linha melódica composta por notas que se subordinem a outras.7 A primeira redução (Ex. compondo-se do nível superficial e de duas reduções. como é o caso da métrica ternária5 e de sua grande extensão (62 compassos). têm como objetivo prolongar os acordes principais em cada uma das duas metades da seção. que sugere (ao menos no plano superficial) dois pólos modais (nas seções A e C) intercalados por um trecho firmemente tonal (seção B). respectivamente. o que se constata através da proeminência de acordes de qualidade dominante com quarta suspensa:9 A7(sus4) (alternando com A6 entre os c. Observações: • É fácil perceber no Ex. tensões (nonas) e outros acréscimos aos acordes (sextas e quartas. Belo Horizonte. comenta sobre a necessidade de que o próprio objeto de estudo forneça condições propícias que justifiquem tal opção metodológica. ao contrário.99-106. uma prolongação da nota estrutural Lá por quase toda a seção.4ˆ .3. estas em substituição a terças). seguindo-se de um movimento ascendente em direção a Dó#. cujo eixo é a própria Kopfnote Lá. formada por duas linhas escalares descendentes que. e que isso possa se observar em relações recursivas. em um artigo online no qual examina o emprego da análise schenkeriana em peças do repertório de música popular (GALLARDO. Cristóbal Gallardo.23-36) é apresentada no Ex. o salto de quarta justa descendente (ver Ex. tal nota não inicia uma linha diatônica des- É consideravelmente significativa para a estruturação global da canção a presença do intervalo de quarta justa descendente – justamente o motivo melódico que inicia a peça – entre as notas Lá e Mi (c. Como se percebe no Ex. 2010. a tal progressão melódica de terça ascendente Lá-Dó# corresponde um movimento espelhado na linha do baixo. revelando o interessante esquema de simetria espelhada. Deve-se atentar para o fato de que o Dó# encontra-se associado não ao acorde inicial (I grau em Lá mixolídio ou V em Ré maior).37-51).1-b) evidencia a importância do Lá inicial como nota principal (Kopfnote. n. sem necessidade de resolução). essas condições devem corresponder.5-6. n. C.1 – Chovendo na roseira. Ex.99-106.ALMADA. 2010. p. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi. seção A (c. L. b) c) d) três níveis intermediários. Belo Horizonte.22. 101 .1-22): a) superfície. 2 – Chovendo na roseira. • A linha cromática transforma-se.22. Para isso tornou-se necessário o emprego dos recursos da análise schenkeriana que. Ex. extraída como voz interna no encadeamento dos acordes.1. nos mais variados aspectos e níveis estruturais.4). o que leva à conclusão de que. podemos considerar a primeira metade (centrada em Ré) como hierarquicamente superior à segunda (em Dó). Belo Horizonte. Desse esquema podem ser extraídas algumas observações interessantes: • A centralidade em Lá é incontestável. como evidencia o Ex. n. em virtude das características específicas da peça. A prolongação do Mi (através da escala cromática) rivaliza-se em importância àquela do Si da linha melódica principal. desde o principal motivo melódico (na superfície musical) à arquitetura harmônica básica (apresentada pelas relações de baixos primordiais). Isto se deve basicamente a dois fatos: (1) a Kopfnote Ré consititui-se um objetivo esperado. pela constituição de vários acordes (aqueles com quarta substituta e com nonas acrescentadas) e pelo próprio contorno da – por analogia – “Urlinie” resultante. Conclusões Este estudo buscou examinar as complexas relações estruturais presentes na canção Chovendo na roseira. 1-b e 4-b).10 De acordo com a presente análise. O esquema permite considerar o até aqui “enigmático” Fá# da seção A como a dominante secundária do Si que encabeça a seção C (ver a ligadura prolongacional entre as duas notas no Ex. • O intervalo de quarta justa é também evidenciado como relação proeminente entre os baixos estruturais. tal paralelismo é atenuado por um fator ao mesmo tempo distintivo e decisivo: uma linha cromática descendente. na metade da seção B. Exs. É especialmente marcante na análise da canção a presença do intervalo de quarta justa. por assim dizer. Um reordenamento dos baixos principais explicita ainda mais a importância do movimento de quartas como elemento estrutural na canção (Ex. • Sob uma perspectiva estrutural mais ampla. a própria escolha dos acordes. assim. neutralizado sob uma perspectiva mais básica. ainda que variada e transposta por intervalo de segunda maior ascendente. • O Ex. que orienta a estrutura harmônica da seção e. Per Musi. Observações referentes à seção C (Ex. é justamente tal linha. Si) sugerem para o trecho a função de reexposição da parte principal. associada ao pedal em Si. esta como cabeça da seção C (ver Ex. percebe-se uma estrutura melódica básica descrevendo um arco de quarta justa ascendente (em percurso diatônico). e que retorna ao ponto de partida de maneira quase cromática. com um apoio intermediário no segundo grau da escala (na seção C). seção A (c.1-22): plano geral 102 . Contudo. principalmente visando investigar se a extraordinária capacidade de organização musical em camadas estruturais constatada neste trabalho está também presente em outras obras do rico e variado repertório desse formidável compositor.4): • A forte semelhança desta linha melódica com aquela da seção A (comparar especialmente a atuação do motivo principal. É também interessante constatar que o modalismo (mixolídio) presente nas seções A e C é um fenômeno meramente superficial. a partir dos acontecimentos desenrolados na seção A.4-c.6).ALMADA. C. ao contrário do que acontece na seção A. a despeito das adaptações efetuadas. passando pela organização formal das seções. p. L. de Mi3 a Mi2 (em destaque no Ex. a harmonia prolongada não é a que inicia o trecho (B7).5 resume e agrupa as análises das três seções (Exs. (2) Dó. 2010. mas sim a que o finaliza (E7). mostrou-se como a ferramenta ideal para tal investigação no grau de profundidade adequado. Julgo que os resultados obtidos estimulam a aplicação de novas adaptações do método schenkeriano em outras análises futuras de peças de Antônio Carlos Jobim. apresentando uma estrutura análoga à habitual Ursatz da análise schenkeriana. assim. de um elemento subordinado e relativamente oculto na superfície musical em fator determinantemente estrutural em níveis mais profundos.5). o que se observa nas relações harmônicas da “Ursatz” da canção (ver Ex. como uma passagem não-diatônica entre as notas estruturais Ré e Si. desmontando o paralelismo mais evidente entre os fenômenos musicais das duas seções. sendo. bem como a manutenção de um pedal sobre o centro de referência (neste caso. o que inviabiliza a alternativa de Ré maior como tonalidade principal da canção. com o acréscimo da recapitulação da seção A e o subsequente pulo para a coda (que nada mais é do que uma prolongação das sonoridades iniciais). • No lugar de uma Urlinie convencional. 3 e 4). funciona.4-b). tanto no plano harmônico – a prolongação de A7 – quanto no melódico – a ascenção Lá-Si-Dó# (ver Ex.5). com a seção B (centrada em Ré) intermediando a resolução.99-106.2). Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. consequentemente. 3 – Chovendo na roseira. Ex. C.99-106. 103 . Per Musi. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. 2010.22. Belo Horizonte. n. L. seção B (c. p. b) c) dois níveis intermediários.23-36): a) superfície.ALMADA. b) c) dois níveis intermediários 104 . n.4 – Chovendo na roseira. seção C (c. Ex. Per Musi. 2010.22.ALMADA.37-51): a) superfície. Belo Horizonte. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. L.99-106. C. p. 423-56. 32-34. Nº 70/4. reordenamento da sequência dos baixos estruturais Referências ALMADA. p. Gershwin´s art of counterpoint. 105 . p. In: Songbook Tom Jobim (vol. Transcultural Music Review. Schenkerian analysis and popular music. Acesso em: 15/5/2009.htm. L. nº 5. Richard. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música. FORTE. Disponível em: http://www. The American popular ballad of golden era. 1924-50.99-106. Acesso em: 30/10/2009. 2002. A linguagem harmônica da bossa nova. n..org/jspui/acervo/acervodigital. 2009. Partitura. Bruno de Oliveira. GAVA. Universidade Federal do Rio de Janeiro.). In: XIX ENCONTRO ANUAL DA ANPPOM.22.jsp. Garcia . Rio de Janeiro: Lumiar. GILBERT. GALLARDO. 1 CD-ROM (3 p. Chovendo na roseira.com/trans/trans5/garcia.sibetrans. MIDDLETON. PY..jobim. Allen. 1984. Princeton: Princeton University Press. estrutura primordial Ex. Belo Horizonte. Estrutura tonal na obra de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana da canção “Sabiá”. Carlos de L. Buckingham: Open University Press. Disponível em: http://www. Musical Quaterly.. 2004. p. Steven E. JOBIM. São Paulo: Editora UNESP. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. 2000. INSTITUTO ANTÔNIO CARLOS JOBIM.6 – Chovendo na roseira. 2002. 2010. Anais . Per Musi. 1995. Studying popular music.5 – Chovendo na roseira.ALMADA. C. José E. 1994. 2009. Curitiba. Ex. Curitiba: UFPR. 3). Cristóbal L. Samba de uma nota só: elementos musicais a serviço da expressão poética. Antônio C. 8 A presença desse acorde tem um caráter um tanto enigmático. etc. em cujo texto foi cunhada a expressão “dissonâncias estáveis” [stable dissonances] (FORTE. Atualmente é professor de Harmonia e Análise na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).9. 2 Para uma análise estrutural de uma canção de Jobim (em parceria com Newton Mendonça) – Samba de Uma Nota Só –.. Ré (substituindo Dó#). só se revela sob uma perspectiva mais global da estrutura da peça. iniciando-se em III ( 3ˆ ). apresenta-se em geral na linha do baixo (por exemplo. n. hierarquicamente superiores. 9 Ou seja. a partir de análises de obras de George Gershwin. L. mas principalmente a execução destas. cuja pesquisa visa a análise da estrutura harmônica da Primeira Sinfonia de Câmara. Editora da Unicamp. trata-se de um fator de pouca ou nenhuma relevância para os objetivos deste trabalho. dando continuidade a estudo realizado sobre a estrutura formal da mesma obra. 106 . por exemplo. Belo Horizonte. 6 Como será demonstrado. Para maiores detalhes. o próprio autor admite que tais “exigências” podem ser atenuadas ou até mesmo suprimidas de acordo com as particularidades de cada situação. as dissonâncias presentes na superfície de uma peça musical nascem dos movimentos contrapontísticos das vozes. 2006 e “Harmonia funcional”. Segundo Gallardo. p. p. V ( 5ˆ ) ou I ( 8ˆ ). durante o mestrado.). Inútil Paisagem. 3 É também pertinente conhecer o pensamento de Richard Middleton sobre o assunto: “não há razões para que a análise schenkeriana não possa ser aplicada em canções populares regidas pelo processo funcional tonal” (MIDDLETON. calcados essencialmente em grupos de colcheias. seja qual for a opção escolhida para a classificação do gênero da canção. a discordância em relação a esse preceito schenkeriano não necessariamente desqualificaria uma análise. Contudo. e de Allen Forte (1995). A razão de sua existência. em Samba de Uma Nota Só. 2004. Brigas Nunca Mais. Por exemplo. arranjador.ALMADA. C. Ver também PY (2004). É o caso. a utilização de tensões não resolvidas em acordes estruturalmente estáveis também acontece em Chovendo na Roseira 5 Em nome de uma maior precisão. As mesmas notas dispostas como Mi-Lá-Ré-Sol constituem uma sucessão de três quartas justas ascendentes (a inclusão da nona do acorde – Si – no grupo amplia ainda mais a sequência quartal). É doutorando em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. ver ALMADA (2009.21). “A estrutura do choro”. O autor cita especialmente trabalhos de Steven Gilbert (1984). de Arnold Schoenberg. compositor. outra famosa composição de Jobim. as notas que compõem A7(sus4) são: Lá. De acordo com Schenker. 704-6). Corcovado. o que concede a tétrades e pêntades estabilidade análoga à das tríades tradicionais. acordes de sétima dominante nos quais a terça maior é substituída pela quarta justa. Como será mencionado. considerando não apenas os contornos rítmicos de sua linha melódica. que realiza uma abordagem de Sabiá. Mi e Sol. sobre a balada popular norteamericana. Contudo. talvez fosse mais apropriado classificar Chovendo na Roseira como representante do gênero “valsa-jazz” (e não como uma típica canção bossanovista). 7 Este aspecto é enfatizado por Gallardo como uma das adaptações necessárias em análise schenkerianas de peças de música popular. 4 Outros pré-requisitos seriam: idioma tonal. no lugar da notada 1/2-1/2). Carlos de Lemos Almada é flautista. efetuada dentro do assim chamado jazz feeling (i. como será visto. estrutura harmônica calcada em tríades diatônicas (em especial. ver ALMADA (2009). os graus I e V) e que a melodia da peça possa ser reduzida a uma linha descendente diatônica e em graus conjuntos (Urlinie).22. Notas 1 Para análises harmônicas de peças bossanovistas ver. professor e autor de livros sobre teoria musical e análise (“Arranjo”.e. p. já que não é resolvido da maneira convencional. 2009). Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. a partir dos métodos da análise schenkeriana. GAVA (2002). a bossa nova –. 1997. 2000. 10 O encadeamento de acordes baseado na escala cromática descendente é uma das características mais marcantes da construção harmônica de Jobim. dividindo os tempos na proporção 2/3-1/3. op. p. do característico emprego de tensões harmônicas não resolvidas em certos gêneros da música popular – entre os quais. o caráter modal das seções A e C representam fenômenos relativamente superficiais: estratos mais profundos revelam novos papéis para essas seções no esquema global da estrutura harmônica. Per Musi. apud PY. 43). por exemplo. Editora Da Fonseca.99-106. A condução cromática. com enfoque especial na relação entre texto e música. Editora da Unicamp. 2010. a partir de consonâncias. no entanto. . musical syntax. epistemology and ideology. pluralismo musical. busca-se a identificação da obra em relação ao modernismo (de crítica e de extensão). jul. fragmentação musical. São Paulo. This study aims at demonstrating the postmodern characteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes by means of analysing its existing references and having in mind the procedures that organize postmodern assumptions and musical compositions. emphasizing its differences in syntax. The conceptual limits that make it closer and apart from modernism are discussed as an attempt to contribute to the reflection about the art today. justaposição. O termo “pós-moderno” cujo “moderno” está implícito foi defendido a partir de vários posicionamentos sem nenhum consenso. deve ser considerado como uma extensão do modernismo. Além da identificação dos elementos paradigmáticos. quintet.dez. toda a música não-moderna desde o fim do século XIX poderia ser classificada como pós-moderna. não são categorias estritamente pósmodernas onde devemos situar sua diferença? Recebido em: 27/10/2009 . citação. it tries to connect the work to modernism (in both criticism and extended fields). Rimsky.22.com Resumo: O pós-modernismo na música ainda busca critérios que permitam sua compreensão. enfatizando suas diferenças constatadas na sintaxe. juxtaposition of styles and pluralism. musical quotation. porque sincrônica). Introdução Originalmente criado na década de 1930 por Federico de Onís1 a ideia de um estilo pós-moderno não tem atualmente nada da precisão que este lhe atribuía. p. citação musical. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. ”Pós” admite aspectos estéticos de ruptura e de extensão do modernismo. L. Per Musi. SP) verarochape@hotmail. 2010. V. quinteto.107-126.. do contrário. e para ir além de uma abordagem indutiva (limitante. pós-modernismo. citação. 2010 variável que se adote em relação ao modernismo gerou controvérsias entre os teóricos. na epistemologia e na ideologia. and in order to surpass a simply inductive approach (restrictive because of its synchronic nature). discontinuity. descontinuidade. P C. Palavras-chave: Gilberto Mendes. Keywords: Gilberto Mendes. musical fragmentation. A discussão sobre a imprecisão da palavra pós-moderno como um termo composto cujo significado depende do significado PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. Em nossa contemporaneidade pós-moderno é uma palavra composta que incorre em equívocos. São abordados os limites conceituais que se aproximam e se distanciam do modernismo buscando contribuir na reflexão da arte na atualidade.Aprovado em: 13/03/2010 107 . descontinuidade musical. musical discontinuity. quotation. n. Belo Horizonte.22. Besides the identification of paradigmatic elements. musical pluralism. justaposição de estilos e pluralismo. postmodernism. 1. Rimsky. portanto. pluralismo. Em termos estéticos. “Pós-modernismo”. sintaxe musical. se fragmentação. Postmodern characteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes Abstract: Postmodernism in music still needs criteria to facilitate its understanding. such as traits like fragmentation. R. O que é pós-moderno? Como defini-lo? É importante retermos que o prefixo “pós” não significa apenas depois no tempo. este termo ressurgiu nos anos 80 sem sua exata definição. Aplicado em várias áreas diferentes. 239 p. O presente estudo visa demonstrar as características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes por meio da análise de suas referências existentes. . entre eles traços como fragmentação. tendo em vista os procedimentos que norteiam as composições e os pressupostos pós-modernos. Das discussões travadas depreendeu-se a conclusão de que pós-moderno não é uma categoria que possa caracterizar nosso zeitgeist em todos os seus aspectos e com claros critérios definidos.PERES. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes Vera Lúcia Rocha Pedron Peres (USP. 2. estilemas5 que se sucedem através de acordes/ obstáculos. mas nome literário. O aspecto harmônico é ora tonal. permitindo ao ouvinte a possibilidade de efetuar reconhecimentos.6-7) Ex. os parâmetros são tradicionais (melodia.1 – Citação de Sheherazade (recitativo) em Rimsky de Gilberto Mendes (c. Belo Horizonte.. ou seja. sem conexões. Rimsky é um quinteto para piano e cordas. R. De desenvoltura rizomática4. fase de Mendes) inicia-se com a introdução de uma série atípica (isto é. A formação instrumental é tradicional. Ex. ora modal. música de cinema.1 a Ex. que promove o envolvimento direto do ouvinte através do reconhecimento de uso de referências que primam pela exclusão da intelectualidade e da seriedade. que evocam o universo harmônico do impressionismo e do jazz. Vale observar: nesta. bossa-nova).PERES. L. como em outras obras. Evidenciamos em sua fatura a preferência do autor pelo uso de acordes de 9a.107-126. mais abstrato e mais denso) é de alegria (pertencentes ao repertório popular como: ritmos de dança. às vezes ambíguo (quando verificado na utilização da série e seus desdobramentos). O aspecto temporal é métrico. Listagem das referências existentes:6 Os exemplos Ex. A associação livre delineia-se incitando a imaginação e a memória. implica na possibilidade de mudança que se transforma numa ordem diversa. não dodecafônica ortodoxa) que cria uma circunspecção na escuta. esclarecer. como tentativa de detectar uma mudança estrutural. P C. descontínua. Per Musi. Apresenta diferentes andamentos relacionados em uma única estrutura. na 3ª. corroborar uma apuração objetiva dessa tendência estética. Examinemos com exemplos musicais esses procedimentos que serão utilizados nas análises subsequentes.58-59) Ex. ora atonal. n.74-76) 108 . delineiam-se fragmentos de citações. Aludindo períodos e estilos diferentes e apesar da fragmentação e choques de significados. o autor não dá nomes tradicionais de formas às suas músicas.2 – Elementos inspirados em Sheherazade em Rimsky de Gilberto Mendes (c. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. resulta num só fio condutor onde o clima imperante (salvo o trecho atonal. 3.22. 2010. No entanto.16 trazem as referências em Rimsky de Gilberto Mendes discutidas nesse artigo. uso da barra de compasso). A notação é tradicional.3 – Elementos de Sheherazade transformada em Rimsky de Gilberto Mendes (c. p. V. O fluir dos acontecimentos novos se sucede até decorrer um terço da obra quando passa a ser realimentado pelos fragmentos passados em sobreposição constituindo um ritornello sem final conclusivo. O percurso adotado neste trabalho efetua a análise da obra Rimsky (2003) de Gilberto Mendes a partir da afirmação dos autores Boudewijn BUCKINX2 e Rodolfo COELHO DE SOUZA3 que o apontam como um compositor pós-moderno para verificar as principais características que possam pontuar essa hipótese e que permitam exemplificar. Apresentação da obra Rimsky de Gilberto Mendes A obra Rimsky (composta em 2003. P C.6 – Música para cinema em Rimsky de Gilberto Mendes (c. Ex. n. Belo Horizonte. V.4 – Elementos livres com fragmentos de citação de Sheherazade em Rimsky de Gilberto Mendes (c.22. 2010. R. L. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes.20-22) Ex.5 – Minimalismo em Rimsky de Gilberto Mendes (c.PERES. Per Musi. p.40-47) 109 .23-24) Ex.107-126. PERES.107-126. Ex. Belo Horizonte.95 – 102) 110 . As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. n. Per Musi.8 – Cadenza para piano em Rimsky de Gilberto Mendes (c. p. L. V. P C. 2010. R. p.7 – Trecho atonal em Rimsky de Gilberto Mendes (c.22.18) Ex.80 – 94. 13-14) Ex. p.PERES. n.107-126.9 – Fox trot em Rimsky de Gilberto Mendes (c. V. Per Musi. P C. Ex.10 – Ritmo (Nordestino Brasileiro) em Rimsky de Gilberto Mendes (c.90-94) Ex. R. Belo Horizonte. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes.11 – Rock lento em Rimsky de Gilberto Mendes (c. L.38-40) 111 . 2010.22. 48-50) Ex.12 – Bossa Nova em Rimsky de Gilberto Mendes (c. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes.56-57) Ex.13 – Citação do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov em Rimsky de Gilberto Mendes (c.PERES.14 – Melodias derivadas da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c.61-62) Ex. Ex. Belo Horizonte. V. R. n. Per Musi.22. L. p.69-72) 112 . 2010.107-126.15 – Tango em Rimsky de Gilberto Mendes (c. p. P C./compasso CD/counter Apresentação da série original 1-2 00:01 – 00:07 Transição 3 00:10 – 00:24 Acorde de sexta 4 00:25 Motivo inspirado em Rimsky Korsakov 4-5 00:26 – 00:33 Citação de Sheherazade 6 00:34 – 00:40 Oscilação (acorde de la m com 7a. Belo Horizonte. c. n.1-2) Inversão (violino I.28-29) Inversão Retrógrada (viola. 2010. Percurso da escuta em Rimsky de Gilberto Mendes O percurso de escuta de Rimsky de Gilberto Mendes é detalhado abaixo.12-13) Retrogradação (violino II. Original (violino I. V.107-126. c. c. R.36-37) Ex. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. com a listagem dos traços existentes encontrados.PERES. 11a) 8-10 00:40 – 00:58 Inversão da série 12-13 01:02 – 01:08 Evocação de ritmo brasileiro (piano e cordas) 13-17 01:09 – 01:49 Citação de Sheherazade (piano) 17-18 01:52 – 01:57 Citação de Sheherazade (violinoI) 19 01:59 – 2:05 Passagem livre com menção de Sheherazade 20-22 02:06 – 02:19 Minimalismo 23-27 02:20 – 03:30 SEÇÃO II: 113 . c. L. Per Musi.22.16 – A série e suas inversões em Rimsky de Gilberto Mendes 4. sua localização por compasso e timing em cada uma das sete seções e recapitulação da obra: SEÇÃO I: Part. 9a. 2010. n.22.11:03 95-103 11:04 – 11:46 Tango (harmonia e ritmo) 102-104 11:47 – 11:52 Ritmo (cordas) 105-106 11:53 – 12:02 Bossa nova 107-108 12:03 – 12:13 Melodia derivada da série + rock lento (piano) 109-116 12:14 – 12:49 Lirismo 117-120 12:50 – 13:09 Final sem conclusão (acomp. SEÇÃO III: Retrogradação da série 28-29 03:33 – 03:42 Passagem livre no piano 30-31 03:42 .PERES. R.03:49 Ritmo (cordas) 32-34 03:51 – 04:07 Inversão retrógrada da série 35-37 04:08 – 04:18 Ritmo de rock lento 38-40 04:19 – 04:28 Música de cinema (apoiada em acorde de 4a. Belo Horizonte. P C. Per Musi. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. L.) 40-47 04:30 – 05:00 Citação do Quinteto para piano e sopros 48-50 05:01 – 05:25 Melodia no piano 51-54 05:26 -05:53 Início de bossa nova no piano 55-57 05:54 – 06:09 Elementos inspirados em R. Korsakov + bossa nova 58-59 06:10 – 06:26 Finalização de bossa nova no piano 60 06:27 – 06:34 Melodia derivada da série + rock lento (piano) 61-68 06:35 – 07:35 Tango (melodia derivada da série + ritmo/tango) 69-72 07:35 – 08:24 Bossa nova + Sheherazade transformada 73-76 08:24 – 08:52 Acorde menor c/ figura de improviso como clichê 77-79 08:53 – 09:03 80-94 09:04 . p. de rock lento/piano) 121-123 13:10 – 13:28 SEÇÃO IV: SEÇÃO V: Trecho atonal + rock lento (piano) SEÇÃO VI: Cadenza p/piano (com fragmento de bossa nova) RECAPITULAÇÃO: 114 . e 7a. V.107-126. Podemos notar Ex. L.6). Encontramo-lo entre o trecho onírico (que o autor denomina de música para cinema (c.17 – Recitativo em Sheherazade de Rimsky-Korsakov (c. Para a verificação do original. P C.1. diretor do Spectra Ensemble. recorremos à sua redução para piano a duas mãos. da Bélgica. R. As citações de temas em Rimsky têm um intuito evocativo e referem-se às obras de Rimsky-Korsakov: Sheherazade e Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros.40-47)) e um tema lírico feito pelo piano (c. citação de Korsakov em Mendes (c.18). Belo Horizonte. Este trecho de Korsakov acima demonstrado aparece citado em Mendes e com repetição idêntica (diferentemente do trecho de Korsakov).18 – Citação de parte do tema de Sheherazade de Rimky-Korsakov em Rimsky de Gilberto Mendes (c. V. Análise da obra: detalhamento da análise pormenorizada dos procedimentos 5. 5. Tem. Portanto. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes.22.107-126. portanto. um projeto extramusical de homenagem ao compositor russo Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908).51-55). Observemos a melodia que Korsakov introduz no recitativo de Sheherazade.14-15) Ex. n. observemos a 1ª.17). p. Em Mendes há uma descontinuidade e uma interrupção. Outro exemplo neste sentido é a citação do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Korsakov (Ex.19). é importante notar que a melodia da “Sheherazade de Mendes” é finalizada pela nota ré e não mi como em Korsakov. Em seguida. apresentado pelo solo de violino (Ex. para ser estreada em 2000 em um Festival da Rússia. 2010. Veremos que a utilização desta como uma singularidade exige uma solução de percurso (na medida em que pode elaborar saídas feitas por inferências locais). Em Korsakov encontramos uma continuidade. Inserida dentro de um sistema atonal/tonal (cuja série o corrobora) sai dessa ambiência ambígua e converge para a tonalidade usada por Korsakov (Ex. A citação e a sintaxe Rimsky foi escrita por encomenda de Philip Rathé. Per Musi.PERES.6-7) 115 . Outro ponto importante a frisar é que se a composição de Mendes visa realizar uma homenagem.20). Segundo Calabrese (1988). Mendes pretende torná-la audível. O passado necessitará sempre ser modificado pelo presente. uma vez que precisa ser inserido em um novo contexto. a citação pós-moderna tornase um elemento de imprecisão. A fragmentação efetuada na obra se realiza através de um procedimento duplo: promove o declínio da inteireza e da continuidade e ao mesmo tempo propicia a unificação na medida em que torna as frases musicais equalizadas onde as possíveis conexões não revelam seus pontos de ligação. Outros trechos evidenciam o aparecimento do mesmo tema de Sheherazade transformados pela exigência casual da sintaxe em Rimsky de Gilberto Mendes (c. cuja linha de fronteira em seu final é estendida. convivendo pacificamente (p. a citação não pode ser irônica. Nega a precisão e a ordem. passado e presente tornam-se sincrônicos. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Belo Horizonte. V. necessita apenas da existência do saber enciclopédico do ouvinte.107-126. com esse tipo de citação. prevalecendo o prazer do perder-se. Inverte-se a primazia da forma sobre o conteúdo: agora é o conteúdo que determina o processo composicional. num simulacro e numa contestação do estatuto da arte enquanto originalidade e subjetividade. A sintaxe é desconstruída em prol da figuralidade onde as imagens preponderam dando lugar à busca de novas sensações. Esta impressão é possibilitada pela admissão de fragmentos diferenciados que promovem a perda da totalidade e tornam-se indiferenciados em sua coexistência. isto é. Apesar de imprecisa.20 – Citação do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov em Rimsky de Gilberto Mendes (c. tornando-os imperceptíveis. A citação em Mendes não é perspícua. possibilitando várias associações 116 a diferentes estados afetivos. Como vimos.22.5-8) Ex. o Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Korsakov e não desfigurá-la. valorizando o conceito de “vago” (p. não se importando com a autenticidade da fonte. p. propiciar o reconhecimento de maneira lúdica. como mostrado nos pares de exemplos . L.49-51) que estas são diferentes concepções que agora se tornam equalizadas.178). são as sintaxes como concepções absolutamente opostas: a de Korsakov é teleológica. Ex.17-22). P C. Aqui há também modificações efetuadas nos confins da citação (início e fim) e inserção de elementos livres que confluirão em novas descontinuidades.19 – Solo de trompa no II Movimento do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov (c. A finalidade da citação é evocar Sheherazade. sem adotar a causalidade. improváveis. Não existe preocupação com a precisão e sim com a evocação da memória afetiva transposta imprecisamente e adaptada dentro da linha sonora em curso. reatualizado. Já a erudição enciclopédica referente ao Quinteto em Si bemol Maior não configura a certeza de ser efetivada com a mesma eficiência. sem se opor à continuidade. para produzir efeitos de verdade. Não há mais estruturação por regras sistemáticas. Per Musi. enquanto que a de Mendes é casual7. na medida em que se traduz num ready-made. fazendo um apelo à memória. n. O que resulta diferente então. como evocação. R. 2010.PERES. Esta é uma característica importante que joga com a relação entre o verdadeiro e o falso. desafiando a noção de centro. É assim que através da utilização de materiais fragmentados constituiu-se essa sintaxe tipificada como pluralista e inclusiva. Torna-se um desafio à arte aurática�.8-11) (Ex. O uso do fragmento não exige desenvolvimento. não se submete a nenhuma forma. O tempo torna-se simultânea e paradoxalmente não-linear. Ex. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. c.21b e Ex. R.21a-Ex. Verificamos que Mendes se apropria do gesto de Korsakov dentro de uma concepção de improvisação idiomática� introduzindo elementos (ritmico-melódicos) rapsódicos transformados. V.22b – Motivo de Korsakov (mostrado acima) transformado em Rimsky de Gilberto Mendes (c. 2010.Motivo apresentado pelo fagote no II movimento de Sheherazade de Rimsky-Korsakov (c. transmutação de semínima 60 para 120) corrobora a existência da subtração das conexões decorrente da opção pelo procedimento inclusivo (o que permite contribuir para obscu- recer a natureza do “discurso”) (Ex.5-9) Ex.22a – Motivo melódico-ritmico de Korsakov (IV Movimento de Sheherazade.58-59) 117 . O recurso do corte verificado através da mudança brusca (contraste) de andamento e dinâmica (mp/f. n. Ex.22. L. que se apresentam como figuras de clichê características da improvisação (c.21a .22b.23). Per Musi.PERES.107-126.21b – Motivo de Korsakov (mostrado acima) transformado em Rimsky de Gilberto Mendes (c.78.22a-Ex. P C.54-69) Ex. p. Belo Horizonte.74-76) Ex. da sensação. do sentimento. logo de início. mas com a série modificada. Constatamos. o uso da citação e das referências como fragmentos autônomos produz uma sintaxe nômade.107-126. Sob este ponto de vista.22. p. 2010. A utilização do recurso do fragmento revela o retorno à espontaneidade (ao eximir-se dos antigos códigos de coerência da linguagem). Per Musi. Em Rimsky.2. P C. o centro e a ordem. Ao não se constituir como série estritamente dodecafônica. 5. configurando-se como um jogo que ao mesmo tempo contém e se livra das regras. ambígua através da utilização predominante de intervalos consonantes. revela sua relação paródica com a arte do passado. mesclando o tonal com o atonal. V. Examinemos de perto suas características no Ex.24 – Série em Rimsky de Gilberto Mendes 118 . sua postura implica a crítica ao Modernismo tardio através da inclusão deste em sua linguagem. Belo Horizonte. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes.17). tornando-a. R. Em resumo. sendo esta uma forte característica de sua linguagem. A série de Mendes destitui-se de parte de seus pressupostos teóricos intransigentes (daquela de Schoenberg). evitando as conexões. reapropriada. n. resultando num perder de vista dos grandes quadros de referência. desempenhando na obra uma desenvoltura que afirma o acaso�. portanto.30-32) Ex.PERES. a heterogeneidade empregada desfaz a diferença entre os materiais. Ex.23 . A série de Mendes como paródia pósmoderna Sabemos que a série básica criada por Schoenberg. Mendes inicia sua obra sem indicação de tonalidade sugerindo uma audição atonal. uma intervenção do compositor que descarta a representação rígida da série convencional para nos apontar uma nova singularidade em relação àquela.Recurso de corte através de mudança brusca de andamento e de dinâmica em Rimsky de Gilberto Mendes (c. A sintaxe submete-se às imposições do desejo.24. portadora de 12 sons distintos e irrepetíveis constituiu uma regra rigorosa de controle da composição musical dodecafônica. Em Rimsky. p. possibilitando a contaminação de sua pureza. a série introduzida por Gilberto Mendes subverte essa intenção. L. entretanto. Incorpora. L. Ao contrário. Utiliza-se dos procedimentos da vanguarda para criticá-la. Se Schoenberg objetivou a busca pelo singular. • 3 intervalos de 4a. o purismo. a utilização de códigos populares: (Ex. O conteúdo de Mendes apóia-se no significado. propiciando seu reconhecimento pela escuta. é reverente e irreverente ao mesmo tempo.28-29 e c. recontextualizando-a. exige a familiaridade com antigas convenções para que se possa averiguar sua discordância dos cânones prevalecentes e consequentemente invocar as considerações de intenção do autor. A nosso ver. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. uma novidade que. que a torna híbrida. a possibilidade de configurações melódicas (Ex. A série de Mendes contesta a originalidade. provocando sua desestabilização. Mendes mantém as formas reflexas da série (Ex. • 1 intervalo de 2a. Não há trítonos. A série de Mendes questiona o ideal totalizante modernista. Como no dizer de HUTCHEON (1991).m. A série de Mendes despreza. a série de Mendes é distorcida. ironicamente. A compreensão da ironia pressupõe uma grande cultura por parte do ouvinte12. Belo Horizonte. continuidade e mudança. 2a..27). com vistas à criação de uma ilusão perceptiva. a memorização). • 2 intervalos de 3a. 9a. concomitantemente o percurso de Schoenberg. contudo.25 – Retrogradação da série em Rimsky de Gilberto Mendes Ex.PERES. J. 2010. deslocando-se da abstração para introduzir posteriormente.M. reinterpretando-o.26). mas resgata fórmulas usadas. R. desta forma. contudo. a tirania teórica. nem intervalos de 7a. Verificamos a ocorrência de: • 4 intervalos de 3a.107-126. possui duas terças menores em seguida (propiciadoras de enunciação de arpejos). como tal. ambivalente e percorre o caminho contrário ao de Schoenberg. m. Ex. na medida em que é reutilizada ao se somar com a referência introduzida pela rítmica do tango. autoridade e transgressão.25). por viver numa época em que o consumo imediato e o hedonismo não priorizam o conhecimento e a teoria. eliminando a noção de graus. a impressão de tonalidade. de mais fácil assimilação. mostrando-se avesso à teoria.22. A série usada por Mendes preserva as características formais da série dodecafônica (doze notas irrepetíveis e suas inversões) subvertendo ao mesmo tempo seu conteúdo (predominância de intervalos consonantes portadores de possibilidades tonais). Per Musi. P C.61-62) 119 . a racionalidade. o retorno daquilo que foi recalcado pelo modernismo (a compreensibilidade através do que é cantável. a série de Mendes se ressemantiza. O autor utiliza a série. de funcionalidade e hierarquia promovendo a escuta da nota individualizada. Não é anti-tonal. M. V.. desconstruindo Vimos que a série de Mendes não sendo antitonal possibilita uma configuração melódica que se generaliza. p. ambígua. onde o autor procura propor uma abertura do texto cujo novo sentido evita prescrições. na aceitação e no resgate da consonância. Ela comporta. Enfim. verificamos que a intenção de Mendes não é de se ater à pureza do pensamento original de Schoenberg. fazendo coabitar a noção de sacralização e dessacralização. o potencial intervalar que (em Schoenberg) preconizava a emancipação da dissonância e o afastamento da tonalidade. Desta forma. Ao mudar o conteúdo desta. habilita. n. portanto. Mendes procura ativar o reaparecimento de configurações reconhecíveis.26 – Melodias derivadas da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c. condição que o receptor pós-moderno não possui. incrementando a descontinuidade da sintaxe (Ex. R. (c.3. Intenta contrapor-se ao purismo.28 – Série em Rimsky de Gilberto Mendes. 2010. por desestabilizar a intenção (dodecafônica) de sons isolados e da não repetição. L. Ela é introduzida sempre depois de uma fermata ou de um rallentando. fazendo o percurso inverso do de Schoenberg. Per Musi. Em sua autobiografia (1994) Mendes registra sua natureza despreconceituosa que o acompanha desde a infância. . p. 27 – Tango derivado da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c. procurando não as in120 compatibilizar. do episódio anterior. reconhecendo o alto nível alcançado pela música popular urbana da canção norte-americana e europeia dos anos 30 e 40 e seu entrosamento com a música culta. 13. Pós-Moderno e a atenuação das distinções – música popular/música erudita: Rimsky apresenta a inserção de ritmos e harmonias características da música popular brasileira procurando viabilizar o cruzamento de linguagens tradicionalmente opostas. permite “contaminações” que abolem todas as proibições. recusando a hierarquia e a hegemonia entre alta e baixa cultura.22. portanto. Belo Horizonte. que ele denomina ser um verdadeiro lied moderno.107-126.12) A série de Mendes é o elemento de diferença que distingue o modernismo do pós-modernismo. V. Pretende realizar para isto conexões consideradas antes impossíveis.65-68) Ex. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. impossível em períodos históricos precedentes. desconectada. Pensando desta forma é que o autor utiliza-se amplamente do elemento popular em suas composições.28). 5. não imprimir uma visão dualista entre o erudito e o popular. n. Baseando-se em suas memórias perceptuais.PERES. Ex. P C. nem a quantidade das citações nem o ecletismo são características estritamente pós-modernas. Sumariando a ocorrência dos traços pós-modernos em Rimsky. 11. a maioria das características atribuídas ao pós-moderno já foram anteriormente encontradas em períodos anteriores. É importante realçar a advertência de Calabrese sobre a citação como um modo tradicional de construir um texto que existe em todas as épocas e estilos que.58-60. 20. Como decorrência. mas conjuga-os à ideia de desconstrução (derrideana) do significado que abole a noção de origem e de verdade e deságua na ideia de que só existem significantes. oposições. a suspensão do juízo em prol da casualidade. 28. imagem). hedonismo. 18. uma ausência de fundamento. ausência de conexões. 2010. o ecletismo� (ou pluralismo) tem sido apontado como a principal característica pós-moderna. imprecisão. Ausência de unidade.117-120). necessita subverter o contorno melódico dirimindo a diferença das estruturas contraditórias. heterogeneidade. R. Volta ao conteúdo.29).6168). onde todas se afirmam válidas. O tipo de linguagem utilizada em Rimsky. Em meio às divergências teóricas existentes. Ironia. indiferenciados. pontos culminantes. 5. Anarquia. Uso de estilemas e estereótipos. Incerteza entre o verdadeiro e falso. Para Calabrese. trecho atonal + rock lento (c. L. a autenticidade e a autoridade) é que é criticada. Ambiguidade (questionamento e conciliação). 7. Em feição pós-moderna. Ênfase na superfície.PERES. 3. Caráter lúdico. Colagem e citação subtraem as conexões e a citação que remete à concepção de autoria (ou seja. não há mais a imposição do cânone modernista de proibições. 26. porém. melodia de Sheherazade transformada + bossa nova (c. p. Se como já foi dito. 2. 6. caráter melífluo (que impressiona agradavelmente). Imersão (ao invés de distanciamento). Retorno à melodia. desejo. 16. Ex. no caso pós-moderno. Tal medida pressupõe a intenção de um caráter de tolerância e diversidade como tentativa de questionamento das distinções. Em Rimsky verificamos o uso de superposições e “fusões” entre o popular e o clássico verificadas nos elementos inspirados em Rimsky-Korsakov + bossa nova (c. contaminações. a fragmentação resulta numa compilação de descontinuidades cuja autonomia dos momentos se traduz. cujo procedimento pode ser caracterizado como inclusivo e democrático. Estesia (ênfase nas sensações). o que o distingue de outras épocas é uma aposta na proscrição da unidade estrutural e da teleologia em favor da descontinuidade e da atemporalidade possibilitados pela anomia da sintaxe. segundo Mendes não só incita ao reconhecimento. e da liberdade ilimitada. “Moderno” deixa de ser um substantivo para tornarse um estilo (trecho atonal).1988) sobre estética e teorias contemporâneas para o esclarecimento das implicações do gosto e do pensamento dito pós-moderno que incidem na forma e na adoção de uma epistemologia anárquica. 19. melodia da série + rock lento em recapitulação (c. 21. que tem como parâmetros a originalidade. justaposição de estilos. 13. 29. Dessa forma a citação. 9. Fragmentação. Tendência predominante de exclusão da seriedade16. por realizar uma alteração. 22. Não há mais uma direcionalidade visando pontos focais.22. Mas que tipo de ecletismo? 1. portanto. (reverência e dessacralização). Conclusão 6. 24.30) em meio à sua textura abstrata14 juntamente com a inclusão de elementos de referência (verificadas nos ritmos feitos pelo acompanhamento no piano de rock lento) ao mesmo tempo as obnubila (c.109112). citação distorcida. Verificamos. Atemporalidade. descontinuidade. mas uma errância. V. 4. Outras fusões são encontradas na série transformada em melodia + rock lento no piano (c. decorrendo daí a possibilidade de interpretações incessantes. Não há mais sucessão temporal. Processo composicional determinado pelo material. Proposta de inclusão da música culta e da música popular. 17. Inexistência de desenvolvimentos musicais puros. Características pós-modernas em Rimsky de Gilberto Mendes Utilizamos as evidências do exame feito por Omar Calabrese em seu livro “A Idade Neobarroca” (CALABRESE. através do procedimento da apropriação. ele desconsidera a computação da quantidade de citações como um critério relevante para sua caracterização. melodia em progressão + rock lento (c. Impureza. como presente sincrônico. homogeneizados. Per Musi. Série defectiva. antinarrativa. inconscientes (evocação. A urdidura do trecho atonal (Ex. utiliza-se da junção de elementos de origens diferentes15. Simplicidade. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. nem a elaboração de um “discurso” sistemático.74-79). contra proibições. 27. Consciência histórica vista como pluralismo. 7. Apropriação. de abandono da epistemologia e da teoria. Paródia. P C. 25. 12. constatamos as seguintes propriedades: 121 . Sintaxe casual. 80-94). contra o rigor e a exatidão. Antiacademismo. n. um contínuo de justaposições de materiais e estilos de diferentes épocas que através de sua apropriação resultam presentificados. 14.80-94). 10. da arbitrariedade. Ênfase nos processos primários. 8. 23. busca de significados. procedimento assistemático. hibridismo. esse ecletismo não só institui uma objeção da pureza e do elitismo. portanto. Repetições não variadas. 15.107-126. Belo Horizonte. Ex. Per Musi.74) Ex.30 – Excerto do trecho atonal em Rimsky de Gilberto Mendes (c. V.80) 122 . R. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. L.22.PERES.29 – Sheherazade transformada+ Bossa-Nova em Rimsky de Gilberto Mendes (c. n.107-126. Belo Horizonte. P C. p. 2010. É assim que para evitar a mediocridade Mendes volta-se para uma aristocracia do espírito elevando o popular para a transcendência (MENDES. c. a reabilitação dos materiais do passado. no entanto. na mediocridade corrente da arte de massa cuja finalidade é entretenimento e comunicação. fase. no entanto. cuja escuta quase não o reconhece. 123 . se o que prevalece é a indistinção e a textura? Ou. O cerne do problema está em desfazer a rigidez e ao mesmo tempo não cair na vulgarização. Enfatizando o aspecto semântico (referências. conformando-se em contraposição à figuração como elemento portador de compreensibilidade. 2010. p. constatamos a não utilização de uma sintaxe tradicional teleológica. Não há desenvolvimento�. Mendes tenta solucionar essa dualidade resgatando a música popular norte-americana dos anos 30 e 40 naquilo em que esta é comparável à arte de elite. V. Seria essa uma forma de possibilitar (contraditoriamente) a fixação e a memorização perdida na descontinuidade? Constatamos que a arte para Mendes demanda espiritualidade e transcendência em relação aos assuntos cotidianos (MENDES. como também as repetições dos fragmentos apresentados em descontinuidade. No entanto. restando como única saída.22. mas não conseguem sua supressão.171).PERES. como observa Terry EAGLETON (1998). do qual mantém somente a melodia em excerto. A multiplicidade abole o ponto de vista único para afirmar a ausência de centro e de convergência.1994. endereçada a seus pares. superposto ao acompanhamento do piano como rock lento. Renega os pressupostos do grupo Música Nova (atrelado aos temas de atraso e progresso) e volta-se para o antigo desprezo vanguardista pela indústria cultural. contrário à indústria cultural�. contém uma densidade e complexidade que acaba enfatizando melhor. como decorrência. Em Rimsky. promove a reabilitação do prazer e a diminuição da crítica. Dito de outra forma: no trecho atonal a opção pelo procedimento inclusivo acaba obliterando as referências populares. não há mais conflito.1994. contemplação. ele pretende não ser acessível. c. somente se chocam. o uso de repetições de notas inseridas na série. Mendes procura evitar e rigidez e concebe a construção do sentido deslocada mais para o subjetivo. Devemos considerar que um dos fatos significativos no pós-modernismo é que. o intuitivo do que para o racional (MENDES. representando os parâmetros modernistas (mesmo com a inclusão do elemento popular) não pode favorecer a aproximação do público desacostumado à apreciação desse código. através do desterro da linguagem (já iniciado no modernismo) na verdade o que ocorre (contrariamente a este) e contraditoriamente. a “Sheherazade de Mendes”. cuja apropriação descaracteriza o ritmo original para sua transformação numa versão ainda mais popularizada porque impregnada do balanço da bossa-nova (MENDES. Porém. nem comunicativo (MENDES. negando a contemplação almejada por Mendes. Podemos sintetizar esta questão numa pergunta: qual é a eficácia do excesso. afirmando o caos. Desta forma a arte pode correr o risco de ser facilitada. n. liberdade. Os materiais utilizados possibilitam a formação de presentes sincrônicos. Sua concepção de arte vincula-se aos pressupostos modernistas de autonomia.1994. Reitera apenas o procedimento (excessivo) de inclusão defendido no pós-modernismo. p. Per Musi.1994. estes podem recair em um só lado da antítese. admitem as contradições sem questioná-las. evocações) de suas composições da 3ª. Daí porque a descontinuidade tornar-se sistemática (o que. Tenta escapar da polarização entre arte de elite e arte popular.169-170). Ao contrário. 1994. por outro lado. Em Rimsky. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes.80). p. A tentativa de desfazimento das oposições entre arte culta e arte inferior instaura a questão do uso de elementos característicos da cultura de massa que viabilizem o consumo da obra. o passional. de reafirmar seu pretenso caráter democrático para realizar o afastamento de uma compartimentação maniqueísta. embora este não veja aí uma irreconciliabilidade. p. podemos também afirmar que a utilização das contaminações que introduzem elementos populares acaba favorecendo a eliminação da aura da arte por privilegiar a sensação e a imersão.113). R. fato que tanto negam. onde as “oposições” não mais se contradizem. Para os sabedores de que devemos evitar o maniqueísmo há também a necessidade de reconhecimento das contradições como impossibilidades de uma verdadeira fusão de categorias distintas.74). ADORNO (1999). Concluímos que as contaminações ou hibridações podem contribuir para diminuir ou amenizar as fronteiras entre o popular e o erudito. Como conciliar sofisticação com o que é popular? Como dissemos.62-63). procurando solucionar as contradições na verdade insolúveis entre as classes sociais.1994. p. p. como referente modernista (MENDES. Dentro desta lógica. o aspecto abstrato do que permitindo desvelar o conteúdo referencial do ritmo do rock. levando a audição ao gozo meramente metonímico. recaindo mais para o efeito hermético. no fetichismo dos materiais. despojamento ascético. P C. Admitir a contradição significa supor que na medida em que não há mais restrições. Mas a fusão das esferas alta e baixa. escamoteando a transparência do modo de produção das obras. parece uma tentativa de facilitar a assimilação que requisita a necessidade de ouvi-los de novo. Belo Horizonte. incorre na cilada de incidir num outro tipo de normatividade). contrariamente.113) mas defende ao mesmo tempo a possibilidade de compreensão de sua música pela classe operária (MENDES. acaba por enfatizar mais o pólo popular do que o erudito. Já o trecho atonal.107-126. Mendes não pretende eliminar a aura da arte. a proposta desse hibridismo seria mitigar a tensão? O trecho atonal. Em outras palavras. de elitismo. derrubar as barreiras do preconceito. mas defendê-la. L. Os adeptos da atitude pós-moderna. 1994. diluindo-o na urdidura. ética. rejeitando a conjunção entre arte e mercadoria. é uma procura da significação (da comunicação perdida decorrente do vazio e da abstração deixados pelo formalismo). A justaposição nega a dialética. Mendes defende a reintrodução do belo na arte contemporânea aproximando-se de Adorno no sentido de uma estética que pode ser considerada contrária ao embrutecimento do homem e de certa forma. Caberia a pergunta: qual a verdade do oprimido? Devemos lembrar que a estética popular implica na subordinação da forma à função e que a estética erudita propugna critérios de julgamento sobre o modo de produção das obras a despeito da função. com a 124 transcendência. como no consumo de mercadorias. ou ainda existe a intenção do autor? Compreendemos que em suas contradições. por um lado Mendes faz positivamente a crítica à mediocridade (do popular?) hoje existente na nossa sociedade de massa. torna-se repetição. O que está aí não muda o que já foi conquistado pela modernidade porque não contém mais o choque da estranheza. O . como transgressão. defensores da noção de criação. encerrando a dissidência e o “make it new”. A utilização da prática das citações deve. Concernente ao pós-modernismo. O procedimento inclusivo de materiais do passado pode apenas reintroduzir o antigo de forma fetichizada. portanto ser amplamente considerada. Mendes posiciona-se contra a mutação da arte e do artista. das referências populares. com o valor de culto. a arte. moda. nem negação. as concepções estético-ideológicas pósmodernas estão atreladas ao moderno sem superá-lo. Como já frisamos. Se afirmarmos a inexistência de fronteiras entre o erudito e o popular alegando que só o que existe na verdade é a música (classificada como boa ou ruim). é utópica�. em nossa contemporaneidade não há mais espaço para a realização de uma arte inteiramente autônoma. A modernidade. onde o retro não causa nenhum impacto. P C. no consumo. verificamos por um lado. Música popular e música erudita são separadas por conceitos sociológicos que consideram diferentes performances. por outro lado. como dissemos. Não há mais rebeldia. L. estaremos caindo em polarizações que remetem a categorias de valor que rejeitam as demais atribuições concorrentes: reincidimos num dualismo e numa posição igualmente absolutista. Faz-se mister. Como dissemos. R. Do lado da recepção da obra o que constatamos é uma indiferenciação que não remete mais à perplexidade. a constatação concomitante da existência de compositores críticos do capitalismo. Neste aspecto. na sua tentativa de resistência às tendências de dissolução do belo e daquilo que ele chama de verdadeira arte. transformando o sagrado em profano. saudosista. contrapõese à mudança da noção de obra de arte feita pela modernidade que já realizara sua dessacralização. 2010. genialidade e arte contrária à instrumentalização. afluiu na ideia de artista como trabalhador. Per Musi. a quebra da seriedade (propiciada pelas contaminações) e do rigor que favorecem e imersão e consequentemente diminuem a distância imposta pela obra imbuída de aura. denunciando sua estrita dependência da lógica comercial onde ele nos confessa a dificuldade de sobrevivência a uma modernidade filisteia. Bom ou ruim demonstra. Perguntamos: fazse música para que o ouvinte realize a semiose que quiser. não poderia ser infinito. nem recusa. não é mais intempestiva. As afirmações de Mendes nos revelam as aporias em que se encontra o compositor contemporâneo na necessidade de reescrever sua vida. perda de contundência. Sabemos que o belo clássico salientou a preocupação com a qualidade da obra. matando a originalidade da obra para possibilitar a fruição (em contraposição à contemplação). Belo Horizonte. faz um esforço para garantir a perenidade do artista na procura de uma essência que se perdeu. A reintrodução da contemplação corresponde ao retorno da aura numa época secularizada a qual mantém como consequência. essa música (possuidora dessa sintaxe onde o procedimento inclusivo admite o erudito) não é consumida e assimilável pelas classes populares�. pode tornar-se um perigo. se pensada em termos de produção necessita que reconheçamos o binômio “produção/ consumo” ligado a processos formais que se constituem em músicas de diferentes tipos e separadas sociologicamente. mas acatamento. a função social de suas respectivas legitimações. A citação. o que faz com que a estética retorne à sua origem mundana. a utilização da profusão de materiais torna-se equalizada. De onde se conclui que os ready mades de hoje não mais produzem impacto. com a aura. com a contemplação. Esta constatação abala a crítica da metafísica iniciada na modernidade. Ao rejeitar a ideia de progresso o pós-modernismo elide a vanguarda. portanto. refletir sobre como não negar o consumo e ao mesmo tempo não ser consumido pelas imposições do capital.PERES. Portanto. apenas a simples diferenciação. Não reconhecer isso é uma forma de imprimir e sobrepor os conceitos das classes dominantes para as massas. O gosto sofisticado pressupõe a aversão ao gosto vulgar. por supor sujeitos sociais diferentes que traduzem suas posições de acordo com as distinções que os exprimem. O mercado é uma instância intrínseca à produção que vê a arte como produto legítimo da sociedade capitalista. Se. portanto. Mesmo com a introdução da banalidade. estabilidade.22. Ao negar a produção e o consumo. nem revolução. a preservação das categorias ideais. O novo não tem mais poder de transformação porque o que outrora foi contundente. Por outro. por exemplo. O que pode haver é a novidade que não mais tem mais impacto. À medida que não há mais proibições. Concluímos que o procedimento de reabilitação dos materiais do passado e a preocupação da transcendência podem levar ao distanciamento da realidade objetiva.107-126. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Porém. o hibridismo tem seus limites verificados no modo de produção. p. não havendo mais necessidade de ruptura. Ao defender o belo.� Este. lúdica e ornamental. ao tornar-se maneira de fazer. Neste período a arte atacou a materialidade da obra para atacar a aura. evitando a perda de sua qualidade. Mendes reflete as da sociedade em que vive. através da aceleração das forças produtivas e da consequente mutação das condições de produção. convenções e instituições (a bossa-nova. dos estilemas. é um fenômeno burguês). n. na circulação e na recepção das obras como forma de distinção (conforme BOURDIEU (1979) e BRACKETT (2002)). paradoxalmente. V. Omar – A Idade Neobarroca. David – “Where´s It Art”: Postmodern Theory and the Contemporary Musical Field.(partitura com escrita de próprio punho do autor). R. Vimos que “pós-moderno” não é um termo que possa caracterizar nossa contemporaneidade como critério claramente definido. New York: International Music Company. Gilberto – Rimsky.1979. São Paulo: Iluminuras. RIMSKY-KORSAKOV.207-231. Gilles e GUATTARI. devendo se desfazer de um manuseio arbitrário para realizar uma reflexão sobre a autonomia da arte e das condutas artísticas. não propor nada. Gilberto – Uma odisséia musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco. 1988.65-198. 1.net/cont/Blanchot_Hoppenot. Buenos Aires: Ricordi Americana. HUTCHEON.remue. 27 p. março de 1988.. n. L. TEIXEIRA COELHO – Moderno pós Moderno . Peter BURGER (1988) reconhece no pós-moderno a atenuação de uma rígida dicotomia entre arte superior e arte inferior onde não existem materiais avançados. Partituras: MENDES.. Teoria.violino).Quinteto em Si bemol Maior (op. flauta. Neste sentido. In: Novos Estudos CEBRAP no. ________ . Peter – “O declínio da Era Moderna”. Quarteto de cordas da Cidade de São Paulo: Betina Stegman (1o. Pierre – La distinction . poderão incorrer no fim da arte. p. Referências ADORNO. Rio de Janeiro: Imago. RJ: Jorge Zahar Ed.post. no entanto. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. São Paulo: Editora Brasiliense. Lisboa: Edições 70.22. In: LOCHHEAD.1996. quanto à constatação de uma crise da arte ele adverte que.35 (redução para piano) de Teodor Fuchs. realizado pelo Laboratório de Acústica Musical e Informática da ECA/USP. – “O fetichismo na música e a regressão da audição”. Ele alerta. Judy and AUNER. não tem compromisso com a verdade. Documento eletrônico: www.81-95 CALABRESE. Linda – Poética do Pós-Modernismo – História. Nega a história. Técnica. 1. In: Coleção Os pensadores -Textos Escolhidos. DELEUZE. São Paulo: Nova Cultural.Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. Marcelo Jaffé (viola). BURGER. o que assegura maior facilidade de assimilação (requisitos encontrados nas tendências da Nova Consonância e da Nova Simplicidade). uma vez que não há mais normas a quebrar. Robert Suetholz (violoncelo). 2004.pd Acesso em: 21/06/2006. MENDES. P C. Félix – O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34.PERES. sendo essa sua política apolítica.critique sociale du jugement. p. EAGLETON. trompa. 2010.modos e versões. BOURDIEU. Ficção. São Paulo: EDUSP. Lídia Bazarian (piano).) – para piano. 1999. o pós-modernismo para evitar ser prescritivo pretende. COELHO DE SOUZA. Walter – “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”. BENJAMIN. vol. ________ . 125 . Reprodução sonora (CD): Gilberto Mendes – Piano solo – Rimsky (edição do Programa Petrobrás de Música 2002. v. fagote.107-126. Março-Setembro de 2003). uma vez que todos os repertórios históricos de materiais estão igualmente disponíveis ao artista. Joseph – Postmodern Music/Postmodern Thought. A intenção pós-moderna é abater a austeridade. p. Em outras palavras. 3 e 4. 2002. BRACKETT. p. 2004. Belo Horizonte. 20. 1994. Rodolfo – Encarte do CD Gilberto Mendes – piano solo – Rimsky. clarineta. não comporta mais nenhuma tensão entre presente e passado.Magia. Nikolai – Sheherazade – Suite Sinfonica op. V. 59 p. São Paulo: Editora 34. Recusa a negatividade. Paris: Les Éditions de Minuit. pós-modernismo não é uma ruptura. neste sentido. tanto a exigência de abolição da separação entre e vida quanto a aceitação destas.2001. para que o fascínio dos materiais não seja transformado em critério de apreciação estética. Arte e Política. Terry – As ilusões do pós-modernismo. o hermetismo. 64 p. 1991. Theodor W. Per Musi.violino). In: Obras Escolhidas . New York: Routledge. Nelson Rios (2o. 1998. Devemos considerar que a destruição da forma e dos nexos se traduz na descontinuidade. Apesar de o autor incorporar uma recapitulação dos elementos apresentados. uma vez que a série de Mendes não a contém e cujo detalhe só se percebe através de sua análise) do modernismo (no caso a série como elemento de ordem) ao prenunciar os demais elementos (livres. pois do contrário esta não pode ser percebida. que se utiliza de um verdadeiro caleidoscópio de materiais como que acionados por controle remoto faz música que não pode ser considerada popular. Notas: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 Escritor e crítico literário espanhol (1885-1966).67). Boudewijn – O Pequeno Pomo – ou a história do pós-modernismo. p. o “minimalismo”. nos compassos 90-94 devido à similitude de seu componente rítmico. que aquilo que Mendes considera como a boa música orquestral norte-americana desses anos foi um produto historicamente situado. mas de manter juntos os heterogêneos. cujo “motor” é o desejo (CALABRESE. Esta pode também significar uma alusão à rigidez (como medida irônica.107-126. Esse é um requisito também necessário quanto à citação apropriada por requerer do ouvinte a erudição das obras em seus contextos para poder avaliar a transgressão efetuada. GUATTARI.1991).22. Neste sentido. a mistura estilística. DELEUZE.: A citação do Quinteto para piano e sopros de Rimsky Korsakov. sendo a recapitulação a única maneira de favorecer a rememoração do ouvinte (em contraposição ao modernismo) através da repetição dos elementos anteriormente apresentados. do ritmo nas cordas.” (Cf. porém sem sua devida localização. explicitado por Walter BENJAMIN (1996). Rogério Luiz Moraes Costa. sua destruição. 1998. seja multiplicidades! Faça a linha e não o ponto (. padrões. agora a riqueza em termos sintáticos não trata mais de impor uma forma à matéria. heterogêneos e casuais) que lhe seguem. Belo Horizonte.. ao mesmo tempo. Desta forma. BUCKINX. David BRACKETT (2002) defende essa ideia ao constatar as diferenças de procedimentos existentes nessas esferas. Este procedimento pode ser visto como uma medida conciliatória onde a oposição de precisão e imprecisão nos sugeriria a associação de dois gostos como a única maneira possível de tentar “organizar” a sintaxe. pique! Não seja nem uno. Quanto mais a representação se desvincula de seu referente. 2007. 141). R. nunca plante! Não semeie. compositor norte-americano e saxofonista. da bossa nova. “make it new” – termo proposto por Ezra Pound: significa “tornar algo novo”. nem múltiplo. São Paulo: Ateliê Editorial. a melodia pagã “chanson de l´homme armé” foi amplamente utilizada pelos compositores como cantus firmus e pretexto para o emprego da forma canônica na produção da polifonia (como referência pagã nas missas religiosas.36). XV. “rock lento” e “música para cinema” foram existentes indicados pelo próprio compositor. no entanto. de códigos em desuso (TEIXEIRA COELHO. free jazz. num outro contexto e com diferentes motivações. Suas composições receberam as etiquetas de vanguarda. sem deixar de ser heterogêneos (DELEUZE. Dr. achar alguma ideia nova no sentido de não ter sido ainda pensada. experimental. Podemos fazer outra leitura da utilização da série feita por Mendes. compositor que melhor expressou sua resistência intelectual e simbólica ao Comunismo através de sua atração pelo irracional e pelo seu extremo pessimismo. Schnittke destoa do hedonismo pós-moderno ao optar pela expressão dramática.. ruído. Idioma: usado aqui no sentido de conter uma gramática (escalas. p. 2010. Observamos que John Zorn (1953). não afastado do cotidiano e que também respondia às manifestações de uma cultura de mercado.) “onde a ausência de tempo leva à superabundância de tempo”. traços de estilo. De acordo com HOPPENOT (cf.). estruturas rítmicas e intervalos). Como no pensar de Deleuze. Nosso interesse é o de demonstrar que essa acepção de rizoma personaliza o imperativo de uma heterogeneidade instaurada numa grande linha contínua que por sua lógica nômade simultaneamente a contém e a oblitera. P C. mais o som representa a si mesmo. Refiro-me à inaplicabilidade do critério de autenticidade da produção artística que deixa de ter valor de culto como objeto único (a questão da originalidade anteriormente comentada) e se torna dessacralizado. Referência verificada na apresentação do encarte (assinada por este autor) do CD “Gilberto Mendes – piano solo – Rimsky. 126 . Este está atrelado ao modernismo não rejeitando-o por completo mas. e o pastiche como formas que através de sua coexistência se tornam indiferenciados. Amílcar Zani e Nahim Marun. n. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. p. Deleuze prescreveu: “Faça o rizoma e não a raiz. Não nos esqueçamos. Aqui é necessário reportarmo-nos às observações de Linda Hutcheon sobre a duplicidade paradoxal do pós-moderno. Também a existência de uma recapitulação verificada depois da cadenza no piano (a partir do compasso 102 até o fim da peça promovendo o retorno do tango. porém de difícil identificação para os leigos em sua urdidura). vemos nesse processo o intuito de exprimir o que era conhecido como a ciência musical da época..USP) sob a orientação do Prof. isto é.PERES. Devemos lembrar que já no séc. Per Musi. 1980. Estudou harmonia e estética com o Prof. GUATTARI. da melodia derivada da série acompanhada pelo rock lento no piano) sugere a intenção de recuperar uma retórica cujos princípios formais embora já estejam perdidos são reintroduzidos por Mendes. p. jazz.” Empregamos a concepção de rizoma postulada por Deleuze por acreditarmos que esta traduz melhor a ideia de uma linha (justaposta. mais ele é concreto. documento eletrônico na bibliografia) a fragmentação pós-moderna produz a desorganização do estado perceptivo temporal que paradoxalmente não se opõe à continuidade causando. impedindo a capacidade de recordar pra frente. nos levou a detectá-la. 2001. L. segmentada). Ele afirma: “cada fragmento é uma totalidade que nega a totalidade” (.1988) que nega o princípio da unidade em defesa da multiplicidade de materiais.. inserindo e subvertendo seus códigos: evidenciamos na paródia simultaneamente deferência e transgressão (HUTCHEON. Devemos frisar que neste sentido encontramos exceções no pós-modernismo como no caso de Schnittke. por inferência. V. O ecletismo inclui a citação. sendo consumida no máximo por jovens intelectuais. Possui uma dupla função: simultaneamente alude e desfaz o reconhecimento. Contudo. a possibilidade de abstração em música faz-se através do corte dos vínculos com as figuras tradicionais de reconhecimento. A presença de “fox trot” também por ele afirmada. Hans-Joachim Koellreutter e piano com os professores: Sebastina Benda. Vera Lúcia Rocha Pedron Peres é graduada em História pela FFLCH (USP) e mestre em Artes (programa de Música em Processos de Criação Musical pela ECA . Caio Pagano. Obs. Estilemas: constantes estilísticas. a síncope veio se consolidando como uma figuração de alto valor artístico na música contrapontística culta da renascença. “Mas. it can be noted that. prosódia. A memória e o valor da síncope. especially. p.FREITAS.) in a critical analysis of the figures of syncopation. 1725 (FUX. notas auxiliares.22.) e altura (notas. jul.Introdução: da síncope letrada e sua coexistência em cenários conflituosos A síncope é assunto que se destaca nos “múltiplos discursos” que. dissonance-consonance relationship. S. característico dos antigos. The first part covers up a minimum memory of the art and theory of syncopation in the Western erudite tradition.br Resumo: A síncope é um tema privilegiado nos estudos da música popular que reaparece aqui em um conjunto de considerações que.. a inseparabilidade entre métrica (divisão. marked by the bias of knowledge of the old disciplines of Counterpoint and Harmony. um lugar capital de onde partiu ainda jovem (em formação) para conquistar novos mundos. R. Campinas. p. P. mas é também. na segunda parte.) na apreciação crítica das figurações sincopadas. análise musical. acentuação. auxiliary notes. etc.. observar-se que. 2010. ritmo. a síncope de catequização Recebido em: 02/10/2009 . residues of this tradition can affect the value judgment in some of the syncopated worlds of popular music today. 2010 presença da síncope na música urbana da viragem para o século XX até nossos dias. conflituosos. 1971. . intervalos. confirmam a condição da “música popular como tema privilegiado da cultura brasileira”. Tal “ponto de escuta”. 239 p. Johann Joseph Fux. 60). SP) c2sprf@udesc. relação dissonância-consonância.3 Nos centros musicais cultos da velha Europa.2 Procurando conversa com tais discursos o presente texto argumenta: a síncope é uma questão de rítmica. teoria e crítica da música popular. Keywords: syncopation. accentuation. in tacit and subtle manner. Belo Horizonte. Memory and value of syncopation: on the difference between what the old and the modern teach Abstract: Syncopation is a privileged issue in popular music studies that reappears here in a number of considerations that.dez. a intenção de uma re-escuta assim é sublinhar que tais artesanalidades cultas. acordes. 1 . como mapeou Travassos (2005). sublinham a interação e. resíduos dessa tradição afetam juízos de valor em alguns dos sincopados cenários da música popular atual. Palavras-chave: síncope. prosody. Na primeira parte percorre-se uma mínima memória da arte e da teoria da síncope na tradição ocidental culta para. uma questão de alturas. theory and criticism of popular music. será reouvido aqui num percurso que delineia marcos da síncope letrada desde os finais do século XV até os inícios do XIX. essa será a síncope canônica. plenos de interações negociadas e imprevisíveis. inseparavelmente. também se misturam nesse “um bocadinho de cada coisa” que compõem a sincopada música popular que podemos escutar hoje. instituídas em cenários embaralhados.) and pitches (notes. the inseparability between metric (division. so that. rhythm.22. marcado pelo viés dos saberes das velhas disciplinas de Contraponto e Harmonia. Quando madura. etc. A memória e o valor da síncope: da diferença do que ensinam os antigos e os modernos1 Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas (UNICAMP. underline the interaction and..Aprovado em: 13/03/2010 127 . Per Musi. etc. in the second part. intervals. n. principalmente. em medida tácita e sutil.127-149. etc. chords. porque omitiste a ligadura? Já disse que não devemos perder qualquer ocasião para usar uma síncope .. Sem deixar de valorizar a sempre lembrada PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. especializados e consideravelmente privilegiados textos e cursos formais do Contraponto e da Harmonia. musical analysis. P. a noção pré-tonal de síncope pertence a uma concepção de música que não pôde imaginar o divórcio das alturas (notas e intervalos) de seus desenhos rítmicos. R. no nível da artesanalidade. econômicas. seja re-delineada a seguir de maneira muito geral. 2000. desde o iluminismo. Colômbia. Paraguai. linguísticas. Um cenário vivo. Sem as barras do compasso.127-149. característica. Bach e de um Beethoven. p. p. vocal e contrapontística convive. sociais. Com isso. Venezuela. culturais. filosóficas. A memória e o valor da síncope. Assim. a síncope é um dispositivo caro aos antigos que os modernos vão desapropriar e os contemporâneos vão transformar. considerando que síncope “designa um conceito criado pelos teóricos da música erudita ocidental [. de um J. p. Argentina. etc. sempre citada. para um “ponto de escuta” musicológico mais incisivo: a síncope é “uma das mais importantes fórmulas rítmicas surgidas nas Américas no século dezenove” e “pode-se afirmar que a síncope característica desenvolvida nas Américas não tem relação nenhuma com a antiga sincope europeia” (CANÇADO. 2000. tal música também não pôde existir fora de um cenário ele próprio sincopado. 2010. Re-sinalizar as célebres tensões entre as duas práticas é necessário numa revisão que deseje destacar a presença da síncope colonizadora que se fez ouvir nas circunvizinhanças das missões cristãs interferindo massivamente na primeira idade da música popular que veio se inventando em paragens do Caribe. Bolívia.27): a conversão da música determinada pelos cânones do Stylus gravis (primeira prática ou stile ântico) para a música do Stilus luxurians (segunda prática ou stile moderno). teórico. Mesmo que. Cuba. mesmo desconsiderando fatores históricos e sócio-culturais. o entendimento de quem são esses “teóricos da música erudita ocidental” difira do elenco já referenciado por Sandroni.4 Se. n. ocidentalizante): a síncope de escola que no geral se aprende. pós-romântica.20).24). a exuberante síncope popular contemporânea (pós-segunda prática.6). peculiar. devido ao seu caráter estritamente religioso e seu conservadorismo. cercear consideravelmente nosso alcance crítico e comprometer nossas estimativas da profundidade.22. apropriações e reinvenções e. nos deslocamentos dos acentos do texto cantado (prosódia) e nos desvios da pulsação pendular (cujo padrão se constitui da alternância periódica da consonância no tempo forte contra a dissonância no tempo fraco). mitológicas. sincopada “música das danças europeias de salão”) foi uma personagem institucional com grande poder de barganha na mixagem negociada que veio formando o ouvido musical destes lugares ditos novos e populares.FREITAS. a síncope já possui vasta cultura artística e teórica quando a incipiente tonalidade harmônica ensaia seus primeiros passos. Tal invisibilidade pode tornar-se um vício de método. pós-clássica. e mesmo que a diacronia da síncope.6 Nas disputas do moderno contra o antigo. México. em outro nível. Uruguai. no presente artigo. essa superestrutura distribuidora de síncopes que. Jamaica. a síncope do stile antico antecede a sistematização moderno-contemporânea dos compassos. interage e abre espaço para a síncope tonal.. amplo.5 Em tais “regiões periféricas à Europa ocidental – ideal de civilização e fonte de modelos culturais para as sociedades em sua órbita” (TRAVASSOS. mas não sem métrica. S. Brasil. com saltos e lacunas. basicamente. 1993. Haiti. pura. Algum apossamento desse legado histórico.]. grosso modo. Per Musi. Parte desse mundo que assiste o florescimento da síncope pós-modal na Europa cosmopolita assiste também “a revolução mais radical da história da música ocidental” (HARNONCOURT... o deslocamento rítmico – que faz a fama das figuras de síncope – se observa nessa música pré-tonal. respeitando-se as convenções do andamento e das subdivisões rítmicas impostas pelos estilos eruditos da polifonia vocal europeia. instrumental e harmônica é o mundo onde a Europa de um Tinctoris. se sabe. que sofre ligaduras de toda ordem: musicais. técnico e culto (e por isso supostamente “desinteressante” para alguns dos “múltiplos discursos” que cuidam do “nosso popular”) oportuniza também observar uma espécie de tra- . intenso.. defende-se aqui a divulgação de um patrimônio conceitual e artístico (da humanidade) que. Chile. pós-colonial. 2000. passando por um Palestrina. pós-barroca. 2001. tal exuberância “puramente musical” já é capaz de invisibilizar o fato de que a síncope pré-século XIX também compõe aquilo que somos hoje. naqueles anos da idade moderna (antecedendo e depois convivendo com as menos lembradas músicas da ópera e das corporações militares e com a. duração e repercussão dos processos de sincretismo que o nosso velho Novo Mundo atravessa nas diferentes fases da sua interminável descoberta. A tal ponto que. S. Territórios protetorados que se fazem reconhecer hoje por sua típica (enraizada. natural. O mundo onde essa síncope modal. São muitos os registros para a apreciação desses apreços. p. através da codificação fuxiana inspirada no modelo quinhentista observado na música de Palestrina. Por conta de sua primeira datação (séculos XIV ao XVI).) possui qualidades que superam em muito tanto a gravidade das síncopes do contraponto quanto os preceitos modernos da bela ciência da harmonia (dita hoje tradicional). ainda se encontra formalmente alienado dos limites precondicionados (usualmente sincrônicos e paramétricos) que vamos impondo ao campo da música popular no âmbito acadêmico.49-50) – pode nos levar a não ouvir a presença da música da Igreja. etc. nativa. Não valorizar a presença do stile di Palestrina – considerando que “a música de Palestrina. Belo Horizonte. científicas. EUA. talvez não seja inútil examinar como tal conceito foi formulado por estes” (SANDRONI. se transforma na Europa de um Rameau. tornou-se o modelo ideal para a Contra-Reforma” (CARVALHO. (cristã. p. p. exótica ou estereotipada) maneira sincopada de fazer música. É também o mundo onde se descobre que é possível forjar o Novo Mundo (Novi Orbis). 128 etc. Em Josquim. as tríades maior e menor e o acorde de sexta [primeira inversão]. 1998. etc.. 8ª. Com os neerlandeses.76-89) argumenta: “a síncope (ou retardo) é uma dissonância que conquista o tempo forte”. Ex. Culto e comedido esse uso da dissonância sincopada como figura cadencial já está normalizado em 1477 no Líber de arte contrapuncti de Johannes Tinctoris (c. S. A saber: essa forma de dissonância aparece em meio do contexto musical de modo manifestadamente singular. “a sincopação descendente para uma cadência que é usualmente encontrada na polifonia da metade e final do século XV” (TOMLINSON. difíceis de descrever ou mesmo de imaginar – vão desterritorializar e re-significar a síncope para sempre.78) ilustra essa função de “fixação quase tonal”. P.Sobre a síncope do estilo antigo: quando o muito longe se mostra muito perto7 Em seu Kontrapunkt. uma função específica de “figura construtora de forma”.FREITAS. p. p. 1998. p. p.76). ou ainda “falsificação” no sentido de Adorno (2004. superabundância com desvalorização. esta re-datação da disciplina permite observar algo da arte e normalização da síncope europeia em fases ainda anteriores aos anos de 1500. Observa-se ainda que na música de Josquin e seus contemporâneos a síncope não se emprega em qualquer lugar nem o tempo todo.]. mas pode ser útil nos estudos que abordam as interações contínuas e prolongadas que. com uma bela seleção de fragmentos onde as figuras de síncope ornamentam finalizações sobre diferentes graus dos modos. Assim. Anteriores assim aos tantos efeitos das misturas e contra-misturas cada vez mais inevitáveis e densas resultantes das tensões provocadas por ocorrências coexistentes e incisivas como a Reforma Protestante. nesta posição..42-43). Essa estimada “dissonância acentuada” tinha um uso mais reservado. contribuíram com a formação e consolidação dessa música que aprendemos a chamar de popular. acompanhar a trajetória da síncope é também “contemplar a emancipação da dissonância”: Em Perotin [c. 5ª e 4ªs] as que regiam os tempos fortes.2 reproduz algumas dessas pontuações. p. Notar tal inflação – ou “diluição” no sentido de Pound (1986.1440-1521) como o “capítulo fundamental do contraponto” (e não Palestrina como.1160-1236] eram as consonâncias perfeitas [uníssono. cada uma delas com duas variantes (LA MOTTE. Se quisermos nos aproximar da música de Josquin temos que estudar o papel de construtoras de forma que desempenham as dissonâncias acentuadas.127-149. p.14351511): essa é “a suspensão sincopada”.9 129 . da mesma maneira que a dissonância de passagem [colocada no tempo fraco] que se utiliza como uma via para ir de uma consonância a outra.). as que conquistaram para si esta posição. Salvando-se umas poucas exceções. Per Musi. A dissonância também vai abrindo caminho em direção aos tempos acentuados e.. desde Fux. jetória por inflação (aumento excessivo.8 La Motte (1998. 1998. o Atlântico Negro e as conquistas do Novo Mundo que – em enredos traumáticos. as regras para o tratamento das dissonâncias do tempo forte são extremamente rígidas [.78).1].1 . lA Motte prefere eleger Josquin des Prés (c. La Motte (1998. R. p. Considerando os méritos musicais de Josquin (e de outros compositores nascidos no século XV. tais como Ockeghem e Isaak) e as diversas motivações de La Motte. na síncope as alturas não se separam da métrica.Tipificação das formas básicas das figuras de síncope em Josquin. A memória e o valor da síncope. desde a mais elementar definição. se tornou o mais usual). esse papel de “conferir estabilidade momentânea”. a dissonância é percebida como um acontecimento sonoro. banalização. a dissonância se adentra nos tempos fortes com extremada precaução. Belo Horizonte.. só existem três formas [Ex. praticadas por muita gente e em vários lugares ao mesmo tempo. Contudo.36-38) – em dispositivos musicais como a síncope é tarefa meandrosa e imprecisa. 2 .22. n.403). Ratificando a convicção de que na teoria culta europeia. Na maior parte dos casos se assinala com ela o final de uma frase ou de uma passagem (LA MOTTE. foram as consonâncias imperfeitas [3ªs e 6ªs]. p. 2010. O Ex. .85% de dissonâncias.. i. P. Conforme os estudos sobre o uso da dissonância em Palestrina publicados por Jeppesen em 1946. encontramos em diversos tratados e manuais. por inflação. Zarlino cuida da síncope em várias passagens do Istitutioni. uma espécie de síncope de compensação que atenua o grau de perfeição da oitava.08% de dissonâncias (JEPPESEN.. perfazendo um total de 20. No primeiro temos a sincopação ¯9–8. 1469 notas de passagem e 445 bordaduras.10 A partir desse marco renascentista – que nos ensina que “a força expressiva e a beleza da dissonância acentuada [retardo ou suspensão] se baseiam em parte em sua qualidade de síncope” (FORNER e WILBRANDT..3 traz uma síntese da fortuna crítico-teórica da síncope. 5 compassos examinados nos Cruxifixus de 15 Missarum liber (livros de Missas) de Palestrina. Mas no essencial estará sempre distendendo (inflacionando) o limite mecânicoexpressivo que podemos apreender aqui. salvo diferenças pontuais. No segundo a ligadura ¯9–8 vem seguida da tradicional ¯7–6. A memória e o valor da síncope. O Ex.128) – essa conjunção melos-rythmos vai conhecer um vasto percurso artístico e teórico. p. S. são encontrados 1163 síncopes dissonantes. Um concentrado de termos.. a modernizadora resolução da dis130 sonância acentuada em consonância justa.5b mostra uma resolução ornamentada. Dando um passo na história o Ex. Jeppesen encontrou 955 síncopes dissonantes.A síncope como figura de dissonância em cláusulas escolhidas nas obras de Josquin.22. discute três diferentes casos de síncope. 1993... 1992. O Ex. Belo Horizonte.FREITAS. Examinando o mesma quantidade de compassos nos Benedictus desses 15 livros.5 traz uma mínima amostragem da síncope na engenharia contrapontística de Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594). num total de 24. p. Per Musi. indício de que. esta normalização serve como referência preliminar para a observação geral das síncopes na música culta europeia dos séculos XVI ao XIX e também das síncopes das músicas populares do século XX. surge um dos grandes referenciais do antigo: o Istitutioni harmoniche (1558 e 1573) do teórico. Ex. R.284-285). extraído da terceira parte do Istitutioni. p.4. 1006 notas de passagem e 315 bordaduras. compositor e clérigo franciscano Gioseffe Zarlino (1517-1590). Jeppesen demonstra tal qualidade quantitativamente: em 1489. Entre a geração de Tinctoris (†1511) e Josquin (†1521) e a de Palestrina (†1594). n.2 . mostrando que o dispositivo possui notável papel na música de seu tempo. E o terceiro apresenta uma sequência de síncopes onde a sonoridade ¯9–8 se encadeia por elisão (inflação por justaposição) com a síncope ¯7–6. conceitos e entendimentos considerados importantes nas definições que. Grosso modo.e.127-149. os embelezamentos da desculpa (re- . 2010.. O Ex. a síncope (a dissonância acentuada) ocupa importância evidente no tecido palestriniano. 131 .144) – lição de fundo da música (e da cultura) ocidental – se reafirme: “A beleza é multíplice” escreveu Giordano Bruno (1548-1600). S... o nascimento. p.. P. Ex. R. 1992. g. p. c.. frade italiano e contemporâneo de Palestrina: Entre coisas completamente similares. A memória e o valor da síncope. b. No primeiro (Ex. o meio e o fim. Contudo. 1998.6 a. p. e) aparecem ornamentações da resolução típicas da suspensão préséculo XVII (OWEN.22. o aumento e a perfeição de tudo o quanto vemos resulta de contrários. 1991.374 e 377). antes de adentrarmos de vez no período da síncope tonal. d. escritor. i) adianta ornamentações que se consolidaram a partir do século XVIII (OWEN. [.Uma síntese da normalização tradicional da figura de síncope. filósofo. p. E o segundo (Ex. 1992. importa notar que estes poucos fragmentos da síncope renascentista já são suficientes para que a lição da “potência dos contrários” (ARISTÓTELES.FREITAS. [. n.127-149. Belo Horizonte. não existe beleza.11 solução) vão se tornar cada vez mais sofisticados. o famoso teólogo.3 .47).. 2010.] A beleza se revela no engate das partes distintas: a beleza de tudo consiste na própria variedade. p.178).. Per Musi. em contrários e para os contrários (BRUNO apud TATARKIEWICZ. Para comentar essa intensificação da ornamentação na parte final da síncope Owen prepara dois grupos de figurações hipotéticas.6 f. por contrários. h.] O princípio. P.5 . S.22.FREITAS.198 do Istitutioni harmoniche de Zarlino: Sincope ottimamente risolte.Figuras de síncope da p.127-149. n.4 .12 132 . Ex. Belo Horizonte.. 2010. p. A memória e o valor da síncope. Per Musi.Amostragem de figuras de síncope em dois fragmentos de obras de Palestrina. a) Tu nobis dona fontem lacrymarum b) Sicut cervus Ex.. R. Belo Horizonte. mostrando que 150 anos depois de Tinctoris a síncope era tema de conversas cultas (e não um pormenor de técnica restrito aos especializados). p. 3 .43) – a música. é só uma voz relativa na qual se suportam as dissonâncias. agudeza. em certa medida. como a pintura. p. é um equivoco supor que “dissonâncias sincopadas” são aquilo “que não se pode fazer”.e. 1993. dinamismo e risco que dotam o discurso de expressividade.25). rítmica e de qualquer tipo”. se ouçam melhor e inclusive provoquem a atenção. A arte dos sons “proporcionará maior prazer aos sentidos se proceder como a própria natureza. 2002.127-149. distorção. engenho e interesse. depois 133 . tradicionalmente. R. Como se pode ver no exemplo exposto [Ex.7]. E.� O fato do acento dissonante ser fruto de uma relação (e não algo em si) não se confunde com “cacofonia” ou “anormalidade”.. isto se tolera porque a lembrança da nota A se conserva nos ouvidos. Com esta. p. a Lei). A síncope se produz quando. proibido por regras) “em nome de poupar o ouvido da insistência dessa perfeição”.21) reiterar: “o pré-requisito de uma harmonia é a varietà ou a diversità” Assim – artisticamente. a variedade destas faz que as consonâncias. Mais ainda. Sincopar não é algo “do outro”. se pertencem: um não se realiza plenamente sem o outro. se lê no Compendium musicae de 1618 escrito ainda em Latim por um jovem. “Dissonâncias sincopadas” são forças de movimento e contraste. eurocentricamente –. educado entre jesuítas. “isso precisa até ser evitado” (i. que se tornou conhecido como o filósofo René Descartes (1596-1650). S. Per Musi.6 . são falsas”. p. Dissonância e consonância. como afirmava Tinctoris em 1477 em sua famosa oitava (e última) “regra de uma condução de vozes ideal” é: “que em todas as vozes contrapontísticas reine a diversidade melódica. A norma (o Canon. discordantes e contrários. Entende que a consonância precisa ser contraposta. jogando contra o patrimônio. “a variedade é exigência urgentíssima em todo contraponto”(TINCTORIS apud FORNER e WILBRANDT.97). E DAHLHAUS (1990. A memória e o valor da síncope. em uma voz.Normalização da síncope no estilo moderno Um belo registro dos inícios da era tonal. a B com respeito à C. os “gênios” da música culta europeia são justamente aqueles que dominam a arte da “conjunção dos opostos” (TOMÁS. “proibida” ou mesmo uma “contravenção ao ocidental”.. o final de uma nota se ouve ao mesmo tempo em que o começo de uma outra nota da parte contrária [outra voz]. usadas como antíteses. medidas de equilíbrio. possuindo em suas partes. mas contrapõe essa semelhança introduzindo diferenças e traços variantes infinitos”. Arte que se realiza no manejo das síncopes e de tantos outros truques de deslocamento. 2010. Mais tarde vamos ouvir SCHOENBERG (2001b. contudo. p. são estímulos contrários. Ex. pois. P. Na teoria de Zarlino – comenta ABDOUNUR (1999. Mestre do Stylus gravis. que gera seres semelhantes de uma mesma espécie. quando se ouve a dissonância BC. Zarlino defende que a perfeição resulta do confronto de elementos distintos. p. assim.. entre as quais estão situadas. valorizada pela oposição da dissonância: a harmonia não se dá entre coisas completamente semelhantes. movimentos e tessituras variadas. onde o último tempo da nota B está em dissonância com o início da nota C. O conceito é bem mais nuançado e dinâmico. aumenta a expectativa e. não é um “não-belo” ou uma “discordância” ingenuamente entendida como uma escolha que. metro e contra-metro. n. seria “indesejável”. se suspende o juízo sobre a doçura da sinfonia até que se chegue à nota D.Ornamentação da resolução (desculpa) da suspensão segundo Owen. desencaixamento e contra-norma. proporções. Entre o dito e o não dito.22.58) redizer: “as expressões consonância e dissonância. na qual se satisfaz mais ao ouvido e. torna-se mais arrebatadora “se for pintada com várias cores”. todavia se lhe dá maior satisfação na nota E.FREITAS. concentra potencialidades bastante avançadas (inflacionadas) em relação ao que foi a antiga síncope de linhagem francoflamenga. porque agrada mais o que finalmente chega após ter sido esperado durante muito tempo. p. A função cadencial da síncope se diluiu e. Pelos números podemos ver que algumas ligaduras são efeitos rítmicos (cifradas com 3. a nota F. o intervalo dissonante (2) se intromete na posição métrica de resolução. a síncope dá título ao Artigo 7. Jean-Philippe Rameau (16821764) também destacou a síncope em seu Traité de I’harmonie. forma uma perfeita consonância. O Ex. a no arsis [tempo fraco] e a no thesis [tempo forte] são consonantes. a mínima no thesis. 1998.76-77).22.] A ligadura dissonante resulta quando a mínima no arsis é consonante (que deve sempre ser o caso). 1992.55). P. Estas síncopes são utilizadas nas cadências.. para o qual RAMEAU (1986. n. p. contudo. No Livro 3 (“princípios de composição”). A ligadura consonante resulta quando as duas mínimas.90.A síncope segundo Descartes no Compendium musicae de 1618.61). a resolução do intervalo dissonante (4#) se dá na outra voz (baixo).. de que o final da nota D manteve a atenção. 2000. 1971. [.8 ilustra a sincopação idealizada por Johann Joseph Fux (1660-1741) cento e poucos anos depois do Compendium de Descartes. p. 134 . Definitivamente o moderno Rameau não é mais um professor de contraponto modal do século XVI.FREITAS. e muitas das licenças sugeridas nesse trecho só se tornaram arte na música dos finais do século XVIII e ao longo do século XIX. o aprendiz.. 6.127-149. 5 e 8. em 1722. o ouvido descansa melhor em uma consonância perfeita ou no uníssono (DESCARTES. e pode ser consonante ou dissonante. Ex. Per Musi. 4# ocupando posição de preparação!). o que seria proibido no estilo polifônico rigoroso (CARVALHO.7 . mesmo se mantendo fiel aos números do contraponto e do baixo cifrado. S. ilustra também a ousada possibilidade de uma desculpa (resolução) cair sobre uma consonância perfeita. são consonâncias) enquanto que outras mostram tensões notáveis: a ligadura já parte de intervalo dissonante (o trítono. ao se resolver em um 5. Nesta espécie de escritura – que passou a ser a norma escolar do que é a síncope no contraponto modal renascentista – o tal processo de inflação se evidencia. p. p. a voz que provocou a dissonância se movimenta por grau ascendente (4#6) ou mesmo salta (26). nos diálogos do Gradus ad Parnassum.108-109).296-299) escreve um hipotético trecho musical (Ex. A memória e o valor da síncope. ou seja. é dissonante (FUX. e por isso.8 .Síncopes no Gradus ad Parnassum de Johann Fux (1971.9) ilustrando várias situações de síncope. LA MOTTE. seja por razões de eficiência didática ou pelo distanciamento histórico e geográfico.. Pouco antes.15 Esse trecho tem interesse teórico. pois é uma oitava. afastando-se da arte dos antigos mestres da síncope. Fux cuida da síncope na “Lectio quarta”: “a quarta espécie do contraponto” é chamada ligadura ou síncope. deve se preocupar menos com as funções construtoras de forma e se esforçar ao máximo para encontrar o maior número possível de ligaduras. 2010. pois.14 Em 1725. o último 7. Belo Horizonte. R. que vem imediatamente após. p. depois de ter ouvido uma dissonância. Ex. p. Bernhard. S. Thuringus.368-369). a síncope tem lugar assegurado no conjunto das “figuras de dissonância e deslocamento” (Bartel. a síncope (syncopatio ou ligatura). 2004.. enquanto os outros mestres da música devem fazer o que as notas queriam”. p. emblemas de um estado social causador dos males da condição humana) o philosophe-musicien Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) não deixou faltar um verbete para a “Syncope” no Dictionnaire de musique que publicou em 1768: Síncope é a prolongação sobre o tempo forte de um som começado em tempo fraco. 2010. a primeira parte da sincopa seguinte serve. A primeira parte da síncope serve como preparação: a dissonância se ataca na segunda. [. assim toda nota sincopada está em contratempo.22. 1979. Walter e Sheibe definem e exemplificam a figura da síncope... Kircher. Janovka. p. no vasto campo das figuras retóricas da música barroca alemã – a cultura musical matizada pelo viés reformista luterano –. 2000. Implicado com Rameau (e com a “Harmonia”. ou “figuras de dissonância que afetam a harmonia e a condução de vozes” (López-Cano.57). p. três ou mesmo quatro vozes.FREITAS.. A memória e o valor da síncope. Dispor conscientemente de um material natural significa a emancipação do homem com respeito à coação natural da música e a submissão da natureza aos fins humanos (ADORNO.396-405). Belo Horizonte. p. porém as sincopas são anteriores à nossa harmonia. Nucius. Em 1773.10) de como músicos de então poderiam entender.57). [. a arte do baixo contínuo de viés bachiano e as modernas ideias do baixo fundamental de Rameau (KIRNBERGER. P.127-149. LESTER.. Como uma espécie de prenúncio da era clássica seu trabalho é considerado uma síntese que reúne e reavalia a antiga tradição contrapontística. 2007. pois.17 135 . e numa sucessão de dissonâncias.19 Esse “ponto de escuta” da síncope foi registrado por diversos tratadistas e professores. explicar e cifrar (numa dis- pendiosa inflação de números) o fenômeno inflacionado das ligaduras em uma.1997. contudo sua principal utilidade está na harmonia para a prática das dissonâncias.446). e muitos casos existem de síncopes sem dissonância (ROUSSEAU. é um dos mais antigos dispositivos descritos pelos teóricos como um dos principais meios de formar e embelezar uma composição. duas. R. 2006. para salvar a dissonância que precede e para preparar a que segue.xi) personifica uma aspiração nascida já nos primórdios da época burguesa.773.] “o mestre das notas que devem ter feito o que ele queria. 1998. de “compreender” com critério de ordem tudo o que constitui o fenômeno musical e de resolver a essência mágica da música na racionalidade humana. dentre os quais Bartel compila as passagens onde Susenbrotus.] O senhor Rameau pretende que esta palavra derive do conflito dos sons que se entrechocam de alguma maneira na dissonância. n.167-168).] A síncope tem seus usos na melodia para a expressão e o goût du chant.21 Ex. WASON. uma suspensão com ou sem uma dissonância resultante. p.9 . Vale notar que Josquin também é referência para o mundo luterano.20 Burmeister..16 Outro letrado que marcou a teoria musical na segunda metade do século XVIII foi Johann Philipp Kirnberger (1721-1783). Kirnberger enfrentou sistematicamente as suspensões dissonantes deixando um registro detalhado (minimamente referenciado no Ex. ao mesmo tempo.. 2006. p. Lutero chama Josquin [. por sua mestria.Demonstrações de síncopes modernas conforme Rameau em 1722. Nesse mesmo período (séculos XVII e XVIII). e toda sucessão de notas sincopadas é uma marcha em contratempo. Per Musi. p. controle e ordenação dos recursos musicais “esse primeiro músico de expressão moderna” (LA MOTTE. Segundo Bartel (1997. p. ocupado com os verdadeiros princípios para a prática da harmonia. p.. e. Uma síncope expandida que. escapadas.. variações. diluição ou deslocamento (onde um dispositivo anteriormente reservado para um determinado papel se vê expandido para papéis diferentes)..12a). 1986. um dispositivo novo (moderno) que se consolidou no estoque das dissonância da tonalidade harmônica (notas de passagem. Esse tipo de processo de re-funcionalização. bordaduras. A dissonância ocupa a preparação (Ex.). re-significadora ou trans-cultural surge em meio a percursos assim. apojaturas. p. ora desqualificando e ora qualificando.O acorde perfeito maior e suas suspensões dissonantes segundo Kirnberger em 1773. R. 2010. como dizia o teórico musical alemão Heinrich Christoph Koch (1749-1816) em 1782: “no estilo livre. cambiatas. misturado. pobre e inculto justamente porque deseja imitar o culto (o rico. popularesco. O que deu cunho específico à música do Barroco foi a experiência conjunta de toda a Europa que teve [. Entre a dissonância e sua resolução surgem permeios bastante sofisticados (Ex. rompendo a sisudez do estilo estrito. p. alcança a textura legítima e recorrente da sincopação plena (Ex.].. etc. exagerada e indecorosa. e não propriamente. p. e tal imitação se mostra. um estilo imoderado. de inflação.11 e 12. etc. ‘E como toda a música alemã posterior remonta a Bach. também se faz notar na formação disso que agora chamamos de música popular urbana. ornamentações e combinações com outras diferentes espécies de dissonâncias.69). afirmadora.11d). ou é percebida como.9). 1985.22. personificando em si o princípio estético essencial da tensão e relaxamento” (BENJAMIN. implantes. Ex. Per Musi. 1980. o inteligente. da invenção de algo que jamais se fez antes. S. Ponto de confluência da música europeia e ponto de partida da música futura das nações. o gênio musical alemão.). desinteligente. da música culta da Europa na Europa e nas suas colônias). dominaria de futuro no mundo ocidental’ [. a musica burguesa europeia. a síncope dessa universal “música futura das nações” se faz representar minimamente nos fragmentos reunidos nos Ex. Nesses fragmentos as três etapas da antiga síncope – preparação. Estigma que contribui na desvalorização de uma artesanalidade que pode. A rítmica da síncope é usada em texturas homorítmicas sugerindo o caminho para a sincopação das figuras de acompanhamento (Ex.12b) e não mais exclusivamente de suspensão ou retardo. em boa parte da narrativa contemporânea (séculos XIX e XX) da história da música universal (i. de mau gosto. Belo Horizonte.12e). o original.127-149. P.. n. retardo ou suspensão) se tornou na emblemática música de J. etc.23 4 . Agora. Surgem novos usos para a síncope da antiga prática (Ex. ilegítima. Esse percurso de mais de três séculos – que separa (e une) as cláusulas sincopadas de Tinctoris. S. No correr dos séculos XVIII e XIX a teoria se vê obrigada a distinguir coisas que estão se tornando independentes na síncope: de um lado o deslocamento métrico e de outro as espécies de dissonâncias.. dissonância não precisa ser preparada” (KOCH apud RATNER. ligadura e resolução – vão sofrendo inflações de todo tipo: mutações.10 .22 Tal processo de adesão excessiva a um determinado dispositivo pode carregar o valor negativo de maneirismo (afetação. caucasóide e culta. já estamos ouvindo o galante estilo livre. A obra de Bach é simultaneamente ponto de confluência e ponto de partida. Música onde a transformação modernizadora. 18 136 .11b).11c). ser vista como um stilus luxurians demais. E certos mestres nos surpreendem com resoluções ascendentes (Ex. E. por isso.] na obra de Bach seu ponto culminante. excesso. O desenho rítmico agora pode estar carregando dissonância de antecipação (Ex. Cadeias de síncopes agora já ocupam papéis motívicos temáticos (Ex.23)..24 Barroca.. (NEUNZIG. vai se fazer representar por aquilo que a síncope (ligadura.11a). ou exclusivamente.).12c). clássica e romântica.Retransformação: da síncope moderna para a síncope do estilo livre Toda essa polifonia – as músicas e teorias que perpassam os séculos XV ao XVIII – assiste o surgimento de uma síncope sincrética.12d). p. indiscreto.FREITAS. banalização. Agora. A memória e o valor da síncope. contando com esse “poderoso recurso para a produção de tensão expressiva. as cadeias de suspensões de Fux e as sincopações normalizadas por teóricos da harmonia moderna e pelos cultores da retórica musical – dá pistas das transformações que a síncope sofre no âmbito da própria música e teoria culta europeia. As suspensões não são explicitamente resolvidas (Ex. Bach. antecipações. a) Johann Gottfried Walter (1684-1748). Belo Horizonte. Inventio 6 (BWV 777) d) Johann Sebastian Bach. n.127-149.11 .Mostruário de síncopes europeias emblemáticas da música culta moderna. 25 137 . p. Concerto Italiano c) Johann Sebastian Bach.. um caso de resolução ascendente Ex. A memória e o valor da síncope. Per Musi. 2010. R. S. P.22.. Musicalisches Lexicon. b) Johann Sebastian Bach (1685-1750).FREITAS. 1732. o tenente coronel André da Silva Gomes (1752-1844). variada. p. o “gênio”. R. escolar. e combinada com uma série de fatores diversos (musicais e extra-musicais). expressiva. Mas sabe também que esses efeitos não são impróprios.FREITAS. p. sabe que não se trata de tomar um único partido: tempo e contra-tempo. se faz reconhecer pelo uso da síncope mais difícil. S. 2006. Assim. desta hegemônica tonalidade harmônica que nos cerca. mas sim a irregularidade (BESSELER apud LA MOTTE.. funcionamento irregular ou falho. Como todo músico minimamente treinado nos cânones da arte europeia. Vamos apreendendo que o “conflito com a métrica prevalecente” (SALZER e SHACHTER. Quer dizer que a repetição de grupos ou desenhos de notas. nestes termos. gêneros. Sabe que se trata de um contrário ao que é o regular. E que. 2006. vamos notar que estilos. . imperfeição. para que depois ficasse mais susceptível e recebesse com maior recreio a Consonância que se seguisse. é claro. n.127-149. embora seja uma tarefa um tanto dispendiosa. surpreendente..67) e o atrito com a consonância predominante que se dão numa síncope não são defeitos (arritmia. pela qual ocorre apenas um jogo alternante de consonâncias podendo a nota ligada ser tratada livremente. p. “Essa ação e reação que da luta recíproca de forças discordantes extrai a harmonia do universo” (BURKE apud TOCH. No seu tratado A arte explicada de contraponto. a repetição do mesmo e de coisas similares ou a reaparição de um determinado ritmo no compasso seguinte era mal vista. beleza. ordinariamente. carência de linhagem. mas é também uma distinção de valor: agrega capital artístico.. alcançada e/ou deixada por grau conjunto ou salto” (idem). mesmo aqui – num Brasil dos idos anos de 1800 quando uma música popular vem se formando ao redor das igrejas.e. eles estabeleceram experimentados preceitos entre os quais um deles muito especial e capaz de modificar a dura aspereza da Dissonância foi o uso e modo de unir estas Espécies com Ligaduras. Como os demais tratadistas. usam mais ou usam demais as síncopes consonantes – são julgados como algo de qualidade menos artística. A ideia melódica deve apresentar a cada momento algo novo. tal distinção específica é técnica. por grau conjunto descendente” (LANDI. Conforme o musicólogo alemão Heinrich Besseler (1900-1960). parece de propósito. Silva Gomes cuida da Ligadura nas lições 9ª a 13ª (LANDI.3 já pré-anunciou. De maneira relativa. seu uso implica habilidade.18). Silva Gomes sabe dos efeitos da síncope. 2006. ou seja: a síncope de tipo dissonante e/ou ornamentada. isto é. não menos do que muitas inerentes circunstâncias. que antecede as lições específicas sobre a Ligadura: Tendo estabelecido os Sábios a variedade de Espécies com que se propuseram a organizar o corpo da Composição. p. dessa babel pós-bachiana. Per Musi. ou coisas do tipo). monótona. de excluir totalmente o uso da ligadura voluntária (a síncope consonante). 1999. chocar primeiro o ouvido com a Dissonância. Silva Gomes distingue duas qualidades principais de ligadura: A ligadura precisa (a síncope necessária.� Não se trata. vulgar ou menor. proporcionando os Meios para que isso se conseguisse. Consolidada no ambiente sacro erudito pré-moderno.184-200). A ligadura voluntária “refere-se ao tratamento da síncope. embora não seja possível nem desejável desenvolver tramas musicais só com a ligadura precisa (a síncope dissonante). querendo. mais pobre. tal distinção técnico-valorativa sofreu seus sincretismos e numa espécie de repercussão impremeditada se fez qualidade de grande apreço nos mundos contemporâneos das músicas populares sincopadas. 5 . Conhecedor dos segredos da arte que explica. Silva Gomes re-ensina a grande regra: tratar da síncope é tratar da variedade como valor estético. Como o Ex. 1993.146). 1998.184). onde a nota ligada deve ser preparada e seguida de sua resolução. Entre as duas se estabelece uma relação intencionalmente assimétrica: uma variedade equilibrada por uma desigualdade. esmero e maestria. Ao final da 9ª lição. 2010. as Falsas e Dissonantes 138 nas Composições. músicas e músicos que invertem tal assimetria – i. complexa. chegando por esta descoberta a ponto de introduzir felizmente e com estimável apreço. Com esses poucos fragmentos vamos percebendo que. i. tendo essa modificação o valor de preceito principal. p. pois “In omni contrapuncto varietas accuratissime exquienda est” – “a variedade é exigência urgentíssima em todo contraponto” (TINCTORIS apud FORNER e WILBRANDT. são forças constituintes da música que interagem numa negociada síntese de opostos. antes são valores artísticos altamente positivos na arte católica. com acentos vários.. geral. inesperado.41). sabe do seu real deslocamento. Não se busca a regularidade. p. cultural.Valoração: algumas síncopes são mais do que outras Um registro da síncope feito pelas elites letradas no Brasil nos inícios do século XIX foi deixado pelo mestre capela da Sé de São Paulo. fraqueza moral. prescrevendo as partes que a Ligadura se deve dividir. “Preceitos concernentes aos Usos e Modos de Formar a Ligadura”. a figura de síncope é uma filha natural dessa “música das nações”. implica em agudeza e engenho. Silva Gomes faz um precioso comentário. social. P. admitidas e ordenadas as Agradáveis Consonâncias e aspirando a tornar aprazível o som das mesmas Dissonantes fazendo que elas fossem índices sensíveis da bela Harmonia. Belo Horizonte. simbólico. das corporações militares e das aglomerações urbanas – o efeito retórico expressivo da síncope é algo de grande valor a ser aprendido com cuidado e diligência pelo músico que está sofrendo a sua devida catequese ocidentalizante. inteligente e criativa. p. Trata-se de colocá-la em seu devido lugar e proporção. conservadora e ocidental. a dissonante) “refere-se ao tratamento da suspensão. linguístico.e.22. 2001. p. não são valores excludentes. O conhecedor do ofício. O zeloso espaço reservado ao assunto evidencia que.25). é possível notar que os traços de síncope estão mesmo certificados em tanta arte e registrados em tanta teoria. deformidade. A distinção se fundamenta na concepção artística de que. A memória e o valor da síncope. no século XV entendia-se por varietas uma modificação da técnica musical de qualquer tipo que se pudesse pensar. todas importantes e precisas para o feliz êxito de uma bem ajustada Composição (SILVA GOMES in LANDI. acordo e tensão. inferior. Ex. R. Kurze und leichte Klavierstucke. c) Franz Joseph Haydn (1732-1809). n. 1782.. a) Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Sonata n. n. 2010.127-149. P. 12. 12 .FREITAS. b) Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788). S. fragmento do Quarteto. 12.. K.Mostruário de síncopes europeias emblemáticas da música culta moderno-contemporânea. 387. p. Belo Horizonte. A memória e o valor da síncope. Molto Allegro. Per Musi.22. 26 139 . P. para outras pessoas.� O Ex.� Não formalmente expressa – e sempre entre aspas. dentro deste campo da música popular.Síncopes características: os garfinhos na música popular brasileira Não raro tal distinção – que.22. (Pathétique). 1838. (Cont. Per Musi. são menos dançáveis. será a “melhor” ou a “mais” caribenha. Esses fragmentos são grafados aqui de maneira simplificada. Antes.). uma observação deve ser feita. O critério está sutilmente presente na distinção entre o que é música sincopada mais ou menos “comercial” (síncopes difíceis vendem menos. op. e) Robert Schumann (1810-1856). e são percebidas como tristes. portenha. em outros lugares. não é autosuficiente. pois é apenas uma das tantas especificidades que atuam nos domínios de um campo – realça matizes xenofóbicas e nacionalistas: a “melhor sincope” (a “boa”.) Ex. n. tal distinção atua no nível do conhecimento tácito. 26 6 . 2010. etc. sugestiva e .1. cubana. R.. vale insistir.Mostruário de síncopes europeias emblemáticas da música culta moderno-contemporânea. 10 (Fast zu ernst). Rondo. A memória e o valor da síncope. Sonata. negra. Com isso. 1798-99. n. op. algumas músicas. verdadeiras. Belo Horizonte. 15. antigas. jazzista.13 reúne algumas síncopes brasileiras intencionalmente escolhidas em obras emblemáticas produzidas por mestres da “nossa” artesanalidade sincopada recente. enquanto que outros vão se identificar totalmente com ele..). é uma espécie de segredo recôndito que contribui para alimentar a crença estereotipada de que “algumas síncopes são superiores” e por isso devem ser “separadas e conservadas” como cultura autêntica e pura. de raiz. a “característica”) é a “mais brasileira” (ou. subentendida. 12 . pois 140 tudo isso tem validade delimitada –. d) Ludwig van Beethoven (1770-1827). originais.FREITAS. problemáticas.) e entre o que é mais ou menos “tradicional” (síncopes difíceis são mais legítimas. Kinderscenen. seus músicos e simpatizantes.127-149. p. etc. podem perfeitamente não reconhecer ou validar esse tipo de critério. etc. S. por outro lado. vale concluir notando que observações desta natureza – a busca de uma historicidade formativa do que seria a síncope brasileira. ou de “alma” da musicalidade brasileira. a instrumentação. frações pequeninas de artesanalidade sutil e subliminar. Como se sabe. etc. P. n. etc. estereotipadamente. o texto das canções. os processamentos de mixagem.262). tessituras. ocidental) não está na opção por “d” ou por “c”. é uma das muitas “falas” – das muitas maneiras de pensar. não é propriamente uma questão exclusiva da composição (notação. tonalidades. fazer e julgar – que discursam nas longas e tortuosas conversas que estão na linha do telefone-sem-fio das transformações do mundo. mas o horizonte de compreensão da questão das síncopes características (brasileiras ou outras) é... 2007. a mise-en-scène. todo o ambiente que um fato musical evoca incluindo o tamanho. Enviesadamente os fragmentos amostrados no Ex.263). institucional. etc. bem mais amplo e miscigenado. E nesta densa trama de “impossível pureza” (BARBERO. aonde e por que. originalidade) das combinações sequenciadas e a qualidade das posições ocupadas. na arte e na teoria. A intenção do Ex. a iluminação.) que vão diferir substancialmente das medidas aferidas aqui.. a ocorrência objetiva de letras “d” (dissonâncias) contrapostas às letras “c” (consonâncias). arranjo ou improvisação que se pratica nesse campo tudo isso (notas. Mesmo correndo o risco de reelaborar o que já está dito em alguns dos “múltiplos discursos sobre música popular”. 7. dominadora e milenar. o lugar e o valor que estes “nomes” – o “feitiço do nome do mestre” como dizia Walter Benjamin (apud BOURDIEU. provisória e visam ilustrar o argumento (de que as combinações das qualidades das alturas nos desenhos rítmicos das síncopes influem numa distinção valorativa). o comportamento e a adesão de algum público aficionado. R.13 é estimular associações entre. andamentos.. Assim. no mundo social em que vivemos. notas do acorde ou notas auxiliares. o vibrato. etc. já que na escrita. resolução. Por ex. o valor em música popular é uma grandeza relacional. de ver. a síncope da tradição erudita não é um patrimônio privativo e anistórico que. prestigiosa.). enquanto que “d” implica em tensão e movimento. a busca do que e em que medida compõe uma espécie de DNA. os parâmetros de ritmo e altura jamais estão sozinhos na tarefa de julgar qual é ou não a boa síncope. um tipo de pronúncia ou sotaque que atua também (ou muito mais) no tecido rítmico dos “acompanhamentos” destas melodias. “d” em preparações ou resoluções pode ser sinal de engenho. essa síncope letrada toma parte das “mestiçagens que nos constituem” (BARBERO. A síncope é também (ou muito mais) uma questão de elocução. 2010.287) –. Importa notar que o valor tradicional (tonal. é um componente de interpretação e performance. depende de efeitos combinados onde aspectos incontáveis e diversos interagem. que se misturam nos nossos julgamentos de valor. 2008. e sim no equilíbrio ou desequilíbrio conseguido entre elas. interpretação. p. puro. a variedade (riqueza. quais figurações são sincopes ou não. p. complexidade. modernização.FREITAS. na cultura. 141 . S. etc. ocupam na música. é preciso frisar com clareza que tais associações ou referências não são suficientemente alimentadas exclusivamente pelo puro isolamento técnico-objetivo das combinações entre “d” e “c”. a tessitura. as qualidades da harmonia. p. Certamente tais impermanências implicam em medidas analíticas objetivas (quais intervalos são consonantes ou dissonantes. nas músicas populares uma composição não se fixa com demasiada rigidez. Como se sabe.127-149. leitura. “c” pode indicar repouso ou distensão. virtuosismo. como se sabe. suspensão. o que conhecemos destas obras e autores. Belo Horizonte. articulações. 2008. o andamento.22. Per Musi. o volume. Arguta. etc. O ritual leva em conta quem está fazendo música para quem. – dependem do cruzamento de um espesso caldo de considerações. humor. A memória e o valor da síncope. os olhares. Por ex. etc. preparação. criatividade. o timbre. um modo de expressar. ileso e autônomo. a expressão corporal. etc.). por um lado. instrumentação. ironia. de inúmeras e inacabadas interações transformativas. tensões disponíveis. impureza. p. menor qualidade artística.. as qualidades e posicionamentos das alturas no interior do desenho rítmico da síncope são apenas mais alguns dos mínimos detalhes. divisões rítmicas. assim.) vai mesmo se modificando a cada singular recriação.� E. Contudo.Em conclusão A visita a esta memória da síncope oportuniza notar que. Importa notar a relação de proporção/desproporção entre “d” e c”. quantidades e qualidades dos acordes. vai percorrendo épocas e lugares sem sofrer redefinições e experimentar novos usos e pronunciações. etc. ouvir. a síncope não é uma noção unívoca que se acha homogeneamente pré-estabelecida e paralisada em algum lugar. Como tantos dispositivos musicais que vão atravessando o processo da colonização ocidental. na economia. 13 realçam tão somente os aspectos do controle das alturas que compõem a melodia (intervalos consonantes ou dissonantes. “c” em lugar de suspensão pode ser sinal de imperícia. Combinações “d” e “c” também dão indícios do desenvolvimento causa-efeito da trama. Ex.13 . 2010.Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB. Lamentos. a) Ernesto Nazareth (1863-1934).FREITAS.. Belo Horizonte. R. b) Pixinguinha (1897-1973). Carinhoso. n. P. A memória e o valor da síncope.22. S. choro. Brejeiro. c) Pixinguinha.127-149. Per Musi. maxixe. p. 31 142 . choro-canção.. p.. R. Chega de Saudade. P. Per Musi. e) Hermeto Pascoal (1936-). 143 . n. d) Tom Jobim (1927-1993)..22. Belo Horizonte. Surpresa.Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB.) Ex. (Cont.13 .FREITAS. S. A memória e o valor da síncope.127-149. 2010. R.) Ex.13 . Só me fez bem. (Cont. Belo Horizonte.22. A memória e o valor da síncope. Per Musi. P.127-149. f) Edu Lobo (1943-) e Vinícius de Moraes (1913-1980). Soy loco por ti América. p. 2010. 144 . S. n.FREITAS. g) Gilberto Gil (1942-) e Capinam (1941-)..Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB.. 2. In: CONFERENCE UNDERSTANDING AND CREATING MUSIC – UCM. GROUT. Tânia Mara Lopes. v. James R. Néstor. 1997. Nicola. JEPPESEN. 2008. p. CD-ROM. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto. Wallace. Pierre. Dietrich. Cheng Zhi Anna e CHEW. Versão 1. Contraponto modal. Mário de. R. p.br/online/>. CAVALCANTI. HARNONCOURT. História da música ocidental. 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No exemplo a letra “c” corresponde a um intervalo consonante e a letra “d” a um dissonante. Dentre os que não seguem as espécies fuxianas estão: Benjamin (1979). p. p. 2005). p. O caminho para a música nova. 11 O Ex.. é vertiginosa a diferença que se observa entre uma suposta síncope palestriniana e uma estereotipada síncope de samba-de-enredo. Por volta de 1911.1300-1377) e Francesco Landini (c. Os termos usados em tratados brasileiros e portugueses nos séculos XVIII e XIX foram recolhidos em Fagerlande (2002) e Landi (2006). n.19). No cadinho que nos coube nesse Novo Mundo. No repertório as dissonâncias sincopadas também estão presentes nessa música do século XIV..] nas soluções precedentes de problemas tecnicamente racionais. 2010. Mario de Andrade.) da mesma maneira que aprendemos a falar de um catolicismo “brasileiro”. E que isto tenha sido possível teve seu fundamento [. o Ars perfecta in musica e o Liber musicalium atribuídos a Philippe de Vitry (1291-1361). José Miguel. Kramer (1985) e La Rue (1989). onde a síncope ocupa a destacada posição de quarta espécie de contraponto – estão: Carvalho (2000).9-10).1290-c. Tratados como o célebre Ars nova (c. WISNIK. Belo Horizonte. catholicum (regra geral).1340). já que o termo “católico” pretendeu dizer justamente aquilo “que é universal”. Note-se ainda que o desenho de síncope não é puramente melódico. 7 A expressão “muito longe. Komar (1971). nos desfiles [de carnaval]. (Torrinha. 2 Considerando que “a música popular atrai os eruditos” e “pesquisadores vinculados às universidades”. “com a finalidade de moldar a paixão”..174-181).261) acaba sendo reconhecido como tal. 4/5. Salzer e Shachter (1999). catholicus (universal. de Johannes Tinctoris (c. o Brasil. em obras de Philippe de Vitry. E esse “jeito de ser”. p. São Paulo.96-103) sugerem a unidade de tempo de 70 pulsações por minuto. Machado maxixe: o caso Pestana. São Paulo: Novas Metas. tem sido de 132 a 138 [pulsações por minuto].] A noção de cultura massiva surge quando as sociedades já estavam massificadas”.1351) como o Libellus cantus mensurabilis (c.103-105).122).. Fux (1971). p. São Paulo: Edusp. Grout e Palisca (1994) e Palisca (1996). “enquanto no Rio [de Janeiro] a pulsação média dos sambas[-de-enredo]. no andamento. esse “modo próprio de perceber e narrar. Em um primeiro grupo – reunindo autores que seguem a normalização proposta por Fux. 2006). Max.Tratando da “inclusão do ritmo” no estilo palestriano Forner e Wilbrandt (1993. “de fato.105-107). S. 2003. 6 Uma alusão ao título de NEVES (1985). 2001. desde cedo. Para uma comparação acentuada com um caso atual de “síncope brasileira” onde a figura de síncope ocupa uma unidade de tempo. ¯2-1. WEBERN. 1990). regular). apesar das origens (já sincréticas) do termo e da própria religião. Forner e Wilbrandt (1993). na criação de instrumentos determinados que impeliam à interpretação harmônica dos intervalos musicais. 1942. p. Jeppesen (1992. p. 2a e 2b foram reescritas (no destaque) em compasso dois por quatro. 2009). Foram particularidades absolutamente concretas – condicionadas sociologicamente e pela história da religião – da situação externa e interna da igreja cristã no Ocidente que originaram ali. contar e dar conta” (BARBERO.ex. Oneyda Alvarenga.. O próprio termo “católico” – do Latim catholice (universalmente).1435-1511) é um marco renascentista do registro teórico da síncope... aprendemos a falar da “síncope brasileira” (ou. suspensões como ¯9-8. Anton. geral. Travassos (2005) mapeia a produção acadêmica que trata da música popular nos campos da etnomusicologia. nas operações etnocidas da conquista e da colonização. em seu “fundamentos racionais e sociológicos da música”. Machado (2007). p.3 procura resumir diversas referências. acabou negociando seu jeito particular de ser “católico”. que sem suspeitar o alcance posterior de seus atos racionalizou para seus fins a polifonia popular [. Napolitano (2007). 5 O uso do termo massivo em contexto anterior aos meios de comunicação de massa foi sugerido por GarcÍa Canclini (2003. da “síncope cubana”. que tratando da “síncope brasileira” relê diversos estudiosos (tais como Edison Carneiro. 2008.13271397). 1995. p.¯4-5.77). R. na cristianização violenta de grupos com religiões diversas. La Motte (1998) e Piston (1998). p.1322).. Per Musi. WEBER (1995) destacou correlações entre a “notação” e o “papel fundamental que a Igreja desempenhou em todo o processo de racionalização” que culminou na moderna música ocidental – a música “condicionada” pela “Akkordhamonik” (harmonia de acordes). 4 Sobre as normas de adequação música e texto (Latim) na polifonia ver Benjamin (1979. Para Sandroni. Teve papel nessas realizações na Alta idade Média o monacato dos territórios missionários do Norte-Ocidente. Por conseguinte. Jeppesen (2005. o universo). p. estudos literários.38-47) e La Motte (1998. etc. sociologia e historiografias. conforme o narrador. Kennan (1987). Forner e Wilbrandt (1993. pela marcação de 1989” (IKEDA.127-149. Observa-se com essas tão antigas figuras novas que. da “sincope jamaicana”. p. P. Sandroni (2001). p.22. p. WEBER. nesse andamento a figura de síncope ocupa duas unidades de tempo. já que depende de no mínimo duas vozes. não estariam ainda em uso na época de Josquin (LA MOTTE. 147 . [. Notas 1 A expressão “da diferença do que ensinam os antigos e os modernos” foi tomada de LANDI (2006.FREITAS. Teresa Revista de Literatura Brasileira. CANÇADO (2000). Sodré (1979) e Wisnik (2003). Para estimular comparação com uma grafia da síncope que aparece na música popular atual. no “canto polifônico racional”. mas da música popular brasileira em geral” (SANDRONI. ¯7-8. que na sua essência era de tipo “técnico” (WEBER. A memória e o valor da síncope.50-51). Carvalho (2000. n. 3 A expressão “um bocadinho de cada coisa” foi tomada de BESSA (2005). a partir de um racionalismo próprio apenas ao monacato do Ocidente. temos que. O andamento é um fator a ser considerado na re-significação da síncope. Assim. Assim particularmente na criação da notação racional (sem a qual nenhuma composição moderna seria sequer concebível) e. ela é de 138 a 144 em São Paulo. 1984. da “síncope do Ragtime norte-americano”. esta problemática musical. 1995. e sobretudo na criação do canto polifônico racional.78-81).255-256): “A rigor o processo de homogeneização das culturas autóctones da América começou muito antes do rádio e da televisão. Cf. 1998.130) – é útil para pensarmos a memória da síncope. decorrem daquilo que o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) chamou de “notação racional” (cf. Andrade Muricy. Tal registro foi precedido – informa RIEMANN (1962. alguns musicólogos viram na síncope uma característica definidora não apenas do samba.76).]. antropologia. Mas esse contra-senso (esse universal vertido em particular) deslocou-se frente ao fato de que.. muito perto” foi tomada de SAFATLE (2007). e também em trabalhos atribuídos a Johannes de Muris (c. 8 Datado de 1477 o Líber de arte.. Para estudos que abordam as relações entre métrica e altura na tonalidade harmônica ver Berry (1985). Schenker (1987) e Schoenberg (2001a). 10 Conforme La Motte (1998. p. Owen (1992). etc.). Um sutil contra-senso. p. FFLCH/USP. semiótica da canção. como outras paragens do Novo Mundo. Forte e Gilbert (2003).. FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149. 12 Conforme Benjamin (1979, p.150 e 173). Esses fragmentos não trazem todas as informações que constam na partitura e os comentários analíticos são parciais. 13 O uso da dissonância é assim um critério de valor altamente positivo no julgamento artístico ocidental. Seu emprego denota risco, virtuosismo, habilidade e maestria composicional. Com isso, Palestrina pôde ser considerado um dos grandes do seu tempo porque, entre outras coisas, conseguia usar mais dissonâncias do que outros maestros da época. No ranking demonstrando estatisticamente a capacidade de uso de diversas dissonâncias (notas de passagem, suspensões, bordaduras e antecipações) compilado por Huang e Chew (2005) com o auxílio de um software para análise musical, vemos que Palestrina aparece em primeiro lugar com 18,37% de dissonâncias, em segundo vem Tomás Luis de Victoria (1548-1611) com 14,8%, depois William Byrd (1540-1623) com 10,57% e por fim Orlando di Lasso (c.1530-1594), com 7,84%. 14 Não se trata, é claro, de uma não percepção do ideal de diversidade defendido pelos grandes teóricos do renascimento como Tinctoris e Zarlino. Fux conhece a importância artística da variedade, basta ir até à sua 5ª espécie, por isso mesmo chamada de “contraponto florido” (FUX, 1971, p.64-67). Mas é que o diligente Fux é um personagem do Iluminismo exercendo o poder de abstração e o melhor da concepção pedagógica de seu tempo: “a maneira do Iluminismo conhecer [e logo ensinar] uma coisa era: identificar, separar e classificá-la” (GAINES, 2007, p.190). Fux trata do uso da síncope em cláusulas (cadências) em diversas passagens ao longo do Gradus... , p.ex., no “Exercitii V. Lectio III. De trium partium Fugis”. 15 Ver ainda Livro 2 (da natureza e propriedade dos acordes) Artigo 1 e Artigo 4 (RAMEAU, 1986). Para Rameau o efeito de síncope é algo comparável a uma colisão, daí a origem do termo. Síncope seria composta por duas palavras gregas: syn e copto (RAMEAU, 1971, p.78; ROUSSEAU, 2007, p.368). Syn é um prepositivo que implica em juntamente (ao mesmo tempo, associação, etc.) que aparece em palavras como sincronia, sinergia, sinfonia, sinônimo, síntese, simetria, simbiose, símbolo, etc. Já copto (-cope) significa bater, colidir ou cortar e é usado como pospositivo no eruditismo latino do renascimento em palavras como apócope (mudança fonética que consiste na supressão de um ou vários fonemas no final de uma palavra, por exemplo: cine, por cinema, bel por belo), perícope (trecho da Bíblia ou de um livro) e síncope (HOUAISS). 16 O texto “Syncope, en Musique” de Rousseau foi publicado primeiramente em 1765, no XV volume (p.747) da célebre Encyclopédie... editada por Diderot  e D’Alembert entre 1751 e 1772. 17 A partir de Rameau (1986, p.298; 1971, p.316). 18 A partir de Kirnberger (1979, p.172). 19 Adotando o termo “suspensão”, BARTEL (1997, p.396) não deixa de avisar que, em inglês, suspention é normalmente usado como tradução de syncopatio ou syncopa. No entanto, suspention tem conotação de harmonic syncopation e, em inglês, este termo ficou mais reservado para os aspectos da síncope que implicam no controle das questões de altura. Por outro lado, o termo inglês syncopation é normalmente entendido como uma alteração de ordem rítmica (não necessariamente implicando em dissonâncias no campo das alturas). Tal separação se mostrou necessária na contemporaneidade, pois desde a síncope do estilo livre (ver itens 4 e 5), nem todas as dissonâncias acomodadas no desenho rítmico da síncope são suspensões (ou retardos). A advertência de Bartel – igualmente lembrada nas notas do tradutor in Forte e Gilbert (2003, p.60) – é determinante para os estudos da síncope no Brasil referenciados em publicações de língua inglesa. Nos dicionários, enciclopédias ou outros textos em inglês, possivelmente, as informações sobre a síncope estarão compartimentadas. Em parte as informações estarão no verbete síncope, onde, no geral, a ênfase recairá nos aspectos de deslocamento métrico, pulso, rítmica, prosódia, etc. Mas serão os verbetes “suspensão” (Francês e inglês: suspension; Alemão: vorhalt; Italiano: sospensione; Espanhol: suspensión) e “retardation” (retardo) que, provavelmente, trarão informações sobre a questão das alturas da síncope tradicional (aquela que antecede o estilo livre). Na cultura viva das síncopes, parece inadequado, para dizer assim, especializar ou compartimentar de maneira muito rígida as diferentes propriedades que compõem o denso entendimento das dissonâncias acentuadas. Mas, dependendo de tendências e intenções, teóricos, críticos, professores, e artistas podem mesmo escolher o caminho da compartimentação paramétrica. E isso pode ser positivo ou não dependendo de inúmeras outras variáveis. Em qualquer caso o alerta de Bartel continua válido. Como leitores e/ou pesquisadores vamos exercer nossas escolhas informados e informando sobre os riscos e benefícios desta compartimentação específica que carrega sequelas das estereotipadas compartimentações de fundo e mais gerais da nossa cultura atual (i.e. da musicologia de viés eurocêntrico ou anglo-americano) que prefere realmente distinguir suspensão de síncope. Suspensão implica no reino das alturas, termo mais reservado à síncope apolínea, a síncope caucasiana, pensante, letrada, europeia, ocidental, tradicional, histórica e de formação cristã, é a erudita síncope do Velho Mundo, etc. Síncope implica no reino das rítmicas (a sincopada, a sincopação), termo mais reservado à síncope dionisíaca, a síncope rebolada, negra, afro-miscigenada ou afro-latina, ocidentalizada, sincrética, oral, corporal e sem história – é a síncope de transe que encanta os corpos e as palmas das mãos que se confundem nesse nosso Novo Mundo, todo ele tão quente e sincopado, etc. E assim vamos reafirmando nossas crenças e preconceitos inabaláveis: a música que pensa não é sincopada e a música sincopada não pode pensar. 20 Em torno de 1540 o professor e humanista alemão Joannes Susenbrot (c.1484-1543) dizia que “a syncope ocorre quando uma letra ou sílaba é removida do meio de uma palavra” (BARTEL, 1997, p.396). Acepção idêntica se encontra no Vocabulário Portuguez & Latino de Raphael BLUTEAU, publicado entre 1712 e 1728 e tido como “o mais antigo dicionário da língua portuguesa”. Segundo Bluteau a “Syncopa” é termo gramatical e ocorre “quando se tira uma letra, ou sílaba do meio de uma palavra, dizendo duum em lugar de duorum, composius em lugar de compositus”. Já “Syncope” é termo médico, “deriva-se do grego Syncoptein, cortar, porque corta o coração, e todas as faculdades vitais [...]” (BLUTEAU, 1712-1728, p.818). Assim, instituída pelos eruditos da história literária, poética e linguística, essa noção de síncope interatua com a noção de síncope instituída para a observação da música. A síncope da gramática é um recurso culto aceito na avaliação dos desvios, transformações e reinvenções que ocorrem com as palavras em situações coloquiais e nas variações mais populares da cultura oral, como, por ex., nas célebres variações sincopadas que transformaram “vossa mercê” em “vossemecê” em “vosmecê” e chegaram até o “você”, que por aférese (supressão de fonema no princípio da palavra) já se reinventou como “ocê” ou “cê” e, que por apócope (supressão no final da palavra), já tornou possível até o uso escrito do solitário “c” como um pronome de tratamento. Tal maneira de entender o percurso das palavras em direção aos usos de caráter mais atual e popular (que notamos nos estudos dos colegas que se ocupam da síncope fonética), em alguma medida, parece influir naquelas soluções do campo acadêmico musical que, numa espécie de simplificação metodológica conveniente, pondo em plano bem mais secundário o aspecto das alturas, escolhe focar o aspecto rítmico da síncope como um parâmetro essencial na apreciação das músicas de registro híbrido, oral e popular. Músicas historicamente recentes (dos finais do século XIX para cá) que se desenvolveram no entorno dos centros urbanos do Novo Mundo passando por transformações análogas aos desvios que, por síncope, se dão na língua falada. 21 Conforme BARTEL (1997, p.402), alguns desses autores preocupam-se com a etimologia da palavra. Para o musico poeticus tcheco Tomáš Baltazar Janovka (1669-1741), syncopatio ou syncopsis, vem do grego Syncopo. Para o teórico e compositor alemão Johann Gottfried Walther (1684-1748) a palavra grega é synkopto. E, para ambos, o termo grego foi traduzido para o Latim como ferio (ferir, golpear, lograr, enganar) ou verbero (atacar, fustigar, deitar por terra, esmagar com palavras em um discurso). No Latim, conforme TORRINHA (1942, p.852), a palavra syncopa (ou syncope) significa desmaio; syncopo implica em cair com uma síncope; syncopatus: que tem uma síncope. A palavra suspensus pode significar algo preso em cima, algo que se sustém nos ares, que está na expectativa, na incerteza, incerto, que depende, submisso, parado, retido, etc. (TORRINHA, 1942, p.850). 22 Em certa medida, esse fenômeno de inflação acompanha componentes diversos da tonalidade harmônica. Outros dispositivos moderno-contemporâneos que poderiam, rapidamente, ilustrar o argumento seriam, por ex.: A propagação da dominante (o V7 principal) para a ideia de dominante secundária que inflaciona a tonalidade com diversos outros V7. O acorde diminuto que se transfere do locus específico do VII grau do modo menor (escala harmônica) para diversos outros locais do sistema (inclusive da tonalidade maior). O acorde de sexta aumentada (SubV7), a princípio reservado para a função dominante da dominante no modo menor que se expande, generalizando o recurso para incontáveis pontos de preparação. O acorde de sexta napolitana (bII), original de uma mutação da tonalidade menor que empresta seu efeito diferenciado à tonalidade maior (como 148 FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149. 23 24 25 26 27 28 29 30 31 bII7M ou como bVII7M). As vizinhanças de terceira (mediantes, submediantes) raras e especiais (i.e. inexplicáveis) nos séculos XVII e XVIII que se tornaram estereótipos até banais ao longo dos séculos XIX e XX. Dispositivos da época da “saturação da tonalidade” ou “pós-tonais” (tais como o “acorde de Tristão”, o “acorde de Scriabin”, o “modo de Liszt”, a “escala de tons inteiros”, a “escala octatônica”, os acordes por superposição de quartas, etc.), também passam por esse tipo de processo e crítica quando ganham uso na música popular urbana. Sobre a noção de decoro como um princípio básico não só da música, mas de toda a conduta humana no século XVIII ver o estudo de LUCAS (2003). A arguta tese de que a música alemã solidifica a “experiência conjunta de toda a Europa” foi enunciada pelo compositor e flautista alemão Johann Joaquim Quantz (1697-1773) em 1752: “Num estilo que, como o da Alemanha atual, consiste numa mistura dos estilos dos diferentes povos, cada nação encontra alguma coisa com que tem afinidades”. Para Quantz, a música da Alemanha é “mais universal e mais agradável”, pois conjuga e mistura os bons elementos da “pura música italiana”, que já não se assenta “sobre fundamentos tão sólidos como outrora”, e do “puro estilo francês” que “permaneceu excessivamente simples” (QUANTZ apud Grout e Palisca, 1994, p.477). O bordão que apregoa J. S. Bach como uma espécie de “ponto de partida” da música moderno-contemporânea, possui inúmeros registros. Conforme BENÉVOLO (2004, p.61-62), para o teórico e historiador Johann Nikolaus Forkel (1741-1818), primeiro biógrafo de Bach e o primeiro a lutar pelo reconhecimento da sua genialidade postumamente, Bach é o “príncipe dos clássicos passados e futuros”. Em um contexto de soerguimento nacionalista, Forkel declara a arte de Bach como um “tesouro inigualável exclusivamente alemão” e dedica a sua biografia aos “admiradores patrióticos da verdadeira arte musical”. Conforme Kater, Beethoven teria dito: “Bach não é um riacho, é um oceano!” Um jogo com a palavra “bach” que em alemão significa riacho (In: WEBERN, 1984, p.89). Para Debussy, Bach é o “ancestral de qualquer música” (DEBUSSY, 1989, p.194). Para Anton Webern (1883-1945) “tudo acontece em Bach”, “tudo o que veio após Bach já estava em preparação [...]”. “Aliás, Bach compôs de todas as maneiras possíveis, ocupou-se de tudo que pode ser pensado!” (WEBERN, 1984, p.82, 66 e 84). Sobre a invenção de J. S. Bach como um dos pilares supremos do reino do espírito alemão, uma espécie de “essência hereditária de um grande passado”, ver o estudo de Dahlhaus (1999, p.116-125). No momento de nacionalização da música brasileira, ecos desse culto ao nome de Bach (um mestre das sincopas) vão repercutir em nosso entorno. No seu Ensaio sobre a música brasileira, de 1928, Mário de Andrade (1893-1945) vê Bach (e também Haydn e Mozart) como um “espírito totalmente universal” (ANDRADE, 2006, p.14), e no capítulo intitulado “Polifonia” declara: “a harmonização europeia é vaga e desraçada”. Nos anos de 1930 a 1945, nesse mesmo contexto de invenção de um nacionalismo brasileiro e moderno, Heitor Villa-Lobos (1887-1959) compõe as célebres Bacchianas Brasileiras expondo artisticamente sua percepção de possíveis afinidades entre a música popular (sincopada) que se fazia no Brasil e a música de Bach. O Ex.11a é citado em Bartel (1997, p.404), o Ex.11b em Piston (1998, p.54) e o Ex.11d em La Motte (1988, p.58). Tais autores trazem uma vasta coleção de exemplos minimamente referenciada aqui. O Ex.12a é citado em PISTON (1998, p.85); o Ex.12b em Kennan (1978, p.71-72); o Ex.12c em Piston (1998, p.64); o Ex.12d em Kennan (1978, p.66) e PISTON (1998, p.74). Sobre o sentido dos termos “distinção” e “capital” (artístico, social, cultural, simbólico, linguístico, escolar, etc,) no vocabulário teórico colocado pelo sociólogo Pierre Bourdieu, ver BOURDIEU (2007), SHUKER (1999) e Valle (2008). Sobre o sentido dos termos agudeza e engenho na crítica musical setecentista, ver LUCAS (2007). Leia-se, como documento datado, um trecho escolhido no verbete Síncope do Dicionário da Música do “musicólogo” francês Michel Brenet (pseudônimo de mademoiselle Marie Bobillier, 1858-1918): Modernamente, graças à música chamada negra e o sucesso alcançado pelas pequenas orquestras de jazz, convertidas em veículos de transmissão da música dançante procedente da América do Norte, a síncope é algo consubstancial dessa música. A origem das complicadas combinações de ritmos onde a forma sincopada adquire extraordinária preponderância, se encontra nas formas primárias da música própria dos povos africanos que há alguns séculos foram levados à América. Em todos os povos de civilização rudimentar, um dos valores substantivos da música é o ritmo. Os cantos, como as danças populares, oferecem sucessões e combinações de ritmos diversos nos quais reside o grande interesse que aos indígenas naturais despertam suas músicas. Daí, pois, que os negros, hoje completamente aclimatados e naturalizados em terras americanas, e particularmente na América do Norte, por lei inevitável de atavismo racial, cantem e produzam sua música conservando em sua lírica a modalidade das escalas pentatônicas africanas e a tendência a fazer do ritmo um meio expressivo. Na música popular e nas danças americanas, as fórmulas sincopadas adquiriram um grau insuspeitável de riqueza desde há pouco mais de meio século. A síncope se transformou em elemento essencial da música de dança. Os cake-walks e os foxtrotes não são outra coisa que combinações de ritmos nas quais se faz todas as formas de síncope imagináveis que por superposição ou por cruzamento umas com as outras, produzem aspectos dinâmicos de irresistível efeito (BRENET, 1962, p.478). Com o termo “campo”, Bordieu se refere a espaços específicos de posições sociais nos quais um determinado bem é produzido, consumido e classificado. O campo se particulariza [...] como um espaço onde se manifestam relações de poder, o que implica afirmar que ele se estrutura a partir da distribuição desigual de um quantum social [capital social] que determina a posição que um agente específico ocupa em seu seio. [...] A estrutura do campo pode ser apreendida tomando-se por referência dois pólos opostos: o dos dominantes e os dos dominados. Os agentes que ocupam o primeiro pólo são justamente aqueles que possuem um máximo de capital social; em contrapartida, aqueles que se situam no pólo dominado se definem pela ausência ou pela raridade do capital social específico que determina o espaço em questão (ORTIZ, 1983, p.21). No “campo”, os agentes (indivíduos ou instituições) que ocupam a posição dominante tendem a adotar estratégias conservadoras ou ortodoxas que visam manter (canonizar) os valores que lhes são favoráveis. Os agentes que ocupam posições inferiores no interior do campo (i.e., aceitam a hierarquia do campo) tendem a adotar estratégias que objetivam alcançar os padrões de excelência dominantes ou a adotar estratégias heterodoxas ou heréticas que visam a contestação e a subversão das estruturas hierárquicas vigentes. “A estratégia dos agentes se orienta, portanto, em função da posição [atual e potencial] que eles detêm no interior do campo, a ação se realizando sempre no sentido da ‘maximização’” dos capitais (ORTIZ, 1983, p.22). Basicamente, o que está em jogo nesse “campo” da música popular são relações de poder entre o que é a “boa” e a “má” música, “quem é” o “grande músico” e “quem não é”, e “quem são” os “autorizados” a julgar (classificar, hierarquizar) os bens da música popular. Cf. BOURDIEU (2007), CAVALCANTI (2007, p.19) e VALLE (2008, p.105). Sobre esta temática ver o estudo de CAVALCANTI (2007). As harmonias do Ex. 13b e 13c baseiam-se nas cifras de Edmilson Capelupi. O fragmento 13e foi retirado das transcrições de Prandini (1996, p.72). Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas é professor da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC (Florianópolis) atuando nas áreas de teoria da música, harmonia tonal, contraponto e análise musical. Atualmente é aluno do Doutorado em Música da Unicamp onde desenvolve pesquisa na área de Fundamentos Teóricos da Música Popular. 149 PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156. Música e infância no rádio: o programa Serelepe na Rádio UFMG - Educativa1 Eugênio Tadeu Pereira (UFMG, Belo Horizonte. MG) [email protected]; [email protected] Cristiane da Silveira Lima (UFMG, Belo Horizonte. MG) [email protected] Gabriel Murilo Resende (UFMG, Belo Horizonte. MG) [email protected] Reginaldo Santos (UFMG, Belo Horizonte. MG) [email protected] Resumo: Este artigo tem como eixo temático a música infantil no rádio e faz uma reflexão a partir das experiências do programa Serelepe: uma pitada de música infantil, na Rádio UFMG Educativa, 104,5 FM, apresentado desde agosto de 2005 em Belo Horizonte. Seu caráter experimental é derivado da tentativa em integrar as áreas de teatro, música e comunicação, juntamente à proposta de difusão musical. Palavras-chave: rádio, música infantil, criança, educação musical. Music and childhood on radio: the Serelepe program at UFMG - Educativa station Abstract: The main theme of this article is childhood music on the radio. It reflects about the experiences of Serelepe: uma pitada de música infantil (Serelepe: a pinch of kid’s music), a program broadcasted at 104.5 FM of the UFMG Educativa Radio Station, since august 2005, in Belo Horizonte, Brazil. Its experimental outline is derived from an attempt to integrate the areas of Drama, Music and Communication, within the music broadcast proposal. Keywords: radio, music for children, child, musical education. 1. Apresentação O Serelepe: uma pitada de música infantil é um programa de rádio para crianças, oriundo do Curso de Graduação em Teatro da Escola de Belas Artes da UFMG, que vai ao ar todos os finais de semana2 pela Rádio UFMG Educativa 104,5 FM, na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Ele pode ser ouvido também pela Internet, de qualquer lugar do mundo, no link www. ufmg.br/online/radio. Contatos com o programa podem ser feitos pelo e-mail [email protected] e também pelo blog http://programaserelepe.blogspot.com. O programa é divido em quatro blocos: o Mão na Cumbuca – músicas daqui e acolá (dedicado exclusivamente a músicas brasileiras); o De Cabo a Rabo – quem conta um canto canta um conto (com histórias cantadas); o De Mala e Cuia – um passeio musical (com músicas de diferentes países) e, por fim, o Balaio de Gato – de tudo um pouco (no qual tentamos misturar músicas, histórias, brincadeiras, dicas culturais, dentre outros). PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 150 Por estar inserido na programação de uma rádio educativa, o projeto tem se caracterizado por um processo contínuo de experimentação de diferentes linguagens, buscando integrar, principalmente, as áreas de Teatro, Música e Comunicação. Em 2007, ele se tornou também uma disciplina optativa no curso de Graduação em Teatro na EBA/UFMG, configurando um espaço de pesquisa para os alunos do curso que possibilita o improviso, a brincadeira, a atitude lúdica e, concomitantemente, uma visão crítica em relação à música, às formas de comunicação e às artes produzidas para crianças. Ainda em 2007, os idealizadores do programa – e outros artistas – representaram o Brasil no 8º Encontro da Canção Infantil Latino-americana e Caribenha, realizado na cidade de Valparaíso, no Chile3. Nesta ocasião, vários contatos foram estabelecidos com realizadores de programas radiofônicos para crianças em diferentes países da América Latina4. Recebido em: 02/09/2009 - Aprovado em: 18/02/2010 PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156. Sem a pretensão de tentar mudar o gosto dos ouvintes, nem de transformar a produção musical e cultural voltada para as crianças, o Serelepe tem buscado abordar o universo infantil sob um ponto de vista que tem a intenção de criar diferentes possibilidades de escuta e de tornar acessível uma produção musical que julgamos de interesse para qualquer ouvinte, mas que não se encontra disponível em outros canais de comunicação. Dessa forma, o Serelepe não se constitui em um programa alternativo, mas uma proposta alternativa de difusão musical. Objetivamos criar um espaço aberto para a divulgação de trabalhos feitos por, para e com crianças, buscando manter um determinado padrão de qualidade, valorizando a inventividade dos artistas e dos ouvintes. Nosso interesse está voltado para aguçar a sensibilidade auditiva e para incentivar a curiosidade musical, isto é, criar possibilidades e estímulos para uma escuta mais variada, rica e criativa, em que a imaginação do ouvinte possa “criar asas”. A programação do Serelepe privilegia artistas de todo o mundo com pouca inserção na grande mídia, mas também promovemos novas escutas de artistas já conhecidos. Determinadas músicas feitas para adultos, por exemplo, adotam uma linguagem que poderia ser igualmente apropriada por crianças, por causa de seu jogo de palavras, pelo modo como brincam e fazem humor. Um exemplo disso é a letra de As mariposa, de Adoniran Barbosa, cuja letra diz o seguinte: As mariposa, quando chega o frio/ Fica dando vorta em vorta da lâmpida, pra se esquentar/ Elas roda, roda, roda e dispois se senta/ Em cima do prato da lâmpida pra discansar/ Eu sou a lâmpida e as muié é as mariposa/ Que fica dando vorta em vorta de mim/ Toda as noite só pra me beijar. Essa letra tem uma atmosfera que – a nosso ver – se relaciona com o universo infantil. O eu-lírico desses versos, com seu português “ruim”, descreve como as mariposas ficam à sua volta, querendo lhe beijar. Mas não seria esta uma metáfora para falar do universo da sedução, da paquera? Também. Isso, entretanto, não exclui a apropriação lúdica que a imagem da lâmpada rodeada de mariposas permite. Já o grupo Secos e Molhados, para citar outro exemplo, tem uma música bastante conhecida chamada O Vira, de João Ricardo e Luli, baseada nas histórias de lobisomem. Eis a letra: O gato preto cruzou a estrada/ Passou por debaixo da escada/ E lá no fundo azul/ Da noite da floresta/ A lua iluminou/ A dança, a roda, a festa/ Vira, vira, vira, homem/ Vira, vira lobisomem. Essa é uma releitura de uma lenda, associada muitas vezes ao universo infantil. Mas quem canta é Ney Matogrosso, ainda no grupo Secos e Molhados, com seu rosto pintado e suas coreografias ousadas. Tanto O Vira quanto As Mariposa são músicas que têm sido recebidas, com entusiasmo, pelas crianças. Mas por quê? Revela-se a questão da especificidade do nosso público: o que e quem determina o que é música para criança? Criança gosta do quê? Como fazer uma programação musical dedicada ao público infantil que respeite a sua sensibilidade e a sua inteligência? É sobre essas indagações que este artigo reflete. 2. “Pré-conceitos” e “pós-conceitos” sobre a relação música, infância e rádio: a ação do Serelepe Antes de pertencer a uma faixa etária, as crianças são seres humanos. A infância é uma fase da vida em que não apenas se assimilam informações e conteúdos, mas em que se aprendem hábitos e valores que podem ser levados por toda a vida. Erik Erikson (1976) nos instiga a pensar que a identidade do sujeito e de uma nação tem início nos rituais de infância. É durante a infância que os sujeitos mais desenvolvem suas habilidades básicas cognitivas e motoras necessárias à vida. É nesse período também que estruturamos a linguagem e compreendemos as “regras” que permitem a vida em comum. Por isso é tão importante o acesso à cultura, à educação e à saúde de qualidade, sobretudo nos primeiros anos. A formação que se tem na infância tem impactos diretos no futuro jovem/adulto. Sendo assim, uma programação musical voltada para o público infantil deve estar atenta a este caráter de formação mais amplo – e não deve se voltar exclusivamente para “ensinar conteúdos ou boas maneiras” às crianças, tais como contar até dez, tomar banho ou escovar os dentes. Existem espaços mais apropriados e eficazes do que o rádio ou a música para esse tipo de orientação. Observa-se que as crianças tendem a gostar das músicas às quais têm acesso pela sua família, pelos meios de comunicação (sobretudo a televisão) ou pelas influências de amigos. Muitas crianças só escutam aquilo que seus pais ou irmãos ouvem: uma música feita por e para adultos; na maioria das vezes, de fácil consumo. No senso comum, o que define se uma música é ou não para crianças é um critério temático/ pedagógico. Acredita-se que música para crianças deve ser instrutiva (ensinando, por exemplo, a soletrar ou contar), deve ensinar hábitos de higiene pessoal e da boa educação (como escovar os dentes, tomar banho, dizer “por favor” e “obrigado”, etc.), deve ensinar valores morais (como respeitar o próximo e cuidar da natureza). Outra característica encontrada nas letras das músicas para crianças é a frequência assombrosa de animais (e quase sempre mencionados no diminutivo), ou ainda, que versam sobre seres fantásticos, tais como monstros, bruxas ou bicho papão. Luis Maria Pescetti (in BRUM, 2005, p.31), discutindo a sua experiência em programas de rádio e com música para crianças, faz uma crítica irônica e bem-humorada, afirmando: Nas canções infantis há mais animais do que na Arca de Noé. Estão cheias de bichos. Arainhas, galinhazinhas, cachorrinhos, mariposinhas, tartaruguinhas, gatinhos, lagartinhas, verminhos, 151 o telefone. É uma espécie de infância idílica e inventada pelo adulto que não a viveu. São sempre ingênuos.PEREIRA. não alcançam um grande público. 86). Pro-Música do Rosário Niños. às quais só terão respostas quando atingirem uma suposta maturidade. de frescor. seja do ponto de vista dos diálogos nas locuções. como se criança não conseguisse ouvir música sem se mexer. Belo Horizonte. Não é o caso de desmerecer essas músicas. na própria música. junto com ele (embora não necessariamente igual a ele). como se toda criança fosse alegre e feliz por natureza e em tempo integral. Muitos são os grupos espalhados pela América Latina. é de grande importância uma atitude sincera ao refletir acerca da ideia de infância que orienta as escolhas em um programa infantil. melódicos e harmônicos bastante simplórios. tais como a perda. a morte. Observa-se. A maior parte delas oferece pouca ou nenhuma inventividade e curiosidade que instiguem a imaginação do ouvinte: são frequentemente pouco elaboradas. O universo infantil é frequentemente abordado de modo ingênuo e edulcorado.150-156. abelhinhas. temas considerados sérios ou densos. Portanto. aqueles que lhe mais interessam. a relação dos meios de comunicação com a sociedade não pode ser vista de modo tão mecânico. nem lhes impõem com facilidade. baseadas em padrões rítmicos. No entanto. que só sabem correr e fazer bagunça por todos os lados.. normalmente. T. as consequências” (FRANÇA. Se. reunindo pela enésima vez Ciranda cirandinha. com uma instrumentação pobre e reduzida (normalmen- 152 te composta por uma bateria eletrônica e um teclado).. Cantoalegre. El Taller de los Juglares. et al. etc.22. patrimônio cultural nacional. contribuindo muitas vezes para o estabelecimento de estereótipos e preconceitos. nunca existirá. inquietos e incapazes de ficarem em silêncio. Até vampiros. É notório que a mídia exerce uma grande influência no sentimento de massa.. mas não explicações infantis. p. Essa honestidade é decorrente de um respeito às crianças e aos demais ouvintes que procuramos ter. p. uma briga entre os pais. 2010. com repetição exagerada de palavras no diminutivo. Acreditamos que essa novidade está em revelar. pois vivem fazendo perguntas desconcertantes aos adultos. mas de convidar a trazer algo renovado ao rearranjá-las e regravá-las. entre os produtos oferecidos. Cântaro. já em 1924. sobre temas gerais da vida. Julio Brum con los Pájaros Pintados. vaquinhas. ao falar sobre livros infantis. esses temas mais comuns são um modus operandi no imaginário dos compositores de músicas para crianças. p. Son de la Ciudad e . quiçá artísticas de modo geral. como se não vivesse também seus dilemas e conflitos. Em seu texto. E. o autor apresenta também uma lista enorme de temas possíveis de serem abordados. os pés das girafas. Afinal. por exemplo. Ora. O problema é menos o tema em si do que o modo como eles se tornaram exaustivos. No que diz respeito à produção dedicada às crianças. As músicas apresentadas por nós vêm de diversas partes do mundo. sentidos para e em decorrência do outro – e sofrer. formando opinião. dizia que a criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis. e operando no que GREEN (1988. O que se vê difundido nos grandes centros comerciais são coletâneas de canções de domínio público. Entendemos os meios de comunicação como instrumentos sociais que dialogam permanentemente com os valores e com os sentidos compartilhados. temos conhecimento de um conjunto substancial de artistas produzindo à margem dos grandes meios de comunicação e que. Essa infância é cantada em verso e prosa como um mundo feliz idealizado. também. como se consumisse tudo indiscriminadamente6). n. por isso. reproduzindo-os e também os modificando. seriam mais apropriados para adultos.. Mas quem de nós teve uma infância somente feliz? Outras vezes. voltadas para as crianças. 1997) chama de significado musical delineado7. acompanhadas quase sempre por coreografias. padronizados e repetitivos. pois ela nunca existiu e talvez.237). seja nas seleções musicais. pombinhos. e com poesia. É produzir/ consumir discursos.. são a afirmação de que a mídia dá às crianças exatamente aquilo que elas querem. que vão desde o liquidificador. Per Musi. na Argentina. Sapo Cururu e O Cravo brigou com a rosa. A criança aceita perfeitamente coisas sérias. aquilo que quase ninguém ouviu. por outro lado há um leque de produções musicais que têm como mote temas diversos e que dizem claramente. também não podemos negligenciar o fato de que as pressões de natureza econômica influenciam sobremaneira no tipo de programação oferecido e que isso não implica necessariamente em uma preocupação com a qualidade ou com a riqueza dos produtos oferecidos. à perda de um avô. Fundación Nueva Cultura e Coro Acuña. Citando alguns deles como: Los Musiqueros. Mariana Baggio. Judith Akoschky e Luiz Pescetti. o que constitui a comunicação é mais do que produzir e receber discursos.. Enfim. no Uruguai. O que estabelece o vínculo comunicativo é “a ação de afetar e ser afetado pelo outro através de materiais significantes. a dor. os seus produtos (como se o público não soubesse discernir e não tivesse autonomia alguma para refletir e escolher. rimas fáceis e previsíveis. uma falta de preocupação geral com a qualidade timbrística e com o nível de elaboração das produções musicais. e muito menos as que os adultos concebem como tais. A novidade objetivada não está meramente no aparato eletrônico ou na orquestra sinfônica. faltam variedade e riqueza nos arranjos sonoros e nos textos dessas músicas. 2006. reducionista e linear: os meios de comunicação não fornecem simplesmente os produtos desejados pelo público. na Colômbia. mesmo as mais abstratas e pesadas. Na própria música deve haver algo de novo. desde que sejam honestas e espontâneas. Os argumentos e justificativas que são dados para a recorrência desses padrões. na Venezuela. Walter BENJAMIN (1924. Música e infância no rádio: o programa Serelepe. por um lado. as crianças aparecem como seres barulhentos. por exemplo?5. representações. No entanto. Basta! Por que ninguém fez uma canção infantil sobre um pocinho de petróleo. PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156. Brenda Cervantes, no México. Em menor proporção, apresentamos algo do que é produzido na América do Norte (como Pete Seeger, dos Estados Unidos), na Europa (Les Petits Loups du Jazz, Bruno Coulais), na Ásia e na África (com músicas tradicionais encontradas nas pesquisas do canadense Francis Corpataux, etc). No Brasil há uma variada produção musical contemporânea: Adriana Partimpim, Cecília Cavalieri França, Cuidado que Mancha, Curupaco, Duo Rodapião, Hélio Ziskind, Lydia Hortélio, Márcio Coelho e Ana Favaretto, Palavra Cantada, Teca de Brito, Viviane Beineke, dentre outros (sem mencionar os clássicos Arca de Noé, Saltimbancos, Adivinha o que é). Ora, como as crianças poderiam gostar de tais artistas e de suas músicas se elas sequer os conhecem? É preciso haver espaços de visibilidade para outros tipos de produção musical para que as crianças possam escolher do que gostar, um espaço para ampliar as possibilidades que fazem parte da sua formação. De um modo geral, o universo radiofônico é fundado em uma música de consumo rápido, dirigido para uma comercialização imediata e de fácil substituição. Pouco ou nada é produzido no rádio para crianças em Belo Horizonte8. Já que o Serelepe não é regido por uma lógica mercadológica, ele não está preso a padrões dessa natureza. É claro que o objetivo é também o de agradar – mas o gosto pode ser cultivado, criado, antecipado, descoberto, revisto. E ninguém gosta de uma coisa só: é possível gostar de coisas muito diferentes, sem que uma exclua a outra. Luis PESCETTI (2005, p.29), escritor e músico, afirma ter sido várias vezes questionado sobre o fato de divulgar em seu programa músicas que não são originariamente voltadas para um público infantil, o que poderia aborrecer as crianças. Ele afirma, retrucando: “qual o perigo do aborrecimento? O zapping?”9 Se toda vez que a gente se aborrecesse com algo, a gente logo a abandonasse, não sairíamos do lugar. Ninguém abandona a leitura de um livro por não ter gostado de uma única página. Ele afirma, ainda, que essa pergunta sobre o aborrecimento é sempre feita por jornalistas, nunca pelos pais que escutam o programa com seus filhos (2005, p.30). E, pelo que parece, nem pelas próprias crianças. Nossa opinião está implícita naquilo que elegemos e inserimos em nossos programas para que os ouvintes possam ouvir, apreciar e escolher estar em sintonia com o programa ou buscar outra proposta. Portanto, o Serelepe almeja oferecer aos seus ouvintes o variado leque de possibilidades temáticas dedicadas à infância. 3. A apreciação como pilar necessário ao desenvolvimento A música é uma linguagem de todos. Ela é um sistema simbólico que atravessa limites culturais. Somos responsáveis pela reprodução do que já foi e pela produção do que virá. Como construir uma cultura musical de amplo acesso, que não privilegie somente certos segmentos às vezes pueris dessa arte? SWANWICK (1979) acredita que a formação musical do ser humano desenvolve-se sobre três principais pilares: composição, apreciação e performance; e dois secundários: literatura e habilidades. Segundo FRANÇA (1998, p.68-69): A apreciação, espera-se, permeia toda experiência musical, sendo um mediador básico para o desenvolvimento musical [...] A escuta sensível e atenta é determinante no fazer musical [...] Nestas circunstâncias, a apreciação estará monitorando a produção musical [...] 10 A apreciação musical bem orientada desenvolve um senso crítico no ouvinte, permitindo-o julgar melhor o que ouve e o que se produz musicalmente. A programação do Serelepe busca oferecer oportunidades aos ouvintes de construírem referências de expressão musical de modo que, no futuro e no presente, possam fazer escolhas mais conscientes sobre o que ouvir. O problema não é uma escolha certa ou errada e sim a falta de opção ou a incapacidade de escolher com critérios mais amplos e relevantes. Reimer, citado por FRANÇA (1998, p.71), acredita que “escutar uma grande variedade de música funciona como um alicerce para decisões criativas”11 e, segundo FRANÇA (1998, p.71), a apreciação musical “nutre o repertório de opções sobre o qual os estudantes agem criativamente, transformando, reconstruindo e reintegrando ideias em novas formas e significados.”12 A música é muito utilizada como plano de fundo para situações variadas. A proposta de escuta do Serelepe é trazê-la para o foco da atenção, instigando o ouvinte ao desafio de discernir as propostas composicionais: um instrumento diferente, o encadeamento dos sons, um tema de um personagem, sons estranhos, estórias “sem pé nem cabeça”, etc. Paynter, de acordo com FRANÇA (1998, p.70), argumenta que “a música não pode ser apreendida por contemplação passiva: é necessário comprometimento, escolha, preferência e decisão.”13 E, para McAdams, segundo FRANÇA (1998, p.70), “a apreciação musical (bem como apreciar artes visuais ou ler um poema) é e deve ser considerada seriamente por um artista como um ato criativo por parte do participante”.14 4. Considerações sobre os nossos objetivos e a nossa experiência O objetivo do Serelepe é fazer desse espaço aberto no rádio um lugar de escuta e de invenção. Temos o objetivo de experimentar outras linguagens, outros jeitos de fazer locução e de explorar as sonoridades, os textos e os BGs15, bem como divulgar trabalhos considerados pelos próprios integrantes coerentes e bem feitos, mas que não circulam na grande mídia – ou que até circulam, mas em outro contexto. Além disso, o Serelepe tem sido um espaço de experimentação de diferentes propostas por parte de seus integrantes. O programa, na verdade, não conta com locutores profissionais e nem está dentro de convenções radiofônicas, como os das grandes rádios comerciais. É 153 PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156. buscada, a cada programa, uma maneira diferente de nos comunicarmos com o ouvinte. Desde sua estreia até hoje, foram experimentadas diferentes formas de dizer o texto e quase foram criados personagens recorrentes (como o distraído que adora cantar e sempre perde o seu momento de falar ou a mal-humorada que às vezes é brava, outras vezes, romântica...). Os textos, escritos previamente, são elaborados de acordo com as músicas programadas, mas podem também não se referir exatamente a elas. Geralmente as locuções têm a função de ilustrar, comentar e inserir informações extras sobre as músicas e também de incluir comentários que vão além do que a música apresenta. Em outras palavras: não há um roteiro rígido, o que nos permite, a cada vez, reinventá-lo. Quando a letra da música está em uma língua estrangeira, é de praxe descrever, em poucas palavras, o que ela diz. O repertório é escolhido a partir das discotecas dos próprios integrantes do projeto (que desenvolvem um intenso trabalho de pesquisa), das doações que o Serelepe recebe por intermédio da Rádio UFMG Educativa, pelo acervo da própria Rádio e de um acervo de mais de 200 CDs, disponibilizado pelo Duo Rodapião16, de Belo Horizonte - MG, que integra o Movimento da Canção Infantil Latino-Americana e do Caribe. Também informamos os dados sobre o intérprete, o compositor e o CD de onde a música foi retirada. Outra característica do programa é a de tocar as músicas do princípio ao fim, ao contrário das práticas mais usuais do rádio que as cortam antes de seu término. Algumas vezes, os locutores chamam a atenção para a letra, outras vezes para os instrumentos. Em nossas gravações, a brincadeira com texto está sempre presente, pois, como o brincar faz parte do universo da criança, os locutores usam esse meio como uma chave para entrar em contato com o universo infantil. Criamos diálogos fantasiosos entre nós mesmos, inventamos rimas sem pé nem cabeça, até arriscamos cantar de vez em quando, porém sempre valorizando uma escuta atenta às nuances de sentido, de ritmo, de sonoridades, respeitando a capacidade das crianças de compreenderem as brincadeiras propostas e fazerem, elas mesmas, as suas próprias associações. Queremos oferecer a elas alternativas, mas estabelecendo uma conversa, uma tentativa de aproximação. Tal como escreve o músico e professor uruguaio Julio Brum, o nosso trabalho (assim como o dele) é o de “viajar pela imaginação, de agitar a sensibilidade, de “fazer cosquinhas” nas ideias e valores que o sistema nos mostra como imutáveis e permanentes; trata-se de convidar a nossa infância a construir e explorar outros mundos” (BRUM 2005, p.67)17. Esse é o convite que o Serelepe faz aos ouvintes, ao temperar as suas manhãs de sábado com pitadas de música infantil, tentando “fazer cosquinhas” nas ideias mais usuais de música e de infância. Referências ANTUNES, Elton e VAZ, Paulo Bernardo Vaz. Mídia: um aro, um halo, um elo. In: GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.43-60. BENJAMIN, Walter. Livros infantis antigos e esquecidos (1924). In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp.235-243. BRUM, Julio (Org). Panorama del Movimiento de la Canción Infantil Latinoamericana y Caribeña: Estúdios, reflexiones y propuestas acerca de las canciones para la infancia. Montividéo: Papagayo Azul, 2005. ERIKSON, Erik. Identidade – juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. FRANÇA, Maria Cecília Cavalieri; SWANWICK, Keith. Composing, performing and audience-listening as symmetrical indicators of musical understanding. University of London, 1998 297f. enc. Tese (doutorado). FRANÇA, Vera. Sujeitos da comunicação, sujeitos em comunicação. In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.61-88. GREEN, Lucy. Pesquisa em Sociologia da Educação Musical. Revista da ABEM, Salvador, ano 4, n. 4, p. 25-35, set. 1997. Trad. Oscar Dourado. MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário – o desafio das poéticas tecnológicas. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 2001. SWANICK, Keith A Basis for Music Education, London: Routledge, 1979. 154 PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156. Leitura recomendada: BENJAMIN, Walter. História cultural do brinquedo (1928). In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp.244-248. ______ . Brinquedo e brincadeira – observações sobre uma obra monumental (1928). In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp.249-253. GREEN, Lucy. Music on Deaf Ears: Musical meaning, ideology and education. Manchester and New York: Manchester University Press, 1988. ___________. Music, Gender, Education. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. McADAMS, Stephen ‘The auditory image: a metaphor for musical and psychological research on auditory organization’. In: CROZIER, W. R. and CHAPMAN, A. J. (eds) Cognitive Processes in the perception of Art, Amsterdam: Elsevier, 1984. NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo – o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo: Summus, 1993. PAYNTER, John. Music in the Secondary School Curriculum. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. PEREIRA, Eugenio Tadeu. A difusão da canção infantil. In: Anais do 4º Encontro da Canção Infantil Latino-americana e Caribenha. Córdoba, Argentina: Fundação Takian Cay, 1999. ________. Brincar, brinquedo, brincadeira, jogos, lúdico: convergências e divergências. Revista Presença Pedagógica. v.7, n.38. Mar.-Abr./2001. ________. Brinquedos e infância. Revista Presença Pedagógica. v.8, n.44, Mar.-Abr./2002. Ed. Dimensão. Publicado também em: Revista Criança. n.37. Nov./2002. Ministério da Educação. REIMER, Bennett. A Philosophy of Music Education, New Jersey: Prentice Hall, 1970/1989. SCHAFER, Murray. Ouvido Pensante. São Paulo: Unesp, 1991. Notas 1 Uma versão preliminar deste texto foi publicada na Presente! Revista de Educação, ano 17 n. 65, Salvador, Ago/Nov/ 2009. Para a Revista PerMusi vários pontos foram acrescidos e revisados. 2 A partir de 08 de marco de 2008, o programa passou a ser apresentado aos sábados as 9h da manhã, tendo uma hora de duração. Os programas “pilulas”, que duravam de 5 a 8 minutos e que eram apresentados diariamente às 9h45min, desde 07 de setembro de 2005. Atualmente o programa está sendo exibido em partes aos domingos às 9 horas da manhã, conjuntamente a outros programas para crianças. O Serelepe começou suas atividades a partir de um convite do coordenador da rádio, prof. Elias Santos e por Rosaly Senra, no mesmo ano de inauguração da UFMG Educativa. 3 O 9º Encontro da Canção Infantil Latino-americana e Caribenha ocorreu entre 19 e 25 de outubro de 2009, no México. Outras informações no site: http://9cancioninfantil.cnart.mx/. Último acesso em: 22/10/2009. Em 2011 o Brasil sediará o 10º Encontro, sob a coordenação de Márcio Coelho e Ana Favaretto. 4 São eles: ARGENTINA: programa Taracatá, coordenado por Julio Calvo (www.radiodelaciudad.gov.ar), que, lamentavelmente, não está mais no ar; Me extraña araña, na AM 750 - Radio Nacional Córdoba, sob coordenação de Coqui Dutto; Radio Mafalda, produzida por Alejo e Julio Villarroel (http://radiomafalda.dynalias.net:86); Vampiro Negro, da Radio Nacional Argentina 870 AM, produzido por Luís Pescetti. URUGUAI: Para Escucharte mejor, da Emisora del sur, sob coordenação de Suzana Bosch (www.sodre.gub.uy). MÉXICO: ¡Ay escuintles! (www.radioeducacion.edu.gob.mx), programa de curta duração produzido por Gabriel Sanvincente; Hola Luis, da Radio Universidad Nacional Autónoma de México 96.1 FM, também produzido por Luis Pescetti. PORTO RICO: Ambos a Dos, cuentos y canciones produzido por Nelie Lebrón (www.radiouniversidad.pr). 5 Tradução nossa, a partir do original: “en las canciones infantiles hay más animales que en el Arca de Noé. Están llenas de bichos. Añaritas, gallinitas, perritos, maripositas, tortuguitas, gatitos, gusanitos, vaquitas, abejitas, palomitas... hasta vampiros. !Basta! ¿Por qué nadie hizo una canción infantil a un pocito de petróleo, por ejemplo?” 6 Na tradição dos estudos em comunicação, existem diferentes abordagens da relação entre a mídia e a sociedade. Algumas dessas tradições de pesquisa hoje são muito criticadas pelo seu mecanicismo e linearidade como, por exemplo, a Escola Funcionalista Americana, também conhecida pela rubrica da Mass Communication Research, que pautava seus estudos a partir da ótica dos efeitos dos meios de comunicação sobre o público, e a Escola de Frankfurt, ou “Teoria Crítica”, que desenvolveu toda uma abordagem acerca da Indústria Cultural, mas enfatizando o caráter ideológico dos meios de comunicação. Ambas se sustentam no paradigma informacional, que aborda as instâncias de produção de mensagens e de recepção como pólos isolados e separados, cabendo à produção um papel ativo e de controle sobre as mensagens, ao passo que o receptor é relegado ao lugar de um consumidor passivo. Esse paradigma já não é consensual e uma nova perspectiva vem sendo desenvolvida, apoiando-se no chamado paradigma relacional ou praxiológico. Para um breve panorama dessas teorias, cf. FRANÇA, Vera. Sujeitos da comunicação, sujeitos em comunicação. In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.61-88. Para uma reflexão acerca da mídia, compreendida não apenas em sua dimensão de aparato técnico, mas também em seu caráter relacional, que permite uma modalidade de experiência assentada no transporte e deslocamento de signos, cf. ANTUNES, Elton e VAZ, Paulo Bernardo Vaz. Mídia: um aro, um halo, um elo. In: In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.43-60. 7 Lucy Green considera como significado musical inerente as relações dos materiais sonoros entre si em uma peça musical, ou entre as demais estruturas musicais de uma cultura; e significado musical delineado como a relação inseparável, consciente ou não, dos significados inerentes com seu contexto social de produção, distribuição e recepção (GREEN, 1997b, p.27-29). 8 Uma das poucas referências que conhecemos foi o programa Carretel de Invenções, idealizado pro Francisco Marques, o Chico dos Bonecos e produzido pela AMEPPE - Associação Movimento de Educação Popular Integral Paulo Englert e pela Fundação Fé e Alegria, que foi ao ar durante alguns anos pela Rádio Favela e outras rádios comunitárias, no início da década de 1990. Esse programa ainda é ouvido em algumas rádios brasileiras. Mas vale lembrar: a concessão da Rádio Favela também é de rádio educativa. Entre as rádios comerciais, desconhecemos outros programas. 9 Zapping: estratégia de mudar de canal possibilitada, sobretudo, pelo advento do controle remoto e que instaura uma nova modalidade de recepção, no qual o espectador/ ouvinte não se fixa em um único programa, mas ao contrário, se desloca de um a outro livremente. “O zapping é mania que 155 PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156. 10 11 12 13 14 15 16 17 tem o espectador de mudar de canal a qualquer pretexto, na menor queda de ritmo ou de interesse do programa e, sobretudo, quando entram os comerciais”. (MACHADO, 2001, p. 143). Tradução nossa, a partir do original: Listening is expected to pervade any active musical experience, being a basic medium for musical growth. […] Sensitive and discerning listening is determinant in musical making. […] In these circumstances, listening will be monitoring the musical output […]. Tradução nossa, a partir do original: Reimer believes that ‘listening to a great variety of music’ works as “fodder for creative decisions” Tradução nossa, a partir do original: It nourishes student’s repertoire of options upon which to act creatively, transforming, reconstructing and reintegrating ideas into new shapes and meanings. Tradução nossa, a partir do original: Paynter argues, music cannot “be apprehended by passive contemplation: it calls for commitment; for choice, preference, and decision.” Tradução nossa, a partir do original: Musical listening (as well as viewing visual arts or reading a poem) is and must be considered seriously by an artist as a creative act on the part of the participant. BG é a abreviação do termo técnico background, usado para designar os sons ou músicas que estão de fundo, em segundo plano, acompanhando a locução. Duo formado por Miguel Queiroz e Eugênio Tadeu que, desde 1994, produz espetáculos e CDs dedicados ao público infantil. Viajar por la imaginación, de agitar la sensibilidad, de “hacerle cosquillas” a las ideas y valores que el sistema nos muestra como inmutables y permanente, se trata de invitar a nuestra infancia a construir y explorar otros mundos. Eugênio Tadeu Pereira é Professor do Curso de Graduação em Teatro da Escola de Belas Artes da UFMG. Mestre em Educação - FaE/UFMG, Doutorando em Artes Cênicas - ECA/USP; integrante do Duo Rodapião; idealizador e coordenador do projeto Pandalelê - Laboratório de Brincadeiras – CP/UFMG (1993 a 2003) e integrante do Movimento da Canção Infantil Latino-Americana e do Caribe. Cristiane Lima é Mestre em Comunicação Social - FAFICH/UFMG, bacharel em Radialismo pela UFMG, professora de Música no Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e Profissional da UFMG e na Fundação de Educação Artística. Gabriel Murilo Resende é Licenciado em Música pela UFMG, professor de música na Pró-Music e no Centro de Musicalização Infantil da Escola de Música da UFMG, compositor, arranjador e produtor musical. Reginaldo Santos é Licenciado em Teatro pelo curso de Graduação da Escola de Belas Artes da UFMG, Professor de Teatro do Galpão Cine Horto, onde também atua no projeto Conexão Galpão. Coordenador Artístico do Centro de Referência de Cultura e Desenvolvimento Social de Matozinhos. 156 refletindo também as transformações sociais na configuração da família e no comportamento sexual. Já fui (de Marina Lima e Antônio Cícero). que exemplifica a tendência.com Resumo: As relações entre pais e filhos(as) configuram um tipo particular de relação entre gerações. a canção popular se consolidou e se disseminou como uma prática artística capaz de “traduzir os conteúdos humanos relevantes em pequenas peças formadas de melodia e letra” (TATIT..22.22. We also discuss. relações entre pais e filhos(as). com suas contradições. We also show how these songs reflect the social transformations on the configuration of the family and sexual behavior.11). Discutimos. relationship between father and children. durante o século XX.270-271) critica essa concepção – tanto de Luiz Tatit quanto de José Ramos Tinhorão. na medida em que o maior compromisso passou a ser entre o modo de dizer melódico e a própria letra (TATIT. como essas canções tratam diferentemente a relação entre letra e melodia. p. na medida em que ocorrem no seio da família. ainda. indústria fonográfica. Pai (Father) (by Fábio Jr. also present in the phonographic industry. (TATIT. com base na tipologia proposta por TATIT.). through which the youth conquers maturity and autonomy. instituição social marcada por vínculos de dependência e responsabilidade e por laços emocionais. outro estudioso da música popular brasileira – da canção como “um formato musical que. which is a social institution linked together by dependency. Já fui (I’m gone) (by Marina Lima and Antônio Cícero). jul. 2010. of the preservation of musical production.. “Escute. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. responsibility and emotional bounds. Keywords: song. This album exemplifies a tendency. In an analysis that articulates contributions from sociology and psychology. as it presents several recordings from dates varying between 1966 to 1988. Pai (de Fábio Jr. “Listen to me.. . 2004. Palavras-chave: canção. we reveal how these songs show different moments of the process. Diversas canções que têm essas relações como tema são reunidas no CD Como nossos pais (2008). p. retratar o lirismo e a estética do cotidiano. how these songs deal differently with the relationship between lyrics and melody. 2010 [. Belo Horizonte. selecionamos três canções que claramente configuram uma fala filial dirigida ao pai como interlocutor: Papai me empresta o carro (de Roberto de Carvalho e Rita Lee). nesse período a canção se libertou dos gêneros rítmicos predefinidos. Deste CD. as they occur on the nucleus of the family. family. Several songs which have these relationships as a theme are grouped on the album Como nossos pais (2008) (Like our parents). Numa análise que articula contribuições da sociologia e da psicologia. Por sua vez. n. Monclar VALVERDE (2008. based on the typology proposed by TATIT. em seu livro O século da canção. we have selected three songs that clearly fits the scenario of a son/daughter speaking to his/her father: Papai me empresta o carro (Dad lend me the car) (by Roberto de Carvalho and Rita Lee). with their contradictions. também presente na indústria fonográfica. como no Brasil. M.232). na medida em que apresenta diversas gravações com datas entre 1966 e 1988. Já há história suficiente na canção popular para se depreender um certo revezamento dos modos de dizer – envolvendo sempre melodia e letra – que serve justamente para contemplar esses conteúdos psicoculturais. Per Musi. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras * Maura Penna (DEM/UFPB..Aprovado em: 18/02/2010 157 . João Pessoa. família. p.PENNA. 239 p. “Escute. dad”: dialogs between fathers and sons in Brazilian popular music Abstract: The relationships between parents and their children configure a specific part of the relationship between generations.157-166. p. de preservação da produção musical. anunciar e denunciar situações. lamentar as separações. mostramos como essas canções revelam diferentes momentos do processo de conquista da maturidade e da autonomia pelos jovens. precisamos celebrar os encontros. phonographic industry. A canção popular Luiz TATIT (2004) discute. p.).] em qualquer época. 1.dez. PB) [email protected]): PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. A seu ver. From this album. bem Recebido em: 20/12/2009 . 2004. 2004. as palavras.14) considera a família como .] O núcleo entoativo da voz engata a canção na enunciação produzindo efeito de tempo presente: alguém cantando é sempre alguém dizendo.. procriação.] enquanto forma musical e formato midiático. O autor considera a canção. Por estar centrada na melodia. o elemento visual (ZUMTHOR. 2008). da abordagem de VALVERDE (2008).PENNA. uma visão global da situação de enunciação. germinação”. uma determinada ocorrência da composição. é abolida “a presença de quem traz a voz”. transcorre e só tem sentido no tempo. Na gravação não há. p. ela regula as relações sexuais. [. não existe um modelo único e universal de família. VALVERDE (2008) interpreta a importância adquirida pela canção como um acontecimento da história da música. n. pois a voz gravada “é reiterável. No entanto. embora ela seja correntemente vista como uma instituição que contribui para a perpetuação da ordem social. genealogia” – dentre outras acepções. No entanto.3) caracterize a canção e analise sua eficácia a partir da relação entre “o seu componente 158 melódico e seu componente linguístico”. indefinidamente. formam o elo simbólico de uma comunidade de falantes que são anônimos e se desconhecem. simplesmente espelha a dinâmica e a estrutura da palavra falada”. ou seja.14). M.20) Como consequência. mas considera especificamente a sua realização concreta. Per Musi. cuja concepção valoriza mais o caráter musical da canção.70).. p. considerando os textos verbais – as letras – como narrativas. desafia a inexorabilidade do tempo.. TATIT. Deste modo. dando-lhe um perfil nem sonhado pelo autor” (TATIT. pois falta um elemento de mediação – no caso. 2007. ao considerar que o embrião entoativo “reproduz a circunstância de enunciação a cada execução”. (VALVERDE. mas tomando as canções selecionadas na especificidade das gravações apresentadas no CD Como nossos pais (FAOUR. p. Contrapondo-se a este posicionamento. discutimos como essas canções tratam diferentemente a relação entre letra e melodia. enfatizando os seus aspectos propriamente musicais. o que “acentua ainda mais a unidade desta Gestalt temporal que é a canção e reforça o seu poder expressivo” (VALVERDE. a canção não se reduz ao feliz casamento entre palavra e música: a voz..22. como a música. encontramos: “ação ou efeito de gerar(-se)” e “função pela qual um ser organizado produz outro semelhante. que configuram um tipo particular de relação entre gerações. p. 2008. de modo que os “arranjos e as gravações podem produzir de novo a canção. a seu modo e sem dizer nada. TATIT (2002.275-276). 1986. portanto. ele também reconhece que: “A harmonia. em se tratando de um registro fonográfico (como no material por nós analisado). 1986. 2010. num primeiro momento. com base nos processos de tematização. p. o percurso narrativo da canção é mais simples e concentrado.272-273 – grifos do original) Assim. através dela. o arranjo e a instrumentação datam e localizam o acontecimento que se canta. 2004). VALVERDE (2008) enfatiza diversos aspectos que são colocados em jogo através da mediação da performance do cantor: [. 2002. quando não arrebatadora.271-272).20). a gestualidade vocal que se realiza através da canção pode ser mais importante para a adesão do ouvinte do que o conteúdo veiculado por sua letra. o que permite o envolvimento com a canção. “Escute. ou mal.69). temos ainda “grau de filiação em linha direta”. Além disso. mesmo que suas palavras estejam em uma língua que não dominamos. de modo idêntico” (ZUMTHOR. para VALVERDE (2008. p. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. que embora TATIT (1986. p. podemos pensar a família como uma instituição social que organiza e legitima a procriação. enfim. Ao mesmo tempo.1).. e dizer é sempre aqui e agora. analisamos como retratam as relações entre pais e filhos(as). Gerações e famílias Dentre os vários significados do termo “geração”. ascendência.157-166. p. figurativização e passionalização (cf. torna presente o corpo e o desempenho de alguém real. (TATIT. uma “microestrutura tonal exemplar” (VALVERDE. como TATIT (2004). Por extensão de sentido. o arranjo instrumental e a gravação [. VALVERDE (2008) não aborda apenas a canção como uma composição que articula melodia e letra. Entretanto. além de ser possível ultrapassar o “puro presente cronológico”. Belo Horizonte. aproxima-se em certa medida da noção de performance de ZUMTHOR (2007) acima discutida e. Indo além. 2007. p. grupo racial. na “sua condição de veículo da mensagem”. mais que tudo. pela singularidade de seu timbre. 2002. comparativamente. a simplificação instrumental da música pop e o seu padrão de “acompanhamento” harmônico estabelecem uma relação solo-acompanhamento em que a melodia é a figura. Ela precisa de tempo para se constituir. Desta forma. A canção. conferindo concretude e familiaridade à ficção. Para este autor. encontrando sua força. Com base nesses sentidos de “geração”.275). Diante da existência de sociedades com práticas sexuais e matrimoniais bastante diferenciadas. conta uma história envolvente. No âmbito deste trabalho. 2007. p. a relação entre melodia e letra. que também a vincula à voz e ao corpo: “A performance dá ao conhecimento do ouvinte-espectador uma situação de enunciação” (ZUMTHOR. Num segundo momento. p. a canção é uma forma musical típica da cultura popular urbana que se tornou “o último reduto da tonalidade”. portanto. 2008. centrandose então na composição1.. apresentados pelo Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. “tronco familiar. aproximando-se assim da concepção de performance de ZUMTHOR (2007). “determinando quem pode e quem deve ou não ter relações sexuais com quem”. a melodia. p. enfatizamos. particular. estirpe.] são trocados a cada versão apresentada”. materializando-o em substância fônica vocal.12). Por conseguinte. mas se reconhecem. “A família é sempre um resultado das relações sexuais passadas ou correntes: sem sexo não há família” – como indica THERBORN (2006. Mas é preciso salientar. p. enquanto falantes. o antropólogo LÉVI-STRAUSS (1980. cujas características diferenciais abordamos adiante. portanto. 2008. 2. p. por mais que tentemos nos libertar. b) direitos e obrigações econômicas. temor. não se prendendo mais à instituição do casamento.16) na citação anteriormente apresentada. como significados da palavra “geração”. assim como a núcleos familiares monoparentais ou construídos a partir de parcerias homossexuais. nos anos de 1990. Desta forma. obrigatório e rotineiro – fica ligada a ela também externamente. Também agrupando repertório já consagrado. Aos vinte. crescemos e nos tornamos autônomos. na medida em que ocorrem no seio da família. estilos. procurando. temor. Nesse trânsito entre a família – a primeira unidade social em que vivemos. dentro da família. há também uma preocupação com a diversidade e com a preservação de gêneros. E a maioria das pessoas – mesmo que de modo distante. religiosas” ou de outra ordem. Porém. quando a deixamos. Mas continuamos também a ser. afeto. p. cujos membros adultos assumem a responsabilidade pelo cuidado das crianças”.232) Como uma das estratégias que exploram essa permanência.22. constituíram – a nossa formação. E. contemplar as transformações que ocorrem nas sociedades ocidentais contemporâneas – onde é grande a diversidade de formas de famílias e de núcleos domésticos. Belo Horizonte. p. Per Musi. somos amigos. O CD temático Como nossos pais e o mercado fonográfico Argumentando que a atuação do mercado fonográfico não é tão simples e homogênea como pode parecer. coabitação. de caráter temático. há uma distância e/ou uma oposição entre gerações.16) Nesta definição. levamos conosco muitas das suas tendências formativas. na oscilação entre vínculos e rupturas. Por outro lado. somos amantes. Foi também a primeira unidade social na qual vivemos. Pois nossa família. 2008). Em outras palavras: não se pode cultivar um só gênero ou uma só dicção por muito tempo pois a sociedade é complexa e precisa dos gêneros e dicções abandonados para se reconhecer integralmente. filhos dos nossos pais.229) Num processo marcado por contradições.157-166. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. respeito. Por tudo isso. produzido pela Som Livre em 2008. apesar dos vínculos de apoio à geração mais jovem. a família pode ser definida como um grupo social que apresenta as seguintes características: 1) Tem sua origem no casamento. de modo que não deve ser tratada de forma dogmática. respeito. c) uma rede precisa de direitos e proibições sexuais. a instituição do casamento – que pode ter diferentes formas. Ficamos ligados a ela interiormente. a depender da cultura – é um componente essencial. fica claro que as relações entre pais e filhos(as) configuram um tipo particular de relação entre gerações. p. os jovens – os filhos(as) – conquistam sua autonomia e. p. mesmo mantendo a conexão – a conexão interna. o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa traz ainda. p. Para o autor. ou trinta e poucos anos. 3) Os membros da família estão reunidos por a) laços legais. 2) É formado pelo marido. pais dos nossos filhos. por nossa vez. capazes de. sob ângulos que talvez não nos convenham mais.246) aponta. assim. etc. passando suas tarefas de geração a geração. Já GIDDENS (2005. quanto por uma “quantidade variável e diversificada de sentimentos psicológicos tais como amor. 1980. Aprendemos a ver o mundo com nossos olhos. os membros da família estão reunidos tanto por “direitos e obrigações econômicas. 3. n. além duma quantidade variável e diversificada de sentimentos psicológicos tais como amor. TATIT (2004. o que salienta o papel da mesma na reprodução. por sua vez. foi idealizado pelo jornalista. “uma das questões mais escorregadias dentro do estudo da organização social”. passando pelos Songbooks e pelas reinterpretações de clássicos do cancioneiro nacional e internacional”. pela esposa e pelos filhos(as) nascidos do casamento. 2004. a conexão externa –. religiosas e de outro tipo. Somos parceiros num casamento. M. inclusive no tocante a divórcios.231-232) discute como. continuamos a lutar para nos libertar dessa primeira família. 2010. p. TATIT (2004. podem se tornar pais/ mães. ainda que seja concebível que outros parentes encontrem o seu lugar junto do grupo nuclear. e não com os dos nossos pais.151) define a família como “um grupo de pessoas diretamente unidas por conexões parentais. foi o cenário onde nos tornamos indivíduos à parte. crítico e pesquisador musical – que também 159 . (LÉVISTRAUSS. na medida em que existe potencialmente a referência ao grupo com a mesma idade fora do núcleo familiar. em interação com o mundo artístico. esse processo de tornar-se adulto e ser capaz de construir novas famílias depende das próprias relações familiares que contextualizaram – melhor dizendo. do ponto de vista psicológico e da formação da personalidade. “Escute. Assim. (VIORST. Como diz LÉVI-STRAUSS (1980. atuações e mesmo artistas: Tudo ocorre como se o mundo financeiro. Isto indica que. nosso primeiro campo de socialização – e o “mundo lá fora” – a começar pela escola – que nos traz novas referências. recasamentos. a conceituação de família enfatiza a importância da relação intergeracional. afeto. Pois desta forma as sociedades humanas se renovam e se preservam. o CD Como nossos pais (FAOUR.PENNA. etc”. instituição social marcada tanto por vínculos de dependência e responsabilidade. quanto por laços emocionais. p. ao lado do investimento em “lançamentos explosivos” – e efêmeros –. assumir a responsabilidade pelo cuidado das crianças em novas famílias. na educação infantojuvenil e na socialização. trabalhamos. 1999. as regravações de antigos sucessos: desde “relançamentos de antigos LPs em formato de CD até as compilações dos melhores momentos da carreira. adultos responsáveis. p. (TATIT. captasse e ao mesmo tempo influenciasse um ritmo de alternância cultural que serve para manter vivas e atuantes todas as dicções (modos de compor e de cantar) que formam o universo musical da nossa sociedade. por extensão de sentido: “conjunto de pessoas que têm aproximadamente a mesma idade” e “espaço de tempo correspondente ao intervalo que separa cada um dos graus de uma filiação e que é avaliado em cerca de 25 anos”. nossa primeira família. p. além dos dados da gravação original: 1. 2008) – que permite remeter também à figura materna –. também o integram e são por nós considerados. Plact. 1978) 160 6. Sem dúvida. p. balada. no entanto. com as suas especificidades. E o encarte traz. atua como escritor e produtor musical – Rodrigo Faour. 1984)3 Como o próprio texto do encarte esclarece. Neste sentido. forró e outras levadas.157-166. a saudade do pai que se foi.– do LP “Fábio Jr. de relacionamentos com outras configurações. pois a mais recente data de vinte anos antes da produção da coletânea. Pela importância de evidenciar tais questões. admirações e reflexões de várias ordens são postas à prova em forma de samba. conforme agradecimento no encarte – que retratam pais e filhos(as) em diversas faixas etárias. em sua contracapa. etc”. Coisinha do pai (de Jorge Aragão/ Almir Guineto/ Luiz Carlos) – intérprete Beth Carvalho – gravação original do LP “No pagode” (RCA Victor. 1979) 2. pois imagens e textos verbais escritos. Pelo viés do respeito ou do humor. 2008 – encarte) Dedicado por FAOUR (2008 . falam sobre os pais ou sobre sua relação com seus filhos ou filhas. também responsável pela seleção de repertório e pelos textos do encarte. Um texto sobre a coletânea. Temos aqui os conselhos paternos. o encanto do pai com os filhos pequenos e o mesmo atrapalhado em cuidar deles sozinho… Enfim. Naquela mesa (Sérgio Bittencourt) – Nelson Gonçalves – do LP “Passado e presente” (RCA Victor. 1974) 10. Papai me empresta o carro (Roberto de Carvalho/ Rita Lee) – Rita Lee – do LP “Rita Lee” (Som Livre. com datas entre 1966 e 1988. 1988) 4. Faour tem trabalhado “no processo de revitalização do acervo das principais gravadoras brasileiras (Universal. evidencia-se por um certo olhar para trás na história. Espelho (João Nogueira/ Paulo César Pinheiro) – João Nogueira – do LP “Espelho” (EMI-Odeon. 1981) 14. disponível no site de Rodrigo Faour e também assinado por ele.232) quanto à preservação de diversos modos de compor e de cantar (que chama de “dicções”) que fazem parte do universo musical de nossa sociedade. mas não chegam a explicitar um caráter dialógico. RGE e Universal – como informa o encarte do CD. Avôhai (Avô e pai) (Zé Ramalho) – Zé Ramalho – do LP “Zé Ramalho” (Epic/CBS. diante das transformações sociais da família no mundo atual.) – Fábio Jr. Per Musi. Tais fotos são evidentemente antigas. 2005. Como discutem CAVALCANTI e MELO (2008). 1979) 9. M. de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). na organização da sociedade brasileira. nas mais diversas situações – das mais corriqueiras às saias mais justas (ou seriam calças?). 1985) 8. selecionamos faixas dos anos [19]60 para cá em que embates. de etnias. Belo Horizonte. vale ressaltar que tomamos o CD como um objeto cultural não estritamente musical ou sonoro. produzindo compilações e reedições de álbuns importantes da música brasileira. com base em fotos de diversas épocas – pertencentes a acervos pessoais. sempre acompanhados de textos explicativos assinados por ele”2. 1966) 11. a coletânea Como nossos pais (FAOUR. o número de famílias chefiadas por mulheres em nosso país cresceu 30% na última década. O mundo é um moinho (Cartola) – Cazuza – do LP “Cartola bate outra vez” (Som Livre.encarte) ao próprio pai. “Escute. a superproteção. nas canções do CD. SonyBMG. 1977) 12. a intenção é homenagear os pais – figuras paternas. Como informa a biografia disponível em seu site pessoal. presentes no encarte. Já fui (Marina Lima/ Antônio Cícero) – Marina Lima – do LP “Todas” (PolyGram. que também se revela nas ilustrações da capa do disco. EMI. um texto de apresentação assinado por seu idealizador. as broncas mútuas. a mulher é divorciada ou o pai abandonou a família (VALADARES. 2010. rock. . Na imensa maioria desses lares. apesar do título Como nossos pais (FAOUR. a caracterização deste CD como uma manifestação da preservação ou permanência da produção musical. diversidades de classes. Neste disco. assim apresenta o disco: Este CD mostra as relações de pai & filho/filha vistas pela lente da MPB de várias fases e vertentes. há uma “grande variedade de ‘famílias alternativas’. n. masculinas. Herança de meu pai (Benício Guimarães) – Jackson do Pandeiro – do LP “Isso é que é forró” (Polyfar/ Philips. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras.” (Som Livre.PENNA. atingindo a marca de 14.61). como é o caso da conhecida canção Naquela mesa (BITTENCOURT. 1982) 13. como também as gravações reapresentadas no CD em questão. De pai pra filha (Martinho da Vila) – Martinho da Vila – do LP “Verso… Reverso” (RCA Victor. Neste ponto. especificamos as 14 canções reunidas no CD. Isso também reforça a colocação de TATIT (2004. 2008) relaciona-se com este trabalho: ela reúne gravações de vários intérpretes. Mas é preciso contextualizar essa homenagem e essa centralidade da figura masculina na relação com os filhos. EMI. Como nossos pais (Belchior) – Elis Regina – do LP “Falso brilhante” (Philips. Muitas dessas músicas. Zuuum 2” (Som Livre. que canta a saudade do pai: “Naquela mesa tá faltando ele / E a saudade dele tá doendo em mim”. p. 1976) 5. Pai (Fábio Jr.22. que assim se inicia: As delicadas relações entre a figura do pai e seus filhos foram muito bem descritas através dos tempos por nossos compositores. (FAOUR. 1985) 3. 2008). com as referências de autoria e intérprete. composta pelo filho do músico e compositor Jacob do Bandolim. a partir de fonogramas cedidos pela SonyBMG. Warner e Som Livre). acima discutida por TATIT (2004). 1979) 7. Papai vadiou (Rody do Jacarezinho/ Gaspar do Jacarezinho) – Leci Brandão – do LP “Leci Brandão” (Copacabana. 14 anos (Paulinho da Viola) – Paulinho da Viola – do LP Élton Medeiros e Paulinho da Viola “Samba na madrugada” (RGE. Papai sabe-tudo (Leo Jaime/ Leandro) – Erasmo Carlos – do LP do especial infantil “Plunct.6 milhões de lares. a admiração por seus ensinamentos. sempre argutos cronistas do cotidiano. uma bela história contada em forma de disco4. é aqui retomada a visão da família nuclear como a unidade mais bem equipada para lidar com as demandas da sociedade industrial. torna presente o corpo e o desempenho de uma mulher real. Ao passo que a idade do casamento aumentou. a performance da cantora coloca em cena a dimensão feminina e. a especialização de funções determina que um adulto pode trabalhar fora de casa enquanto o outro adulto cuida da casa e dos filhos: enquanto o marido/pai atua como provedor. Papai eu não bebo. em relação às filhas mulheres. a idade da primeira relação sexual diminuiu. p.152-153). libertando-a de regras religiosas ou de quaisquer outras normas apriorísticas que a considerassem “pecaminosa” ou condenável de algum modo. de Roberto de CARVALHO e Rita LEE (2008). em termos culturais e legais. me empresta o carro Tô precisando dele pra levar Minha garota ao cinema Papai. pai. M. no entanto. pois falam com o pai: Papai. me empresta o carro Papai. Por outro lado. LEE.22. p. LEE. a voz feminina de Rita Lee. Na canção. emocional. de Marina LIMA e Antônio CÍCERO (2008). pelo caráter patriarcal da família representada e pela tradição machista de nossa sociedade. p. 2008) Gravada originalmente no final da década de 1970. essa canção também reflete a “revolução sexual” que ocorreu no mundo ocidental. Já fui. aqui.19) –. inclusive provando ser um bom filho – que não fuma e não bebe –. pela singularidade de seu timbre. como mostra MAINGUENEAU (1996. Belo Horizonte. apesar de a canção ter um enunciador masculino. nem sempre há coincidência entre o “produtor físico do enunciado (o indivíduo que fala ou escreve)” – no caso. Apesar de cantada pela voz feminina da roqueira Rita Lee. sem intenção de procriação.85). a postura feminista: a mulher reivindicando seus direitos e sua liberdade. potencial e intencionalmente. em idades mais jovens. suas letras pressupõem o diálogo e.(2008).306-307) Apesar de a expressão “tirar um sarro” poder ser tomada de forma mais branda. a canção revela uma configuração tradicional de família – nuclear e patriarcal –.] A revolução real foi. me empresta o carro. Papai. como indicam tanto VALVERDE (2008. ou filho de peixe. nos termos de VIORST (1999. não crie um problema Não tenho grana pra pagar um motel Não sou do tipo que frequenta bordel Você precisa me quebrar esse galho Então.272 – trecho acima citado) quanto ZUMTHOR (2007. em certa medida. a repressão. 2008) Se vinculado à família e de certa forma reproduzindo seus valores. o jovem rapaz reafirma sua in161 . quando exercida fora do casamento e por puro prazer. o desejo de assumir a própria vida e a própria sexualidade. [. que com a mesma idade também “pintava o sete”. o enunciador é claramente seu alter-ego masculino. discutir como essas três canções revelam diferentes momentos do processo de conquista da autonomia pelos jovens. Pai. a concepção de Parsons de família é atualmente considerada ultrapassada (GUIDDENS. Meu único defeito é não ter medo De fazer o que gosto. a mulher/mãe cumpre a função “afetiva”. mas sim jovens (adolescentes ou adultos) em diferentes momentos do seu processo de construção da individualidade – ou seja. tal filho. Três momentos/movimentos na relação pai–filhos(as) Os filhos que falam com seus pais nas três canções escolhidas não são mais crianças. 4. n. houve uma secularização da sexualidade. onde o pai desempenha claramente a função “instrumental” de provedor. p. no processo de se tornar indivíduos à parte. A prática de sexo pré-marital ampliou-se de forma significativa. defendida pelo sociólogo funcionalista Talcott Parsons. Para nossa análise. por sua vez. de FÁBIO Jr. então. tornar-se adulto e. Por outro lado. estabelecendo “uma relação de alteridade que funda a palavra do sujeito”. há outras indicações – como as referências ao motel e ao bordel – da aceitação do sexo prémarital. de conquista da independência e da autonomia. 2010. esperam uma resposta. u-hu! Papai eu aposto Na minha idade você pintava o sete Mamãe tem ódio de uma tal Elizete Aqui em casa é impossível namorar Então qual é a sua? Eu só quero um sarro Meia hora no seu carro com meu bem! (CARVALHO. A mesma liberalidade talvez fosse questionada. Desta forma.. a dependência. é claro. pede o apoio do pai para levar a sua “garota” ao cinema e “tirar um sarro”. impulsionada por inovações tecnológicas que permitiram dissociar sexo de procriação: Em primeiro lugar. dentro do ambiente doméstico. no último terço do século XX. Ela se manifestou claramente em mais iniciações sexuais pré-maritais. p. Nessa “família convencional”. peixinho é.PENNA. Em Papai. a fala do pai como resposta. p. 2008). um rapaz que ainda mora com a família – “aqui em casa é impossível namorar” – e é dependente dela. selecionamos três canções que claramente configuram uma fala filial dirigida ao pai como interlocutor. Mesmo que não tenhamos. para quem a voz “possui plena materialidade”. pois. “Escute. que assim prova que “já é um homem”. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Por tratar tal divisão de tarefas domésticas como natural e inquestionável.83-85). revelando-se assim uma tradição familiar: tal pai. portanto. me empresta o carro Papai. aquele que se coloca como enunciador – seu alter-ego. é possível também considerar que tal aceitação poderia se limitar aos filhos do sexo masculino: o pai teria orgulho de incentivar as manifestações de masculinidade de seu filho rapaz. a prática em si mesma. 2005. inclusive financeiramente. (THERBORN. a afirmação de masculinidade do filho é também compartilhada pelo pai. me empresta o carro (CARVALHO. Papai eu não fumo. LEE. Neste sentido. com suas contradições: os vínculos afetivos. p.157-166. me empresta o carro Pra poder tirar um sarro com meu bem! (CARVALHO. Procuramos.. a rebeldia. Desta forma. 2006. a cantora – e a categoria do “eu”. Per Musi. O jogo com as palavras cara e coroa – os dois lados de uma moeda. seus desejos – sua “fissura”. como a segunda parte da letra explicita. 2008). portanto. tchau. 2008) Retomando questões já apresentadas na primeira parte da canção. neste processo de conquista da liberdade individual. portanto. GIDDENS. por separação ou divórcio (cf. o tempo voa Sou mulher já! Tem alguém à espera Que vai ficar uma fera Se eu demorar demais Tem essa fissura Tem minha loucura Tem a de vocês Vocês sabem que eu os amo E muito Mas.PENNA. pelo papel de provedor ou por alguma forma de abandono do lar. Exige escolhas livres” (VIORST. Convém lembrar que não é fácil se tornar “indivíduo à parte”.. sendo uma referência corrente. até a vista5. adulto autônomo.166). “Sou mulher já!”. culpa. física e/ou emocionalmente.157-166. p. o que pode ser visto como um “defeito”. “Mais do que qualquer coisa. Já em Pai (FÁBIO Jr. com licença. 2006. Reafirmando a sua individualidade e o direito às suas escolhas. ao mesmo tempo em que ele . a configuração familiar é nuclear. Neste processo de amadurecimento pessoal e social. eu vou à luta Já disse E nem tem essa de culpa E nem tem palpite Tchau! (LIMA. Até mesmo a possibilidade de o pai ter falecido se insinua na sequência. e pouco depois. de ruptura é retratado na canção Já fui (LIMA. Encontramos aqui também. Pois a família tanto apóia a criança em seu processo de vida. um filho independente e mais velho – por sua vez já pai – reavalia a sua relação com seu pai e busca meios de reconstruir os vínculos afetivos. Mais uma vez. em 1986. Per Musi. em certa medida. preparando-se para o momento de deixar o lar. “Escute. intelectual e emocional. 1999. para atender a seus anseios. Tchau. quanto a reprime. a filha declara: “com licença. 2008) A interjeição (tchau) com que a letra se inicia. tanto no sentido estatístico quanto no moral” (THERBORN. “a vida familiar circunscreve praticamente todo o campo de experiência emocional”. o momento em que a filha deixa o lar. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. através das referências a brigas.234-235). gravada originalmente por Marina Lima em LP de 1985: Tchau. pois “tem alguém” que a está esperando e ela vai embora “com seu amor”. No entanto. mas sim de até logo. p. mas também tratamento informal dado a pessoas próximas – permite inferir que a filha se dirige ao casal: ao pai (cara) e à mãe (coroa). cara! Sim. inclusive – sai de casa e vai à luta para buscar suas verdades. “Pois o ato de sair de casa só se torna uma realidade emocional quando deixamos de ver o mundo com os olhos de nossos pais”. coroa! Tchau. o tempo voa Sou mulher já! A gente se liga Tarde demais pra briga Pra que ficar rancor? Eu quero viver Sim. CÍCERO. e os filhos podem se acomodar e também se rebelar. M. a obra foi adaptada para o cinema6. 2010. com indicações de mudanças comportamentais também para as mulheres.310). tchau. há uma clara relação intertextual com o título do livro autobiográfico de Eliane Maciel.. Pai Pode ser que daqui a algum tempo Haja tempo pra gente ser mais Muito mais que dois grandes amigos Pai e filho talvez Pai Pode ser que daí você sinta Qualquer coisa entre esses 20 ou 30 Longos anos em busca de paz (FÁBIO Jr. publicado no final da década de 1970 com bastante repercussão. 2008) Não é clara a razão do distanciamento entre os dois: se é o caso de um “pai ausente”. Assim. sendo logo repetida – e que irá também encerrar a canção – marca claramente a despedida.233). na época em que o LP de Marina foi lançado. a segunda parte traz elementos que revelam as tensões e dificuldades de todo esse processo. p. fortalecendo-se no processo de conquista de autonomia. pelo pai –. como discute VIORST (1999. depois de ambos terem se distanciado. quero viver Vou com meu amor Mas vocês sabem que eu os amo E muito Mas. p. o que indica que.161). CÍCERO. a filha reconhece e pretende manter os vínculos com os pais: “vocês sabem que eu os amo”. coroa! Tchau. E isto não tem apenas o sentido de “não sou mais criança”. no pedido para que renasça. n. p. CÍCERO. 162 um reflexo da “revolução sexual” das últimas décadas do século XX. com licença. Belo Horizonte. mas também de maturidade sexual. 2008). embora assumindo suas escolhas e sua própria vida.22. a filha – que podemos supor que conquistou alguma independência financeira. p.. nossas escolhas não precisam ser ou de desafio ou então de obediência em relação aos nossos pais: “A separação não exige que os repudiemos. num processo que é também uma luta para se libertar da família e aprender a ver o mundo com seus próprios olhos. Aqui. 2005. é interessante notar que seu sentido dicionarizado não é de adeus. capaz de se autogovernar. Como diz GIDDENS (2005. dividualidade – pois não tem medo de fazer o que gosta. eu vou à luta”. rancor. sua “loucura” –. cara! Sim. diz a filha. a revolução sexual tornou o longo período de sexo pré-marital e a pluralidade de parceiros sexuais durante a vida um fenômeno ‘normal’.. eu vou à luta Sem limite Pois se a Terra é mesmo fruta Eu tenho apetite (LIMA. Esse momento de despedida e. entre outras coisas.21). 2008) E se ele não é mais criança. Ao se tornarem canções. com o pai. 2004. 2008) O filho. Belo Horizonte.123) Assim.11-12) enfoca “a canção como produto de uma dicção” e passa a estudar a “fala camuflada em tensões melódicas”. criada por uma determinada canção. Não mais preocupados em instilar valores morais. Deste modo. também reafirma sua própria autonomia. 1999. especificamente. TATIT (2002. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. M. contribuindo para uma visão mais compreensiva das relações familiares e para a cicatrização de velhas feridas. as coisas ditas de um indivíduo a outro são sonoridades com caráter puramente utilitário. em diversas obras (cf. na medida que não é mais a criança cujos medos eram superados no colo do pai. marcada pela ambivalência. então. 2010. quer o contato. mesmo assim. sendo possível. esse filho que se tornou pai pode. No entanto. e nós – felizes com tudo o que podem oferecer aos nossos filhos – começamos a perdoar os pecados deles. Na medida em que configuram uma fala filial dirigida ao pai. o seu filho ainda é criança. ainda. paz (FÁBIO Jr. p. pelos sentimentos conflitantes de amor e ódio. pai – que contribuem para presentificar o tempo e o espaço da voz que canta (TATIT. uma direção estabilizada por leis de condução – que. não mais responsáveis pela formação do caráter. merece ser perenizado. (TATIT. tua voz tá tão presa Nos ensina esse jogo da vida Onde a vida só paga pra ver (FÁBIO Jr. o cancionista projeta-se na 163 .76). quer o afeto de “recostar no peito”.. a partir desse novo papel. 2004. alterando antigas perspectivas da infância do indivíduo. reais ou imaginários. 1986. 5. p. um modo de se dirigir a ele. mas acabam adquirindo um “sentido musical” – ou seja. 1986. vivendo e pedindo Com loucura pra você renascer Pai Eu não faço questão de ser tudo Só não quero e não vou ficar mudo Pra falar de amor pra você Pai Senta aqui que o jantar tá na mesa Fala um pouco. as três canções analisadas fazem uso do processo de figurativização. 2008) Como mostra VIORST (1999.22. por exemplo. destinadas a desaparecer.] o fato de nos tornarmos pais ou mães pode atuar como uma reconciliação. Todas elas fazem uso. Trata-se justamente do que ocorre com as canções: suas melodias são inspiradas nos contornos da fala.PENNA. este sim. A instabilidade e imprecisão das entoações de nossa fala cotidiana indicam. fazendo uso de recursos que visam mostrar que “a situação locutiva. não mais encarregados da disciplina e das regras. na medida em que refletem diferentes momentos no processo de amadurecimento pessoal do jovem. é convidado a partilhar de atividades cotidianas – como jantar ou brincar –. p. Pai Você foi meu herói.. destacando os processos de figurativização. não quer mais reprimir nem esconder seus sentimentos.25). Pela figurativização captamos a voz que fala no interior da voz que canta. cara. e desse modo o afeto buscado pode ser encontrado na relação avô e neto. p. entram em outra dimensão. Pela figurativização.235-236 – grifos nossos) Então. meu bandido Hoje é mais. O processo de figurativização é o que mais explicita a relação básica da canção com a fala coloquial. seguir em paz o próprio caminho. p.. p. que tenta resgatar os laços afetivos com o pai. Interessante notar que as três canções aqui estudadas exemplificam esses processos. A fala cotidiana. de vocativos – papai. 2002. Per Musi. [. o discurso oral. tornar-se pai pode ser uma fase construtiva do desenvolvimento. muito mais que um amigo Nem você nem ninguém tá sozinho Você faz parte desse caminho Que hoje eu sigo em paz Pai. é viável e poderia estar acontecendo durante o tempo e o espaço de sua execução” (TATIT. libertando-os para que sejam – como avô e avó – mais amorosos.235). Mas cada uma dessas canções também trata diferentemente a relação entre letra e melodia. o pai pode tornar-se “mais que um amigo”. dimensionar melhor a sua própria relação com seu pai – seu herói e seu bandido –.. n. destinando aos nossos pais melhores papéis. Pai Me perdoa essa insegurança É que eu não sou mais aquela criança Que um dia morrendo de medo Nos teus braços você fez segredo Nos teus passos você foi mais eu Pai Eu cresci e não houve outro jeito Quero só recostar no teu peito Pra pedir pra você ir lá em casa E brincar de vovô com meu filho No tapete da sala de estar (FÁBIO Jr. 2004) trata dos “tipos de compatibilidade entre melodia e letra” (TATIT.157-166. coroa. que elas não foram criadas para resistir ao tempo. p. que sugere “ao ouvinte verdadeiras cenas (ou figuras) enunciativas”. Pai Pode crer. p. a menos que sejam transformadas em algum projeto melódico digno de preservação. o que fortalece a ideia de que esse renascimento seja simbólico. eu tô bem eu vou indo Tô tentando. Distintos tratamentos da relação entre letra e melodia Entendendo que a canção tem profundo vínculo com a fala – tendo nela até mesmo a sua origem –. tematização e passionalização. no entanto. 2002. “Escute. Porém. implicando em mudanças na sua relação com a família e. assumem o que há de melhor neles. pacientes e generosos do que foram como mãe e pai. Já analisamos como cada uma expressa uma relação distinta com o pai. e ao mesmo tempo reconhece a experiência do pai e a sua capacidade de aconselhar e ajudar. (VIORST. pois cresceu – como é inevitável na vida –. TATIT. 13) apresenta o fato de os compositores se tornarem naturalmente cantores – “Afinal.23) Embora não se refira ao amor sensual. 2008). Essas características favorecem a constituição de células rítmicas bem definidas que vão se agrupando num processo denominado tematização. deixa a voz constantemente em primeiro plano para apresentar o que tem a dizer. ao mesmo tempo. inclusive expressivamente. 2004. de modo que compreendemos o que é dito pelos mesmos recursos utilizados no colóquio. O canto é lento e pausado. presente na história da canção popular.157-166. No . Por isso. que valoriza o percurso melódico em seus desdobramentos progressivos.. portanto. mas sempre deixando a voz em primeiro plano. uma vivência introspectiva de seu estado. de desafio. imperam as leis de articulação linguística. LEE. já vem relatada na narrativa do texto. A tensão de emissão mais aguda e prolongada das notas convida o ouvinte para uma inação. 2004. podemos constatar que as três canções analisadas exemplificam o revezamento. articulada a um acompanhamento instrumental que progressivamente se enriquece e se torna mais denso. CÍCERO. o processo de passionalização. que não chega a criar uma base rítmica capaz de estimular corporalmente.23). que estimulam o movimento corporal e a dança (TATIT. Retomando. a canção Pai (FÁBIO Jr. Se as diferentes dicções que formam o universo musical da nossa sociedade dizem respeito aos modos de compor e de cantar. o enunciador é um filho já adulto que. 2008) que se encontram menos presentes os recursos de concentração temática ou de expansão passional dos contornos: há pouca reiteração ou sustentação vocálica. tornando a melodia mais lenta e contínua.62-63). que permita recobrar o equilíbrio. portanto.232) apresentada no início do texto. depois de ter se distanciado física e/ou emocionalmente de seu pai – um estado disjuntivo. “Escute. processo que sustenta as “canções aceleradas. busca um novo “estado de conjunção”. quando se combinam com a voz (já sem texto) que explora. portanto. Em comparação com o rock de Rita Lee. 2008) e Pai (FÁBIO Jr.77). portanto. Neste processo. através do crescendo em intensidade. a passionalização melódica é um campo sonoro propício às tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo. Per Musi. O instrumental característico do rock. p. as vogais salientes e breves. o caráter rítmico da canção e a interpretação animada e enérgica de Rita Lee evidenciam a prevalência da tematização em Papai me empresta o carro (CARVALHO. obra. convém ressaltar que a interjeição constitui um verdadeiro nó “de entrelaçamento do texto com a melodia”. além da função dos vocativos “cara” e “coroa” (acima mencionada). vocalizes e a interjeição tchau (cuja função entoativa veremos a seguir). em geral. é interessante notar que as gravações das canções selecionadas são realizadas por seus compositores (pelo menos um deles). p. aqui e agora. 2008). pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Ressalte-se. p. A dominância da passionalização desvia a tensão para o nível psíquico.PENNA. 2010. antes. musical e linguístico” (TATIT.43 – grifo do original) Já a passionalização se caracteriza como a forma desacelerada de estabilização. ou seja. n. CÍCERO. TATIT (2002. Aqui. p. busca-se que o ouvinte se emocione com a canção.22. a voz que fala é a voz que canta” – como um elemento que reforça sua concepção de que a canção popular tem sua origem na fala. Sugere. que a intensidade constitui “um parâmetro de dosagem do afeto investido”. não chega a construir uma continuidade melódica que progressivamente leve a um crescendo de expressão emotiva. 1986. atuando na criação de uma cena enunciativa que se apresenta. densidade e expressividade emotiva.. p. LEE. p. predomina a tematização e. constrói-se gradativamente um clímax sonoro. A ampliação da frequência e da duração valoriza a sonoridade das vogais. É apresentada “a voz do enunciador dizendo algo considerado oportuno” (TATIT. que são musicalmente contrastantes.– própria de um “cantor romântico” –. Daqui nasce a paixão que. É apenas na ausência da fala que os encadeamentos rítmicos e harmônicos dos instrumentos ganham importância e se expandem – entre as partes da letra e especialmente ao final. (TATIT. com base na letra. Como analisamos na seção anterior. agora. é em Já fui (LIMA. busca os meios de reconstruir os vínculos afetivos. 2002. p. Belo Horizonte. É uma unidade entoativa por excelência. 2002. esse processo de figurativização se articula a outros recursos musicais de estabilidade melódica7. a figurativização é o processo predominante. Por sua vez. Desta forma. p. esta canção explora 164 Nesta canção (LIMA. Aqui. M. como acontece em Pai. inclusive. pois esse som vocal “não é nem bem um texto nem bem uma melodia. Desta forma. vinculando o conteúdo do texto ao momento entoativo de sua execução.15). em Pai. p. p. e embora em alguns momentos se mostre mais expressivo. centralizadas no refrão e repletas de recorrências melódicas”.21) muito mais as variações – e mesmo os contrastes – de dinâmica. como viável. O acompanhamento instrumental comedido. (TATIT. Na primeira.26-27) –. cabe destacar o papel da interjeição “tchau” – cuja importância para marcar o momento em que a filha deixa o lar já foi discutida na seção anterior. a citação de TATIT (2004. entre as quais percutem intensamente as consoantes. no caso a filha falando diretamente com os pais em tom de despedida e. como diz TATIT (2002. No entanto. em certa medida. nos termos de TATIT (1986. (TATIT. 2008) é marcada pelo alto envolvimento emocional na relação com o pai. 2004. A forma acelerada de estabilização melódica privilegia os acentos e. 2008). com valor. p. O processo de passionalização também se evidencia pela emotividade da interpretação vocal de Fábio Jr. em Papai me empresta o carro (CARVALHO. de modos de dizer – envolvendo sempre melodia e letra e os diferentes modos de tratar a relação entre elas – que serve justamente para contemplar os conteúdos psicoculturais relativos às relações afetivas e familiares. TATIT. recepção. [. Melford. de se relacionar com a letra” (TATIT. Ricardo. Sexo e poder: a família no mundo. 2002. as três canções analisadas dão recados aos pais (dos enunciadores). Diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. 19. TRAVASSOS. Senyra Martins.). Campina Grande. _______. de compor e de tratar a relação entre melodia e letra – ou seja. Elementos de linguística para o texto literário. Rosemary Alves de. expressam diferentes dicções presentes na canção popular brasileira. _______.PENNA.. [.91. M.170). 1980. Cotia/SP: Ateliê. p. Göran. Perdas necessárias. Porto Alegre: Vila Martha. Globalização e Cidadania.] Cabe apenas a constatação de que os trabalhos de arranjo e gravação mais bem sucedidos.230).br/acervodigital/home. MELO. Porto Alegre: Artmed. In: LÉVI-STRAUSS. 1999. o compositor propunha diretamente um modo de dizer melódico que só mantinha compromisso com a própria letra” (TATIT. 2004.63) 6. sendo retomadas e mantendo-se significativas.7-45. também exemplificam distintos modos de cantar. (Trabalho apresentado em mesa redonda) GIDDENS. Acima do bem e do mal. ZUMTHOR. Deixam.. “utilizar cada composição para deixar um recado de ordem existencial. 2008. João Pessoa: Conferência Internacional Educação. da pessoa: Como destruidores construtivos da unidade mãe-filho. Como aponta GIDDENS (2005. PENNA. caso em estudo.abril. 9 fev. Mistérios e encantos da canção. nas cenas que constroem. Por outro lado..O século da canção. 2007.. “Escute. No entanto. em nível de eficácia da comunicação. Elizabeth. p. do ponto de vista psicológico. 2009.268-277.229). “Arranjos e gravações trabalhadas podem não só intensificar a compatibilidade entre os componentes [letra e melodia] como também podem criar outros graus de adequação e outros espaços de compatibilidade”. São Paulo: EDUSP. Veja. Disponível em: http://veja. para nós elas deixam recados que refletem as mudanças nas relações familiares e nos comportamentos em nossa sociedade. Monclar. O cancionista: composição de canções no Brasil. apesar da enorme variação de relacionamentos sociais e sexuais nas sociedades ocidentais contemporâneas. Claude. Paul. Palavra cantada: ensaios sobre poesia. por extensão. 2010. (TATIT. Como fomentadores da autonomia e da individuação. p. 1986. p. Claude. GOUGH. São Paulo: Melhoramentos. A família. 2. enfim. Entretanto. e.22. 2008. livro de resumos. A canção: eficácia e encanto. In: Colóquio Cidadania Cultural: diálogo de gerações nas narrativas modernas. (VIORST. Per Musi. ed. com grande peso emocional. um baião ou um rock. SPIRO. até certo ponto. VALVERDE. Rio de Janeiro: 7Letras. 2005. Considerações finais As três canções analisadas. VIORST.aspx Acesso em: 12 set. sem estar mais preso aos gêneros rítmicos predefinidos. n. edição 1891. têm sido aqueles que aproveitam a compatibilidade já existente [na composição] entre o texto e a melodia e a valorizam. 2009. São Paulo: Cosac Naify. Como modelos de masculinidade para os filhos. São Paulo: Martins Fontes. São Paulo: Atual. aumentando a cumplicidade com o ouvinte. o seu recado. MEDEIROS. E como a figura outra-que-não-a-mãe que fornece uma segunda fonte de amor constante. Pois as crianças das gerações mais novas sempre precisarão ser cuidadas. Anthony. Sociologia. Kathleen.77) Contemplando conteúdos psicoculturais ainda presentes – por serem. VALADARES. isto permite pressupor que as realizações específicas analisadas – o arranjo e a gravação – são suficientemente fiéis à composição. sentimos sua falta. consequentemente. leitura. p. Maura.58-65. 4. ed. In: COLÓQUIO CIDADANIA CULTURAL. assim.157-166. MAINGUENEAU. Fernanda Teixeira de (Orgs. 2006. 1996. questões existenciais – tais canções podem permanecer. que trazem uma fala filial dirigida ao pai como interlocutor. 2004. os pais homens têm um papel específico e importante a desempenhar no desenvolvimento da criança – e. THERBORN. música e voz. A família: origem e evolução. tiveram gravações originais há mais de 20 anos. Assim. Campina Grande: MLI/UEPB. p. 165 . p. Performance. um blues. com. 2004. 2005. LÉVI-STRAUSS. Referências CAVALCANTI. 1986. ed. 1999. comportamental. 2009. integrantes de um CD temático datado de 2008 – que exemplifica a estratégia mercadológica de investir também na permanência –. Dominique. In: MATOS. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. p. Belo Horizonte. São Paulo: Contexto. conceitual. Judith. Luiz. mostram-se ainda representativas das relações entre filhos(as) e pais. Digitado. Nesse outro modo. ainda que submetida a grandes tensões. “em vez de produzir um samba. p.] E quando não temos pai. essencial. Cláudia Neiva de. a família continua sendo uma instituição firmemente estabelecida. p. ao mesmo tempo em que. O reality show “SuperNanny”: a educação infantil na lógica da polícia da família. representa um outro modo de encarar a melodia e. Como confirmação da feminilidade para as filhas. relações inter-geracionais que se desenvolvem no interior da família. wikipedia. entre outras obras já esgotadas. CD. há os protótipos de canções que exploram predominantemente cada um dos processos: figurativização. 2009. CÍCERO. 1 “O próprio registro autoral de uma composição incide sobre os versos e o contorno melódico emitidos pela voz do cantor. 2010. além de manifestações culturais e artísticas na contemporaneidade – especialmente música popular e midiática. pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. e de inúmeros artigos publicados em coletâneas. Como nossos pais. Rio de Janeiro: Som Livre.). Como nossos pais. sendo por vezes difícil identificar qual deles é predominante. Roberto de.) In: FAOUR. n. CD. 2008. tematização e passionalização (ver tb.br/quem-e-rodrigo-faour. CD. Agradecemos à Profa.1) 2 Conforme biografia de Rodrigo Faour. Atualmente é Professora Adjunto I do Departamento de Educação Musical da Universidade Federal da Paraíba. Como nossos pais. Estudos Culturais. política educacional para arte e música. 2002. In: FAOUR. 2009. (intérprete: Fábio Jr. M. TATIT. 1986. Arte e Educação. Rita.). Rodrigo (Org. Marina. Acesso em: 13 set. FÁBIO Jr. com ênfase em Educação Musical. p.com. Como nossos pais.br/cats/discos/coletaneas Acesso em: 13 set. Rodrigo (Org.60). Sérgio. Rodrigo (Org. Per Musi. 2008. CD. 5 De acordo com o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.” (TATIT.26 – sobre a arquicanção como canção-modelo). Rio de Janeiro: Som Livre. disponível em: http://rodrigofaour. 2008. p. “Escute. Carlos Sandroni e Luis Ricardo Silva Queiroz pela sua leitura crítica e valiosas contribuições para o processo de reelaboração.22. FAOUR. Rio de Janeiro: Som Livre. Pai. 2009. prática pedagógica em música. LIMA. 3 Conforme informações disponíveis em: http://rodrigofaour. periódicos científicos e anais de congressos.157-166. Rio de Janeiro: Som Livre.). Antônio._Eu_Vou_à_Luta Acesso em: 13 set. 4 Disponível em: http://rodrigofaour. faixa 8. p. Notas Este texto apresenta uma versão revista e ampliada de PENNA (2009). Já fui (intérprete: Marina Lima) In: FAOUR. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba. Belo Horizonte. faixa 9. atuando principalmente nos seguintes temas: educação musical. 2009. Tem experiência na área de Música. pesquisa em educação. CARVALHO. No entanto. ∗ Maura Penna é Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco. 7 Como mostra TATIT (1986. faixa 6.com. (intérprete: Nelson Gonçalves).PENNA.). p. Naquela mesa. cada canção faz uso dos três processos.org/wiki/Com_Licença. CD. In: FAOUR. Graduada em Música (licenciatura e bacharelado) e Educação Artística pela Universidade de Brasília. usualmente.). Eurides Santos e aos Profs. É autora de Música(s) e seu ensino (Sulina.br/cats/discos/coletaneas Acesso em: 13 set. 166 . 2008). Rio de Janeiro: Som Livre. faixa 7. Como nossos pais. LEE. 2008. Papai me empresta o carro (intérprete: Rita Lee). Rodrigo (Org. 6 Conforme informações disponíveis em: http://pt. 2008. Rodrigo (Org. Referências sonoras BITTENCOURT.com. onde tentei esboçar um conceito. Egberto Gismonti. Musical corporality in popular music: a view of Baden Powell e Egberto Gismonti´s performances on the guitar Abstract: Study based on the doctoral dissertation (SCHROEDER. p.. music performance. portanto. Tentando. Hoje considero mais prudente denominar a corporalidade musical de noção.167-180. talvez a noção de corporalidade musical seja por enquanto apenas o resultado de um esforço de adequação de outras várias PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. André Geraissati e Michael Hedges).22. the musicians are marked by possibilities and difficulties that do not allow the full realization of collective requirements. Ulisses Rocha. Egberto Gismonti.. o de corporalidade musical. Através da investigação das relações que dois deles (Baden Powell e Egberto Gismonti) constroem com seus instrumentos (violão popular) e linguagens (música popular instrumental). tendo como base a análise da obra fonográfica de cinco violonistas populares (Baden Powell. 2006) in which I propose the concept of musical corporality to be able to explain the performances of five Brazilian popular musicians. Palavras-chave: corporalidade musical. These instruments are marked by rules derived from a historical and collective process that does not happen in one single individual. Baden Powell. gêneros e instrumentos musicais escolhidos por eles para expressão. Estes instrumentos são marcados por regras oriundas de um processo histórico e coletivo que não se realiza num só indivíduo. importantes com referência ao corpo e à oralidade surgidos em outras áreas do conhecimento. On the other hand. Campinas) schroder@unicamp. 1 . conforme eu puder deixar mais precisos seus contornos com artigos e pesquisas posteriores. Music is born from this complex game. Corporalidade musical na música popular: uma visão da performance violonística de Baden Powell e Egberto Gismonti Jorge Luiz Schroeder (Unicamp.Aprovado em: 20/02/2010 167 . Per Musi.Palavras iniciais Este artigo é um recorte da minha tese de doutorado (SCHROEDER. Keywords: musical corporality.. compondo peças para coreografias. Through the investigation of the relations that two of these musicians (Baden Powell e Egberto Gismonti) construct with their instruments (the popular acoustic guitar) and languages (instrumental popular music). foi inevitável que a preocupação com o corpo e com as formas de concebê-lo Recebido em: 06/10/2009 . Belo Horizonte.. marcados por possibilidades e dificuldades que não permitem a realização plena de uma exigência coletiva. Egberto Gismonti. n. 2010 noções e conceitos. e os músicos. Ainda que aos poucos uma trilha para o status de conceito possa ir se formando.SCHROEDER. Deste jogo complexo nasce a música. 2006). 239 p. pretende-se enfatizar a performance como um jogo de tensões entre as possibilidades particulares dos músicos (tanto de realização quanto de entendimento musical) e as linguagens. tornar minhas considerações mais aprofundadas. popular music. Baden Powell. performance musical. Corporalidade musical na música popular. ministrando aulas de música para bailarinos.22. Por muitos anos minha atividade musical se deu na área da dança. 2006) em que proponho o conceito de corporalidade musical para poder explicar as performances de cinco músicos populares. poderia começar dizendo que a corporalidade musical é fruto de um trabalho interdisciplinar.br Resumo: Recorte da tese de doutorado (SCHROEDER. música popular. L. Uma espécie de tradução. . J. jul.dez. para o mundo da música. Tocando em aulas de técnicas de dança diversas. 2010. we intend to emphasize the performance as a game of tensions between the particular possibilities of the musicians (for the realization as well as for the musical understanding) and the languages. genres and musical instruments chosen by them for expression. Ainda que o corpo seja socialmente constituído. e apenas isto. algo me incomodava no modo como os bailarinos se referiam ao corpo. Principalmente na formação de novos artistas. reduzindo bastante a quantidade de estratégias (ou ferramentas) necessárias para a “construção” ou “moldagem” dos alunos.). por mais absurdo que pareça. para o centro dessas questões. da educação somática. limpeza etc. Dito dessa maneira parece óbvio que o corpo possa assumir a responsabilidade da realização de músicas. percebia o distanciamento da pessoa que dança ou toca que essa visão de corpo-instrumento parecia trazer. e das próprias técnicas de dança (balé clássico. Permite e deseja a distinção. já que em grande parte dos casos. das teorias sobre o movimento. atualmente com o desenvolvimento dos recursos digitais. contagiasse minhas inquietações como músico. L. quando concebe o intérprete instrumentista como um meio de transmissão das ideias dos compositores para o público. Mergulhado nesse universo seria difícil ficar imune à influência de destacar o corpo como produtor de danças e. Destituído de suas principais prerrogativas.SCHROEDER. se alinhava (à sua maneira) à tão criticada “massificação” produzida pela indústria da cultura. por outro lado dificulta o diagnóstico e a solução dos impasses a que este processo abstrato chegou nos dias atuais. devia se exigir dos bailarinos e. Na área da dança se fala muito sobre o corpo. Se para a música o corpo era considerado apenas no seu aspecto funcional. na sua totalidade. As comparações entre a manutenção dos instrumentos musicais (afinação. Suspeitava do perigo de estar deslocando um equívoco surgido numa área para um outro local. Se isto facilita o trabalho de formação tradicional de dançarinos e músicos. essa constituição coletiva permite e deseja que ele seja também individualidade. mas que a meu ver pertencia a um mesmo ideário “maquinal”. Mas as consequências dessa aparentemente simples mudança de eixo podem ser avassaladoras. deste modo. Corporalidade musical na música popular. do ponto de vista das concepções tradicionais da música. Per Musi. O incômodo começou cedo. parece mais fácil enaltecer o trabalho técnico. em todos os sentidos. outros meios para essa concretização vão sendo instituídos a partir da diluição da interferência mais direta do corpo.22. Por um lado. e a materialidade de meu instrumento (o violão). compor e executar músicas digitalmente sem que se saiba tocar algum instrumento. fazendo-me oscilar entre o total encantamento com relação à importância do corpo na música e a enorme frustração de ter que tomar o corpo na sua acepção maquinal. por consequência direta. e por isso abstrato e padronizado. E essa homogeneização parecia provir. mas não entendia como era possível fazer uma dissociação semelhante entre a pessoa que dança e seu corpo. que eu identificava mais facilmente talvez por não ser minha área de formação artística. pessoa de um lado e corpo do outro. Trazer o corpo. contudo não me deixava à vontade. por exemplo. danças do Brasil. Como se fosse um instrumento. ou melhor ainda. o corpo do músico é tomado apenas como meio necessário para a concretização de ideias musicais. por exemplo. sentia o entusiasmo da novidade de poder falar do corpo como algo de fundamental importância na realização musical. tanto nas expressões quanto nas dissimulações ou contenções. mais difícil para mim. Este conflito se tornou crônico no processo de investigação da tese. regulagem. o corpo concebido como instrumento aparece limpo daquele grupo de qualidades e características que o complexificam e o tornam ambíguo como texto (e também na sua expressão). Aliás.. considero a discussão sobre o lugar que o corpo ocupa nos campos de reflexão da música não apenas necessária mas. danças do oriente etc. requer um esforço de reflexão considerável. ou mais. Permite e deseja a atualização do coletivo.) e a manutenção do instrumento-corpo para a dança eram fácil e frequentemente evocadas.. Portanto. “Mas é ela mesmo quem dança!”. como vim compreender depois. 168 O fato de “descobrir” o corpo. quais sejam. e por vários vieses. Por isso tentei inverter a equação erigida pela dança (o corpo como instrumento) . meu incômodo apontava para a existência de um processo de homogeneização na formação dos dançarinos e músicos que. A metáfora da máquina se encaixa perfeitamente nesse modo técnico de pensamento e preparação dos artistas (“você ainda não está pronto”). como os da anatomofisiologia. criando ou executando. acima de tudo. Entretanto. sem as quais grande parte o jogo social atual se dissolve. conforme parâmetros previamente estabelecidos e processos de formação rigidamente sistematizados. confrontava a conveniência de poder-se distinguir o corpo “dançante” ou “tocante” da própria pessoa que dança ou toca. Já é possível. aquelas que o tornam único e reconhecível na sua expressão. então emprestar a visão mais aprofundada do corpo provinda da dança. como que manipulando um mecanismo que é o seu próprio corpo?” Ao tentar transferir o que ouvia sobre o corpo na dança para a música. “então como é que a pessoa consegue pensar-se de fora. dança moderna. de uma facção da “alta cultura” da dança. para dentro das discussões musicais. Portanto. pensava. com vontade de desenlear os nós que surgiam entre as duas artes no meu trabalho diário. também dos músicos. Contudo. p. paradoxalmente. urgente. mergulhado nesse ambiente. do músico neste caso. da preparação do corpo. as preocupações com o corpo por influência direta do trabalho com a dança.167-180. que pode vir das opções pessoais. Belo Horizonte. Desse modo. J. Isto porque eu compreendia a distinção entre meu corpo. n. pensava na possibilidade da inserção do corpo em favor da pessoa. talvez não ajudasse muito a mudança de cenário. 2010. Por outro lado. Ao contrário da anulação da pessoa em favor do corpo. fazia pensar nesse processo igualmente instalado na “alta cultura” musical. dança contemporânea. Mas nutria dúvidas fortes quanto à qualidade “maquínica” que. das terapias corporais. não acabar por considerar o corpo como produtor efetivo e fundamental de músicas. 1987). ou mesmo as reflexões psicofisiológicas musicais de Edgar WILLEMS. por exemplo. que a vontade de tocar se ajusta às possibilidades de tocar. 2010. Para esta investigação interessava menos observar quais processos corporais os músicos utilizavam para solucionar seus problemas de postura. de sonoridades a serem desenvolvidas. e para as teorias do discurso e da enunciação. condicionamento. Tive que deixar de lado tudo aquilo que estava mais à mão no que diz respeito à bibliografia. foi possível enxergar que o indivíduo não se constitui fora de uma coletividade. Per Musi. desconstrução ou manutenção de certos padrões de discurso (que podemos também chamar de gêneros de discurso). ainda que incipientes.. Em outras palavras. Não por falta de valor ou utilidade naquilo a que se propõem. no que diz respeito às músicas.. bastante promissores. e pensar o instrumento musical como parte do corpo. Alguns outros fatores. condicionantes das realizações musicais. criar um elo entre as informações harmônicas e melódicas das peças analisadas e os modos particulares dos músicos pronunciarem os discursos (sotaques. ou as associações entre ensino de instrumento e abordagens psicosomáticas (como o caso dos textos de Violeta GAINZA. resistência. dicções). ou impulso. Desconfiava que as escolhas de linguagens musicais a serem utilizadas. Embora a Educação Musical tenha se debruçado com mais demora nas questões sobre o corpo. e não há primazia ou hierarquia fixa entre essas duas dimensões da realização musical (entre o pensar e o fazer). As dificuldades foram grandes. n. que escolhi. mais propícias às influências biológicas. que tanto a razão quanto a sensibilidade são resultado de construções culturais.Realinhamento teórico metodológico Para que isto pudesse acontecer foi necessário um grande desvio teórico. e que o coletivo não anula o indivíduo. e passei para as teorias da ação centradas na cultura. Importava saber quais os fatores que os levavam a fazer certas escolhas musicais e não outras. ou o de piano de José Alberto KAPLAN. os processos criativos ou a dimensão discursiva da música).1969) visando a reorganização postural. 2001.22. deixei de lado as teorias do corpo. ajudando a situar mais claramente a posição de cada músico analisado dentro de um cenário musical maior. mas pelo fato de se enfraquecerem quando utilizados numa dimensão investigativa para as quais não foram construídos. incorpora as dificuldades e através delas é desenvolvida. a vontade e a possibilidade. E penso que foram essas pequenas pistas que acabei por perseguir durante o trabalho de pesquisa. e. confuso e complexo. com a qual vai sendo realizada em sua concretude. na pronúncia de seus respectivos discursos. os motivos pelos quais certas opções. de propostas estéticas a serem oferecidas. que possui padrões de procedimento. que aloja convenientemente em pólos opostos e conflitantes o individual e o coletivo. estabeleci uma ênfase maior na metodologia empírica. valores e desenvolve percepções e sensibilidades específicas. finalmente. p. Em primeiro lugar. ten169 . o redirecionamento nos caminhos do movimento. J. explicativos e terapêuticos das suas áreas de origem. Textos sedutores como os processos de associação entre o desenvolvimento de técnicas instrumentais e programas de conscientização corporal (como o caso do método do professor de violão Enrique PINTO. não provinham apenas das vontades pessoais ou das ideias musicais de cada músico. Belo Horizonte. que constatava realizarem-se nesta área. compartilhadas. todos eles tiveram que ser evitados. temia que os empréstimos teóricos das ciências biológicas ou médicas. 1988. evitando ou até mesmo curando lesões mais sérias. mas considero os resultados. Em terceiro. a ideia e a realização. longevidade técnica. dentre as muitas possíveis. eram usadas enquanto outras eram descartadas. L. Nessa dimensão foi possível estabelecer um local de observação que permitiu o livre trânsito entre níveis distintos de análise musical e contextual. e certas atitudes de renovação. Os dados obtidos através dessas observações empíricas e analisados a partir de outras fontes teóricas permitiram comparações com outras análises feitas sobre as mesmas peças ou músicos por analistas de outras vertentes teóricas. Foi possível também estabelecer paralelos entre escolhas sonoras e rítmicas. Corporalidade musical na música popular.167-180. por exemplo. Aos poucos me desestimulei a buscar nos métodos de ensino de instrumento as chaves para uma concepção menos mecanicista e psicossomática do corpo. processo que se tornou difícil. que a ideia musical se dá no mesmo movimento. não explicados. Foi possível. o singular e o plural. na economia de energia ou no domínio do peso. violonistas populares. por exemplo. Em segundo.SCHROEDER. partir para a análise do material fonográfico dos cinco músicos. acabassem por trazer a reboque as preocupações e objetivos taxionômicos. no que diz respeito aos músicos. Com este material teórico-metodológico nas mãos foi possível. permaneciam ocultos. No caso particular da minha análise. a reestruturação do pensamento técnico com base na consciência articular. foi possível superar algumas falsas dicotomias presentes no ideário musical. renegando a um segundo plano (por vezes até abandonando) questões de maior interesse especificamente musicais (como. 2 . o inteligível e o sensível. atualização. até mesmo de soluções técnicas a serem implementadas. Contudo davam indícios de existirem. então. na observação mais cuidadosa e extensiva dos músicos em ação. Por meio da mudança epistemológica foi plenamente possível considerar esses elementos todos como constituintes igualmente fundamentais das realizações musicais. que a obra musical é singular e ao mesmo tempo faz parte de um gênero de discurso determinado. no sentido da alteração radical da fundamentação epistemológica e do procedimento metodológico da pesquisa. este cenário maior foi o campo da música popular instrumental. quando discute a oralidade. sua rebeldia disciplinada. se integra de tal forma ao corpo (torna-se parte dele.86). do como principal motivo o modo explícito como. permite a inclusão de maior quantidade de informações ao se comentar de uma só vez os aspectos concernentes às duas obras. com sua ideia de corpo próprio. mais especificamente a vocalidade. no caso de Zumthor e da performance instrumental. para que essa complementação (a aproximação da performance viva que originou o texto) possa acontecer. 2007.SCHROEDER. se torna: “tocando qualquer música a corporalidade se diz”. Egberto não esconde a grande admiração que tem por Baden e tampouco a influência que dele recebeu como músico. de modo a favorecer um esclarecedor cotejamento ponto a ponto que. Esse momento concreto da realização é igualmente enfatizado por Zumthor pela presença imprescindível do corpo. permitindo perceber certa nuance nos comportamentos musicais. Outra razão é o fato da obra fonográfica dos dois músicos ser de mais fácil acesso do que dos outros três analisados. no meu caso). Neste caso específico a ordem dos fatores altera radicalmente o produto. em relação à uma tradição consagrada. a dissolução da 170 A transubstanciação dessa exposição própria do músico em linguagem musical permite a apreensão. o fato de já ter visto esses violonistas tocando (Egberto ao vivo.. me ajudou na inversão dos termos da equação (instrumento como parte do corpo ao invés de corpo como instrumento). muito embora o instrumento tocado não seja a voz propriamente dita (emanação direta do corpo. a genialidade faz sentido e é reconhecida como tal. que atestam. sem a presença visual do corpo. Deixando de lado o fato dos dois músicos terem carreiras consolidadas no mundo da música popular brasileira (tanto instrumental quanto cancionista. por um outro viés. para a compreensão de uma fala congelada no papel. Maurice Merleau-Ponty. Essa identificação musical e afetiva entre os dois músicos propicia uma análise comparada entre suas obras. p. Corporalidade musical na música popular. A partir desses conceitos foi possível erigir um alicerce sobre o qual as especificidades musicais puderam ser devidamente colocadas.Sobre as contribuições teóricas Antes de entrar nas análises dos músicos. p. em música. o músico se mostra ao mostrar sua música. E é aí que entra. presentes numa mesma linguagem musical que todos igualmente partilhavam.. altera suas dimensões MERLEAU-PONTY. gostaria de fazer um pequeno parêntese apenas para situar algumas contribuições que considero fundamentais para a elaboração da ideia de corporalidade musical. Estas foram as estratégias que utilizei para . Baden por meio de imagens de vídeo). que confirmaram. Mikhail Bakhtin. Para nós. tanto num caso quanto no outro. pessoal. abre o precedente para que eu possa localizar a corporalidade entre o corpo e a música. atualmente alguns outros autores puderam se juntar a esses três primeiros. como afirma ZUMTHOR. Mas também com as ideias de gênero de discurso e estilo. contudo de modo não convenientemente aprofundado.167-180. Um deles foi Paul Zumthor. Tanto quanto a revitalização da entonação necessária para a leitura de um texto. Por questão de espaço. ampliação e renovação desse campo musical. o conhecimento da língua e a familiaridade com o gênero de discurso utilizado. a escuta de um fonograma exige complementação de seu ouvinte. J. em fonogramas. viva e circunstanciada (ou contextualizada) da pronúncia (da fala ou do canto.22. tanto quanto na leitura de um texto escrito. p. Então a corporalidade. p. Existem algumas razões para esta escolha. compositor e violonista. e somente ali. É fato que. do outro (Egberto). 2007. L. Encontrei uma identificação quase imediata entre a vocalidade e a corporalidade no que diz respeito à forma única.27). Dessa forma. oferecendo a oportunidade de lapidar um pouco melhor a noção da corporalidade. para este artigo.85). cada um deles se portava de modo único. deixa de coincidir com o corpo e passa a ser manifestação do corpo concretizada em som. Durante o processo de investigação da tese foram três os autores que se sobressaíram como fornecedores de pistas para a construção da corporalidade. reformulando a ideia de genialidade em função de um controle de uma linguagem musical específica. em segundo. visto que ambos compuseram indiscriminadamente peças instrumentais e canções) e serem reconhecidos como marcos importantes na consolidação da legitimidade da música brasileira internacionalmente. Então eu beneficiei-me do fato de tocar violão. de uma certa maneira. frente a um mesmo grupo de exigências musicais. 1999. Per Musi. Mesmo na forma de gravação. 2010. p. dessa corporalidade. resolvi. para a dimensão deste artigo. ao investigar violonistas. ouvindo as peças sugeridas. dentro de um mesmo gênero de discurso musical. Ou seja. idiossincrático. sua reverência irreverente e. ele adquire propriedades “corporais”. porque fornece indícios fortes da sua presença. Este tema já havia sido abordado na tese por meio de Michel De Certeau. falsa dicotomia entre individualidade (o gênio) e coletividade (o gênero). Violão popular. uma revitalização da imagem gestual do músico tocando talvez seja necessária para a “leitura” da corporalidade. concentrar-me apenas em dois dos cinco músicos analisados: Baden Powell e Egberto Gismonti. Entretanto. n. 3 . a música popular instrumental) e a importância de suas respectivas contribuições para a instituição. Ao localizar a voz “entre o corpo e a palavra” (2007. que inicialmente contribuiu com o conceito de carnavalização. de um (Baden). Pierre Bourdieu cujas noções de habitus e campo de atividade social foram cruciais para entender os limites dentro dos quais os músicos escolhidos se movimentavam (no caso.198-199) que torna perfeitamente utilizável no contexto instrumental a afirmação do autor: “dizendo qualquer coisa. em primeiro lugar. principalmente desses dois músicos que irei apresentar em seguida. Belo Horizonte. dentro da qual. através do esforço de tentar executar algumas de suas músicas. acho muito importante o fato de que ambos se conheciam pessoalmente e conheciam um a obra do outro. Isto permite a complementação que o leitor pode fazer das minhas análises. Em terceiro. a voz se diz” (ZUMTHOR. James Florence. do modo como a concebo.. passou a ter aulas com um “verdadeiro professor de violão” (segundo a expressão usada por Baden no DVD Velho amigo). que Baden se formou como músico a partir de um mergulho no encontro das águas de duas tradições fortes do violão: a erudita e a popular brasileira. no dia 6 de agosto de 1937. L. de constituí-la em conceito. por onde circulam mais ou menos livremente inúmeros componentes tanto condicionantes quanto libertários. Vinícius de Morais. contraponto. essas expressões constituem um sistema simbólico complexo. podemos dizer tardio. eleitos (certamente construídos). formou-se como um dos grandes nomes do violão no Brasil. é possível detectar em suas performances um traço pessoal. Tendo inicialmente aprendido alguns rudimentos do violão com o próprio pai. Corporalidade musical na música popular. 171 . aliás. logo se tornou profissional. evidentemente. em outras palavras. como Pixinguinha. principalmente França e Alemanha. como Billy Blanco. Paulo César Pinheiro. Neste pequeno âmbito. por um lado. p. 2006.21). utiliza.33). agilidade. de abstrair ou generalizar seu alcance. instável. apreendidas através de modos específicos de mediação comportamental. em excursões pelo país. bastante sutil mas muito presente. 1852-1909. Per Musi.Carnavalização em Baden Baden Powell de Aquino nasceu em Varre-Sai. pequeno município próximo à cidade do Rio de Janeiro. orquestração e composição. Baden se orgulhava de dizer que estudou todo o método de violão de Tárrega (Francisco de Asís Tarrega Eixea. J. cujas pesquisas têm no corpo seu fio condutor. Com sua sociologia do corpo (2006) e antropologia das emoções (2009). Jacó do Bandolin. vive. e em casas noturnas e boates. Dino 7 Cordas. Comecemos com Baden. reconhece. também. mantinham canais firmes e dinâmicos de trocas simbólicas. forneceu argumentos poderosos no que diz respeito à ambiguidade e complexidade das expressões (e porque não dizer também das emanações) através do corpo. cedo se interessou pela música. Outro autor. O termo. Acompanhando o pai nas “noitadas” de festas e serestas. Espero que o próprio leitor possa corroborar essa afirmação com as análises que farei a seguir. 1999. 2010. por outro. contudo de modo particular em cada um deles. A partir daí. manteve contato com músicos importantes e já amplamente considerados dentro da música popular. 4. 1999). ou eminentemente corporais (no sentido biológico do termo). Estilos e características apresentados como idiossincráticos podem ocultar processos ou ideários com alto grau de proximidade. amigo e companheiro de grupo musical do pai de Baden. a partir dos 15 anos. exercidas através de modelos gestuais limiares entre “mostrar” e “esconder”. Ainda que não seja minha intenção detalhar sua biografia aqui. de comparação entre performances. Influências de Tárrega. deste cenário musical por onde Baden circulava. tendo extrapolado sua fama até a Europa. constituindo gradualmente uma carreira promissora que se solidificou principalmente na década de 1950. entre outros. não deve nunca esquecer da ambiguidade e da efemeridade de seu objeto. Nesta dimensão procurei localizar a corporalidade musical. a qual dei o nome de carnavalização. Ela aparece em ambos. dentro do gênero da música popular instrumental. inventividade) e valores artísticos provindos dessas duas vertentes principais que. Traços. que considero proveitoso para o caso dos nossos dois músicos.22. Morreu em setembro de 2000 deixando vasta obra fonográfica atualmente disponível em discos LP e CDs. p. foram sempre afirmadas por ele (DREYFUS. Aspectos e atitudes peculiares numa certa dimensão podem se mostrar interligadas numa outra. Daí a dificuldade em delineá-la claramente. a qualidade que possui de incentivar questionamentos muito mais que de constituir fontes de certezas (BRETON. Terceiro filho de pai violinista amador. Dilermano Reis e Garoto. violonista e compositor espanhol) ainda menino. tentar recompor. é possível afirmar que Baden se projetava a partir da apropriação de parâmetros de qualidade (sonoridade. conhecido como Meira. países onde viveu por muitos anos. Por ser menino humilde de cidade pequena. alguns traços marcantes das suas respectivas corporalidades. 4 . Tendo um desenvolvimento e envolvimento bastante rápido com a música e com o violão.167-180. a partir de sua interpretação das festas populares da idade média.. estudando arranjo.1 . entre outros. E este é o caso da carnavalização nos dois músicos. A sociologia. Belo Horizonte. Concebendo as expressões do corpo como construções socioculturais. porém. podemos inferir. o mais fielmente possível. mas que não invalidam minhas análises.Carnavalização Como já mencionei acima.SCHROEDER. A partir dessa situação específica. acompanhou várias cantoras e cantores famosos na Rádio Nacional. Completou seus estudos na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro. que veio a contribuir com minha investigação foi Davi Le Breton. n. a contribuição da corporalidade parece permitir algumas inferências difíceis de conseguir através das análises exclusivamente musicais. emprestado de BAKHTIN (2002) veio a calhar por conta de uma característica a ele atribuída pelo autor. o fato de dominar rapidamente as habilidades necessárias ao bom desempenho do violonista clássico certamente despertou seu interesse em face a aprovação quase unânime de todos que o ouviam tocar (DREYFUS. quando iniciou parcerias com grandes nomes da música popular. Como violonista profissional. Portanto. harmonia. p. como consta em seu depoimento no DVD Velho amigo. logo. Fernando Sor e Andrés Sergovia. a perspectiva da corporalidade musical. Contudo ela se mostrou válida neste cenário desenhado para sua elaboração: a performance violonística de músicos populares. contudo significantes para quem as exercita. cria algumas oportunidades não só de descrição e explicitação de características discursivas presentes nas performances mas. SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180. Essa visão, oposta a toda ideia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de imutabilidade e eternidade, necessitava manifestarse através de formas de expressão dinâmicas e mutáveis (protéicas), flutuantes e ativas. Por isso todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um “mundo ao revés” (BAKHTIN, 2002, p.9-10). Bakhtin se refere a um momento específico, o das festas populares, onde a ordem do poder se altera, pelo menos temporariamente. O grotesco se sobrepõe ao belo, o provisório ao perene, a instabilidade se instala e o torto supera o reto. As partes baixas, sujas, íntimas do corpo aparecem; a alma desce ao submundo do material e os tronchos tornam-se reis. Na obra de Baden esse momento não é instituído clara e abertamente como nas festas as quais Bakhtin se refere. Baden defende a ordem, se alinha com a tradição, enaltece-a. Mas deixa que nas fissuras do seu “bem tocar” se infiltrem pequenos jorros do grotesco, do incontido. O incontrolado aparece em sua obra não como erro ou equívoco, mas como uma presença rarefeita, um murmúrio de resistência daquilo que é o avesso da perfeição, daquilo que instiga a ordem, daquilo que balança o equilíbrio, sem chegar a desfazê-lo, mas usurpando-o de sua segurança absoluta. Baden talvez seja aquele mal necessário que ao desestabilizar uma lei, renova-a, atualiza-a, e amplia seu significado, invertendo sua direção ideológica a favor daqueles que ela supostamente prejudica. Como isto acontece? Quais seriam os prováveis indicadores dessa atitude carnavalesca? Um bom exemplo, para começar, é a interpretação que Baden faz da música Berimbau, uma de suas composições mais conhecidas, no CD Ao vivo no teatro Santa Rosa (faixa 5). Embora tenha recebido letra de Vinícius de Morais, nesta versão ela aparece em seu estado instrumental. Baden inicia a performance da peça com uma introdução solística (sozinho), os outros instrumentistas (piano, baixo acústico e bateria) vão entrando gradativamente até que a seção introdutória se torna uma espécie de improvisação rítmica coletiva sobre o tema principal da música (que na versão cantada recebe a palavra “berimbau”). Depois disso inicia-se a melodia principal (por volta dos 46 segundos na gravação) seguida do refrão (capoeira me mandou, dizer que já chegou, chegou para lutar/Berimbau me confirmou, vai ter briga de amor, tristeza camará...), essas partes apresentadas numa ordem mais comumente conhecida pelo público1. Volta o tema principal seguido novamente do refrão; depois disso aparece uma seção de improvisação solística (por volta dos 2min02s) que termina numa ponte para um novo aparecimento do refrão. Volta o tema principal numa última aparição e tem-se então o final, numa coda curta que retoma o tema do “berimbau”. 172 Um dos traços mais aparentes onde é possível inferir esta carnavalização anunciada é o andamento acelerado que Baden imprime à peça. É possível comparar essa diferença de andamento com uma outra interpretação da mesma música no CD Baden Powell, uma coletânea da gravadora Movieplay (faixa 4), em que é mantido um andamento mais próximo das versões cantadas, mais lento e cadenciado. A aceleração proporciona uma forte instabilidade rítmica, perceptível tanto na difícil sincronia entre os instrumentistas quanto nas imprecisões que acontecem nas transições entre as seções da música. Pode parecer, numa primeira audição, que Baden decide bruscamente mudar de trecho e que seus acompanhantes, atentos e acostumados a esse tipo de rompante do violonista, o seguem prontamente como que num impulso de reação imediata. Não parece haver, nesta versão, uma preocupação muito grande com a obediência rígida da quadratura de frases da peça. Com exceção da seção da melodia principal e do refrão, as outras passagens intermediárias (pontes e improvisos) parecem acontecer de uma forma mais livre, em que a regularidade de ciclo harmônico e frasal dá lugar à intensidade e a efervescência do clima a ser atingido em cada momento. Isto dificulta, por mais bem ensaiados que possam estar os músicos, a execução mais precisa das transições entre as partes, criando um provável clima de relativa insegurança (vencido pela atenção dobrada dos músicos acompanhantes), o que pode enfatizar ainda mais a sensação de urgência já estabelecida pelo andamento rápido. Baden procede dessa maneira em muitas outras ocasiões2, acelerando os andamentos, desestabilizando a métrica, borrando a plasticidade das massas sonoras, as transições entre seções das músicas, tudo isto parecendo desafiar os músicos que o acompanham e a sua própria habilidade no instrumento. Esse excesso, a meu ver, faz eco com as considerações de Bakhtin. Baden, ainda que numa situação diferente daquela desenhada por Bakhtin sobre a Idade Média, utiliza desse processo de deformação da regularidade das músicas para “sujar” a limpeza exigida pelas regras oficiais de execução, às quais ele, apesar de tudo, parece querer continuar atrelado. A sonoridade de seu violão, na aceleração desmedida do andamento, fica distorcida pela inclusão inevitável dos ruídos de raspagem das unhas nas cordas e na madeira do violão, indo muito além do limite de sonoridade consensualmente aceita para o instrumento (esses ruídos de excesso os violonistas chamam de trastejamento). Limite a partir do qual os vários sons que o violão emite, voluntária e involuntariamente, se avolumam e quase se igualam numa espécie indistinta de percussão violonística, em que o ataque das notas passa a valer mais do que a ressonância; o barulho se equipara ao som. Assim temos uma inversão da regra, o contrário da limpidez, o ruído; o contrário da linha melódica, a percussão rítmica; o contrário da previsão, o inusitado. O tema do berimbau, que não deixa de ser um instrumento meio SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180. melódico e meio percussivo, vem bem a calhar como pretexto que justifica o excesso, que permite a “grosseria” (que, no entanto, ganha um toque de virtuosismo com Baden) e a inversão tolerável da hierarquia tradicional da música popular. Baden troca o alto (o som musical) pelo baixo (o barulho). O que impressiona é o jorro de vitalidade que Baden consegue impor nesse controle descontrolado que infiltra nas fissuras das regras do “bem tocar”. Ele, sem dúvida, demonstra técnica, habilidade e vigor, ou seja, alguns dos elementos mais preciosos na avaliação dos músicos, pelo menos no meio musical no qual Baden se tornou apreciado. Entretanto esses mesmos elementos são transfigurados, estimulados até seu estado limítrofe, sem que o medo de perverter a ordem impeça sua exacerbação. Contudo, Baden paradoxalmente distorce a música, mas não a quebra. Não chega a descaracterizar sua configuração, mas borra. Usando uma força avassaladora da carnavalização da interpretação (a abundância de vigor, sonoridade e velocidade, o exagero da técnica que vai além das propriedades obedientes do instrumento) Baden oferece uma alternativa grotesca, mas aceitável (e até admirável), aos modos valorizados e se exprimir no violão. Melhor ainda, ele insere o grotesco cuidadosamente em suas performances de tal modo a se misturar e se confundir com os sinais de virtuosismo, ou neles se fundir, a ponto de, por um lado, ser aceito e admirado graças a esses mesmos sinais (e que inclusive o identificam, o individualizam, o instituem como músico consagrado e único) e, por outro, manter um rastro de rebeldia e ousadia, marcas reconhecidas e reconhecíveis nos considerados grandes artistas. Mas a carnavalização não aparece apenas na aceleração e na sonoridade peculiar de Baden. Ela se manifesta também na dimensão harmônica e melódica. Isto é possível notar pela opção que ele faz por um tipo de sonoridade violonística melhor conseguida quando se estimulam as cordas soltas. Esta sonoridade possui algumas características que a diferencia da sonoridade das cordas presas. Uma das prováveis razões para essa escolha de Baden é o fato de que as cordas soltas, por vibrarem na sua máxima extensão, mantêm suas ressonâncias mais intensas e por mais tempo do que quando são “encurtadas” pela digitação da mão esquerda (ou seja, quando as cordas estão presas). Uma outra característica é que, ao contrário das cordas presas, o timbre das cordas soltas é mais aberto, mais metálico, mais exuberante, então permite maior intensidade de toque porque responde com mais intensidade ao toque. Há uma última característica nas cordas soltas: elas dificultam o controle. As cordas presas são mais facilmente abafadas em suas vibrações, já que um pequeno alívio na pressão de sua digitação a faz cessar de vibrar. As cordas soltas, por sua vez, precisam da ação de abafá-las para que silenciem. Essa dificuldade geralmente causa um efeito sonoro na execução que são espécies de “sobras” de sons vibrando. Quando se muda de acorde, no violão, este fenômeno pode acontecer se estão presentes as cordas soltas, tor- nando os encadeamentos de acordes menos nítidos em suas transições (é quase como tocar piano com o pedal de sustentação apertado). Mas para que esta sonoridade aberta das cordas soltas se efetive e se torne predominante no resultado final da performance é preciso escolher cuidadosamente os acordes (e, por consequência as tonalidades) mais propícios, ou seja, a escala e seu grupo de notas que permita maior utilização das cordas soltas; aquela em que um número maior de acordes, ou de possibilidades de construção de acordes, permita a inclusão de cordas soltas. Esta não é uma escolha simples. Mesmo quando a tonalidade adequada já está determinada para a execução de certa peça musical, isto não garante que toda a peça possa ser tocada com a ajuda das cordas soltas; alguns trechos podem oferecer dificuldades para se manter uma igualdade sonora (é bom sempre lembrar que estamos falando do gênero instrumental popular!). Nesse caso, ainda existe o recurso das rearmonizações (troca de acordes). Podemos dizer, rapidamente, que são pelo menos dois os motivos principais para a troca de acordes numa peça de música popular: (1) para incluir uma marca específica, pessoal, na interpretação da peça (descobrir um novo caminho harmônico, inusitado ou característico que, por sua vez, não desfigure a melodia e não descaracterize o gênero musical, mas identifique seu executante); e (2) para adaptar alguma passagem específica às possibilidades mecânicas de execução do instrumento. Baden soma a esses dois motivos básicos um terceiro: a conquista de uma sonoridade particular. Ele parece procurar muitas vezes aquelas soluções harmônicas em que prevalecem as sonoridades mais abertas e intensas das cordas soltas, alterando frequentemente suas interpretações. Mesmo quando executa suas próprias músicas, Baden procura constantemente soluções que parecem caminhar nesse sentido, alterações perceptíveis quando comparamos as várias versões que gravou das mesmas peças (Berimbau é um bom exemplo dessa busca, mas também Garota de Ipanema e Samba de uma nota só são bons exemplos desse procedimento em Baden). No campo melódico, por sua vez, a rebeldia carnavalesca de Baden se mostra numa mistura às vezes insólita de velocidade e ecletismo. Explico melhor. A ideia comum, e equivocada, de que a música se constituiria numa “linguagem universal” é um argumento que, mesmo quando tenta elevar a música a um patamar diferenciado dentre os inúmeros sistemas simbólicos existentes, concebe o músico, em contrapartida, como um verdadeiro “poliglota” musical. Coisa que, na prática, raramente acontece; e sempre com limitações. Baden parece aceitar essa crença no ecletismo quando escolhe (ou concorda) em gravar uma grande diversidade de gêneros musicais, como mostra seu legado fonográfico. Baden gravou desde samba tradicional (Na baixa do sapateiro e Inquietação, de Ary Barroso), marchinhas de carnaval (Pastorinhas, de Noel Rosa e João de Barro), chorinho (Lamento e Carinhoso de 173 SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180. Pixinguinha), bossa nova (Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes; Samba de uma nota só, de Tom Jobim e Newton Mendonça), standards do jazz tradicional (Stella by starlight, de Ned Washinton e Victor Young; My funny valentine, de Richard Rogers e Lorenz Hart), bee bop (Round midnight, de Thelonious Monk, Cootie Williams e Bernie Hanighen), canções populares (Chão de estrelas de Silvio Caldas e Orestes Barbosa; Dora, de Dorival Caymmi) e música erudita (Prelúdio em ré menor, Double e Jesus, alegria dos homens de Bach; Adágio de Albinoni), entre outras. Também nas suas improvisações ele misturou desde linhas mais jazzísticas, padrões de blues, melodias de chorinho, até passagens eminentemente bachianas e improvisos rítmicos com acordes nos sambas. Aqui também é possível interpretar essa enorme liberdade que Baden parecia sentir em transitar por uma diversidade grande de gêneros musicais, muitos deles contraditórios entre si (no sentido da incompatibilidade de soluções melódico-harmônicas ou rítmicas características de cada gênero abordado), como um traço de rebeldia, de perversão às regras (neste caso particular, das regras de “purismo”, visto que o ecletismo tornou-se, na época em que Baden iniciou sua carreira, meta a ser almejada pelos intérpretes; e que continua ainda hoje). Embora participasse de perto do movimento da bossa nova, na década de 1950, ele não se filiou definitivamente em nenhuma corrente musical das épocas em que atuou. Baden Powell nunca pertenceu a nenhum movimento, a nenhuma congregação. Ele nunca se ajustou a nenhum molde, nunca seguiu nenhuma orientação e, sobretudo, nunca se limitou a um gênero. Quando a marca registrada da bossa nova era aquela famosa batida [do violão de João Gilberto], à qual todos os músicos da década de 60 se amarraram, Baden continuava percorrendo todos os ritmos, inclusive o da bossa nova, com um sotaque infinitamente pessoal e original (DREYFUS, 1999, p.67). Ainda que exagerada, a citação acima não deixa de constatar esse ecletismo cultivado, ou pelo menos incentivado, pelas atitudes e escolhas musicais de Baden. Em todo caso, ao nos aprofundarmos um pouco mais sobre sua obra fonográfica, é possível inferir que esse ecletismo mantém um centro ao redor do qual todas essas outras linguagens abordadas por Baden circulam, num movimento centrípeto. Este centro de atração é o samba. Podem advir certas dúvidas em considerar Baden como jazzista, quando toca jazz, ou violonista erudito, quando toca Bach. Contudo certamente não aparecem muitas dúvidas quando o consideramos sambista. Muito da sua produção criativa se manifestou nesse gênero. Inclusive um grupo fundamental de músicas que compôs com Vinícius de Moraes, conhecidos como Afrosambas (que podem ser ouvidos nos CDs Os afro-sambas de Baden e Vinícius; Os afro-sambas – Baden Powell; e uma versão de Paulo Bellinati e Mônica Salmaso Afrosambas – Baden Powell e Vinícius de Moraes). Conjunto de canções que atualizou o gênero quando fundiu, num mesmo cadinho, o samba tradicional com elementos característicos da música dos candomblés. 174 Desse modo, é possível incluir na lista de rebeldias carnavalescas de Baden, contra um padrão de atitudes já previamente determinado e valorizado, a inclusão de citações de vários outros gêneros musicais dentro do samba, e também do samba dentro desses outros gêneros que pronunciava. Penso nessa atitude como uma espécie de “paródia a favor”. Isto porque, além de remeter a um conhecimento considerado “autêntico” e “legítimo” pela inteligência musical de sua época (como o da música erudita, para os tradicionais, e do jazz, para os progressistas), e que Baden mostrava dominar e reconhecer sua legitimidade citando-o, trabalhava a seu favor na medida em que delegava a ele, por força das circunstâncias, essa mesma autenticidade e legitimidade que ia aos poucos conquistando como músico. É bom salientar que Baden não desdenhava a música “legítima” ou mesmo seus padrões do “bem tocar”, visto que era através deles que sua consagração era aos poucos alcançada. Mas não unicamente através deles. Ao contrário disto, ele parecia querer confirmar essa legitimidade mostrando respeito e até um certo grau de reverência aos gêneros mais consagrados na sua época (a música erudita e o jazz). Todos esses fatores, embebidos nas suas possibilidades (facilidades e dificuldades) e entendimento (apropriações e recusas) criam, a meu ver, uma proposta discursiva e estética que caracteriza sua produção artística, tanto quando interpreta músicas alheias quanto nas suas próprias composições. Passemos agora ao outro músico. 4.2 - Carnavalização em Egberto Egberto Gismonti nasceu no Carmo, pequena cidade no interior do estado do Rio de Janeiro, no dia 5 de dezembro de 1947. Filho de pai libanês e mãe italiana fez o percurso tradicional de estudos musicais em conservatórios, estudando piano e violão. Depois de ter passado por 15 anos de estudos tradicionais, teve a oportunidade de estudar, em Paris, com Nadia Boulanger (professora de vários músicos consagrados em vários gêneros e linguagens musicais, tais como Almeida Prado, Quincy Jones, Raul do Vale, Frank Zappa entre muitos outros) e Jean Barranqué (discípulo de Schoenberg e Webern). Retornando ao Brasil, inicia sua carreira pública participando do Festival da Canção de 1968, com a canção Sonho 70, interpretada na ocasião pelos Três Moraes, já aqui demonstrando certa dose de transgressão e vanguarda assimilada provavelmente em seus estudos parisienses. Grava seu primeiro LP com a mistura da música erudita da vanguarda do século 20 com a música brasileira, utilizando ritmos tradicionais do frevo, choro, maracatu, batuque, samba, dentre outros. Possui, atualmente, a gravadora Carmo, que se dedica ao lançamento de novos talentos da música instrumental brasileira. A dimensão carnavalesca, sutil e insistente em Baden, com Egberto assume proporções bem maiores. Aqui o grotesco bakhtiniano também aparece principalmente como a exacerbação, o excesso de atuação, que atinge um estado limítrofe tanto da obra que se propõe a executar (ou criar) quanto do gênero musical na qual se SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180. instala, ou do qual irradia suas intervenções artísticas. Diferentemente de Baden, Egberto não tem a preocupação de instalar seus excessos nas fissuras da ordem “oficial” musical. Ao contrário, ele explode essa mesma ordem estabelecida através da instauração de uma outra, que constrói a partir de suas misturas e experiências entre linguagens e gêneros, que acabam por constituir uma proposta estética (podemos dizer também, um universo sonoro discursivo, ou um dialeto) particular. Sua exasperação temporal, por exemplo, que ele utiliza com frequência no violão, não estremece uma organização musical preestabelecida, não borra seus limites bem delineados, mas habita um mundo já praticamente beneficiado pela existência dos borrões, pelas hachuras e pelas linhas fragmentadas e indefinidas. Em outra palavras, Egberto toma a liberdade de construir um universo musical, uma proposta estética, que contém, ou pelo menos pressupõe, a possibilidade do excesso (na verdade, exige). Vários exemplos poderiam ser citados, entretanto considero a peça Dança das cabeças (faixa 2 do LP Dança das cabeças) suficiente para ilustrar minhas afirmações. Numa arquitetura complexa (são oito minutos de música ininterrupta), na qual apresentações dos dois temas principais são intercaladas com seções novas e com trechos de improvisações e desenvolvimentos, Egberto costura uma sequência na qual alterna diversos climas sonoros. Imagens sonoras múltiplas surgem em correspondência direta com as várias articulações que elabora com aquilo que podemos chamar de elementos principais eleitos para a confecção da peça. Com um material estrutural reduzido, ele consegue apresentar uma gradação ampla de matizes sonoros (timbrísticos, de intensidades, de articulações, de texturas e tonais), elaborando verdadeiras paisagens sonoras em constante transformação, em que ora um, ora outro elemento toma a frente do discurso, estabelecendo uma dinâmica intensa num jogo de trocas entre figura e fundo durante toda a peça. Um desses elementos, por exemplo, é o que chamamos de “notas rebatidas”. É um recurso que, muito usado por violonistas, consiste de notas repetidas continuamente, formando uma espécie de ressonância reiterativa cuja função principal, na peça analisada, é a de preencher os vazios deixados pela costura dos temas melódicos apresentados, adensando sua textura sonora. São repiques de notas que se interpõem às notas da linha melódica, como acontece num outro exemplo conhecido desse procedimento que são os ponteados da viola caipira, que podem ser tocados apenas sobre uma corda, alternando notas da corda presa com notas da corda solta, intercaladas geralmente uma a uma. Na Dança das cabeças a nota rebatida é elemento constituidor e fundamental na sua estrutura. Ela aparece quase sempre provinda de uma corda solta; a depender do trecho da peça ora é corda aguda, ora é corda grave. Mesmo nas seções de improvisação e desenvolvimento mais livres, o mote da nota rebatida se mantém presente, algumas vezes transfigurado em arpejo repetitivo (como na seção que inicia por volta dos 2min08s, que chamei na análise de “ponte estendida”, ou na segunda seção de improviso, por volta dos 4min33s). O desenvolvimento dessa peça permite que ampliemos um pouco mais a ideia das notas rebatidas, generalizando-as como bordão. A ideia do bordão, nesta peça em particular, é sempre apresentada de maneiras diferentes. Na introdução, por exemplo (até por volta dos 42s), aparece logo de início como função da primeira nota grave que, a partir do momento da entrada de uma série de acordes repetidos (uma melodia de acordes), se acomoda com intensidade diminuída por detrás da melodia de acordes. Passa de figura a fundo até a entrada do tema principal (aos 42s). Já na entrada do tema secundário (por volta dos 58s), o bordão é transferido para a tumbadora (instrumento de percussão tocado por Naná Vasconcelos, acompanhante de Egberto nesta versão), que transforma o bordão melódico/harmônico do violão em bordão rítmico da tumbadora. Os acordes iniciais, transformados em arpejos na seção que inicia por volta dos 2min08s, passam de protagonistas a acompanhantes durante todo o trecho, e assim as alterações vão se sucedendo por toda peça. As notas rebatidas, contudo, não são exatamente o traço rebelde na execução da peça, mas sim um elemento estrutural na sua arquitetura. Entretanto, a insistência, a repetição praticamente ininterrupta, a obstinação por esse fundo reiterativo, enfatizado pela sensação de urgência suscitada pelo andamento ágil e pela rítmica pontilhada que praticamente a percorre do início ao fim, este sim poderia exemplificar um traço grotesco (bakhtiniano) de Egberto. Só que, diferente de Baden, essa agitação toda consubstancia um terreno já “carnavalizado”, com o qual os elementos de rebeldia que ele apresenta na execução não se mostram em conflito, mas sim em relação de cumplicidade. Embora Egberto, assim como Baden, extrapole o andamento com o qual executa a peça (há várias frases extremamente rápidas, principalmente no tema secundário, que aparece por volta dos 58s, 1min32s e 6min11s, e em algumas seções de improvisação, por volta dos 4min33s e 6min43s, onde é possível perceber auditivamente traços desse exagero temporal, quando não ouvimos nitidamente todas as notas que ele toca, mas captamos seu gesto espasmódico), exagere os contrastes abruptos de intensidades (variando em instantes de um pianíssimo quase inaudível para um fortíssimo trastejado) e abuse do uso das cordas soltas (em busca de uma sonoridade também aberta, ressonante e intensa), ele faz tudo isso dentro de um terreno previamente arquitetado que sustenta e dá corpo e sentido estrutural a esses excessos. Em Egberto os exageros não são traços de rebeldia dissimulada, mas elementos próprios da sua linguagem. Enquanto Baden parece querer se apossar de um discurso oficial de um modo não-oficial, se é que se pode dizer isso, Egberto 175 SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180. parece já estar de posse de um discurso não-oficial em que suas “grosserias” musicais só ajudam a reafirmar esse universo especial que cria. Na dimensão melódico-harmônica, Egberto mantém a preferência pelas cordas soltas, já assinalada na sonoridade de Baden Powell. Mas também nesse quesito Egberto desfruta de uma relação diferenciada, já que teve contato prolongado com a vanguarda contemporânea erudita em seus estudos na Europa e pôde, com certeza, reorganizar suas expectativas harmônicas para dissonâncias mais ousadas, de certo ponto de vista não tão próximas das sonoridades populares cultivadas no Brasil3. Egberto utiliza abundantemente não só dos ostinatos e bordões em cordas soltas, acrescentados de acordes que vão se movimentando e alterando as relações dissonantes com esses bordões utilizados, mas também das mudanças de acordes em paralelo, onde se fixa uma fôrma de mão e faz com que ela passeie pelo braço do violão livremente (estratégia que utiliza acordes paralelos na forma de frases melódicas e que, se acrescentados de cordas soltas, causam efeitos inusitados de dissonâncias). Os exemplos de utilização dessa estratégia são vários, como na peça Em família (faixa 3 do CD Em família, tocada muitas vezes na forma de solo de violão nas apresentações ao vivo4), ou nas versões que elabora de Aquarela do Brasil, de Ari Barroso (faixa 1 do LP Duas vozes) e de Fé cega, faca amolada, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos (faixa 9 do CD Dança das cabeças). Um outro sinal que parece comprovar essa afirmação é a constituição de seus violões. Dentre vários que possui, alguns dos que mais usa possuem mais do que as seis cordas do violão padrão. Um deles é um violão com dez cordas de nylon e o outro possui quatorze cordas de aço, mas não na disposição dos violões de doze cordas que encontramos no mercado. Esses últimos possuem seis cordas duplas que são estimuladas par a par, já que o par funciona como se fosse uma única corda (a afinação é feita em uníssono ou oitavada, a cada par, seguindo geralmente a afinação tradicional EADGBE). Então, retomando, o violão de dez cordas de Egberto funciona como um violão tradicional, de seis cordas, onde foram acrescentadas outras quatro acima da corda mais grave, primeira e terceira mais finas e a segunda e quarta mais graves. A afinação desse violão obedece a afinação tradicional, variando apenas as afinações das cordas acrescentadas (no caso da peça Em família a afinação é FAAG-EADGBE). O violão de quatorze cordas de aço obedece o mesmo padrão do anterior, com a diferença de que as quatro primeiras cordas (as mais agudas) são duplas, enquanto as demais permanecem únicas. O sistema de afinação desse violão é igual ao anterior e varia conforme a peça a ser tocada. Nesse quesito em especial, Egberto demonstra uma relação mais individualizada com seu instrumento, na medida em que o altera de forma mais contundente. Baden altera mais frequentemente a afinação da sexta corda (tradicionalmente afinada na nota mi) e menos frequentemente a afinação da terceira corda (tradicio176 nalmente afinada na nota sol). Um outro indício importante da relação especial que Egberto mantém com o violão pode ser constatado no fato de que ele raramente toca músicas que não as suas próprias no instrumento. Ainda que alguns exemplos contrários possam ser garimpados na sua discografia, é significativo como esta preferência por suas próprias criações se mantém desde os primeiros discos por ele gravados. O mais curioso é constatar que esta mesma atitude não acontece quando Egberto se dedica ao piano. São bem conhecidas suas interpretações de vários outros autores ao piano. Uma interpretação possível para esta atitude aparentemente reservada, dedicada ao violão, origina do fato de que pode haver uma diferença significativa no tipo de vínculo que ele estabeleceu com o violão em comparação com o piano. No programa Ensaio, produzido pela TV Cultura em 1992, Egberto esclarece que seu violão possui esse número avantajado de cordas para que ele, “um pianista, possa tocar violão. Só isso”5. Ou seja, Egberto se considera um pianista que toca violão e isto o obriga a tomar certas providências, por exemplo o aumento do número de cordas, para que ele possa se expressar “como um pianista” ao violão. Essa declaração do próprio Egberto oferece uma pista importante sobre sua corporalidade ao violão. Ao contrário de Baden, que era violonista, Egberto utiliza o violão (e alguns outros instrumentos como flautas, percussão, violoncelo) como fonte de expressão, quase como um complemento necessário à concretização de suas ideias musicais. A meu ver isto indica uma consciência bastante nítida das limitações que Egberto percebe em si mesmo como violonista. Esta afirmação pode parecer equivocada à primeira vista, mas se refletirmos um pouco mais sobre o assunto podemos constatar que (1) isto não diminui em nada a qualidade musical de Egberto ao violão, ao contrário, esclarece a sua inteligência em saber aproveitar de modo artístico suas limitações no instrumento (digo limitação porque os recursos que ele se utiliza no violão não são típicos de um violonista tradicional, como a independência total das mãos na produção de sons, técnica apenas recentemente desenvolvida principalmente pelos guitarristas, e aqueles recursos dos violonistas tradicionais não são explorados por Egberto); e (2) esta atitude deixa manifesta aquilo que chamei de corporalidade musical, que é a elaboração discursiva feita a partir dos recursos adquiridos, das possibilidades articulares tornadas possibilidades expressivas, e da consciência dos limites dentro de um plano de ação expressiva que, embora Egberto não enfoque o instrumento (já que ele não se considera violonista), direciona toda a energia expressiva para a construção de peças que extravasam vigor e refletem uma relação tranquila e consciente com um instrumento secundário (entretanto bastante usado, e com propriedade, pelo músico). A corporalidade musical é a chave para a compreensão desse uso, podemos dizer engenhoso e astuto, dos recursos SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180. mecânicos, possibilidades articulares, agilidade digital etc., como componentes fundamentais da realização musical. A música não parte apenas de uma ideia. Ela está mergulhada nas possibilidades de realização, a ponto da ideia inicial poder ser totalmente modificada (ou até abandonada) se sua realização esbarra numa dificuldade insuperável. O próprio Egberto afirma, na mesma entrevista já citada, que as inversões dos acordes com que está acostumado no piano, ao serem transferidas para o violão demandam “muito malabarismo” que ele não apreciaria fazer. Por isso a inclusão de mais algumas cordas em seu violão. Nesse sentido, as músicas poderiam ser pensadas como fruto de uma tentativa de equilíbrio entre possibilidades, desejos e imposições do instrumento e a vontade de conduzi-lo para a concretização de um discurso significativo e expressivo. Novamente aparecem os três pontos do triângulo dinâmico de forças que atuam sobre as realizações musicais: as exigências corporais contidas nas linguagens musicais, nos instrumentos e as possibilidades e características dos músicos. Digo triângulo dinâmico porque ele se equilibra a cada vez de uma forma diferente, para cada músico específico, para cada peça realizada e para cada versão de cada peça. E é justamente disso que iremos falar a seguir. 5 - Oralidade e escrita Como um último ponto abordado em relação à corporalidade tomaremos a relação intrínseca que ela mantém com o que alguns pensadores definem como oralidade e com sua contrapartida, a escrita. A oralidade comumente é colocada em oposição à escrita. A partir, então, dessa falsa oposição, várias associações equivocadas vão sendo construídas entre, por exemplo, oralidade e analfabetismo, ou oralidade e primitivismo. Como nos alerta Paul Zumthor: É inútil julgar a oralidade de modo negativo, realçando-lhe os traços que contrastam com a escritura. Oralidade não significa analfabetismo, o qual, despojado dos valores próprios da voz e de qualquer função social positiva, é percebido como uma lacuna. Como é impossível conceber realmente, intimamente, o que pode ser uma sociedade de pura oralidade (supondo-se que tenha existido algum dia!) [...] Daí ser frequente, nos autores que estudam as formas orais da poesia, a ideia subjacente – mas gratuita – de que elas veiculam estereótipos “primitivos” (ZUMTHOR, 1997, p.27). Não é minha intenção aprofundar essa discussão neste espaço, isto exigiria um artigo específico, mas apenas lembrar rapidamente os perigos de opor a oralidade à escritura. Tomando as palavras de Michel de Certeau: Referir-se à escritura e à oralidade, quero precisar logo de saída, não postula dois termos opostos, cuja contrariedade poderia ser superada por um terceiro, cuja hierarquização se pudesse inverter. [...] A oralidade se insinua sobretudo como um desses fios de que se faz, na trama – interminável tapeçaria – de uma economia escriturística (CERTEAU, 1994, p.233, a ordem das frases foi invertida por mim). No que concerne aos nossos estudos da música popular, a oralidade é algo que se estabelece em relação à escrita musical, ou seja, existe como um pensamento musical híbrido, mas que não é homogêneo, no sentido de perfeitamente misturado em doses proporcionais. É manchado, esfumaçado, borrado, visto que muito do que se desenvolveu em matéria de concepções musicais favorecidas pela possibilidade da escrita musical ou já estava contaminado pelas práticas orais, ou acabou por contaminálas. Isto ocorrendo em graus diferenciados de dosagem para cada linguagem ou gênero musical específico (em alguns casos, para cada músico ou peça musical). O fato de um gênero sobreviver através de sua transmissão oral não implica necessariamente que ele não incorpore procedimentos desenvolvidos graças à escrita. E, por sua vez, o fato de um gênero adotar a escrita como forma de propagação e conservação não implica isolamento total de procedimentos de caráter oral. Em todo caso, talvez evitemos o equívoco de estagnar a oralidade no analfabetismo musical (que, no entanto, existe em parte considerável dos músicos populares) ou no primitivismo (considerando a música conservada e desenvolvida sem registro escriturístico menor do que a música escrita). Baden e Egberto estudaram em escolas tradicionais de música e, portanto, ambos dominam a escrita, a leitura e a teoria musical. Pretendo dar apenas um exemplo de procedimento que, se envolve concepções escriturísticas, também envolve vestígios de oralidade. E isto será feito a partir de algumas versões gravadas de uma mesma peça. No caso de Baden, utilizaremos a já citada Berimbau, e no caso de Egberto, Salvador. Refiro-me às versões de Berimbau gravadas nos CDs (1) Ao vivo no Teatro Santa Rosa – faixa 5; (2) Baden Powell à vontade – faixa 2; (3) Baden, Márcia, Originais do Samba Show/Recital – faixa 5; (4) Os afro-sambas de Baden e Vinicius – faixa 9; (5) Baden live à Bruxelles – faixa 11. As versões de Salvador estão nos seguintes CDs e Lp (1) 1969 – faixa 1; (2) Violões – faixa 9; (3) Solo – faixa 2, lado B. Sem querer estender demais as análises, é possível perceber numa primeira audição, mesmo que não aprofundada, as diferenças que cada uma dessas versões sustenta em relação às outras. A primeira versão de Berimbau, já comentada anteriormente, se destaca pela velocidade e pela quantidade de intervenções de seções de improviso, estabelecendo um clima de urgência e, ao mesmo tempo, de liberdade na costura dos temas principais da peça. A segunda versão, mais cadenciada (andamento médio) e tocada apenas com violão e pandeiro, parece oferecer um desenho mais nítido de suas ideias principais (introdução, melodia principal e refrão, que nesta versão é cantado). Baden não deixa de aproveitar a oportunidade para improvisar, entretanto, diferente da primeira versão, seus improvisos são executados sobre os temas principais, obedecendo de modo mais contido, o ciclo regular das quadraturas de cada seção. Na terceira versão, tocada ao vivo como a primeira, inicia também com um andamento mais cadenciado, próximo da segunda versão. A introdução é executada com o violão e um berimbau e lá já se ouve uma improvisação rítmica sobre a célula principal de berimbau. Uma ladainha tradicional é iniciada e terminada enquanto 177 SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180. o improviso rítmico continua como fundo (ou acompanhamento). Começa um jogo de pergunta e resposta entre melodias improvisadas ao violão e frases entoadas pelo cantor. Logo depois desse momento o andamento acelera, começam a tocar os atabaques, mas os improvisos do violão continuam, desta vez alternando frases rítmicas com frases melódicas. Nesta versão a melodia principal só inicia depois de mais de cinco minutos de improvisação, é repetida e logo seguida por nova seção de improvisação melódica. Não aparecem aqui nem o tema secundário e nem o refrão, substituídos por improvisações melódicas e rítmicas. Na quarta versão até mesmo o nome da peça foi alterado para Variações sobre Berimbau. Inicia-se a peça com um toque de berimbau, logo seguido pelo violão. O andamento é também cadenciado (de médio para lento). Inicia a percussão e o violão faz um pequeno improviso que se transforma em acompanhamento para uma ladainha tradicional, cantada desta vez pelo próprio Baden. O andamento é levemente acelerado, outros cantos tradicionais de roda de capoeira são cantados. Nova aceleração do andamento é feita, um improviso do violão marca levemente o ritmo forte da percussão que permanece presente e constante durante toda a peça. Aqui também as melodias principal, secundária e do refrão não são tocadas, sustentando a peça apenas os improvisos e referências aos cantos tradicionais das rodas de capoeira. A última versão, também ao vivo, tocada apenas com o violão, aparece num andamento um pouco mais lento. Uma introdução forte, com acordes recheados de cordas soltas, é seguido da mesma ladainha de capoeira (presente também nas versões 3 e 4). O andamento acelera e um novo canto é cantado, logo seguido pelo canto próprio da música, com letra de Vinícius. Por essa razão as melodias todas são apresentadas na forma cantada, acompanhada com variações rítmicas e de registro do violão. Um improviso aparece depois de cantadas a estrofe, o refrão e a repetição da estrofe. A partir daí o violão apresenta o tema principal na forma instrumental, seguido de uma improvisação que adia o refrão. Este último aparece novamente cantado e depois disso um retorno ao tema principal instrumental termina a peça. A primeira versão de Salvador, a primeira gravada por Egberto no seu primeiro disco, aparece num andamento médio, acompanhado apenas pela percussão, recurso bem próximo de algumas gravações do próprio Baden, que interpretou várias peças apenas com violão e percussão. Aparecem, depois de uma introdução rítmica, os temas principal, secundário e novamente o principal, seguidos por uma mudança do instrumento percussivo acompanhante (de bateria para atabaque), anunciando a seção de improvisação. Volta a seção do tema principal sem, entretanto que ele apareça. Segue-se o tema secundário, novamente o tema principal, dessa vez com sua respectiva melodia presente, e uma coda parecida com a introdução. A segunda versão, tocada ao vivo, inicia com uma longa seção de introdução (mais de dois minutos) onde o primeiro tema é citado, seguido por um improviso. Segue a entrada do 178 tema principal num andamento vertiginoso (quase não se escuta a melodia tal sua velocidade). O tema secundário é apresentado no mesmo fluxo vertiginoso. Retorna o tema principal seguido de uma seção de improviso. Retorna novamente o tema principal seguido por nova seção de improviso que rompe com a urgência rítmica dos temas principais. Volta novamente o tema principal seguido do secundário e da repetição do principal. Há um improviso final onde a música Berimbau de Baden é citada e uma coda final. A terceira versão contrasta com as anteriores principalmente no andamento, bastante mais lento do que as outras duas. O clima que se estabelece nesta versão é contrastante com as outras porque transforma a urgência presente nas primeiras versões em melancolia profunda. Nesta versão não aparece o tema secundário, apenas o principal entremeado de seções de improvisação. No final Egberto chega a improvisar um canto, que anuncia o fim da peça, seguido por uma pequena coda. Ainda que estas descrições sucintas das várias versões de cada peça possam ter sido enfadonhas para o leitor, elas foram necessárias para tentar mostrar o nível de liberdade de execução de que partilham esses dois músicos. Mesmo sendo as duas peças bem conhecidas do público que acompanha a carreira e as apresentações dos dois violonistas, eles frequentemente tomaram a liberdade de alterá-las a ponto de desconstrui-las quase que totalmente. No caso de Baden acontece uma versão em que nenhum dos temas principais da peça são tocados (talvez por isso a mudança do nome de Berimbau para Variações sobre Berimbau que atribuiu a essa versão), e uma outra onde apenas o tema principal é citado. Em Egberto a versão mais lenta (a terceira) perverte não apenas a sequência dos temas apresentados nas outras versões, mas também o clima total da peça, transformando-a praticamente numa outra. Esta liberdade, que ambos demonstraram em várias outras oportunidades, executando outras peças, é algo que remete à liberdade do orador, do contador de histórias, do narrador. Os dois músicos conhecem profundamente o discurso musical que irão pronunciar, sabem de sua organização pois, não por coincidência, são os compositores dessas peças. Executaram essas mesmas peças (executa ainda, no caso de Egberto) inúmeras vezes, tornando-as conhecidas das audiências, entretanto, concedem a elas a possibilidade de alterações radicais, a depender das situações especiais onde esse discurso determinado vai ser pronunciado, ou publicado (no sentido de tornado público). Essa situação de alterações constantes, que no entanto não descaracterizam as músicas, faz pensar numa relação com as peças que leva em conta o ato de sua pronúncia. E esse “levar em conta a pronúncia” inclui possibilidades de execução que podem estar fora do planejamento inicial que os dois fizeram para as execuções das músicas. Esse traço é que remete a um trato que eu considero de caráter oral das realizações. Ainda que a complexidade dessas peças remeta à um tipo de concepção que condiz com uma visão teórico-escriturística da música. Que fique claro que com isto não estou negando a existência J. Complexa no sentido da instabilidade da realização musical. Introdução à poesia oral. ______. 2ª ed. no sentido de que o texto é conhecido. Creio. ______. recepção e lectura. São Paulo: Summus. Dominique. PINTO. ano VIII. embora mais sutis. ação e pensamento.SCHROEDER. acredito que algo aponte para uma percepção.Algumas considerações São ainda muitas as arestas a serem ajustadas. ZUMTHOR. Henrique. 1994. Jorge Luiz. se soma a tentativa que outros conceitos e noções vêm fazendo no sentido de religar opostos. entretanto soa com um grau maior de organização e exige maior rigidez na execução). 5ª ed. as mudanças são mais abruptas e mais radicais. CERTEAU. O que implica em construtos conceituais e teóricos capazes de conduzir um processo de explicitação dessa complexidade e pluralidade em termos de possibilidades de análise efetivas. embora ainda incipiente. 1999. mais um sinal de carnavalização. mas as performances são sempre novas. portanto. portanto. exibindo seu corpo e seu cenário. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. da performance musical como uma totalidade complexa e plural. Estudos de psicopedagogia musical. visto ser a performance e sua recepção diretamente influenciadas pelo contexto real (tempo e espaço) em que acontecem. 179 . Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. O violão vadio de Baden Powell. em nós. José Alberto. 2006. tal qual o contador de histórias que conta sempre a mesma história e ela sai sempre diferente. Corporalidade musical na música popular. São Paulo: Martins Fontes. 1997.203). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Edger. nos nossos dois músicos a partir dos indícios que eles nos fornecem das atitudes que tomam quanto à realização de suas performances musicais.204). 1997. São Paulo. Paul. GAINZA. além de um indício dessa presença híbrida de oralidade e escritura (visto que as duas peças citadas se originam de um trabalho musical sofisticado. Ele se oferece a um contato” (ZUMTHOR. ou melhor. Isto não deixa de ser. Entretanto. Michel de. Fenomenologia da percepção. Violeta Hemsy de. 2007. As paixões ordinárias : antropologia das emoções. BRETON.22. os papéis estão distribuídos e determinados. 1969. Entretanto. Campinas. Buenos Aires: Editora Universitaria de Buenos Aires. p. na performance. Para ele. realizado por dois músicos escolados). indivíduo e sociedade. No caso de Baden e Egberto essas alterações soam mais claras. Davi Le. no músico e no instrumento. a busca da coincidência entre o que desejo dizer e o que consigo dizer. 7ª ed. MERLEAU-PONTY. L. jan/fev 2001. “o intérprete. que a corporalidade musical pode ser considerada mais um passo na direção do estabelecimento de um pensamento complexo musical. Este envolvimento parece estar presente. Conceito de relaxamento. Las bases psicológicas de la educación musical. Per Musi. DREYFUS. consciente. 1999. Mas outras situações de performance musical precisariam ser investigadas com esse mesmo instrumento analítico (o que já estou realizando na minha atual pesquisa sobre a corporalidade na canção popular). se endereça ao outro” (ZUMTHOR. 1997. 1988. Belo Horizonte. Petrópolis: Vozes. músico e corpo. Referências BAKHTIN. E esse contato com o público certamente modifica aquele plano inicial embutido no discurso a ser pronunciado. Mikhail. Petrópolis: Vozes. 2006. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação. 2010. São Paulo: Ed. música e significação. p. São Paulo: Cosac Naify. Mesmo nesses casos são várias. Assim podemos observar com mais clareza o elo que une as possibilidades corporais com as necessidades expressivas. São Paulo: Hucitec..167-180. 2ª ed. 2002. 2009. ou executam uma organização previamente determinada com maior rigor (que pode ou não estar fixada numa partitura. segundo Paul Zumthor. Corporalidade musical: as marcas do corpo na música. “implica tudo o que. não está apelando somente à visualidade.. Petrópolis: Vozes. de vestígios dessa oralidade naqueles músicos que tocam lendo partitura. n. KAPLAN. conforme a versão. WILLEMS. Teoria da aprendizagem pianística. as escolhas e alterações que acabam por serem feitas. e plural porque cada nova versão. gênero de discurso e estilo pessoal. nº45. São Paulo: Hucitec/Annablume. Maurice. ou audição. SCHROEDER. A sociologia do corpo. o que torna a audiência parte integrante desse discurso no ato de sua publicação. Performance. suas escolhas são mais perceptíveis na comparação das várias versões. no que diz respeito à ideia de corporalidade musical. tais como oralidade e escrita. proporcionado pela tradição da teoria escriturística musical. de uma mesma peça coloca em funcionamento sistemas de sentidos diversos. ela já aponta um caminho na direção de se levar em conta a inseparabilidade entre ideia ou ideal musical e as possibilidades concretas corporais de realizá-las. 34. ou seja. Porto Alegre: Editora Movimento. Violão Intercâmbio. empreendida pelos músicos analisados. A corporalidade musical. p. 1987. Esta é uma característica da performance que. 6 . Baden. Linguagem e Cultura (Musilinc) (www. Egberto. Atualmente atua como profissional de Pesquisa do Instituto de Artes da Unicamp. v. p. São Paulo: Pau Brasil Music. J. Muchen.br). 2010.167-180. Per Musi.youtube.22. ______. 2009. Baden Powell ao vivo no Teatro Santa Rosa. GE: ECM.com/watch?v=kpRwEulQ62E>. A construção do conhecimento em arte. 2004.youtube. GISMONTI. Em família. Originais do Samba show/recital (faixa 5). Campinas: Gráfica da Faculdade de Educação. Velho amigo: o universo musical de Baden Powell. p1995. chegando ao ponto de suprimir totalmente o refrão. Afro-sambas: Baden Powell e Vinícius de Moraes. p. p. Duas vozes. 5 É possível ver essa declaração no trecho do vídeo já citado anteriormente. Violões.SCHROEDER.75-82. p1969. c1992.1. p2005. ______. 1 CD. Márcia.1. Fragmento citado disponível em http://www. p1981. Rio de Janeiro: Universal Music. p1992. Referências discográficas BELLINATI. v. Egberto. p1966. 1 CD.09. n. 4 Fragmento disponível em <http://www. Rio de Janeiro: EMI-Odeon. Muchen. Mestre em Educação (2000) e Doutor em Educação (2006) pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 3 Lembremos que o movimento “ruidístico” da tropicália iniciaria na mesma época em que Egberto iniciava sua carreira. Rio de Janeiro: Universal Music. 180 . GISMONTI. Os afro-sambas. Egberto e VASCONCELOS. Belo Horizonte. p. p1979. Baden. Paulo e SALMASO. Ensaio. Rio de Janeiro: Universal Music. c2003. 2 No mesmo CD Ao vivo no Teatro Santa Rosa podemos destacar outros exemplos. Mônica. 1 CD. ______. 1 CD. p. 1 CD. Referências videográficas POWELL.. Baden Powell à vontade Rio de Janeiro: Universal Music.09. Suas publicações principais são: Música e conhecimento. ______. Rio de Janeiro: Universal Music. como na versão de Berimbau no CD Baden. a ordem de suas partes principais. ______. 1 CD.02-14. Braga-Portugal. Pro-Posições (Unicamp).com/watch?v=kpRwEulQ62E acessado em 18/12/2009. Acesso em: 20 dez. 2008. Corporalidade musical na música popular. Dança das cabeças. p1968. Egberto et. ______. Revista Digital Art&. <http://www. GISMONTI. 1 CD. 1969. Música e Ciências Humanas. p2002. Solo. Atua como professor do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes (Unicamp). n. ______. POWELL. São Paulo: Lua Music. Ensinarte: revista das artes em contexto educativo. O dentro e o fora da música. São Paulo: Radio e Televisão Cultura. GISMONTI. 2004. 1 DVD. Agueda (org).cnpq. Coordena o grupo de pesquisa Música. ______. Originais do Samba Show/Recital. Baden.3. Junto com Sílvia Nassif Schroeder. ______. 1 disco analógico. Campinas. 1 disco analógico. Notas 1 Isto porque o próprio Baden alterou de várias maneiras. em outras interpretações da mesma peça. 1 CD. Baden live à Bruxelles. Estudo. GE: ECM. pensamento e criação. p1967.1991. Naná.com/watch?v=kpRwEulQ62E> Jorge Luiz Schroeder é Bacharel em Composição (1987). 1 CD. Rio de Janeiro: Movie Play Music do Brasil. Os afro-sambas de Baden e Vinícius. Márcia. 1 CD. n. p. p1977.1966. 1 CD. p. v..15. Baden Powell. 1 CD. Rio de Janeiro: Universal Music. L.209-216. 2005. Rio de Janeiro: Biscoito Fino. São Paulo: Projeto Memória Brasileira. Muchen. GE: ECM. al. youtube. In BITTENCOURT. como no Prelúdio em Ré menor de Bach (faixa 4) e Consolação (faixa 6) em que os andamento são exageradamente acelerados. p1985. inserida em sociedades contemporâneas complexas e contraditórias. históricas ou culturais.Aprovado em: 20/02/2010 181 . Palavras-chave: música popular. SANTIAGO. Assim. relational conception of popular music as currently practiced in complex. and the theoretical approaches employed to ground its analysis.. 1970).com. Recebido em: 06/12/2009 . a defense is made of a dynamic. Both issues are examined here through a critical articulation involving musical structures. Key Words: popular music. methodology. e que objetivassem relacionar suas estruturas musicais a questões sociais. 2010. passou a chamar a atenção de acadêmicos de diversos setores que não a música a partir dos anos 1960. not an analysis of the content of such studies. Methodologically. estudos culturais. Belo Horizonte. uma contribuição teórica aos estudos de música popular brasileira. defende-se uma concepção dinâmica e relacional de música popular. A partir de uma discussão das principais classes de definições de música popular empregadas usualmente. RJ) alvaroneder@ig. na Universidade de Amsterdã (JOSEPHS. SCHWARZ. a canção popular. I discuss different approaches for the cultural study of the singular contributions of popular music. Introdução Os estudos acadêmicos e institucionais de música popular (a canção popular aí incluída com destaque). O estudo cultural da música popular brasileira. Ambas as questões são tratadas aqui por meio de uma articulação crítica que envolve estruturas musicais. sociedade e cultura. não houve um interesse definido pelo desenvolvimento de ferramentas metodológicas que dessem conta da música popular enquanto tal. n. A. com o advento da chamada MPB (ver. jul. Per Musi. considerada em sua especificidade e complexidade.181-195. p. Propõe-se. por exemplo. 239 p. em seus aspectos culturais. . sociedade e cultura. contradictory societies.br Resumo: No estágio em que se encontram os estudos de música popular no Brasil. O ensaio conclui com a defesa de uma musicologia renovada pelas discussões travadas no âmbito dos estudos culturais. e não uma análise do conteúdo de tais estudos. portanto. 1982). definição. são recentes no mundo inteiro.22. definition. The cultural study of Brazilian popular music: two problems and a contribution Abstract: At the current state of popular music studies in Brazil. what I propose is a theoretical contribution to Brazilian popular music studies.22. for an adequate investigation of popular music in its specificity. Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro/IFRJ. society and culture. 1968. discutem-se diferentes abordagens que vêm se propondo a estudar culturalmente as contribuições singulares da música popular. O ano de 1981 poderia ser considerado um marco. para uma adequada investigação da música popular em sua especificidade. irredutíveis aos métodos analíticos desenvolvidos para as músicas erudita e tradicional.. fora iniciativas isoladas. torna-se crucial discutir a definição de “música popular” e as abordagens teóricas usadas para fundamentar sua análise. no estágio em que se encontram os estudos de música popular no Brasil. PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. é crucial discutir a definição de “música popular” e as abordagens teóricas usadas para fundamentar sua análise.NEDER. The essay concludes with a defense of a musicology renovated by the debates held in cultural studies circles. Starting with a discussion of the principal classes of definitions of popular music usually employed. portanto.. Propõe-se. 2010 1977. which are irreducible to the analytical methods developed for art and traditional music.. contemporary. em razão da ocorrência da primeira Conferência Internacional sobre Pesquisa em Música Popular. Metodologicamente. O estudo cultural da música popular brasileira: dois problemas e uma contribuição Álvaro Neder (Instituto Federal de Educação. culture and society. GALVÃO.dez. cultural studies. no entanto. Thus. No terreno da musicologia. metodologia. it is crucial to discuss the definition of “popular music”. No Brasil. as inflexões rítmicas mínimas. Os métodos analíticos – que não serão objeto deste ensaio – são. n. ignorando outras que não se incluam aí. 2010. é uma denominação útil justamente por designar um terreno de trocas. o termo “música popular” é vago o bastante para ser definido de maneira bastante discrepante. Em consequência. Em suma. estes musicólogos tendem a acreditar que os métodos desenvolvidos para a música erudita são pertinentes para a análise de toda a música popular. retirando-a do cenário histórico específico onde ocorrem sua elaboração e seus confrontos. fragmentar ainda mais o campo e desunir os especialistas nesta área. deixa-se de lado o que pareceria ser “primitivo” ou “mal feito” segundo estes critérios eruditos – e vimos na frase anterior o que é desconsiderado. Se. que seja válido em todo tempo e lugar. em um sentido “puro”. “autenticidade”. autoria coletiva. Belo Horizonte. dependendo de quem o emprega.. Seria impossível encontrar um termo livre de tais contradições. por sua vez mediado por categorias históricas. transformando-se continuamente. p. Portanto. “imposição” ou “colonialismo cultural”. e não uma análise do conteúdo de tais estudos. a “boa música popular”. (HALL.228) Assim. Os problemas decorrentes deste equívoco são inúmeros: a perda da especificidade da música popular e de suas contribuições (as experimentações sobre o timbre. Respondendo a este problema. um produto. A falta deste entendimento prejudica a adequada compreensão do objeto e estimula o diletantismo. Nem tampouco por meio de categorias como “manipulação”. que necessita dedicação especial. É o terreno no qual as transformações são operadas. segundo esta concepção. ou a única música popular que mereceria ser estudada – é uma elaboração erudita de materiais “populares”. as tradições populares de resistência . . por meio de seu uso por sujeitos concretos. a carência de ferramentas analíticas para lidar com esta especificidade. sempre e a cada vez. . argumenta-se aqui que o termo música popular é contraditório justamente por evidenciar as contradições sociais a que está exposta a própria música popular. Para referendar esta visão que reprime a especificidade do popular. Isto tem levado pesquisadores a abandoná-lo quase por completo. no entanto. . essas músicas são especialmente importantes por expressar suas condições objetivas de existência ou o mundo em que desejariam viver. entende-se que “música popular” – ou. diálogos e embates pela significação. nem são as formas que são impostas sobre e a elas.. o que resultaria em seu empobrecimento e reificação. pelo menos. e que desenvolve experiências sônicas não passíveis de apreensão segundo métodos ideados para músicas tradicionais. O “popular”. Além disso. necessariamente. as métricas não-europeias. é um objeto”. passar pela discussão de tais confrontos. invoca-se a noção. na situação brasileira atual. uma vez que tanto música como sociedade são atravessadas por elas. dificilmente o termo “música popular” indicará um conjunto fechado de músicas e suas características. um artefato. [a] cultura popular não é nem. p. e o que não se encaixa aí é desprezado. frequentemente mencionada. mas um terreno onde múltiplos vetores de forças se encontram e colidem. derivados de matrizes europeias –. entendendo-se “música popular” como aquela que vem “do povo” (categoria sempre inventada e frequentemente idealizada). 1981. tradição oral.181-195. Como em qualquer disciplina ou campo de conhecimentos. sociais e culturais. Neste sentido.22. é sensível a necessidade de estabelecer um entendimento sólido com rela182 ção a este duplo problema definicional-teórico. a partir de uma compilação e discussão das principais classes de definições de música popular empregadas usualmente. Na medida em que os musicólogos voltados ao repertório dito erudito entendem por “música popular” de interesse apenas aquelas músicas que apresentam “sofisticada” organização – segundo os critérios eruditos. não é uma coisa. adotando denominações individuais que terminam por aumentar a confusão. a aplicação forçada de parâmetros estéticos da música de concerto de origem europeia ao popular. confirmada a necessidade de debater os dois problemas mencionados antes de se começar a empreender a análise ou mesmo optar pelo método a ser empregado. desconsidera-se a maior parte da produção das classes populares contemporâneas. a compreensão de seu significado deverá. músicas e pessoas que resistem a este leito procustiano. Segundo Stuart Hall. de que “a música popular não é uma área. sujeitos e categorias. O estudo cultural da música popular brasileira. sendo igualmente apropriados para certas características e inadequados para outras. muito embora o termo “música popular” não carregue nenhum significado essencial que obrigue seu uso. “espontaneidade”. justamente no contato e confronto com outras músicas. e assim por diante. especialização e formação específicas. consequentemente impedindo o desenvolvimento e consolidação dos estudos de música popular como campo legítimo e autônomo de investigação. assim. Fica. por exemplo).NEDER. e o recalcamento e desvalorização de um número enorme de gêneros. Como todos estes elementos estão sempre em movimento. os dois problemas – definição e teoria – estão interligados. a busca da pureza de uma definição rigorosa equivaleria igualmente à purificação da própria música. Portanto. e diferentes modelos de escuta. critérios como “autenticidade” e “identidade nacional” ou “regional” são priorizados. Ou seja. não se pode definir música popular por meio das características idealizadas pelos românticos do século XVIII – origem rural. Uma determinada concepção do objeto organiza um feixe de ferramentas teóricas especificamente apropriadas para dar conta das características consideradas por esta concepção. por exemplo. A. a microtonalidade. Por conseguinte. Per Musi. decorrentes das escolhas definicionais e teóricas. Também não se pode fazê-lo atribuindo-se ao popular supostas qualidades inerentes de “resistência”. A música popular se constrói e se define pela sua pluralidade. uma contribuição teórica aos estudos de música popular brasileira. por sua vez. ubíquas ainda hoje. como o seguinte. Sua concepção de música era dinâmica. Em seus estudos de música luso-brasileira. aqui. devedoras daquela definição (sendo que a noção de “manipulação” recebe. em que Mário declara que se podem encontrar núcleos de música popular mesmo nas maiores cidades do país.16) Assim. em cada local. ele concebia a dinâmica musical como multidirecional. uma outra maneira de compreender a música popular em seu dinamismo: através de suas relações. como o Chôro e a Modinha. Ela teria responsabilidades no processo que. reforço considerável por parte do pensamento adorniano). nas maiores cidades do país. conseguiu combinar questões socioculturais e musicais. (BÉHAGUE. contudo.d.. Nas regiões mais ricas do Brasil. Uma arte nacional já está feita na inconsciencia do povo. de música popular brasileira. no Rio de Janeiro. o que o tornou um verdadeiro etnomusicólogo em conceito. em Belém. . seu projeto teleológico de superação do atraso tecnológico brasileiro rumo ao progresso.) foi o primeiro intento perceptivo de delinear e analisar os vários elementos sonoro-estruturais da música folclórica brasileira. s. em Mário. [Quase] todas as cidades brasileiras estão em contato direto e imediato com a zona rural. . Por tudo isso. inescapável. em si. apenas. foi dada por Mário de Andrade. A mais importante das razões dêsse fenômeno está na interpenetração do rural e do urbano. urbana e mediatizada. . Mas por outro lado. propriamente. indicar um dos mais poderosos vetores que confluíram para a consolidação de um dos sentidos preferenciais da ideia de música popular. não conduziria à efetivação de sua utopia. em menor grau. . . Este nome será usado de maneira diferente dependendo da pessoa que o proferiu. O fato de que todos os sentidos são social e historicamente marcados (o que uma pessoa defende ser popular pode ser contestado por outra pessoa ou outro tempo) ressalta a constatação de que o uso do termo “música popular” nunca será desinteressado. esgotos.d. Belo Horizonte. que são especificamente urbanas. Pode-se. senão em método. Per Musi. portanto “objetivo”.483-484) Não seria possível fazer. o 183 . uma clara hierarquia: a “música popular” (tradicional) detém o “caráter nacional”. em oposição às visões prevalentes em sua época. notadamente a música erudita e a música tradicional. n.NEDER. Para Mário. é preciso conclamar as normas do mundo desenvolvido – a música erudita – para poder fazer dela música “artística”. rituais religiosos e cantos de trabalho para a “música desinteressada” do puro deleite estético seria a música erudita. As críticas. levaria o país do atraso à equiparação com os países “desenvolvidos”. luz elétrica e rádio. p. em sua visão. O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular. insuficiente. Com certeza uma tal concisão. . em sua visão. No outro pólo da dicotomia. mas é. exatamente aquela que. que ele denominou bailados . 1993. internacionalismo e cultura. o que é tradicionalmente nacional. Manifestações há.181-195. . pela música tradicional rural. e seu caráter e características serão definidos e construídos com referência a seus outros in absentia. Uma definição altamente influente do termo “música popular” como música rural. qualquer cidadinha do fundo sertão possui água encanada. Será preciso apenas ao estudioso discernir no folclore urbano. Mário interessou-se também. e “música de feitiçaria” . . Como foi dito. que é – continua sendo – um real obstáculo para o desenvolvimento da musicologia da música popular no Brasil. altamente influente e duradoura de música “popularesca”. em cada momento. e que perdura de certo modo até hoje. hoje. e que seria presidida pela música erudita (de origem europeia). o que é virtualmente autóctone. a identidade nacional – foi mobilizada por força do ideal utópico de Mário: a condução progressiva do “povo brasileiro” de um estado de atraso tecnológico até a superação deste. a música folclórica é guindada à condição de detentora da essência nacional. Já a música “popularesca” seria de escasso interesse. com seu estilo de prosa único. Vemos aí uma definição. . O estudo cultural da música popular brasileira. é mais geralmente compreendida como “música popular”. música artistica. música indígena brasileira.. Busca-se. e ele o opunha à “música popularesca”. encontram-se núcleos legítimos de música popular em que a influência deletéria do urbanismo não penetra. aqui. de maneira especial. o termo “música popular” se referia às músicas das comunidades rurais tradicionais. Isto fica evidenciado na síntese de sua contribuição proposta pelo etnomusicólogo Gérard Béhague. afro-brasileira e. Esta preocupação com o campo folclórico – que detinha. como foi dito. Só o que poderia realizar esta condução adequadamente. isto é: imediatamente desinteressada. 2010. se algum. contra as supostas “dominação cultural” estadunidense e “manipulação” da indústria cultural são. já há vários anos.22. problematizadas pelos popular music studies por meio de aprofundadas reflexões teóricas e empíricas (algumas das quais a ser mencionadas no decorrer deste ensaio). apesar de todo o progresso. eivada de internacionalismos. A maneira pela qual Mário entendia a “música popular” (tradicional) estava imbricada em seu projeto político nacional e internacional. (ANDRADE. Ambas as críticas são. justiça ao inestimável legado do polígrafo. a concisão inescapável desta referência a Mário impede que se investigue a complexidade de seu pensamento com relação à música popular. e muito características. não se deverá desprezar a documentação urbana. Seus estudos de danças dramáticas. a música “popularesca” (como ele se referia à música popular-comercial. permanecem sendo os mais estimulantes da literatura etnomusicológica brasileira porque. Andrade considerou a base etnográfica e a justificativa de contextos de performance musical. Seu ensaio sobre música brasileira (ANDRADE. em se tratando de figura de tão vasta. p. . p. como foi dito. então. Temos assim. s. indicar esta complexidade por meio de alguns fragmentos. no Recife. Esta visão é claramente expressa no famoso Ensaio. como vimos). da “música interessada” dos festejos. razão pela qual tais discussões não podem prescindir deste aporte. mas sem perda da “essência”. complexa e multifacetada obra. também. é problemática – mas. Estando muito bem informado sobre as técnicas e a história da música e da literatura eruditas. Adota-se aqui. em grande parte.. A. . e nisto parecem não se diferenciar do que ocorre no restante do mundo ocidental1. 1994. as discussões sobre música popular no âmbito dos cursos universitários de música estão voltadas. Esta preocupação é explicitada pelo musicólogo Sean Stroud. no estranhamento de seu olhar estrangeiro. aquele que é considerado o primeiro samba urbano carioca gravado. artista da maior importância para o mercado discográfico e a nascente cultura de massas no Brasil (MUSEU DA IMAGEM E DO SOM. (STROUD.NEDER. 1986. segundo consta. 1986. FAVARETTO. não haja departamentos dedicados a estudos de música popular em universidades brasileiras (os poucos acadêmicos brasileiros que trabalham no campo estão. SANT’ANNA.. 1977. como o verdadeiro maracatu que ainda se conserva em certas nações do Recife. uma alegoria da sociedade brasileira como um todo. PERRONE. Sem ser. CAMPOS. necessariamente inter. grifo meu) Apesar dessas e de outras evidências. 1982. pouco favorável. nos cursos universitários de música. 1979. Per Musi. Nestes cursos busca-se. com conceitos como o de “fato social total” e de “jogo absorvente”. O estudo cultural da música popular brasileira. há o trecho final de “Macumba”. 1995). 1982. 184 Além disso. Belo Horizonte. no entanto. Pelo telefone foi. Esta ampliação da abrangência do enfoque investigativo musicológico nos cursos universitários brasileiros. 2010. gatunos. Sabe-se também que Pixinguinha foi parceiro. fundamental do ponto de vista das transformações que operou no mercado (CABRAL.ou transdisciplinar. do que é popularesco. 1972. 1996. 1991 e 1998. um espaço que é seu. linguistas (TATIT. não sendo incomum que destacados profissionais desses outros campos tenham produzido importantes contribuições para a área em questão. indicando. isso é decorrência de escolhas teóricometodológicas que são. Finalmente. Mesmo quando não sejam tradicionais e apesar de serem urbanos. um espaço que não foi coberto consistentemente pelos acadêmicos de outras disciplinas . analisar a música popular com vistas ao domínio técnico dos recursos. 1978. o terreiro de Tia Ciata – em cuja casa teria nascido. [o] verdadeiro samba que desce dos morros cariocas. 2001. argumenta-se aqui em favor de uma adição. decorrências de definições: se entendermos música popular como puro fato musical. s. João da Baiana e muitos outros. n. 2000. Literatura ou Política). deixamos de vê-la como possibilidade de iluminar aspectos da vida social e cultural mais ampla. que reunia no terreiro de Tia Ciata “advogados taifeiros curandeiros poetas o herói. nem sempre a dialética do pensamento andradiano foi considerada por seus seguidores. críticos literários (BRITO. colega e/ou amigo de boa parte dos sambistas cariocas daquele tempo. 1993. um valor folclórico incontestável.. a visível contradição entre a sociedade e a academia neste país. 1977. 1970). .280) No Macunaíma. 1997. que é essencialmente popular. harmonização. a música popular brasileira goza de apreciável prestígio. p. 1987. Mais uma vez. sociais e históricas mais amplas. além de muitas outras) no espaço institucional acadêmico brasileiro da música. o trabalho desses pesquisadores tem a virtude de articular a música a contextos sociais. a meu ver. Esta parece ser. portugas. 1992. em uma nação que parece tanto valorizar a música popular. colaborador. sejam de execução vocal ou instrumental. GALVÃO. 1999. 1999. procuraria compreender os elementos musicais singulares da música popular e correlacioná-los a questões culturais.166-167) baseados em departamentos de História. Ao contrário.1985. resultando em uma visão da “música popularesca”. 1986. 1991) – a produção musicológica que visa articular elementos propriamente musicais a questões culturais e sociais da música popular. sem preconceitos. p. . de fato. preferencialmente. SANTIAGO.186) Esta mesma linha é seguida em Música. produzindo interessantes comentários sobre diversos aspectos da sociedade e cultura brasileiras obtidos ao se fazer falar a música. 1988. Mário faz seu herói procurar. merecedor desse pioneirismo. improvisação ou arranjo. em outros campos acadêmicos que não o da música. No Macunaíma há ainda referência a Pixinguinha. p. Além disso. por exemplo. p. ou influenciado pelas modas internacionais. no mínimo. preferencialmente de maneira crítica e problematizadora. entretanto. e semioticistas (SANTAELLA. . com todas as suas contradições – não apenas a música “sofisticada” como a de um Tom Jobim.63. esses. p. em Macunaíma. um alargamento dos interesses musicológicos institucionais com relação a essa música. também intimamente envolvidos com os mass media. mas também a música “brega” como a de um Lindomar Castilho. sejam de composição.. antropólogos (VIANNA. WISNIK. 2000.56) – ou seja.32-33). 2003). mesmo quando não sejam propriamente lindíssimos. 1996. ARAÚJO. MATOS. Aqui o narrador faz uma defesa do samba urbano. uma das importantes razões para o desprestígio da música popular (tal como a entendemos hoje. s.22. NAPOLITANO. p. em geral. guardam sempre. senadores” (ANDRADE.d. sociólogos (NAVES.181-195. CARVALHO. VASCONCELLOS. Doce Música. 1976. 1998). (ANDRADE. 1988. 1984). assim. E para acabar todos fizeram a festa juntos comendo bom presunto e dançando um samba de arromba em que todas essas gentes se alegraram com muitas pândegas liberdosas. entre outros. como Donga. quando Mário explica que Corroborando o que diz Stroud. prioritariamente. 2001). (ANDRADE. 1968. 1978. feito à feição do popular. p. SCHWARZ. 2004).2 Sem pretender questionar a validade de análises da música popular voltadas exclusivamente à pedagogia técnica. os frequentadores assíduos da casa de Tia Ciata incluíam virtualmente todos os sambistas cariocas dessa época comprometidos com o mercado de massas. 1970. Pelo telefone. por exemplo. É incipiente ainda – com exceções dignas de menção (ver.d. enfim. A. A musicologia institucionalizada ocuparia. Podem-se citar historiadores (CONTIER. 2008. à técnica musical. de acordo. culturais e históricos. e virtualmente não haja revistas científicas brasileiras especializadas em estudos de música popular. por sua vez. [É] realmente paradoxal que. (ANDRADE. talvez. 2010. não parece que as gravações dos Sex Pistols sejam “acessíveis”. O estudo cultural da música popular brasileira. a “essência” do popular 185 . 4. a inter-relação entre definição. Quanto à segunda. p. 1997. encontradas tanto no senso comum como em abordagens acadêmicas. No entanto. que a obra de Frank Zappa seja “simples” ou que a de Billie Holiday seja “fácil”. Os títulos não acadêmicos sobre música popular atestam uma preferência por abordagens meramente descritivas. Esta definição falharia por que o campo musical não poderia ser reduzido à estrutura de classes. Por oposição. que o estudo cultural da música popular é eminentemente crítico. Definições: delimitando um campo de estudos Segundo BIRRER (1983. a formação de quadros competentes nesta área apenas poderia se dar no âmbito do ensino universitário e de pós-graduação. devido à complexidade e especificidade de manipulação do instrumental musicológico. entre outros (para eles. festas particulares e cultos religiosos podem ser citados. Belo Horizonte. Definições negativas: Música popular é a música que não é de outro tipo (geralmente música “erudita” ou “folclórica”). nenhuma dessas definições poderia comunicar rigorosamente o sentido do termo “música popular”.20) 2. Se bem que em seu conjunto estas publicações sejam muito detalhadas. p. também. tornando-a mercadoria. e 2) que a música popular estaria excluída da disseminação por métodos face a face (por exemplo. Isso é corroborado pela etnomusicóloga Suzel Ann Reilly a propósito de uma das séries editoriais mais ambiciosas dedicadas à música popular. há também arbitrariedade na definição da natureza de cada tipo de música: em geral. 2. p. os tipos de músicas e as práticas musicais nunca são propriedade privada de um contexto social particular. a quarta definição haveria que comprovar: 1) que os modos de difusão em massa (inicialmente impressos. Aqui. muitas canções de Schubert. com os itens mais largamente disseminados da música disseminada nos mass media” (HAMM apud MIDDLETON. muitas árias de Verdi) possuem qualidades de simplicidade. com sua demanda de rigor e integração multidisciplinar. portanto. operários da indústria. A síntese positivista. parte-se do princípio de que a música erudita seja exigente.. p. o que não se verifica (hoje as gravações de música erudita e tradicional são vendidas em bancas de jornal e disseminadas pelo rádio e outros media. complexa. A segunda síntese é denominada por Middleton de essencialismo sociológico. difícil. a chamada “música folclórica” era objeto de disputa entre “camponeses”. “fácil”. p. sociedade e cultura brasileiras seja potencialmente inestimável. evidente no exame destas sínteses. que a música popular seja uma expressão cultural inferior. impossibilitada de propagar-se gratuitamente e de ser fruto de produção coletiva. em alguma medida. Ouvido Musical/Todos os Cantos (Editora 34). A terceira definição é uma crença derivada do conceito marxista de determinação da superestrutura pela infraestrutura. Para MIDDLETON (1997. concertos. Não seria ocioso ressaltar.4). e. 2003. Para ser válida.181-195. (REILLY. A primeira seria a positivista. que se concentra no aspecto quantitativo do “popular”. tornariam isso óbvio hoje. tornando a definição ineficaz). No entanto. de maneira apriorística. Ao mesmo tempo. mas também. Além disso. É visível a arbitrariedade da primeira. das categorias 2 e 3.5). que propõe “a lidar com as peças que sejam demonstravelmente os itens mais populares da ‘música popular’.3 Marcadamente ideológicas e essencialistas. Definições normativas: Presume-se. e que podem ocorrer de maneira pura ou combinada: 1.. n. além do caráter cada vez mais indiferenciado da difusão midiática e dos mercados culturais. raramente analíticas e interpretativas. Definições sociológicas: Música popular é aquela associada com (produzida por ou para) um grupo ou classe social particular. haveria uma relativa autonomia da cultura com relação à economia.NEDER. derivaria da categoria 4. suas margens são fluidas. Como ilustração deste enfoque. há quatro tipos de definições para música popular. Da mesma maneira. embora a contribuição que possa fornecer à compreensão da música. entre muitos outros. teoria e método. p. a maioria dos autores da série são jornalistas e seus interesses giram mais em torno da documentação meticulosa do que em redor do debate teórico. Middleton comenta também algumas das combinações destas definições. 3. a música popular circula maciçamente em ambientes que celebram exclusivamente seu valor de uso (em detrimento de seu valor de troca): grupos de amadores. embora se possa concordar que a música popular não seja o mesmo que música erudita ou folclórica. 1997. Middleton oferece o exemplo do musicólogo Charles Hamm. música de “barzinho”) e estaria indissoluvelmente agrilhoada à sua condição de mercadoria. A mobilidade social e a fluidez interclasses. factuais. a seguir eletromecânicos e eletrônicos) teriam afetado apenas a música popular. Ao contrário.4).22. escritores e artesões da pequena burguesia e colecionadores das classes altas (MIDDLETON. jornalísticas. mais uma vez. pois as três músicas partilham seus elementos entre si. muitas peças comumente compreendidas como eruditas (o coro “Aleluia” de Handel. É sempre bom lembrar. a música popular seria entendida como “acessível”. mesmo no século 19 as músicas burguesas eram apreciadas por trabalhadores. Definições tecnológico-econômicas: Música popular é aquela disseminada por meios de comunicação de massa e/ou em um mercado massificado. Per Musi. “simples”. ou seja. A. conceito superado entre os marxistas de linha gramsciana. a música erudita sendo executada por bandas e em desfiles. dificilmente poderá ser implementado se deixado na dependência do mercado e do leitor leigo.104). 181-195. p. de certa maneira. . COASE. não é o foco da investigação.5) Mesmo tomando a abordagem positivista em seus próprios termos de referência. n. Já no segundo caso. Isto seria problemático porque os jovens despendem uma quantidade desproporcionalmente grande de sua receita em mercadorias para o lazer.. ver. poderia se dizer totalmente independente da música europeia introduzida por portugueses e outros? Evidenciam também que a presença de elementos da “alta cultura” ou de culturas estrangeiras nas culturas populares dificilmente se coloca em termos de “manipulação” ou “massificação”. há marcada variação. Misturadas às avassaladoras figuras do mercado mais comercial. na moda de viola e em muitas outras músicas tradicionais. A cultu- . se assim considerada. O primeiro caso empregaria conceitos como “manipulação” e “padronização”. que analisa a chamada Lei Anti-Jabá. mas outro pode fazer o mesmo no decorrer de alguns anos). . descrevendo-o como . que são os dados em si próprios. Canções são tratadas meramente como objetos. A essência seria formulada pela elite (“de cima”) e transmitida para as classes populares (“para baixo”) ou o inverso. seria insignificante. experiências interessantes como essa. A. e mantidos em segredo dos concorrentes. não se encontra consistência. se diluem e se perdem. Middleton lembra também a tendência de se privilegiar a categoria do “jovem” no âmbito da metodologia po186 sitivista. 1974. sendo mais adequadamente investigada como produto de apropriação ativa. Citado por Middleton. performance ao vivo e circulação gratuita entre amigos de gravações feitas em casa). com exceção da música indígena tradicional. em oposição ao “momento de uso” (por exemplo. Esta síntese derivaria da categoria 3 mas também. este gênero se desenvolveu a partir da iniciativa de equipes de som que promoviam bailes de subúrbio no Rio de Janeiro utilizando discos comprados pessoalmente. deixa escapar tudo o que não se conforma a estes parâmetros e práticas – ignorando a extremamente intensa atividade musical que transita por outros circuitos. 1972. disseminação através da audição ao rádio. e não há lugar para música primariamente instrumental como marchas. Deixar de fora pessoas pobres e operários não parece correto. exemplos musicais de uma procissão de canções em forma mercadoria que começaram . SILVA. de acordo com a ideologia do observador: ou esta “essência” é proferida de cima ou engendrada de baixo. e seu papel na cultura é negligenciado. jazz ou polca até 1950. O musicólogo aponta ainda como falhas dessa síntese: o foco no “momento de troca”. . Segundo Vianna. Além disso. 2007. Per Musi. o etnomusicólogo Charles Keil explicita estas outras práticas silenciadas pelo método positivista na resenha em que critica o livro de Hamm. ou um sujeito histórico progressista e ativo (ver TINHORÃO. Os exames de casos específicos evidenciam que não existe esta abstração de um “popular” em estado puro – que música folclórica brasileira. no cururu. e o popular seria aproximadamente equivalente a “massificado” ou “comercial”. O estudo cultural da música popular brasileira. payola. Isso levaria a negligenciar grupos de faixas etárias mais avançadas que podem usar músicas diferentes. evidenciando que esta abordagem não é menos livre da ideologia que qualquer outra. também não é permitida nenhuma preocupação com aqueles estadunidenses que não podiam adquirir partituras e um piano. Renascimento e Idade Moderna (ver. naquele momento. títulos de canções. em 1789.NEDER. os métodos e definições essencialistas partiriam de premissas qualitativas. de um em um. p. A confiabilidade de números de vendagem de CDs e estatísticas de execução em rádio é notoriamente suspeita. datas. 1997. 1989). estabelecendo relações de poder entre si. Por sua vez. Belo Horizonte. a riqueza potencialmente oferecida pelo exame da cada caso específico é perdida em função de esquemas generalizantes e apriorísticos. e a tendência a padronizar diferentes escalas temporais (um álbum pode vender um milhão de cópias em uma semana. Um exemplo deste caso foi a situação estudada pelo antropólogo Hermano VIANNA (1983) no universo do funk carioca. p. nos EUA. A consequência é a reificação da música popular. Logo.22. transformação e incorporação por parte das classes populares de algo que passa a lhe pertencer de fato e direito – a exemplo da harmonia no samba.. pois tal sentido. . por exemplo. os conceitos operativos seriam “autenticidade” e “espontaneidade”. no entanto. 1999). práticas musicais não centradas na forma mercadoria são ignoradas. 1997. Em ambas as situações. 1993 e BURKE. informar o sentido do termo “música popular”. é tida como constante. trata-se de um fato social e cultural da maior importância que. dependente do pagamento de verbas extras às emissoras e/ou a seus funcionários ou agenciadores pelas gravadoras (o chamado jabá. nos EUA. A execução nas rádios e TVs é. A metodologia de contagem não é divulgada pela indústria e os números estão sujeitos a manipulação. 1979). repleto por múltiplas camadas de ideologia. Deixar de fora cristãos estadunidenses brancos e negros é deixar muita coisa de fora. como CDs. não quantitativas. e de maneiras diferentes. É um processo eminentemente contraditório. em que todas as faixas de cultura (inclusive as várias culturas populares) se reorganizam continuamente. BAKHTIN.5). A definição positivista não poderia. ragtime. por exemplo. e “popular” significaria “do povo”. nos EUA. no entanto. pouca atenção é dada ao comportamento de setores específicos que podem contradizer o que ocorre nos segmentos mais massificados. (KEIL apud MIDDLETON. e. 2010. música de fundo. das categorias 1 e 4 (MIDDLETON. Voltando-se à mensuração do mercado. muitas vezes. um reportar contínuo de nomes. Ou “o povo” é considerado um ingênuo manipulado. O autor exclui excessivas tensões dialéticas do livro desde o início: nenhuma música de igreja será considerada. similarmente. A “objetividade” prometida pelo enfoque positivista cedo se revela uma ilusão. então. do ponto de vista mercadológico. Neste sentido é fundamental e suficiente consultar o que escreveram os mais destacados pesquisadores da cultura popular na Idade Média. em mercados segmentados. a parte “especificamente musical” é precisamente a criação do espírito artístico. enquanto o sentimento produzido não pode ser nem conteúdo nem forma. definição. além de definir-se pela heterogeneidade. Uma dificuldade específica da musicologia tradicional para lidar com a música popular diz respeito à valorização desigual de elementos básicos. com o fluxo de informações seguindo nos dois sentidos. decorrente do desenvolvimento histórico contrastante entre música popular e erudita. A música popular favoreceu historicamente o aspecto corporal (a dança. . pelos teóricos da cultura de massas. Mas o interesse harmônico é típico de suas canções mais rápidas. tão natural é a cadência eólia ao final de Not A Second Time (a progressão de acordes que finaliza a Canção da Terra.6). Da mesma maneira. Os consumidores são vistos como receptores passivos. é. (MANN. SHEPHERD. Seu valor não seria o de meramente proporcionar prazer corporal ou interação social. não na vaga impressão geral de um sentimento abstrato. Per Musi. O estudo cultural da música popular brasileira. privilegiando o acesso à música através da contemplação de relações numéricas. de qualquer modo que seja compreendida. Eduard Hanslick. com suas cadeias de clusteres pandiatônicos.22. a vestimenta sensual da concepção supersensual. Mais tarde. mas efeito real. então em voga). associa a música dos Beatles à de Stravinsky. contudo. 3. Em ambos os casos. mas não se verifica. localizados historicamente de maneira específica. p. mas harmonicamente é uma de suas mais intrigantes. nem a música popular. de sua ideologia da satisfação postergada e do controle dos apelos corporais em nome da racionalidade. A referência. é expressivamente incomum por sua música lúgubre. ou o que quer que seja – caminham no palco histórico nesta forma não-contaminada. na verdade. o ritual religioso e a festa). são reduzidos a esquemas abstratos. 1990). o conteúdo da música não deveria ser buscado na emoção (ele ataca especificamente a chamada “estética da emoção”. Ignoram-se contradições no interior do processo produtivo. as sequências tonais bem definidas e artisticamente criadas eram consideradas a mera forma. MIDDLETON. “desinteressada” como havia proposto KANT (2000). na prática. que figura proeminentemente nas apresentações dos Beatles. e também para o futuro). que a “música popular” (ou o nome que se desejar) apenas pode ser pensada no contexto da totalidade do campo musical (estendendo-se para o passado. p. a preeminência que o conteúdo ideal assume em música com respeito às categorias de forma e conteúdo se torna aparente. harmonicamente . de acordo com MIDDLETON (1997. em oposição ao sentimento (como suposto conteúdo). é a música em si. se caracterizou pela mistura e permeabilidade com relação ao que seria hoje denominado “estrangeiro” ou “das classes dominantes”. A qualificação de “primitiva” é ideológica por assumir que a música popular seja regida pelos critérios de inovação e complexidade harmônica da música erudita. no período medieval) tomou para seu modelo os trabalhos de Pitágoras e Boécio. aquilo-que-representa. também. buscou seus métodos na musicologia tradicional. Pode-se tomar como comprovação desta afirmação um dos importantes formuladores da estética musical erudita no século XIX. não paginado) Os problemas da aplicação dos métodos de análise estrutural desenvolvidos para a música erudita. em termos de premissa. “música tradicional”. e foram discutidos por vários musicólogos especializados em música popular (ver. em diferentes períodos históricos. Se os sentidos do termo “música popular” se constroem continuamente em relação com seus outros musicais. . ra popular (desde pelo menos estes períodos). e as inclinações para o tom da submediante bemol. Teoria e metodologia: lidando com a singularidade da música popular Muito do estudo musicológico da música popular no mundo anglo-saxônico. . e. (MIDDLETON. .. é precisamente o que é 187 .NEDER. em diálogo com a “música erudita” e com a “música folclórica”. logo se fizeram notar. O conteúdo ideal da composição está nestas estruturas tonais concretas. surge a musicologia como disciplina orientada para uma música transcendente e autônoma. teoria e metodologia de estudo da música popular. tão firmemente são construídos em suas canções os acordes maiores de tônica com sétimas e nonas. “música burguesa”. está sempre em movimento. de acordo com cada sociedade em questão. Entre estes problemas. Entretanto.. a música erudita (na tradição que remonta ao domínio da Igreja. em seus primórdios. nem seus Outros – “canção folclórica”. o termo é também situado historicamente. MCCLARY e WALSER. e fica-se com a impressão de que eles pensam simultaneamente a harmonia e a melodia. [A] canção lenta e triste sobre This Boy. Mas. É nesta direção que Middleton conclui sua crítica aos esquemas essencialistas que vão “de cima para baixo” e “de baixo para cima”. 1997. TAGG. Evidentemente. natureza ou função da técnica em uma e outra música. o conteúdo intelectual. Para Hanslick. uma identidade de propósito. n. a conexão da música ao aqui e agora dos acontecimentos e práticas sociais. . 1982. a “clusteres pandiatônicos”. Ao contrário. mas acesso à verdade por meio de sua sofisticação cognitiva. concebida como espírito e essência. . com a abstração dos contextos corporal e sócio-histórico. de Mahler). é precisamente o conteúdo real da música. o movimento físico) e social (a experiência coletiva. mas na própria forma. 1963. o problema é que processos culturais concretos. escrito por William Mann na aurora do fenômeno representado pelos Beatles. A partir disso. ou como uma classe inerentemente oposicional. por ultra-esquerdistas em busca de um puro proletarianismo. Pode também ser significativo que a canção de George Harrison Don’t Bother Me seja um bocado mais primitiva. como o trabalho e as críticas a ele. a Ideia. por outro lado. o suposto material. p. . sendo informada pelo idealismo alemão. 2010. . e o sentimento é aceitável porque vocalizado de maneira clara e bem definida. “música erudita”. A. A forma (como estrutura tonal). as pessoas costumavam considerar que um sentimento a flutuar através de uma peça musical era o sujeito. por exem- plo. com a ascensão da burguesia no século XIX. a imagem. e este campo nunca permanece estático. Musicólogos eruditos provavelmente sentir-se-ão à vontade com a leitura de trechos como o seguinte.6) O que isso importa. Belo Horizonte.181-195. na citação acima. pode-se mencionar o jargão técnico inapropriado ou ideológico. Mas como os sentidos se modificam numa mesma sociedade. o termo é situado socialmente. 1997 e 2000. quando seus critérios são outros. 1982. com o qual o espírito contemplativo se une em completo entendimento. gravada. para quem Hanslick entende que “forma” é um análogo da “ideia musical”. de Hanslick. Per Musi. a música popular coloca ênfase no som concreto (timbre. explicita-se na citação acima. e muitas outras. Em segundo lugar. p. por implicação não se encontra também nos âmbitos corporal e social4. esta centralidade da partitura na cultura erudita evidencia a premissa de que há uma hierarquia entre a obra. o que vai de encontro à fruição popular. Mesmo considerando os diferentes graus de observação da partitura de música erudita (mais literal ou menos). p. não devotando especial interesse a arquiteturas sofisticadas da forma. a impressão do sentimento. ornamentação). concebida como espírito e essência. Esta compreensão é reforçada por DAHLHAUS (1995. em oposição às vicissitudes da tradição oral.52). etc. pelo Ipod/MP3. Em contraste. Primeiramente. 1979. dependendo do período histórico. a música dedicada a seu serviço deveria igualmente ser imutável. é inerente ao substrato físico dos sons e em grande parte conformado a leis fisiológicas. Tal como a palavra de Deus. uma situação em que a introversão se mistura ao desempenho de funções no mundo exterior tal como possibilitadas pelo walkman dos anos 80 e. é forçoso concordar que este foi o único meio de armazenamento dessa música por mais de um milênio. Se a escuta ideal da música erudita é distanciada.22. e favorece a noção de “arte” em oposição à de “prática”. na musicologia tradicional. Esta busca nos sons características que expressem seus estados emocionais. gênero. exclui de seus interesses a maneira como a obra é efetivamente experimentada pelos diversos ouvintes. pouco refinamento para lidar com ritmos e é pouco eficiente para lidar com timbres. se prende à partitura e não à performance. enquanto o que é supostamente aquiloque-é-representado. o conteúdo da música estaria na própria forma. Esta importância da multiplicidade de contextos de escuta para a música popular. corporalmente inerte. p. e a performance. seu tempo e espaço. Como se viu. um jogo de futebol em que uma batucada contribui para a empolgação. 1986. tratamento eletroacústico. Como decorrência do notaciocentrismo. Já a música popular não foi concebida nem para ser armazenada. e que simultaneamente sejam coadjuvantes na expressão corporal destes estados.). indicando diferentes modelos de escuta. Estas situações podem incluir uma festa em que se dança. modernamente. sentimentos e ações se ouvida durante a competição anual no Sambódromo do Rio de Janeiro.60) contextos. em grande parte das vezes.28-32). Cada um destes contextos de escuta propicia diferentes sentidos para a mesma música. bem como a aceitação implícita da multiplicidade de sentidos e emoções que se constroem a partir das diversas experiências corporais e de interações com outros sujeitos permitidas por estes 188 Com isso surge o problema de que muitos parâmetros expressivos importantes na música popular não podem ser representados adequadamente usando partituras. num jogo de futebol.). tida como essencial e detentora de valor de culto. colocada no plano das meras aparências (remetendo à metafísica). de guitarras e outros instrumentos eletroacústicos. 2010. Como consequência da preocupação primordial com a forma e a estrutura. a musicologia possui alto refinamento para lidar com a própria forma. a música popular relativiza o papel fundacional do compositor e da obra ao permitir modificações radicais desta (harmonia. A análise musical. Relacionada à questão do contexto aludida acima. fincada em seu momento. uma estética abstracionista. processamento tecnológico do som. no bar da quadra da escola durante um ensaio. nem para ser comercializada sob esta forma (tanto a representação de música popular por meio de notação gráfica quanto a comercialização de partituras são pouco representativas quando comparadas à representação e comercialização na forma de áudio em diversos suportes). phaser. que entram em conflito inconciliável com a análise da música popular. A tradição da notação musical na sociedade ocidental surgiu em conexão com as funções litúrgicas da música nos primórdios da igreja cristã. imersa no silêncio e contemplação da sala de concerto ou do lar burguês. de samplers. tipos de superfícies refletoras ou absorventes. como foi dito. Em especial quando este busca reduzir o sentido a efeitos da estutura musical ou a leis fisiológicas. O estudo cultural da música popular brasileira. A mesma bateria de escola de samba produzirá diferentes associações. tudo isso variando segundo os diferentes contextos sociais. em suas diferentes versões e contextos.NEDER.. equalização. A. surge. se o conteúdo da música não está na emoção. etc. em casa ou numa festa com amigos. no rádio do carro em meio ao trânsito. “um conceito puramente e completamente presente em sua realidade”. para Hanslick. ou seja. incorporando novos detalhes especificamente musicais e/ ou modificando a letra para comentar fatos da atualidade. Portanto. timbres (de sintetizadores.181-195.)? Evidentemente. . n. flanger. Como descrever aí múltiplas e dinâmicas regulagens de captação de som (tipos de microfones. uma ênfase na partitura que foi denominada por Philip Tagg de “notaciocentrismo” (notational centricity. p. letra) em cada situação de performance. ritmo. uma performance popular estará. melodia. Como consequências imediatas da priorização da noção de forma. Para isso foi desenvolvido um sistema de armazenamento que fosse confiável. Ao contrário. contrastam com a visão expressa acima por Hanslick. etc. se come e se conversa. representações. Belo Horizonte. tipos de posicionamento deles. (HANSLICK. além de alturas e harmonias. a música popular é ouvida em uma multiplicidade de situações. estruturado pela mente.. ou. a escuta é monológica. TAGG. no ritmo e em variações microtonais. tal como efetuada tradicionalmente na música erudita. processamento de som (reverb. de amplificadores. Esta longa citação é extremamente importante por condensar algumas premissas cruciais da musicologia erudita tradicional. 181-195. em sua especificidade.). os ouvintes criam o sentido de um fluxo sonoro relacionando um som a outro. é lícito supor que. Andrew CHESTER (1970. de microvariações rítmicas em nível subsintático. Logo. Segundo Meyer. definindo a diferença entre o popular e o erudito por meio de um critério de grau (de predominância de cada processo). mas do uso. No entanto. Recolocando a questão em outra formulação influente. soul. e que não pode ser captado por uma notação. construindo sequências que comunicam uma sensação de tensões e relaxamentos que estariam “incorporados” nessas sequências. 1985. 1974. de Keil. Estas músicas são amplamente disseminadas pela internet. sob pena de se recair em uma generalização abstrata. como vimos. organização social. A leitura de uma partitura musical por um musicólogo envolve muitos anos de treinamento. Isto é. O estudo cultural da música popular brasileira. Isto implica em um deslocamento da centralidade da “obra” original e de sua representação gráfica (não mais vistas como “a música”). mais tarde. ao criticar a cadência como representação do poder patriarcal. Per Musi. ao invés de reificar “a música” e dela abstrair critérios ideais de análise e valoração. salienta-se a questão da pertinência. e não de natureza. Para Keil. [1991] 2002). ritmo. através do uso de diferentes tipos de software amigáveis. essa música atingiria a complexidade em seus próprios termos. abolindo a figura do intermediário e as determinações econômicas impostas por este. A. 2010. sejam valorizados pela análise. o musicólogo Alf Björnberg declara: “Em geral. cada música que seja significante para uma dada comunidade o é segundo os critérios específicos desta comunidade. arranjadores. é extremamente difícil ouvir música sem fazer o baixo assumir um papel central na condução da harmonia. p. intérpretes. contextos de recepção.NEDER. merchandising. mas de maneira variavelmente complementar. o etnomusicólogo Charles KEIL (1966) produziu uma diferenciação influente que pode ser entendida como relacionada ao que está se denominando aqui pertinência. entrevistas. pode-se argumentar que a harmonia é um parâmetro menos importante da expressão musical no rock do que. músicas que a evitam e produzem uma estrutura harmônica simples ou mesmo inexistente (MCCLARY. de compositores. relações de poder. executantes e mediadores muitas vezes se superpõem. ao contrário. etc. reconhece-se tanto a natureza radicalmente interdisciplinar/ transdisciplinar dos estudos de música 189 . a aplicação da musicologia tradicional à música popular tem se concentrado nos interesses de produção (ou seja. aos efeitos por eles provocados em seu corpo (individual e social). Em consequência. processos de produção. de Leonard MEYER (1956). A respeito desse último. Com relação ao ponto de vista. por exemplo. como extremamente relevante para a história da constituição dos estudos de música popular. Nesse sentido. Mesmo assim. através do levantamento dos aspectos relevantes para os envolvidos na prática musical em questão. Keil propôs a noção de “sentimento engendrado” (engendered feeling). especialmente em músicas como dance. refere-se ao impulso que faz a música tornar-se viva.340) pelo sujeito confrontado por todas estas instâncias. n. instituições. a noção de pertinência passou a ser importante para os estudos de música popular. house. o analista vê-se obrigado a especificar de que música está falando. Por meio do conceito de pertinência. Na discussão dos problemas da análise da música popular. e este tradicionalmente coloca grande ênfase na percepção da harmonia funcional. Diferentemente. como forma de entender e analisar cada música em sua especificidade. Já a ideia de “sentimento engendrado”. através da modulação intensiva das frequências e inflexões rítmicas destas unidades. criado por Chester): ao invés de combinar as unidades básicas rumo a uma complexidade formal/estrutural. Os sentidos constroem-se intertextualmente (KRISTEVA. para a maior parte dos musicólogos formados desta maneira. transformações culturais. Abordando as diferenças entre música erudita e popular. trance. a construção da música popular seria intensional (termo em inglês relativo a intensividade. O olhar se dirige à realidade complexa na qual se insere uma música hoje: impossível falar dos sentidos de uma canção popular sem se remeter aos múltiplos discursos que a representam. Susan McClary vai ainda mais longe. no âmbito dos estudos de música popular. a ênfase está na crítica cultural. promoções. por parte dos músicos. valorizando. às tecnologias que os tornam possíveis.. mas o mesmo não ocorre necessariamente na música popular. não paginado). p. como desenvolvimento sincrônico e diacrônico através da combinação de partículas musicais básicas rumo a uma complexidade crescente nos dois sentidos. tais dinstinçoes não devem ser vistas como mutuamente excludentes. fotografias. Diferentemente. Ambos podem ser fundamentais para muita da música erudita considerada mais importante. e então o foco se desloca para o ouvinte. Esta distinção em termos de pertinência seria confirmada. Afinal. parece recomendável que os sons de cada canção. esta oposição produtor versus ouvinte não é dicotômica mas dialética.22. Belo Horizonte. este sujeito continua atribuindo o seu prazer aos sons musicais. e assim por diante. No entanto. levando o ouvinte ao movimento. aos vários tipos de media que a veiculam. e do “autor” como instância fundacional. e sob que ponto de vista.. não se trata de processos sintáticos.75-82) propôs diferenciar a forma de construção da música erudita como extensional. Este aspecto “narrativo” está intimamente associado à música erudi- ta ocidental e à maneira predominante de ouvi-la. ao possibilitar que o leigo produza suas próprias versões – remixes – de músicas lançadas comercialmente. Discutindo o conceito de “sentido incorporado” (embodied meaning). Portanto. melodia e timbre” (BJÖRNBERG. e sem um padrão de expectativa harmônica tonal-funcional. sendo adequadamente representado pela notação convencional. p. visto que os papéis dos ouvintes. As tecnologias atuais contribuíram muito para isso. funk ou mesmo o rock. corporais. Por meio da análise da relação entre gênero musical e subjetividade. de maneira que nossa relação com a música não pode ser inteiramente explicada por meio da convencionalização de estruturas musicais pelo discurso verbal. e se articulam segundo sua semelhança ou oposição. tal como ocorreria na socialização realizada no âmbito de um gênero. popular quanto a necessidade de atentar para a descrição/ análise/ interpretação das estruturas musicais (de superfície e profundas) em sua concretude. n. e assim por diante. as teorias da mediação têm também representado uma corrente importante dentro dos estudos de música popular. Aqui. a carga pulsional sofre estases. de etnicidade. 2010. Mesmo que a música e o discurso sejam dependentes de processos corporais para seu estabelecimento (discutiremos isso adiante). a mulher – discutida no trabalho de Nara Leão e Maria Bethânia. etc. A facilitação pulsional se fixa provisoriamente e marca descontinuidades naquilo que se pode chamar de os diferentes suportes materiais suscetíveis de semiotização – a voz.. buscam entender a interdependência e a influência recíproca de ambas instâncias. classificar e criticar os sons musicais. As unidades e diferenças fônicas (mais tarde. Deve-se notar que algumas destas. estilo. Entre estas faixas figuram as várias minorias representadas no discurso da MPB (nordestinos. ao invés de reduzir o discurso musical ao linguístico. a poesia culta (Chico Buarque. portanto nunca dada de maneira essencial. Elas representam o ceticismo dos pesquisadores deste campo com relação à ideia de que os sentidos musicais encontram-se nas obras “em si” (pensamento substancialista proposto de maneira especialmente influente por Hanslick. no contexto brasileiro e global. políticas. O estudo cultural da música popular brasileira. Outra das abordagens que os estudos de música popular têm experimentado é a etnografia. pois tanto o corpo quanto o mundo físico não podem ser experienciados ou concebidos fora da linguagem. música paraguaia. estéticas. entre outras). Obstruída pelas constrições das estruturas biológicas e sociais. sustentadas pelas pulsões. ao contrário da construção de um sujeito monológico. o rock. Por sua vez. intertextualidades entre idioletos. entre outros. pela música de Jorge Ben). Tampouco a música seria “inata” em nós. O autor propõe que as modificações culturais específicas do momento histórico dos anos 60. Tanto o próprio funcionamento da linguagem se baseia em processos corporais – metáfora e metonímia originando-se. já em 1963. no âmbito dos discursos verbais. que segmentam o contínuo dos sons experimentado por ele. este corpo é sempre mediado por discursos social-históricos. é entendida de maneira mais abrangente do que simplesmente um fenômeno musical. Ainda outra dessas abordagens é a representada pelas teorias do discurso. mas também sejam constitutivos deles. as cores. mas essa experiência é mediada pelo discurso verbal. Trabalhos de linguistas e psicanalistas ressaltam a evidência de que voz (com todos os seus parâmetros de altura. Devido a isso. Nisto se inclui a desmistificação da ideia de que a música seria qualitativamente “feminina” (pertencente ao “corpo”). duração. 1974. tal como discutido acima. a música negra estadunidense (representada. como o feminismo.. boliviana. (KRISTEVA. pela psicanalista e linguista Julia Kristeva.22. como expresso acima – quanto o experimentar gestos musicais como gestos físicos ou emocionais depende das operações discursivas que possam tornar tais gestos musicais significativos. “caipiras”. Assim. O que ocorre em um bebê prestes a ser inserido no mundo da significação é uma complexa dialética entre estruturas biológicas e sociais. técnicas e tecnologias. já foram mencionadas. história e cultura. indissociáveis da economia pulsional que os sustentam. p. neste caso por meio do trabalho de Susan MCCLARY ([1991] 2002).NEDER. tanto os discursos “extramusicais” quanto os discursos especificamente musicais são vistos como interativos.). de condensação e deslocamento das pulsões. associando-o a diferentes sensações oriundas tanto do corpo como da cultura. cinésicas ou cromáticas. é sugerido que. O sentido musical situa-se na experiência corporal. intensidade e timbre) e gesto são anteriores à 190 simbolização. Belo Horizonte. Conexões ou funções estabelecem-se então entre estas marcas discretas. e extremamente disseminado no mundo da música erudita). Entre as importantes contribuições do feminismo para os estudos de música popular figura a preocupação em desvelar as codificações do corpo culturalizado (a construção do gênero sendo parte da cultura). retórica. com sua porosidade radical entre diversas faixas culturais. produziram um diálogo entre diversas faixas culturais e sociais. favelados. etc. Um exemplo pode ser encontrado em NEDER (2007). BRACKETT (1995) e NEDER (2007) proponham que os sentidos musicais não apenas sejam constituídos por discursos extramusicais. aqui serão mencionados alguns exemplos que vêm demonstrando a multiplicidade de direções teóricas (com consequências metodológicas) que têm se mostrado capazes de efetivar aproximações plausíveis em relação a este objeto fugidio. fonêmicas). quaisquer que sejam. fato inédito na história da música popular brasileira. seja por deslocamento ou condensação. Aqui. Caetano Veloso. Estas abordagens. a multiplicidade de gêneros em uma mesma classificação da faixa de recepção (a MPB). Contra . os gestos. Per Musi. Isso torna possível que WALSER (1993). nacionalidade. bem como ao excesso que as transcende. Por outro lado. Isto é explicado. a MPB. são as marcas de tais estases da pulsão. classe e outras estabelecem entre si uma relação complexa. a psicanálise compreende uma experiência do corpo variável em relação ao lugar. Encontramos aqui os princípios da metonímia e da metáfora. questões identitárias. p. inclusive verbais e musicais.) se conectam tanto a processos corporais como culturais.28) Ao relacionar dialeticamente corpo (desde sempre culturalizado) e sociedade por meio do simbólico.181-195. A. como vimos. respectivamente. seria o indício de (e predisporia para) subjetividades mais propensas ao diálogo com o outro. Esta relação servirá como um contexto para apreender. os discursos musicais (gênero. Procura-se aqui articular detalhes específicos da(s) prática(s) musical(is) em questão à performance cultural estudada. 108) Portanto. mas tal seleção é evidentemente parcial e sempre sujeita a discussões e complementações adicionais. os efeitos dependem de inúmeros mecanismos de difusão. contribuem para a construção do que se entende por “a música”. autônoma – escasso valor heurístico poderia ser produzido para a análise da música popular. a excluiu de qualquer consideração por parte do filósofo que pudesse ser útil para o campo. O estudo cultural da música popular brasileira. 1986. executados em um equipamento cuja qualidade não importa contanto que seja alto o bastante. portanto. a estética. . dos sons instrumentais. Mas teve escasso aproveitamento nesta área. isto significa vê-la como uma transformação.81-82) A consequência é a relativização do papel das determinações sociais. Para Adorno. Hennion se propõe a estudar a música sem deixar de identificar no especificamente musical parte do objeto de pesquisa. tanto mais autônoma será esta música. designando um papel significativo à agência dos sujeitos envolvidos no processo. procuram entender de que maneira as instituições. e permitir-se tomar em consideração as (altamente diversificadas) maneiras pelas quais os atores descrevem e experimentam o prazer estético. ao invés de entender o rap como produto da “falsa consciência” burguesa ou das maquinações da indústria – apesar dos altos lucros que o gênero. e. tudo se dando dentro do terreno complexo da cultura. o rap (ao menos em sua fase inicial) teria encontrado na performance de palco não a grandiosidade dos megaconcertos de rock. portanto parcial). n. não autônomo. fundacional. É nesse contexto. Belo Horizonte. . é necessário delimitar tal levantamento. iguais. Ao mesmo tempo. não são algo absoluto e último. por exemplo. das condições de produção. a estrutura social mais ampla. No entanto. para Adorno. Isto é essencial em sua análise. e. bem como proporcionar recursos para entender suas transformações. 4. para serem ouvidos no calor do momento por colegas. que se insere o trabalho do sociólogo Antoine HENNION (2002). (ADORNO. os canais de disseminação. das interferências produzidas pelos receptores que assim se inscrevem produtivamente no texto. Assim. coloca grande esforço na reflexão sobre a atividade do amador (o praticante e/ou ouvinte dedicado. os formadores de opinião. .88) O levantamento das opções teórico-metodológicas praticadas no âmbito do campo inter e transdisciplinar aberto recentemente pelos estudos de música popular poderia se estender indefinidamente. e muitas outras variáveis. Per Musi. os objetos artísticos sendo “apenas” meios para a naturalização da natureza social dos gostos. não é possível acesso à obra “em si”. dos gestos. companheiros. um trabalho produtivo. das mediações. às suas técnicas sofisticadas e à sua dependência de idolização. dos corpos.. dentro da qual podem ser examinados seus contextos de atuação. atualmente. os meios de comunicação. (HENNION. das vozes. buscando. em todas as suas contradições. de controle social e de autoridade. Este critério postula uma discutível totalidade para a música de tradição austro-germânica (por definição. 2002. por fim. com seus postulados da obra de arte transcendental. A. (HENNION. porque. que só pode ser realizado se desconhecido enquanto tal. as teorias da mediação. que remete todo o valor da música à suposta autoridade fundacional do compositor individual (o gênio). esta noção. Hennion o discute em função da crítica que este dirige ao rock. a ela proporciona –. Este mesmo critério. seja pela análise: ambas são experiências mediadas por toda a vivência social. [O]s efeitos das obras de arte. Esta teoria poderia servir para esclarecer muito das atitudes (des)valorativas com relação à música popular. p. e.22. Os exemplos selecionados e comentados buscam apresentar as abordagens que parecem mais representativas e frutíferas. e se diferencia da crítica sociológica proposta por BOURDIEU (1984). transformando rivalidades e lutas em uma disputa improvisada sustentada por um dado fundo musical. Entre uma sociologia da música que. 191 . mas a celebração do imediato e da comunidade local. os julgamentos estéticos são apenas denegações deste trabalho de naturalização. de outro lado.] a cultura é uma fachada que disfarça mecanismos sociais de diferenciação. os efeitos da obra sobre o receptor são apenas um aspecto da totalidade social em que ambos estão inseridos. das formações espirituais de um modo geral. em última análise. (HENNION. quanto melhor a história das formas de uma música e sua inserção em uma grande tradição representarem a totalidade social. evitar o reducionismo primário à noção de “classe”. tende a reduzir a música às determinações sociais impostas aos artistas e fruidores. 2010. de caráter sociológico.81-82) Ao contrário. p. em seus aspectos mais radicais. como alternativa e diferencial. Um primeiro proponente a se destacar com uma teoria da mediação da música foi Theodor Wiesegrund Adorno. não profissional). recorrente nas análises marxistas anteriores.NEDER. ao definir a música popular por seu caráter necessariamente parcial. p. seja pela audição. para os efeitos deste ensaio. declarando que precisamos reconhecer o momento da obra em sua dimensão específica e irreversível. da estrutura da sociedade. Dependem também dos estados de consciência e inconsciência – que são socialmente determinados – daqueles sob os quais o efeito se exerce. descrita por Hennion nos seguintes termos: [Segundo Bourdieu. Hennion acredita tanto na produtividade do amador quanto na da obra. e é em consideração a esta delimitação que encerramos a presente exposição. centralizada na tradição vienense. Ao contrário do rock.. p. Conclusões Entende-se. a aprovação/crítica do público. entrecruzamento das palavras. 2002. subjetivizante.181-195. com isso. o estudo da música popular como empreitada complexa. comercialização e transmissão. p. Pelo contrário. de acordo com a teoria da mediação de Adorno. não-mediatizada. [e que supostamente] seriam suficientemente determinados pela referência ao receptor. 2002. foram descritas algumas alternativas que vêm sendo empregadas de maneira profícua no caso específico da música popular. ______. Paulo: Ática. Gerard. 1999. uma musicologia renovada pelas discussões travadas no âmbito dos estudos culturais. ______. Há um momento em que os sons impactam o corpo (físico e cultural) – e o estudo destes sons. Macunaíma. S. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos. em Musicologia)–Universidade de Illinois em Urbana-Champaign. Brega: music and conflict in urban Brazil. cuja inserção na pesquisa acadêmica é recente.A. E. ______. Theodor Wiesegrund. O estudo cultural da música popular brasileira.U. 1993. a condução da pesquisa nesta área precisa se defrontar com as dificuldades teórico-metodológicas enfrentadas por uma tradição herdada da musicologia tradicional. 192 . não obstante. Ethnomusicology. E. 1978. Samuel. ARAÚJO. Belo Horizonte. ANDRADE. The politics of passion: the impact of bolero on Brazilian musical expressions. Italy: Reggio Emilia. 1992.. September 19-24. n. Adorno. Frans.. BIRRER.. São Paulo: HUCITEC. s. Brasília: Edunb. p. ______. papers from the Second International Conference on Popular Music Studies. em sua irredutível especificidade. In: COHN.D. Mikhail. 1983. não nos libera da necessidade de lidar com a materialidade da música. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 1987. como foi salientado. Tese (Ph. Identidades brasileiras e representações musicais: músicas e ideologias da nacionalidade. Latin America.d. Buscou-se aqui não o fechamento do campo em torno destas alternativas.181-195. foi empreendida uma revisão das diferentes definições de música popular e suas limitações. À demarcação rígida de fronteiras nesta área corresponderia fatalmente o empobrecimento de sua compreensão. BAKHTIN. ressaltar exatamente a necessidade de se explorarem múltiplas e diferentes abordagens teóricometodológicas à música popular. ao contrário. Mário de. 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(WCP. “a musicologia produz música popular para pessoas que desejam compô-la ou executá-la”. ou instância biológica.. sustentando que certos eventos sociais são a síntese da sociedade e de suas instituições. e. onde é coordenador da Pós-Graduação em Produção Cultural. 2002). Evidencia-se assim que o normativo não se confunde com o negativo e vice-versa. com o conceito de “jogo absorvente”. ou instância cultural (lembrando-se que. 1994a. 1999). Álvaro Simões Corrêa Neder é musicólogo e professor do Instituto Federal de Educação. Ao contrário. 4 Importantes correntes de pensamento compreendem a emoção como construto oriundo da dialética entre corpo. Desde 1980 atua como professor de música. A respeito desses dois conceitos. Norbert ELIAS (1993. pode-se discutir se uma determinada música popular não é “música folclórica” (dentro desta. em Música. Belo Horizonte.22. 1995 e 1998). Per Musi. a este respeito. tendo sido membro da Old Time String Band. EUA. no humano. se não é “folclórica urbana” ou “folclórica rural”. energias originadas no corpo. em tudo o que admite um juízo de valor” (FERREIRA. norma é por ele definida como: “6.300 artigos na imprensa norte-americana. no caso das definições negativas. Tipo concreto ou fórmula abstrata do que deve ser.. MAUSS. p. instância constituída a partir da interiorização das interdições sociais. O normativo é compreendido como aquilo que não é nem mesmo colocado em discussão. “música burguesa” ou “música proletária” além de outras possibilidades. o biológico é culturalizado). publicou textos para vários livros de referência lançados nos EUA e acima de 2. os conceitos freudianos de pulsão.NEDER. Se o normativo “tem qualidade ou força de norma”. n. Sigmund FREUD (1957). entende que tais jogos são eventos investidos com sentidos especialmente importantes para a cultura dos envolvidos. destacam-se. na psicologia. O estudo cultural da música popular brasileira. 1973). que vão muito além da mera situação concreta presenciada. sendo imposto como verdade genérica antes do exame dos casos específicos.267). na sociologia. que propõem o que a música popular “não é”. segundo o Dicionário Aurélio. Possui Doutorado Multidisciplinar em Letras (Literatura Brasileira. e que precisam ser adequadamente interpretados para evidenciarem-se em toda sua magnitude a um observador externo. 1994b. na psicanálise. ver. músico e produtor musical. Foi Teacher Assistant na Universidade Brown durante parte de seu estágio de doutoramento de 18 meses nesta universidade. 1998 e 2000). “música de propaganda”. p. coordenada pelo etnomusicólogo Jeff Titon. o que tornaria a análise desses eventos especialmente estratégica para uma disciplina que visaria especialmente a totalidade social. Sua tese de doutorado sobre a MPB dos anos 60 foi selecionada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio para representar o programa no Grande Prêmio Nacional Capes de Teses de Doutorado 2008. como vimos em Mário de Andrade) ou não é “música erudita”. Filos. 195 . 1974 e GEERTZ. 2010. Lev Semenovich VIGOTSKI (1996. respectivamente. Com a noção de “fato social total”. e de superego. “música religiosa”. 3 É necessário esclarecer as diferenças entre o normativo e o negativo. Linguagem e Teoria da Literatura) pela PUC-Rio (2007) e finalizará em 2010 seu segundo doutorado. Conferir. Já Geertz. Notas 1 2 Para Simon FRITH (1996. na UNIRIO. Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. Mauss produziu enorme influência sobre a antropologia. Ver também COOK (1990). Entre seus proponentes. ministrando o curso Introduction to Ethnomusicology. e sociedade. Como crítico musical.181-195. A. the regional Portuguese. Circular cidade: poesia e groove na expressão musical de quatro grupos da região do mangue nordestino Yukio Agerkop (Centro de La Diversidad Cultural. a região do mangue de Aracaju e Recife. determina o senso de identidade de cada grupo musical e interage com a intenção e a mensagem que estes pretendem transmitir para o público. musical discourse. Os músicos e os apreciadores da música destes grupos desenvolvem um senso próprio de local. Venezuela) yukioagerkop@gmail. discurso musical. Per Musi. Naurêa. Maria Scombona. a partir da música e da poesia da geração contemporânea. which developed a musical hybridization based on local and regional elements on one hand. Belo Horizonte.e um de Recife . Recebido em: 10/10/2009 . 1 . onde os músicos se reapropriam de expressões culturais de suas regiões. respectivamente: Sulanca. Naurêa.Introdução ­­ metade dos anos 1990. Caracas. enfatizando as particularidades da sua região como as tradições musicais. sendo depois o modelo ou a base para fenômenos musicais similares em outros grandes centros urbanos do Brasil.Chico Science e Nação Zumbi. the mangue (mangrove) region of Aracaju and Recife. Y. Maria Scombona . the current verbal arts. que é utilizado nos discursos verbais e musicais dos músicos do mangue e dos grupos de Aracaju abordados neste artigo.com Resumo: Apresentação do fenômeno musical de três grupos de Aracajú . with its musical traditions. 239 p.or transnational . This study aims at providing an alternative vision of a specific cultural space. Brazilian popular music. 2010 196 A performance.. e Chico Science e Nação Zumbi.. p. Keywords: performance. música do mangue.Sulanca. stressing the characteristics of the region where they live. Desenvolve-se um olhar específico sobre uma região culturalmente similar. O aspecto temporal e a repetição são expostos de uma maneira peculiar na estrutura das músicas. Neste artigo.AGERKOP. Naurêa. que realizam uma hibridização musical de elementos locais e regionais com elementos transnacionais. PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. entra-se no conceito do groove. a linguagem do Português regional e o aspecto lúdico na atuação. and transnational elements on the other. nas expressões culturais da região e nas correntes musicais não-brasileiras ou transnacionais. Maria Scombona ..musical trends.22. música popular brasileira. Para abordar os aspectos musicais. em especial o uso particular da arte verbal. Circular cidade: poetics and groove in the musical expression of four groups from the mangue (mangrove) of northeastern Brazil Abstract: Introduction to the phenomenon consisting of three music groups from Aracaju (Brazil) . Primeiramente. 2010. mangue music. and the playful character of the different musical expressions. n. a arte verbal. focusing on different kinds of artistic expressions. Palavras-chave: performance.196-202. regional cultural expressions and non-brazilian .dez. o nordeste brasileiro chama a Na atenção nacional por um fenômeno musical particular e inovador.Aprovado em: 20/02/2010 .and one group from Recife (Brazil) . Circular cidade: poesia e groove.Chico Science e Nação Zumbi. poética. verbal art. the discourse of the musicians who are influenced by urban life.. veremos o conceito de “identidade mangue” e as fronteiras em que o fenômeno musical da região do mangue se vê inserido. .Sulanca. inspirados na vida urbana.arte verbal. The musicians and their fans are constructing an own sense of locale.22. A performance1 forma uma parte essencial dos grupos musicais deste movimento. poetics. veremos o fenômeno sócio-musical de três grupos musicais de Aracaju e um de Recife. jul. combinando-as com gêneros musicais urbanos não brasileiros como o funk e o punkrock. autores como Édouart GLISSANT (1981. que se opõem ou contrastam com Aracajú..196-202. e os Estados Unidos. e este grupo é formado por sete músicos. Ao abordar o conceito da crioulização2. e o tecnobrega de Belém do Pará. realizei uma pesquisa de doutorado em etnomusicologia. Y. a negritude. Per Musi.22. O aspecto histórico destas cidades se reflete nas tradições musicais que mantêm um caráter arcaico e estático. caracterizando-se por jovens músicos que começaram a misturar as mais diversas expressões musicais nordestinas. e. Eles utilizam instrumentos de percussão. n. e são apropriadas pelas novas gerações de músicos adaptadas às novas tendências musicais de contextos urbanos. os três grupos musicais de Aracaju abordados neste artigo. entre outros. região em desenvolvimento. que caracterizam o litoral de diversos estados do Nordeste como os Estados de Sergipe. e imitar os cantores da região campeira do nordeste.Identidade mangue Na minha visita ao Nordeste do Brasil nos anos de 2004 até 2007. O primeiro grupo com o qual tive contato foi Sulanca. “cultural brokers” entre a cultura da periferia e a cultura do centro da cidade. de Recife. encontramos as cidades de Aracaju e Recife. é um grupo de sete músicos que interpretam baiões3. são cidades históricas. 197 . Glissant substituiu o conceito monolinguísta da identidade de raiz pelo conceito do rizoma (rhizome-identity): o “creole” é ao mesmo tempo absolutamente original. Depois da morte do líder Chico Science. Circular cidade: poesia e groove. ressaltada na criação musical destes grupos do contexto urbano da região do mangue. Os quatro grupos que receberam minha atenção nesta pesquisa são: Sulanca.. um fenômeno sócio-musical. O contexto sócio-geográfico no qual se situam é o Nordeste. Na área do Caribe. (DUCCI. tanto na sua criação musical quanto na sua performance. Naurêa. abrindo exceções para músicas nordestinas como a embolada. No grande centro urbano.A gente ouve aquela voz rouca. as mais recentes tendências musicais dos Estados Unidos.Fronteiras culturais Os grupos musicais abordados neste artigo estão situados numa esfera fronteiriça em diferentes níveis. do cara no meio da multidão querendo ser ouvido. da cidade de Recife. A região também se distingue pela diversidade de expressões culturais. 4 . Belo Horizonte. em especial as de Pernambuco. O cenário é a região do mangue e esta denominação se origina dos manguezais. com uma grande variedade de correntes musicais transnacionais. O caráter de vanguarda do chamado mangue teve um papel fundamental na formação de outros fenômenos musicais como a moda nova do Estado de São Paulo. Este grupo começou no início dos anos 1990 uma nova corrente musical chamado (movimento) mangue.O groove e a arte verbal . sambas.AGERKOP.a percepção de um ciclo em movimento ou uma forma de organizar padrões que se revelam da música regional do Nordeste que é reafirmada. em conjuntos musicais que misturam expressões musicais rurais com correntes musicais transnacionais. que são cercadas por manguezais e se caracterizam por rica biodiversidade. Não existe uma identidade do “creole”. junho 2005) Esta frase do cantor Jorge Ducci do grupo Sulanca. em entrevista concedida ao autor deste artigo. o cantor Jorge Ducci usa um megafone para modificar a voz. os grupos musicais de Aracaju estão na fronteira entre a periferia da cidade e o centro: como eles se posicionam na fronteira entre o histórico e o contemporâneo? Talvez possam ser considerados como mediadores. Logo no interior destes estados do Nordeste. 2 . Jorge. através dos meios de comunicação.. também de Aracaju. De outra forma. Daí vem o drive dele. cidade contemporânea de 150 anos de existência. Às vezes. Pernambuco e Paraíba. no chamado agreste encontra-se uma variedade de expressões culturais de caráter rural. mas cresce como um rizoma sem raízes fixas. p. observe–se a fronteira entre o centro e a periferia. revela uma característica do fenômeno sócio-musical de grupos musicais de Aracaju e dos grupos do mangue de Recife: o drive ou groove . e fiquei interessado nos fenômenos musicais de grandes centros urbanos. razão pela qual músicos de Recife assinalam a similitude entre a riqueza cultural da região e a riqueza natural dos manguezais. côcos. mas os jovens músicos selecionam. As tradições musicais da região rural de Sergipe e Pernambuco representam o valor histórico... Naurêa. no litoral desta região. Também se encontra entre o rico Sul e Sudeste do País e a Europa. eles contrapõem enfoques monoculturais. no hemisfério norte. e a pluriculturalidade. que se encontra entre a modernidade e contemporaneidade dos grandes centros urbanos e a vida rural e arcaica. 2010. O conjunto que serviu de modelo para os três primeiros grupos mencionados anteriormente foi Chico Science e Nação Zumbi. Caribe e Europa. uma guitarra e um baixo elétrico. o grupo continuou com o nome simplificado Nação Zumbi. no limite da voz. Os textos cantados dos grupos abordados neste trabalho utilizam frequentemente referências à paisagem da cidade e também da região rural. misturando-os com elementos de correntes musicais transnacionais dos Estados Unidos e do Caribe. Misturam a música campeira sergipana com elementos do rock. em 1997. que se destacam pelo uso de roupas diferenciadas. O líder e cantor do grupo enfatiza as características linguísticas regionais. de Aracaju. Maria Scombona é um conjunto que interpreta principalmente blues e blues-rock norte-americano. As cidades de Laranjeiras e São Cristóvão. 3 .. ambos formando a temática nas mensagens emitidas pelos músicos destes grupos abordados aqui. e Chico Science e Nação Zumbi. Alagoas. 1997) e Jean BERNABÉ (1993) teorizam sobre o mangue (manguezais) como símbolo da nova comunidade humana pluricultural caribenha. por exemplo. gritando aargh. Uma situação semelhante se revela na região do mangue no fenômeno de formação de grupos musicais por jovens que adotam abordagens pluriculturais. e Maria Scombona. com características e gírias próprias.. percebe-se uma linguagem não usual que atrai a atenção do ouvinte. 1994) 198 A poesia criada por Chico Science é diferente da forma tradicional de se interpretar os côcos. pois. que está relacionado a elementos como a repetição e a redundância. colocando pressão nas cordas vocais. como a palavra groove e a mistura de elementos de correntes musicais brasileiras e não brasileiras. as sílabas. surgiram estudos com o objetivo de teorizar o conceito do groove. a música dos afro-descendentes norte-americanos. fumaça. em certos momentos. O aspecto lúdico de diversas tradições musicais campeiras do Nordeste . a nasalidade e o timbre da voz do falar português rural não devem ser subestimados. como estes aspectos são trabalhados pelos grupos. O funk norte-americano aqui referido é também chamado p-funk. Per Musi. como. entra no contratempo do padrão rítmico..1 . outros não. meu irmão Não encosta em mim. com suas inflexões. como astronautas de naves espaciais. Esta característica também pode ser observada no funk norte-americano. Ocorre um fenômeno especial. Não saca a arma não. Nas discussões ao redor da arte verbal.AGERKOP. mas organizado como algo suspenso numa maneira distintiva.. e no uso de paralelismos. também é uma das características do funk norte-americano8. que hoje não estou pra conversa. ou seja. desenvolve-se a noção de que a linguagem poética desvia-se da linguagem normal: o uso inventivo da linguagem poética em músicas atrai a atenção do ouvinte e é percebido como não usual (BAUMANN.a exemplo do maracatu rural.. O termo se refere a um senso intuitivo de um estilo em processo. fumaçando!. o encadeamento das palavras ”já” e “não” no verso “[. refletida em gêneros como a embolada5. arrastar o ouvinte. semânticas ou prosódicas. Circular cidade: poesia e groove. Cada cultura musical possui um groove com seus próprios significados musicais. expresso com o uso de roupas extravagantes. já não mais atendem… hêêê Ex. p. Na poesia das músicas de Chico Science. regular e atrativa. Parte da força musical dos grupos da região do mangue está ligada a alguns conceitos.dos tambores alfaia e caixa.neste caso o do maracatu de baque virado . foi certeiro oh. 2010. /b/ e /g/ são evidenciadas. que não vinha originariamente da tradição do maracatu.]Todos os grooves e batidas se apropriam de maneiras de capturar a atenção do ouvinte. Y. expressões faciais com risos. por seus dispositivos e pelo seu ritmo próprio. As frases cantadas por Chico Science. para poder encaixar as palavras. Existem vários termos para designar estilos com seus processos. uma batida como o mangue.. Um bom exemplo desta técnica pode ser percebida na música Maracatu de Tiro Certeiro (de Chico Science): É de tiro certeiro. bem como à experiência participativa por parte do músico e do receptor.17).18-19). além da dança funk. maneira particular de dançar onde o corpo marca o timeline.] termos linguísticos como ‘groove’. côco6 ou no canto de Chico Science. Uma das características do Nordeste é uma fluência especial no uso da linguagem. o sentido intuitivo do senso do groove ou batida é o reconhecimento de estilo em movimento [. se foi O sol é de aço. que se reflete nas diversas formas de arte verbal.109). Característica do funk ou p-funk é o forte caráter lúdico. n. Apresenta-se. oh. é de tiro certeiro.] as balas já não mais atendem ao gatilho”. cavalo marinho. o afrobeat. interpretado pelos músicos e grupos como James Brown. Funkadelic. tem gente que é como barro . criando uma tensão rítmica entre o canto e o padrão rítmico . (FELD 1994. desenvolve-se um ritmo cantado diferente. por quebrar as regras de acentuação do português. a seguir. os sons das palavras são o que chama a atenção: o encadeamento das palavras.Maracatu de Tiro Certeiro (Chico Science e Nação Zumbi. A palavra groove regularmente surge no discurso de músicos de Aracaju e de Recife. Uma das formas pela qual a linguagem poética se revela é através do paralelismo. p. 112)4.. Parliament. O uso fluente da linguagem é um veículo efetivo para a exposição de competência comunicativa (BAUMANN. à percepção de um ciclo em movimento ou a uma forma de organizar padrões que se revelam (FELD. Os versos desta música foram criados por Chico Science. 1994. o pulso básico do padrão rítmico do funk. chamar a atenção: [. Belo Horizonte. Nos anos 1990. Na arte verbal do Nordeste. Seus olhos estão em brasa. como Jorge Ducci e os músicos do Chico Science e Nação Zumbi. são emitidas em uma respiração. ou pure funk9. o reggae-beat e outros. ou o encadeamento de palavras. às vezes efetuada por quase todos os músicos em um concerto. que incluem um senso sonoro. gramaticais. arma não! Já ouvi. /t/. Em entrevistas. em que a repetição de sílabas e sons das consoantes chama a atenção do ouvinte. e óculos escuros coloridos enormes. p. a bala escaldante. não como o usual da tradição do maracatu de baque virado. Fumaçando. que envolve a repetição com variações sistemáticas de estruturas fônicas. calma! As balas já não mais atendem ao gatilho Já não mais atendem ao gatilho. O jogo de sílabas e palavras. p. por exemplo. Estes grupos são praticamente formados por afro-americanos. dança de São Gonçalo10 de Laranjeiras e a arte . Desta forma. e este groove tem a particularidade de atrair. som ou batida – significantemente codificam um senso não especificado. ainda conseguem abrir os olhos e no outro dia assistir TV Mas comigo é certeiro.. na maneira criativa de construir frases. por exemplo. Como bala que cheira a sangue Quando o gatilho é tão frio Como quem ta na mira. morto! Ehh.22. e o funk também se inclui na chamada Black Music. consoantes como /s/.196-202. ao padrão “irregular” dos tambores alfaias. os músicos de funk fazem diversas brincadeiras e a linguagem usada é o inglês afroamericano. George Clinton e seu grupo e Bootsy Collins e o seu próprio grupo. maracatus7 e emboladas.. Na embolada e no côco. Este último grupo mencionado gravou uma música chamada Quilombo Groove. que ao toque de uma se quebra. p. atuando para prender a atenção do ouvinte. Numa entrevista. 2010.22. e /f /s. de maneira bastante rápida. (DUCCI. Aquele solo e resposta. n. não sei não sinhô Vai ter festa umbigada vai ter fé Vai ter festa umbuzada vai ter fé Tem novena e congada vai ter fé Umbigada e umbuzada vai ter fé Ex. ha ha ha Ex. No funk. estabelecendo um jogo verbal. surgida no meio musical do funk americano. Estas camadas rítmicas são formadas por instrumentos percussivos como alfaias. da música sergipana. por causa da proximidade sintática das palavras. e a mistura de estéticas transnacionais com a música regional começa com o uso de um megafone para amplificar e distorcer a voz. viver sem fulô Volta neguinha. A guitarra e baixo elétrico tocam as fórmulas rítmicas e melódicas curtas das tradições musicais rurais. outro conceito ligado às teorias sobre o groove: Porque. p. Jorge. quando a gente está pesquisando o folclore. pra ser ouvido. não sei não senhô Volta neguinha.196-202. A música dos grupos como Sulanca e Naurêa. a gente ouve aquela voz rouca.2 . triângulo. /g/ e /z/ são pronunciadas precisamente. que inclui um forte espírito lúdico nas suas atuações no palco e nos seus textos. colocando uma ‘postura’. A música Fé e Umbigada.] trago este registro. como José de Jorge do ‘terreiro José do Jô’. que é característica da música tradicional de Sergipe. mas com a distorção comum da música funk e hardrock. zabumbas e vozes dos cantores populares chamam a atenção nas festas do calendário católico ou feiras populares. observa-se um mesmo fenômeno com um jogo de palavras e sílabas que destacam consoantes como /i /z/. e o megafone já tem uma distorção natural. a força rítmica que atrai o ouvinte para dançar. em frente da boca com os lábios e ênfase na garganta. do grupo Naurêa. tambores. Aqui. dois ou três compassos são repetidos várias vezes como uma figura. com as camadas rítmicas e sonoras alternadas. Jorge. junho 2005) A palavra groove. porque é o limite dele. is unke-fezay Ootsy-be that-play unke-fe Unky-fe Is unky-fezay. Aqui. efetuadas pelos grupos musicais Chico Science e Nação Zumbi. Na música Shine-o-Myte (Rag Poping). o leite taiou Volta neguinha. Sulanca e Naurêa. é em parte o reflexo deste fenômeno nas feiras e encontros culturais. umbuzada e congada. Per Musi. da voz que canta. Na banda. os tambores de onça. característi199 . E nós queremos fazer este registro dentro da banda. no meio de tanta gente. à maneira de Chico Science. Os fonemas imprimem o caráter especial desta música. Um exemplo é a música do baixista estadunidense Bootsy Collins. 1982) Percebe-se. e consoantes similares entre as palavras desta música de Bootsy Collins com as cantadas por Chico Science. as palavras com sintática semelhante. A influência deste gênero pode ser observada na maneira como a música é construída em camadas sonoras e rítmicas. Estes elementos instrumentais e vocais são explorados pelos jovens músicos de centros urbanos como Recife e Ara- caju. então. em entrevista concedida ao autor deste artigo. O grupo Sulanca é o único grupo em Sergipe. tambores de onça. emitida numa respiração. 5 . is that plezay. como umbigada. E respondido pelo coro. do cara no meio da multidão e o cantor querendo ser ouvido.. Circular cidade: poesia e groove. o uso de roupas diferenciadas. que a executa desta maneira.têm diversas semelhanças com a tradição do funk ou p-funk: a dança está presente em todas elas. Em Sergipe. de maneira staccato. e as consoantes /v/. o funk e pop norte-americanos combinados com ritmos campeiros. pode-se observar como um conjunto de maracatu chama a atenção quando passa pela rua em um dia de carnaval. além do uso da guitarra e baixo elétrico e sons eletrônicos produzidos com computador e sampler. para o resto da música.. gritando “aaaahhhrrg” no limite da voz. Bootsy gonna shine like the light from shiny shoes Shine o Myte Hit me Ootsy-be that-play unke-fe Is Ootsy-bezay.. caixas e gongues. de Chico Science . nos centros urbanos do Nordeste. No caso das novas correntes musicais de Recife e de Aracaju. uma semelhança entre o jogo de palavras e a repetição de palavras. explica sobre o uso da voz ligada à palavra drive. Os padrões melódicos e rítmicos de um. se mostram elementos de gêneros transnacionais.Shine o Myte (Bootsy Collins. esta coisa do cantante no meio da manifestação [. com pequenas diferenças silábicas. quando boto um drive na voz. ainda cabe a observação de que num encontro cultural ou feira. que é característica do côco ou embolada. E aí ele vai ao limite. apresenta um caso parecido na maneira silábica de cantar. Aí ele quer ser ouvido. é bebendo isto.. Daí o drive dele. entre os eleitos nesta pesquisa. é conhecida por músicos como Jorge Ducci e usada por ele no seu discurso sobre a sua própria música. com o som potente das suas alfaias. 2001) Característica da letra é a repetição quase idêntica das frases. A estrutura da música do grupo Sulanca é basicamente formada pelos ritmos das diferentes tradições musicais rurais sergipanas com os seus instrumentos. é o swing. devido aos diferentes grupos que desfilam concomitante nas ruas da cidade. É saber destas particularidades do povo.3 . Mestre Ambrósio. às vezes alternadas. o chamado leitmotif. As palavras “volta” e “vai” são pronunciadas com ênfase. Y.Fé e Umbigada (Naurêa. As frases são emitidas de maneira staccato.Discurso musical do groove e da vida urbana Um elemento particular na música de Sulanca é a aproximação da guitarra e baixo aos timbres dos instrumentos percussivos regionais. podem-se ouvir diferentes ritmos e timbres ao mesmo tempo ou alternadamente. A intenção dos músicos é adotar os ritmos de tradições musicais sergipanas para a guitarra e baixo. Além do megafone. aquela história. rasgando a voz. Belo Horizonte. do grupo Sulanca.AGERKOP. e expressões verbais e brincadeiras corporais para provocar risos no público. Ele ajuda a trazer este grito do cantor no meio do povo. A letra é a seguinte: Volta neguinha. que registro muito bem isto. podendo se identificar e espelhar nas diversas situações representadas nas músicas. em entrevista concedida ao autor deste artigo. Jorge explica isto ao abordar o processo de misturar diferentes padrões rítmicos das tradições afro de Sergipe: Geralmente os ritmos estão em 4 por 4. a partir da minha vivência. funk e punk. No final uso o violão. para ver os acordes. As descrições de situações cotidianas são logo bem recebidas pelos jovens dos grandes centros urbanos. não ouve a manifestação como ela é tocado no interior. Aí já tem um acento do cacumbi que combina com a caixa do bacamarteiro:’cutúm cutúm tum’.4 . ganzás. que eu posso introduzir dentro dessa primeira batida. há a influência do rap. padrões rítmicos de tradições musicais rurais e de tradições afro-sergipanas são transferidos para a guitarra e baixo elétrico. 2010. acompanhado pela bateria.cidade. Aqui se encontra também outra semelhança com o mangue de Recife dos anos 1990. A partir daquela batida dele. 2001) Ocorre a combinação da melodia em modo nordestino. uso o tambor da batucada e fazemos combinações. Sicília. um padrão melódico da tonalidade em mi-maior com a sétima abaixada. A música é feito a partir desta formatação. Circular cidade: poesia e groove. A característica do repente é o canto de improviso em cima de um acorde de sustentação. Os textos cantados pelos grupos aqui abordados geralmente se referem à vida urbana com todas as suas peculiaridades. começo a formatar a música.. uma nota fundamental que serve de base para as outras notas que a têm como referência. A música Circular Cidade. (DUCCI.Circular Cidade (Naurêa. voltando para o caso do rock. Padrões rítmicos e melódicos da guitarra ou baixo do funk e pop estadunidense foram transferidos para os instrumentos de percussão (alfaia ou conga). é o acento do cacumbí. aí venho trazendo elementos de outras tradições. Cinco instrumentos na tradição. tambor de onça. você bota o tambor ou a guitarra ou baixo fazer.. Ou qualquer outra manifestação. cidade (2x) Iê iê iê iêê na cidade Tomou a última dose Sozinho sem companhia Morreu toxoplasmose Na veia via virose A cabeça que ardia Viu a moça na janela Tão bela que comovia Paixonou-se de verdade De manhã foi pra cidade Cantar “lôa” de alegria Iê iê iê iêê. O tom Mi é que é a base.AGERKOP. dentro daquela batida. As composições do grupo Naurêa revelam um uso particular de frases que rimam. e o timbre da guitarra distorcida e dos tambores dão destaque. executado provavelmente pelo computador ou sampler. Belo Horizonte. cria um drone11. O caráter destes modos nordestinos com o uso do drone poderia ser interpretado como reflexo do meio ambiente seco e quente do Nordeste. p. como guia para a melodia do instrumentista ou do cantor se desenvolver. . E uma batida que é de caixa. Esta abordagem melódica pode ser encontrada em diversas partes da Europa Sul-oriental e Sul da Europa. do Naurêa: Bateu carteira na feira Aprontou estripulia Tomou quatro pinga e meia Por causa da brincadeira Parou na delegacia Tomou ônibus trocado Por causa da correria O carro foi assaltado Ganhou buraco de bala Sem saber da onde vinha Iê iê iê iêê. em um modo nordestino. que soa continuamente. Depois aí começo fazer cruzamentos. É uma das representações musicais do sertão do Nordeste. ao abordar a vida urbana vivenciada por jovens das classes populares e um pouco marginalizados. No caso de Sulanca. E Sulanca passa por essas vertentes aí. em ilhas como Sardenha. A primeira coisa que eu faço em compor.. Chico Science e Nação Zumbi trabalhavam com padrões rítmicos e melódicos diferentemente de Sulanca. onde os textos são cantados em cima de poucos acordes. isso já dá o caminho para botar o baixo: ‘gujam gujam jam’. depois começo compor dentro daquela música. Um exemplo é a música Circular Cidade. como as regiões secas ou semi-áridas do Sul da Europa. na Grécia. Observa-se que os finais das linhas melódicas terminam nesta nota fundamental.. aí trago o pandeiro da chegança. por exemplo o samba de parelha. Que é que eu faço: tenho cinco instrumentos. Albânia. com um próprio ritmo de palavras e o uso de temas ligados à cidade. cidade (4x) Iê iê iê iêê na cidade Ex. é pegar uma manifestação. A ideia de Sulanca é fazer combinações de batidas folclóricas. Em Circular Cidade. Se você ouvir o disco. tamborim. A música começa com uma nota em Mi em forma de drone. No funk estadunidense estas fórmulas são executadas na guitarra ou baixo elétrico. Y. iêê. para desenvolver a força da percussão e ressaltar os timbres produzidos através de distorções na guitarra e sons eletrônicos. junho 2005) O uso de poucos acordes tem algumas razões: os textos cantados têm influência da tradição do repente ou da embolada. a nota Mi do começo é distorcida e tocada com tecnologias do computador como o sampler.22. Macedônia e outras. O acorde.cidade. por exemplo a caixa do bacamarteiro: ‘Tum tutum tutum’. não é rock. aí vou combinando. ca do funk e pop. o primeiro por efeitos eletrônicos.. um tema que faz uso do 200 modo medieval (ou nordestino). iêê. Jorge. A semelhança entre os dois grupos é o uso de uma base harmônica simples de dois a quatro acordes. Por outro lado. O modo é Dórico (Frígio – E) alterado.196-202. na qual a melodia instrumental e a voz terminam depois de cada frase ou quatro frases.. mas também por intermédio do uso de instrumentos de percussão e pífanos alternando as partes da guitarra e baixo. por exemplo se pegar o cacumbi ela tem caixa. com a sexta menor. termo inglês para designar o tom mais importante e geralmente o mais grave do padrão melódico. É esse universo aí. n. Per Musi. that leaves room for creative development and elaboration. a rima. as we shall see in a moment.”Shyne o Myte”. com as particularidades rítmicas dos instrumentos de tradições como o maracatu de baque virado12. Brasil Maria Scombona. p 16 – 21. and it is this element of indeterminacy. Edouard Glissant´s “Archipelic” Thinking. o desenvolvimento de novos significados na atuação e na dimensão sonora. BERNABÉ. Gordon Collier & Ulrich Fleischmann (Matatu 27-28). In: El Correo de la UNESCO. Revista Brasileira do Caribe.Eloge de la Creolité.22. e são elaborados na poesia com jogos verbais e/ou metáforas. “Fé e Umbigada”.. Hanover: Wesleyan University Press. 2nd edition. in Da Lama ao Caos. Richard (1977) .sulanca. Referências AGERKOP. novos significados são criados a partir de tendências transnacionais e nacionais. In fact. tais como o jogo de palavras. and CONFIANT. n. Stefen and Charles Keil. 2001.389-400. p. in neither verbal nor gestural languages is there a complete one to one relationship between signifier and signified. tanto nas tradições musicais das regiões rurais do Nordeste. o côco e a embolada. (2005) . No 34. BAUMANN. Brasil. Brasil. p. FELD. R. uma característica. 1993. Illinois: Waveland Press.br Referências de entrevistas DUCCI. In: El Correo de la UNESCO. o maracatu de brejão13. Circular cidade: poesia e groove. Fronteiras e Movimento Cultural entre o Caribe e Salvador: o Samba-reggae.com.Musicking: the Meanings of Performing and Listening. No 34. Vol IX. Brasil www. Creolization as a Poetics of Culture. Caracas: Monte Ávila Editores Latinoamericana. even of a degree of arbitrariness. mainly. in Circular Cidade ou Estudando o Plagio. J. Percebe-se. Amsterdam: Editions Rodopi. Diciembre 1981. Andrea Hiepko. 2008.Palavras finais Neste artigo. 6 . Além disto. Yukio. through the power of metaphor (SMALL.mariascombona. 2003. p.. Foi também possível observar como o conceito do groove adquire uma dimensão própria na música destes grupos. SMALL. meanings are constantly slipping and sliding into new meaning.AGERKOP. No 18. percebe-se uma semelhança desta arte verbal: a de correntes musicais transnacionais como o funk e o rap norte-americano. Sulanca. Referências de áudio Bootsy Collins.1994. Chicago: The University of Chicago Press.14 Nas novas cenas musicais recifenses e aracajuanas. Y. A interação do grupo que efetua a performance com o público é uma maneira intrínseca de ver as sutis maneiras de produzir significados que são reconhecidos pelo público. René. Diciembre 1981. In: A Pepper-Pot of Cultures: Aspects of Creolisation in the Caribbean. Richard W. 2004. quanto no contexto do mangue e outros grupos urbanos. 2 fitas cassete (60 min).Music Grooves: Essays and Dialogs. Jorge. p 32 – 38. SWIEGER. CLARKE. in Shyne o Myte.Verbal Art as Performance. ed.60).Root versus Rhizome: an Epistemological Break’ in (Francophone) Caribbean Thought. CHAMOISEAU P. no processo de misturar elementos musicais locais e nacionais com elementos transnacionais. Megafone. Una Ejemplar Aventura de Cimarroneo Cultural. www. of choice. Christopher (1998) . Aracajú. 2010.196-202. 1982. Paris: Gallimard. e “Circular Cidade”. Disponível em: <http://www.br Naurea. 21 de junho 2005. ________Una Cultura Criolla. DEPESTRE. Per Musi. GLISSANT.com. Acesso em: jun. a repetição. Entrevista concedida a Yukio Agerkop. USA Chico Science e Nação Zumbi. Small observou o seguinte: Human beings are constantly devising new meanings for existing gestures and new gestures for existing meanings.net>. Belo Horizonte. 201 . Brasilia. 2003. El Discurso Antillano. Edouard 1997. Grão. Sobre este aspecto. observa-se o uso da poesia e o groove na arte verbal na região do mangue com suas peculiaridades.rlwclarke. (1994) . “Maracatu de Tiro Certeiro”. 1998. o Merengue e o Reggae. jun 2009.. sound. a interpretação do gênero funk na sua essência. Linguistic shorthands-terms like groove. onde existe uma comunidade quilombola Brejão dos Negros. o disco. Está produzindo documentários sobre as ilhas Dominica y St. de Brejo Grande. 6 O côco é uma tradição musical do nordeste. uma zabumba. para entender a sua natureza e a função que desempenha na vida humana. arte verbal do litoral do nordeste onde dois cantores alternam versos cantados de forma silábica. no entanto. or beat – significantly code an unspecifiable but ordered sense of something that is sustained in a distinctive. Per Musi. Belo Horizonte. 9 Pure funk significa funk puro. Musicking: the Meanings of Performing and Listening. sendo tocado especialmente na época de carnaval. a práxis corporal. 8 O funk norte-americano se origina do soul e rhythm and blues dos anos ´50 e ´60 nos Estados Unidos. p. o coco é interpretado de forma diferente com uma instrumentação própria. Notas 1 A performance é um termo que aborda tópicos essenciais como o ato de fazer música. do nordeste do Brasil. usualmente executada em um instrumento no caso da música clássica indiana. o soul e o rhythm and blues. n.112). um triangulo e eventualmente um baixo eletrônico e outros instrumentos. Realiza palestras sobre a música venezuelana e das ilhas Dominica y St. Depois dos estudos de Musicologia na Universidade de Amsterdam (Holanda. de escolha. 2010. Desenvolveu um método para a aprendizagem da bandola cordillerana de Venezuela. como se vê. 14 SMALL. 202 . Existem duas variedades. regular. Lucia. 1996).. De fato. Lucia do Caribe oriental. Caracas). Christopher. 10 A dança de São Gonçalo de Laranjeiras é uma expressão musical rural do interior do Estado de Sergipe. Atualmente. um cavaquinho e dois caraqajés ou puítas. O padrão rítmico e melódico do baião é amplamente explorado por grupos musicais brasileiros. se refere aos efeitos de adaptação de seres humanos quando vivem em um novo ambiente. Yukio Agerkop é Doutor em Etnomusicología pela Universidade Federal da Bahia. onde os homens estão vestidos de saias e pintados como mulher. soldados e outros. p. significados constantemente se convergem em novos significados. É uma expressão musical por excelência para ser dançada. 2 O conceito de creolização primeiramente se estabeleceu depois da descoberta europeia das Américas. 4 All grooves and beats have ways of drawing a listener´s attention. e inclui danças y cantos acompanhados por pandeiros y zabumbas e outros instrumentos. 11 O drone é um termo inglês para designar a nota mais importante de um sistema melódico. principalmente. O maracatu de brejão é tocado com tambor zabumba. Os seres humanos constantemente inventam novos significados para gestos existentes e novos gestos para significados existentes. até certo grau de arbitrariedade. tanto na linguagem verbal quanto na linguagem gestual.196-202. onde as linhas do baixo e os padrões repetitivos da guitarra elétrica assumem um papel importante. Participou dos Encontros Nacionais da ABET e do Encontro de Estudos Caribenhos em Salvador em 2007. uma rainha. para descrever o processo pela qual formas de vida do Antigo Mundo se tornaram autóctones no Novo Mundo. conhecimentos discursivos e a repetição. working to draw the listener in (FELD 1994. inclui dança e é acompanhado pelos tambores alfaias e taróis. 12 O maracatu de baque virado é uma tradição musical afro-brasileira da cidade Recife. e é este elemento de indeterminação. com acompanhamento de dois pandeiros. que possibilita o desenvolvimento e elaboração criativa. ou em uma corda de um instrumento de cordas. príncipes. Forma uma parte integral da expressão musical forró. chocalho e apito. one´s intuitive sense of a groove or beat is a recognition of style in motion […]. defendendo a tese com o título “Poética de Uma Paisagem: Discurso e Atuação de Quatro Grupos Musicais da Região do Mangue” (junho. o termo “creolização” aparece em escritos sobre a globalização e pósmodernidade como sinônimo de hibridismo e sincretismo para ilustrar as misturas que acontecem em sociedades na era de migrações e telecomunicações. Em cada região do litoral do nordeste. 7 O maracatu é uma expressão musical do estado de Pernambuco (também no interior do estado de Sergipe). 2007). caracterizado por tambores alfaias. 1998. trabalhou como pesquisador musicológico na Fundação de Etnomusicologia e Folclore (FUNDEF. para se diferenciar dos gêneros ligados ao funk. Venezuela. 13 O maracatu de brejão é uma tradição musical do interior de Sergipe. trabalha como pesquisador no Centro de la Diversidad Cultural em Caracas.AGERKOP. os taróis e o gongue. Y. Numa performance musical procuramos compreender o que o homem faz quando participa de uma ação musical.22. sendo o maracatu rural e o maracatu de baque virado da cidade de Recife. tambor de onça ou cuíca de porca. ocorre uma relação mútua entre o significante e o significado. A designação histórica do termo. Caracteriza-se por sua dança espetacular e lúdica. 3 O baião é uma forma musical do nordeste que inclui dança e canto acompanhado por um acordeom (sanfona).. a temporalidade. Hoje em dia. através da força da metáfora. and attractive way. e o gongue. grifos do autor) 5 A embolada é uma tradição musical. Circular cidade: poesia e groove. com mais ou menos 7 cantos e danças acompanhados por uma caixa. organizado em uma corte com um rei. um violão. (Tradução nossa. world music. em 1947. Keywords: Axé music. technical staff..203-217. como no caso Bahia. por uma Yalorixá . produção musical. onde tradição e modernidade dialogam. como num ensaio a céu aberto do que aconteceria mais adiante na apresentação e aparição destes numa das festas mais tradicionais de Salvador: a festa de Yemanjá. verdades e world music. Por outro lado. técnicos. produtores e empresários musicais de Salvador. producers and music business executives from Salvador (Brazil). música popular brasileira. o conselho ofertado a ele. Bebo Valdez confidencia ao músico. numa espécie de aquecimento pelas ruas e becos do Candeal Pequeno.22.CASTRO. À beira mar. o diálogo entre os músicos é precedido de inúmeras outras cenas que apontam indícios e entrelaces dos aspectos religiosos. apresenta o encontro entre o pianista cubano Bebo Valdez e Carlinhos Brown. Brazilian popular music. baixa qualidade técnica e sua decadência. Após o desembarque no Pelourinho. low technical quality and its decadence. Axé music: mitos. A. verdades e world music Armando Alexandre Castro (UFBA. sem maiores incidentes.) Então seja bem vindo à Bahia. 239 p. Em seguida. onde presencia um ensaio musical de Mateus Aleluia e integrantes do Grupo Musical Gêge Nagô1.também cubana -. centrando sua argumentação em essencializações acerca da musicalidade. The method used focuses on content analysis.. Ainda nas primeiras cenas. Cachoeira. 1. truths and world music Abstract: The article discusses Axé music providing elements in an attempt to deconstruc three myths related to it: monoculture. o diretor espanhol Fernando Trueba. n. Axé music: mitos. Salvador. além de pesquisa documental relacionada ao campo musical baiano atual. Palavras-chave: Axé music. a ida a uma das Igrejas Católicas deste. musical production.22. Na cena seguinte. Bahia. 2010 ro e entusiasmado “(. jul. criatividade.. como que atendendo às expectativas de parcela considerável de estrangeiros e suas imagens/impressões de uma Bahia mítica e paradisíaca plasmada nestes aspectos. along with documental research related to the musical scene of Bahia today. BA) armandocastro@ufba. p. ele recebe um sonoPER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. eis que surge Carlinhos Brown e o Grupo Zárabe. não raro.structured interviews with musicians. surge a imagem da estátua de Vinícius de Moraes instalada em Itapuã. Bahia -.Aprovado em: 20/03/2010 203 . da cultura e religiosidade da Bahia. diversidade. A. A película segue. 2010. oferecendo elementos na tentativa de desconstrução de três mitos nela evidenciados: monocultura. a partir da seleção de elementos Recebido em: 14/10/2009 . Terra da Felicidade!”. compositor e pesquisador baiano Mateus Aleluia – Grupo Tincoãs. tendo como meios de verificação e coleta de dados entrevistas semi-estruturadas com músicos. Introdução Em El Milagro de Candeal (2004).dez. ..br Resumo: O artigo discute a Axé music. caso prosseguisse em sua investigação musical e antropológica motivada por questionamentos identitários: conhecer a cidade de Salvador. Do simpático taxista. world music. culturais e musicais baianos inscritos ao longo do tempo e história. Per Musi. As imagens apresentam alguns elementos emblemáticos da marca Bahia no mundo globalizado: música. departing from verification of data collected through semi. A metodologia utilizada privilegia a análise de conteúdo. Belo Horizonte. performances. revela as estratégicas arquiteturas de veiculação e inscrição de elementos simbólicos a marcas territoriais distintivas. Axé Music: myths. Numa perspectiva histórica. o que parece óbvio. não se configurando como objeto central de análise3. n. a Bahia (re)afirma sua inscrição e presença em parte considerável do cenário cultural internacional. Fricote representava uma musicalidade baiana de entretenimento. Per Musi.221) conceitua Axé music. Daniela Mercury. é fundamental”. Banda Pinel. enquanto temporalidade de legitimação dos chamados blocos de trio4 no carnaval soteropolitano – ampliando consideravelmente o alcance comercial e mercadológico deste – fato que possibilitou o surgimento de novos grupos e bandas musicais. inscrevendo não somente o trio-elétrico Tapajós. e. como não sendo um gênero musical. p. A estética musical herdada pela Axé music é composta por diversos estilos e gêneros musicais locais e globais. mas o ijexá nas rádios comerciais da cidade. como o frevo. Belo Horizonte. é palco. mas também sua relevante participação e interação com as tramas mercadológicas e organizacionais. nomes como Tia Ciata. mas cabe salientar que apesar desta diversidade. MOURA (2001. Neste sentido. A ampla receptividade da obra e deste artista com visual exótico reforçava as dinâmicas musicais locais já existentes em Salvador. Donga. o reggae. Das surpresas e entusiasmo dos primeiros viajantes estrangeiros. produtores e empresários musicais de Salvador. inclusive. entre outros. Lui Muritiba. exótica e espontânea. Muzenza. havia duas predominâncias no carnaval soteropolitano até a primeira metade da década de 1980: Dodô e Osmar no quesito trio-elétrico. p. Caetano Veloso. que tinha Luiz Caldas como seu cantor e idealizador6. Gal Costa. Estimuladas e contratadas por empresários destes blocos carnavalescos. Ary Barroso. Pepeu Gomes. com trânsito entre o samba-chula do Recôncavo ao Rock and Roll. Gilberto Gil. Armandinho. tais como a musicalidade e a territorialidade . além de inscrição em boletins eletrônicos relacionados ao campo musical baiano e da indústria musical brasileira. Moraes Moreira. Entretanto é aí que se percebe o maior desafio da produção musical baiana contemporânea. Jota Morbeck. Marcionílio.22. A metodologia utilizada privilegia a análise 204 de conteúdo. Desta vez. Roberto Mendes. esta escassa visibilidade midiática destes diversos fazeres musicais locais e suas complexas redes de pertencimento e conectividade têm corroborado com o desconhecimento ou a disseminação de discursos e textos que omitem – alguns casos – e/ou distorcem as cenas musicais soteropolitanas. Trataremos desta questão mais adiante. enquanto gênero musical massivo. Percussão e guitarras – baianas. Virgílio. da Bahia para o mundo. da banda Acordes Verdes. e chegando aos refrões pop´s da Axé music. passando pelas cantigas de capoeira e requebros da portuguesa/brasileira/hollywodiana Carmem Miranda. Breve História da Axé music A breve história aqui apresentada se faz pela necessidade de contextualização. seguindo parâmetros estético-musicais apontados pelos Novos Baianos. cantaram. baixa qualidade técnica e sua suposta decadência). 2. reiterando a necessidade de que não basta somente produzir canções.) Gosto de tocar no rádio. brasilianistas e naturalistas que por estas terras se aventuraram em outros tempos. Tom Zé. preferencialmente5 . entrevistas semi-estruturadas com músicos. Dodô e Osmar. com articulação empresarial.propriedade de Orlando Tapajós -. Xisto Bahia. tal como afirma Nando Reis na obra Itaim para o Candeal – faixa que encerra Timbalada . sua presença é central. outras possibilidades de compreensão da Axé music. tendo como meios de verificação e coleta de dados. tal como apontaram viajantes. Mais uma vez.CASTRO. iniciou-se a formação de um relevante conjunto de novos artistas e estrelas de trio em Salvador. de onde ainda se faz ouvir nas inúmeras cenas musicais soteropolitanas o grito Viva Raul! Bahia do século XXI. o surgimento de uma Bahia plural em sua produção musical contemporânea. naturalmente plural e plugada em links e wireless. timbaus e guitarras. Desta fonte diversa e multicultural. Não raro. Maria Betânia.. tendo como prerrogativas centrais a díade estética e mercado. O objetivo deste artigo é apresentar a produção musical baiana contemporânea denominada Axé music. e da religiosidade e força percussiva apontada por blocos afro como Filhos de Gandhi. O Tapajós . tais como Luiz Caldas. É Luiz Caldas quem desloca consideravelmente estas referências. compuseram e corroboraram com tal participação. Vinícius de Moraes. Dorival Caymmi. Raul Seixas. Tendo como autores o próprio Luiz Caldas e Paulinho Camafeu. música.. a partir desta pluralidade em sua gênese. pesquisa documental e de campo.temperavam o “caldeirão” de uma cidade que reverbera música e etnicidade. 2010. ofertando elementos na tentativa de desconstrução de três mitos (monocultura. o samba. Luiz Caldas lança o LP Magia. magistral registro comercial de um artista que logo alcançaria as paradas de sucesso de boa parte do Brasil com a faixa Fricote (Nêga do cabelo duro). e o Frevo. se evidenciarão neste trabalho. entre outros2. Badauê. a salsa. o ijexá. Ilê Aiyê e Olodum. técnicos. consensos e conflitos. Sarajane. A. O gênero baiano massivo enquanto produção. Procura evidenciar a década de 1980. que atendem e redimensionam a imagem de uma Bahia marcadamente étnica. Na MPB. podendo ser percebida enquanto temática e inscrição vultosa de artistas e autores que a ela se reportaram. verdades e world music. grupos e elaborações estéticas. Assis Valente.primeiro disco desta banda. o rock e lambada. onde poucos olhares midiáticos têm conseguido perceber tal diversidade. Carmem Miranda. Moraes Moreira. João Gilberto. Axé music: mitos. lançado em 1993: “(. Ademar e Banda Furtacor. entre outros. mas “inteface de estilos e repertórios”. Djalma Oliveira. mas executá-las e publicizá-las a um maior número possível de pessoas.203-217. Zé Paulo. fruição e apreciação estética. Em 1985. A. A. afirmando existir entre estes. ainda hoje se pode perceber a predominância desta nos blocos afro. o candomblé. e não restrito a etnicidade e nacionalismo. Olodum e Timbalada -. ou. se voltaria para a mais nova produção musical soteropolitana. com o jovem e promissor Bloco Camaleão. apresentava boa parte de suas “experimentações” sonoras. como vitrine de músicas. quase sempre orientavam para a suposta ausência de criatividade e baixa qualidade técnica de seus músicos e intérpretes. a música Faraó (autoria de Luciano Gomes). mais tarde Brasil. Quanto à necessidade de instituir paternidade e referências. com a situação privilegiada da Bahia no campo cultural e artístico nacional. blocos de trio.. Belo Horizonte. ofuscar que na nomenclatura Axé music. Luiz Caldas. o negro. continha a possibilidade de fusão. A intensa presença midiática de Luiz Caldas no cenário musical e sua associação. caracterizada pelo seu aspecto híbrido. mediante a pronta aceitação popular de suas obras. Neste sentido. n. representava novas possibilidades para a indústria fonográfica nacional que. e a exposição midiática e musical de Luiz Caldas. Neste breve relato. percussionista experiente e responsável pelos arranjos percussivos da banda Olodum. p. há controvérsias. neste caso. do encontro entre estéticas e instrumentos musicais distintos: Axé. na quadra do Teatro Miguel Santana. no Largo do Pelourinho. elencando o Olodum e seus ensaios no Pelourinho. e.77-96) corrobora com esta discussão. à época. com relevante destaque para Wesley Rangel7 e Cristóvão Rodrigues8. p. É neste contexto que surge e se substancializa no cotidiano da cidade. o álbum Magia e a obra Fricote não podem ser considerados marcos iniciais. então. Um dos principais precursores desta transformação. a partir de três exemplos soteropolitanos emblemáticos Ilê Aiyê. A ampla atuação nacional e internacional do Grupo Cultural Olodum realçou e impulsionou sua dinamicidade e complexidade organizacional. Convencionou-se. aos dilemas e dramas do afrodescendente baiano e brasileiro. A Axé music pode ser incorporada às reflexões deste autor. artistas e sociedade. são apenas alguns elementos e indícios que corroboram. prontamente. à época. p. artistas e autores.36). o pai. passou a promover duas modalidades deste: aberto e fechado. o world music. Artistas atuais. marcos iniciais.. representando o afro. o “fechado”. Neguinho do Samba. dos blocos-afro – relevantes enquanto referência estética para autores. Vamos a eles: a expressão Axé music é reforçada coletivamente a partir de textos e críticas do jornalista baiano Hagamenon Brito que procuravam negativar tal produção musical. já se apresentavam e registravam lançamento de discos antes mesmo de Luiz Caldas – Chiclete com Banana.) nada mais inútil quando lidamos com processos sociais de longa duração. a ascensão dos blocos-afro espalhados pela cidade. artistas e bandas responsáveis pela música dos blocos de corda . enquanto suas primeiras e magistrais referências mercadológicas. a diminuta compreensão acerca do gênero contemplava a dependência desta com o setor fonográfico nacional. o LP Magia e a música Fricote.234). dialogando tradição e modernidade a partir de ideais vinculados à etnicidade. vale o registro de que o Olodum. verdades e world music. artistas e compositores emergentes. p. estilizado pelo encontro de guitarra e timbau. 2010. respectivamente. do que a tentativa de determinar um começo absoluto” (ELIAS. como observou DANTAS (1994. apresentavam e experimentavam suas músicas.22. Na relação inicial de seus primeiros artistas e a Imprensa.203-217. a partir de inscrições e iniciativas jornalísticas: Luiz Caldas. o início de uma aliança entre artistas e as forças políticas. cantores e de seu ensaio na famosa “Terça da Benção”. à época. o apoio de empresários e radialistas também locais. nas noites de terça-feira. LIMA (2002. por exemplo. tal como Norbert Elias sugere: “(. lançou em 1983 dois discos: Traz os Montes e Estação das Cores. como mote. 2001. O “ensaio aberto” era realizado nas noites de domingo. Axé music: mitos. o fenômeno disseminador dos blocos afro-soteropolitanos -. em especial. e. GILROY (2001. fundindo o samba-duro baiano e o reggae jamaicano. o álbum Magia atinge a marca de 120 mil cópias vendidas. o bloco 205 . procurou. assim como.CASTRO. Deve-se considerar o caráter processual deste fenômeno. o interesse e incursão das gravadoras no campo artístico local. p. Nestes ensaios. trajetórias discursivas distintas envolvendo música e etnicidade. em busca de legitimação popular.92-98) reflete acerca da modernidade a partir das culturas do Atlântico Negro. O fato mais marcante é que em 1986. A correlação de forças midiáticas e musicais. mas indícios relevantes na historiografia da Axé music. A. enquanto outros a tomaram como temática central de seu repertório. sendo necessária a aquisição comercial de ingressos. Music contemplava o pop. Per Musi. sem sucesso. para além dos preconceitos e estereótipos. à época. além da mediação pela voz em refrões fáceis e repetitivos. alguns elementos de sua gênese – por exemplo. sendo a estas pertencentes. chegando às células rítmicas do samba-reggae – base rítmica predominante e característica da Axé music. o tribal.ainda que alguns blocos afro tenham se aventurado e solidificado experiências percussivas a instrumentos harmônicos e melódicos. Parte considerável de artistas da Axé music procurou se desvencilhar desta temática. paternidade e referências para registro. A ocorrência de tal aceitação representava alcançar outras etapas da produção musical que desembocaria em profissionais como Wesley Rangel e Cristóvão Rodrigues. O novo cenário musical baiano de meados da década de 1980 necessitava de nome. Acerca da percussão enquanto elemento da Axé music. à época. 3.CASTRO. Banda Beijo (Netinho). A década de 1980 não apresentou somente o início da aparição midiática e estruturação empresarial do gênero em questão. Per Musi. Belo Horizonte. em sua perspectiva musical e multi-étnica intitulada Timbalada. Ora silenciosa. Monocultura pressupõe unidade e ausência de outros discursos e elementos estéticos – não sendo este. de rádio. massiva e carismática. Pagode. . p. de Carlinhos Brown e seu Vai quem Vem. a Bahia dialoga sua textualidade e inscrição no competitivo campo das marcas. mas o início de um conjunto de transformações socioeconômicas e culturais no Estado. e seus principais interlocutores. chamados blocos de trio (MIGUEZ. destaque para o da monocultura. CANCLINI. o caso da Bahia. tais como os primeiros anos de atividade do Complexo Petroquímico de Camaçari. p. Composta por inúmeros artistas esteticamente vinculados ao mundo do Rock. se configura enquanto consolidação do mercado de bens simbólico-culturais no Brasil.1).203-217. ora invocando os meios de comunicação. entre outros. onde os registros do percussionista do Olodum erguendo o instrumento de percussão com as cores da África já não mais lhe pertencem. Dentre os mitos. Configura-se enquanto arquivo sempre disponível a downloads. MPB. Samba Junino (semelhanças rítmicas ao Samba Duro de bairros como o Engenho Velho de Brotas). Erudito e Pop. a proliferação de considerável contingente de bandas. da suposta baixa qualidade técnica e de sua tão propagada crise/decadência/desaparecimento. no caso Bahia. inclusive. Forró. não raro. Samba. iniciado nas duas décadas anteriores e. Banda Eva. Um deles. A Bahia. n. de encontros musicais inusitados até então. chegou a ser acusado e criticado por se distanciar dos seus elementos e objetivos iniciais. compreendidos enquanto ideias não correspondentes com a verdade do fato social. com registros fonográficos. A. Chiclete com Banana. congrega produção e fruição de inúmeros gêneros musicais (Ex. da aparição e fortalecimento de grandes organismos empresariais carnavalescos. do maior complexo de comunicação do Estado (Rede Bahia). a constante presença e legitimação da Axé music no cenário musical local e nacional é marcado por dissensões e mitos – estes. então.. duas dinâmicas se consolidam. ainda hoje. mas não o único. 2003).22. dentre inúmeros gêneros e estilos musicais. é a Axé music o maior exemplo de estruturação e organização empresarial.1). 2010. Aliando a percussividade dos blocos afro aos acordes e harmonias de bandas e artistas como Luiz Caldas. neste trabalho. MOURA (2001. na formatação e legitimação da Axé music: os blocos afro (estética e temáticas) e os blocos de trio (mercado).de popular -. motivando discussões e embates ideológicos acerca de elementos presentes e constituintes de aspectos circunscritos a tradição e modernidade. Na década de 1990. Reflexu’s.. p. deixando na história fonográfica deste gênero álbuns e gravações de questionável qualidade. e inúmeros registros negativos. Ara Ketu. As transformações não estavam restritas ao universo da Axé music. (re)orientando olhares.33-39). e suas múltiplas atividades inter-relacionadas.120) sinaliza parte destas transformações enquanto modernização da cidade de Salvador. grupo que se desdobraria posteriormente. assinalando a força relacional deste enquanto experiência social comunitária que se estende aos novos modelos de convivência urbana contemporânea. e em especial Salvador. Axé music: mitos. como num processo acentuado de descaracterização registrado por GUERREIRO (2000. A. Para MIGUEZ (ibid. intérpretes e empresários que não privilegiaram o lado artístico 206 de suas produções. é este mercado que ativa seus mecanismos. reposicionando no tabuleiro competitivo da indústria fonográfica o gênero sertanejo. Reggae.. destaque para os blocos de cordas. experiências e as próprias (re)significações identitárias (HALL. p. p. inclusive. seja nas remanescentes lojas tradicionais de CD´s e DVD´s. Asa de Águia. seja na virtualidade. sua extensão efetiva aos dias atuais encontra-se diretamente relacionada ao próprio desenvolvimento do carnaval soteropolitano. Daniela Mercury. motivo e tema para outras formas de visibilidade e inscrição no/do carnaval soteropolitano. como o Concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia com o Afoxé Filhos de Gandhi . parte considerável da diversa produção musical baiana é exportada diariamente. É bem verdade que. a partir da relação tradição e modernidade. verdades e world music. do mercado fonográfico nacional. personagens e teias midiáticas. agrega e agrada. Partido Alto. da implantação de Shoppings Centers. sendo. evidenciando e disseminando a marca de um Estado com produção musical diversificada que. ou nos inúmeros shows e participações de artistas baianos que se apresentam fora e dentro da Bahia. Salsa/Merengue.252-304). do surgimento dos blocos afro e ampliação de suas atividades.fruto de provocações e reivindicações de artistas e compositores baianos. ao topo das paradas musicais nacionais. Sarajane. Jazz.. não raro. sendo alvo dos interesses das gravadoras majors em atividade no país. Numa outra perspectiva. consolidou-se na agenda dos programas televisivos. Entretanto. Os elementos simbólicos podem conferir à Bahia sentidos do Pop .. Dentre elas. e. não raro. e o conjunto de organizações empresariais advindos das estrelas e artistas deste segmento musical.265). Mito I – Monocultura da Axé Music A compreensão de que a produção musical baiana atual é restrita ao Axé music é equivocada (Ex. prioritariamente. a década de 1980. fixa e desloca constantemente sentidos identitários. 2002. 1999. O repentino sucesso comercial e midiático da Axé music também oportunizou comportamentos isomórficos no mercado. contando. amparada no desconhecimento da relevante diversidade presente no campo musical baiano. mas à própria cidade. e eleva a Axé music. sensações. Para NORBERTO SILVA (2003. Pop Rock e Gospel. Pop. as significações sociais são estruturantes. Não obstante. Concha Acústica do TCA MPB. Rock. Forró. Madrre Forró. Pagode. a autora aprofunda as discussões acerca da criação. p. Comércio Museu du Ritmo Cais Dourado Axé music. Ribeira Marina da Penha Pagode e Arrocha. tal como qualquer outro gênero musical.. outros. Forró. Avenida Contorno Bahia Marina Cais Dourado Axé music. outros. sendo a marca. identificando. Rock. constituindo utilidade e tessituras identitárias diversas que favorecem consumo e distinção. Pop. Forró. Pagode. Reggae. Barris Beco de Rosália MPB. Boites e Casas de Shows/Eventos em Salvador9 Bairro Espaço/Casa de Show Rio Vermelho Boomerangue Casa da Mãe Tom do Sabor Espaço Jequitibar/Varanda do SESI Borracharia All Music Bar The Twist Pub Paralela Bahia Café Hall Wet’n Wild Parque de Exposições Axé music. verdades e world music. Salsa. Estação Ed Dez Pagode. Fonte: Pesquisa de campo do autor realizada entre os meses de março e setembro de 2009. 2010. localizando. Salsa. Pagode e Axé music. Club Lotus Bohemia Eletrônico. Funk. A Axé music. outros. Orla Mamagaya Beach Beer Pagode. Pituba What’s Up Rock It Pra Começar Hit Music Bar Pop Rock. Eletrônico. Axé music. Quadro I – Bares. Axé music: mitos.22. outros. n. Eletrônico. Axé music. Pop Rock. p. enquadrando e incorporando sentidos diversos em seu processo de existência. 207 . um campo simbólico que se alimenta do real (o histórico de seus produtos e obras) e do imaginário (através da comunicação). Forró.203-217. p. assim como os demais gêneros musicais produzidos na Bahia contemporânea. Rock. Axé music.208). relações físicas/metafísicas e potencialidades. Reggae. MPB. A. Per Musi. Pop Rock. Axé music. Reggae. Empório Forró. Eletrônico. Forró. Barra Jardim dos Namorados Boca do Rio Garibaldi Campo Grande Gêneros Musicais MPB. utiliza- ção e funcionalidade das marcas na contemporaneidade. A. as estratégias corporativas pertencentes à gestão de marcas englobam bens tangíveis e intangíveis que se locupletam e se (re)significam socialmente (ibid. Axé music. constitui-se enquanto marca distintiva e agregadora de significantes. distinguindo.CASTRO. Sertanejo. MPB. Pop Rock.188). Belo Horizonte. MPB. Gospel. Reggae. Ou seja. Pop. Forró. 2010. projetos como o Emergentes da Madrugada. a partir de regras socialmente instituídas e legitimadas de valores e hierarquizações distintivas mediante o consumo. seria equívoco: O produtor. p. tudo se tecnifica. Um deles é a competitividade entre os próprios estados brasileiros. afetividade. p.22. ressalta apoios do Estado aos seus artistas. Em outras palavras.consumo e lógica social – também é analisada por BOURDIEU (1989. que significa inclusive potencialidades ainda não cogitadas e exploradas. a produção artística e as relações e conflitos daí advindos.50) advoga que a condição humana é desejosa de diferenciação e status. ELIAS (1995. p. o descrédito e o ilegítimo. além de provocar deslocamentos. É a música e a etnicidade como elementos simbólico-culturais. não raro. A visibilidade. 124). estrelam campanhas publicitárias estratégicas que destacam as potencialidades culturais e naturais do Estado para seus principais centros emissivos de turistas. . tanto no sentido dos arcabouços sociológicos quanto naquele dos temas econômicos. CASTORIADIS (2000. automáticas. não se pode excluir as outras forças e poderes nele inscritas. as bolsas de valores e os festivais de música popular. organiza-se eletronicamente. Bahia Singular e Plural.CASTRO. suscitando novas atividades. observa que descartar ou não procurar evidenciar suas potencialidades. a Axé music se substancializa em artistas/empresários locais consagrados nacionalmente. 07-16). SAHLINS (2003. 208 Eis.203-217. instantâneas e universais. neste caso. Enquanto dinâmica. as corridas automobilísticas. numa espécie de retro-alimentação não restrita às sonoridades. dada à força midiática e massiva de seus repertórios e incursões. p. Axé music: mitos. tais valores “são sempre determinados também pela nossa esperança de ver que os outros têm consciência do nosso mérito. 209). compreendendo desta forma o campo simbólico. do outro. p.128-161) amplia esta discussão evocando conceitos estruturantes do capitalismo industrial e pós-industrial. no caso Bahia. Da extinta Secretaria de Cultura e Turismo do Governo do Estado da Bahia. o próprio sentido de contemporâneo é constantemente ressignificado mediante as transformações econômicas. que a telemática e as convergências em redes eletrônicas realçam o poder do simbólico contemporâneo. representatividade – política. A. produzindo reconhecimento. Em outras palavras. pode ser incorporada ao configurar a Axé music enquanto marca impulsionadora de novas lógicas e atores sociais. A produção cultural. estaríamos arriscando um capital humano fantástico. sendo assim. Esta relação . ao espetáculo. Não obstante. Per Musi. Belo Horizonte. da indústria cultural centrada especialmente em Salvador e seu Recôncavo. n.. permitiram o registro fonográfico de boa parte desta diversidade cultural do Estado. p. como é comum em outras territorialidades que articulam elementos e feixes constitutivos de seu patrimônio cultural como estratégia de atratividade e mercantilização de produtos turísticos formatados. compreendendo as empresas transnacionais e as organizações multilaterais. corrobora com a inscrição do produto Bahia mundo afora. ao descrever as ordens racionais existentes nos campos simbólicos específicos.. inclusive – e ignora o arbitrário. neste sentido. e. Enquanto temporalidade. das suas culturas e produções simbólicas. Nesta lógica. 1997. Neste sentido. tipificando sujeitos e suas representações sociais desejadas a partir deste com o outro. adquire as características do espetáculo produzido com base nas redes eletrônicas. que Bahia é esta. se constitui como elemento distintivo. integra-se ao contemporâneo. Para ELIAS (ibid.07). adota a expressão “universo significativo” para tal assunto. Sendo assim. ou pelo aumento do nosso prestígio pessoal”. contraditório e desigual. então. enquanto elementos “por excelência da integração social” que possibilitam o consenso acerca do sentido do social (BOURDIEU. verdades e world music. os meios de comunicação de massa e as igrejas. MOURA (1996. p. o que poderia adquirir cores sombrias em tempos de vacas tão magras. objetos e pessoas estão “unidos em um sistema de avaliações simbólicas. dinâmicos e globalizados. que corroboram com os alinhaves identitários. a força dos meios de comunicação aí instalados enquanto atores relevantes nas tramas da Indústria Cultural. mais uma vez. necessidades. editores musicais.36) em considerações acerca do fenômeno da distinção social e da sociedade de consumo. Em descartando a participação desse todo na sua diversidade. consensos e conflitos. mas às corporações locais – produtoras. p. a produção musical baiana contemporânea aqui apresentada se locupleta desta estrutura que mundializa cultura(s). A. agenciadores. onde: Em todas as esferas da vida social. a Axé music extrapola o circuito do carnaval soteropolitano. sendo o próprio capitalismo um processo simbólico”. no caso Bahia. profissionais.142).13) é um dos sinais contemporâneos mais incisivos. 1989. a Axé music. dentre estes. numa extensa programação de shows e micaretas que se inter-relacionam com o carnaval de Salvador. uma vez que. envolve outras possibilidades de benefícios não restritos ao Carnaval – enquanto dinâmica e temporalidade. a lógica social do consumo enquanto elemento distintivo e possuidor de significações sociais e sentidos. p. informáticas. Sons da Bahia. as suas produções artísticas e culturais de um lado. a obtenção de renda mediante negociação do seu espaço. etc. É o mercado do entretenimento. Compreendendo o campo simbólico como a territorialidade mediada pelos signos e símbolos. tendo como suporte. as guerras. enquanto produção simbólica. no campo baiano. até 2006. Para SAHLINS (ibid. são inúmeras as iniciativas governamentais. O simbólico. p. tecnológicas e sociais também constantes. mas a outros gêneros. p. 50-51). não somente relacionadas à Axé music. a espetacularização (DEBORD. Para IANNI (1999. o mercador e a mercadoria são um mesmo todo.. e fatores motivacionais de deslocamento turístico. Ainda assim. e. contribuindo para configurar o âmbito das políticas neoliberais. atribuindo novos sentidos à contemporaneidade. A. A Bahia vem se configurando como o terceiro estado em número de Editoras Musicais no país (revista Sucesso CD/Show Business/ECAD/UBC–2008). onde é comum seus artistas experimentarem em seus repertórios músicas inteiras. O fato é que a mesma Bahiatursa também proporcionou a viagem internacional do grupo folclórico baiano Zambiapunga. fragmentos. corporalidades e novos sentidos de pertença. ainda.117). esta atividade é mais um dos desdobramentos evidenciados a partir da profissionalização do Carnaval Baiano e da legitimação da música denominada Axé music. Em Salvador. uma vez que a polissemia conceitual das experimentações e encontros dos gêneros musicais é inerente ao próprio conceito de gênero. referindo-se à Bahia como um todo. A axé music apresenta-se como texto identitário difuso e aparentemente aproblemático e consensual. Passando ao campo simbólico. vem passando por complexas modificações de modo a atender interesses dos gestores culturais vinculados à iniciativa privada. são representantes empresariais de inúmeros blocos e camarotes.estão divididas entre as de propriedade das majors12 e dos artistas locais. p. tais como portais eletrônicos de divulgação turística10. objetivos definidos e articulação social entre os atores. inscrevendo alguns de seus Autores na liderança de rankings nacionais e regionais no quesito recebimento de Direitos Autorais – categoria Execução Pública. o próprio ecletismo dos elementos que passam a se encontrar nesse intrigante repertório que tantas páginas tem merecido de jornalistas. DiMAGGIO e POWELL (2005.22.220). Recôncavo e demais regiões se interfacia com elementos da cultura mundial pop. onde boa parte dos seus artistas é proprietária de editoras musicais. A concentração econômica dos principais artistas da Axé music no carnaval soteropolitano é considerável. a confluência das formas rítmicas e melódicas de uma musicalidade das ruas de Salvador. os autores afirmam que são necessários quatro elementos: a) um aumento na amplitude da interação entre as organizações no campo. aproximando-se do quadro do Sudeste do País onde estas organizações . tensionando a partir de uma produção musical e fruição estética próprias? Novos e velhos vetores de sentido (NORBERTO SILVA. numa perspectiva de que suas fronteiras estéticas do gênero musical enquanto apropriação e categoria são tênues. ou combinações entre gêneros presentes na produção musical baiana. se articularam relações. verdades e world music. 209 . por exemplo. fortalecendo o campo. Para tal. boa parte dos artistas da Axé music se articulou. boa parte das Editoras Musicais é de propriedade dos artistas locais. multicultural e world music11. no campo música. 2003.203-217. Asa de Águia e Chiclete com Banana. e o tradicional circuito do Campo Grande apresenta sinais de decadência e de pouco interesse dos principais artistas. tendo como contrapartida. e são estimulados.31) afirmam que o campo organizacional só pode ser considerado se houver legitimação empírica e com definições institucionais. a centralidade da produção musical baiana contemporânea assentada na percussividade é que garante sua inscrição ao universo da world music. produtora de shows e eventos. 2010. tendo. por exemplo. A monocultura do Axé music em Salvador não procede. fundir céluas rítmicas e melodias. multiétnica. situando a Bahia de forma representativa e relevante junto aos temas pertinentes ao direito autoral.221): Por outro lado. onde funcionam mais facilmente as fusões entre células rítmicas. já desde o início contando com a participação de músicos de várias origens e estilos. benefícios e interesses com governantes e meios de comunicação. p. até então. p. p. entre outras iniciativas governamentais de apoio e fomento às produções artísticas e culturais. p. editoras musicais. As origens embrionárias da Axé music são distintas. Vejo aí. No aspecto político. quase numa rítmica antropofágica/tropicalista. agências de publicidade. econômica e empresarial dos principais artistas deste gênero baiano. Ainda segundo MOURA (ibid. O tradicional e gratuito encontro de trios da Praça Castro Alves não mais existe. críticos. a divulgação da marca Bahia e de suas ferramentas publicitárias.. tais como. sexto em arrecadação pública. Per Musi. junto ao imaginário nacional e internacional acerca do lócus e ethos Bahia. Belo Horizonte. também. n. popularizando e entretendo sem maiores reflexões ou preocupações – fato que acentua seu caráter massivo e de entretenimento. Axé music: mitos. e. representando a própria “interface de estilos” sugerida por MOURA (2001. Passando ao campo organizacional. mas apresenta indícios de que este gênero musical apresenta evidências de profissionalização. selos fonográficos.CASTRO. individualmente. sejam cantores ou autores. b) o surgimento de estruturas de dominação e padrões de coalizões interorganizacionais claramente definidos. p. houve críticas à participação estratégica da Bahiatursa nos últimos anos. O mito da monocultura pode estar atrelado à força política. capaz de competir com transnacionais da indústria fonográfica. performances. estúdios de gravação. distintivas e subjetivas. quando de seu apoio a alguns artistas da Axé music em shows por outros países. Pode-se perceber a preponderância dos artistas relacionados ao universo Axé music. entre outras. empreendendo suas próprias empresas relacionadas à gestão cultural – administração das carreiras artísticas e atividades a estas relacionadas. consegue unir. Nada extraordinário. A. comunicólogos e cientistas sociais. O carnaval soteropolitano. Bandas e artistas como Ivete Sangalo. entre timbres sonoros. Nesta direção.líderes deste mercado . Axé music pressupõe diversidade e dela se (retro)alimenta. Para GUERREIRO (2000. No campo da edição musical soteropolitana.203-223) se inscrevem. carisma. Forró. o Rock é merecedor de destaque frente a sua estética e organização. são exemplos verossímeis de que outros gêneros musicais se estruturaram. Massai. atua no campo político. Acarajé com Camarão. O ecletismo na formação destes profissionais só corrobora com a requisitada diversidade constituinte da Axé music. verdades e world music. ainda. de elementos outros . tais como o Choro. Flor Serena. Axé music: mitos.. Assim.203-217. Dedicação. captação de convênios e assessoria junto às bandas de rock. Eletrônico. mas. c) um aumento na carga de informação com a qual as organizações dentro de um campo devem lidar. sobre a diversidade musical soteropolitana e organização empresarial da Axé music. estúdios. aos mais híbridos. Primeiro Dia Municipal do Rock do Brasil – 28 de junho. frequentamos eventos de outros gêneros. comunidade virtual de relacionamento. arranjadores e diretores musicais em atividade nas bandas de Axé music são relevantes no processo de legitimação desta. e sempre divulgamos isso nas entrevistas. Funk. Não obstante. sorte. habilidade e senso estético. estética e mercadologicamente. gravações. Colher de Pau. profissionalismo e amor ao Rock fizeram surgir na cena soteropolitana a Associação Cultural Clube do Rock da Bahia – ACCRBA -. Samba. como em qualquer outro gênero musical popular massivo. grupos de discussão na rede. Dentre suas realizações. em 1991. entre outros. surge a APABahia – Associação dos Produtores de Axé para o Desenvolvimento da Música da Bahia -. potencializando. A Volante do Sargento Bezerra. . inclusive. Dentre as bandas baianas. vídeos no youtube. dobrado. A ACCRBA possui site. ampliaram-se consideravelmente as possibilidades de sucesso e a demanda de consumo da banda. produtor da banda Rapazzolla. o monitoramento da execução de seus repertórios em localidades estratégicas. Diamba.. Na Axé music. tendo representação no Cluster de Cultura e Entretenimento do Estado da Bahia. A. assim como. Cangaia de Jegue. A. por exemplo. A sensibilidade e qualidade técnica dos músicos. 4. em homenagem a Raul Seixas -.] o Axé é a grande referência musical atual da Bahia. bairro de Piatã. Adão Negro. mas sabemos que existem outros ritmos acontecendo na cidade. marcha e passo doble. p. e em seguida do canto.realizado no Carnaval de Salvador. oportunidades. Mosiah. por exemplo.raiz. e se fazem presentes na mídia. visando à exposição e execução musical dos seus associados. Adelmário Coelho. fotolog. Salvador. o virtuosismo não é regra fundante para alcance do sucesso. despertou o surgimento de eventos específicos e inúmeras bandas destes gêneros com relevante diversidade. viagens. Em 1999. onde frequência superior a oito mil pessoas por ano14. vem apresentando inúmeros eventos relacionados a outras musicalidades. o trio-elétrico tocava frevo. em boa parte. quando se trata de reivindicar maiores espaços para este segmento. Tanto quanto o Axé music. em Salvador. ainda que tais informações sejam restritas ao meio musical. Belo Horizonte. remete. também acumulam experiências profissionais em outros estilos e gêneros musicais em Salvador. A receptividade do Reggae e do Forró na Bahia. Caracteriza-se. Palmares. Não obstante. destaque para Estakazero. Músicos vinculados ao universo Axé. assim como a própria empresarização de horários nas rádios comerciais de outros estados. Virado no Mói de Coentro. etc.) A produção de uma banda de Axé Music é muito organizada. Tio Barnabé.rede de relacionamentos. Mais até que o Pagode. destaque para o Palco do 210 Rock . Posso falar porque trabalhei como produtor de pagode por dez anos. através da Lei 5404/98. necessitando. Mas o que caracterizaria e fundamentaria esta expressão? Arranjos mal elaborados? Canções repetitivas? Músicos tecnicamente pouco habilitados? Excesso de unidade temática composicional? A participação no campo permite afirmar que tais críticas estão alicerçadas a partir da disseminação do senso comum plugado em desconhecimento e preconceito. Pioneira dentre as associações de Rock no Brasil.CASTRO. entre outros. (. autodidatas e doutores atuam intensamente numa rotina nacional e internacional de ensaios. ainda. oportunismo. shows. msn. inclusive. 2010. inteligência. p. a partir de iniciativas de artistas e da própria sociedade civil. pela articulação e intransigência quando o assunto é desrespeito ao Rock no Estado. esta associação sem fins lucrativos atua incisivamente na produção e organização de eventos culturais. com destaque para Edson Gomes.. Bandas e artistas com repertórios que transitam entre o tradicional reggae . Sobe Poeira.. Rock. Com a introdução de recursos do rock no instrumental e no repertório. solução de problemas coletivos do setor e ampliação dos destinos e públicos da Axé music. O Forró também soube consolidar seu cast de artistas e agenda de contratantes. ou reggae roots -. em paralelo à Axé music.. à profissionalização e dinamismo da produção artística e musical no Estado da Bahia. O surgimento e desenvolvimento da Axé music e de organismos coletivos como a APA Bahia. comumente chamada de APA. visando ao maior grau de profissionalismo. Per Musi. Sine Calmon.197): A princípio. Dentre as atividades da APA. n. comenta13: [. são de sua responsabilidade ações que se solidificam na realização do Primeiro Festival de Rock do Carnaval do Brasil (1994). Mito II – Baixa qualidade técnica O segundo grande mito relacionado a Axé music é estabelecido a partir de sua suposta “baixa qualidade técnica”. como afirma MOURA (2001. Exemplo emblemático no Brasil. Viajamos toda semana. Jazz. entre outros. J. tanto nos aspectos estéticos quanto organizacionais.22. não raro. prestação de serviços em forma de cooperativa. d) o desenvolvimento de uma conscientização mútua entre os participantes de um grupo de organizações de que estão envolvidos em um negócio comum. rádio/podcast.R. A especulação. assim como. principalmente. O primeiro tecladista que tocou com a gente foi Glauton Campelo .nacional ou estrangeiro. ora como músico. pela experiência de estar ao lado de músicos que sempre respeitou e admirou. Caviar com Rapadura (CE). verdades e world music. lia os encartes. Em outras palavras. n. Sendo a crise fonográfica mundial. também. e são inúmeros os exemplos de arranjos que se tornaram referências. em 1985. Per Musi. na categoria Melhor Instrumentista. Detentor de inúmeros prêmios nacionais e internacionais. coroando Brown como um dos maiores nomes da Axé music. e vice-versa. procurava conversar com os músicos. enquanto Ivete. Da parceria feita com Sérgio Mendes. por conta dos muitos detalhes de teclados que minhas duas únicas mãos não conseguiam executar. Netinho. natural de Aracajú/ SE. foi agraciada nas categorias de Melhor Cantora e Melhor DVD (Multishow ao Vivo – Ivete Sangalo no Maracanã). nem sempre é garantia de êxito – reconhecimento pessoal e comercial. e. por exemplo. José Raimundo. Radamés Venâncio. etc.baianos ou radicados na Bahia -. a gente ia aos shows. irrompendo-se em inúmeras fusões e desaparecimentos de gravadoras internacionais. ainda é . recebe também o Troféu Caymmi. Lançados inicialmente na Espanha. representante de uma vertente acentuadamente pop da Axé music. Em 2008.um excelente pianista jazzista carioca que morou 8 anos nos EUA e que tocava com Djavan ao lado de Paulo Calazans. repertórios selecionados e previamente testados nas dezenas de shows e micaretas realizadas durante o ano. produtor ou compositor. resulta o disco com forte influência eletrônica Candyall Beat. Axé music: mitos. Por muito tempo toquei e dirigi musicalmente bandas e cds de forró. proporcionando informações relevantes a bandas como Asa de Águia. Seus principais defensores parecem ignorar que a crise é do setor fonográfico mundial . guitarrista e diretor musical da banda Voa Dois – banda Revelação do Carnaval de Salvador 2008 -. corroboram com a lógica de identificação e diferenciação do artista. O virtuosismo. diretamente. O Rock. Sua ampla concepção musical não dispensa os ensinamentos e provocações herdadas de músicos contemporâneos . mas. segundo ele. a música. estabelece diálogo constante com a Axé music. exaltando a capacidade de diálogo estético da produção musical baiana contemporânea. Entrosamento. 2010. virtuosismo e sensibilidade são elementos referenciais nas justificativas de obtenção do sucesso por parte dos artistas e bandas de Axé music. De sua parceria com o DJ Dero. Mito III – Fim da Axé music A relação arte/espaço. acima de tudo. p. Adail Scarpelini. saxofone. o Prêmio Multishow de Música Brasileira premiou um destes renomados músicos. e sempre quis muito ter outro tecladista tocando comigo. realizado em Barcelona. timbres e agressividade de alguns efeitos. além da migração dos artistas para as plataformas de música online. A preocupação com a qualidade profissional dos músicos acompanhantes também se constitui verossímil no momento da formação das bandas. que tem como principal hit a obra “Mariacaipirinha”. Belo Horizonte. bateria. Carlinhos Brown . evidencia uma territorialidade resoluta em suas convicções de afirmação artística perante o outro . Arranjos. disco e obra alcançam sucesso. na generosidade presente nos conselhos informais. evidente que haveria repercussão na produção musical baiana 211 . do formato CD -. o encanto se dá pela magia e carisma do artista. arranjador e diretor musical que acompanhou Netinho de 1989 a 1998. Calcinha Preta (SE). As musicalidades desta são frutos do encontro entre músicos formados nos conservatórios e academia. à condição de convidado musical do Fórum Universal das Culturas.a Bahia.22. tecladis- ta. remetendo. em 2004.CASTRO. carisma. nas dinâmicas das ruas da cidade que se pretende mundial a partir de seus fazeres e saberes artísticos. conseguiu emplacar cinco composições no álbum “Brasileiro” – ganhador do Grammy de melhor disco de World Music. distorções e riffs de guitarra. como Ernest Widmer. como guitarra. em especial. Walter Smétak e Lindemberg Cardoso. nos fraseados. A.203-217. Colher de Pau (BA). músico/arranjador a artista. neste sentido. nas igrejas e terreiros de candomblé.. da união entre percussão/harmonia. local ou global. e agora estou com a Voa Dois. neste sentido. além de sempre estar produzindo e gravando com outros artistas. a partir da percepção imponente da produção musical baiana contemporânea no certame das condições geográficas nacionais. seu entrosamento com seus pares. neste mesmo ano. Toquei com Netinho. Inúmeros outros prêmios vieram nos anos seguintes. A. contrabaixo. A decisão de termos dois tecladistas foi uma sugestão minha. ou fim da Axé music é antiga e pode ser melhor percebida a partir do início do século XXI. numa escala internacional. 5. acerca da decadência. Em Salvador. nesta discussão. negocia espaços mediante novos encontros musicais. neste mesmo ano. Ivete Sangalo e Jammil e uma Noites. e os maiores argumentos encontram-se centrados no declínio de vendas dos produtos fonográficos.mais acentuadamente.. declara15: Jomar entrou no grupo em 1996. na contemporaneidade. Carlinhos Brown consegue aproveitar estas situações para discursar sobre uma Bahia sempre planetária e referencial na música nacional. pois usávamos muito sequencer (programação). remetendo.naquelas plagas conhecido por Carlito Marron -. A Bahia era nossa maior referência musical. mas sempre quis ter a experiência da Axé Music. mas. Quando as bandas de Axé iam a Aracajú. e na escassez e ausência de renovação de seus quadros artísticos. Visibilidade e retorno financeiro. informa que a centralidade da produção musical para Sergipe era – para muitos. A estética musical da Axé music encontra-se nos referenciais de timbragem e sonoridade contidos nos arranjos. a partir do entrosamento musical das bandas e artistas que souberam aliar a força da sonoridade percussiva à variedade de timbres e recursos tecnológicos contidas na organologia ocidental tradicional. Estas influências são percebidas nos arranjos. dentro e fora do Brasil. a lambada estava no auge por lá com o grupo Kaoma. Festival de Montreux. e tantos outros que ou não foram captados pelas câmeras ou preferiram o anonimato. está a Copa do Mundo de 1990. verdades e world music. meio desajeitados. Nas edições 2008 do Rock in Rio Lisboa e Madrid. com inúmeros selos. Axé music: mitos. produção fonográfica. equipamentos e capacitação de pessoal para receber turistas. as políticas públicas tenham sido fundamentais para viabilizar infra-estrutura. A Axé music transcendeu. corrobora e termina por disseminar. Olodum. agendam apresentações de artistas baianos da Axé music. Ilê Aiyê. principalmente a partir da parceria com a Rede Bahia – organização e registro de boa parte dos shows no Festival de Verão. entre outros. Eles começaram a ficar fascinados com o ritmo da música e. se é que é possível. Foi o primeiro trio-elétrico que chegou na Europa de navio e montado. Brazilian Day. Quando começamos a tocar ninguém dançava. entre outros. Nos campos estéticos ou organizacionais. Gil. conhecia e cantava seus principais sucessos. como assinala o tecladista José Raimundo16: Fomos para Copa do Mundo. O Axé era conhecido por uma minoria de italianos que frequentavam o carnaval da Bahia. mas não exclusiva à Axé music. corroborando no processo de legitimação e ampliação do receptivo turístico no carnaval: O carnaval baiano dobrou de tamanho nos anos 90: de um para dois milhões de foliões por dia participando da festa. artistas como Carlinhos Brown e Ivete Sangalo foram recebidos por um público que. foi o Olodum. o que demonstra sua capacidade de renovação estética junto às suas células matrizes advindas do samba-reggae. também é apontada por DANTAS (2005. A lista internacional de convidados famosos é extensa. A atuação da maior empresa de comunicação e entretenimento da América Latina junto à Axé music tem sido crescente nos últimos anos. reforçando. Também o Brazilian Day – Rede Globo como uma de suas maiores empresas articuladoras – reserva a participação de artistas da Axé music como protagonistas. Por outro lado. corroborando com o processo de expansão e internacionalização da carreira de seus artistas. inúmeros artistas e bandas musicais vêm sendo incorporadas ao texto da Axé music. a Axé music conquista espaços. a promoção de eventos. que ajudaram a “nacionalizar” o carnaval baiano. levando todo o país a se apaixonar pelo samba reggae “O canto da Cidade”.apesar das recentes controvérsias acerca de seus custos e acentuação de seu viés comercial -. enquanto marca e território simbólico em processo afirmação. Arto Lindsay. A. o produtor musical Quincy Jones. Não obstante. na Itália.20). Foi uma grande estratégia comercial da Perdigão que levou o Trio-elétrico para Torino. as estratégias de diferenciação e inscrição estética e mercadológica são elementos relevantes e não podem ser desconsiderados em tais reflexões. A etnicidade é elemento pujante neste processo. como Paul Simon e Michael Jackson. Suíça. e continuam sendo implementadas na Bahia. as musicalidades e artistas presentes no evento. impulsionou o surgimento de setores e atividades que corroboram com o desenvolvimento da música no Estado. feijoadas e ensaios. A Axé music está presente em eventos nacionais ou internacionais relevantes no showbusiness musical contemporâneo. inovou. o que duplicou a presença desses turistas foi a música baiana. a reboque. em 1990. pois revela a também extensa programação de shows.203-217. etc. Novas redes de profissionalidade foram. promovendo quebras de contrato e desligamentos de artistas dos casts das gravadoras – fato que impulsionou o surgimento e fortalecimento da produção fonográfica local. como que numa espécie de feedback. além de disseminar a marca Bahia nos quatro cantos do mundo. Outro vetor relevante na expansão dos mercados da Axé music é o próprio Carnaval soteropolitano que . comprovando sua vertente pop repleta de influências e informações. Margareth Menezes. na Itália. o mercado de trios elétricos e carros de apoio. e começaram a entrar no clima de festa que a Axé proporciona. Benjor. os responsáveis pelo Festival de Montreaux. p. MPB. que se tornou a maior vendedora de discos do Brasil no início da década de 1990. n. A. festas populares. cabendo à Rede Globo a divulgação e distribuição comercial através de sua gravadora. a Banda Cheiro de Amor. a Banda Eva. onde não somente os blocos afro são seus representantes. Nesta lógica de retroalimentação das marcas .CASTRO. Na época em que estivemos na Itália. pois era uma Copa do Mundo. contemporânea. assim como a tessitura de uma ampla teia de relações a partir da legitimação deste gênero em outras localidades. que levou a um patamar de prestígio internacional essa sonoridade rítmica. rompendo fronteiras e barreiras mercadológicas e territoriais. Isso se deveu a políticas públicas de atração de turistas? Não. Não obstante. p. Há um ponto interessante nisso. Naomi Campbell. efetivamente. 212 Desde a segunda metade da década de 1990. lavagens. Dentre as primeiras iniciativas de internacionalização do gênero baiano. editoras. Foi Daniela Mercury. a Axé music dinamizou o surgimento e desenvolvimento de carnavais extemporâneos pelo Brasil mais conhecidos como micaretas -. Belo Horizonte.Axé music e Carnaval -. As agendas de shows. nível internacional. de uma dinâmica centrada. em sua maioria. a ideia mítica de existencialidade exclusivamente festiva do território baiano e sua gente. expansão e internacionalização. Por outro lado. Araketu. mas que representam a possibilidade de maior publicização. Música brasileira eles só conheciam Caetano. Djavan. a presença de celebridades nacionais também corrobora neste processo. Per Musi. que conquistou ícones do pop internacional. pois tinha gente lá de todas as culturas. Rock in Rio. quando afirma a disposição da nova geração de artistas da música baiana em “cruzar fronteiras”. pois eles têm uma cultura de assistir ao espetáculo e nunca tinham visto um caminhão com um som daquele tamanho. a Som Livre. Ainda que.22. tecnologia aplicada à musica. criando novos mercados e possibilidades de experiências. produtores e distribuidores de menor porte. imitaram muitos brasileiros que estavam lá dançando. Em eventos como o Axé Brasil (BH) – exclusivo do gênero -. Enfim. em grande medida. foi o Chiclete com Banana. . 2010. mas só para citar os anos de 2007 e 2008: a banda irlandesa U2. ao se profissionalizar e internacionalizar. 203-217. a artista e empresária Ivete Sangalo coleciona fama. o promotor de eventos e produtor musical soteropolitano Jader Santos. Participo de dois fã-clubes do Chiclete.. Netinho e Banda Eva. como se pode perceber na resposta dada ao jornalista baiano Osmar Martins comumente chamado de Marrom -. inclusive com leis. prêmios. não se pode argumentar que Pernambuco não contribua para a disseminação e legitimação da Axé music pelo Brasil. Chiclete com Banana. Não raro. publicidade. nunca vi Bell começar uma puxada de trio sem pedir paz e agradecer a presença e carinho do público. O fornecimento de CDs do Olodum para as lojas do Centro Histórico. A medida visa salvaguardar laços identitários com o frevo. entre outros. símbolos e temáticas musicais. Sua inscrição no mercado de bens simbólicos também contempla registros de não aceitação. se apropriam mais incisivamente de seus discursos. e volumes menores para as lojas pequenas. como nos casos dos carnavais de Recife e Olinda. enquanto dinâmicas culturais. apelidado de Nação Chicleteira. inclusive (Ex. 2010. Mesclando elementos da música pop internacional. Margareth Menezes. platina.) Posso dizer que trabalho com música hoje. p. Outro aspecto relevante na argumentação contrária ao fim da Axé music. e-mule. Em contrapartida ao fato de. Milão. com alguns amigos e amigas da Espanha. Sempre acompanho o Chiclete.. mais recentemente. Artista e defensora da Axé music em suas inúmeras entrevistas. Relevante exemplo de carisma na Axé music. verdades e world music. graças a minha paixão pelo Chiclete com Banana. performances. em se tratando de discografia. como efeitos de guitarra e teclados. após experimentações em micaretas e shows. integrando rapidamente o acervo de sites e programas que distribuem arquivos peer to peer. destaque para Val Macambira. Chicleteiro. Per Musi. diálogo e construção de repertório. à percussividade local. no carisma de seu líder e na escolha de um repertório sempre atualizado com o seu público. aversão e restrição de sua execução pública. encontra nos artistas baianos. já teria migrado para o pop ou até a MPB”. O cara e a banda são demais. e. e. publicada no Correio da Bahia. e. Ainda que não se constituam referências em técnica e virtuosismo musical.2). além das músicas. tinha de ser semanal. entre outros..2) que atende seu público mais fiel. Sobre a receptividade de turistas nacionais e internacionais com a Axé music. Chicleteiro convicto e apaixonado. ex-proprietário da Aky Discos. Artistas e empresários estrategistas. Timbalada. neste sentido. discos de ouro. mas artistas como Daniela Mercury. A capacidade de performance. Os gringos e turistas nacionais chegavam na loja procurando por Olodum. Motumbá. ao contrário. a dupla Ale- xandre Peixe e Beto Garrido. se quisesse. a banda mantém uma sequência regular de registros (Ex. Ara Ketu. seus artistas excursionam por diversos países. Contudo. apresenta a Chiclete com Banana como das mais relevantes bandas da Axé music. um em Salvador e o outro. por exemplo. que até o ano de 2001 se constituía a maior rede de lojas de discos da Bahia. platina triplo. (. o empresário Paulo Roberto. na categoria de Show Brasileiro. Dentre eles. A sua inscrição e permanência no universo da Axé music é intencional e motivo de orgulho. poder. a Chiclete com Banana recebeu o Prêmio Press Award 2007. confirma o interesse dos turistas pela Axé music 17: Uma espécie de encanto. e demais artistas soteropolitanos com relevante participação no carnaval soteropolitano.CASTRO. Daniela Mercury. n. Maluquetes do Chiclete. configurando Espanha e Portugal como líderes neste receptivo. e em épocas distintas. por exemplo. Por quê? Ivete Sangalo – Porque sou. e sua presença na mídia televisiva é certeza de audiência para uma artista que já supera a marca de oito milhões de unidades fonográficas comercializadas19. A Bahia está em mim de forma inteira. pelo seu destaque nos EUA. Carlinhos Brown. Mas você faz questão de afirmar que é uma cantora de Axé. além de Paulo Prata. Porto e Lisboa. os moldes do carnaval soteropolitano. em eventos de grande porte e com ingressos esgotados antecipadamente. Isso mostra o quanto o seguimento da Bahia tem poderes especiais. vide Youtube. Ivete Sangalo pode ser considerada a protagonista de maior sucesso mercadológico do gênero. A. tem fornecido à banda inúmeros sucessos que. refrões e repertórios. via internet. os responsáveis pela banda Chiclete com Banana estão sabendo imprimir uma imagem e identidade musical com relevante personalidade e apresentam um histórico de diálogo com obras de novos e emergentes compositores. a banda estruturou sua carreira calcada no entrosamento do grupo. e isso traz realizações e muita felicidade. toda semana. e. carnaval fora de época. e as danças deste. A. Axé music: mitos. naturalmente ambientada em apresentações nacionais e internacionais. Viva o Axééééééééé’!!!!!! 213 . em 24/05/2007: Osmar Martins – Ultimamente até os críticos mais ferrenhos reconhecem e escrevem: “Ivete Sangalo. que proibiram artistas e repertórios vinculados ao gênero com argumentos que contemplam o respeito e valorização aos costumes locais. do profissionalismo que vai dos cordeiros aos empresários. historicamente. comenta esta relação18: A empatia de Bell Marques sempre supera as expectativas. logo caem no gosto do público. e quem mais da Axé Music a gente oferecesse eles compravam. é a cobertura midiática internacional do Carnaval de Salvador. em julho de 2008 apresentou-se nas cidades de Roma.fato incontestável de que boa parte do mundo já manifesta interesse no maior evento de rua do mundo e sua musicalidade maior. Sou feliz fazendo o que faço. Belo Horizonte. não ter apresentado altos índices de vendas no quesito fonográfico como Ivete Sangalo. etc.22. que registra números ascendentes de profissionais cadastrados . Nunca tentei me definir nem ser de forma diferente. estou aí na estrada e feliz. platina duplo. O Recifolia.. Era de 300/400 unidades para as maiores lojas. seus trios elétricos. Quadro II – Discografia Banda Chiclete com Banana Ano Disco/CD/DVD Gravadora 1983 Traz os Montes Continental 1983 Estação das Cores Continental 1984 Energia Continental 1985 Sementes Continental 1986 Fissura Continental 1987 Gritos de Guerra Continental 1988 Fé Brasileira Continental 1989 Tambores Urbanos Continental 1990 Toda mistura será Permiida Continental 1991 Jambo BMG/Ariola 1992 Classificados BMG/Ariola 1993 Chiclete com Banana BMG/Ariola 1994 13 BMG/Ariola 1995 Banana Coral BMG/Ariola 1996 Menina dos Olhos BMG/Ariola 1997 Para Ti BMG/Ariola 1997 É Festa BMG/Ariola 1998 Bem me quer BMG/Ariola 1999 Borboleta Azul BMG/Ariola 2000 São João de Rua BMG/Ariola 2000 Universo Paralelo BMG/Ariola 2001 Santo Protetor BMG/Ariola 2003 Chiclete na caixa. Belo Horizonte. A. p.203-217. banana no cacho (CD) BMG 2004 Chiclete na caixa. n. verdades e world music.22. Per Musi. Axé music: mitos. 214 . 2010.CASTRO. banana no cacho (DVD) BMG 2005 Sou Chicleteiro BMG 2007 Tabuleiro Musical Sony/BMG Fonte: Mazana/Chiclete com Banana. 2008. A. ABT. de pessoas que cantam. Artistas que se tornaram empresários. Acima de tudo. O estranhamento produz a interculturalidade necessária. Seus principais interlocutores parecem saber disso. neste sentido.amplamente estruturado no setor de serviços -. O preconceito estético relacionado à Axé music não encontra lastro em seu campo real de shows. anualmente. não raro. pensar a Axé music com exclusividade no âmbito das relações comerciais. atitudes e sensibilidade artística e organizacional. Por outro lado.CASTRO. transforma seus principais artistas em estrelas de comerciais turísticos. dançam e atestam a larga barra de uma Bahia notabilizada por suas próprias canções. pelo pioneiro posicionamento étnico-estético. músicos e artistas. em níveis diferenciados. de Ivete Sangalo. n. Artistas e empresários deste gênero musical souberam estruturar estéticas. como o violino. ora silenciosos. é inegável que o rápido sucesso deste gênero musical baiano contemporâneo estimulou comportamentos isomórficos envolvendo mercado e estética.Vixe Mainha. estilos e células musicais. exemplarmente. de atender àqueles que.22. Belo Horizonte. e aprenderam a fazer e exportar a música de um Estado com larga barra no assunto Brasil. Pop e World Music. seu “balé mulato”. de Daniela Mercury. que terminaram por estimular o surgimento de inúmeras produções com baixa qualidade técnica. via indústria fonográfica. ensaios e estratégias competitivas visando sobrevivência no acirrado mundo dos negócios deste segmento da indústria cultural. possuem percepção acerca desta territorialidade. dois aspectos fundamentais: referência rítmica original (percussão) e fusão de gêneros. em diversas unidades de análise. ainda. que os shows se configuram a fonte maior de renda destes artistas. a musicalidade baiana denominada Axé music conjuga. Axé music: mitos. mas sua participação não se configura determinante e exclusivo fator ao sucesso. mas. discursos. mas também a profissionalização e autonomização de um campo. O constante diálogo entre tradição e modernidade. é bem verdade. carisma ímpar. da influência do funk no repertório da recém chegada banda Negra Cor. do repertório e utilização de instrumentos relacionados a outros gêneros. satisfazendo parcela relevante de um mundo ávido por dinâmicas musicais cotidianas do outro. A indústria fonográfica é relevante no mercado de bens simbólicos. do efêmero e diverso. 6. que. A. do estranho. como já foi dito. 215 . Malê de Balê e do Olodum. da suposta “crise” da Axé music. verdades e world music. Per Musi. onde tambores e guitarras encontram-se devidamente ensaiados e dispostos para embates. do Ilê Aiyê. para muito além daquilo que se efetivava como seu período de festa e auge fonográfico. fluída que é não se limita exclusivamente à relevância religiosa e étnica presente nas canções dos Filhos de Gandhi. Mas cabe reiterar. entre outros) vêm se articulando junto a outras formas de promoção dos seus artistas e repertórios. e através de ações individuais ou coletivas (APA. Entretanto. numa interação constante Bahia/Mundo/Bahia. compositores. a Axé music é dinâmica articulada e rizomática no mercado de bens simbólico-culturais. e sua adaptação à percussão . 2010. inclusive. do exótico. repertórios e articulação empresarial. p. A. Considerações Finais A mera e descontextualizada compreensão. uma vez que. de produtos individualizados e personalizados é outro equívoco. reconhece a relevância da Axé music e carnaval soteropolitano e. conseguiu estabelecer e manter relação com os principais organismos de comunicação e entretenimento do país. inúmeras coletâneas deste gênero musical são lançadas no mercado nacional e internacional. tendo como argumentação central os índices e estatísticas da indústria fonográfica é errônea. ora sonoros. Enquanto World Music. também.203-217. A Axé music. não a vendagem de produtos fonográficos. O desempenho econômico do Estado . numa missão de disseminar a marca Bahia. . P. Culturas Híbridas . 2002. Octavio. com uma estética que remete a uma miniatura de guitarra. Néstor García.De Bloco Afro a Holding Cultural. IANNI. 1989. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2002. ii) A coluna referente aos gêneros musicais 216 . liderado por Valmir Pereira. 1994. P.ABA. Cultura e razão prática. Para a compreensão deste quadro.: Caderno Cedes. Universidade Federal da Bahia. Salvador: Editora FIB. e rebatizada como guitarra baiana no final dos anos 70. Carnaval e Baianidade: arestas e curvas na coreografia de identidades do Carnaval de Salvador. impulsionando o desenvolvimento desta música baiana. corroborando com inúmeros projetos musicais que integraram a Axé Music. 8 Um dos primeiros radialistas locais que acreditou na Axé Music enquanto movimento estruturado e com perspectivas de profissionalização (MOURA. GUERREIRO. São Paulo: Editora 34. Foi criada na década de 1940. 2 Necessário reconhecer que não somente a música. NORBERTO SILVA. Elaine. 2003. A Trama dos Tambores – a música afro-pop de Salvador. 2003. As formas do sentido. médios e grandes shows.). Consumo. A sociedade do espetáculo – comentários sobre a sociedade do espetáculo. 2003. In.estratégias para entrar e sair da modernidade. Referências ABPD. Marcelo. MOURA. DEBORD. 2005. a partir da iniciativa de jovens de classe média-alta da cidade. G. 7 Proprietário do maior estúdio de Salvador deste período (Estúdio WR). HALL. Cesinha (Bateria). Bahia. p. pelo trio-elétrico enquanto palco móvel para apresentação de bandas e artistas locais emergentes. 348 f. Hansen Bahia (xilogravura). Salvador. Funkeiros. W. nº 04 (Jul/Dez 2005). São Paulo: EDUSP. 378 f. Rio de Janeiro: Contraponto. Posteriormente. é necessário reiterar que se tratam de espaços com capacidade para pequenos.: Monclar Valverde (Org. Salvador: Edições Olodum e Editora da Fundação Casa de Jorge Amado. que não se integram ao escopo deste artigo. Abr.Música. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. A gaiola de ferro revisitada: isomorfismo institucional e racionalidade coletiva nos campos organizacionais. Rio de Janeiro: DP&A. Universidade Federal da Bahia. verdades e world music. In. 1995. Com forte influência dos Tincoãs.2.CASTRO. Dentre eles. LIMA. Mário Cravo e Mário Cravo Neto (escultura). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1996. CANCLINI. Carybé (artes plásticas). pelos amigos Dodô e Osmar. Paulo. Salvador. religião e os universos barroco católico e do candomblé afro-brasileiro presentes no Recôncavo Baiano. 6 Fundada inicialmente em 1980. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea) – Faculdade de Comunicação . 4 Paulo Miguez (1996) sinaliza que os primeiros blocos de trio no Carnaval de Salvador surgem na primeira metade da década de 1970. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 3 O historiador Milton Moura é a maior referência neste assunto. Belo Horizonte. A sociedade de corte.: Revista Texto e Contextos/FIB-Centro Universitário da Bahia. contribuição apresentada no GT 19 ./Jun. Ano 3. 2001). Norbert. Axé music: mitos. G. Toinho Bipbop (Contrabaixo). a banda Acordes Verdes teve duas formações. In. DANTAS. mas outros agentes estéticos e artistas também inscreveram e colaboraram com a inscrição da Bahia no cenário artístico local/global. 2010. _________________. o Gêge Nagô segue sua trilha musical fazendo a ponte entre música. Jota Morbeck (Voz). Carlinhos Marques (Contrabaixo). __________________. sendo inicialmente denominada de pau elétrico. 2000. Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro (literatura). Paulinho Caldas e Silvinha Torres (Backing Vocals). Revista de Administração de Empresas (RAE-FGV/SP). Tan e Eduardo (Percussão). e POWELL. Castoriadis. Notas 1 Grupo Musical de Cachoeira. timbaleiros e pagodeiros: notas sobre juventude e música negra na cidade de Salvador. Campinas: Unicamp. promove a partir da década de 1980.203-217. 1999. Rio de Janeiro: DP&A. Alfredo Moura (Teclados). n. M. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. a partir de visita ao campo e entrevista com músicos e promotores de eventos. O performático músico baiano Armandinho é seu maior executante. Glauber Rocha (cinema). Ari. A instituição Imaginária da Sociedade. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 1997. A expressão remete à substituição das atrações musicais tradicionais. uma articulação de suas atividades de empresário e produtor musical. A. 2001. tipo charangas e orquestras carnavalescas. A organização da cultura na “cidade da Bahia”. A. 2000. mimesis e sentido. ELIAS. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea) – Faculdade de Comunicação .da XX Reunião da Associação Brasileira de Antropologia .entre outras. C. além de: i) Os locais acima não evidenciam a totalidade dos bares. v. Relatório Anual da Associação Brasileira de Produtores de Discos. 1999. 2008.22. M. OLODUM . a partir de sua Tese de Doutoramento (2001). BOURDIEU.45. Salvador. Per Musi. A Música como Eixo de Integração Diferencial no Carnaval de Salvador. Inicialmente com Luiz Caldas (Voz e Guitarra).2005. boites e demais espaços com capacidade de realização de shows em Salvador. Competitividade internacional em turismo: a identidade cultural contra o mito da qualidade de serviços. SAHLINS. é uma variante eletrificada do bandolim. 9 Quadro elaborado pelo autor. O poder simbólico. Cultura e Sociedade: Pesquisas Recentes em Estudos Musicais no Brasil . Carlinhos Brown e Tony Molla (percussão). n. Stuart. MIGUEZ. DiMAGGIO. 5 Na organologia. a formação apresentava Luiz Caldas (Voz e Guitarra). Rio de Janeiro: ABPD. e informações eletrônicas disponibilizadas através de boletins por alguns sites de eventos.203-217. Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Discos – ABPD/2007. Bahia. com objeto de tese sobre o desenvolvimento do mercado de administração e edição musical baiano. podendo ser CD. 217 . Entrevista concedida ao autor em 05/08/2008. 2006) que trata do processo de turistificação da secular Irmandade da Boa Morte.accrba. É Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/UFBA). Universal Music. Nos últimos anos. sendo o elemento étnico quase sempre preponderante neste processo dialogal envolvendo gêneros e estilos musicais.22.. Belo Horizonte. distribuiu as produções fonográficas de bandas como Timbalada.br. O entrevistado se refere ao Maluquetes Chicleteiros Fan Club Sur Europa. Corporações Fonográficas nacionais e transnacionais. A expressão world music compreende a fruição estética musical dos países. ainda que. Unidade fonográfica entendida entre as mídias de suporte para os fonogramas. O empresário continua vinculado ao showbusiness musical. Per Musi. Armando Alexandre Castro é Doutorando pelo Núcleo de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da Bahia (NPGA/UFBA). p.br Entrevista concedida ao autor em 29/07/2008.com. 2008. O governo do Estado da Bahia é o mantenedor e gestor do site www. 2010. verdades e world music.bahia. Axé music: mitos.com. Neste quadro. DVD ou até mesmo o antigo vinil. n. www. e integrante do Grupo de Pesquisa O Som do Lugar e o Mundo (FFCH/UFBA). Especialista em História Social e Educação e Licenciado em Música pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 contempla os estilos mais preponderantes dos espaços agrupados em bairros. via Estação CD. Olodum. Ibid. banners e folders aos grupos e produtores musicais que excursionam por outras cidades e países com apoio oficial. Warner Chappell. A. e disponibiliza faixas indicativas. É Professor Assistente do Instituto de Música da UCSAL. haja registros de shows nestes espaços. Entrevista concedida ao autor em 22/07/2008. em Cachoeira. não se considera a intensidade dos eventos musicais em teatros em Salvador. Já tendo sido responsável por 75% do mercado da venda de discos e fitas na Bahia e alguns estados do Nordeste. Espanha. O avanço indiscriminado da pirataria virtual e física levou à redução desta rede em 2002 e encerramento das atividades no comércio varejista em 2007. vide Sony/BMG.CASTRO. sediado na cidade de San Sebastián. Autor do livro Irmãs de fé: tradição e turismo no Recôncavo Baiano (E-papers. Cheiro de Amor e Babado Novo. A. a partir da fala dos próprios administradores destes. atuando no setor de distribuição atacadista de cds e dvds. Som Livre e EMI. Entrevista ao autor em 04/07/2008. Pimenta Nativa. theater and performance studies. jul.22. canção. Per Musi. notadamente sua voz. Partimos das ideias de Paul ZUMTHOR (1993. song. e o público no momento em que ocorre a performance da canção. and the audience at the moment of the performance. da televisão. o conjunto de interações que se estabelece entre o corpo do intérprete. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas para a análise de canções no âmbito da música popular Conrado Vito Rodrigues Falbo (UFPE. 2005. 2010 218 A canção possui uma característica de versatilidade que a permitiu passar por diversas mudanças ao longo do tempo. ainda carecemos de um instrumental teórico e analítico mais consistente no que diz respeito ao exame dos procedimentos estéticos utilizados por compositores e intérpretes no processo criativo da canção. may it be presential or mediatized. O eixo orientador das perspectivas teóricas aqui apresentadas é a abordagem da canção a partir da performance da palavra cantada. ou seja. Keywords: popular music. 2007) sobre performance e vocalidade procurando estabelecer um diálogo interdisciplinar com outros campos do pensamento estético. especially his/her voice. the ensemble of interactions that take place between the performer’s body. V. para citar apenas um exemplo. 1. Recebido em: 15/11/2009 . cantigas de roda e cantos de trabalho ao modismo descartável das paradas de sucesso. We began with Paul ZUMTHOR’s ideas (1993. Outros trabalhos demonstram que. 2010. a performance desempenha um papel fundamental na construção dos significados.dez. a forma expressiva mais utilizada pelos artistas da música popular. o mesmo podendo ser dito de um exame que se restringe à letra da canção (TATIT. mas sempre mantendo seu extraordinário poder comunicativo. além da relação dinâmica entre melodia e letra. uma análise estritamente musical da canção não é capaz de revelar toda sua riqueza de significados. 2005.. Palavras-chave: música popular. a canção é uma forma expressiva de ampla inserção social. Na sociedade de consumo contemporânea. p.FALBO. C. . PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n. performance. novos padrões estéticos e novas funções sociais. seja esta performance presencial ou mediatizada..218-231.22. 239 p.Aprovado em: 20/03/2010 . seja por meio de sua transmissão oral ou por meio do rádio. n... 2003). A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . ocupando lugar de destaque no debate sobre novas possibilidades de utilização comercial da internet. as artes cênicas e os estudos da performance. PE) conradofalbo@gmail. R. Como já alertava o pesquisador e compositor Luiz Tatit. dos discos e dos shows. Do universo tradicional dos acalantos.com Resumo: O presente artigo apresenta as linhas gerais de algumas perspectivas teóricas que podem ser úteis para a análise de canções no âmbito da música popular. that is. assimilando novas tecnologias. Recife. Belo Horizonte. The word in motion: some theoretical perspectives for the analysis of the song within the framework of popular music Abstract: The present paper outlines some theoretical perspectives that can be useful to the analytical practices that focus on the song within the framework of popular music genres. performance. The core of the theoretical perspectives presented here is an approach of the song based on the performance of the sung word. a canção continua tendo um papel preponderante na chamada indústria do entretenimento. especially literary studies. 2007) on performance and vocality to try to establish an interdisciplinary dialogue with other fields of knowledge. sobretudo os estudos literários. Introdução: a canção como objeto de estudo Apesar dos recentes avanços no campo dos estudos voltados para a música popular. podendo chegar até a transformar completamente o sentido original de uma canção (VALENTE. 2007). Quando falamos das qualidades de um indivíduo (um ser in-divisível). mas um de seus vários elementos constitutivos. O pesquisador americano Charles Perrone. sobretudo devido à manipulação artística de palavras e sons. usamos sempre imagens de espaço. p. Mesmo quando essa comunicação se dá a nível verbal. mas apenas o reconhecimento de que estamos tratando de uma forma expressiva (a canção) que demanda um olhar analítico atento a estas diferenças. p. forma das experiências vividas e imagem de seus conteúdos [.26). Entretanto. Grifos da autora). por exemplo. entoações estranhas. 2008. assim como ambos não podem ser considerados de maneira abstrata. A canção é encarada no presente artigo como uma forma expressiva que produz significados de uma maneira específica. performance etc. utilizado por Betsy BOWDEN (1982)1 para designar certas características das canções que não aparecem na página impressa. Se o texto é criado com a finalidade de ser cantado. rima forçada de voz. o texto não pode ser dissociado da melodia (ou mesmo da ausência desta). por suscitar questões relativas ao texto.218-231. contando desde o ano 2000 com uma seção latino-americana da qual fazem parte inúmeros pesquisadores brasileiros. o espaço torna-se. p. na qual todos os seus elementos constitutivos (letra. à performance e a outros aspectos da expressão artística. Per Musi.. as vivências do espaço são determinantes na construção do senso de identidade e sociabilidade das pessoas: As formas de espaço constituem tanto o meio como o modo de nossa conscientização. simultaneamente. envolvente. afirma que “as letras de canção são destinadas à transmissão oral num cenário musical. pois redefinem antigos padrões vigentes na pesquisa com textos literários.86. 219 . duração. desligado. 2005. 2010.) guardam uma relação dinâmica. usamos intuitivamente imagens de espaço. à música. a diversidade das disciplinas envolvidas neste processo e a falta de comunicação entre os inúmeros setores acadêmicos faz com que as pesquisas que vêm sendo realizadas acabem por ter uma influência dispersa. Além disso. Não há outra maneira possível de conscientizar. mas também abrem espaço para que manifestações artísticas como a canção também possam ser analisadas sob o prisma dos estudos literários. Perrone chama atenção para as especificidades formais da canção ao mencionar o termo “literatura de performance”. não contribuindo para um maior diálogo entre as distintas áreas acadêmicas nem para a construção da visão transdisciplinar que a canção demanda enquanto objeto de estudo. Deste modo. onomatopeia. Voz: o corpo e o som da subjetividade O corpo pode ser considerado a dimensão espacial da identidade humana. como sendo aberto ao mundo ou fechado. V. somos matéria. e não para ser lido ou recitado. seja recitada. melodia. que algo nos toca de modo profundo ou apenas superficial. como sendo expansivo ou introvertido. 2. repulsivo. mas apontar perspectivas teóricas que permitam a análise de canções (consideradas em sua totalidade multimodal) de acordo com parâmetros e critérios específicos ou devidamente adaptados às suas peculiaridades formais. 1999. pausas etc. ao justificar sua adoção da perspectiva dos estudos literários na análise da canção. seja ela presencial (em uma apresentação ao vivo) ou mediatizada (capturada e transmitida por meios tecnológicos). e muitas vezes adaptando à análise da canção perspectivas teóricas originalmente voltadas para o estudo de obras literárias.] E do mesmo modo. Estudos como o de Walter J. acompanhamento instrumental. Estas modificações não significam apenas uma mudança de enfoque no trabalho com a análise de textos literários. instituição fundada em 1981 e formada por pesquisadores de várias áreas do conhecimento. Ocupamos um lugar no espaço. 2008. n. quaisquer conteúdos afetivos que queremos expressar e comunicar aos outros são por nós traduzidos intuitivamente como imagens de espaço. Não pretendemos justificar o estudo da canção com a afirmativa de que as letras de canções da música popular podem ser analisadas como obras literárias.. em estudo pioneiro sobre a poesia da canção na música popular brasileira. ou seja. formular e comunicar nossa experiência (OSTROWER. Ressaltamos que não há qualquer juízo de valor nas observações acima. atraente. O principal motivo desta impossibilidade está no fato de que. ele deve ser estudado na forma dentro da qual foi concebido” (PERRONE. distante. Entretanto. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . 2007) representam importantes marcos teóricos. mas também a palavra vocalizada em diferentes contextos. Não é por acaso que o presente artigo parte dos estudos literários tomando como ponto de partida a performance da palavra cantada.22. pronúncia. próximo. mas em sua interação plena no momento da performance. ampliando alguns conceitos de uso corrente e oferecendo um novo alcance à própria compreensão do que entendemos contemporaneamente por literatura.. ONG (1999) e Paul ZUMTHOR (1993. diferentemente do que ocorre com o texto literário. como flexões vocais. A análise da canção realizada à luz dos estudos literários costuma focar-se exclusivamente nas letras. colocando todo um referencial teórico à disposição de uma visão ampla da palavra. ignorando os aspectos musicais e performáticos que são igualmente fundamentais na construção dos significados das canções. Para a artista plástica e pesquisadora Fayga Ostrower.23-24). encenada ou cantada. a letra de canção não é a canção.. Ao dizermos. R. (PERRONE. Um importante movimento de valorização do estudo da canção vem tomando forma em diferentes áreas do conhecimento e um dos resultados disto é o crescimento da IASPM (International Association for the Study of Popular Music). Não ignoramos que são numerosas e significativas as relações entre letras de canções e textos literários 2: ambos guardam entre si semelhanças essenciais. que compreende sua multiplicidade de expressão: não apenas a palavra escrita. e interagimos com nosso ambiente através de relações essencialmente espaciais. em sua rica multidimensionalidade. que alcançará plenitude expressiva apenas quando percebido de forma conjunta com os demais elementos. p. mas não apenas isso: também percebemos o mundo de forma espacial. C. ressaltamos que nosso escopo não é comparar obras literárias e letras de canções.FALBO. Belo Horizonte. o espaço é “tanto o meio como o modo” de nossas experiências vivas. compreendida no sentido em que Lacan fala da instância da letra no inconsciente. p.). corporal da identidade individual. levada pela voz. mas apontando para uma ação conjunta e complementar de todos os sentidos na percepção dos múltiplos aspectos da realidade. V.FALBO. mas também está envolvida com o prazer. Se. explicitando traços pessoais e culturais desta identidade. A pesquisadora conclui pela necessidade de promoção de um maior diálogo entre estas distintas áreas do conhecimento como forma de se alcançar uma compreensão mais abrangente da voz e de suas manifestações. nem locução nem locutor. se coloca como uma presença (ZUMTHOR. Paul Zumthor. 2010. existe outra coisa na voz. C. por exemplo) nos interessa particularmente a voz. tipologias vocais válidas para o canto erudito. 2002. 2005. também os filtram e permitem que elaboremos respostas e formulemos perguntas. 1998. Desde antes de seu nascimento. forjando o belo neologismo ‘inSOMsciente’. concreto. inventários e análises dos recursos vocais técnicos e estilísticos dos cantores populares (TRAVASSOS. pois a voz também está ligada ao aspecto material. sendo antes um “construto psico-histórico” em constante desenvolvimento. quando não impossíveis do ponto de vista técnico. Além disso. gritando etc. sobretudo quando percebemos a intensidade de sua conexão com a audição: não podemos produzir sons vocais se não formos capazes de ouvi-los. n. enquanto dimensão espacial da condição humana. Conforme Berthier: 220 A voz é considerada um objeto de estudo “fugidio” no dizer de Elizabeth Travassos. Assim como da função de comer se acresce o prazer da degustação. se diz a si própria. estudos etnográficos da fala. nos diz que: Não se pode imaginar uma língua que fosse unicamente escrita. sendo difícil separar estes dois aspectos nas funções que desempenha. A escrita se constitui numa língua segunda. a voz. como exemplifica Lucia Santaella. A boca. p. 2008. revelando características próprias de cada indivíduo. É esta dimensão infralinguística e supra-individual que convém estudar para revelar o que está em jogo na voz (BERTHIER. serve à satisfação de necessidades fisiológicas (comer. repletas de orientação para a prática e comprometidas com uma pedagogia vocal. Belo Horizonte. Começam a desenvolver-se.] Assim. respirar). p.22. Berthier ressalta que nossa voz não é herdada geneticamente. As crianças choram ao nascer: uma primeira manifestação de vida. é também nosso meio e nosso modo de ser e de estar no mundo. sabemos que é impossível falar da voz como fenômeno isolado. ao comentar as inovações tecnológicas voltadas para atividades como a decodificação acústico-fonética e reconhecimento do locutor3. em forma de novos estímulos sensoriais num ciclo comunicativo que se estende até o fim da vida. sobretudo no processo que origina a fala.117). nem língua nem indivíduo. Ela também pode produzir um excedente de prazer. A voz é um dos primeiros instrumentos de que dispomos como meio expressivo. os signos gráficos remetem. o feto humano já é capaz de ouvir sons. A observação da artista nos permite vislumbrar uma experiência de espaço mais ampla e complexa. uma vez tratadas as dimensões fonológica e idiossincrática da fala. Aproximação que outros já operaram. ao comentar as relações entre a língua escrita e falada. ao analisar algumas perspectivas teóricas ligadas ao estudo da voz nos campos da musicologia e etnomusicologia. no sentido de que a “presença da voz” também significa a presença de um indivíduo que faz uso de sua voz (seja falando. “De acordo com o musicólogo Iegor . mais ou menos. chamando atenção para o fato de que na literatura acadêmica e científica. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . do canto ‘popular’ e ‘étnico’.. A marca individual justaposta à marca do significante não faz toda a voz. cantando..37-38). A instância da voz na fala. O pesquisador Patrick BERTHIER. inegavelmente sonora. que não se pode ignorar nem incorporar irrefletidamente. no sentido de sua vivência plena pelo ser humano. que faz o ‘Homem’ e torna a instância da voz problemática. também.. e a audição desempenha um papel fundador nesta fase primária de percepção do mundo. Esta complexidade que cerca a voz também pode ser observada no que diz respeito à plurifuncionalidade dos órgãos que compõem o aparelho fonador humano.61)4. Esta observação de Zumthor pode ser relacionada com as ideias de Barthes sobre o que este último chamou de “grão da voz”. já que esta não se coloca apenas a serviço da comunicação e interação dos seres humanos entre si e destes com o mundo. o som vem antes do gesto ou da escrita e configura-se como o primeiro traço de nossa identidade. chama atenção para o fato de que existe uma grande variedade de elementos que fogem ao alcance da análise acústica e tornam estes processos extremamente complexos. O corpo nos fornece ferramentas de percepção e interação com o ambiente e com outros indivíduos: ao mesmo tempo em que nossos órgãos captam estímulos externos. Encantamento do canto: fala transmutada em prazer (SANTAELLA.. R. é mais ampla do que ela. entretanto.218-231. sobretudo do canto. Mas a voz ultrapassa a língua. p. Na voz está inscrito o corpo de quem a emite. p. podemos dizer que o corpo.63). mais rica [. não restrita a uma acepção puramente visual. Ela constata a grande carência de termos técnicos precisos que permitam uma abordagem analítica satisfatória das várias modalidades de expressão vocal. encontram-se pelo menos três grandes vertentes de abordagem da voz e do canto: descrições naturalizadoras do corpo e do som. ‘um equivalente do inconsciente pelo som’. utilizando a linguagem para dizer alguma coisa. como veremos mais adiante. Esta relação de identidade que estabelecemos com a voz. na fala está inscrita a possibilidade do canto. O trecho acima deixa entrever a complexidade e mutabilidade dos fatores envolvidos nas relações entre voz e identidade. como diz Ostrower. é mais complexa do que pode aparentar. Podemos entender a voz como uma extensão de nosso corpo. sem divisões e separações. como tendemos a pensar no caso das artes plásticas. É este resto. Per Musi. indiretamente às palavras vivas. notadamente a voz de sua mãe. Trata-se de uma perspectiva orgânica do espaço. A língua é mediatizada. beber. Entre estes sinais produzidos pelo corpo com finalidade de comunicação (os gestos. 240). O músico e professor canadense Murray Schafer propõe uma gradação entre dois pólos extremos: de um lado os vocábulos isoladamente considerados e sons vocais manipulados eletronicamente (representando o máximo de som). Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes de excitação. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . apenas sons sem qualquer vinculação necessária com significados linguísticos) até o desenvolvimento destas potencialidades vocais em linguagem verbal.22. no exemplo do acalanto. não apenas para o sujeito em si mesmo. mas nos permite vislumbrar uma série de formas de expressão intermediárias entre som e significado que são usadas simultaneamente. ambos mantêm uma relação complementar na expressão vocal. de tempos em tempos. identidade e alteridade. enquanto contentamento. A afirmação. A característica melódica da fala é identificada pelos tonemas. até seu uso “cultural”. 3. 2004. a fala deliberada e articulada em linguagem (o máximo do significado) (SCHAFER. entre seu corpo e a língua. o discurso verbal não prescinde destes elementos musicais para complementar ou reforçar expressivamente 221 . p. outras fontes lhe fogem . modalidade de canção que mistura o canto. ela representa uma espécie de ponte entre corpo e linguagem. A voz desempenha um papel essencial no desenvolvimento da noção de Eu. não podemos falar de uma separação entre som e significado.102). Nesse sentido. a resignação e a constatação implicam no movimento melódico descendente. A contenção desses modos em um campo expressivo mínimo. 2010. Este trajeto pode ser interpretado como uma passagem. evidentemente) o ser humano vai construir seu estatuto de sujeito. a fala e o movimento corporal em síntese harmoniosa e eficaz: A canção é realizada em sua plenitude apenas pela voz da mãe. de uma forma simples e curta que induz ao estado de sonolência (VAZ. Reznikoff é o ouvido. C. Esta gradação não implica um caminho sem volta do som à linguagem. determinado pela dinâmica simbólica da linguagem.. associa a forma do acalanto entoado pela voz materna ao “sentimento oceânico” considerado por Freud a base da religiosidade humana. introduzindo fenômenos sonoros especificamente humanos. de outro. pois é sensível à expressividade da enunciação” (VALENTE. a prática nos mostra que esta separação é reducionista e esconde mecanismos mais complexos na utilização da voz pelo ser humano. produzindo sons com certo modo de emissão (canto) e intenção (fala) e usando os braços (movimento) para imprimir um balanço ao corpo da criança. Um meio de expressão que ultrapassa o utilitarismo da comunicação para inscrever-se também como ferramenta de tradução do indizível: a voz. representado pela Canção.110). a voz desempenha um papel central que conjuga elementos de naturezas diversas (música. em busca de uma abordagem psicanalítica da voz. p. Belo Horizonte. p. ignorante de uma dada língua. p. definidos como “traços entoativos localizáveis em determinados pontos do discurso. 2007. ou evolução. canalizando sua força expressiva para uma finalidade específica. onde há uma clara prevalência do som. 1999. de um uso “natural” da voz. p. 1976.19). Por mais elaborado que seja. a voz vai lhe suceder. ou alturas (melodia). reagindo a diversos estímulos. quando percebe as diferentes frequências sonoras (alturas).entre as quais se destaca a mais desejada de todas. Ela se encarna em um ‘discurso vivo’. como as vibrações harmônicas. exclamação e surpresa determinam o movimento melódico ascendente.FALBO. ao passo que. perdida logo após o nascimento.. sem que guardem entre si qualquer relação hierárquica. Assim. Música das palavras: som. pois ela é resultado de uma descarga motora. Marie-France Castarède posiciona a voz como agente mediador entre o corpo e a linguagem no processo de formação do sujeito: Se o grito é a primeira expressão afetiva.] A voz é mediação. A voz desempenha funções determinantes em situações que envolvem o bebê desde muito cedo na vida humana. Per Musi. Aprende gradativamente a fazê-lo. n. ao contrário do que se tem afirmado até agora” (VALENTE. e quase que hipnótica. A fala levada pela voz é diferente do pensamento. p. linguagem verbal e movimento). o seio da mãe -. Assim escreve Freud: Uma criança recém-nascida ainda não distingue seu ego do mundo externo como fonte das sensações que fluem sobre ela. O grito do recém-nascido representa bem mais que um sinal de descontentamento ou protesto. A partir dos processos descritos por Freud. codificada. Entretanto. Esta capacidade agregadora da voz é de extrema importância para a análise da canção e de sua performance. pelo contrário.. É nessa medida que um ouvinte. convencional. e não o olho. poderem provê-la de sensações a qualquer momento. Do grito à fala articulada em linguagem. embalando-a até adormecer. A cantora e psicanalista Marie-France Castarède. que constrói a noção de espaço no ser humano.. 1999. que posteriormente identificará como sendo seus próprios órgãos corporais. o acalanto seria paradigmático como restituidor da sensação de plenitude do bebê no ambiente do útero materno. V. Toda linguagem verbal tem uma musicalidade própria. só reaparecendo como resultado de seus gritos de socorro (FREUD. 1992. mas com a voz do outro. como veremos mais adiante. O pesquisador Gil nuno Vaz cita o exemplo do acalanto.218-231.84). para retomar a expressão de André Green. de diferentes maneiras em diferentes contextos sociais. R. Por meio da voz (e da escuta.134). Ela é mediadora entre o corpo e a linguagem [. o longo e complexo percurso da voz acompanhará o desenvolvimento do sujeito e sua transmutação em um ser capaz de manipular relações simbólicas por meio da linguagem. serve à repetição contínua. p. Falar de viva voz ao outro é se descarregar (CASTARÈDE. significado e signo Podemos pensar o caminho do som ao significado como uma série de “estágios” que levariam o ser humano da vocalidade pura do bebê (a princípio. é capaz de captar algo da mensagem comunicativa. que vai possibilitar sua interação com o Outro. A articulação das palavras e seus significados na fala revela elementos essencialmente musicais como o ritmo e a variação das frequências sonoras. Percebemos que. ele assinala a descoberta de um novo meio de expressão que passará a ser utilizado de maneira cada vez mais deliberada e articulada pelo indivíduo. pois esta resiste em assumir uma forma fixa.. Per Musi. dá ao som final um proto-sentido. aplicar a este caso a já mencionada gradação proposta por Schafer para relacionar os pólos ideais da entoação (voz falada) e do canto (utilização musical da voz). extremamente ricos em articulação sonora. ou como “língua segunda”. o orifício estreito da glote. que vai sendo paulatinamente modificada a partir da difusão da linguagem escrita e. tendendo a ser constantemente transformada a cada performance. Podemos. as esponjas dos pulmões. mais especificamente vocal: O signo vem marcado. Mesmo em uma sofisticada exposição oral. p. p. já se travou. em um impresso). os signos da linguagem escrita estão profundamente ligados à sua origem sonora. Ao analisar os hábitos de escrita e leitura durante a Idade 222 Média na Europa. Conforme Bosi. mas não prescinde desta. percebendo que existem igualmente várias gradações de mistura entre eles e que uma separação completa seria impossível. uma luta sinuosa do ar contra as paredes elásticas do diafragma. O som do signo guarda. o longo período de coexistência entre os universos oral e escrito é marcado por uma preponderância do primeiro sobre o segundo.36). ainda podemos ouvir pulsar ritmos e sons que remontam àqueles primeiros balbucios do bebê. mais tarde. Quando se transcreve um texto desta índole em um manuscrito (ou. tendem a ser insuficientes para a compreensão da totalidade dos seus significados. Neste contexto. O signo é a forma da expressão de que o som do corpo foi potência. então. em um momento e lugar dados. naquele contexto histórico e social. é fruto de vários séculos de transformações dos hábitos sociais ligados à transmissão da palavra. A força da ligação entre som e linguagem pode ser observada também na linguagem escrita.seja ou não oral em seu modo de composição. o pesquisador Walter J. A leitura. a escrita sempre se colocava como serva da voz. Entretanto. como é praticada na sociedade contemporânea. é uma atividade solitária e silenciosa na qual é ressaltado o aspecto visual da percepção sensorial. nos levam a uma maior consciência do aspecto originariamente sonoro da palavra. orgânico e latente. Sua pesquisa. O acento que os latinos chamavam anima vocis. Desta maneira. 2010. 2008. Alfredo BOSI chama atenção para o som no signo linguístico5 lembrando a célebre expressão de Ferdinand de Saussure. a palavra escrita não pode ser compreendida de outra forma senão como sucedâneo da fala e/ou canto (FRENK. que se pronunciou em certa ocasião e que difere mais ou menos das pronunciadas em outras ocasiões (FRENK. p. a válvula do véu palatino que dá passagem às fossas nasais ou à boca. Ong demonstrou que as diferenças entre os domínios da oralidade e da escrita eram muito mais profundas do que se . a não ser nos casos em que há uma incapacidade fisiológica que afeta a audição e impõe a necessidade de substituir os estímulos sonoros pelos visuais e táteis. pelo escavamento do corpo. já que os textos eram escritos para serem lidos em voz alta (ou oralizados) para uma outra pessoa ou grupo de pessoas. a pesquisadora Margit Frenk conclui que. R. 2005. Podemos dizer que o desenvolvimento da linguagem escrita acontece paralelamente ou posteriormente ao desenvolvimento linguístico da vocalidade humana. é produzido por um mecanismo profundo que tem sede em movimentos abdominais do diafragma. com o advento da imprensa. coração da palavra e matéria-prima do ritmo. Seja para posterior oralização ou para registro de uma performance oral ocorrida em determinada ocasião. estado virtual. (BOSI. onde percebemos a presença do som na palavra enquanto signo visual.. Os registros escritos da canção (a simples transcrição da letra ou a letra acompanhada da partitura com a melodia). quando este referiu-se à linguagem humana como “pensamento-som”. Entretanto. versão efêmera. A leitura tal como a praticamos contemporaneamente. V. feito de aberturas e aperturas. ou seja. a palavra escrita nunca deixou de estar intimamente ligada à voz e à possibilidade de sua transformação em sons por meio da leitura em voz alta. A pesquisadora ressalta a característica de mobilidade que possuem os textos dentro de uma tradição oral: Por sua indissolúvel ligação com a memória e com a performance. Quando o signo consegue vir à luz. e demandam sempre a observação da performance propriamente dita como forma de suprir as limitações da linguagem escrita. em um papel .16-17). o tubo anelado e viloso da traqueia. os conteúdos que quer veicular. além disso. mas um texto que a cada vez vai modificando-se.se encontra em contínuo movimento. o calor e o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo.52-53).218-231.22. Este ponto será desenvolvido mais adiante. mas ainda não adaptados (ou reduzidos) ao sistema simbólico da linguagem.FALBO. não poderiam ser concebidos de forma independente das manifestações orais. O percurso. Belo Horizonte. onde topará ainda com a massa móvel e víscida da língua e as fronteiras duras dos dentes ou brandas dos lábios. C. p. em toda sua laboriosa gestação. fruto da disseminação da linguagem escrita no mundo ocidental. leitura solitária (ou privada) e silenciosa. Este é um dos motivos pelos quais a linguagem escrita tende a ser vista como separada do universo sonoro das manifestações da voz. a voz é responsável por inscrever o corpo no signo linguístico. Um exemplo que pode ajudar a compreender melhor esta ligação entre som e signo diz respeito ao desenvolvimento da leitura no mundo ocidental. 2005. mais tarde. toda literatura vocalizada . pois era de praxe que os textos fossem lidos em voz alta mesmo quando o leitor o fazia de forma solitária. as dobras retesadas da laringe (as cordas vocais). percebemos que os textos escritos. Não há texto fixo. completamente articulado e audível. As observações de Frenk sobre os “textos em movimento” também podem ser estendidas ao universo da canção. o que se registra é apenas uma versão. Em conhecido estudo originalmente publicado em 1982. n. esteja ou não registrada. e mesmo a leitura individual não se confundia com leitura silenciosa. alicerçada em fartas referências documentais e literárias. nos permite perceber o processo de transformação de uma cultura essencialmente oral. pronto a ser trabalhado pelo ser humano na sua busca de significar. apesar de estabelecerem variadas relações com a palavra falada e/ou cantada. na sua aérea e ondulante matéria. As reflexões sobre o desenvolvimento da leitura. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . nos antros e labirintos do corpo. dos brônquios e bronquíolos. na já citada expressão de Paul Zumthor. 4. ele observa algumas características psicodinâmicas que diferenciam radicalmente os processos de comunicação nos universos da oralidade e da escrita. a canção não é um objeto de fácil definição: 223 . p.. afeta diretamente o próprio estilo do texto pode ser citada como exemplo de um elemento que era rejeitado como contingencial e secundário em relação à palavra escrita. ou mais especificamente. escapou dessas associações: os gêneros eruditos mediados pela notação musical (FINNEGAN. Conforme o pesquisador. mas também nos oferece uma ferramenta valiosa para rever o modo como enxergamos nossa própria produção escrita. como aponta Gil Nuno Vaz. O “escritocentrismo”7 da sociedade ocidental contemporânea coloca o texto escrito em uma posição de destaque. Os reflexos deste movimento foram sentidos de maneira bastante intensa no âmbito acadêmico: no campo dos estudos literários.FALBO. este foco no aspecto textual das canções está relacionado com uma tendência recorrente no pensamento ocidental em identificar o aspecto intelectual do humano com a linguagem.. Belo Horizonte.22. mas sobretudo nas maneiras de estruturar o pensamento e a consciência da realidade por meio da linguagem. A escrita na civilização ocidental contemporânea (incluindo suas formas impressa e eletrônica) encontra-se completamente interiorizada nos indivíduos por seu amplo e corrente uso: nas expressões de Ong. Percebemos aqui o poder normalizador da escrita. mas nenhum outro campo sensório resiste deste modo à ação suspensa.apenas silêncio. Ong inicia um exame da influência que elas exercem na percepção sensorial e na transmissão de mensagens vocais. Conforme a pesquisadora.. Ao analisar características de culturas marcadas pelo que ele denominou “oralidade primária” (grupos de indivíduos totalmente não familiarizados com a escrita). consideradas durante muito tempo inferiores às formas de expressão escrita. Esta percepção não apenas modifica a maneira como encaramos a produção artística e intelectual de sociedades orais. n.218-231. identificado por ele como “poder e ação” dadas suas características intrinsecamente dinâmicas: O som existe apenas quando está deixando de existir. p. a performance musical representa o aspecto sensório.é ela que pode ser isolada para análise e transmissão” (FINNEGAN. C. incontrolável e até perigoso da natureza humana (especialmente. A predominância do texto escrito na análise acadêmica da canção é percebida pela antropóloga Ruth Finnegan. não permitiriam a transmissão das ideias com a mesma sofisticação proporcionada pela escrita. A percepção de que oralidade e escrita influenciam de formas diferentes o pensamento e a expressão possibilita uma visão histórica.] Não há meio de parar o som e ter som. mapeando os modos segundo os quais se estrutura a comunicação baseada na palavra oralizada 6. a atenção exclusiva ao texto escrito fazia com que se ignorasse toda uma produção poética que não estava baseada nesta forma de transmissão. mas essencialmente evanescente. música e performance O exame da canção como forma expressiva é útil quando analisamos as maneiras pelas quais a voz é utilizada para a produção de significados. do nosso modo de expressão centrado na escrita.. dominando os elementos não-verbais e reduzindo-os a uma linguagem passível de ser convenientemente transmitida e analisada nos meios acadêmicos. suspeitava até então.21). e esta tecnologia foi responsável por uma reestruturação tão profunda da consciência humana. “tipográfica” (baseada na imprensa). apesar de escaparem ao registro escrito. A escrita passa a ser encarada como uma ferramenta legitimadora das ideias. Porém. no entanto. 2010. absolutamente nenhum som. portanto crítica. quando ela diz que “não é de surpreender que a palavra escrita ou passível de ser escrita tenha com tanta frequência tido lugar central no estudo das canções . A partir da constatação destas características particulares do som. em oposição ao aspecto emocional que estaria identificado com elementos não-verbais: Nesta visão. eram essenciais para a satisfatória compreensão dos significados da obra. trata-se de uma sociedade de mentalidade “quirográfica” (baseada na escrita). Se eu parar o movimento do som. Per Musi. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . sendo identificada com a modernidade e com o valor da produção artística e intelectual assim veiculada. não é possível traçar entre eles uma divisão hierárquica. p. Este movimento de valorização da escrita teve como contrapartida o desprezo pelas formas orais de expressão. R. Além disso. por exemplo. entre outros motivos alegados. e é sentido como evanescente [. 2008. V..] Alguma música. Toda sensação acontece no tempo. Posso parar uma câmera de filme e deter uma imagem fixada na tela. Não é simplesmente perecível. 1999.19). é claro. Tripla perspectiva analítica: texto. hoje sabemos. Um dos pontos de maior relevância no trabalho de Walter Ong é justamente chamar atenção para o fato de que a expressão de base oral não pode ser analisada de acordo com critérios provenientes de um pensamento de base letrada: dadas as diferenças intrínsecas de cada modo de consciência e estruturação da expressão. Ong conclui que a escrita é uma forma de tecnologia ligada à palavra. as análises “escritocêntricas” tendiam a desconsiderar alguns aspectos de determinados textos literários que.32). as diferenças entre o pensamento de base oral e escrita têm suas raízes na própria natureza do som. pois. O clássico estudo de Paul Zumthor sobre “literatura” medieval8 é um exemplo de como o papel central conferido pela academia ao texto escrito impedia a satisfatória compreensão das manifestações poéticas deste período histórico. tanto linguísticos quanto musicais. nada terei . não apenas no que diz respeito ao aspecto formal das mensagens. 2008. p. A transmissão oral que acontece com a performance e que. que tornou especialmente difícil para os indivíduos letrados contemporâneos a compreensão do modo de pensamento das sociedades de base oral. quando manifestado na música popular ou não-ocidental) [.. à estabilização (ONG. Para Luiz Tatit. Grifo do autor). podemos encontrar poemas que foram posteriormente musicados. por meio da realização de uma “escritura cantada da língua” (BARTHES. a significância que ele abre não se pode definir mais precisamente que pela própria fricção da música e de outra coisa. dada a simultaneidade de sua expressão. Por não ser apenas texto. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas .seu timbre. as análises puramente literárias ou estritamente musicais da canção acabam por não considerá-la em sua plenitude e riqueza de significados. é entendida como a reunião de letra e música em uma forma simples. nem apenas música. inspiraram a composição de uma letra. A canção. p. ou letra) e musicais (a melodia e o acompanhamento instrumental) não quer dizer necessariamente que ela seja uma forma simples de superposição de linguagens.242). não se considera músico nem poeta. 2010.. ambas veiculadas simultaneamente pela voz. mesmo sem a letra. ou ainda melhor.] Fazendo-se uma compilação de diversas definições de canções. o binômio ‘letra e música’ deixa margem para alguns questionamentos. em toda sua multiplicidade e mutabilidade. mistura um pouco de tudo e não encontra muita orientação para sua atividade criativa nem nos conservatórios nem nos cursos de letras. basta escutar versões de uma mesma canção executadas por diferentes intérpretes (os exemplos se multiplicam na proporção direta da popularidade da canção escolhida): em muitos casos é simples perceber como os significados da canção podem ser completamente alterados pelas qualidades vocais (inclusive qualidades idiossincráticas) de cada intérprete . escreve: Estou pensando No mistério das letras de música Tão frágeis quando escritas Tão fortes quando cantadas Por exemplo ‘nenhuma dor’ (é preciso reouvir) Parece banal escrita Mas é visceral cantada A palavra cantada Não é a palavra falada Nem a palavra escrita A altura a intensidade a duração a posição Da palavra no espaço musical A voz e o mood mudam tudo A palavra-canto É outra coisa (CAMPOS. Per Musi. o que pede uma abordagem analítica específica.237).. V. ela tende a ser retransformada por quem canta a cada nova interpretação. modificando seus significados originários e criando uma nova forma de linguagem. escreva (BARTHES. contudo. O fato de podermos diferenciar na canção componentes verbais (o texto. de maneira alguma restrito à linguagem escrita. Podemos traçar um paralelo entre o texto de Augusto de Campos e o que Roland Barthes chamou de “grão da voz”. É preciso que o canto fale.241-242. É verdade que.precisamente “a voz e o mood” mencionados por Augusto de Campos em seu já citado poema-prefácio. não necessariamente sujeita às dinâmicas de funcionamento das linguagens que foram conjugadas para criá-la. que nem sempre coincidem com os parâmetros utilizados por poetas e músicos em sua atividade criativa. no poema-prefácio que escreveu para o livro Os últimos dias de paupéria. já que as canções são geralmente refratárias a um padrão único de execução (TATIT. no senso comum. quando o autor utiliza as palavras “escrever” e “escritura”. Afinal. 224 p. Esta característica se reflete na dificuldade em registrar as canções sob forma escrita: cada forma de notação deixa de fora algum elemento importante para a compreensão dos significados da canção. trabalho..ou não é apenas .218-231. 2007.. p. ou ainda melodias compostas inicialmente como temas instrumentais que. n. C. E muitos poemas são denominados canções. mas que não tiveram originalmente nenhuma intenção musical por parte do autor. Voltando ao já citado exemplo das várias versões de uma mesma canção. Barthes compreende a voz na canção (sobretudo na canção erudita) como elemento produtor de significados que ultrapassam a simples veiculação musical da língua para representar a materialidade de um corpo que fala/canta: O ‘grão’ da voz não é . o faz de acordo com o conceito amplo de texto tal como concebido pela semiótica. podemos encontrar casos em que a canção é registrada da mesma maneira (por exemplo. Dadas estas peculiaridades formais. Essa noção generalizada decorre da importância que elas detêm no processo de criação artística [. Obviamente. ainda que as palavras não sejam cantadas com qualquer melodia [. em alguns casos. 1982. reza / (8) de âmbito erudito ou popular (VAZ. como dança. inclusive no que diz respeito ao registro escrito de suas composições... os elementos verbais e musicais presentes na canção afetam-se mutuamente. 2007. 1982. dadas as especificidades de seu processo de criação. o cancionista (maneira pela qual ele faz referência ao compositor de canções ou compositor popular). R. ao escrever sobre determinados gêneros da música cantada nos quais “uma língua encontra uma voz” (BARTHES. Em todo caso. 2005). Como a canção é tomada pelo domínio da voz. uma partitura com a melodia . Belo Horizonte. expressões como ‘canção instrumental’ ou ‘canção sem palavras’ são usadas costumeiramente quando uma composição musical é sentida e referida como tal.11-13). que é a língua (e de forma alguma a mensagem). é possível reunir oito elementos ligados a ela com maior frequência: (1) o canto / (2) de um texto poético / (3) geralmente acompanhado por um instrumento / (4) dentro de uma determinada forma musical / (5) de duração geralmente breve / (6) com certa interação entre música e poesia / (7) relacionado com diversos contextos.FALBO. a composição de canções no âmbito da música popular segue parâmetros próprios. Podemos dizer que o “grão da voz” foi a forma que Barthes encontrou para pensar o modo específico por meio do qual a canção produz seus significados. p. p. Temos na canção uma mensagem linguística e uma mensagem musical.] Quando se fala do significado de uma canção. 1982. acontece que a voz não é capaz de veicular esta mensagem complexa sem transformá-la por meio da materialidade do corpo do emissor (o cantor ou intérprete). Todos os componentes da canção complementam-se para construir seus significados.22. acalanto. Augusto de Campos. mais tarde. p.100-101) 9. Para compreender o alcance das palavras de Barthes. de Torquato Neto. n. apontando para uma pluralidade de significados e acepções da palavra (HOUAISS. O pesquisador afirma que a performance é uma atividade de natureza essencialmente cênica. as artes) a complexidade conceitual permanece.incluindo eventos que frequentemente também são chamados de ‘arte-performace’ ou até ‘teatro de performance’. este trecho nos fornece mais um caso de emprego da palavra “performance” como modalidade de expressão artística diversa do teatro.) só que não se compondo de uma forma harmônica. mas um gênero específico de arte. apontando suas ligações com um movimento maior. destaca como ontologia da performance a aproximação entre vida e arte. musicais e subjetivos.71). p. de fato. o termo “performance” é utilizado para identificar não a atividade genérica de apresentação de um trabalho artístico. Belo Horizonte. por meio do qual a necessidade de uma abordagem específica da canção pode ser mais bem compreendida. Desta maneira. tirando-a de sua função meramente estética. 2010. este último parece tautológico. formare: formar. galerias.. vai se buscar. tirando-a de ‘espaços mortos’.38). A live art é um movimento de ruptura que visa dessacralizar a arte. denominação que começou a ser utilizada no Reino Unido em meados dos anos 1980 para designar um novo modo de encarar a arte. esse processo de uso de várias linguagens é harmônico [. Esse movimento é dialético.] Na performance [. Sob esta denominação encontra-se um amplo espectro de manifestações artísticas. chama atenção para exemplos contemporâneos desta complexidade. Além de fazer referência à performance na acepção já citada de apresentação artística (citando a expressão “arte de performance” que poderia ser aplicada ao teatro. C.FALBO. Entretanto. Sobre os conceitos de Performance A etimologia da palavra “performance” remete a uma ação por meio da qual se atribui uma forma a alguma coisa ou se revela a forma de algo (do latim. p. é simples perceber que esta expressão engloba uma imensa variedade de manifestações expressivas. 5.22. ou seja. ao perceber a diferenciação dos usos do termo no âmbito da imprensa ligada às artes e espetáculos: O The New York Times e o Village Voice [jornais norte-americanos de grande circulação] ambos agora incluem uma categoria especial de ‘performance’ . linear. uma apresentação artística. No caso da arte-performance. e a letra. É uma forma de se ver a arte em que se procura uma aproximação direta com a vida.. sendo o teatro. a ritualização de atos comuns da vida (COHEN. Para muitos. Marvin Carlson. O pesquisador Renato Cohen. uma das ‘artes de performance’. dar forma a). Mesmo quando direcionamos o foco para uma área específica do conhecimento (em nosso caso. Estas observações nos levam ao conceito de performance. O dicionário também nos oferece sinônimos como “interpretação”. teatro. esportes. por exemplo). Afinal. o happening: A live art é a arte ao vivo. Cohen chama atenção para o posicionamento da performance como “arte de fronteira”.50).. com antecedentes históricos que remontam a experiências análogas no campo das artes plásticas e do teatro10. em pesquisa dedicada a este gênero. não necessariamente de natureza artística (a performance de um atleta. física aplicada etc. o que fica de fora do registro escrito é essencial para a canção. do ensaiado. inatingível. incluindo expressões como. não podendo ser considerado elemento contingencial ou secundário. como museus. o natural. já que em dias mais simples considerava-se que todo teatro estava envolvido com performance. Esta diversidade de utilizações do termo implica esforços específicos no sentido de buscar conceitos de performance adequados aos respectivos contextos dentro do quais serão utilizados (artes. teatros. se tira a arte de uma posição sacra. eventos específicos de música ou dança) de uma ‘performance’ (CARLSON. A chamada arte-performance. ou apenas performance. dança. modificadora. da dança e do cinema. para este fim..) e refratária a definições e categorizações. e colocando-a numa posição ‘viva’. p. p. V. dança e filmes .. o autor ressalta que “a ideia de interdisciplina como caminho para uma arte total aparece na performance como uma espécie de reversão à proposta de Gesamtkunstwerk de Wagner. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . 2007.] utiliza-se uma fusão de linguagens (dança. além das indicações para o acompanhamento instrumental) e ser cantada de maneiras completamente opostas por seus intérpretes. a performance de um estudante em um teste). pintura etc. mas também a arte viva. em que se estimula o espontâneo. Este uso em grande parte ainda está conosco. aglutinando inúmeras linguagens artísticas (teatro. extremamente difícil de ser agrupado segundo características comuns. de um lado. O processo de composição das linguagens se dá por justaposição. colagem” (COHEN. de outro. dança ou música). pois na medida em que. dadas suas atitudes experimentais no sentido de romper convenções. Diferentemente do que ocorre com a música (no caso de uma peça instrumental) e com a poesia. Também é interessante falar sobre como a academia tem se comportado no sentido de desenvolver ferramentas analíticas que contemplassem a imensa variedade de produções artísticas reunidas sob o termo 225 . Per Musi. é apenas com a performance (modo pelo qual acontece a execução da canção) que acontecerá a expressão plena de seus conteúdos linguísticos. em detrimento do elaborado. chamado live art. 2007. por exemplo. A ideia é resgatar a característica ritual da arte. podemos empregar o termo “performance” para fazer referência a uma apresentação artística (a performance de um músico/bailarino/ator) ou para caracterizar o desempenho de um indivíduo na realização de determinada tarefa.separada de teatro. como também está a prática de chamar qualquer evento teatral específico (ou.. R. Na concepção da ópera wagneriana. identificada pela expressão “arte-performance” (performance art na expressão original inglesa) ou simplesmente “performance”. Examinando com mais atenção o primeiro exemplo dado por nós para as utilizações da palavra “performance”. vídeo etc.218-231. em texto originalmente publicado em 1996. “atuação” e “desempenho”. 2008. estilista. tem raízes tanto no teatro quanto nas artes plásticas. 2007).). O mesmo termo pode ser aplicado até mesmo quando nos referimos a uma ação não-humana (a performance de uma máquina ou de um carro. sociais e culturais” (SCHECHNER. auxiliando as práticas etnográficas voltadas para culturas não-familiarizadas com a lin- Preliminarmente. que aglutina várias linguagens sem se identificar especificamente com nenhuma delas) ou como apresentação artística (atividade essencialmente efêmera. que teriam apenas a aparência de declarações ou afirmações. 2008. cantos. A liminaridade é frequentemente destacada como uma caracterísica da performance. a saber. Entre estas elocuções (utterances). é. C. reformulando os programas de estudo das universidades norte-americanas e permitindo o surgimento do que contemporaneamente se denomina performance studies.). Como exemplos situados fora do âmbito das artes de performance. tendo em vista seu direcionamento para a análise teórica da canção. Belo Horizonte. Conforme Turner. mas como meio de entender processos históricos. em vez de realizar [to perform] uma ação diferente. p. Per Musi. é chegado o momento de definir a abordagem que utilizaremos na presente pesquisa. Ao mesmo tempo em que a ordem social é temporariamente suspensa para estes indivíduos. do contrário irá desmoronar. A questão da performance de fato tem sido estudada sob diferentes pontos de vista. V. aponta para a característica da “liminaridade” (liminality na expressão original inglesa. Em seus escritos. homogeneidade/diferenciação. da qual estas palavras são meramente o signo externo e audível (AUSTIN. o autor dá o exemplo da frase “Eu aceito” dita no curso de uma cerimônia de casamento: 226 guagem escrita. o ato de apostar. A performance também tem ocupado um lugar central no campo das ciências sociais.. Neste sentido. AUSTIN fala sobre certas elocuções. como parte do núcleo do currículo (SCHECHNER.] O pensamento performativo precisa ser visto como meio para análise cultural. 2008. ou centradas em manifestações orais e/ ou ritualizadas da palavra (recitações. 2008. Aqui poderíamos dizer que. capturada ou registrada de maneira eficaz). modernas e antigas. relacionada à presença do artista e do público em determinado espaçotempo. da mesma . ao comentar ritos de passagem de tribos africanas nos quais certos indivíduos são submetidos a um período de isolamento para posteriormente serem devolvidos ao convívio social. Também no campo dos Estudos Culturais ou Teoria Cultural a noção de performance (utilizada sob as denominações performance cultural ou intercultural) vem sendo utilizada como paradigma no entendimento de processos ligados à construção de identidades dentro dos contextos (multi/inter/trans)culturais contemporâneos. como. estudá-la não apenas como arte. pois esta condição e estas pessoas eludem ou escorregam através da rede de classificações que normalmente localizam estados e posições no espaço cultural” (TURNER. “A alternativa feliz é expandir nossa visão do que é performance. dentro da qual estaria compreendida a noção clássica de teatro). O trabalho de Victor Turner com as tribos africanas gerou outras importantes contribuições à performance como paradigma teórico. podemos entender a performance como a atividade complexa que ocorre no momento da execução de um texto (tomando o termo no sentido de mensagem poética. ao menos preferivelmente (embora ainda não precisamente) descrito como dizer certas palavras. casando.a saber.8).9). No caso da linguística. sobretudo no que diz respeito ao conceito de “drama social” que extrapolou os limites da etnografia para alcançar uma aplicação muito mais ampla dentro do panorama das ciências sociais. Conforme Schechner. estamos fazendo alguma coisa . p.. tornando-os completamente despossuídos (inclusive de sua identidade). L. não-ocidentais e euro-americanas. digamos. 2008. 2010. O antropólogo Victor Turner. “performance”. o eixo central de seu trabalho esteve na consideração de que a fala é uma forma de ação.89). podemos citar a linguística e a antropologia como campos em que a performance tem sido utilizada como paradigma teórico. Austin representam um divisor de águas: conhecido por seu conceito de “atos de fala” (speech acts). Uma vez traçadas as linhas gerais da evolução dos conceitos de performance e de sua utilização por parte de algumas áreas do conhecimento acadêmico. não necessariamente escrita).22. p.. departamentos de dança e teatro deveriam desenvolver cursos que mostrassem como a performance é um paradigmachave em muitas culturas. são pioneiras as ideias de Richard Schechner no sentido de propor um “novo paradigma” que deslocava o foco do teatro para a performance (considerada uma categoria mais ampla. em diferentes áreas acadêmicas. seja quando consideramos a performance como gênero artístico (a “arte de fronteira”. E o ato de casar-se. p. R.. Inicialmente o conceito foi utilizado na antropologia. ao dizer estas palavras. cerimônias etc. A abordagem proposta por Schechner tornou-se conhecida como Broad Spectrum Approach (abordagem de amplo espectro) definida pelo foco transdisciplinar na performance: Em vez de treinar profissionais da performance não-empregáveis. forma-se entre eles um profundo senso de igualdade que vai além da solidariedade entre membros de uma mesma sociedade. Grifos do autor). interna e espiritual. p. que estamos casando.FALBO. é importante na dialética social de igualdade/desigualdade. que não pode ser repetida e dificilmente pode ser reproduzida.177. do latim limen = limiar) que este isolamento confere aos indivíduos enquanto estão passando pelo rito.218-231. o estado liminar responsável pelo senso de igualdade (que ele chama de communitas) entre os indivíduos submetidos ao rito. a tradição ocidental do teatro e dança (tanto do ponto de vista do estudo acadêmico como da formação de profissionais) precisa ser repensada tendo como referência a performance. as ideias de J. que qualifica como “performativas”. em vez de declarar alguma coisa. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . Escreve Turner que “os atributos da liminaridade ou das personas liminares (pessoas-limiar) são necessariamente ambíguos. Matérias de estudos de performance precisam ser ensinadas fora dos departamentos de artes de performance. n. [. A diferença é que a “obra”. são acrescentados à palavra escrita uma série de elementos que potencializam e complementam seu conteúdo expressivo. à semelhança da encenação. V. “o meio e o modo” pelos quais ocorre a performance. A ironia presente no fato de Barthes e Zumthor utilizarem palavras trocadas para denominar ideias semelhantes é facilmente compreendida se levarmos em conta a diferença entre as perspectivas teóricas adotadas por cada um: Barthes toma o texto escrito como ponto de partida e de chegada. Em um de seus livros mais conhecidos. ou não. 2007. já que as condições de cada performance não são estáticas e podem chegar a modificar os significados do próprio texto. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . 1984). para Barthes.22. A letra e a voz (1993). ritmos. no sentido de que o texto apenas alcança a plenitude de seus significados quando.está muito aquém do que ele prefere chamar simplesmente de “poesia”. O importante papel desempenhado por elementos como a voz e a música na construção dos significados desta “literatura” levou-o a propor uma divisão entre “texto” e “obra”: o primeiro seria uma “sequência linguística que tende ao fechamento. à leitura silenciosa e individual e a uma cultura livresca . Introduzir nos estudos literários a consideração das percepções sensoriais. Podemos retomar a ideia já citada de Fayga Ostrower para dizer que o corpo é.FALBO. e seria identificada por ele através da expressão “texto poético” (não necessariamente escrito). o diálogo entre as formulações revela uma preocupação comum em pensar a literatura como algo que escapa a conceitos e fórmulas teóricas fechadas. 2010. WORTHEN (2008). permitindo assim a ampliação de seu campo de referência (ZUMTHOR. certas características gerais são mantidas. aqui e agora . enquanto o segundo estaria mais diretamente ligado à intertextualidade (relacionado ao conceito de “texto”). com efeito. p. que transborda o que está registrado na forma escrita ao se desdobrar em outros elementos relevantes para a análise da construção dos significados. como figurinos. outros elementos visuais ligados ao corpo. Tanto o exemplo da música como do teatro ilustram bem a pluralidade deste texto. 1993. A presença do artista remete a uma característica teatral da performance. 2007. o termo compreende a totalidade dos fatores da performance” (ZUMTHOR. No caso da canção. com os meios pelos 227 . “o que é poeticamente comunicado. Este ensaio de Barthes é comentado pelo pesquisador W.220). já que esta recepção pode acontecer repetidas vezes sem que seja percebida como redundante pelo ouvinte. seria fechada em si mesma. o artista vai “dar forma” ao texto e transmiti-lo ao público num só ato.27). De saída. nas indicações escritas de uma partitura. Per Musi. Worthen procura repensar oposições relativas à textualidade e à performance. que propiciaria a recepção por parte do público.ligada ao texto escrito. literatura versus teatro. Apesar disso.65). dos gestos ou de expressões faciais (e. preservando a identidade do texto sem com isso tornálo fechado às interferências ambientais de cada situação performática (ZUMTHOR. Nas palavras de Paul Zumthor. estas oposições simples têm menos a ver com a relação entre escrita e atuação do que com poder. maquiagem etc. adereços.).. um primeiro elemento que se apresenta na estrutura da performance é a presença do intérprete: através do corpo e de sua expressão viva por meio da voz. enquanto Zumthor parte deste mesmo texto para ir além do que está escrito e examinar as manifestações expressivas da voz humana. de um corpo vivo. podemos encarar o exemplo da partitura musical. C. é necessário. no qual BARTHES desenvolve conceitos semelhantes utilizando a mesma denominação mais tarde empregada por Zumthor. A “poesia” estaria. Barthes consegue diferenciar dois aspectos da textualidade frequentemente confundidos: o primeiro diz respeito ao papel dos textos como “veículos canônicos de intenção autoral” (aspecto relacionado ao conceito barthesiano de “obra”). p. ao mesmo tempo. Zumthor utiliza o termo “literatura” (entre aspas) como forma de sinalizar que a definição conteporânea de literatura . e a reiteração. a transmissão. sonoridades. coloca tanto um problema de método como de elocução crítica. É interessante notar que Paul Zumthor inicia suas investigações sobre a vocalidade11 a partir de estudos no campo da “literatura” medieval. originalmente publicado em 1971. R. n.. intimamente ligada à ideia de ritualidade ou performance. apontando para uma ideia mais ampla de manifestação poética da palavra.218-231. apontando para uma abertura conceitual que revela novos caminhos na análise das manifestações da palavra (seja escrita ou oralizada) e leva a dissecar definições tradicionais para reexaminar sua instrumentalidade teórica. que engloba outros elementos além da linguagem escrita. B. aberto e dinâmico. texto versus performance. eventualmente. Do mesmo modo. Para Worthen. e tal que o sentido global não é redutível à soma dos efeitos de sentidos particulares produzidos por seus sucessivos componentes” e a segunda. ressaltando o papel central da voz neste processo. que explora a relação entre textualidade e poder. forma como dizemos que um músico ou cantor executa uma peça musical quando este toca ou canta baseado. inserindo na discussão as relações de poder que permeiam estas questões: “Palco versus página. portanto. Zumthor distingue vários momentos na existência de um texto poético: a formação (criação ou composição do texto). Belo Horizonte. tendo em vista a multiplicidade e dinamismo das manifestações artísticas produzidas pelo ser humano. A possibilidade de reiteração do texto poético é extremamente relevante para o conceito de performance. entreabrir conceitos exageradamente voltados sobre eles mesmos em nossa tradição. enquanto o “texto” seria plural. p. assim.texto. p. Mesmo com estas diferenças. elementos visuais. Um paralelo com o pensamento de Roland Barthes pode ser interessante neste caso: lembramos o ensaio De l’oeuvre au texte (BARTHES. código escrito que necessita ser complementado pelo intérprete no momento da execução da peça. fundamentamos sua significância” (WORTHEN. p. 2008. na busca pela reintegração de linguagens corporais cada vez mais independentes e sofisticadas. não podendo se resumir a um ou outro aspecto formal da performance da canção. canto e movimento). à semelhança de Paul Zumthor. técnicas e midiáticas) que a tornam possível. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . de outro. sociológicas. 1984. O artista deve pensar globalmente as suas performances cênicas. 6. enunciado. e o conceito que permite essa análise é o de modo de comunicação cena/plateia – ou intérprete/público. a sua personalidade. C.21). sua energia de exclusão. por exemplo (VAZ. 2007. corporais e gestuais) que o mesmo mobiliza e à relação singular que estabelece com os públicos (MARCADET. mas que guardam entre si uma origem comum. Apesar desta modalidade de performance ainda persistir na sociedade ocidental contemporânea na forma de shows. por sua vez. as condições contextuais (históricas. a canção adaptou-se a inúmeras mudanças relativas aos suportes técnicos que utiliza. temos a presença simultânea do cantor e do(s) ouvinte(s) em um mesmo espaço e tempo como requisito essencial para a performance da canção. às personagens que representa. quais autorizamos a performance. apontam para uma compreensão mais ampla de “texto poético”. potentemente ajudadas pelos meios de comunicação de massa. tomando a palavra ao pé da letra. que convém analisar.12). Ao analisar alguns aspectos relativos à performance da canção. n. interação. pulsões do público e contexto.. enquanto a interpretação refere-se mais precisamente ao artista em cena. que marca a natureza e a intensidade da relação estabelecida entre os diferentes atores da performance.FALBO. personalidade. 228 O pesquisador Gil Nuno Vaz sublinha o papel central do corpo na estrutura básica da canção ao estudá-la como campo sistêmico. a concepção de “interpretação” desenvolvida por Marcadet muito se assemelha à ideia de “performance” tal como apresentada por Paul Zumthor. Segundo ele. pensar a performance da canção seria voltar ao início de um caminho expressivo. Aplicando estas reflexões sobre a performance à canção. percebe-se os efeitos de duas forças agindo sobre eles. p. 2008. p.11). V. no processo evolutivo.22. Para ele.25). tanto do ponto de vista da utilização do corpo como ferramenta artística/comunicativa como de sua capacidade de inserção social. dança e poesia) seriam formas derivadas da canção e não o contrário (ideia da canção como superposição de linguagens específicas). p. pois. A performance abrange um quadro mais amplo com o seu ambiente social e humano. até mesmo co-criação. sua censura?). aos meios artísticos (vocais. p. mito. Belo Horizonte. Disso decorrem novos campos de investigação: relações cantor/público e noções secundárias e flexíveis de participação. Sob esta perspectiva da canção como forma expressiva primitiva ou embrionária. p.13). já que este tenta se colocar exatamente atrás do limite da doxa (a opinião corrente constitutiva de nossas sociedades democráticas. Christian Marcadet chama atenção para a distinção conceitual entre “performance” e “interpretação”. é altamente provável que a canção tenha emergido. modos específicos de expressão ligados ao corpo (como música.. adesão. ensejando a criação de um mercado específico voltado para a sua produção e consumo. estabelecendo uma relação de comunicação com diversos públicos. poderíamos dizer que o Texto é sempre paradoxal (BARTHES. Entretanto. identificação. encontramos nesta forma expressiva um veículo complexo em termos formais. Como podemos perceber. vejamos: A interpretação das canções é por essência o cerne do que é fundamental na performance. a performance aproxima-se da dimensão dinâmica do “texto” barthesiano. ela já não é mais a única possibilidade de performance da canção desde que foram desenvolvi- . historicamente. como o acalanto. continua sendo fonte de prazer artístico e espaço de comunicação entre artistas e público. sempre pronta a absorver novidades e fazer uso delas a serviço da expressão artística do ser humano. 2007. “se de um lado a canção busca. Deste modo.74. A interpretação é fundamentalmente uma arte de síntese que combina encenação. intrusão. produz a fala (gesto verbal) e o canto (gesto musical). mercado e mídias Por ser extremamente versátil como forma de expressão artística. o que ocorre por meio de um exame atento das condições nas quais este texto será efetivamente performatizado. R. a gênese da canção estaria no movimento corporal: gestos que se desdobram em gestos sonoros. não é ela definida por seus limites. A performance da canção. p. Canção. Conforme o pesquisador. como os públicos aos quais seus espetáculos são destinados (MARCADET. Neste sentido. festivais e recitais. A performance induz uma relação entre um artista e uma audiência. ligada a uma visão orgânica e não compartimentalizada do corpo humano. As palavras de Marcadet. Esta abordagem é necessariamente transdisciplinar e abrangente. entre os quais o gesto vocal que. Grifos da autor). a atenção específica ao aspecto cênico que o termo “interpretação” quer denotar apenas complementa as ideias de Paul Zumthor sobre a performance e as situa no panorama específico da canção.218-231. ocorre uma ação desintegradora (força centrífuga) de cada um desses modos primitivos de manifestação corporal em busca de seu campo expressivo próprio” (VAZ. 2010. 2008. A canção é capaz de se adaptar a diversas formas do dizer poético e aos mais distintos suportes. É corrente de sentidos em atos como há corrente de lava. para cumprir uma função específica. atendendo a seu repertório. os meios artísticos aos quais recorre. além de altamente versátil. da necessidade de conjugar toda a potencialidade expressiva do corpo humano [. Partindo destes elementos essenciais da canção (fala.. Per Musi.. mantendo os traços de sua estrutura original ao mesmo tempo em que consegue absorver inúmeras inovações tecnológicas relativas tanto à atividade de composição e gravação como aos circuitos de divulgação artística e distribuição. Inicialmente. intensificar a conectividade entre seus elementos para garantir a continuidade sistêmica (força centrípeta). em um campo expressivo mínimo.] de modo mais autônomo possível. com todas as mudanças por que passou no último século. porém. as inovações técnicas relativas às mídias sonoras também criaram novos padrões estéticos para atender às demandas do mercado.. todos os sons eram originais. fitas e das rádios. como decisivo no desenvolvimento das tecnologias relativas ao som. por mínimo que seja. de maneira diversa. n.. o som não estava mais ligado ao seu ponto original no espaço. Na época da esquizofonia.218-231. a performance pode ser entendida como uma interação entre texto poético e leitor. Esta afirmação relaciona-se com as ideias de Zumthor sobre o que poderíamos chamar de graus de performaticidade presentes nos diversos textos poéticos. Belo Horizonte. 1994. daí a afinidade entre o pensamento Zumthor e as teorias literárias conhecidas como “estética da recepção”13.60). Eles ocorriam em apenas um tempo e espaço. p. essa performance se faz bastante diferente do que poderia ser qualquer forma de escrita (ZUMTHOR. no sentido que a entendo. A esquizofonia representa um importante divisor de águas para a performance da canção.89). ele foi libertado de seu ponto original no tempo” (SCHAFER. dadas as especificidades dos papéis atribuídos à canção dentro do panorama de uma sociedade que ela chama de “midiática”: Ao nos referirmos à canção das mídias. Desde estes primeiros tempos. pode ser amplificado e executado em todo o mundo. Nós separamos o som do produtor do som (SCHAFER. qualquer som. a canção das mídias atenderá a um público cuja sensibilidade cambiará mais rapidamente ao longo dos anos. o canadense Murray Schafer aponta o período do século XIX. que produzem os artistas 229 . estamos [. em relação aos séculos precedentes.] o que falta completamente. Vê-se um corpo. p. Per Musi. p. Sons eram indissoluvelmente ligados aos mecanismos que os produziam. cinema. televisão e vídeo-tape). C. Deste modo. canta. a indústria fonográfica já passou por inúmeras etapas na consolidação de um mercado específico voltado para a produção e consumo da canção. quase infalíveis. ou seja. Acrescente-se que.FALBO. por ele chamado de “revolução elétrica”. mas ainda pertinente em relação ao atual panorama da música popular. podemos afirmar que a canção das mídias segue as mesmas normas que definem a indústria do entretenimento (VALENTE. desempenhando uma atividade criativa que caminha lado a lado com o trabalho do artista. 2010. no entanto. está condicionado à esfera político-econômica das gravadoras.] Desde a invenção dos equipamentos eletroacústicos para transmissão e armazenamento do som. que propõe a denominação canção das mídias em substituição à corrente expressão canção popular ou canção pop. Em todos os casos.. graças à implantação de novas tecnologias do som e da imagem [. Para Paul Zumthor.. Luiz Tatit14 analisa o funcionamento deste mercado e alguns fatores decisivos para o estudo da nova performance da canção: o novo artista deixou de ser o estímulo inicial para o investimento das empresas de gravação e se tornou o resultado.. R. executada. o rosto fala. V. Com a possibilidade de gravar e posteriormente reproduzir o som em discos e fitas. o fonógrafo e o rádio: “com o telefone e o rádio. respectivamente. 1994. com o fonógrafo. de uma cadeia de diligências mercadológicas e promocionais. passou pela era hi-fi 12 e continua até hoje com os arquivos sonoros digitais veiculados pela internet. 2003.. mesmo na televisão ou no cinema é o que denominei tatilidade. de menor e maior grau de performaticidade. p.] Uma performance mediatizada não é verdadeiramente teatral.. dos meios de captar. Este trajeto da canção no mercado foi examinado detalhadamente pela pesquisadora Heloísa Duarte Valente..] Posto isto.. difundida e recebida segundo os recursos oferecidos pelo conjunto de técnicas de som (e/ou do audiovisual) vigente que. interferindo em todo o processo: desde a escolha do repertório. no campo das imagens (fotografia. Os artistas passam a ser encarados sob uma perspectiva essencialmente comercial: eles e suas obras são devidamente “adaptados” com vistas às exigências mercadológicas e todo um aparato de marketing passa a atuar interferindo diretamente em todas as etapas de criação e veiculação de suas canções. 2005. foi iniciado um processo tecnológico que começou com as gravações lo-fi. Tais padrões acabam por afetar diretamente a performance das canções.90). ou gravado em fita ou disco para as gerações futuras. sendo esta um conjunto complexo de elementos expressivos. sucintamente falando. trazendo mudanças tanto para os intérpretes como para os ouvintes. Estas tecnologias tornaram possível o surgimento do fenômeno batizado por Schafer de “esquizofonia”. e que é fundamental para a produção dos significados da obra de arte apresentada. Em seu estudo histórico sobre o desenvolvimento da “paisagem sonora” (soundscape na expressão original em inglês). A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . Em artigo publicado originalmente em 1990. também se tornou possível vender fitas e discos que registravam a performance dos cantores.22. mas nada permite este contato virtual que existe quando há a presença fisiológica real [. por sua vez. fixar e transmitir o som à distância. destacando entre elas o telefone.. Todo som era inimitavelmente único [. tornando este mercado ainda mais promissor e atraente para investimentos. A voz humana viajava tão longe quanto alguém pudesse gritar.. a desvinculação entre o som original e sua transmissão ou reprodução eletroacústica: Originalmente.. A crescente popularização das mídias torna as canções e seus meios de reprodução acessíveis a um número cada vez maior de ouvintes (ou consumidores). é indiscutível que a transmissão midiática retira da performance muito de sua sensualidade [.] tratando da canção em uma gama de modalidades que tem uma orientação comum: ter nascido no âmbito de uma sociedade já dominada pelos meios de comunicação de massas (as mídias). Este caminho de captação e manipulação do som foi trilhado também. numa canção composta. ou pelo menos parte desta performance (o som). O desenvolvimento de tecnologias de gravação e reprodução do som também abriu a possibilidade de novas formas de exploração comercial da canção: além da venda de partituras e ingressos para óperas e recitais. repentino aos olhos do público. o texto escrito e a performance ao vivo representam os pontos extremos desta escala. p.70). passando pela gravação. O leitor (expressão tomada no sentido de também incluir o ouvinte/espectador) é um componente chave no desenvolvimento da performance. Isto se traduz. a performance da canção passou a ser também mediatizada. Ainda conforme a pesquisadora. até a reprodução por meio de discos. O ser e o tempo da poesia. Marvin. 2 ed. Acasos e criação artística. HOUAISS. Com o desenvolvimento do mercado fonográfico. n. 1 ed. FINNEGAN. Sob este ponto de vista. ou O artista da canção em busca de uma síntese das artes cênicas. Londres: Routledge. Margit. Rio de Janeiro: Objetiva. São Paulo: Perspectiva. N 21. Alfredo. FRENK. este personagem oculto. Toda esta riqueza de possibilidades técnicas representa o estágio atual de um longo caminho percorrido desde os primeiros e precários registros fonográficos e que tem por objetivo principal permitir ao público a reprodução das condições sensoriais de uma situação de performance presencial. Aquele que. 1 ed. Palavra cantada: ensaios sobre poesia. Fayga. Rio de Janeiro: 7Letras. inicialmente criado como peça publicitária para divulgação comercial de lançamentos musicais. In. a música ou a performance? In. BOSI. 1982. How to do things with words: lecture II. o artista agora podia ter sua obra traduzida nas imagens em movimento do vídeo-clipe. 1984. In. Porém. C. O que vem primeiro: o texto. Territoires de la voix. 2007. Roland. In. H. Londres: Routledge. expectativa esta que seria responsável por desencadear um processo de recomposição da situação da performance ao vivo através justamente dos recursos tecnológicos que se encontram à disposição dos artistas. BOWDEN. CARLSON. OSTROWER. 5 ed. Referências AUSTIN. não apenas nas etapas de veiculação e divulgação junto ao público.Médiation et Information: Revue Internationale de Communication. 2008. À semelhança das gravações em áudio. C. p. de nada adiantariam as mais perfeitas estratégias de marketing (TATIT. Performance como linguagem. 1976. BARTHES. Paris: Les Belles Lettres. O balanço da bossa e outras bossas.) 1 ed. num produto expressivo e agressivo que invade a sala do ouvinte com a mesma exuberância de um som ao vivo. (Org. Orality and literacy: the technologizing of the word. 1 ed. Entretanto. 2008. FREUD. por mais simples que seja. BERTHIER. Além das gravações. já que altera diretamente a obra (ou. 6 ed. 1998. N 8. Paris: L’Harmattan.. caminhando pari passu com as convenções eletrônicas e assegurando um acabamento técnico impecável. Paris: Seuil. está por trás de inúmeros êxitos do mercado do disco.) 1 ed. V. sendo ou não músico. H. Per Musi. Performed literature: words and music by Bob Dylan. cuja habilidade é completamente desconhecida do grande público. p. Vol. Chamado de produtor. 2008. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . Imaginário e Teatralidade). Neiva de Matos et al. L’obvie et l’obtus. O mal-estar na civilização. Marie-France. sendo o vídeoclipe a mais notável entre elas. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. 1999. Bial (Ed. Christian.22. 2008. Augusto de. Entre la voz y el silencio: la lectura en tiempos de Cervantes. que permite desde a manipulação de sons e imagens originais até sua própria criação por meios digitais. The Performance Studies Reader. das fotos nas capas dos discos e das apresentações ao vivo (cada vez mais sofisticadas em termos de performance). In. mas também durante o processo de criação/gravação. mas desenvolveram suas potencialidades no sentido de complementar e até mesmo transformar o sentido das canções a que estavam vinculados. 2005. CASTARÈDE. 7 ed. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.132). _____. Bial (Ed. Rio de Janeiro: Campus.FALBO. México: Fondo de Cultura Economica. Patrick. Hoje existe todo um sofisticado aparato tecnológico especialmente desenvolvido para as mídias audiovisuais. E no centro deste novo estado de coisas formou-se igualmente uma nova competência: o homem de estúdio. 2007. 2010. Betsy. em termos mercadológicos. Le bruissement de la langue. In. Londres: Routledge. 1 ed. com características já preestabelecidas para assegurar o mínimo de sucesso necessário ao retorno do capital investido.. R.218-231. Sigmund. São Paulo: Companhia das letras. Le son et la voix . o produto) que chegará aos olhos e ouvidos do público. A interpretação de canções em espetáculos. interferindo diretamente na recepção do público. diretor. Walter J.) 1 ed. Rio de Janeiro: IMAGO. 2005. L. Cadernos do GIPE-CIT (Grupo interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade. CAMPOS. 2007. 1 ed.94). p. Renato. Paris: Seuil. 2 ed. ONG. 230 . What is performance? In. mas logo desenvolvendo padrões estéticos próprios e conquistando espaços específicos no mercado. o trabalho do produtor de estúdio torna-se tão importante quanto o do compositor. Paul Zumthor acredita que a ausência do artista na performance mediatizada “carrega uma expectativa irremediável para a integridade do corpo” (ZUMTHOR. XXI. 1982. De l’oeuvre au texte. Le grain de la voix. J. os vídeo-clipes não se limitaram a reproduzir as performances ao vivo. 1 ed. 2004. 1 ed. foram elaboradas outras maneiras de veiculação da performance. Sem esse respaldo de qualidade sonora. as possibilidades técnicas à disposição do artista de hoje não se resumem aos aparatos eletrônicos de manipulação do som. Ruth. técnico ou engenheiro de som. 1999. 2005. Belo Horizonte. Indiana: Indiana University Press. Antonio. São Paulo: Perspectiva. The Performance Studies Reader. In. COHEN. MARCADET. música e voz. Salvador: UFBA. sabe converter uma canção. La voix et ses sortilèges. 2008. As observações de Tatit demonstram como as regras do mercado interferem diretamente na performance da canção. 2008. não se pode negar que os novos suportes técnicos terminaram por criar linguagens próprias. Agosto. que sempre utilizou o termo “oralidade” para fazer referência às manifestações sonoras da palavra. conservadora ou tradicionalista. In. abreviações das expressões inglesas low-fidelity e high-fidelity. H. a fim de. In. 7 A expressão é de Margit FRENK (2005). Gil Nuno. São Paulo: Via Lettera/FAPESP. 8 A letra e a voz (ZUMTHOR. música e artes cênicas). 2008. independentemente das particularidades e variações individuais. São Paulo: Annablume. música e voz. ensaio contido no livro O ser e o tempo da poesia. ao destacar os movimentos do artista por meio de suas pinceladas.) 1 ed. recepção. 2 ed. Neiva de Matos et al. em contraste com sociedades letradas. Musicando a semiótica. Bial (Ed. C. São Paulo: Cosac Naify. Letras e letras da MPB. 2008. 6 Walter Ong compara sociedades de base oral e letradas. TRAVASSOS. redundante ou copiosa. 2 Veja-se. The Performance Studies Reader. 2007. 3 Os dois processos referidos por Berthier procuram. Bial (Ed. Wolfgang Iser e HansRobert Jauss. 4 Todas as traduções são de minha responsabilidade. _____. Um objeto fugidio: voz e “musicologias”. Performance studies: the broad spectrum approach. H. 2 ed. R. Disciplines of the text: sites of performance. Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado sobre as dimensões performáticas da poesia brasileira desde o modernismo. próxima ao mundo vivenciado (lifeworld). Arte e Cultura. 2007. Elizabeth. 2005. 1993. São Paulo: Companhia das letras. C. H. 5 O som no signo. 10 Como exemplos destes antecedentes históricos. oferecendo uma visão menos estática e segmentada da criação artística. Bial (Ed. 11 Diferentemente de Walter J. TATIT. 2 ed. M. Londres: Routledge. Londres: Routledge. utilizadas geralmente como referência a uma menor ou maior fidelidade de reprodução do som. The soundscape: our sonic environment and the tuning of the world.37-57). 1 ed. respectivamente. Zumthor introduz o termo “vocalidade”. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas . VALENTE. professor e escritor. 2002. Todos entoam. As vozes da canção na mídia. Zampronha (Org. p. o autor cita os chamados happenings.) 1 ed. 2003. SCHAFER. São Paulo: Annablume. empática ou participativa em vez de objetivamente distanciada. 1 ed. tendo como foco a dimensão performática dos textos deste compositor. 2007. Vermont: Destiny books. Palavra cantada: ensaios sobre poesia. São Paulo: FAPESP/Annablume. Luiz.. além de preparador vocal de atores. O campo da canção: um modelo sistêmico para escansões semióticas. Escritura e nomadismo. Seus principais focos de pesquisa acadêmica e criação artística são: performance. O ouvido pensante. PERRONE. a título de exemplo. respectivamente. artigo originalmente publicado na Revista USP. In.) 1 ed. 1993). p. de tom agonístico. tendo como resultado um elenco exemplificativo de características do pensamento e expressão de base oral. a chamada action painting praticada por artistas como o norte-americano Jackson Pollock. Belo Horizonte. Performance. No campo das artes plásticas. situacional em vez de abstrata (ONG. 1999. por exemplo. Conrado Falbo é Mestre em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (2009). ou dos inúmeros escritores que se dedicam também a compor letras de canções. SCHECHNER. 2008. (Org. estudos interdisciplinares II. Rio de Janeiro: Boolink. 1999. H. J. WORTHEN. originalmente publicado em 1977. ZUMTHOR. elaboradas por autores como Stanley FISH. preferindo-o ao anterior por situar melhor esta dimensão sonora da palavra. Heloísa de Araújo Duarte. texto originalmente publicado em 1983 no jornal Folha de São Paulo. The Performance Studies Reader.) 1 ed. Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio. p. Atua profissionalmente como músico (violonista). a oralidade seria: aditiva em vez de subordinativa. 1998. _____. 13 Teorias identificadas também pela expressão inglesa reader-response criticism.) 1 ed. Paul. o caso de textos literários que são posteriormente musicados e transformados em canções. The Performance Studies Reader. transformar diretamente a fala em escrita” e “identificar o locutor. Richard. Murray. 12 lo-fi e hi-fi. leitura. _____. A letra e a voz: a “literatura” medieval.) 1 ed. 9 Vocação e perplexidade dos cancionistas. 2010. São Paulo: Unesp. _____. 1 ed. 1990. 2008. B.22. VAZ. e música popular. qualquer que seja o teor linguístico de sua fala” (BERTHIER. 1 ed. Poesia e música: semelhanças e diferenças. 2008. Victor. 231 . também contribuiu com o movimento que tentava repensar as artes. relacionando-a especificamente à voz humana. Assim. In. corpo e vocalidade. 1 ed. estúdio e tensividade. “identificar uma mensagem linguística no fluxo fonatório. agregadora em vez de analítica. E. Charles. 1997. Per Musi.de Araújo Duarte Valente (Org.60). n. 1 ed. homeostática. TURNER.FALBO. 1992. iniciados nos anos 1960 nos EUA e relacionados às experiências surrealistas dos anos 1920 na Europa. V. 1994. São Paulo: FAPESP/Via Lettera. Lúcia. Liminality and Communitas. Notas 1 Bowden realizou um estudo sobre as canções de Bob Dylan. Sekeff. Ong. Londres: Routledge. São Paulo: Publifolha. São Paulo: Ateliê Editorial. SANTAELLA. e a body art (arte do corpo) que encara o corpo do artista como suporte expressivo e instrumento de interação com o espaço e com a plateia. Música e Mídia: novas abordagens sobre a canção. 1 ed. Rio de Janeiro: 7Letras. In..218-231. intersemiose (relações entre poesia. In. _____. 14 Canção. jul. 2010 232 Recebido em: 21/08/2009 . jan. Entrevista com Ana Taglianetti.22. Broadway. F.BORÉM. Belo Horizonte) fborem@ufmg. . Belo Horizonte. singing. Daniel Souza e Fernando Bustamante sobre o Projeto Teatro Musical na UFMG Fausto Borém (UFMG. popular music.22. p.br Palavras-chave: teatro. música popular. 2010. Per Musi. Daniel Souza e Fernando Bustamante.. Entrevista com Ana Taglianetti. Disney. Interview with Ana Taglianetti.. 239 p. Disney.232-239. Daniel Souza and Fernando Bustamante about the Teatro Musical Project at UFMG Keywords: theatre. musicals. belting. musicais. canto.Aprovado em: 19/04/2010 .. belting. Ana Taglianetti e Daniel Souza (Monitores do Projeto Teatro Musical na UFMG) e Fernando Bustamante (Diretor Convidado do Projeto Teatro Musical na UFMG) PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.. n. Broadway. em Londres e diversos teatros franceses.). O Rei Leão. o bel canto na Itália e a literatura na Alemanha. podemos afirmar que existe uma forte 233 . Chico Buarque. fortemente enraizados no pop e no rock. Irving Berlim. Belo Horizonte.232-239. Entrevista com Ana Taglianetti. Richard Rodgers Hammerstein. este gênero de tanto sucesso e ainda tão pouco estudado academicamente. música. Mas outros centros artísticos no mundo têm também grande importância na produção de musicais. existe um preconceito sobre a montagem de espetáculos para crianças. Stephen Schwartz.FAUSTO BORÉM: Podem citar alguns dos principais compositores e letristas/roteiristas do teatro musical? DANIEL SOUZA: No teatro musical internacional. Leonard Bernstein e Andrew Lloyd Webber. mas a evolução do gênero a partir dela. de outras expressões musicais e da dança é evidente. ANA TAGLIANETTI: Como veem. como em Miss Saigon. desde o final do século XIX. Stephen Sondheim são os meus eleitos! FERNANDO BUSTAMANTE: Já o teatro musical brasileiro.). baseado em sucessos de Elvis Presley. com músicas dos Beach Boys e All Shook Up. Entretanto. La Bohème e La Traviata também foram inspiradoras de enredos de musicais. as diferenças estéticas estão relacionadas aos mecanismos utilizados para articular esses elementos na encenação. como A Bela e a Fera. Elton John (por seus trabalhos para a Disney Theatrical). Marvin Hamlisch. Alan Jay Lerner. Em termos de mercado. Jonathan Larson. são muitos! Mas a gente sempre tem os nossos preferidos. os artistas que investem nesse segmento têm mostrado a importância de uma boa equipe de criação em um espetáculo. a literatura e as guerras inspiraram criações como Les Misérables e Miss Saigon. seja ele destinado ao público adulto ou infantil. no contexto da história da música e principais centros de produção. podemos observar também os dramas litúrgicos ou religiosos e outras representações. cantores e bailarinos etc. Em Londres. o canto era comumente utilizado e Aristóteles já se referia à música como um dos seis elementos fundamentais das tragédias gregas. saltimbancos e malabaristas que se utilizavam da linguagem musical e dramática na mesma representação. Jerry Herman. inspirado nas músicas do grupo Abba. Good Vibrations. Destaco Chiquinha Gonzaga (grande referência para o Teatro de Revista).. Óperas do século XIX. Movin´Out. The Wiz. Shoenberg e Boubil. Há um paralelo na história dos musicais? DANIEL SOUZA: A história dos musicais é bem mais recente do que a história da ópera.. 3 . certamente. We will rock you com músicas do grupo Queen. Frederick Loewe. Portanto. podemos destacar compositores como Jerome Kern. Per Musi.22. tênue. romantismo. muitas vezes. John Kander. Claude-Michel Schoenberg. 2 . 4 . iluminação. da Argentina.FAUSTO BORÉM: Primeiro. como Madame Butterfly. como jograis. como a dança na França. A Pequena Sereia e Mary Poppins. Vincent Youmans. uma das mais fortes expressões culturais que influenciaram a produção de musicais foi o cinema e suas grandes produções. como Dreamgirls. ora inspiravam outros que fariam temporada em teatros do mundo inteiro. Stephen Sondheim (que também era um grande letrista). Na Grécia Antiga. o teatro musical ganhou sua versão mais próxima do que conhecemos hoje. Daniel Souza e Fernando Bustamante. Cole Porter.. Fred Ebb. a ópera. como o West End. Outros. para a composição do musical Evita. DANIEL SOUZA: A música tem um papel primordial nos espetáculos teatrais desde os tempos mais remotos. Na Broadway. Rodgers e Hammerstein.BORÉM. Rent e Moulin Rouge.FAUSTO BORÉM: Quais são as diferenças estéticas e mercadológicas entre os musicais para adultos e para crianças? FERNANDO BUSTAMANTE: Historicamente. culminando no surgimento das primeiras óperas.FAUSTO BORÉM: Historicamente. na Idade Média. figurino. A partir da década de 1960. como Mamma Mia!. No renascimento e barroco. que ora reproduziam um grande musical dos palcos. p. também compositor e Alain Boublil. em Nova Yorque. classicismo. em musicais de sucesso no palco. 1 . entre muitos outros. Devemos citar os musicais criados em cima de grandes coletâneas de canções de sucesso do século XX. este último um longa-metragem de 2001 que ainda não recebeu versão para o palco. Cole Poter. Deve haver uma preocupação com todos os elementos que compõem a encenação (qualidade do texto. George e Ira Gershwin. Andrew Lloyd Webber inspirou-se na literatura para as composições de Cats e O Fantasma da Ópera e na vida de Eva Perón. cenário. Tim Rice. F. Entres os letristas e roteiristas. Com o passar dos tempos. A própria Disney transformou alguns de seus grandes clássicos de animação e longa-metragem. a opereta e o cabaret tornam-se cada vez mais criativos e mais populares. Ragtime e A Cor Púrpura trazem uma grande influência da cultura norte-americana afro-descendente. houve uma grande propagação de gêneros teatrais cantados. Na França. seja qual for o gênero da peça. Com a chegada do século XIX. Raisin. o próprio compositor Sondheim. n. Vinicius de Moraes e Tim Rescala estão entre os mais importantes compositores do gênero no Brasil. elenco de atores. Mas. Purlie. que também musicaram peças e revistas teatrais. Ary Barroso e Assis Valente. Carlos Gomes. com também valorizou as expressões culturais fortes de alguns países. a ópera acompanhou a estética de cada época (barroco. muitas vezes considerada uma arte menor. também teve grandes compositores. EUA. Alguns exemplos são os musicais Jesus Cristo Superstar e Hair. baseado nas melodias de Billy Joel. gostaria que vocês falassem um pouco sobre os musicais. Tom Jobim. A opereta e o cabaret foram os grandes inspiradores dos primeiros musicais e a linha que separa um gênero do outro nos primórdios do teatro musical é. expressionismo etc. não podemos esquecer nomes como Oscar Hammerstein II. 2010.. produtor. com a intensidade e qualidade necessárias. integrando o ensino do teatro. inclusive a extensão e tipo vocal. Não acontece o inverso no musical adulto. com o diretor Fernando Bustamante. Estamos selecionando elencos para projetos educativos. em São Paulo] e tem vasta experiência no exterior com o canto lírico e o belting. ou montagens originais. A precisão técnica e o virtuosismo chamam a atenção do público e a demanda por profissionais para compor o elenco destes espetáculos têm contribuído para o desenvolvimento dos musicais no Brasil. Ainda do ponto de vista de inserção dos musicais na universidade. como pesquisador e professor visitante da Fullbright. tipos físicos. Fernando [Bustamante]. especificamente. personalidades etc. que fundou a principal escola de preparação de cantores-atores para musicais no país [a Casa de Artes OperÁria. a coisa é bem diferente. Grupo Ponto de Partida. . se tornou o Projeto Teatro Musical na UFMG.. Maurício Tizumba são alguns deles. como ocorreu no final do século XIX. por exemplo. No caso de produções menores. o diretor procura. guardadas as dimensões do que tem para oferecer ao artista em formação. Ainda assim. concentra boa parte de suas atividades nesta área. o gênero retorna aos palcos em algumas adaptações do modelo da Broadway. começaremos a encenação do projeto Uma noite na Broadway III. ano em que ingressei na UFMG e me mudei de São Paulo para BH.. não adianta artistas com outros perfis desejarem fazer o teste. música e dança na universidade brasileira? ANA TAGLIANETTI: Tudo começou espontaneamente. com prêmiações como diretor. um cantor pode. criar um interesse também nos pais e acompanhantes presentes na plateia. Como surgiu a ideia de iniciar um núcleo de produção de musicais. a partir da década de 1960. ator. ou de textos brasileiros. a partir da disposição do maestro Daniel Souza e da soprano Fabíola Protzner de criarem um espetáculo de highlights de musicais com os alunos do Bacharelado da Escola de Música da UFMG. e em Belo Horizonte. Dá para se perceber que há um sopro novo na cidade em torno da produção e aprendizagem do gênero musical. entre outras. e isso acontece em quase todos os casos. temos a previsão da vinda do maestro e Doutor em Música norte-americano Barry Kolman.BORÉM. que acabou intitulado Uma noite na Broadway. No período do regime militar vimos seu recrudescimento pela ação da censura oficial em montagens como as de Chico Buarque (Roda Viva. Nossos testes não são eliminatórios. Qualquer um pode participar. em São Paulo e da minha decisão de morar em Belo Horizonte. Você Ana. O Grupo Galpão. Em geral. Daniel Souza e Fernando Bustamante.FAUSTO BORÉM: Como se dá a seleção dos elencos e quais são os requisitos para participar do projeto. 7 . 5 . Daniel [Souza]. mudou-se para a cidade há dois anos. que foi convidado para coordenar a montagem de A Pequena sereia. parte de alguns pré-requisitos. uma jovem de 20 a 24 anos. Este projeto frutificou. Isso foi em 2008. Se for isso que ele precisa para aquele determinado papel. isso pode ser diferente. No início do século XXI. saber se consegue atingir os limites melódicos inferior e superior das canções. Entrevista com Ana Taglianetti. quando as provas são divulgadas. os candidatos passam por uma pré-seleção de currículo e. Há preferências por tipos de voz. Em 2010.? Há um predomínio de atores que cantam e dançam.FAUSTO BORÉM: No Brasil. por exemplo. espetáculos voltam a importar o modelo americano da Broadway e recebem versões brasileiras com o trabalho de Cláudio Botelho e Charles Möeller. mas sim classificatórios. com as partituras do repertório em mãos. Belo Horizonte. o gênero parecia não ter o mesmo espaço na preferência do público. destacamos o trabalho do diretor Pedro Paulo Cava em montagens musicais adultas e infantis a partir da década de 1970. E você. no ano seguinte. que seja cantora e bailarina profissional. Depois da sua decadência na década de 1950.232-239. então. Ambos projetos contaram praticamente com o mesmo elenco. Para um determinado papel. E isto só foi possível com o apoio do Professor Lucas Bretas. que trabalhou na Disney dos EUA e graduou-se em regência orquestral. houve um processo continuado de desenvolvimento dos musicais? Quais são as perspectivas? FERNANDO BUSTAMANTE: O Teatro de Revista é a maior referência do teatro musical no Brasil. Gota d’Água e pera do Malandro). Como souberam da minha longa experiência com esta linguagem cê234 nica na Casa de Artes OperÁria 1. como Diretor da Escola de Música da UFMG e como Professor que implantou esta disciplina no currículo. No caso do Projeto Teatro Musical na UFMG. são chamados . Para 2011. Per Musi. que tem desenvolvido aqui em Belo Horizonte um trabalho referencial no teatro musical. Em Belo Horizonte. O projeto se desdobrou em duas frentes. Na maioria das audições. Fernando Muzzi. este que continuei coordenando e outro. devo dizer que a UFMG é a primeira universidade brasileira a incluir este tópico em um currículo de um curso superior de música. acabaram por me convidar para desenvolver com eles um projeto de montagem. já se sabe precisamente o que se espera para os papéis.ou não! . não podemos esquecer. com larga experiência no repertório sinfônico e de musicais.22. preparador corporal. Outros nomes do teatro mineiro contribuíram para fomentar o desenvolvimento do gênero no estado. magra e negra. nos espetáculos infantis. mais livre. As audições podem ter um caráter mais aberto. estão claras as demandas do diretor. Portanto. F. Costuma ser tudo muito específico. acabamos encenando o Uma noite na Broadway II. de músicos que atuam e dançam ou de bailarinos que atuam e cantam? ANA TAGLIANETTI: A seleção de elenco para um musical de grande porte. especialmente para os “importados enlatados”.FAUSTO BORÉM: E você próprio. tendência de. 6 . Ernani Maleta. 2010. foi apresentado em várias cidades de Minas Gerais e.para serem ouvidos. p. n. Cada detalhe é importante para compor um grande espetáculo. Durante os ensaios. e este parece um bom momento para que o estado pare de exportar seus melhores talentos. é sempre importante lembrar que as questões pessoais devem ser colocadas de lado para que prevaleça o profissionalismo.. ou seja. as coreografias etc. Vivemos num meio cheio de vaidades e é preciso medir as palavras na hora de tomar qualquer atitude. é essencial ter consciência da importância do coletivo e do trabalho colaborativo de cada integrante. a canção ou trecho instrumental pode ser uma verdadeira obra prima. em detrimento da comicidade. 11 . o corte é necessário e até indispensável. Porém. é comum. 9 . no apuro técnico e na miscigenação de estilos e raças. essa cidade se torna um caldeirão de possibilidades maravilhosas para que os diretores locais possam contar com estes artistas. vi isso acontecer raras vezes. Muitas vezes. Per Musi. a flexibilidade brasileira ajuda nestas horas. 10 . quanto a outros possíveis pólos emergentes? ANA TAGLIANETTI: Sem dúvida nenhuma. viagens etc. As decisões devem levar em consideração os prós e os contras no caso de cortes ou trocas de papéis no elenco. Só para dar um exemplo. Isso se aplica a todos os outros elementos cênicos. p. 2010. Como educadora com quase 20 anos de experiência no ensino de musicais. Belo Horizonte. Só para dar um exemplo. o apelo para o escracho e para o nu explícito.que acarretam a substituição de membros do elenco.FAUSTO BORÉM: Quais as diferenças entre o musical norte-americano e o teatro de revistas brasileiro? Porque o primeiro se tornou um mercado milionário e o segundo entrou em decadência após uma época de ouro? FERNANDO BUSTAMANTE: O teatro de revista retratou a sociedade da época. Entretanto. na estreia da versão estendida de A Pequena sereia (inspirada no repertório musical e roteiro da Broadway) em Minas Gerais. faz o papel de Sabidão e entoa um agudo áspero e desafinado. tínhamos cerca de 50 pessoas no elenco. Elza Soares!”. agora mais preparados para lidar com a linguagem do musical. mesmo com as rupturas que causa no trabalho ou nos relacionamentos dentro do próprio elenco. fazemos audições para avaliar as condições técnicas e o perfil de cada integrante do elenco a ser escolhido. Acredito que a “competição” deve ocorrer somente no momento das audições. o siri Sebastião faz um aparte – “Cala a boca.FAUSTO BORÉM: Quais são os desafios de dirigir cenicamente um musical? FERNANDO BUSTAMANTE: É muito importante para o diretor/encenador esclarecer para todos os membros da equipe de criação que a “música”. Mas o improviso tem também o seu lugar: quando a Jai. depois de Rio de Janeiro e São Paulo.232-239. e acredito que Belo Horizonte tem tudo para se tornar a próxima cidade brasileira. Entrevista com Ana Taglianetti. Basta que os produtores locais queiram investir em montagens e que os atores queiram permanecer em BH e trabalhar localmente.22. Já o musical norte-americano apostou na versatilidade de estilos musicais. E agora. Entretanto. foi o grande responsável pela sua decadência.. na versão abreviada de A Pequena sereia (inspirada no texto original de Hans Christian Andersen e músicas do filme da Disney) minha atriz-cantora Jai Baptista faz três papéis com perfis diferentes. e confesso que poucas vezes me deparei com o nível dos jovens talentos para o musical que encontrei aqui. entradas e saídas de cenário e elenco.FAUSTO BORÉM: Uma questão delicada na relação diretor versus elenco: como se dá o processo de cortes no elenco por insuficiência na expressão ou demandas do personagem? Como o diretor aborda a questão da competição e da humildade entre os membros do elenco? FERNANDO BUSTAMANTE: Normalmente. nos musicais. bailarinos. músicos de orquestra e pessoal de iluminação e de gerenciamento de palco. Por outro lado. Daniel Souza e Fernando Bustamante. mas pode não permitir a intenção ou expressão do personagem. torna-se um adjetivo do substantivo teatro. Outros fatores importantes são o acabamento. “diplomacia” é a palavrachave para resolver a questão. DANIEL SOUZA: A modificação de um elenco durante a construção ou durante a temporada de apresentações de um espetáculo é sempre um processo complicado. a preparação de dois elencos: o principal e o substituto ou alternante. tanto em relação às praças consolidadas de São Paulo e Rio de Janeiro. o planejamento das transições. n. 235 . tudo deve ser planejado em função da cena. ANA TAGLIANETTI: Na minha experiência. que se tornou um bordão que só pode ser apreciado no Brasil.. com tantos jovens artistas de Belo Horizonte preparados para o trabalho com essa linguagem. o diretor de musicais enfrenta imprevistos – como doença. tornou mais acessível o gênero ao grande público e contribuiu para difundir modos e costumes através da linguagem composta pela crítica apimentada e personagens alegóricos. Por isso mesmo. Os talentos que descobrimos aqui são de alta qualidade. acidentes. que é negra.FAUSTO BORÉM: Poderiam situar o Projeto Teatro Musical no contexto brasileiro. o que exige muita agilidade na troca de figurinos e caráter das falas e canções: uma das irmãs-sereias. F. se houver a necessidade de cortes. Às vezes. FERNANDO BUSTAMANTE: Gostaria de acrescentar que. já formei centenas de artistas. não raro. uma vez que no próprio processo de seleção os escolhidos costumam ser eleitos por serem capazes de dar conta do recado. o Projeto Teatro Musical na UFMG possibilitou a descoberta de incríveis talentos mineiros para o teatro musical. 8 .BORÉM. a entrar no circuito dos grandes musicais. Esses fatores reunidos foram essenciais para o desenvolvimento de um mercado milionário do entretenimento. Há uma grande tradição do canto em Minas Gerais. e mais seguro. entre cantores-atores. a noiva que pretere Ariel e a gaivota-macho Sabidão. mas precisa de outros recursos musicais sofisticados. Bem próprias. suas coloraturas. a voz. Mas o objetivo é fazer música. 12. Não há cena teatral. Há também o objetivo de se mostrar virtuosismo. é importante ressaltar que cada uma destas formas de utilização da voz – lírico. Entretanto. na maioria dos casos.FAUSTO BORÉM: Podem falar sobre as diferenças entre as técnicas vocais do musical. Por outro lado. técnicos de som. mas uma fala que se expressa em frequências sonoras específicas. sopranos de graves abertos são essenciais para os grandes papéis dos musicais. Não é necessária uma grande projeção da voz. Belo Horizonte. A MPB.. . da música popular e da ópera? Há uma relação entre técnicas vocais e clareza na expressão do texto? ANA TAGLIANETTI: A ópera utiliza a técnica lírica de canto. Novamente. na música erudita tradicional. o objetivo é fazer teatro. o que é o ideal. Estamos falando o texto. que geralmente dura cerca de 140 minutos. O belting consiste numa expressão vocal da “fala-cantada”.BORÉM. mas dentro de uma concepção bem diferente. além de.FAUSTO BORÉM: Quais são os desafios de tradução dos textos originais para o português? FERNANDO BUSTAMANTE: Traduzir é muito diferente de “versionar” uma música. O cantor lírico costuma oferecer ao seu público seus malabarismos vocais particulares: suas notas mais graves ou mais agudas. que consolida uma linha que privilegia o vibrato � contínuo associado a uma impostação da voz bastante característica. 2010. existe a preocupação em aproximar a sonoridade das palavras originais. O cantor popular precisa saber usar bem o microfone e que deve ser tratado como um outro instrumento musical. O próprio equipamento de sonorização é uma questão financeira delicada: microfones. se requer tenores com graves privilegiados. pois a MPB está associada ao recurso de amplificação. em que a cena possui uma importância maior. Uma piada em inglês pode não funcionar em português. n. Não é assim tão fácil usar corretamente o microfone. Raramente a extensão vocal feminina. Referências a gírias. as notas musicais. instrumentistas e atores). p. Existe até uma expressão no meio musical que utiliza o belting que denomina esses cantores de “baritenors”. O texto precisa ser entregue para o público com absoluta clareza. O repertório operístico é bastante específico no que diz respeito à tipologia das vozes e à extensão vocal necessária. ou quando há. Em caso de temporadas de pelo menos quatro apresentações por semana isso se torna essencial para a saúde vocal do ator/cantor. Mas o que também não significa que não sejam intercambiáveis e possam trocar influências entre si. o que só é possível com o desenvolvimento de uma técnica muito sólida.FAUSTO BORÉM: Quais são os desafios de se fazer um musical com música ao vivo? DANIEL SOUZA: Existem vários desafios para se fazer um musical ao vivo. caixas e mesas de som específicas costumam elevar muito os custos em uma produção. um instrumento que emite palavras. as demandas de resistência vocal costumam ser grandes. 14 . para se obter melhores resultados na performance. a técnica vocal para o teatro musical tem o canto lírico em sua base. belting ou popular . o que não quer dizer que eles não a possuam. O primeiro e maior deles é o financeiro: além dos cantores/atores. o cantor de MPB se aproxima mais do teatro musical pela preocupação com o entendimento das palavras. daí a restrição na utilização de vibrato e a moderação do virtuosismo. Por outro lado. Como no canto lírico. depois. com a maior destreza possível. A técnica para a execução de música popular brasileira tem similaridades e diferenças em relação ao canto lírico e ao belting. O sentido das frases tem que ser mantido. A voz torna-se um instrumento do grupo. Muitas vezes. uma mistura de estilos que acabou resultando numa técnica muito apropriada para a linguagem teatral. é contar uma história. Da mesma forma. no que diz respeito aos homens. Além das questões técnicas. na verdade. é bastante sutil. Per Musi. é preciso contratar os músicos para a formação instrumental desejada. “tocar” este 236 instrumento. a formação instrumental de um musical geralmente é reduzida por questões financeiras ou de espaço. ou barítonos com agudos privilegiados para a execução das canções. Aqui. Outro fator que deve ser considerado é o contexto onde os textos e as músicas originais estão inseridos. se não for adaptada à realidade brasileira. mais ainda. por exemplo. pois costuma-se ensaiar sem os equipamentos de som para diminuir custos. F.22. A própria necessidade de economizar acaba atrapalhando. isto não quer dizer que o cantor popular não saiba projetar a voz. não precisa que seus intérpretes usem uma grande extensão vocal. O ideal é que todo espetáculo de teatro musical seja microfonado (cantores. costumes e hábitos na cultura da língua original devem ser cuidadosamente avaliadas e adaptadas para fazerem sentido no português brasileiro. mas sempre com a música em primeiro plano. Entrevista com Ana Taglianetti. mas não faz parte do estilo contemporâneo da música popular. coro e orquestra no palco. Daniel Souza e Fernando Bustamante. é usada nos seus extremos. o que. O nosso vocabulário possui palavras muito extensas. especialmente a brasileira. para se obter um melhor equilíbrio sonoro e evitar um grande desgaste das vozes. a técnica belting é a mais utilizada nesta manifestação artística. A clareza do texto teatral está em primeiro plano. Por outro lado. É. Assim como acontece na música erudita. 13 . o cantor de MPB tem sua atenção voltada principalmente para a música. A técnica do belting foi desenvolvida com este propósito. minimamente. que é praticamente inexistente no teatro musical e.232-239.possui estilos com características próprias. e isso dificulta ainda mais o trabalho. como a improvisação.. especialmente em relação ao inglês. todo o virtuosismo que é resultado de muito trabalho e que leva uma vida inteira para lapidar. gera problemas para equilibrar solistas. Na versão. obrigatoriamente. como oito espetáculos consecutivos por semana. às vezes dois no mesmo dia. permeando seu espaço de convivência.como rouquidão. se o cantor quiser se aventurar pelas três técnicas. 15 . estará centrada nas questões pedagógicas. o cantor pode iniciar. p. é necessário que os organizadores adaptem os custos à realidade orçamentária que dispõe. Belo Horizonte. qualquer adaptação da partitura deve considerar cuidadosamente as intenções da composição original. tudo isso condensado em um só curso que resultou em uma montagem de highlights de grandes musicais da Broadway. 17 . voz e canto do ator. 237 . graduar e interromper o vibrato. Como o instrumentista de cordas. o Projeto Teatro Musical deverá produzir o espetáculo Uma Noite na Broadway III – Jazz!. São como chaves liga-desliga. 2010. Não adianta o cantor achar que pode cantar ópera se nunca estudou a técnica do canto operístico e a cultura da ópera! Para dominar qualquer uma destas técnicas. mudar o timbre e intensidade da voz. buscando temáticas diferentes e aprendizados complementares para os alunos a cada novo espetáculo. que talvez seja a mais complexa.232-239. No caso de arranjos ou re-orquestração. Pode. como forma de expressão. Como se situa o musical dentro deste embate? FERNANDO BUSTAMANTE: O teatro musical aparece nesse contexto como um mediador. apresentado em público. 18 . introdução ao teatro e vivência de montagem de espetáculo. A coordenação do curso. E por estarmos sujeitos a limitações e imprevistos físicos . Assim. A técnica lírica correta também proporciona uma grande saúde vocal e permite desenvolver uma resistência vocal ímpar. música erudita e a música popular. masterclasses nacionais e internacionais com grandes nomes do teatro musical e da música em geral.FAUSTO BORÉM: Ainda se observa bastante preconceito de ambas as partes. Mas fazer o espetáculo com música ao vivo é sempre mais interessante para o público e para os cantores. a música deve ser analisada principalmente em relação às questões de equilíbrio sonoro e timbres pretendidos na narrativa do espetáculo. Assim. antes de mais nada. 20 . embora haja certo preconceito disseminado sobre estereótipos no meio musical – cantor lírico. canções e coreografia dos colegas e cobri-los em emergências etc.22. repertório. qualidade que o cantor de belting precisa para sobreviver a maratonas típicas da agenda dos musicais. deve se conhecer os mecanismos para fazê-lo. por mais que alguns discordem. já que torna possível o diálogo entre a música erudita e a música popular dentro de uma mesma encenação. a priorização das vozes etc. as condições oferecidas para se produzir um musical não são fáceis. em que todos se ajudam mutuamente no sucesso e no fracasso de realizar um papel? FERNANDO BUSTAMANTE: O artista de musicais tem que ser. especialmente porque o repertório mais antigo de teatro musical exige essa versatilidade. 16 .FAUSTO BORÉM: Quais são os desafios de adaptar uma partitura orquestral de um musical para a instrumentação disponível em uma escola de música na universidade pública brasileira? DANIEL SOUZA: No Brasil. que incluirá muitas das mais famosas músicas do repertório de jazz da Broadway.FAUSTO BORÉM: Falem sobre o show Uma noite na Broadway. e levar em consideração a acústica de cada teatro ou sala. não há dinheiro para fazer os espetáculos com música ao vivo. movimento. Quanto a outros planos futuros. pois se pode flexibilizar os andamentos. n. o cantor que desenvolve uma técnica lírica consolidada. Poderiam comentar sobre este ambiente de artistas ecléticos que se parece com uma grande família. aconselho o estudo do canto lírico.. práticas de performance etc. ANA TAGLIANETTI: Uma noite na Broadway é apenas o produto final.FAUSTO BORÉM: Quais são os planos futuros para o Projeto Teatro Musical? DANIEL SOUZA: Para 2010. A gente acaba sempre voltando àquela máxima: “O espetáculo não pode parar!” 19 .FAUSTO BORÉM: O Projeto Teatro Musical é um projeto que demanda uma grande dedicação artística por parte de todos os envolvidos: estar disponível para centenas de horas de ensaio. Daniel Souza e Fernando Bustamante. de um processo de aprendizagem vivencial que procurou instrumentalizar os participantes nas técnicas necessárias para a performance em teatro musical. Assim. aprender as falas. as intensidades.FAUSTO BORÉM: É possível para um cantor integrar as diferentes técnicas vocais? ANA TAGLIANETTI: Quero esclarecer que. técnica vocal. oferecido como uma disciplina em nível de graduação.. E o saber não exclui a necessidade de estudar diariamente para garantir a manutenção do corpo. distensões etc. mesmo. Tecnicamente falando. também como o instrumentista de cordas que aproxima ou afasta o arco do espelho ou do cavalete. mudando o formato dos lábios. Mas. são necessários muitos anos de prática e estudo.BORÉM. dançar e interpretar minimamente são os princípios básicos no perfil de quem deseja trabalhar um dia com o gênero. um profissional versátil. cantor de musicais. É recomendável que o cantor de musicais possua técnica lírica. é claro. o canto lírico é o que apresenta maior dificuldade de execução. São maneiras diferentes de usar o aparelho vocal. Saber cantar. aumentando ou diminuindo o espaço oro-faríngeo e laríngeo ou. Para que a sua produção não se torne inviável. . as articulações. seus valores estéticos. Per Musi. recorre-se a play backs prontos ou encomenda-se a sua gravação.voltamos àquela questão da necessidade de um coringa para todos os papéis. mas incluem principalmente seminários. Entrevista com Ana Taglianetti. Corpo. não terá dificuldades em transitar pelas outras técnicas. desde que resguarde algumas coisas. Por isso. F. cantor popular. é um mito dizer que o uso de uma técnica impossibilita o uso de outra. Muitas vezes. Não há razões que impeçam o ajuste do aparelho vocal de acordo com a necessidade. eles dependem de patrocínio e parcerias dentro e fora da UFMG. BORÉM. especializou-se em Teatro Musical pela Lee Strasberg Theatre Institute. em New York. 1999) e Susanna (Bodas de Fígaro. 2 Para uma discussão aprofundada sobre a substituição histórica do portamento pelo vibrato na música erudita veja LEECH-WILKINSON em Per Musi. 1998). Margherite (Mephistophele.7-25). protagonizou e foi assistente de direção do musical José e Seu Manto Technicolor. Entrevista com Ana Taglianetti. Recebeu o prêmio de Atriz Revelação em 1987. 1999). Orquestra de Ópera e de Câmara das II. Charles Roussin. Luis Damasceno. Potts em A Bela e a Fera da Disney Theatrical Productions em São Paulo e integrou o elenco de Cole Porter: Ele Nunca Disse Que Me Amava. Conrad Osborne. n. interpretou os papéis de Sacerdotisa (Aida. Florin Totan (Romênia) e Lincoln Andrade e outros. entre muitos outros. em 2008 e Uma Noite na Broadway II – O Baú dos Sonhos em 2009.operaria. e a formação de artistas do teatro musical como Alexandre Lima. 2000). No Teatro Mvnicipal de São Paulo interpretou os papéis de Nedda (I Pagliacci. Fundou a Casa de Artes OperÁria (www. interpretou Mrs. Pinkerton (Mme. foi aluna de Dodi Protero. 1998). Sua montagem do musical A Palavra recebeu o prêmio de Melhor Espetáculo e indicações para os prêmios de Melhor Direção e Melhor Iluminação do Festival de Limeira de 2007. Mestranda em Performance Vocal pela City University of New York e Bacharel pela Escola de Arte Dramática da ECA / USP. Leila (Pescadores de Pérolas. Alguns de seus trabalhos envolveram a preparação de mais de 30 espetáculos musicais. 2000). 1998). Versionou o texto para o português e dirigiu a ópera A Serva Patroa de Pergolesi. 1997). Sally (O Morcego. Per Musi. 2001). Kátia Barros. Regeu as Orquestra Acadêmica do Festival de Campos do Jordão.15 (2007. interpreta o papel de Úrsula.232-239. 1997). Participou quatro vezes do programa VOICExperience com Sherrill Milnes. Osvaldo Ferreira (Portugal). Pagem (Rigoletto. Maurrant (Street Scene. Em Nova Iorque. piano. 2010. Orquestra de Musicais da UFMG e a Orquestra Drammato. cantora. Iara Fricke Matte. coordena o Projeto Musicais na UFMG. É Bacharel em Regência pela Escola de Música da UFMG. Em 2007. como A Palavra. Joaquim Goulart e Carlos Alberto Soffredini. ao ser dirigida por Gabriel Villela em A Capital Federal. André Loddi. na premiada montagem de A Pequena Sereia. De 2002 a 2004 interpretou a Sra. Em 2007. Musetta (La Bohème. dirigido por Iacov Hillel. Daniel Souza e Fernando Bustamante. Giovanna (Rigoletto. apresentada na abertura do I Festival de Teatro Musical de Belo Horizonte em 2009 e do I Festival de Música de Divinópolis. Notas 1 A Casa de Artes OperÁria é o principal centro especializado no ensino e pesquisa da linguagem de musicais no Brasil. Trish McAffrey. Na Mannes College of Music interpretou Mrs.Programa de Musicais na UFMG. Luana Bichique. Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFMG. criou. em Belo Horizonte. cantando no Players Club de New York e nos parques da Disney. Ana Taglianetti é professora. Gianna Pagano. 238 . Coordenou diversos cursos e eventos de música erudita em Belo Horizonte que tiveram a participação de Neyde Thomas.com. F. n. Contessa Ceprano (Rigoletto. dança de salão e canto (lírico e belting com a professora Ana Taglianetti). 1997). Atualmente. Daniel Souza é regente e diretor musical do Projeto Teatro Musical . Em parceria com Ana Taglianetti. Hoger Kolodziej (Alemanha). Suely Lauar. 2000). 1998). Zozo (A Viúva Alegre. Foi estagiária da Amato Opera. Beth Lopes. em Nova Iorque. 1998). sapateado. atriz e diretora teatral especializada em ópera e teatro musical. em Nova Iorque. Belo Horizonte. coordenou Uma Noite na Broadway. Dedica-se ao estudo do teatro musical. Julio Mancini. 1997). Keila Bueno. Estudou também com Roberto Tibiriçá. centro de formação para o teatro musical e ópera. III IV Semanas da Música de Ouro Branco. onde já dirigiu duas edições do espetáculo Uma Noite Na Broadway. Cherubino (Three Little Pigs-2001). Em 2008.22. Mimi(La Bohème. Nedda (I Pagliacci. foi um dos seis regentes selecionados para o 39º Festival de Inverno de Campos do Jordão. onde teve a oportunidade de estudar com os Maestros Kurt Masur (Alemanha) e Ronald Zolmann (Bélgica). Foi criado por Ana Taglianetti em 2003. No Brooklyn Center of Performing Arts.. com a versão “pocket” da ópera de Mozart. em 2010. dirigida por Fernando Bustamante. Rodrigo Santiago. Fez a direção musical de A Pequena Sereia (com direção geral de Fernando Bustamante) em 2009 e A Serva Patroa: A Ópera ao alcance de todos (com direção geral de Ana Taglianetti) em 2009-2010. Orquestra de Câmara de Itaúna. Com a Bronx Opera interpretou Toy Lamb Seller (Hugh the Drover. p. Foi aluna de canto de Rosiris del Bianco e Leila Farah no Brasil e. harpa. Na Amato Opera. e coordenou este programa no Brasil em 2006. na cidade de São Paulo. interpretação teatral. atuando com o maestro Tony Amato. Regência de Ópera na Juilliard School of Music e Ópera na Mannes College of Music. 1997). 1998) e Sally (O Morcego. na Flórida. coordenou e dirigiu o Projeto Don Giovanni nas Ruas. a partir da qual dirigiu mais de 30 espetáculos musicais. Butterfly. Cherubino (Bodas de Figaro. Também foi dirigida por Silnei Siqueira. Richard Barrett e Julian Kwok. Gilberto Tinetti e Fábio Zanon. Desde 2008. 1999).br) em 2003. p.. recebeu o Prêmio de Melhor Ator Coadjuvante pela AMPARC com a peça O Mistério da Princesa Feiurinha. Melhor Atriz. Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Toninho Horta. Fábio Mechetti. Arnaldo Cohen. Belo Horizonte. Ator Revelação. foi indicado como Melhor Preparador Corporal com a peça Sem Vergonhas no Prêmio SESC/SATED. três capítulos de livro. Melhor Ator Coadjuvante. Melhor Atriz Coadjuvante e os Prêmios USIMINAS/SINPARC de Melhor Espetáculo. musicologia. F.. Em 2003. Entrevista com Ana Taglianetti. que recebeu os prêmios SESC/SATED de Melhor Espetáculo. Em 2000. Bill Mays. foi indicado como Melhor Ator Coadjuvante com a peça Com Jeito Vai pela AMPARC e SESC/SATED. Melhor Atriz. Melhor Ator Coadjuvante. dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição. recebeu o prêmio de Melhor Ator na peça O Menino Maluquinho. Em 2004.232-239. que recebeu o prêmio de Melhor Espetáculo Infantil e Melhor Atuação no 1º Festival Nacional de Teatro de Juiz de Fora. etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais. Yoel Levi. recebendo os Prêmios SINPARC e SESC/SATED de Melhor Espetáculo. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro.22. compositor e professor. Melhor Ator. Em 2001. que recebeu os prêmios SESC/SATED de Melhor Espetáculo. Melhor Texto. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista. Melhor Cenário e Maior Público. Melhor Figurino e Melhor Trilha Sonora. Luiz Otávio Santos. Grupo UAKTI. dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Suas gravações incluem o CD Brazilian Music for the Double Bass. Kristin Korb. muitos das quais foram premiadas. 2010. Tavinho Moura. diretor e coreógrafo profissional. o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa. produtor. trabalhou em cerca de 30 peças de teatro e musicais desde 1995. Ator. No mesmo ano. Em 2004. p. n. Midori. Daniel Souza e Fernando Bustamante. Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier) 239 . teórico. produziu o musical Lampiãozinho e Maria Bonitinha. onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. Em 2005. Melhor Espetáculo e Melhor Iluminação. dirigiu e produziu A Pequena Sereia. Melhor Iluminação. Per Musi. Roberto Corrêa. dirigiu e produziu o espetáculo A Arca de Vinicius. Em 2003. Melhor Diretor e USIMINAS/ SINPARC de Maior público. Em 2008. Menahen Pressler. foi indicado à Melhor Coreografia do Prêmio SATED com a peça Sonho Dourado. a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma.BORÉM. Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal.. Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). análise. Juarez Moreira. Egberto Gismonti. os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos). atuou e produziu Os Saltimbancos. Henry Mancini. Fernando Bustamante é Licenciado em Artes Cênicas pela UFMG. concedido pelo SESC/SATED.
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