DEDALUS - Acervo - FFCLRPJ. '.E->-;:n'1 ~ ~--:--r lJ~y~~1·1DJü J &i;:1·r:1~-r /'"ef~__,- -f o·i:/t:::' l>'1xr~n1d Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ~ ~:cd da memória í Pierre Achard ... [ct ai.] : tcJ.dução e introdução José Horta Nunes. C arnpinas. SP Pontes. 1999. r:)utros autores: Jean Davallon, Jean-Louis __ :.:_~J. \!ichel Pêcheux. Eni Puccinelli Orlandi . ..\nfüse do discurso 2. História 3. Linguagem = :~is:ória ..+. Memória (Filosofia) 5. Semiótica - Sc,2iolingüística I. Achard. Pierre. 11. Davallon . .· e_r. III. Durand. Jean-Louis. IV. Pêcheux. Michel, - '--1 cJS~. V. Orlandi. Eni Puccinelli, 1942-. '\ cr.~'. José Horta. Vil. Título. CDD-401.4 Indices para catálcgo sistemático: :..:r:gJagern e história ..+O 1.4 ·Rontes ,1999 ---;::J lllllll lllll lllll lllll lllll lllll lllll lllll lllll lllll lllll llll llll 20800022026 Copyright© 1999 dos Autores Direitos de tradução gentilmente cedidos para a Pontes Editores Coordenação Editorial: Ernesto Guimarães Capa: Claudio Roberto Martini Revisão: Equipe de revisores da Pontes Editores ÍNDICE B\ i L\ j';;. / r;i. \1à.oS~ Introdução ............................................................................ 7 Memória e Produção Discursiva do Sentido ....................... 11 A Imagem, uma Arte de Memória ...................................... 23 Memória Grega .................................................................. 39 Papel da Memória .............................................................. .49 PONTES EDITORES Rua Maria Monteiro 1635 13025.152 Campinas SP Brasil Fone (019) 252.6011 Fax (019) 253.0769 e-mail:
[email protected] 1999 Impresso no Brasil Maio de 1968: Os Silêncios da Memória ........................... 59 INTRODUÇÃO O conjunto de quatro textos que ora apresentamos constitui a sessão temática «Papel da Memória» inserida em História e Lingüística, uma publicação das Atas da Mesa Redonda «Linguagem e Sociedade», realizada na Escola Normal Superior de Paris em abril de 1983. Esse colóquio reuniu especialistas de diversas áreas, tendo como ponto de encontro a relação entre língua e história. O tema particularmente enfocado aqui, a memória, é visto sob diferentes aspectos: lembrança ou reminiscência, memória social ou coletiva, memória institucional, memória mitológica, memória registrada, memória do historiador. Atravessando os artigos, a questão: o que é produzir memória? Como a memória se institui, é regulada, provada, conservada, ou é rompida, deslocada, restabelecida? De que modo os acontecimentos - históricos, mediáticos, culturais - são inscritos ou não na memória, como eles são absorvidos por ela ou produzem nela uma ruptura ? Estas questões se desenvolvem nos artigos através de diferentes perspectivas disciplinares, incluindo-se elementos de história, semiótica, sociolingüística, análise de discurso. Além disso, a memória é analisada em sua materialidade complexa, com ênfase para a relação do texto com a imagem, para a passagem do visível ao nomeado. Por um lado, os textos fundadores de memória: mitos, relatos, enunciados, paráfrases. Por outro, a eficácia simbólica da imagem: a reprodução pictórica, o meio televisual e até objetos arqueológicos. Ficam expostas ao leitor diferentes práticas memoriais presentes na sociedade ocidental, sejam aquelas da Grécia antiga, sejam as que emergem com as recentes mudanças tecnológicas. Analisando a construção discursiva do sentido e o funcionamento dos implícitos, Pierre Achard mostra que a memória não pode ser provada, não pode ser deduzida de um corpus, mas ela só trabalha ao ser reenquadrada por formulações no discurso concreto em que nos encontramos. O implícito de um enunciado (Achard analisa o enunciado: «Neste momento, o crescimento da economia é da ordem de 0,5%») não contém sua explicitação, não se pode provar que ele tenha existido em algum lugar. O que funcionaria então seriam operadores linguageiros imersos em uma situação, que condicionariam o exercício de uma regularidade enunciativa. Haveria, deste modo, a colocação em série dos contextos e das repetições formais, numa oscilação entre o histórico e o lingüístico. Através das retomadas e das paráfrases, produz-se na memória um jogo de força simbólico que constitui uma questão social. Jean Davallon aponta, depois do aparecimento da imprensa, o desenvolvimento dos meios de registro da imagem e do som como fatores que deslocam a questão da memória social, que não se encontraria mais nas «cabeças» dos indivíduos, mas nas mídias. O autor esboça uma reflexão sobre a imagem contemporânea como operadora de memória. Pela análise do registro televisual de um acontecimento (a posse do presidente Mittetnnd na França), é questionada a distância que separa a «realidade» do «fato de significação». Davallon lança a hipótese de que os objetos culturais (livros, escritos, imagens, filmes, 8 arquiteturas, etc.), como operadores de memória social, trabalham no sentido de entrecruzar memória coletiva (lembrança, conservação do passado, foco da tradição, monumento de reminiscência) e história (quadro dos acontecimentos. conhecimento, documento histórico). Do contemporâneo passamos para o antigo. Jean-Louis Durand faz uma interrogação envolvendo as práticas memoriais da Grécia clássica. Ele coloca uma questão de enunciação importante: quem fala e com que direito, ao se produzir memória? No caso da Grécia antiga, a produção da memória só se daria na presença do poeta épico - de Homero - por meio de um texto produzido fora do domínio da cidade. No entanto, há uma contradição na memória, com a oposição dos valores de grupo, dos textos homéricos, aos valores éticos, políticos, sociais em uma dada situação. Ao examinar a imagem de um vaso grego, Durand nota a possibilidade de remissão ao mesmo tempo a um herói da epopéia e a um simples combatente da cidade, um gueITeiro anônimo. Se pensarmos nos sistemas atuais de memória, poderemos ver a relação das práticas memoriais gregas com as memórias heróicas estabelecidas em nossa sociedade. Em seguida o livro, o artigo de Pêcheux faz uma retoma-. da das exposições anteriores, situando-as no contexto das pesquisas em análise de discurso. Ele discute como as questões de lingüística e de discurso aparecem nos estudos sobre memória, introduzindo um debate sobre as disciplinas de interpretação. Nesse sentido, ele pergunta: a lingüística é uma disciplina puramente experimental ou ela tem algo a ver com as disciplinas de interpretação? Por sua vez, a análise de discurso cada vez mais busca se distanciar, afirma Pêcheux, das evidências da proposição, da frase e da estabilidade parafrástica. Ademais, ela permite, após os trabalhos de Benveniste e Barthes com a noção de «significância», avançar teoricamente e tecnologicamente na relação do texto com a imagem. 9 --~~t:!!<~!i.:~lmllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll.................... Os textos aqui reunidos guardam as marcas do debate em meio ao qual foram concebidos, com o tom um pouco coloquial e as freqüentes remissões a outros expositores. Como resultado dessas discussões, salientamos o seguinte comentário de Pêcheux: «A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse debate é que uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização ... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos». Pouco mais de dez anos depois, este é um momento bastante apropriado para retomar esse acontecimento, atualizá-lo, inseri-lo em nosso contexto para que produza sentido e memória. ''f ~. Acrescentamos ainda nessa edição o texto de Eni Orlandi "Maio de 1968: os silêncios da memória'', em que a autora apresenta uma reflexão sobre a relação entre memória e censura no contexto da ditadura no Brasil. Neste caso mostra-se que há acontecimentos que não se inscrevem na memória, como se não tivessem ocorrido: os sentidos de Maio de 68, entre eles, os relacionados à palavra "liberdade", são evitados em um processo histórico-político silenciador, de modo que se estabelece uma falta na memória. José Horta Nunes MEMÓRIA E PRODUÇÃO DISCURSIVA DO SENTIDO Se, a partir de uma posição de análise de discurso, queremos falar do papel da memória, e, por conseguinte, do estatuto dos implícitos, logo encontramo-nos em posição delicada. Mas se este é um ponto em direção ao qual é perigoso se aventurar - sendo real o risco de uma interpretação psicologista dos implícitos - é no entanto necessário se preocupar com ele. Tentarei então falar sobre isso, considerando que a estruturação do discursivo vai constituir a materialidade de uma certa memória social. Bem entendido, não se trata de avançar o termo "materialidade" como máscara retórica para explicações que seriam da ordem do inefável ou do inconsciente coletivo, nem de dar ao termo "memória social" um valor tal que não teríamos finalmente outro meio de analisá-lo senão colocá-lo. Procurarei então mostrar que é possível colocar um certo número de hipóteses concernentes ao funcionamento formal no discurso, hipóteses a relacionar com a circulação dos discursos; esta relação deve permitir que nos afastemos de interpretações psicológicas da memória em termos de "realmente-já-ou- 10 li vido", memória fano-magnética ou registro mecânico. Para isso, apoiar-me-ei sobre alguns exemplos. Meu primeiro exemplo concerne ao funcionamento da palavra "crescimento" no domínio da Economia Política. Um enunciado como: "Neste momento, o crescimento da economia é da ordem de 0,5 %"faz apelo a um certo número de implícitos, dos quais evocarei apenas alguns. O primeiro deles é induzido pela pressuposição de que se pode aplicar uma "taxa" a um "crescimento da economia", quer dizer, que a economia pode ser medida (e não simplesmente "verificada", como se diz da temperatura em física elementar). O segundo implícito, que é também um implícito segundo (quer dizer, que só toma seu sentido em relação ao primeiro), é a equivalência, do ponto de vista da taxa, entre as diferentes medidas possíveis. Particularmente, nesse caso, a diferença entre PIB e PNB não será pertinente. Em terceiro lugar. pressupõe-se implicitamente que esse crescimento seja calculado dentro do prazo de um ano, prazo considerado como evidente. Enfim, numa ordem um pouco diferente, o local desse crescimento não é indicado; isto implica que me situo em um universo descritivo nacional, e que falo por conseguinte do crescimento da economia francesa - ou, mais exatamente, do crescimento da economia que concerne à nação, ao país no qual a enunciação se situa. É o que dá a este implícito um estatuto diferente dos precedentes, já que ele remete mais à "situação" que à ''memória". A "memória" intervém, no entanto, para enquadrar implicitamente a situação no espaço nacional, pela falta. Esse enquadramento pode ser explicitamente deslocado (podemos falar de "crescimento da economia mundial") ou utilizado no seu nível abstrato através da retomada em um percurso ("em média, no mundo, o crescimento foi ... "). A representação usual do funcionamento dos implícitos consiste em considerar que estes são sintagmas cujo conteúdo é memorizado e cuja explicitação (inserção) constitui uma paráfrase controlada por esta memorização - no nosso exemplo, 12 memorização de uma forma máxima completa. Além disso. esta memorização repousaria sobre um consenso. Ora. se olhamos mais de perto, a explicitação desses implícitos em geral não é necessária a priori, e não existe em parte alguma um texto de referência explícita que forneceria a chave. Essa ausêncie:. rião faz falta, a paráfrase de explicitação aparece antes como um trabalho posterior sobre o explícito do que como pré-condição. O que é pressuposto, esse consenso sobre o implícito, é somente uma representação. Um outro exemplo desse fato foi discutido na oficina sobre os manuais escolares 1 : ainda que se considere que eles constituam urna vulgata em relação a textos mais "elaborados", o exame dos manuais concretos e sua confrontação permite colocar em evidência não somente que eles estão sujeitos à crítica, apresentam variações consideráveis de um a outro, são insatisfatórios para o que se espera deles, mas ainda que é ao nível dos próprios implícitos supostos por eles que eles chegam a constituir a dita vulgata. Em suma, eles constituem a ilustração do fato de que, enquanto um registro discursivo supõe urna vulgata para funcionar, a tentativa de esclarecimento, de explicitação desta vulgata, jamais "contém" o que seria necessário para funcionar na retomada, e constitui na melhor das hipóteses uma primeira retomada da vulgata. Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha então sobre a base de um imaginário que o representa como memorizado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a sua (re)construção, sob a restrição ''no vazio" de que eles respeitem as formas que permitam sua inserção por paráfrase. Mas jamais podemos provar ou supor que esse implícito (re)construído tenha existido em algum lugar como discurso autônomo. Se levamos em conta os elementos enunciativos que esses implícitos comportam, podemos ver em que esse problema 13 de (re)construção dos implícitos corresponde também àquele que Robert Lafont, em O trabalho e a língua, designa como "regulagem do praxema" 2 • Com efeito, o funcionamento do discurso (e é nisso que a noção de discurso se distingue da de fala no sentido do CLG)' supõe que os operadores linguageiros só funcionam com relação à imersão4 em uma situação, quer dizer, levando-se em consideração as práticas de que eles são portadores. De outro modo, o passado, mesmo que realmente memorizado, só pode trabalhar mediando as reformulações que permitem reenquadrá-lo no discurso concreto face ao qual nos encontramos. Pelas necessidades da análise, vamos supor um funcionamento linguageiro que comporta apenas um registro discursivo, e colocar aí o problema do "sentido de uma palavra". Admitiremos (como hipótese lexicológica) que o que caracteriza a palavra é sua unidade, sua identidade a si mesma, que permite reconhecê-la em seus diferentes contextos. De outro modo, colocarei aqui a palavra como uma unidade simbólica cujo reconhecimento a identificação permite definir em termos de repetição. Cada nova co-ocorrência dessa unidade formal fornece então novos contextos, que vêm contribuir à construção do sentido de que essa unidade é o suporte. Mas para poder atribuir um sentido a essa unidade, é preciso admitir que suas repetições - essas repetições - estão tomadas por uma regularidade' . É uma regularidade desta ordem que supomos com o termo ''crescimento" no registro econômico. Essa regularidade, no entanto, não se deduz do corpus, ela é de natureza hipotética, ela constitui uma hipótese do analista. No caso do crescimento, a hipótese de análise que utilizei consistiu em supor que "crescimento" é um termo operador que comanda um certo número, fixo, de posições. O aparecimento em diversos textos das diferentes posições me permite fazer um inventário delas e estabelecer suas regularidades, e me permite em seguida designar, lá onde elas não são explicitamente instanciadas, os tipos de implícito por que elas clamam. 14 Para ilustrar de maneira menos elementar a dialética entre repetição e regularização, utilizarei, de modo metafórico, um imaginário topológico. Creio que esta analogia é relativamente bem fundada. Tomemos uma série numérica, que seja, para utilizar um exemplo simples, a série O, 1/2, 2/3, 3/4, ( ... ). Dizer que esta série tende a 1 pode ser formulado dizendo que toda vizinhança de 1 contém toda a série exceto um número finito de termos. Assim, se admitimos que o termo geral da série é da formas= (n - l)/n, vemos que a vizinhança de 1 definida como o conjunto dos números compreendidos entre 999 999 999/l 000 000 000 e 1 000 000 001/l 000 000 000 compreende todos os termos da série exceto um número finito de termos (os 1 000 000 000 primeiros). Bem entendido, só posso reconhecer que esta série tende a 1 porque substituí a enumeração dos primeiros termos pela regra que permite formular o termo geral. Sem esta formulação, nada garante que, com relação a uma vizinhança suficientemente pequena, o número das exceções continue finito. E como existe certamente uma infinidade de séries que começam pelos mesmos termos, nenhuma observação empírica do começo de uma série nos permite deduzir a regra. Em termos lingüísticos, isso corresponde a constatar que o corpus nunca é suficiente para fundar a gramática, e que a regularização repousa sobre um jogo de força. Acrescentamos aqui que o jogo de força pode designar o sentido como limite 6 • Um procedimento desta ordem parece necessário se queremos abordar a semântica de outro modo que não como uma semântica dos enunciados, que seria baseada em uma lista universal de traços semânticos pré-existentes e em sua combinatória. A hipótese de uma construção discursiva do sentido é certamente discutível, mas parece frutífera, pela abertura às práticas que podemos estudar ao nível da dialética entre repetição e regularização. Com efeito, o fechamento exercido por todo jogo de força de regularização se exerce na retomada dos discursos e constitui uma questão social. Se situamos a memória do lado, 15 não da repetição, mas da regularização, então ela se situaria em uma oscilação entre o histórico e o lingüístico, na sua suspensão em vista de um jogo de força de fechamento que o ator social ou o analista vem exercer sobre discursos em circulação. Este eventual jogo de força é suportado pelas relações de formas, mas estas são apenas o suporte dele, nunca estão isoladas. Elas estão eventualmente envolvidas em relações de imagens e inseridas em práticas. A regularização se apóia necessariamente sobre o reconhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é da ordem do formal, e constitui um outro jogo de força, este fundador. Não há, com efeito, nenhum meio empírico de se assegurar de que esse perfil gráfico ou fónico corresponde efetivamente à repetição do mesmo significante. É preciso admitir esse jogo de força simbólico que se exerce no reconhecimento do mesmo e de sua repetição. Por outro lado, uma vez reconhecida essa repetição, é preciso supor que existem procedimentos para estabelecer deslocamento, comparação, relações contextuais. É nessa colocação em série dos contextos, não na produção das superfícies ou da frase tal como ela se dá, que vemos o exercício da regra. De outro modo, é engendrando, a partir do atestado discursivo, paráfrases, a considerar corno derivações de possíveis em relação ao dado, que a regularização estrutura a ocorrência e seus segmentos, situando-os dentro de séries. O que desempenha nessa hipótese o papel de memória discursiva são as valorizações diferentes, em termos por exemplo de familiaridade ou de ligação a situações, atribuídas às paráfrases, que entretêm então, graças ao processo controlado de derivação, relações reguladas com o atestado. Na hipótese discursiva, pois, ao contrário do modelo chomskiano, o atestado constitui um ponto de partida, não o testemunho da possibilidade de uma frase, e a memória não restitui frases escutadas no passado mas julgamentos de verossimilhança sobre o que é reconstituído pelas operações de paráfrase. Estas considerações deslocam o estatuto do que é provável historicamente, porque a operação de reto16 mada se localiza nesse nível. O que distingue então o analista de discurso do sujeito histórico não é uma diferença radical mas um deslocamento. A análise de discurso é uma posição enunciativa que é também aquela de um sujeito histórico (seu discurso, uma vez produzido, é objeto de retomada), mas de um sujeito histórico que se esforça por estabelecer um deslocamento suplementar em relação ao modelo, à hipótese de sujeito histórico de que fala. O que proponho neste texto é um modelo de trabalho do analista, que tenta dar conta do fato de que a memória suposta pelo discurso é sempre reconstruída na enunciação. A enunciação, então, deve ser tomada, não como advinda do locutor, mas como operações que regulam o encargo, quer dizer a retomada e a circulação do discurso. Entre outras conseqüências desta concepção, levaremos em conta o fato de que um texto dado trabalha através de sua circulação social, o que supõe que sua estruturação é uma questão social, e que ela se diferencia seguindo urna diferenciação das memórias e uma diferenciação das produções de sentido a partir das restrições de uma forma única. Pierre Achard 17 BIBLIOGRAFIA LAFONT, R. (1978), Le travail et la tangue, Flamarion, Paris SAUSSURE, F. (1964), Cours de linguistique générale, publ. por charles Bailly e Albert Secheye, com a colab. de A. Riedlinger, Payot, Paris (Ira. ed. 1915) 19 NOTAS 1. (NDT) As oficinas, exposições e textos do colóquio citados neste livro encontram-se publicados em Histoire et Linguistique, Pierre Achard, Max-Peter Gruenais, Dolores Jaulin (Orgs); Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme, Paris, 1984. 2. Lafont, 1978. 3. Saussure, 1964. 4 . A noção de imersão ("plongement") - que, nas matemáticas. é um conceito - supõe ao mesmo tempo a possibilidade de um ponto de vista intrínseco, e propriedades induzidas pela consideração da situação no espaço da imersão. l 5. Esse efeito, aliás, é reforçado sobretudo pela existência de vários registros articulados nos discursos reais. Por exemplo, em economia da educação, o discurso econômico desenvolve o papel de um registro maior no qual são retomados e m1iculados os registros da pedagogia, registros de considerações tecnológicas, políticas, etc., tomados como englobantes ou englobados, conforme o caso, o que faz com que haja sempre, na retomada metafórica das palavras, um deslocamento de uso que só pode repousar sobre a regularização suposta do funcionamento da palavra no registro fonte. 6. Bem entendido, os matemáticos não se interessariam tanto pelas séries se elas convergissem sistematicamente a números, como 1, já definidos em outro lugar. É na medida em que as séries permitem definir novos números que elas são interessantes. Do mesmo modo, a perspectiva que proponho por analogia tem essencialmente por interesse propor perspectivas para uma semântica que não se limite a uma combinatória de semas pré-existentes. 21 ~'lil' A IMAGEM, UMA ARTE DE MEMÓRIA ? O aparecimento da imprensa parecia já ter tornado fora de uso as "artes da memória" antigas e medievais 1 • Com razão mais pertinente, o desenvolvimento dos meios de registro da imagem e do som (essas extensões de nossos sentidos, se acreditamos em Me Luhan), que permitem estocar depois restituir o saber quase tão bem quanto os acontecimentos, parece hoje nos afastar definitivamente da necessidade de situar uma parte da memória social na "cabeça" dos (ou de certos) sujeitos sociais: a memória social estaria inteiramente e naturalmente presente nos arquivos das mídias. Uma tal concepção tecnicista da memória social, que em muitos pontos assimila esta à "memória" do computador, supõe resolvidas duas questões maiores. A primeira é bastante ingênua: registrar, descrever, representar a realidade (saber ou acontecimento) é suficiente para produzir memória? Ou ainda: a partir de quando, e do que, um acontecimento constitui memória? A segunda é sociológica: o que ocorre, nessa redução tecnicista, com os processos de manutenção da coesão social; 23 com a instituição/re-instituição societal de que o funcionamento da memória é o lugar, e mais particularmente ainda, com a reprodução das relações sociais e políticas fundada sobre a dominância desse funcionamento da memória social ? Pensemos, a propósito, numa cerimônia política como aquela da posse do Presidente da República: com os múltiplos jogos que surgem entre a referência, de um lado, a uma memória social já existente (o Panteão, os heróis republicanos) e, de outro lado. à produção de uma nova memória. Pois o registro do .. acontecimento·· deYe constituir memória, quer dizer: abrir a dimensão, entre o passado originário e o futuro, a construir, de uma comemoração 2 . Com esta alusão rápida a um exemplo político contemporâneo, vemos que entre o simples registro da realidade e a memória social; que entre a reprodução de um acontecimento e a função social de instituição/re-instituição do tecido social atribuída à memória, há toda a distância que separa a "realidade" do "fato de significação". Faria essa distância pensar, em suma, que a memória, como fato social, comportaria uma dimensão semiótica e simbólica que lhe seria intrínseca ? Assim. é em \·ista dessa dupla dimensão da memória social (como fato societal e como fato de significação) que gostaria de esboçar aqui uma reflexão sobre a imagem contemporânea como operadora de memória, mas convém antes indicar com algumas palavras o que é preciso entender por memória social quando nos interessamos pelos objetos culturais 3 • :\-Iemória social e produções culturais Uma primeira constatação se impõe imediatamente: para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insignificância. É preciso que ele conserve uma força a fim de poder posteriormente fazer impressão. Porque é essa possibilidade de fazer impressão que o termo "lembrança" evoca na linguagem corrente. Um sociólogo um pouco esquecido hoje, é verdade, mas que uma sociologia do conhecimento não poderia ignorar a saber, M. Halbwachs - caracterizaria aliás a memória como "o que ainda é vivo na consciência do grupo para o indivíduo e para a comunidade" 4 • Uma segunda constatação complementa a primeira: lembrar um acontecimento ou um saber não é forçosamente mobilizar e fazer jogar uma memória social. Há necessidade de que o acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e sobretudo, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de noções comuns aos diferentes membros da comunidade social. Esse fundo comum, essa dimensão intersubjetiva e sobretudo grupal entre eu e os outros especifica, diz-nos Halbwachs, a memória coletiva5 • Mas a contrapartida seria que a memória coletiva "só retém do passado o que ainda é vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que o mantém. Por definição, ela não ultrapassa o limite do grupo" 6 • Estas duas constatações convidam a salientar o caráter paradoxal da memória coletiva: sua capacidade de conservar o passado e sua fragilidade devida ao fato de que o que é vivo na consciência do grupo desaparecerá com os membros deste último. Aliás, em páginas que mereceriam uma outra atenção e uma outra apresentação, que estas rápidas e alusivas evocações não permitem, Halbwachs pode assim opor a memória coletiva à 24 25 história, o "foco da tradição" ao "quadro dos acontecimentos" 7 , a "lembrança" (corrente de pensamento contínua no seio do grupo social) ao "conhecimento" (descontínuo e exterior ao próprio grupo). Em compensação, a história resiste ao tempo; o que não pode a memória. Se a distinção efetuada por Halbwachs entre "memória coletiva" e "história" permite desse modo compreender melhor por que registrar ou ainda lembrar um acontecimento não é obrigatoriamente ipso facto um fato de memória social, ela nos introduz acima de tudo em uma problemática dos objetos culturais considerados como operadores de memória social. Eu me explico. 1 l Evoquemos novamente o exemplo da emissão televisionada que "representava" a posse do Presidente da República. Compreenderemos muito facilmente a questão política e a importância sociológica que estão ligadas à possibilidade de "casar" história e memória coletiva: de entrecruzar, de aliar a resistência ao tempo que caracteriza uma e o poder de impressão - vivacidade - da outra. Assim, o acontecimento, como acontecimento "memorizado" poderá entrar na história (a memória do grupo poderá perdurar e se estender além dos limites físicos do grupo social que viveu o acontecimento); mas enquanto "histórico". ele poderá se tomar, em compensação, elemento vivo de uma memória coletiva. Esta última adquirirá então uma outra dimensão: aquela, se podemos dizer, de uma memória societal. Como esse entrecruzamento se opera? Qual é o seu instrumento? O acontecimento - no caso, a cerimônia do Panteão -, por ser representado (o que é mais e outra coisa do que ser simplesmente registrado ou difundido), tomará o valor de uma espécie de ponto originário da comunidade social: o acontecimento se dará em um momento singular do tempo; mas a essência do ato se encontrará para sempre na própria estrutura do objeto que o representará (a emissão televisionada, por exemplo)'. Ele se tornará indissociavelmente documento histórico e monumento de recordação. Por conseguinte, apoiando-nos sobre essa oposição entre "memória coletiva" e "história" para considerar os objetos culturais, poderíamos adiantar, a título de hipótese. que ~stes últimos vão no sentido não de um antagonismo, mas antes de urna conjunção, de um entrecruzamento, de uma síntese entre memória coletiva e história. Trata-se aí de uma simples hipótese de trabalho, mas ela não me parece sem interesse no quadro de uma reflexão sobre o papel da memória. Ela torna com efeito a adiantar que os objetos culturais abrem a possibilidade de um controle da memória social; que esse controle está de fato estreitamente ligado ao funcionamento formal e significante desses objetos; e que, por último, ele é um fato social não desprezível. Eis, a meu ver, o que merece ser examinado; embora não seja questão de pretender encarar, no estado atual, a verificação dessa hipótese, seria em compensação uma atitude bastante heurística voltar-se sobre aquilo que autoriza sua formulação. É o que veremos a propósito da imagem. A imagem, operador de memória social Por que a imagem? Porque ela oferece - ao menos em um campo histórico que vai do século XVII até nossos dias uma possibilidade considerável de reservar a força: a imagem representa a realidade, certamente; mas ela pode também conservar a força das relações sociais (e fará então impressão sobre o espectador). L. Marin aliás mostrou muito bem como, por exemplo, no funcionamento do poder absoluto na idade clássica, o retrato do rei expõe em uma viva pintura as qualidades reais descritas - 26 27 L 1.J...llil!ilUlliilll!UlllllllHmill.llilliillrnWUUlllllWUUlllllllllllllllE---------------------------------------············· "contadas" - no relato de suas ações; de tal maneira que estas se transformam em substância real. Do relato desse acontecimento à imagem do rei, o que era o menos representável, o menos memorizável (a força), torna-se o mais presente na ocasião da representação do personagem histórico do rei. Posso somente aqui remeter às análises de Marin no que concerne ao modo como esse uso das imagens se apóia sobre seu próprio funcionamento9. Adicionemos que poderíamos, em contraponto a essa análise e de um modo comparável, mostrar como a publicidade, desta vez, utiliza a imagem em complementaridade com o enunciado lingüístico para apresentar - tornar presentes - as qualidades de um produto e conduzir assim o leitor a se recordar de suas qualidades, mas também a fazê-lo se posicionar em meio ao grupo social dos consumidores desse produto; a se situar, a se representar esse lugar. No entanto, desenvolver essas análises nos levaria longe demais e demandaria muito tempo; notemos então somente que esses dois exemplos indicam, para certos períodos e segundo diferentes modalidades, a eficácia da imagem em poder se inscrever em uma problemática da memória societal. Eis o que nos conduzirá talvez a encarar a imagem sob um prisma particular: menos a nos interessar pelo que a imagem pode representar (os objetos do mundo), ou ainda pela informação que ela pode oferecer, nem mesmo pelo modo corno ela efetua um ou outro desses processos, do que a prestar atenção à maneira como certa imagem concreta é urna produção cultural quer dizer, a levar em consideração sua eficácia simbólica. Com efeito, aquele que observa uma imagem desenvolve urna atividade de produção de significação; esta não lhe é transmitida ou entregue toda pronta. Esse estado de coisas abre, como aliás insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpretação (o que quer dizer que o conteúdo "legível", ou antes "dizível", pode variar conforme as leituras); mas o que faz também - e não 28 se poderia esquecer este ponto - com que 2 isager:-_ c,:'."'.'-r:'~'e um programa de leitura: ela assinala um cert•J lugar ao ópecDdor (ou melhor: ela regula uma série com a pc:ss::g.:m ce uma a outra posição de receptor no curso da recep,;-2.: e: ;e:2 ::'::>é'.e "rentabilizar" por si mesma a competência semiócic 2 e: ,: . : ::· desse espectador 10 • Este é um fato bastante conhecido peleis publicitários. Se procuramos o que serve de fundamento à eficácia simbólica da imagem, duas características semi óticas parecem então bastante consideráveis. Em primeiro lugar, urna imagem pode ser compreendida ou recebida segundo dois níveis diferentes. Cada um desses dois níveis possui regras de funcionamento que lhes são, ao menos parcialmente, próprias. Por exemplo, os códigos perceptivos mudam menos rápido que os códigos iconológicos: por isso, ficamos sensíveis a c.ornposições ou representações de quadros da Renascença (ou de publicidades do início do século) de que ignoramos parcialmente a significação: a potência perceptiva perdura, enquanto as significações se perdem. Resta urna organização formal que continua a constituir um dispositivo. Sabemos, desde o artigo em muitos aspectos fundador de E. Benveniste, aparecido em Semiótica em 1969, que existem dois modos de significação: um semiótico, fundado sobre o reconhecimento de unidades de significação previamente definidas (eu reconheço o sentido das palavras), outro semântico e meta-semântico, fundado sobre a compreensão do sentido do texto em sua totalidade (eu compreendo o sentido do conjunto de uma frase, por exemplo) e que inclui os mecanismos da enunciação. Benveniste adianta que a imagem funciona antes de tudo sob o modo semântico e que ela não pode conjugar os dois modos de significação (somente a língua poderia operar essa conjunção) e há um largo acordo entre os sernioticistas para reconhecer que a imagem depende de uma abordagem textu29 al 11 • De minha parte, resumirei as coisas como segue: existe uma espécie de aproximação entre as oposições formais (de forma, de cor e de topologia) e a instância textual e enunciativa: na publicidade, por exemplo, certa relação de cor ou certo contraste de forma retém o olhar e, ao mesmo tempo, quer nos dizer da qualidade que distingue um produto dos outros. Essa aproximação escamoteia - se posso dizê-lo - um nível intermediário que teria por homólogo na linguagem o nível das palavras; a linguagem supre aliás essa escamoteação (pode-se sempre descrever uma imagem)::. Em compensação, essa aproximação possui a vantagem de trabalhar sobretudo com os sistemas de oposição e simultaneamente com as relações entre emissor, receptor, mensagêm ê contexto. É porque a imagem é antes de tudo um dispositiYo que pertence a uma estratégia de comunicação: dispositivo que tem a capacidade, por exemplo, de regular o tempo e as modalidades de recepção da imagem em seu conjunto ou a emergência da significação 13 • E é um dispositivo, lembremo-nos, que por natureza é durável no tempo. Em segundo lugar, a imagem é um operador de simbolização. Conviria observar, a esse propósito, que a dificuldade, conhecida por todos os semioticistas da imagem, em segmentar esta. se deve menos a sua má-formação semiótica do quê à aproximação que eu assinalava logo acima entre oposições formais e instância textual e enunciativa, entre a matêrialidade e o sentido. Entrecruzando esses dois níveis, a imagem teria assim capacidade para integrar os elementos que a compõem em uma totalidade. É porque compreenderíamos o sentido global antes de reconhecer a significação dos elementos; e atingiríamos primeiro o efeito dessa integração; estaríamos sob o charme desse efeito formal, estético; toda imagem pareceria assim se apresentar como única origem dela mesma assim como de sua significação; e enfim, ela introduziria uma diferença de natureza, um salto qualitativo entre os componentes (os que a análise pode repertoriar) e ela mesma considerada em sua totalidade. Esse apagamento da passagem dos componentes à totalidade tem por conseqüência essencial interditar que se reencontre a maneira como o efeito estético e significante é produzido. A gênese se apaga; a (re )construção de uma origem mítica é aberta, com mais um efeito de força viva. Então, começa aderiva indefinida (e não infinita) que caracteriza toda interpretação de imagem; não obstante, se nos volvemos para essa deriva, percebemos que essa busca, essa "reprodução" da significação do dispositivo, se faz segundo o próprio programa trazido pelo dispositivo. Do mesmo modo que a recitação do mito ou os gestos litúrgicos seguem a estrutura do mito ou do ritual, cada leitura é em si mesma uma pequena recitação. Momento central, ato que fornece à imagem sua razão de ser, que está fora do espaço da imagem, assim como, aliás, o acontecimento memorizado. Conclusão Eis então o que leva a pensar a imagem como um operador de memória social no seio de nossa cultura. Assim, voltemos a nossa hipótese. Com efeito, se a imagem define posições de leitor abstrato que o espectador concreto é convidado a vir ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos, isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade um acordo - de olhares: tudo se passa então como se a imagem colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros espectadores possíveis tendo o mesmo ponto de vista. Domesmo modo como - explicava Halbwachs - a reconstrução de um acontecimento passado necessita, para se tornar lembrança, da existência de pontos de vista compartilhados pelos membros da comunidade e de noções que lhes são comuns 14 ; assim a imagem, por poder operar o acordo dos olhares, apresentaria a capacidade de conferir ao quadro da história a força da lembrança. Ela seria nesse momento o registro da relação intersubjetiva e social. 30 31 ,.'). ;. •:ii:!l:iilii!lllllll!ll~--· Restaria, então e enfim, considerar como a imagem intervém concretamente no estabelecimento de uma forma de memória societal própria à nossa época e à nossa sociedade; e sobretudo, qual é a relação que se instaura entre o que poderíamos chamar "a memória interna" (aquela situada nos membros do grupo) e "a memória externa" (aquela dos objetos culturais), mas isto seria perguntar sobre as características das estruturas mentais de nossa cultura e se engajar na psicologia histórica15 • BIBLIOGRAFIA Jean Davallon ALBERA, F. (1980), "Introduction à S. M. Eisenstein", Cinématisme: peinture et cinéma. Bruxelas, Ed. Complexes. BENVENISTE, E. (1974), Problemes de linguistique générale, t. 2, Paris, Gallimard. DAVALLON, J. (1981), "Les fêtes révolutionnaires: une politique du signe", Traverses, 21-22, pp. 187-195. _ _ (1983a), "Réfléxions sur l'éfficacité symbolique des productions culturelles", Langages et Société, nº 24, pp. 37-52. _ _ (1983b). "Voyages au pays d' Air France: !'espace de la "lecture" dans l'image", Actes sémiotiques, Documents, V. 49. HALBWACHS, M. (1950), La mémoire collective, Paris, Presses Universitaires de France. MARIN, L. (1950), Le portrait du roi, Paris, Ed. de Minuit. METZ, Ch. (1975), "Le perçu et le nommé", in: Vers une 32 33 esthétique sans entraves: mélanges offerts à Mikel Dufrenne, Paris, Union Générale d'Édition (10/18, Coll. Esthétique, 931 ). MEYERSON, I. (1948), Les fonctions psychologiques et les oeuvres, Paris, Vrin. NOTAS SCHEFER, J. L. (1969), Scénographie d'un tableau, Paris, Ed. du Seuil. YATES, F. A. (1975), L'art de la mémoire, Trad. do inglês [The art ofmemory, 1966] por D. Arasse, Paris, Gallimard. 1.. Como assinala Yates, 1966. Lembremos que o autor define assim a arte da memória: "Esta arte visa permitir a memorização graças a uma técnica de 'lugares' e 'de imagens' que impressionam a memória". 2. Penso particularmente na "cerimônia da memória" que se desenrolou durante as jornadas de posse de F. Mitterand, em 21 de março de 1981. O que está então em jogo, para além da referência declarada ao cerimonial republicano herdado em grande parte das festas revolucionárias (ou ao menos de sua ideologia), é o estatuto que se atribui aos meios de difusão e de representação do acontecimento - no caso: à emissão televisionada desta cerimônia. 3. Entendo por "objetos culturais" o conjunto dos objetos concretos (livros, escritos, imagens, filmes, arquiteturas, etc.) que resultam de uma produção formal e que são destinados a produzir um efeito simbólico. Sobre esse ponto ver Davallon, 1983. 4. Halbwachs, 1950, p. 70. 5. Ibid., p. 13: "Não basta reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento passado para se obter uma lembrança. É preciso que essa reconstrução se opere a partir de dados e de noções comuns que se encontram tanto em nosso espírito quanto no dos outros, porque eles passam sem cessar destes àquele e reciprocamente, o que só é possível se eles fazem e continuam afazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída". 34 35 13. Para a análise detalhada, ver: Davallon, 1983. '-c ::-:emória coletiva: "é uma corrente de pensamento contínuo, de uma . ·:.-C'::iidade que não tem nada de artificial, pois ela só retém dopas,_, que dele ainda é i·irn ou capa: de viver na consciência do _~-'que o mantém" Ibid., p. 70. - 14. Halbwachs insiste várias vezes sobre a partilha de um ponto de vista e sobre a comunhão dos dados de referência como fundamentos da memória coletiva, por exemplo: op cit, pp. 3, 48-53, 61, etc._ !Did.. pp. 74-79. Na seqüência da exposição. empregarei o termo "espectador um movimento que ultrapassa a simples compreensão do esDetáculo proposto e se faz produtora de sentido. Composição, montagem, ritmo conduzem da visão à compreensão", F. Albera, 1980, p. 9. - 15. Com relação à memória coletiva. a memória individual estaria na vertente oposta àquela em que se situa o objeto cultural. Uma abordagem que se refira à psicologia histórica seria então possível (Meyerson, 1948). S. Assim acontece com a representação do juramento no momento da Revolução Francesa ou ainda com a representação do herói revolucionário: J. Davallon, 1981. 9. "De um lado, então, um ícone que é a presença real e 'viva' do monarca; de outro, um relato que é seu túmulo subsistindo para sempre. A representação como poder, o poder como representação são um e outro um sacramento na imagem e um 'monumento' na linguagem, onde, cambiando seus efeitos, o olhar deslumbrado e a leitura admirativa consomem o corpo radioso do monarca, um recitando sua história em seu retrato, o outro contemplando uma de suas perfeiçües no relato que eterniza a manifestação". L. Marin, 1981, p. 10. Esta particularidade da imagem foi notavelmente bem estudada pela semiologia do cinema. Como indica F. A Ibera, é ela que S. M. Eisenstein :i::-s:;::-..2. ~e~.: te:ra:, . .~: 1 :e.n;.:.;:-ismo: ··o que caracteriza efetivamente es-J • ~ __ .._ e:~=:_- ~.:; Sércn~ Toulouse-Lautrec, Van Gogh. ::.:=-~~- _; es:;ldar para compreender esta no~ ~;,,e 5;,,; consrrnção impüe ao espectador um .::·:_:-...:.(::.. ~:_, -e··' -·:'.:;-.:s.>:~ a simples compreensão do espetáculo pro' ,-, _--.:~ ;;rc âwora de sentido. Composição, montagem, ritmo 1:c::1:em da l'isão à compreensão", F. Albera, 1980, p. 9. 11. Esse artigo de E. Benveniste foi retomado em Problemas de lingüística geral, t. 2., 1974. Essa dominância do modo semântico e meta-semântico foi reconhecida bem cedo pela semiologia (J .L. Schefer, 1969; R. Barthes, L. Martin, etc.), depois apoiada e corroborada pelas análises da semiótica visual que se referem à teoria de A. J. Greimas. 12. Este ponto exigiria uma análise precisa e circunstanciada. Encontraremos uma primeira e indispensável abordagem em Metz, 1975. 36 l 1 37 MEMÓRIA GREGA ,,~-•·''': Escolhi propor-lhes, para introduzir o debate desta manhã, não uma descrição de nossas próprias práticas memoriais, uma análise de nossa própria gestão da memória, mas uma interrogação envolvendo aquelas da Grécia antiga, da Grécia clássica. Observar em que posição particular os gregos se colocavam com relação à sua própria memória, à gestão que eles podiam fazer dela. Serei rápido, portanto esquemático, e aqueles que conhecem esses problemas queiram desculpar a brutalidade deste esboço grosseiro. A discussão permitirá, espero, voltar a todos os pontos que se desejar que eu retome. Os gregos apresentam um problema com sua memória, um problema muito simples. Não é possível para o não-grego, digamos, para o bárbaro (o que não é um termo necessariamente negativo), reconhecer-se grego sem referência a toda uma série de relatos com todo seu peso, seu valor normativo, sejam eles retomados coletivamente ou não, e sejam eles fixados ou não em formas "literárias" precisas: o Mito. Mas o mito é também algo de muito organizado, em uma forma codificada, diga39 mos, a epopéia. E imediatamente coloca-se o problema fundamental. Falo certamente aqui situando-me como observador em uma Atenas do século V sempre tão mítica e sempre tão necessária. Se, como esse menino grego, sou educado através da salmodia de Homero, ou se, como grande diva percorrendo as cidades gregas, interpreto o poeta durante manifestações coletivas, festas que organizam e estruturam o grupo, não produzo uma epopéia. Quero dizer com isso que aquele que recita o texto épico pode apenas retomar indefinidamente uma memória organizada em um texto que se tornou fechado e em relação ao qual ele mantém uma relação que podemos chamar demoníaca, que ultrapassa então as estruturas da memória humana, uma relação que o faz entrar em contato, de maneira quase possessória, com o próprio poeta ou alguma coisa que resta dele e se transmite por sua palavra. Por quê? Porque o poeta, ele mesmo, o aedo, não possui fala própria. No momento em que recita as proezas dos heróis, o aedo só o faz porque a Musa fala através dele, por ele. Quer dizer que não há possibilidade de produção da memória na cidade fora da presença do poeta épico, digamos, para ser breve, de Homero. Os gregos apresentam, então, como principal meio de reconhecimento de si mesmos, um dos textos que se produziram e se fixaram fora de seu domínio e que eles são forçados a repetir sem meios de modificá-los em função de novas exigências sociais. Textos que lhes fornecem as categorias de percepção do mundo no qual se encontram. O garoto educado em Atenas aprende música, recita a epopéia, e sabe assim definir o mar em oposição à terra, a tempestade em oposição ao céu sereno, etc. Ele recebe toda uma série de meios de categorizar o real, que o situam como grego. Em contraste com os vizinhos persas, que possuem calças, modos de viver diferentes, que percebem as coisas diferentemente, etc. O problema aí não é maior, isso funciona de modo bastante imediato. Mas a partir do momento em que olhamos não mais as categorias de percepção da realidade, mas o sistema de valores éticos, 40 ~~~,e-,-c!':i~.'í~i;lilii11ili!i11111UlüUíliiiiííiliiiiiiliiiiiiiiiíiiiliiiiiiii em resumo, valores políticos e sociais, no qual nos situamos, as coisas se apresentam de outro modo e a contradição aparece. Se pretendemos, por exemplo, fazer a guerra, a guerra da cidade, como o fazia Aquiles, arriscamos com os nossos nas piores dificuldades. Observemos o modo como as coisas se passam nesse texto célebre (analisado por P. Vida! Naquet) 1 , a cena dos escudos em os Sete contra Tebas 2 • O guerreiro do mito é atingido pelo menos, esse furor que possui sua alma e o rende. Ele é invadido pela ira de matar, orientado para realizar os grandes feitos que são objeto do canto épico. Isto o coloca em contradição total com as regras do grupo social no quadro da cidade, regras que supõem uma guerra racional e democrática. A igualdade dos combatentes é aí fundamental: não se trata de combater para se fazer ilustre no combate mas de defender a cidade com os companheiros de linha, cada um solidário um com o outro, na falange. Há verdadeiramente uma contradição inevitável em uma memória que estabelece ao mesmo tempo o sistema categorial que nos define como partidários de nosso grupo, e valores sociais que nos colocam em oposição a ele. Isto teve como efeito imediato na produção cultural, para retomar a fórmula proposta logo acima, a tragédia. A tragédia na qual vemos estabelecidas ao mesmo tempo a necessidade do mito e as dificuldades que ele provoca. Não podemos nos livrar do Édipo nem se acomodar com ele. De onde a necessidade de interrogar o mito em função do sistema de valores da cidade contemporânea, já que não podemos levá-lo tal qual em consideração. Por outro lado, existe a necessidade de se produzir uma memória, um memorável válido para o tempo da cidade, e, de certa forma, nos trabalhos de memória, estamos sempre em rivalidade com Homero. Quando, por exemplo, as primeiras práticas historiadoras aparecem (F. Hartog, ausente da França, estaria melhor posicionado do que eu para falar disso), vemos bem que a necessidade da pesquisa vem da necessidade de fa41 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 1mm11.------------------------------------------------------------ bricar um memorável adequado ao mundo dos contemporâneos. Ao mesmo tempo coloca-se a questão da enunciação. Quem fala e com que direito? O poeta com suas garantias não está mais aí para fazê-lo em meio aos seus. Aquele que produz o memorável para a cidade, assim, tem sempre, de certo modo, a nostalgia da epopéia definitivamente impossível. Quando a cidade produz um discurso adequado pelo qual ela se funda, fabricando seu próprio memorável mítico, quando ela pratica a oração fúnebre, ela o faz em referência aos valores do epos (N. Loraux, de novo aqui, seria bem melhor que eu para falar disso). O orador oficial narra então a grandeza de Atenas pela grandeza de seus guerreiros mortos ao modo dos heróis, incorporando os valores que servem a isso. Para não multiplicar os casos de figura, gostaria agora de observar o modo como a imagem pode se inserir nesse dispositivo de produção (seguindo desta vez F. Lissarrague que não pode estar aqui hoje. Espero não trair ninguém, enfim não muito, fazendo falar tantos amigos ausentes!). A imagem possui uma vantagem fundamental: ela representa e ao mesmo tempo produz sentido. De outro modo, quando a imagem é representação, ela pode representar um guerreiro da cidade, o hoplita carregando o corpo de seu companheiro morto. Através de alguns elementos do dispositivo icónico, é possível mostrar que o guerreiro morto é um herói parecido com o da epopéia, com o guerreiro épico: a forma do escudo, o tipo de penteado, por exemplo. A imagem pode conter nomes, Aquiles, Ajax, com uma referência evidente aos dados épicos. Ela é representação ou motor de discursos, ocasião assim de reatualizar a memória para retomar o que estava dito antes, a memória dos valores do epos. Em uma cena desse gênero, podemos introduzir Atena. A deusa, sabemos, mantém uma relação específica com os heróis do ciclo troiano: ela pode então fazer parte dessas representações. Se suprimimos as indicações de nomes, Atena continua reconhecível graças aos elementos que a definem (armas, coruja, etc.) mas o guerreiro carregador ou carregado, torna-se simples- mente um guerreiro em presença de Atena. O que faz com que uma representação desse gênero seja ao mesmo tempo válida para o herói e para a situação na qual o combatente da cidade, o hoplita, é declarado comparável aos heróis, com uma verdadeira metaforização interna à imagem. Podemos ir ainda mais longe, nesse sentido, adicionando por exemplo no dispositivo carregador/carregado, em presença de Atena, um leão que desfila com os personagens da imagem, ao fundo do conjunto. O valor metafórico da imagem é assim assinalado do interior do próprio dispositivo, o leão não tendo outra significação possível em um contexto como esse. Aliás, o ritual dos funerais públicos não tinha rigorosamente nada o que fazer com o que era representado nas imagens desse tipo (eu deveria, desculpem, tê-lo dito no começo), quer dizer com esse transporte individual do cadáver incluído no universo épico. Os mortos celebrados pelo ritual ateniense são anônimos, coletivamente honrados, etc. e disso a imagem não diz nada. Podemos assim ver como a imagem pode jogar nessa estratégia da memória onde as margens de manobras são bastante reduzidas. Visto que as questões de enunciação não se colocam mais no interior do novo conjunto onde a imagem joga com suas condições específicas de produção, torna-se possível praticar uma política de memória mais flexível nesse mundo, somando-se tudo, tão complexo que é o domínio grego. Penso que seria necessário desdobrar um pouco mais tudo isso diante de vocês. E isso para remeter, certamente, dentro de uma perspectiva antropológica, que eu defendia ontem em uma outra oficina, à nossa própri:i prática memorial, no sistema com memória institucional que é o nosso. Temos historiadores, universidades onde se ensina a história. Gostaria simplesmente que nos interrogássemos, enquanto produtores de memória, com relação ao funcionamento grego da prática memorial. E gostaria, para terminar e à guisa de incitar a discussão, de me perguntar se o fato de que a primeira memória heróica produzida no curso do estabelecimento de nossa história republicana gire em torno de per- 43 42 , li'rtil!llii!lll H~!t!Hl!I n sonagens como Vercingétorix ou Joana d' Are, que eu diria massivamente "míticos" à grega, é um acaso ou se isso coloca questões sobre nossa própria gestão da memória no quadro da instituição que a produz. BIBLIOGRAFIA Jean-Louis Durand VIDAL-NAQUET, P. (1978), "Les boucliers des héros ... ", Revue des Études grecques, no XVI. ESCHYLE. Les Sept contre Thebes, texto elaborado e traduzido por Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, la ed., 1963; revista em 1966. 44 45 NOTAS 1. Vidal-Naquet, P., 1978. Les boucliers des héros .. ., Revue des Études grecques, no XVI. 2. Eschyle. Les Sept contre Thebes, texto elaborado e traduzido por Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, la ed., 1963, revista em 1966. 47 a PAPEL DA MEMÓRIA Não pretendo fornecer um levantamento exaustivo do trabalho da manhã, nem resumir as três apresentações de que nos beneficiamos. Gostaria simplesmente de dar a tonalidade delas, acentuando o que me pareceu ser as nervuras principais do debate. De início, uma observação de conjunto sobre as três apresentações: Pierre Achard trabalha em sociolingüística e emanálise de discurso, Jean Davallon em semiótica e sociosemiótica do espaço e Jean-Louis Durand efetua pesquisas semióticas sobre o gestual na antiguidade ateniense clássica. Corríamos o risco então de ter discussões agradavelmente paralelas, sem ponto de contato: por exemplo, uma sobre os textos e os discursos, e outra sobre a imagem. De fato, a questão do papel da memória permitiu um encontro efetivo entre temas a princípio bastante diferentes. Esta questão conduziu a abordar as condições (mecanismos, processos ... ) nas quais um acontecimento histórico (um elemento histórico descontínuo e exterior) 49 é suscetível de vir a se inscrever na continuidade interna, no espaço potencial de coerência próprio a uma memória. Memória deve ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da "memória individual", mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador. O risco evocado de uma vizinhança flexível de mundos paralelos se deve de fato à diversidade das condições supostas com essa inscrição: é a dificuldade - com a qual é preciso um dia se confrontar - de um campo de pesquisas que vai da referência explícita e produtiva à lingüística, até tudo o que toca as disciplinas de interpretação: logo a ordem da língua e da discursividade, a da "linguagem", a da "significância" (Barthes), do simbólico e da simbolização ... Não é de se admirar, nessas condições, que a idéia de uma fragilidade, de uma tensão contraditória no processo de inscrição do acontecimento no espaço da memória tenha sido constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que desempenhou o papel de ponto de referência: - o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se in'screver; - o acontecimento que é absorvido na memória, como se não tivesse ocorrido. No que concerne aos múltiplos registros evocados acima, que formam uma continuidade problemática entre a lingüística e as disciplinas de interpretação (restando saber em que medida a própria lingüística é ou não uma disciplina de interpretação), um acordo muito amplo se manifestou, nas apresen50 rações e na discussão, sobre a especificidade da ordem propriamente lingüística (definida por exemplo como a da variação combinatória, à qual J.-C. Milner se referiu em sua apresentação), em relacão à ordem do discursivo, e afortiori em relação às do icônico, do simbólico ou da simbolização. O fato de que possa existir localização de traços distintivos e de oposições pertinentes na esfera do icônico, por exemplo, não conduziu ninguém a supor que, mesmo para uma sincronia dada, haveria universais do icônico (pessoalmente, a impensabilidade de uma sintaxe do icônico me parece marcada pela inexistência da negação e da interrogação no interior da imagem). A questão de uma possível combinatória culturalmente determinada dos segmentos gestuais (a propósito da qual J.-L. Durand mencionou certos trabalhos etnológicos americanos recentes) coloca provavelmente um problema bem diferente, mas não desemboca mais em impossíveis universais gestuais. Concebemos desde então que o fato incontornável da eficácia simbólica ou "significante" da imagem tenha atravessado o debate como um enigma obsediante, e que, por seu lado, os fatos de discurso, enquanto inscrição material em uma memória discursiva, tenham podido aparecer como uma espécie de problemática-reserva. Essa negociação entre o choque de um acontecimento histórico singular e o dispositivo complexo de uma memória poderia bem, com efeito, colocar em jogo a nível crucial uma passagem do visível ao nomeado, na qual a imagem seria um operador de memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar: tocamos aqui o efeito de repetição e de reconhecimento que faz da imagem como que a recitação de um mito. Na transparência de sua compreensão, a imagem mostraria como ela se lê, quer dizer, como ela funciona enquanto diagrama, esquema ou trajeto enumerativo. Refirome a tudo o que Jean Davallon adiantou a esse respeito. 51 Tocamos aqui um dos pontos de encontro com a questão da memória como estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida em uma dialética da repetição e da regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os "implícitos" (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível. Ora, acontece que esta é uma das questões cruciais atualmente abordadas pela análise de discurso: uma discussão aberta a esse respeito, que - sem ser puro 11egócio de butique - reveste apesar de tudo um caráter relativamente "técnico". A questão é saber onde residem esses famosos implícitos, que estão "ausentes por sua presença" na leitura da seqüência: estão eles disponíveis na memória discursiva como em um fundo de gaveta, um registro do oculto? P. Achard levanta a hipótese de que não encontraremos nunca, em nenhuma parte, explicitamente, esse discurso-vulgata do implícito, sob uma forma estável e sedimentada: haveria, sob a repetição, a formação de um efeito de série pelo qual uma "regularização" (termo introduzido por P. Achard) se iniciaria, e seria nessa própria regularização que residiriam os implícitos, sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase (que podem a meu ver conduzir à questão da construção dos estereótipos). Mas, sempre segundo P. Achard, essa regularização discursiva, que tende assim a formar a lei da série do legível, é sempre suscetível de ruir sob o peso do acontecimento discursivo novo, que vem perturbar a memória: a memória tende a absorver o acontecimento, como uma série matemática prolonga-se conjeturando o termo seguinte em vista do começo da série, mas o acontecimento discursivo, provocando interrupção, pode desmanchar essa "regularização" e produzir retrospeciivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar o aparecimento de uma nova série que não estava constituída enquanto tal e que é assim o produto do acontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior. Haveria assim sempre um jogo de força na memória, sob o choque do acontecimento: - um jogo de força que visa manter uma regularização pré-existente com os implícitos que ela veicula, confortá-la como "'boa forma", estabilização parafrástica negociando a integração do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo; - mas também, ao contrário, o jogo de força de uma "desregulação" que vem perturbar a rede dos "implícitos". Em relação com a questão da regularização, a da repetição (dos itens lexicais e dos enunciados) prolongou o debate: a repetição é antes de tudo um efeito material que funda comutações e variações, e assegura - sobretudo ao nível da frase escrita1 - o espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica produzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa identidade material. Mas a recorrência do item ou do enunciado pode também (este é um ponto introduzido por Jean-Marie Marandin na discussão) caracterizar uma divisão da identidade material do item: sob o "mesmo" da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação discursiva ... Uma espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase. Esse efeito de opacidade (correspondente ao ponto de divisão do mesmo e da metáfora), que marca o momento em que os "implícitos" não são mais reconstrutíveis, é provavelmente o que compele cada vez mais a análise de discurso a se distanciar das evidências da proposição, da frase e da estabilidade parafrástica, e a interrogar os efeitos materiais de montagens de seqüências, sem buscar a princípio e antes de tudo sua 53 52 ---- ] jlrTTJ'11 1 llMlllll _ _ _ _ _ _ _llll!lll_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _mllll significação ou suas condições implícitas de interpretação. Trata-se, de outro modo, de retirar-se provisoriamente, taticamente, da questão do sentido, sabendo ao mesmo tempo que a questão da interpretação é incontornável e retornará sempre. A esse propósito, devo fazer um esclarecimento a respeito da fala de Sylvain Auroux, que me atribuiu uma controvérsia com J.-C. Milner sobre a questão de saber se ele se estimava ou não ser colega de Beauzée: parece-me útil explicar um pouco de que se trata! A questão concerne de fato ao estatuto da lingüística frente às disciplinas de interpretação. Eu tinha perguntado a Vidal-Naquet (a partir da alusão ao artigo de Nicole Loraux ''Tucídides não é um colega", muito citado no decorrer dessas jornadas), se, para ele, Tucídides, sem ser seu colega, era não obstante um historiador; questão à qual P. Vidal-Naquet respondeu: "Sim, certamente!", o que implica que não há começo histórico assinalável para a disciplina histórica, na medida em que a história é uma disciplina de interpretação: para um físico, por exemplo, o problema de saber se Aristóteles é um colega não se coloca. Aristóteles não é para ele nem um colega, nem um físico. Minha questão a J.-C. Milner concernia então de fato à posição da lingüística a respeito da interpretação. Perguntarse se há ou não um momento histórico assinalável em que se pode dizer de alguém ''é um lingüista'', não é então colocar um mero poblema de datação, mas levantar a questão de saber se a lingüística é uma disciplina puramente "experimental", ou se ela tem necessariamente algo a ver (de modo complexo, equívoco, ambíguo ... mas algo a ver) com as disciplinas de interpretação, desde a história até a psicanálise. Fecho este parêntese para retornar à questão da interpretação em análise de discurso: P. Achard caracterizou esse movimento de retirada provisório da questão do sentido e da vontade de interpretar, lembrando o provérbio chinês "Quando lhe mostramos a lua, o imbecil olha o dedo". Com efeito, por que não? Por que a análise de discurso não dirigiria seu olhar sobre os 54 gestos de designação antes que sobre os designata, sobre os procedimentos de montagem e as construções antes que sobre as significações? A questão da imagem encontra assim a análise de discurso por um outro viés: não mais a imagem legível na transparência, porque um discurso a atravessa e a constitui, mas a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a memória "perdeu" o trajeto de leitura (ela perdeu assim um trajeto que jamais deteve em suas inscrições). A imagem muda é por exemplo o choque opaco de uma imagem de vaso grego: a arquelogia possui apenas o olho, quer dizer, imagens e textos, sem coincidência, e não, como a antropologia de hoje, o "a mais" do ouvido (a voz, a "trilha sonora"). O que evoco aqui remete à apresentação de J.-L. Durand, que mostrou como a epopéia heróica grega fazia irrupção nas cenas visuais da democracia ateniense (em particular as cenas funerárias), através de telescopias burlescas por seu anacronismo (mais ou menos como se mostrássemos Vercingétorix a bordo de um avião a jato). No outro extremo, o choque opaco do acontecimento televisual é também algo que não se inscreve, na medida em que está sempre "já lá", no retorno de um paradigma pesado que se repete no interior de sua aparição instantânea: por exemplo (intervenção de Maurice Mouillaud), a história do submarino soviético perdido no Báltico, quando este vem à superfície da tela de TV; o submarino está sempre lá, não necessariamente no fundo do mar, mas nas profundezas de um paradigma que estrutura o retorno do acontecimento sem profundidade. Reencontramos assim, para finalizar, a questão da relação entre a imagem e o texto: no entrecruzamento desses dois objetos, onde estamos, tecnologicamente e teoricamente, hoje, com relação a esse problema que, após Benveniste, Barthes designou com o termo "significância"? 55 Em que pé estamos com relação a Barthes? Barthes era tanto lingüista dos textos como teórico das imagens, ou de preferência não era nem um nem outro (quer dizer, nem lingüista, nem semiólogo, nem analista) mas antes de tudo o esboço contraditório de gestos que tentamos hoje reencontrar, e que ele soube agenciar à sua maneira talvez única, quer dizer, em pessoa - logo também, e de maneira equívoca: como pessoa? A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse debate é que uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização ... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos. NOTAS 1. Assinale-se a esse propósito uma intervenção de Françoise Madré, problematizando a relação escrito/oral do ponto de vista da repetição e da memória. 2. Penso nas teses desenvolvidas por Paul Veyne, que poderiam bem ilustrar esse pantextualismo que foi designado como risco constante no decorrer dos debates. O último livro de P. Veyne "Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes" dá uma idéia desse frasco ideal do relativismo absoluto. E o fato de que exista assim o outro interno em toda memória é, a meu ver, a marca do real histórico como remissão necessária ao outro exterior, quer dizer, ao real histórico como causa do fato de que nenhuma memória pode ser um frasco sem exterior. l~ Michel Pêcheux 56 57 MAIO DE 1968: OS SILÊNCIOS DA MEMÓRIA* Introdução Falando de história e de política, não há como não considerar o fato de que a memória é feita de esquecimentos, de silêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silêncios e de silenciamentos. Os sentidos se constróem com limites. Mas há também limites construídos com sentidos. E quando penso maio de 68, o que vem à frente da cena - política e histórica - é o silenciamento, são os sentidos que impõem limites. A tortura, a censura, a agressão da ditadura à sociedade, à cidadania. Mais do que ver no acontecimento maio-68 a constatação dessa violência, interessa vê-lo, enquanto acontecimento discursivo, justamente, como fato desencadeador de um processo de produção de sentidos que, reprimido, vai desembocar na absoluta dominância do discurso (neo)liberal. No entanto, enquanto tal, no momento em que apareceu, maio-68 abria para uma nova discursividade, produzindo efeitos metafóricos que afetavam a história e a sociedade, de maneira explosiva, em várias 59 direções: politicamente, culturalmente, moralmente. E o que vai se dar com essa discursividade no futuro? O que significa maio de 68 hoje? Para trazermos essa questão para a reflexão, podemos referir o texto de M. Pêcheux (p. 33 aqui mesmo), no qual ele procura compreender, junto a lingüistas, semioticistas e historiadores, a fragilidade no processo de inscrição do acontecimento no espaço da memória que, segundo ele, joga em uma dupla forma: a. o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a inscrever-se, e b. o acontecimento que é absorvido na memória como se não tivesse ocorrido. O caso que estou apresentando não se enquadra nem na primeira, nem na segunda possibilidade. É uma nuance entre elas: é como se não tivesse ocorrido (b ), não porque foi absorvido mas, ao contrário, justamente porque escapa à inscrição na memória (a). É este, penso eu, o caso da censura em geral. Nesse sentido, embora eu explore aqui uma situação particular de censura, essa minha reflexão pode contribuir para a compreensão da relação entre memória e censura em geral. Um pouco de teoria É já conhecido, na análise de discurso, que há interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia. É assim que se considera que o sujeito se constitui em sujeito por ser afetado pelo simbólico. Daí seu assujeitamento, ou seja, para que o sujeito seja sujeito é necessário que ele se submeta à língua. E é por estar sujeito à língua, ao simbólico, que ele, por outro lado, pode ser sujeito de. Além disso, é preciso que a língua se inscreva na história 60 para significar. E é isso a materialidade discursiva, isto é, linguístico-histórica. Da interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia resulta a forma-sujeito histórica. Em nosso caso, a forma-sujeito histórica capitalista corresponde ao sujeito-jurídico constituído pela ambiguidade que joga entre a autonomia e a responsabilidade sustentada pelo vai-e-vem entre direitos e deveres. Podemos dizer, então, que a condição inalienável para a subjetividade é a língua, a história e o mecanismo ideológico pelo qual o sujeito se constitui. Por outro lado, esse sujeito, uma vez constituído, sofre diferentes processos de individualização (e de socialização) pelo Estado. Assim, se temos o indivíduo como ponto de partida para o assujeitamento ao simbólico - e, quanto a este assujeitamento o sujeito não tem controle pois ele se passa "antes, em outro lugar e independentemente" - temos sobre esse sujeito processos que o individualizam e que derivam das diferentes formas de poder. E aí as Instituições e o Poder constituído têm um papel determinante. É nessa instância que se dão as lutas, os confrontos e onde podemos observar os mecanismos de imposição, de exclusão e os de resistência. Pois bem, é assim, partindo dessa posição teórica, que procuraremos compreender o que tenho chamado de "processos de de-significação" que estão presentes em discursividades como as que incidem sobre maio de 68. Portanto, não trataremos o sujeito como algo que se trabalha do ponto de vista de uma sua essência, mas pensando sua existência como constituída pela sua relação com a língua e com a história onde se confrontam o simbólico e o político. E a nossa questão é: o que aconteceu com os sentidos que constituem o evento maio-68? Para falar disso retomamos o fato de que falar é esquecer. Esquecer para que surjam novos sentidos mas também es61 quecer apagando os novos sentidos que já foram possíveis mas foram estancados em um processo histórico-político silenciador. São sentidos que são evitados, de-significados. Formações Discursivas e Esvaziamento de Sentido A definição de formação discursiva diz que ela delimita "aquilo que pode e deve ser dito por um sujeito em uma posição discursiva em um momento dado em uma conjuntura dada" (Haroche, Henry, Pêcheux, 1975). No modo como o político se simboliza nos anos 60 há todo um possível dizer da sociedade, da cultura que coloca os sujeitos em medida de uma transformação histórica e social de grande dimensão. Essa possibilidade eclode nos movimentos de 68 tendo a palavra liberdade como carro-chefe. No mundo todo há manifestações de rua em que uma discursividade candente trabalha os muitos sentidos postos na reivindicação das liberdades concretas necessárias à sociedade em suas novas posssíveis formas. São assim enunciados que funcionam em suas relações parafrásticas, relacionando-se em suas diferentes formulações ao que pode significar "liberdade": a. "É proibido proibir!". b. "Faça amor e não faça guerra!" que deriva ainda para "Paz e Amor!". c. "Boulot, Metro, Dodo!" em português: "Trabalho, Condução e Cama!". Que, em suas diferentes formas de dizer, afirmam a re- 62 cusa a uma vida reduzida a regras e a um trabalho que, por sua vez, reduz o homem em suas possibilidades de vida. Uma paráfrase agora, com o tempo já deslocado, mostra a conversão desse discurso em um processo que o de-significou. Essa paráfrase aparece, em maio de 1998, em um poster de propaganda no metrô de Paris: um casal nu, tatuado com flores no peito, dirigindo-se a uma exposição, e, embaixo, os dizeres "Entrada livre. Isso faria sonharem seus pais ... ". Esse enunciado por sua vez mostra a forma como os sentidos concretos e explosivos de liberdade, que estavam levando à uma revolução social e cultural, a novos sentidos para os sujeitos e para à história, foram barrados violentamente pelo status quo. Pelas instituições, pelo poder. E, no caso do Brasil, mais violentamente ainda porque estávamos em uma ditadura e era bem diferente dizer "É proibido proibir" aqui em uma rua de São Paulo e em uma rua de Paris ... No poster dos anos 90 "entrada livre" e gratuita reduz o sentido de liberdade ao preço de um parque de diversões. O interditado que toma a forma do impossível Então, sentidos possíveis, historicamente viáveis foram politicamente interditados. E tornaram-se inviáveis. Essa impossibilidade, posta pela censura e pela força, se naturaliza e funciona como um pre-construído restritivo a certos sentidos de liberdade, de tal maneira, que eles parecem impossíveis. Foram assim desmoralizados, amolecidos, inviabilizados, de-significados, postos fora do discurso. E a palavra "liberdade" aparece feito florzinha que se prende com um bottom numa roupinha maneira ... Ao mesmo tempo, pela outra mão, a da direita, nesse mesmo processo, se estabelecem as bases do discurso neo-libe63 ralem que se individualiza a questão da liberdade, destituindoª da força concreta histórica que ela tinha na outra formação discursiva - a da esquerda, em que o partido comunista propunha em seu programa a necessidade de construção de uma democracia fundada nas liberdades concretas necessárias para as novas formas sociais - em que haviam se alocado sentidos explosivos de liberdade. E o que é silenciado em uma formação discursiva é acolhido em outra formação discursiva, esta, dominante, que corresponde ao viés pragmático e empresarial da política neo-liberal desembaraçada dos sentidos mais corrosivos, transformadores do político. Essa liberdade sem determinações concretas, agora generalizada, pode ser reivindicada, individualizando-se, até pelos neo-nazistas que, em nome dela, exigem o direito de usar a suástica em suas roupas opressivas. e esquecidas, ao longo do tempo e de nossas experiências de linguagem que, no entanto, nos afetam em seu "esquecimento". Assim como a língua é sujeita a falhas, a memória também é constituída pelo esquecimento; daí decorre que a ideologia, diz M. Pêcheux (1982), é um ritual com falhas, sujeito a equívoco, de tal modo que, do já dito e significado, possa irromper o nm o, o irrealizado. No movimento contínuo que constitui os sentidos e os sujeitos em suas identidades na história. Ainda em M. Pêcheux (aqui mesmo, p. 36) temos: "uma espécie de repetição vertical, em que a memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase". O que dá, segundo esse autor (idem, p.39), a idéia de memória como um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização. Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos (1). O que é isto companheiro? Memória e Censura Não é nada disso, companheiro, diz uma paráfrase de José Simão que, com seu humor, evoca o jogo discursivo que atravessa esse enunciado em sua memória, agora transformada de romance em filme. E a questão é, sem dúvida uma questão de memória. No sentido discursivo, A memória - o interdiscurso, como definimos na análise de discurso - é o saber discursivo que faz com que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se constitui pelo já-dito que possibilita todo dizer. Pois bem, como dissemos no início, o sujeito é assujeitado, pois para falar precisa ser afetado pela língua. Por outro lado, para que suas palavras tenham sentido é preciso que já tenham sentido. Assim é que dizemos que ele é historicamente determinado, pelo interdiscurso, pela memória do dizer: algo fala antes, em outro lugar, independentemente. Palavras já ditas 64 O que acontece com maio-68 porém é de outra ordem. A falha é constitutiva da memória, assim como o esquecimento. No entanto o que acontece com os sentidos de 68 é que eles não falham apenas nessa memória, eles foram silenciados, censurados, excluídos para que não haja um já dito, um já significado constituído nessa memória de tal modo que isso tornasse, a partir daí, outros sentidos possíveis. Há faltas (2) - e não falhas de tal modo que eles não fazem sentido, colocando fora do discurso o que poderia ser significado a partir deles e do esquecimento produzido por eles para que novos sentidos aí significassem. Há, assim, "furos", "buracos" na memória, que são lugares, não em que o sentido se "cava" mas, ao contrário, em que o sentido "falta" por interdição. Desaparece. Isso acontece porque toda uma região de sentidos, uma formação discursiva, é apagada, silenciada, interditada. Não há um esquecimento pro- 65 duzido por eles, mas sobre eles. Fica-se sem memória. E isto impede que certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos. Como a memória é, ela mesma, condição do dizível, esses sentidos não podem ser lidos. Para observarmos isso basta pensarmos nos sentidos dos nossos "companheiros" de maio-68 trucidados pela tortura e pela repressão militar. Eu vi, em meu silêncio, muitos de meus colegas com suas fotos afichadas como perigosos guerrilheiros em pilares da rodoviária de São Paulo toda vez que ia tomar ônibus. Eram lidos, vistos, pensados como perigosos terroristas. Por onde passam os sentidos do terrorismo? Por onde passam os sentidos da resistência política de 68? Os sentidos de liberdade? Acontece que estes sentidos - excluídos, silenciados não puderam e não podem significar, de tal modo que há toda uma nossa história que não corresponde a um dizer possível. Não foram trabalhados socialmente, de modo a que pudéssemos nos identificar em nossas posições. Do mesmo modo ficam sem ser politicamente significados os feitos da tortura e do que resultou dela na nossa política. Toda vez que vamos votar, mesmo que nem pensemos nisso, o fato de que o Brasil é um país que tortura os dissidentes políticos faz parte de nossa memória e de nossos gestos políticos. E isso não mereceu ainda sua explicitação política (3). Está fora da memória, como uma sua margem que nos aprisiona nos limites desses sentidos. O que está fora da memória não está nem esquecido nem foi trabalhado, metaforizado, transferido. Está in-significado, de-significado (4). to a repressão porque resvala para o que, hoje, se considera como ilegal, indo na direção do que se considera "mobilização social", ilegal, e que, em maio-68, estava absolutamente dentro das espectativas do político. Para tenninar, eu gostaria de dizer que o real histórico faz pressão, fazendo que algo irrompa nessa objetividade material contraditória (a ideologia). O que foi censurado não desaparece de todo. Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso, in-significados e que demandam, na relação com o saber discursivo, com a memória do dizer, uma relação equívoca com as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites. Eni P. Orlandi Em conseqüência, a discursividade política tem seus pontos de tensão nos indícios desses silenciamentos. Hoje, discursos como os do MST, que são uma ruptura no discurso político neo-liberal, têm dificudade de significar-se nessa margem em que muitos sentidos não podem fazer o sentido do político, onde palavras como "movimento" podem significar algo sujei66 ' 1 67 .,, 'l\)l\li:l1.111, BIBLIOGRAFIA CL.HAROCHE, P. HENRY EM. PÊCHEUX (1975) "La couppure saussurienne: langue, langage, discours" in Langages, Larousse, Paris. E. P. ORLANDI (1993) As Formas do Silêncio, Ed. Unicamp, Campinas. E. P. ORLANDI (1998) "Ética e Significação'', trabalho apresentado em mesa-redonda da ANPOLL, Campinas. -,. ' M. PÊCHEUX (1982) "Délimitations, Inversions, Deplacements" in L'Homme et la Société, Paris, trad. Bras. de José Horta Nunes, in Cadernos de Estudos Lingüísticos , nº . 19, IEL, Unicamp, 1990. M. PÊCHEUX (1983)" Rôle de la Mémoire", in Histoire et Linguistique, trad. José Horta Nunes, O Papel da Memória, Ed. Pontes, 1999, Campinas. 69 NOTAS ,, . * Uma primeira versão deste texto foi apresentada em Santa Maria (RS), no Colóquio "Utopias e Distopias'', em maio de 1998. Agradeço a Amanda Scherer a oportunidade e a convivência com os que estiveram no evento. 1. As teses de Bethania C. S. Mariani, sobre o discurso do Partido Comunista no Brasil (1997), a de Suzy Lagazzi Rodrigues sobre o discurso do Assentamento ( 1998) e a de Maria Onice Payer sobre memória da língua, na situação da imigração italiana (em curso), trabalham todas elas esses aspectos de cristalização, de apagamento, ou de ruptura e resistência. . \~ '' ,, r--- 2. Estou aqui fazendo uma distinção - falha CCll1stitutiva e falta por interdição - que corresponderia, em paralelo, à distinção que faço entre nãosentido (que aponta para o sentido que poderá vir, o irrealizado) e o sem-sentido (o que já significou e que não faz mais sentido). No caso, a falha é o lugar do possível, do sentido a vir: e a falta, é o que foi tirado do sentido, o que não pode significar. Essas formas se indistinguem e, na maior parte das vezes, não é fácil separá-las. E está aí justamente, do ponto de vista da ideologia, a eficácia de seus efeitos. ln 'T 3. Mais recentemente, há referências públicas à tortura, mas que permanecem à margem, como acasos sem história, violência que não aparece como parte da política mas à parte dela. Transferida para a polícia. .---< µ, o z °' u <n O\ 0'1 CIJ 01 :5 o o u . N 0i "O ..._ o '1) Cl... N u; ü :::; ? E ü o tA ::<:'. ~ E- ~ <-•, +-' 8 a, 1) Cl 4. Conferir - a respeito da falta de trabalho da memória, da dificuldade de dizer, de se identificar e de transferir (metaforizar) sentidos que se pode perceber na falta de palavras, na tensão dos gestos, dos olhares e do silêncio constrangido (e constrangedor para nós cidadãos brasileiros ... ) dos corpos - o filme "15 Filhos": a imaterialidade da morte (sob tortura, fabricam-se os desaparecidos, a morte fica sem corpo ... ) é a imaterialidade da vida diz um dos, ou melhor, uma das filhas. 1 l. 71