Os Segredos Da Ficcao - Raimundo Carrero

March 31, 2018 | Author: LeonardoMorais | Category: Narration, Short Stories, Jokes, Novels, Screenplay


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DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." Você pode encontrar mais obras em nosso site: Epubr.club e baixar livros exclusivos neste link. Raimundo Carrero Os Segredos da Ficção Um guia da arte de escrever narrativas Copyright © 2005 Agir Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.1988 Revisão Cecilia Giannetti Juliana Fausto Capa Bruno Porto Diagramação Leandro Collares Produção editorial casa da palavra Assistente editorial Renata Arouca CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE - SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. c311s Carrero, Raimundo, 1947 Os segredos da ficção: um guia da arte de escrever narrativas / Raimundo Carrero - Rio de Janeiro: Agir, 2005 Inclui bibliografia 336p.: 15,5 x 23cm ISBN 85-220-0655-5 1. Ficção-Técnica. I. Título. 05-1151 CDD 808.3 CDU 808.1 11.04.05 15.04.05 009827 Todos os direitos reservados à AGIR EDITORA LTDA. Rua Nova Jerusalém, 345 CEP 21042-230 Bonsucesso Rio de Janeiro RJ tel.: (21) 3882-8200 fax: (21) 3882-8212/8313 Versão EPUB: 2017 Os segredos da ficção é um convite irresistível à criatividade. Romancista e contista premiado, Raimundo Carrero mostra neste livro estimulante que a literatura está ao alcance de todos aqueles que têm o impulso de criá-la e, também, a perseverança de trabalhar duro para transformar suas ideias em contos, novelas e romances. sabe do que está falando e não só por conta de narrativas impressionantes como Somos pedras que se consomem e As sombrias ruínas da alma. Dividido em fragmentos. Gustave Flaubert ou Mario Vargas Llosa – gênios de diversos estilos e épocas que têm em comum a disciplina e o rigor na criação de seus universos ficcionais. passo a passo. até os detalhes da construção de cenários. personagens e diálogos. Carrero demonstra. de Autran Dourado. existem. o desenvolvimento que transforma uma ideia em uma história. mas vai ainda mais além: em sua bela conversa sobre os bastidores da ficção. sim. transformando sua leitura num primeiro passo para tornar-se seu colega de ofício. falando diretamente a ele com a ajuda de ilustres companheiros de viagem como Ly gia Fagundes Telles. O autor. como o Guerra sem testemunhas. como poucos. Da busca de uma voz narrativa. mantém em Recife uma concorrida oficina literária. Há mais de dez anos. Os segredos da ficção tem antecedentes ilustres no Brasil. o personagem principal não é o escritor. que vai dar o tom do que se conta. trabalho de paciência e carinho no desenvolvimento do que ele chama "pulsação narrativa" de gente apaixonada por literatura. caminhos para chegar a ela. E é nestas trilhas que Carrero guia o leitor. como escrever tem mais a ver com transpiração do que inspiração. Se não há receita para a boa literatura. A eles o autor homenageia e cita. Os segredos da ficção expõe. Jack Kerouac. seduzido e estimulado a abandonar a passividade e "passar para o outro lado". e Matéria de carpintaria. . mas o leitor. de Osman Lins. em detalhes. no sertão pernambucano. Raimundo Carrero nasceu em Salgueiro. Rodrigo. Diego. É autor de As sombrias ruínas da alma (prêmio Jabuti em 2000) e Somos pedras que se consomem (prêmio APCA e Machado de Assis em 1999). DEDICATÓRIA Para Ariano Suassuna. Adriana . em 1947. que me ensinou os primeiros segredos Para Marilena. entre outros. No entanto. Serão respeitadas as soluções dos tradutores. O autor conhece os riscos e as naturais dificuldades.C." Mario Vargas Llosa Advertência Vários textos serão examinados através de traduções. o mais importante não era viver. ainda que com as imperfeições. R. porque ficaria inviável e antipático trabalhar em língua estrangeira. . Mas é inevitável. não é possível dispensar o exemplo de autores consagrados. Marcelino Freire Em memória Osman Lins Hermilo Borba Filho Aos amigos e amigas da Oficina de Criação Literária E para luz de todos. Maria Nina "Porque para ele. aproximadas daquelas realizadas pelos verdadeiros escritores. mas escrever. como para qualquer escritor. Sumário INTRODUÇÃO A VOZ NARRATIVA O PROCESSO CRIADOR IMPULSO INTUIÇÃO TÉCNICA PULSAÇÃO NARRATIVA A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM GÊNESE CONHECIMENTO APRESENTAÇÃO 1: RITO E AUTONOMIA APRESENTAÇÃO 2: O ESQUEMA DOS OLHARES CLASSIFICAÇÃO DESENVOLVIMENTO BIBLIOGRAFIA COMENTADA . . é preciso acreditar que o trabalho literário exige disciplina e método. Sempre achei que um escritor precisa conhecer a intimidade dos textos. Por isso procurei logo outro livro mágico e vigoroso. tardes e noites. são inevitáveis. E ganhei com isso. cada momento. Hermilo ofereceu à Civilização Brasileira o meu primeiro livro de contos: O domador de espelhos. Forster. que mesmo aqueles escritos aparentemente desorganizados – ou caóticos – eram fruto de muita dedicação. examinados. sobretudo quando rascunhei vários romances e contos de aprendiz. anotando. Com rigor. Ele me dizendo: leia os ingleses. conheci um livro que foi fundamental e decisivo para o meu aprendizado. de Rilke. Lia-o com atenção. Eternas. Não foi publicado porque achei-o ainda imaturo. Aprendi. por que tratá-lo como matéria feia e fria. Conversas de vencer horas. em 1973. Talvez não precisasse ir tão longe porque eram meus orientadores e meus amigos dois dos maiores escritores brasileiros: Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho. Muito contrário. acrescentando. anotados. logo nas primeiras páginas. a definitiva sentença de morte do autor iniciante: morro se não puder escrever? E ainda o aprendizado com Gilberto Frey re. riscando. Conselhos. Nenhuma grande obra nasce do acaso. nas conversas noturnas do terraço do casarão de Apipucos. cada circunstância. Absolutamente. Livros emprestados. Ele decretava. Muito disciplinado. E não se deseja o retorno a uma espécie de parnasianismo retardado nem a um formalismo insípido e vazio. em 1969. inclusive. Ariano – naquele instante em que lançou o Movimento Armorial – incentivou. a oportunidade do erro – desde que tratado conscientemente. apagando. Meu primeiro exemplar desapareceu nas águas que devastaram o Recife na cheia de 1975. Cada palavra deve ser trabalhada. INTRODUÇÃO Não se pretende aqui ditar normas à criação. Sem contar com o Seminário de Tropicologia. E no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais – hoje Fundação Joaquim Nabuco. prefaciou e publicou Bernarda. proclama- se. até alcançar A história de Bernarda Soledade. Procurei ajuda em Forster porque sempre fui disciplinado. Chamava-se Aspectos do romance e o seu autor era – e é – reverenciado pela fina textura literária: Edward M. desde muito cedo. ouvindo debates acalorados. Reflexões infindáveis. Com eles aprendi bastante. manhãs. Se podemos qualificar o erro. No entanto. Ficaram as lições. . Nada é tão espontâneo que não exija esforço concentrado. do qual todos nos aproximamos com reverência: Cartas a um jovem poeta. brutal e sombria? Quando comecei a me dedicar aos estudos de criação literária. no final das contas. reinventar. José Lins do Rego. as situações. E não foi fácil. na biblioteca. recorri à Poética do romance – Matéria de carpintaria. de Kazantzákis. mas impiedoso. não gostava de ditar regras. seco e vazio. Recomendou- me a leitura de O lazarilho de Thormes. Semelhante ao chicote que começou a estalar nas minhas costas desde o instante em que comecei a ler Retrato do artista quando jovem. E toda obra não é um aprendizado? Por essa época. Joy ce. a construção dos personagens. Apliquei aí a técnica da história metafórica. análises. na casa de Ariano. descobrir a riqueza do lugar-comum. Ali. num quase roteiro que vinha de Flaubert. exemplos. Foi a partir daí – proclama – que o chicote se pôs a estalar. O autor de O auto da Compadecia recebia-me logo cedo da manhã e atravessávamos o dia com leituras. que me foi definitivo. Fazia esquemas. Foi a luz. Era preciso estabelecer planos. Kazantzákis. cenários. apenas uma obra de passagem. aliás. que estudei mais. E nada. no princípio. então. é dado a todo vivente – homem ou mulher – . que me mostrou uma espécie de racionalidade da história. que é. Percebi definitivamente que a história não é apenas uma história. Tolstoi. Debatíamos poemas. Diz que Deus nos dá um dom – este dom. Mostrava o foco narrativo se movendo de uma cena a outra. Domingos inteiros de conversas e debates. porque todos possuímos dons para tudo. conheci o prefácio de Truman Capote ao livro Música para camalões. Ensinou-me a montar os primeiros capítulos de um romance. uma novela de aprendizagem. revelando os grupos familiares. Autran ofereceu-me as armas criadoras. armava histórias. nunca foi fácil. encontrar as metáforas dos personagens. não conseguia escrever nada. ele dizia que um dia começou a escrever sem saber que estava se escravizando para o resto da vida a um senhor nobre. era divertido. tomando como exemplo o episódio bíblico de Davi e Betsabé. porém. fazer a planta baixa do romance. Foi com Ariano. Um tempo para nunca terminar. pelas Sementes do sol – O semeador. criando as minhas próprias possibilidades. com exageros emocionais. Para Capote. Deixou de ser quando descobriu que a diferença entre o que está bem e o que está mal escrito. diálogos. analisando a abertura de Liberdade ou morte. Tratei de inventar. Ele sempre procurava. sem prumo e sem rumo. de Joy ce. . entre 1976 e 1982. Uma descoberta magnífica. entre o que está muito bem escrito e a verdadeira arte é sutil. cenas de romances. inventava metáforas. de Autran Dourado. livros de Dostoiévski. numa manhã de domingo. imagino. Às vezes mostrava-se cauteloso. nada acontecia. Quando vivi o meu primeiro momento difícil na criação. Passei. Hermilo morreu cedo. Carlos Drummond de Andrade. no cinema – Manual de roteiro. com cansaço espiritual e intelectual. análises. Só mais tarde – e bem mais tarde – escrevi Ao redor do escorpião.. Daí em diante. Enfim. tentativa de interpretar as oscilações do comportamento humano. O texto representaria os impulsos de uma relação sexual. estudado nos mínimos detalhes. Mas não acredito em escritor que não corre riscos. que é uma espécie de reflexão literária – e não teológica – do cristianismo. com longas reflexões sobre a arte de escrever romances. sofrimento e êxtase. Os extremos do arco-íris e As sombrias ruínas da alma. A técnica da ficção. que representou minha segunda passagem para maiores voos. onde se conta a história de Deusdeth. passei pelo Dupla face do baralho. ambos desenvolvendo técnicas rígidas. Depois de reescrevê-lo várias vezes. mas com formulações interessantes. muito criticados. de Umberto Eco. de que os artistas se esquivam. dos esforços em busca de uma narrativa que se aproximasse da pulsação dos personagens. trabalhando cinco tipos de linguagens discretas – uma para cada personagem. Um meta- romance. jogos de ironia. é sempre necessário falar em influências. falou-me sobre a construção de Avalovara. Depois vieram Somos pedras que se consomem. Pós escrito a O nome da Rosa. Entrevistei-o uma vez. com uma loucura de anotações. embora elas existam sempre: conscientes e inconscientes. Montei Viagem no ventre da baleia. Fiz isso correndo todos os riscos. decidi pela escrita de sensações. Meu trabalho tornou-se mais lento. Continuei na estrada. Já maduro. narrada através da pontuação e das mudanças verbais. Não esquecer A angústia da influência.. e cheguei ao Sombra severa. tornou-se também uma leitura inquietante. Pensei em Sinfonia para vagabundos que representou meus melhores dias de alegria e tormento. armando cenas e cenários. Aí sofistiquei muito mais. Percy Lobbock. e colocando minha carreira em jogo. E Maçã agreste. vieram também os manualistas Robert Ray. bem mais lento. do sofrimento à transcendência. Além de A arte da ficção. em extremo. no romance – O escritor de fim de semana. de Harold Bloom. não acredito em pessoas que não correm riscos. um livro de ótimas qualidades. e pelo Senhor dos sonhos. de John Gardner. a refletir sobre o romance e seu destino. estudo sobre a traição. uma tarântula? que é o resultado. O mundo religioso de Dostoiévski. . e Sy d Field. e que foi reescrito cinco vezes. Chegaram às minhas mãos outros livros básicos: A estrutura do romance. sobretudo para quem não tem experiência trabalhada com leituras e análises. Uma influência importante – aliás. Nesse tempo. Descobri Osman Lins – Lima Barreto e o espaço romanesco e Guerra sem testemunha. Natalício e Virgínia. Insisti nos estudos técnicos. deve-se obedecer à Voz Narrativa e ao Impulso – escrever e escrever e escrever –. diante da falha da escola brasileira no que diz respeito à criação. em 1988. na intimidade e no detalhamento – é resultado de algo ainda mais prático e definido: Personagem. à Pulsação Narrativa – ou seja. no instante em que precisei mudar o método. Pode parecer algo racional demais. no Recife. enfim. Depois de estudar Madame Bovary. O interesse era cada vez maior. As pessoas naufragavam porque eram julgadas no Impulso e derrotadas. resolvi profissionalizar os meus trabalhos. A partir de 1996. o conjunto de elementos que permite a harmonia do texto. a Técnica. Novos trabalhos. Os sinos da agonia. A princípio. de Mario Vargas Llosa. Textos dos alunos e textos de consagrados. e Pedro Páramo. de Graciliano Ramos. diálogos. com cerca de oito ou dez escritores. No segundo momento. enredos. Montamos e desmontamos o romance francês. de Flaubert. A princípio. Estavam travadas. Cena e Leitor. quando o exame do texto provoca a plena consciência das possibilidades reais e concretas do autor e sua exploração. O francês Albert Albalat. Depois fui aos Estados Unidos para um programa na Universidade de Iowa e. Surgiu Os segredos da ficção. Ana- não. à Forma. através de A orgia perpétua. as pessoas acreditavam demais em talento e inspiração. Dom Casmurro. Percebi então que. A primeira delas foi na Livraria Síntese. de Machado de Assis. à vontade de escrever sem preocupação com o resultado. cenas. E não tenho dúvida. A luz exterior que chamam de talento substituída pela fórmula: VONTADE = OBSERVAÇÃO E EXPERIÊNCIA Daí vem o desenvolvimento da qualidade. de Austin Gomez Arcos. instalei-me – ainda sob a condição de presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico do terceiro Governo Miguel Arraes – na União Brasileira de Escritores. de Ismail Kadaré. Sem esquecer que a pulsação – no passo a passo da obra. Vidas secas. E que – o que é mais grave – muitas delas foram sufocadas nas salas de aulas. Abril despedaçado. em seguida. viajei pelo interior do Estado. é mesmo. novos cursos. na volta. de Juan Rulfo. realizei seminários. mais tarde. Precisava desmanchar o mito de que só algumas pessoas têm capacidade para a invenção. Surgiu a Pulsação Narrativa. um primeiro impulso imperfeito. novos seminários. de Autran Dourado. Freud chamou esse movimento de escrita automática e Jung considerava-o apenas um impulso básico. Escrevi apostilas. absolutamente bloqueadas. a Intuição – que afirma o instante em que os defeitos precisam ser superados e. preocupado apenas com a estrutura geral da obra de ficção – personagens. decidi realizar oficinas. Tudo isso leva. montei cursos. . Os filmes são ótimos para estudar o desenvolvimento (enredo).Porém. Ocorre que os novos autores só conseguem ver o que está publicado. os dias sacrificados. Não sabem o esforço que custou. e adverte para o uso das conjunções e das preposições. diálogos. Conseguiu-o. O argentino Jorge Luis Borges confessa também que Carlos Frias sugeriu-lhe que aproveitasse o prólogo de um dos seus livros para uma declaração a respeito de sua estética. argentinismos. a Poética. parece que o tempo ensinou- lhe algumas astúcias: evitar os sinônimos que. que. finalmente. a memória não o é. que fez o estudo das regras e advertiu para o risco de cairmos na "grosseria dos primeiros achados”. nem criticar Kant. vemos filmes. A qualidade inventiva vai depender sempre de quem se exercita. de Aristóteles. Escrupuloso. narrar os fatos como se não os . O que se quer ali é fazer com que o novo autor encontre a sua identidade. alertava que jamais esqueceu a ocasião em que se instalou numa cabana. nem rebater Henry James. é necessário racionalizar o trabalho e não a invenção. Os primeiros achados pertencem ao reino do Impulso e da Intuição. Muitas. no manuscrito. Mesmo assim. que realizou um amplo painel da criação romanesca. têm a desvantagem de sugerir diferenças imaginárias. modificou-o trinta vezes nas provas tipográficas. por exemplo. se a realidade é precisa. segundo ele. arcaísmos e neologismos. São sugestões de trabalho. exigidos agora pelo leitor. normas ou determinações. preferir as palavras habituais às palavras assombrosas. nem diminuir Proust. Durante meses discutimos autores. intercalar em um relato traços circunstanciais. Nas oficinas. segundo diz. a fim de corrigir as provas tipográficas de Adeus às armas. As regras estão no Ofício e na Técnica. porque indica as vantagens das mudanças do tempo verbal em Flaubert. Não se pode desqualificar. e então começa a batalha. evitar hispanismos. Num rápido exemplo. falando a respeito do seu processo criativo. porque ele examina cada estágio a montagem de uma peça de teatro e mostra como se deve fazer. A racionalidade do trabalho não reduz em nada o poder inventivo do narrador. simular pequenas incertezas. junto à linha da chegada de uma corrida de bicicleta. Os avanços e os recuos ficam por conta de cada um. caracterização de personagens. lembro ainda Hemingway. respondeu logo que não era possuidor de uma estética. sem ditar regras. nos reunimos em salas de aula. as noites insones. procurando fazer com que ficasse como queria. já que. Não são regras. Excesso de escrúpulos não ajuda em nada. refletimos. Precisou reescrever o final trinta e nove vezes. Os segredos da ficção – Um guia da arte de escrever narrativas pretende colocar o autor iniciante diante do seu próprio desafio. estamos falando do espírito humano. que também descrê das estéticas. Borges tem razão: não existe verdade absoluta no campo da criação. Sedução. no mesmo texto. há essa figura misteriosa e enigmática que atende pelo belo nome de leitor. Não há salvação. Não se deve esquecer a proposta de Bakhtin: a obra de arte literária é um pacto que se afirma entre o autor e o leitor. E as oficinas procuram. normas ou regras de trabalho. Afinal. Aliás. E outras circunstâncias. exige uma técnica diferente. E nada é mais terrível do que o espírito humano com astúcias e armadilhas. Mesmo Hemingway sabia que a pulsação narrativa pede palavras. na linguagem literária há sempre "promessas. oferecendo-lhes assim os "instrumentos ocasionais". encantos e amavios". variam em cada escritor e ainda em cada texto. Sem dúvida. . Particular. lembrar que as normas anteriores não são obrigações e que o tempo se encarregará de aboli-las. Mudam sempre. Com instrumentos. troca de afetos e encantos. campo minado e difícil. Além disso. pura sedução.entendesse totalmente (isso ele aprendeu. Ocasionais ou não. Sem contradição não existe escritor. diz. É preciso dizer isso com toda a convicção – cada narrativa e cada frase. Iluminam-se e deslocam-se. há contradições incríveis no escritor argentino. E outras palavras. não passam de abstrações inúteis. para Leila Perrone-Moisés. não raro cada palavra. É inevitável. em Kipling. o próprio Borges destaca. Ninguém escapa das contradições no reino da literatura. são instrumentos fundamentais e imprescindíveis. assegura. e não podem ser outra coisa senão estímulos ou instrumentos ocasionais. E outras frases. abismos e sombras. Em geral. Se "não passam de abstrações inúteis". Quase uma jura de amor. O importante é enfrentar os problemas da criação. Roland Barthes acrescenta que autor e leitor trocam confidências e afetos. frases e pontuação diferentes – ou até antagônicas – a cada movimento. na verdade. não são "abstrações inúteis" porque servem para estimular. por que são "estímulos ou instrumentos ocasionais"? Assim. Ora. Um autor é o personagem e é o autor. e nas sagas da Islândia). clareiras e tempestades. portanto deve estar sempre em equilíbrio entre os dois e entre os outros personagens que vão fazendo novas exigências. As técnicas se inventam e se reinventam. estimular os novos autores. Claro. E. O que não é pouco. as teorias são muitas. A PAIXÃO PELOS CRIADORES Desde o desaparecimento do narrador onisciente ditatorial. senhor absoluto da narrativa. no entanto. Utilizamos. M. Escritores erram e fracassam muito. mas . caso exista. DEPOIS DISSO. Escrevemos todos os dias. Forster –. Com brilho ou sem brilho. Proust. Thomas Mann. Ariano Suassuna. ISTO É. outros nem tanto – isso é outra coisa. VOLTAR A SER ORIGINAL. sem pouso. Osman Lins. com mais frequência. A técnica se adquire com um constante exercício de paciência. por um empenho extraordinário. a estrada é difícil. Sempre. sem descanso. Errando e fracassando. Continuado. já disse Moacy r Scliar. Autran Dourado. DEIXAR O PEDAL PROLONGAR O SOM. Quem tem estilo é o personagem. as investigações de criadores – Flaubert. Diferente para cada um. – A partir dessa constatação podemos iniciar um longo caminho em busca da Pulsação Narrativa – processo de criação ficcional considerando em primeiro lugar que escrever é descobrir e trabalhar a voz narrativa que existe em cada um de nós. Movidos. o erro e o fracasso devem funcionar como incentivo. sem pausa. Poe. se revela pelo trabalho. O talento. Alguns com talento. No entanto. E. E NÃO FAZER DURANTE TODA A VIDA UM PASTICHE INVOLUNTÁRIO. O ato de escrever precisa se tornar algo essencial nas nossas vidas. Engenho e arte surgem com disciplina. PARA PODER. Exercício permanente." Marcel Proust ESQ UEÇAM INSPIRAÇÃO E TALENTO Escritor não tem estilo. O melhor amigo do escritor é a cesta do lixo. FAZER UM PASTICHE VOLUNTÁRIO. Henry James. Esforço e empenho. A VOZ NARRATIVA "É PRECISO DEIXÁ-LA AGIR POR UM MOMENTO. Em qualquer nível. o aprofundamento do monólogo ou do monólogo entrecruzado e do fluxo da consciência. consegue resultados impressionantes: entrecruza as vozes narrativas e retira. Muito longa. que teve sua origem em Gustave Flaubert. com certeza. com vantagens. dúvidas e oscilações no ato de inventar. O escritor Antônio Torres. muitas vezes escondido atrás do personagem. por causa do entrecruzamento das vozes dos personagens. o narrador oculto. em Os sinos da agonia. como se observa no romance autoral. o lugar do narrador. Belo. ao mesmo tempo. Elas bordam o tecido narrativo. por exemplo – ou de correntes estruturalistas ou experimentalistas procuram derrotá-lo. . quase sempre. substitui. e não do narrador. de Autran Dourado. O PAPEL DO NARRADOR CONTEMPORÂNEO A história do personagem é longa. Pessoa ou personagem – a discussão é ampla e longa o importante é que ele é o fundamento da narrativa. ressaltam- se os monólogos entrecruzados que dão. o leitor vê a cena. muito junto. Ainda que simples. No entanto. com o surgimento do discurso indireto livre de Flaubert.torna o texto rico e complexo. de modo que o leitor visualiza a realidade ficcional do ponto de vista de um personagem do romance. o narrador ou os narradores. Em "O papel do narrador". Impõe-se. Pretendem transformá-lo em puro elemento de linguagem. Por isso mesmo. Os eventos deixam de ser narrados e passam a ser refletidos na consciência da personagem. mesmo quando outros teóricos – criadores do novo romance francês.com profundo e crescente respeito pelos teóricos. O personagem ocupa. o narrador simplesmente desaparece da cena narrada e passa a mostrar os eventos. Isto ocorre a partir do distanciamento do narrador tradicional. leveza e vigor ao romance. mas muito colado. Os sinos da agonia às vezes dá a surpreendente impressão de não ter sido escrito. como se ela fosse representada em um palco. Com suas muitas vozes – diversos narradores . à medida que vai ganhando força. em essa terra. devido à familiaridade daqueles com as inquietações. em sua narrativa. com absoluta eficiência. concedendo aos personagens a vantagem da construção do texto. Laura Goulart Fonseca explica como isso acontece: Na vertente dramática do romance contemporâneo. Por isso mesmo. apesar da presença de um narrador oculto. nada é feito sem o personagem. O que ocorre é uma teatralização. NASCEMOS PARA A ETERNIDADE Há produções artísticas que nascem. Enfim. Da nossa pontuação. sobretudo. a arte da palavra escrita nasceu para a eternidade. A nossa palavra escrita. Não conhecemos as nossas particularidades. ocorre a interação entre narrativa e leitor. que é resultado das pulsações do personagem. realiza aquilo em que nem sequer acredita em princípio. antes de tudo. vivem. com . da cena e do leitor. com certeza. até alcançar o leitor. A descoberta da voz narrativa impressiona e inquieta. Não acreditamos na nossa capacidade. Dos nossos diálogos. Da nossa cena e do nosso cenário. Temos algo a revelar. Afirma-se. Para chegar ao personagem. devolvendo ao texto a sua paixão de leitor. No entanto. apesar dos conflitos teóricos. no belo e resplandecente campo das artes. Desafia o erro. Só os outros. Escreve. o fracasso e o ridículo. Erramos quase sempre porque não respeitamos a nossa voz narrativa. Aliás. Mas. queremos imitar a tradição. e conscientemente. Sem medo do erro. As luzes estão sobre ele. Sem medo do grotesco. o autor do romance moderno sai de cena para conceder prioridade ao personagem. a voz narrativa. Portanto. Do nosso foco narrativo. precisa acreditar nas suas próprias possibilidades. Sem medo do fracasso. estabelecendo-se aí a pulsação narrativa. Um processo doloroso. Complexo de inferioridade nunca ajudou ninguém. que entra na pulsação do texto. poucas ou pouquíssimas manifestações culturais estão destinadas ao desaparecimento. Os outros escrevem muito bem. todavia. Reinventam-se. do romance. dizem. Da nossa frase. embora saudável. Eis o problema mais grave. Do nosso tempo verbal. novela ou conto. morrem. não amamos o nosso timbre. Em geral ela não se parece com nada. a voz de narrador. Menos a palavra escrita. é fundamental conhecer o domínio da palavra. Aos poucos. Da nossa palavra. Nesse processo. Do nosso personagem – o personagem é o centro de toda narrativa. Agora é esquecer. A NARRATIVA E O LEITOR SE ENTENDEM Assim. Do nosso período e do nosso parágrafo. vai cedendo lugar ao personagem e aos personagens. renovam-se. o autor iniciante precisa conhecer a própria voz. que é construído pela cena e por outros personagens. nós. O ESTILO E A OUSADIA DO PERSONAGEM Devemos. você não sabe fazer. Não me importava se o que eu escrevia pudesse ser considerado ruim. Descobriu as suas palavras. professores. As palavras batem umas nas outras. me deu alento. a montagem dos períodos e dos parágrafos. leitores. Dizemos: — Não faça isso. de interpretar. a voz narrativa e agora vai em busca da pulsação narrativa. Atinge o requinte. os indecisos. fazem barulhos. quando começa a escrever. estúpida. a voz do personagem. confiar em nossas possibilidades. as cenas. Percebe-se depois. Minha vida em si se tornou uma obra de arte. Encontrou. Nessa voz que fracassa. se reanima e vence. o ritmo próprio. Não é descrição. Afirma Henry Miller em A sabedoria do coração: No momento em que ouvi a minha própria voz. Em geral. portanto. Bom ou ruim saíram do meu vocabulário. Quem descobre essa voz narrativa vai encontrar. distinta. única. o que nos impede de descobrir essa voz é a descrença. Ele é autor dos Dez mandamentos de um escritor. os cenários. e com a paciência que conduz à luz: ali está nascendo um escritor. Sem esquecer a técnica e a forma. assim. escritores. fiquei encantado: o fato de ser uma voz isolada. sua maneira de ver as coisas. publicado pela Writers' monthly. isso mesmo – não importa.ninguém. Aí está o primeiro segredo da ficção. Não é a sua praia. Não importa. da mesma maneira. Nada é nada. gostamos de desanimar os iniciantes. os diálogos. É INEXATO. Sem dúvida. Pulei com os dois pés no reino da estética. Mas o começo de tudo é a voz narrativa. É fundamental. logo percebe que o texto é confuso ou inexato ou tedioso ou simplesmente não pode ser verídico. Por algum motivo esquisito. É CONFUSO. É algo surpreendente. Você não tem . confundem. É TEDIOSO O escritor húngaro Stephen Vizinczey (Nos braços da mulher madura) conta que. os novatos. Não é redação. direcionando o enredo. conhecendo a importância do personagem para a montagem do texto. em julho de 1985. que também chega com o seu estilo e a sua ousadia. Não segue os métodos de narração convencional. mofa. Basta um bom texto. As primeiras orações. Não desanime. revela mais do que uma biblioteca inteira. não significa que não presta. Fui procurá-lo. Hábil. ESCREVER BEM E ESCREVER FICÇÃO Por essa e por outras razões. começaram de que maneira? Refletindo. são os principais problemas na vida dos grandes artistas. É a voz do autor. Significa apenas que eu não gostei. Um único conto. montanhas de papel. E os que sabem. lendo e escrevendo. Não devemos esquecer. Somos escritores. aprendendo com ele". um único bom texto. Todo o problema reside nisso: respeitar e amar essa voz que vai nos acompanhar por toda vida. os sinos que batem enquanto escrevemos as primeiras palavras. mas de autores de textos exemplares. . Ali mesmo. As primeiras frases. na sala de sua casa. de pé. montar um belo texto. deves te fortalecer. E que deve ser aperfeiçoada. um romance de formação. Deixe para os que sabem. De trabalhadores. disse: — Se eu não gostar. no final da década de 1960. uma luta constante contra as próprias limitações. Não somos obrigados a publicar mil páginas. por assim dizer. "a chuva que caiu" –. há uma enorme diferença entre escrever bem e escrever ficção. Devemos ter por perto pessoas com alguma experiência para consultas. escreve Stephen Vizinczey em seu decálogo. com o texto nas mãos. e se aspiras compartilhar seu destino. A literatura não é feita apenas de gênios. Ainda que novato. Até porque não é incomum a imitação: lugares comuns que se repetem muito – "ancas torneadas". milhares de palavras. Pessoal e intransferível. Com certeza. E até com muita competência. "lábios carnudos". "Recusa. quem nos deu a primeira grande lição. Esqueça. "conclusão final". No primeiro caso. A voz narrativa respeitada. Aprendizado constante. Não somos salvadores da humanidade. além da cópia literal de outros autores. Elegante. às vezes. a pessoa sabe. fracasso. antes de qualquer leitura. AMANDO AS NOSSAS PALAVRAS Foi o escritor Ariano Suassuna – autor de O auto da Compadecida e de A pedra do reino. com incrível sinceridade. Os primeiros barulhos. As coisas vão mudar. para que lesse o original de Grande mundo em quatro paredes. pobreza. jeito. leva à construção de um bom personagem e de uma boa história. Conhece os personagens e as técnicas. um romance inteiro. As vozes íntimas. Tomemos a decisão de anotar todas – ou quase todas as piadas – que ouvimos em um mês e. Não vão além. na maioria das vezes. Inventa as regras. dos advérbios. diálogos. teremos – com alguma adaptação –. assim por diante. descobrir a voz narrativa. um conto inteiro. Escreve piada. escondida. muitíssimo bem. pedindo para se manifestar. enxuta. juvenis. O sentimento secreto. Vamos à luta. artigo. Comunica-se. Isso mesmo. Uma piada mais outra piada mais outra piada. por assim dizer. Corte radical de repetições. do discurso indireto livre. muito bem. Mas não é capaz de revelar o espírito interior da ficção. notícias de jornais. informação precisa. Não podemos esquecer Gógol. Confundem ensaio – comunicação. das conjunções. exatidão no ritmo. reflexões. Sem a ansiedade de escrever grandes textos. observações as mais diversas. ESCRITOR NÃO CONTA PIADA. Não. dos franceses: a palavra exata. E lembrando sempre: Escritor não conta piada. Ficção é outra coisa. Por isso é preciso. Aquele que vem. eliminação de assonâncias. que estão nascendo. Com inveja de colegas e adversários. Não nos jogamos na variedade dos tempos verbais. conhece as regras do bom texto tradicional. uma novela inteira. ESCREVE PIADA Começamos escrevendo diários – não aqueles ridículos diários cor-de rosa com delírios românticos. Jamais. Boas histórias têm sempre bons personagens. "O autor iniciante não deve imaginar que está perdendo . histórias. um personagem. encontrando os movimentos. A voz vai se ajustando. As insatisfações preocupam. das elipses. Brincadeiras. no final. As tardes quentes. fragmentos. Ninguém a conhece. É ficção. Diário de escritor. Diário de gente séria com anotações. revelando- se. porque não? Ironias.Redator. Nada disso. os dias parecem perdidos. Apenas com a humildade de cenas. Alguns escrevem bem. Muitas vezes até perde o valor depois de escrita. conferência – com ficção. Frases soltas. A palavra é o que é e permanece intacta. Não é bem nem mal escrita. descrições. No mínimo. mas não escrevem ficção. visibilidade. As noites mortas. das preposições. de princípio. Ele costumava dizer que podia transformar uma piada numa obra de arte. Esboços de novelas. Ela está ali. corte de adjetivos. romances. OS OLHOS PERDIDOS NO VAZIO Contos. caça aos hiatos. O escritor húngaro alerta para o fato de que os músicos sabem de cor partituras inteiras – e se refere aos clássicos –. tedioso. isso não pode prestar. o jogo dos verbos. Uma cena. palavra por palavra. E agora? A distinção é bem clara. De preferência. Somos capazes de imitar. barulhento. já agora . Ler. Conhecer uma cena e dominar a sua Intimidade. Conhecendo ritmo. Fazemos leituras. Confuso. sempre. angustiando. Mesmo assim acreditemos nessa voz. escritores. a página de um clássico. Fundamentais. o que é escrever bem e escrever ficção? Não conseguimos distinguir. escrevendo. advérbios. Basta um pouco de atenção. mais leituras. Para ler os grandes. tempo para ler. lembra Vizinczey. quando muito. quem sabe? Calma. As diferenças básicas. Sempre os bons autores. Ela está nos conduzindo ao caminho certo. as sinuosidades. Continuamos escrevendo. os consagrados. alegrando. Aos poucos vamos observando as diferenças. a pontuação ruim. contamos histórias. Isso não presta. Como quem toca uma frase. fazemos anotações. Um diálogo. Escrevendo. Tempo para escrever. A voz narrativa doendo. Não é que devemos simplesmente decorá-las. os exaltados. os artesãos. Ler analisando. ruim. Algo grandioso. Escrevendo. Lendo. nos lembramos de algumas cenas de um livro. O norte-americano Ernest Hemingway passou à história literária como um mestre. Qual a diferença? Escrevemos há dias. escrevendo. AUTOR E PERSONAGEM: Q UEM COMANDA Q UEM? Mas estamos escrevendo bem ou escrevendo ficção? Afinal. feio. os enxadristas conhecem todos os lances de cada partida de um campeonato. a circulação dos personagens. Escrevendo e lendo. O estudo deve se transformar numa obsessão. artigos. As palavras se atropelam. Criou um estilo. os melhores. mais leituras. os melhores. pronomes. festejando. as frases confusas. Mas é fundamental: precisamos conhecer os movimentos internos. CONHECENDO A INTIMIDADE DA CENA Vizinczey exorta no sétimo artigo dos seus mandamentos: "Não passarás um só dia sem ler algo grande". Uma passagem decisiva. Voltando para descobrir o andamento. Lendo os clássicos. enquanto nós. inexato. lendo.tempo quando tem os olhos perdidos no vazio". se alguém deseja. em "Pomba Enamorada". leveza. quem deseja é o narrador. tudo quer. como escreve ficção não tradicional. movimento. apesar dos diálogos. Justo perfil do personagem que ele dominava e conduzia. eficaz. mais vigor. Os personagens escrevem o texto. Nenhuma liberdade para o personagem. definitivo. No entanto. bem feito de corpo (se não se levarem em conta seus ossos longos). Não há um só movimento no texto que ele não saiba e que não conduza. O caso de Ly gia Fagundes Telles. Mas tradicional. como as de Wilson. ("A vida breve e feliz de Francis Macomber") Há aqui o que os antigos chamavam de elegância do estilo. quem sabe. moreno. aliás. tudo comanda. É imposta a figura do narrador onisciente: tudo pode. Por exemplo. revelam nitidamente a pulsação narrativa do personagem. O atropelamento vem do personagem. Desde Flaubert a ficção pede a participação precisa do personagem. linear. com a diferença de que as suas eram novas e limpas. contudo. quem se movimenta é o narrador. se alguém se movimenta. há algo belo e algo chulo. Imitadíssimo. Sem dúvida. Sobriedade. Ainda que a contragosto. Vestia o mesmo tipo de roupas para um safári.infelizmente tradicional. Por . Na tradição. O que é chulo alcança grande nível artístico. mantia-se em plena forma e era muito bom jogador de tênis. é ele quem tudo faz. HEMINGWAY E O NARRADOR ONISCIENTE Francis Macomber era muito alto. cabelos cortados rente como os de um remador universitário. o romancista comanda o personagem e tira-lhe o direito de se movimentar sozinho. por exemplo. não é? Ou seja. Tudo sabe. Sabia escrever bem. não de Ly gia. O personagem é um boneco. tudo quer. o mundo do personagem tem mais sentido. Se alguém pensa. Estava com trinta e cinco anos. tudo sabe. é diferente. A ficção é ficção de autor. lábios finos. muito bem. Não se discute. quem pensa é o narrador. só parecem. Um deus absoluto. Elegante. no julgamento geral. Hemingway. Um homem atraente. A ela não interessa essa conservadora elegância e linearidade. Trata-se do narrador onisciente. tem poder excessivo sobre o personagem. As palavras às vezes parecem se atropelar. Não só escreve bem. Que não imponha. E pronto. Correto. só obedece. escrever bem é impor o estilo do autor. além de ter recebido vários troféus em torneios de pesca oceânica. Perfeito. gramática. Movimenta o texto. para esconder a falta do canino esquerdo que prometeu a si mesma arrumar no dentista do Rôni. E do nosso sofrimento. Não é agora. esforço. a voz narrativa parece ruim. Imperfeitos e barulhentos. Vai demorar. "pensou". o autor conduz o personagem pelas mãos feito criança. concede-lhe humanidade. por causa desse tormento. enxugou depressa as mãos molhadas de suor no corpete do vestido (fingindo que alisava alguma prega) e de pernas bambas abriu-lhe os braços e o sorriso. Sorriso meio de lado. está por trás do personagem e não à frente. com o perdão da palavra. obscuro. de nossas brincadeiras. não imita esse estilo. Você devia ser a rainha porque a rainha é uma bela bosta. Porque. aflora na página. muitas alegrias –. Porque o nosso primeiro personagem somos nós mesmos. No estilo tradicional. conduz a narrativa. na maioria das vezes. O importante é verificar que temos uma identidade. Ele disse apenas meia dúzia de palavras. Depois de encontrar a voz narrativa – o que vai exigir tempo. Isso pode demorar. isso se subisse de ajudante para cabeleireira. tais como. Ela está surgindo.isso. Estratégia ficcional. LYGIA E O NARRADOR OCULTO Encontrou-o pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d água peruou: acho que vou amar ele para sempre. "tais como" . sacrifício. procuramos a voz do personagem – muitos personagens exigem muitas vozes – aquele ser misterioso e. A voz narrativa de Ly gia corresponde à voz dos personagens. O personagem ocupa o lugar principal. . de nossas ironias. equilíbrio. Ly gia faz ligeiras marcações – "encontrou-o pela primeira vez". A narradora dá o equilíbrio. Ao ser tirada teve uma tontura. Não importam as palavras bem arrumadas. sim. informações. barulhenta. desenvolvimento exato.que mostram a sutil e leve participação do autor oculto. Mudança radical. ("Pomba Enamorada" ou "Uma história de amor") O estilo tradicional e elegante de autor onisciente some para que o universo dos personagens comande o texto. a princípio. e alegrias. Surge o narrador oculto – aquele que apenas estrutura a cena. o Doutor Élcio. decepções. muitas decepções. que é resultado de nossas piadas. confusa. que se apresentam e se movimentam por assim dizer sozinhos. embora o comando ainda seja do narrador que. o personagem já vem pronto. Não tem licença para sair do retrato. Não pede a participação do leitor. pelo contrário. cabelos cortados rente como os de um remador universitário. a seguir. a expressão grosseira também. Não é verdade? O narrador onisciente não se impõe.. Não pode falar com o leitor.. e deixa que a personagem se revele. Uma apresentação de mestre. no romance Um táxi para Viena d'Áustria o narrador participa da . que se aproxima e conversa. quase sem interferência da autora. o que se percebe é uma interação entre o personagem e o autor. Nenhuma referência ao aspecto físico da personagem. o narrador oculto faz sugestões. Vejamos agora: “[. A gramática pertence ao personagem. são responsáveis pelo discurso — amar ele e bela bosta. A MUDANÇA DOS NARRADORES Hemingway impõe o seu estilo a Francis Macomber: "[. nada é dito com clareza. Em "Pomba Enamorada".. A INTERAÇÃO AUTOR E PERSONAGEM No exemplo de Antônio Torres. elegante? Em algum lugar da nossa imaginação acreditamos que ela deve ser bonita porque. Morena. Dessa maneira. Mas tem um defeito básico: "Sorriso meio de lado.]” Nenhuma informação conclusiva. Voz narrativa do autor que é transferida para a voz narrativa do narrador oculto. Do ponto de vista físico.. os personagens. bem feito de corpo (se não se levassem em conta seus ossos longos). Foi enclausurado pelo narrador onisciente.] era muito alto. bonita.] encontrou-o pela primeira vez quando foi coroada princesa do Baile da Primavera sorriso meio de lado. Ditador..] etc". com essa ênfase hemingway ana. lábios finos. Cabe ao leitor observar e concluir. se é mesmo preciso concluir. mas os personagens escrevem. moreno. Um homem atraente. Com certeza a escritora Ly gia não escreveria assim. têm estilo e. no julgamento geral [. por exemplo – e pelo desenvolvimento da trama.. no entanto. assimila a linguagem de personagem e não mais de um escritor todo poderoso. para esconder a falta do canino esquerdo que [. As vozes estão chegando.. "foi coroada princesa do Baile da Primavera". para esconder a falta do canino esquerdo". tanto quanto a romancista. Nem mesmo do personagem. Ou seja. Eis a questão. afinal.. Outro segredo: descobrimos a nossa voz narrativa e. Temos autonomia e damos autonomia aos personagens. Por isso. da pulsação narrativa. para a sua sorte. exercício e empenho. passa-a para o narrador e para o personagem. Calma. poderia evitar todo esse esforço. cidadão. assimilando a linguagem dele. porque ele pode tropeçar.história acompanhando e conversando com o personagen. aí o estilo tradicional não se sustenta. a voz narrativa dos personagens. Personagem fala com personagem. . Não é verdade. Parece uma conversa entre amigos. isso foi. A narrativa construída pelos seus elementos internos. ah. (Um táxi para Viena d'Áustria) Há quem imagine – e afirme – que aí o narrador usa o consciente e o inconsciente do personagem. 10003 – foi de lá que você saiu. Perigoso. por exemplo. Ou seja. trabalha com ela e. neste exato momento a portaria está às moscas e o prédio entregue às baratas. tem as suas próprias regras. narrador fala com personagem. então. percorreremos sempre o caminho do impulso. os seus próprios movimentos. Se tivesse consultado o horóscopo de hoje. São as vozes entrecruzadas. da técnica e. O n° 3 está a maior limpeza. E daí? E daí é que. perigoso e inútil. que o conceito de voz narrativa se estabelece. Acho que em vez de polícia a gente vai ter que chamar é um médico. personagem fala com narrador. O escritor descobre e revela a sua voz narrativa. da intuição. é o caso do Campeão de Salto aos Degraus. Vai tirar o pai da forca? Toda essa correria é inútil. com exercícios. já de uma certa idade. definitivamente. Todo mundo foi para a rua. Todos se cruzam. a história é autônoma. apartamento nº. botando as tripas pela boca escada abaixo. já disse. Devagar. percebe que ele concede aos dois – personagem e narrador – o direito do diálogo interno. Também pode ser acometido de uma síncope. cair e se machucar seriamente. Veja a coincidência: edifício n° 3. Quem conhece bem Antônio Torres. E assumindo o posto de personagem. com o uso da técnica. a dos astros. Permanente. Incrível como ainda tem gente que não acredita em forças superiores como. de maca e tudo. finalmente. VOZES NARRATIVAS ENTRECRUZADAS Observamos. majestade. não só causa estranheza como preocupação. Por que não deu uma lida no seu horóscopo antes? Teria sabido que o 3 é o seu número de sorte. não identificadas. não raro. portanto. do lugar privilegiado onde se encontra. Dessa maneira o personagem tem estilo. habilidade. causar um efeito: o de circulação das vozes. dramático. é possível atingir esse nível. E lendo. o verbo "dizer" não poderia se repetir com tanta proximidade – "disseram" na primeira frase e "disse". tradicional e elegante. A função aí é de distinguir as vozes interiores da narrativa e. PEDRO PÁRAMO. quem deu a informação? A voz coletiva – "me disseram"? – ou a voz da mãe? E por que as duas? A voz do personagem e a voz coletiva "disseram" e a voz da mãe "disse"? . é um dos melhores exemplos de autor que conhece sua voz e que concede voz aos personagens. No chamado estilo enxuto e objetivo. Mais de desolação do que de raiva. Para ele. Não é por acaso que Percy Lobbock gasta grande parte do seu livro A técnica de ficção para provar que os personagens de Madame Bovary. escrevem a cena. com sutileza. VOZES Q UE CIRCULAM Pedro Páramo. ele escreve: Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai. E por que o "disse" na segunda frase? Afinal.e a voz coletiva – pessoas que passaram a informação. jogo técnico. Muito. na segunda frase. o verbo tem função e efeito. Minha mãe que me disse. escrevendo todos os dias. FUNÇÃO E EFEITO DOS VERBOS Na ficção. Lendo muito. toda a cena do comício agrícola do livro é escrita por Emma Bovary. O tom de Pedro Páramo é de desolação. Observemos: Vim a Comala porque me // disseram // que aqui vivia meu pai É a voz do personagem – Juan Preciado –. Seria um desastre. do mexicano Juan Rulfo. Além do tom. claramente. Escrevendo sempre. – e que "disseram" que o pai vivia em Comala. de Flaubert. entrecruzando-se devido ao uso do estilo indireto livre que foi uma criação de Flaubert. um tal de Pedro Páramo. No começo do livro. a voz da mãe quebra a estrutura da primeira frase. mas somente a mãe acrescenta cheia de raiva: "Um tal de Pedro Páramo". que se repetirá pelo menos cinco vezes somente na primeira página do romance. Na primeira frase surge o pai – “porque me disseram que aqui vivia meu pai” –. Cria um som esquisito e enriquece as duas primeiras frases do romance. Por isso se repetem. porque embora admita a segunda voz. O PRECURSOR O conceito de voz autônoma do personagem – que se alia à voz autônoma do narrador – surge com Gustave Flaubert. cheia de raiva. E como é que se descobre isso? Porque a frase seguinte é assim: Minha mãe que me disse. passa a ser uma qualidade. no complemento da primeira frase: Um tal de Pedro Páramo. Quem escreve não é o narrador. No texto tradicional seria algo impossível. com a repetição do verbo. Têm função e efeito. em criar uma ambivalência na qual o leitor não sabe se aquilo que o narrador disse provém do relator invisível ou do próprio personagem que está monologando mentalmente: "Mas onde aprendera aquela corrupção. Esta é a voz da mãe. Para Mario Vargas Llosa trata-se da "grande contribuição técnica de Flaubert: Consiste em aproximar tanto o narrador onisciente do personagem que as fronteiras entre ambas se evaporam. Por quê? Porque "minha mãe que me disse". as vozes anteriores – do narrador e coletiva – "disseram" que ali vivia Pedro Páramo. Algo que exige atenção e exame cuidadoso. através do discurso ou estilo indireto livre. Verbo. mas as vozes dos personagens. aliás. quase imaterial à força de ser profunda e dissimulada?" . No segundo momento. Mas essa é a voz anterior ou existe uma nova voz? Um tal de Pedro Páramo É a mãe falando. Um homem qualquer. O primeiro verbo "disseram" pertence às vozes anteriores. Portanto. dizem as vozes. GUSTAVE FLAUBERT. com a maior clareza. sem adjetivo. Aquilo que podia parecer um erro grosseiro de estilo. o segundo "disse" pertence à mãe. No complemento o tom é raivoso: "um tal de Pedro Páramo". não suportaria a aparente desorganização. Passado –"chamou" e "perguntou" – e presente "sabe" e "e" – numa só frase. O personagem chama um colega ao canto e lhe faz a pergunta de modo direto. não seria possível. que a voz do personagem passa a fazer parte da narrativa embora aí sem a autonomia necessária. a ter um estilo. Quem é o sujeito que pensa? É o relator invisível ou Leon Dupuis o autor dessa inquietante interrogação sobre a natureza de Emma? A astúcia consiste em destacar a onisciência do narrador. No entanto.Flaubert e Madame Bovary ) AS MUDANÇAS VERBAIS No discurso indireto livre as vozes se cruzam. montam-se. AS OUTRAS VOZES. (A orgia perpétua . Chamou Joaquim a um canto da sala e lhe perguntou: — Já sabe quem é o criminoso? Aí está o discurso ou estilo direto. o autor simplesmente dá essa autonomia. O escritor deixa de concordar com a tradição para dar autonomia ao personagem que passa. revelam-se. No conceito do estilo tradicional. No discurso ou estilo indireto livre — a liberdade consiste justamente em não ter que ser interrompido pela pontuação que dificulta o diálogo — as vozes circulam num mesmo tom: Chamou Joaquim a um canto da sala e perguntou se ele já sabia quem era o criminoso. Seria um texto mal escrito. Mais adiante. usando os dois pontos depois do verbo "perguntar" e do tradicional travessão. A mudança é básica. Há uma voz narrativa – "Chamou Joaquim a um canto da sala e perguntou se ele" – e uma voz de personagem — "já sabe quem é o criminoso". como revelador de um universo particular. feita uma rápida análise mais aprofundada. porque é ativo. tem dúvidas. então. Parece complicado. Na ficção moderna. seu poder diminuiu tremendamente. alterando os tempos verbais: Chamou Joaquim a um canto da sala e perguntou se ele já sabe quem é o criminoso. não é só bem escrito. já não sabe tudo. observaremos que é muito clara a mudança. é idêntico ao do personagem. MUITAS VOZES . portanto. Percebe-se. Ser insultado por um cliente que nem se dava conta do que dizia [. Os que não davam certo. a frase circula entre o linear e o áspero.]" Isso significava que as coisas haviam desandado. Aspeando a segunda frase... (A vida breve e feliz de Francis Macomber) As imagens e as palavras apresentam-se com equilíbrio. UM SAX NARRA A AVENTURA No absoluto oposto da tradição está o norte-americano Jack Kerouac. . Sem aspas. "um tal de Pedro Páramo".] Era melhor mesmo ficar com o seu livro no almoço e no jantar e bebendo o uísque pago por ele [. devemos distinguir agora o que é um texto tradicional de prosa literária. a narrativa ganha em força e beleza. distribuídas com habilidade. Acompanhá-los pelo resto do safári num relacionamento puramente formal – como é mesmo que os franceses o classificam? Relações respeitosas? Bem. com a contribuição de outras vozes. Em sequência rítmica e linear. a reflexão do personagem é apresentada ora através de aspas ou em itálico. Na tradição. ler um livro durante aa refeições. "Bem.. essa frase era a que melhor definia certos tipos de safáris. Suprimindo-as. Comer sozinho. Essa é uma questão básica. ainda que aparente – às vezes – algum tipo de desorganização estilística. E é sempre assim? Percebemos aí que quando o narrador – mesmo através da voz do personagem – precisa de outra voz recorre às aspas.] A propósito. Basta ler mais um breve texto de Hemingway para compreendermos esse estilo exato e tradicional: Wilson já concluíra que seria melhor manter um certo distanciamento. e lhe perguntava: "Como vão as coisas?" e ele respondia.. Lembramos que uma espécie de aspereza toma conta do relato em Pedro Páramo e causa inquietação no leitor. Mas não perde em elegância. pelo menos ainda estou bebendo o uísque pago por ele [. fica clara a voz de mãe... Você se encontrava com o colega. Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai. que seria facilmente evitada se desse plena autonomia ao personagem. harmonia. Uma boa experiência é essa: escrever colocando aspas nos diálogos e depois retirá-las. organização e beleza. seria pelo menos muito mais confortável do que ter de passar por acessos emocionais. Interrompe o fluxo da leitura e cria poluição visual. cresce em sedução. o que não é verdade – completamente. Ainda para maior clareza. as peadas pelo autor – presença decisiva do autor. este é José Lins do Rego". quase sempre ainda no rascunho. para a frente e para trás. só isso. Em Kerouac há um apelo ao nervosismo da sua época. O que queremos é demonstrar que nem sempre deve ser assim. O baixista se curvava surrando as cordas. seu pé esquerdo marcando o ritmo de cada batida.Que. notáveis escritores. conforme observa Eduardo Bueno. um sorriso aflorava de seu rosto extasiado. ainda quando essa fuga fosse técnica. Como no Brasil se pode afirmar: "Este é Jorge Amado. quer dizer. Assim: E Shearing deu início ao embalo. ele começou a suingar no banquinho do piano. Qualquer pessoa pode de longe dizer: "Este é Hemingway ". É o pleno reinado do autor e por isso se repetia em todas as cenas. Um espontâneo qualquer. (On the road) Percebemos logo o ritmo das frases. Basta ver as frases e acompanhá-las. Esse estilo tinha a força da mão do escritor. parecia ir cada vez mais rápido. O autor iniciante precisa estar atento. e ele começou a suar. movido por uma espécie de impulso febril. . oração após oração. para Truman Capote. palavra por palavra. de início lentamente até que o ritmo esquentou e ele começou a balançar mais rápido. com harmonia entre as frases. As mesmas palavras e os mesmos ritmos para qualquer situação. da construção. de estudo? Veremos. e muito menos do narrador. seu pescoço começou a acompanhar tortuosamente. Nenhuma palavra que lhe fugisse ao controle. mais e mais rápido. não? Ou até ser materializada a narrativa precisou de reflexão. Na verdade. O leitor é capaz de acompanhar o texto sem pensar. inquietação e pressa. Será que o estilo do personagem de On the road é mesmo tão espontâneo feito se apregoa? Um estilo em que o narrador escreve segundo as sensações e ritmos interiores. Radical. Com visualidade. de análise. não passava de um datilografo. Seu penteado se desmanchou. A música esquentou. ele baixava o rosto até as teclas. precisão e ritmo. A HARMONIA DAS FRASES Hemingway conduzia o texto por aquilo que se conhecia como elegância espacial. em todos os livros. Kerouac procurava fazer com que suas "frases soassem com um solo de sax de Charlie Parker. Ainda que diferentes. ao som do qual escrevera a versão original do livro". este é Graciliano Ramos. É claro que são grandes. jogava o cabelo para trás. Vejamos um trecho de Guerra e paz: Finalmente o imperador retira-se de junto do exército e o único e mais plausível pretexto da sua retirada é que a ele compete incitar o entusiasmo nas capitais com vista a criar o espírito de uma guerra nacional. Além das mudanças no tempo verbal entre o presente. envolvendo conteúdo – conflitos religiosos e sociais – e forma – tratamento estético da obra literária. E esta viagem a Moscou triplica as forças do exército russo. a narrativa parece se atropelar. sem a precisão do ponto nem a leveza da vírgula. jogava o cabelo para trás. rápido. porém. e ele começou a suar. as frases se entrecruzando. e que se consagrou pela exatidão. enquanto o uso do gerúndio "marcando" e "surrando" – possibilita o que ele chama de "suíngue".. com batidas fortes que acompanham a bateria e o baixo. leveza e visibilidade. tortuosamente.. DISTÂNCIA NA HARMONIA Mesmo dentro da tradição. um sorriso // aflorava // do seu rosto.. Um texto totalmente oposto ao de Flaubert.. há distância narrativa maior do que entre os dois grandes russos: Tolstoi e Dostoiévski? Os dois viveram na mesma época e tinham preocupações idênticas.. Vou um pouco adiante: cada personagem exige uma nova pulsação narrativa. Seu pé esquerdo //marcando // o ritmo de cada batida – O baixista se curvava // surrando // as cordas. E Shearing // deu // início ao embalo. o pretérito imperfeito e o gerúndio. // jogando // o cabelos para trás [. Dois pontos e vírgulas no princípio pedem um movimento de leve sincopado.] seu pescoço // começou // a balançar. // seu // penteado se desmanchou. [. E Shearing deu início ao embalo.. // um sorriso aflorava de seu rosto extasiado.] a acompanhar // tortuosamente // seu // pé esquerdo marcando o ritmo de cada batida. ele // baixava //seu rosto até as teclas. // seu // pescoço começou a acompanhar tortuosamente. ele baixava o rosto até as teclas. Autran Dourado afirma que todo livro exige uma nova forma.// De início // lentamente // até que o ritmo esquentou [. E agora uma passagem de Crime e castigo: . AS PALAVRAS ATROPELADAS Em Kerouac. parecendo entrar umas nas outras.] A insistência do advérbio – "lentamente" e "tortuosamente" – E a repetição do pronome "seu" dão vigor estilístico. o jazz na sua expressão de agitação e pressa. Voz do personagem: "Vinte para o guarda. Também cruzava com carruagens luxuosas. Sempre com paciência. É sempre interessante. ontem eu dei uns quarenta e sete ou cinquenta copeques aos Marmieládov" — pensou. São três tempos narrativos – narrativa linear. sobretudo em suas teses sobre a polifonia (Problemas da poética de Dostoiévski): "Aquilo que o autor executa é agora executado pela personagem. narrador ou não. São questões que estudaremos. mas logo esqueceu até para que havia tirado o dinheiro do bolso. musicais. Não parece haver dúvida quanto à influência do russo Dostoiévski – vários pontos de vista num só texto – sobre o norte-americano Jack Kerouac – . do chileno Antonio Skármeta: Ardente paciência. voz do personagem. no caso de Dostoiévski. ele os acompanhava com olhos curiosos e os esquecia. refinadas. "Vinte para o guarda. Parou uma vez e conferiu o dinheiro: tinha cerca de trinta copeques. cavaleiros e amazonas. Lembramos o título original do livro O carteiro e o poeta. com muitos movimentos interiores. Uma verdadeira polifonia. Parou uma vez e conferiu o dinheiro: tinha cerca de trinta copeques. calculando sabe-se lá com que fim. como se pode ver no parágrafo que examinamos: Narrativa linear: Também cruzava com carruagens luxuosas. antes que desaparecessem de sua vista. Retorno à narrativa linear: Mas logo esqueceu até para que havia tirado o dinheiro do bolso. Voz do narrador: Calculando sabe-se lá com que fim. Pois é o que precisaremos ter aqui. sempre numa sequência lógica. sempre de acordo com o personagem. ontem eu dei uns quarenta e sete ou cinquenta copeques aos Marmieládov" – pensou. três para Nastácia pela carta – logo. que focaliza a si mesma de todos os pontos de vista possíveis". cavaleiros e amazonas. OS MOVIMENTOS INTERIORES DE DOSTOIÉVSKI Dostoiévski escrevia com uma técnica que envolvia várias vozes narrativas. rever o crítico Mikhail Bakhtin. ele os acompanhava com olhos curiosos e os esquecia antes que desaparecessem de sua vista. elegantes. voz do narrador – e com uma repetição – narrativa linear – enquanto Tolstoi sofria influência francesa. com frases limpas. três para Nastácia pela carta – logo. Lenta paciência. Até o dia em que decidiu investir na composição do romance. Escrevendo esboços. Não devemos esquecer: um bom esboço leva a um bom argumento. sabia que era uma ilusão. Desordenada. ela nem sabia o que fazer. A técnica apura e resolve o conflito. Perfeita pulsação narrativa. Admirava vários escritores. simples e óbvio. chegou a imitar alguns. Muitos esboços feitos com a caneta. num solo. trabalho desenvolvido a partir de esboços que obedeciam ao impulso – o que é fundamental no processo criador. Mas.vários movimentos e mudanças de tempos verbais. tanta . Um atormentado. No esboço. nessa busca constante da voz narrativa. apenas a voz narrativa se manifesta. biógrafa do escritor beatnik. para Kerouac. trancou-se num apartamento. Também não é problema. De análise. às vezes começa assim: A moça se apaixonava por um rapaz louro e chorou. foram necessárias horas de estudo. uma paixão romântica. No impulso nascem as luzes que vão iluminar o texto completo. numa louca arremetida de êxtase frenético". E de usá-las. A VOZ NARRATIVA INICIAL Um esboço convencional. NÃO É HORA DE PUBLICAR. MAS DE ESCREVER A escritora Ann Charters. Kerouac também era um obstinado. e sonhos. fazia com que um riff em seguida ao outro. "a atração do esboço era excitante. Tinta. um bom argumento leva a uma boa história e uma boa história pede boas técnicas. podemos passar vexame. Às vezes medíocre. Não importa. que ele considerava de um "vigoroso ímpeto" e "expunha tudo. assinala que. Ridículo. Não devemos nos preocupar. É hora de escrever. Ou seja. seu processo criativo não tinha nada de espontâneo. inicialmente. mas sua espontaneidade – foi resultado de um grande esforço. De observação. E quando escrevemos. Mas a narrativa de On the road surgiu mesmo da leitura das cartas de Neal Cassidy. Um escritor necessita de suas ferramentas. Depois o argumento. de principiante procurando a voz narrativa. colocou papel de telex numa velha máquina de datilografia e trabalhou durante quarenta dias ininterruptos. muitos esboços. seguisse em qualquer direção para onde o levassem sua mente e as emoções imediatas". Ainda que seja confusa. Lápis. Não é hora de publicar. Barulhenta. Materializar os pensamentos. A voz narrativa existe. Talvez falta de hábito. Com pouco mais de costume se verificará que temos mesmo essa voz narrativa e que o artigo indefinido é apenas um elemento narrativo.agonia e por isso viajou para longe. Elas precisam ser identificadas e estudadas. Aperfeiçoar. Imperfeição. Por exemplo: A moça se apaixonava por (um) rapaz louro [. Vai se consolidando. Insistimos. Para que serve o artigo definido – o. precisa de ajustes. Calma. exasperando. passado. uma. chorava na janela. como Julieta. de cara. Aquilo que está sendo escrito e o que precisa ser escrito. de fracasso. reúne as informações num parágrafo. que o texto é ruim. mas é a nossa voz. quer dizer tudo num só instante.] . O que é que está errado? Onde? Por quê? Investigar a frase significa descobrir as suas possibilidades. É possível. a moça não queria casar com o rapaz louro nem namorar. ainda quando sugerem ridículo. as . provocando ruídos. Nada disso.. ler sempre. uns. Não usaremos a justificativa: "Eu sabia que estava errado". que valor têm para a narrativa? E os tempos verbais – presente. Paramos para investigar a frase. a precisão. ela está surgindo. Assim acontece com muita gente.. Não há necessidade de choro.. os defeitos. O DRAMA DO ARTIGO Em primeiro lugar: o escritor iniciante tem pressa. Grandes escritores passaram por esse sofrimento. porém é precária.] sabia que era (uma) ilusão [.. Não se trata de erro. Ler. Escrever é o primeiro caminho. imperfeito? E os advérbios? O que fazer com as conjunções? Uma frase não é um amontoado de palavras. ainda não conhece o pulso. E isso não significa ausência de escritor..] (Uma) paixão romântica [. mas nunca mais voltaria. não era intenção. a.. nem queria. Conhecer os movimentos internos da frase. e o coração aos saltos. umas –. Joga todos os dados. meteoritos que caem na página. O jorro de palavras está nascendo. mais-que-perfeito. O parágrafo. Não é assim tão feio. Ruim. Qualquer leitor vai dizer. todos os dias.um.ou o indefinido . um passo fundamental. os. A repetição leva ao estudo das indefinições narrativas. de repente. (E) Sonhos.. No entanto. ao leitor. No campo das artes não existem regras absolutas. Devemos nos lembrar do pulso do personagem. dependendo da intenção. para exame imediato. e à investigação da cena. A moça se apaixonava por um rapaz louro [. Numa montagem mais tradicional. o que não é de todo ruim. até à investigação do leitor. A moça se apaixonava por um rapaz louro. "uma" e "uma" desapareceriam porque não qualificam nem enriquecem as frases que ficam mais precisas. em princípio. É trabalhoso. mais tarde. mas belo. (E) Chorou. sutilmente. Para não perder a indefinição informativa a primeira frase ficaria com o "um". (E) . Caso se verifique certa densidade psicológica do personagem. o indefinido é retirado. funcionar como elemento de ligação.. o artigo indefinido teria de passar por uma vassourada. De caráter oscilante. sabia que era ilusão. A investigação da frase deve corresponder à investigação do personagem. Ela pode ser substituída. ao invés de "indefinido". Ela nem sabia o que fazer. a necessidade do uso do indeterminado. Depois avançaremos. Nem sempre é assim. ele está avisando que ainda não conhece bem o personagem. há excesso da conjunção "e". precisa da adesão do leitor. Importante destacar: numa montagem tradicional. embora essa não seja uma regra absoluta. Pode nos causar arrepios. Paixão romântica.] Pode parecer simplista demais: o artigo aí. na verdade "define" o caráter do personagem e avisa. E que. Além disso. mas se verificará. Deve a conjunção. por pontos. Ou. OS INDEFINIDOS DEFINEM Sem esquecermos jamais: a estética da obra de arte literária pertence ao reino do personagem e não ao reino da estética clássica filosófica. tanta agonia. para conhecê-lo. a psicologia desse personagem – ou dessa personagem – pede mesmo o indefinido. AS CONJUNÇÕES CRIAM PROBLEMA Vamos investigar o uso da conjunção. no plano do narrador. rigorosa. A INTIMIDADE DOS VERBOS . Aí há uma perfeita pulsação narrativa a partir da voz do narrador e da psicologia do personagem. por exemplo. pois. como Julieta. ainda chovia. sem dúvida. movimentam. Anoitecia. todos os dias. Ela nem sabia o que fazer. "contudo". essa não seria a solução. Cada coisa é uma coisa. Não nasceram apenas para ligar. a movimentação dos personagens e da cena para que se defina onde queremos chegar. (Tremor de terra) Este conto servirá de base para muitos estudos. Cabe ao autor iniciante estudar – e investigar – a formação da frase. de Luiz Vilela. e ele acendeu a luz. e mais o efeito que provoca no leitor. O coração aos saltos. Personagem denso e determinado: equilíbrio entre artigos e definidos e conjunções. Mas é esse efeito que o escritor quer alcançar? Devemos estudar.Por isso viajou para longe. A questão é insistir investigando. abriu-a e olhou para a rua. Com a certeza de que estamos tentando ajustar a voz narrativa. tanta agonia e por isso viajou para longe. A monotonia do personagem solitário de Chuva. fazem curvas. Para muitos. AS CURVAS E AS SUAVIDADES As conjunções de ligação – "e". sabia que era ilusão. Ou o inverso. "todavia" – criam sinuosidade nas frases. Uma daquelas conjunções deve ficar. A chuva diminuía. nem queria. mas também para suavizar. a moça não queria casar com o rapaz louro nem namorar. Há outras. Foi até a janela. por exemplo – e as adversativas — "mas". é marcada pela conjunção "e": Quando o quarto ficou escuro. Sempre considerando o personagem. chorava na janela. mas nunca mais ia voltar. para que se alcance mais leveza. e fazia frio. "porém". A sequência de pontos deixa o parágrafo pesado e as conjunções possibilitam a leveza. Personagem inseguro: artigos indefinidos e conjunções. (e) não era intenção. mais a cena. e os postes estavam acesos. sem sustentação. todas as sugestões que aprimoram a voz narrativa: 1 . definitivo. Entre a primeira frase ("A moça se apaixonou por um rapaz") e a segunda ("e chorou") há uma elipse narrativa ("e. uma a uma. os verbos. 2 . "ou". em seguida o ponto. e. um eco – . evita a conjunção "e" e afirma que ela "chorou" no momento da paixão. Chorou. Agora. também pela sua própria natureza. o "ponto". E cria expectativa. pela sua própria natureza.A moça se apaixonou por um rapaz louro. no momento em que descobriu a paixão") Ou depois do verbo ("e chorou no momento em que descobriu a paixão"). a vírgula depois da palavra "louro" cria leveza. o segundo "ou". Nesse caso. entre pontos. um golpe de enredo ou de eloquência – o romancista precisa chamar a atenção do leitor a possibilidade de uma criadora onomatopeia. encerra o andamento narrativo. Chorou. O inconveniente é que cria também uma rima desagradável: "ou". transita sem interrupção. Tentaremos o pretérito perfeito – "se apaixonou. responde também com ênfase: "chorou". NA PRÁTICA Examinemos. O pretérito perfeito. no instante em que se apaixonou. A TEORIA. de "se apaixonou". ficaria assim: A moça se apaixonou por um rapaz louro. muda inteiramente o aspecto das coisas e dos seres" (Nas trilhas da crítica). O primeiro "ou". a rima – na verdade. de "chorou"." A moça se apaixonou por um rapaz louro.A moça se apaixonou por um rapaz louro. Aqui. Nesta primeira frase. Sem a conjunção "e". é preciso. Torna a frase falsa. Não esquecer Marcel Proust: "Esse imperfeito. O imperfeito "apaixonava" parece deslocado. e foi somente aquilo – "Chorou". tão novo na literatura. chorou. O verbo "chorou" só. além do verbo adequado. A moça se apaixonava (?) por um rapaz louro. isolado. quando for algo importante e definitivo. Mas tem o mesmo inconveniente da mudança do tempo verbal . E o cuidado é para que ela se desenvolva sem constrangimentos. não. tanta agonia. sem problema. As três frases seguintes pedem um pouco de harmonia.A moça se apaixonou por um rapaz louro. ininterruptamente. . esse tipo de monotonia ceda espaço a um andamento mais rico. "chorava" sempre. Pode? Pode.A moça se apaixonou por um rapaz louro e chorou.A moça. sem o inconveniente do eco desagradável "ou". no fim. Os verbos. Nesta frase. essa não é uma questão de gramática. e joga o verbo para o imperfeito "chorava". na sequência criativa. Ainda assim. Continuamos escrevendo. Agora o verbo "chorava" vem depois da vírgula. no ensaio citado. Continua desagradável. "Esse imperfeito serve para relacionar não somente as palavras.deve ficar. poderia. depende do personagem e da cena. Chorava. Essa mudança só deve ser feita com rigoroso motivo técnico. o problema da rima é mais denso. O importante é que o autor iniciante verifique que a sua voz narrativa exige uma constante observação para os tempos.A moça se apaixonou por um rapaz louro. chorava. Mas tudo. permitindo ainda a leveza. sabia que era uma ilusão. embora no tempo correto. se apaixonou por um rapaz louro e chorava. "ou". Devemos investir para que. 3 . ela está nascendo. Algumas palavras parecem que ainda não encontraram o lugar adequado: Uma paixão romântica. 4 . Agora. Ela nem sabia o que fazer. O verbo "chorava" possibilita a leveza da ação. As pessoas que não têm ainda um conhecimento mais familiarizado do texto ficcional devem evitar. O ponto insiste na informação abrupta. Estamos explorando a voz narrativa. 5 . cuja sequência de movimentos se revelará ao longo deste trabalho. do sem fim. Dois tempos verbais muito próximos. mas de efeito. Sonhos."apaixonou" e "chorava" – e pede mais equilíbrio narrativo. Ritmos vulgares. Mesmo se houvesse impedimento gramatical. 6 . "Chorava" dá a dimensão do inesgotável. E criam ainda uma certa monotonia. acentua Marcel Proust. Andamentos vulgares. Personagens vulgares às vezes reclamam frases vulgares. Mas pode gerar conflito no leitor justo pela mudança do tempo verbal na mesma frase. se atropelam. mas toda a vida das pessoas". Pondera. sem que a voz narrativa seja . como Julieta. O que parece ruim. pode ter função e efeito. mas nunca mais ia voltar. Debatendo. era ilusão. e nova alteração. e não impondo. o condicional "voltaria" resolve. distendendo-a.até porque a rima é sugerida. No passo seguinte do texto. sonhos. A expressão "por isso" não é retirada porque permite uma oscilação na frase. A distante rima "ão" . que vagava no texto. todos os dias. imperfeita –. Há ainda um excesso de "ia" circulando no texto. mas tirando "a moça" e deixando "não queria casar"."paixão" e "ilusão" . nem queria. Mas será excesso mesmo ou o narrador quer criar um som de cigarra. Até porque são feitas várias sugestões. Tudo é colocado em debate. está escrito: Paixão romântica. algo que sugere uma lamentação: "ia". "ia". Mais uma vez evita-se a rima. Ela nem sabia o que fazer. O coração aos saltos. Assim como o "ia" – de "sabia" e "agonia" porque além de ter sido cortado o outro "sabia".permanece para dar o peso da sequência . a moça não queria casar com o rapaz louro nem namorar. não era intenção. uma curva. há o distanciamento que pontuaria o ritmo. chorava na janela. que permite a passagem até "ilusão". Numa oficina de criação literária. "ia"? Respeitaremos ainda a reiteração "nem queria". O autor iniciante faz análises. não apenas uma. Discutindo. para o final da frase. discutindo o texto. A AUSÊNCIA DE JULIETA FAZ BEM Continuando: Por isso viajou para longe. tanta agonia. UM POUCO DE ORDEM E RESPEITO Os exames e as sugestões são para ajustar a voz narrativa e não para alterá-la. A questão é respeitar a voz narrativa do iniciante. retiramos a expressão "sabia que" e foi dada maior densidade à informação. ficando o imperfeito "era". Estudos. Deslocamos a palavra "sonhos". Basta um pouco de respeito pelo criador. O que não deve acontecer com a adversativa "mas" seguida do "mais". separada apenas pelo "nunca". seguida de ponto: "Não desejava o namoro". nada se impõe. o "com o rapaz louro" some. Não obedece a ordens. Já ressaltamos: escrever ficção não é escrever bem. deixa a narrativa solta. "casar" e "namorar". Além disso é desnecessário o "ia voltar". Devem ser motivo de análise. Coração aos saltos. Sempre o destaque: na voz narrativa isso é ainda inconsciente. Na expressão: "Chorava na janela todos os dias. Muita gente nem gosta de falar nisso. diversas. O ideal é que desapareça porque nesse momento não se deve procurar comparações ou aproximações nem mesmo com Shakespeare. O jorro do impulso. inesgotáveis redações. O símile é completamente inútil. NÃO EXISTE TEXTO PERFEITO. identifique sua intimidade e vá em busca da pulsação narrativa. a uma comparação. Aí se estabelece a pulsação narrativa. o caos é ordem. . suas elipses. Nem pensar. sem dúvida. mas não amado em excesso. que antes era barulhenta. Paixão romântica. suas oscilações. nunca mais voltaria. mas o autor pode mais tarde – e conscientemente – deixar o texto cheio de sons e ecos para atrair o leitor ao seu universo de lamentação e choro. Concluindo: A moça se apaixonou por um rapaz louro. sua criação. ou se usa a metáfora perfeita: "Uma Julieta". como já dissemos. Mesmo o pequeno texto que investigamos tem muitas. Além do mais. Não se ama tanto um texto a ponto de não se fazer alterações. A tentativa é para que o autor iniciante encontre a voz narrativa. pode ser respeitado. Cada um encontrará suas próprias palavras. Sempre. o próprio autor vai ajustando a voz narrativa. Chorava. era ilusão. Nunca esquecer. Chorava na janela todos os dias. Não desejava o namoro. onde nasce a voz narrativa. Os ajustes são mais do que necessários. Nesse caso aqui. As sugestões não são imposições. como Julieta". observa-se que os personagens pedem passagem e esse será o próximo passo. ou nada.cassada. OU DEFINITIVO Pode parecer estranho quando falamos em respeitar o texto e sugerimos tantas mudanças. ao longo do tempo. não existe texto perfeito. De investigação. O autor reduz seu texto. Por isso viajou para longe. silêncios e abismos. Demonstro que. ela não queria casar. A união entre a voz do narrador e a voz do personagem vai chegar ao leitor. Pretendo apenas o exemplo. sai a vírgula e o "como Julieta". Proponho alternativas. Nem texto definitivo. às vezes. confusa. Porque à maneira que se escreve. Ela nem sabia o que fazer. Em literatura. tanta agonia e sonhos. É importante.] mas nunca mais voltaria.. O que antes era feio agora tem função literária. Por quê? Porque a voz narrativa percebeu que há oscilações psicológicas na moça e as palavras reveladoras dizem isso.. repetições e desobediência gramatical e linguística não são apenas possíveis. Também o segredo do texto está nas repetições: A moça se apaixonou por um rapaz louro [. . a formação frasal se repete: "ela nem sabia o que fazer.. como estamos insistindo. Ou seja. sobretudo.]" e "[. procura a voz do personagem. Compreende-se agora com mais clareza o que é escrever bem e o que é escrever ficção. que o escritor.. Prestando melhor atenção. depois de encontrar sua voz narrativa. verificamos que logo em seguida está escrito: O coração aos saltos.] Passam a ser reiterações e não repetições. sabia o que era [. O caráter da personagem se manifestou. aquilo que seria um texto ruim – as pessoas diriam ao escritor iniciante "pare com isso". contudo. ajustada. Portanto. Teria de ser reescrita. sabia que era uma ilusão. "não é a sua praia". É nesse instante que ocorre o encontro entre as duas vozes... tanta agonia. Investigando melhor. A norma diria assim. mas nunca mais voltaria. são exigidas. Dessa forma.. se mexem. A voz narrativa do autor. As palavras sugerem que a moça é indecisa – precisa que a ansiedade se revolva dentro dela – e que essa indecisão e essa ansiedade passam para as vozes internas. Desobediência gramatical com conhecimento gramatical. nem queria. o ideal é que aquela frase: Ela nem sabia o que fazer.. a moça não queria casar [.]". percebemos que não é vício nem texto ruim. De acordo com a norma comum do texto bem ordenado. nem queria. ESCREVENDO FICÇÃO Para desarrumar. mesmo sem ser consciente. vá em busca da voz do personagem. a moça não queria casar com o moço louro. é preciso arrumar primeiro.. "você não tem jeito" – passa a ter muitas qualidades narrativas.] a moça não queria casar com o rapaz louro [. mobilizam-se.. para só então decidir a respeito de técnicas. no texto – claro. Devem decidir o estilo – a maneira como serão reveladas no papel em branco. Algumas chamam gerúndios repetidos ou reivindicam tempos verbais diferentes. é ponderado e programado. Cabe ao escritor encontrar e harmonizar o movimento interno do texto. Então começo a cutucá-la com a caneta. Sal Paradise. As palavras precisam estar diante dos olhos. puro elemento linguístico – têm vida. O que for. poucas vírgulas. Lembrando o conselho de Gore Vidal: A frase que soa na mente muda quando aparece no papel. Vírgulas pertencem a um personagem. podemos assegurar. Cuidadoso com os advérbios. outra montagem. entrecruzadas. Lembrando sempre: pontuação pode ter certo caráter humano. assim por diante. de Kerouac. descobrindo novos significados. de Hemingway. Basta um pouco de atenção. dois pontos a outros. mais pontos. os segredos e os mistérios dos personagens. com certeza – há personagens que pedem adjetivos. Com sinceridade. comportamento. Não é bem assim. entrecortadas. Outras. Uma oração pensada é muito diferente da oração escrita. repletas de adversativas. Sequer para todos os personagens. tem uma natureza apressada e . Essas criaturas que parecem apenas de papel – não esquecer que podem ser também elemento linguístico. O problema é deixar o texto amadurecer até encontrar as vozes narrativas do personagem – Wilson. O ficcionista precisa conhecer sempre a sua voz narrativa. orações longas. (Os escritores) O PAPEL DONARRADOR CONTEMPORÂNEO Existe ainda o mito do texto enxuto. Não existe uma técnica única para todos os livros. Tem outro ritmo. Sem adjetivos. no entanto. E nem sempre as palavras pensadas se ajustam no papel da mesma maneira como foram imaginadas. caráter. Nunca confiar na memória. pontuação rápida. reclamam cortes de adjetivos. no texto. Com uma certeza absoluta: história se materializa. Às vezes caio na gargalhada ao ver o que acontece enquanto torço e altero as sentenças. O "que" tratado com reservas. Sem confiar na memória. a voz do personagem. Agenda eletrônica. A HISTÓRIA SE MATERIALIZA Não devemos esquecer: é preciso ter sempre por perto caneta e papel. todavia. Mas quem decide o estilo do personagem é ele mesmo. só deve aparecer quando os primeiros rascunhos estiverem escritos. através do seu alter ego. Cada voz tem uma técnica. Essa preocupação. .confusa – vejam os exemplos que é também a voz do autor. O PROCESSO CRIADOR NESTA FASE EU ATUO MENOS COMO AUTOR DO QUE COMO LEITOR. Só isso. Ninguém fica inspirado: impulsiona-se. Stephen Vizinczey IMPULSO QUANDO SINTO A IMPULSÃO LÍRICA ESCREVO SEM PENSAR TUDO O QUE MEU INCONSCIENTE ME GRITA. ADJETIVOS QUE SÃO INEXATOS OU SUPÉRFLUOS. na segunda cerveja do bar da esquina. não é nada disso –. nos preparamos. o Impulso elimina a inspiração. Escrevemos porque lemos e estudamos. PENSO DEPOIS: NÃO SÓ PARA CORRIGIR. Ou por Baco. Equivocados. de alado. Para sempre. ADEUS À INSPIRAÇÃO Apesar da expressão "impulsão lírica". ENCONTRAVA FRASES QUE SÃO VAGAS. E PELAS MUITAS VEZES EM QUE REESCREVI ORIGINALMENTE O CAPÍTULO. Procura a voz narrativa e escreve. Sentimos necessidade de escrever. que muita gente confunde com inspiração. Osman Lins assinala: Platão viu no poeta algo de muito leve. Mário de Andrade SIM. COMO PARA JUSTIFICAR O QUE ESCREVI. de sacro. Os inspirados esperam pelas musas. sem condições . não é distinguido pelas musas. de Mário de Andrade. Não conversa com os deuses. Passamos por aquele instante dramático de Flaubert. (Guerra sem testemunhas) É uma advertência e tanto. não deve fumar. Mas de acordo com os nossos sentimentos. vagas lembranças. e que nós. vindo de fora e privando-o da razão. ao mesmo tempo. Há certo tempo estamos estudando. um monólogo. imaginárias. sobretudo os clássicos. o que significa. sonhar com situações descosturadas. antiquados ou românticos.de criar antes que um deus o inspire. criar cenas. no princípio – sem um plano muito claro. Conscientes. sempre muito radical. Um ponto ou uma vírgula. um diálogo. O MEDO E O FRIO NA COLUNA Não temos musas. Não somos antigos. Temos que escrever. Redigindo. Precisamos estudar os autores não à luz de tantas correntes estéticas e experimentalistas. Às vezes – e sempre. Ela está se mexendo. Estudando. escritores. nota por nota. aos 17 anos: Contento-me em fazer planos. (Cartas exemplares) É preciso entrar no mundo ficcional e mergulhar. embora com apoio nos conhecimentos. é tão exigente que diz no primeiro mandamento do seu decálogo: Você não deve beber. Trabalhamos. A TENSÃO CRIADORA SUFOCA . sermos distinguidos e não sermos responsáveis. nem sequer nos lembramos das cenas de romances definitivos. silêncios por silêncios. não deve se drogar – para ser escritor vai necessitar de todo o seu cérebro. Stephen Vizinczey. Investigando os autores consagrados. Vizinczey lembra que os músicos conhecem partituras inteiras. Difícil conceber invenção mais desvanecedora e tão pesada de subentendidos: somos porta-vozes de mundos transcendentes. Trabalhamos. E trabalhamos. Descobrimos a nossa voz narrativa. Um achado. Temos algumas lembranças. Lendo. Nem gregos. Não nos debruçamos para refletir e analisar a estrutura de uma cena. Não precisamos beber no bar da esquina. nas quais entro e mergulho. Anotamos. detalhe por detalhe. mas uma lenta aglutinação de elementos que. também o professor Philippe Willemart conclui: Desse bloqueio ou dessa barreira nascem o primeiro texto e o autor. de modo que a gente atiça o tema e o tema atiça a gente. argumentos. Enfrentamos o suor que escorre pela coluna. então. Situações descosturadas. Mais esboços. Daí por diante todos os obstáculos são derrubados. Não há portanto um primeiro texto escrito em alguma parte e transmitido por uma musa ao escritor atento. devem ser escritos. Os pequenos textos vão se revelando. (A velhice) Henry James assinala também: O conflito entre a arte e o mundo assim logo cedo chamou-me a atenção como um dos poucos grandes motivos primários. fazemos esboços. Outros textos. Lutamos com os esboços. Aí atua o que Gabriel Garcia Márquez chama de tensão. para sustentar-se por muito tempo. Então anotamos. É uma atitude difícil: implica vivas paixões e. depois de algum tempo. o mundo real e o seu universo ficcional . de que lugar externo julgá-la. (Cheiro de goiaba – Conversas com Plínio Apuleyo Mendoza) Aliás. Então aparece o medo. O autor de Cem anos de solidão assegura que. quando queremos escrever. cenas. o escritor está ao mesmo tempo contra eles e com eles. que não há nada melhor do que escrever. exige força. se também nós estamos dentro dela? (Formas breves) Em Como se constitui a escritura literária?. Simone de Beauvoir adverte com firmeza: O projeto de escrever implica numa tensão entre uma recusa do mundo em que vivem os homens e uma certa atração pelos homens. (A arte do romance) O argentino Ricardo Piglia inquieta-se: Como falar de uma sociedade que por sua vez nos determina. sonhos. os conflitos desaparecem e percebemos. Percebemos com clareza que não aguentamos mais a ansiedade. (Criação em processo – ensaios de crítica literária) Logo a tensão entre o escritor. Planos. Fica estabelecida uma espécie de tensão recíproca entre a gente e o tema. Hemingway. Shakespeare. Steinbeck. Carlos Drummond de Andrade. Autran Dourado lembra uma lição: Um grande poeta que era ao mesmo tempo um bom prosador me disse duas verdades: uma poesia só é boa quando se aproxima da grande prosa e uma prosa só é boa quando se aproxima da grande poesia. diálogos soltos. Ly gia Fagundes Telles. situações descosturadas. Adélia Prado. jornal. Compulsivo. esse caos interior. Machado. Mesmo assim. Balzac. Lendo tudo. Faulkner. Cervantes. João Cabral de Melo Neto. No processo de voz narrativa – esboços. das frases. A primeira delas é o hábito da leitura. E os poetas. Cecília Meireles. que ensinam a postura dos versos. Stendhal.atua de forma definitiva. Jorge Amado. LER. consideremos uma radical observação: sem os clássicos é impossível criar uma precisa visão do mundo – o caminho árduo que nos levará à construção da obra. as histórias. Sy lvia Plath. PRIMEIRO PASSO: LER. novelas. João Cabral é também grande exemplo de ritmo. argumento. Mário Quintana e Manuel Bandeira. das orações. (Breve manuel de estilo e romance) Manuel Bandeira e Mário Quintana são inevitáveis. Clarice Lispector. depois de afastada a ideia da inspiração mediúnica ou etílica. Dostoiévski. Ninguém se torna escritor sem ser. devemos criar as condições objetivas. Homero. Firmeza. LER Para organizar essa tensão. Gógol. os textos. Graciliano. Mesmo os ficcionistas precisam ler muito os poetas. Flaubert. ensaio. Borges. Octávio Paz. Juan Rulfo. Katherine Mansfield. Carlos Fuentes. Robert Arlt. feito se diz. É assim que nascem os personagens. Euclides. E não apenas porque namoramos com as musas ou porque matamos a sede com cerveja. revista etc. Virginia Woolf. Sábato. Mário de Andrade. que começa a inquietar e a exigir. Tolstoi. porque se aproximam muito da prosa. Fernando Pessoa. Nélida Pinon. contos. um leitor obsessivo. Tudo mesmo: romances. Dante. sonhos. vai se estruturando a pulsação – começo e fim da obra literária. antes de mais nada. Joy ce. . entretenimento. Para escrever. Goethe cheirava maçãs podres. fumando. MAÇÃS E FLORES Há escritores que trabalham em pleno tiroteio. ajeita a biblioteca. Ou parecem. Ariano Suassuna gosta de escrever deitado. em sua maioria. enquanto observava os filhos brincando. Moacy r Scliar lembra que escreve em qualquer lugar. Ariano Suassuna. não de escritor. . Jorge Andrade. no aeroporto ou no avião. Tem que ser agradável. mecânica dos diálogos. Dias Gomes. Não custa. orações. Exige exame lento. Divisão de partes. TIROTEIO. Ler romances não é acompanhar emoções do enredo. E mais: bons dicionários e boas gramáticas à mão. Pode ser que o sótão seja a alma do escritor. Eurípedes. embora no período das anotações. Um momento para ler e estudar. de preferência pela manhã. Eugene O'Neil. outro para escrever. Não interessa se ficará na sala. Equilíbrio. tristezas. no terraço ou no banheiro. tão logo sente que vai começar um novo livro. sem sombras para depressões. tomemos decisões sérias: Se possível escolhendo um horário. elipses. Pelo menos numa segunda leitura. E os teatrólogos. Importante é a escolha do lugar bem iluminado. Observando-se a construção dos personagens. Balzac recolheu-se a um sótão para iniciar a Comédia humana. Sófocles. Essa é tarefa de leitor. Clarice Lispector escrevia com a máquina sobre as pernas. intervenção de personagens coadjuvantes. mudanças. eficiência ou oscilação das falas. Dali calçava sapatos pequenos para apertar os pés. Gabriel Garcia Márquez precisa de uma flor amarela sobre a mesa. Ésquilo. Brecht. então. Eles revelam e confirmam a arte do diálogo e da montagem da cena. arruma a sala. Palavras. Hermilo Borba Filho. frases. parágrafos. angústias. Tchecov. silêncios. Nelson Rodrigues. rasga papéis velhos. desenvolvimento de enredo. dos cenários. das cenas. ventilado. Mas Cristóvão Tezza sofre um ataque de limpeza e. SEGUNDO PASSO: DISCIPLINA A segunda condição objetiva: um verdadeiro escritor estabelece rotina e disciplina. quando todas as condições são favoráveis.Força. períodos. Mas a dor que nos faz criar. que nos atira para o alto. E. alegria. procuraremos contar uma história de começo. festa plena. no entanto. (A orgia perpétua) Comemoremos. Uma história se ajusta aos poucos. história e histórias.procurarmos esse lugar. Trata-se de uma festa. NÃO SOMOS VAMPIROS. Façamos isso com . Escrevemos sem infelicidades. somos escritores. um duelo – com tudo o que o duelo nos proporciona: dor. toda confusão deve ser evitada. Nada de soluções imediatas. saltaremos como Zorba. SEM AVENTURAS OU FILOSOFADAS Nesse primeiro estágio. No melhor sentido possível. Trata-se da angústia criadora. angústia. o Grego. Devemos nos lembrar também e sempre que escrever é estar em comunhão permanente com a humanidade. Uma festa e. Se necessário dançaremos um tango argentino. ou proclamaremos conforme Flaubert: O único meio de suportar a existência é despojar-se na literatura como numa orgia perpétua. Para o sagrado. O começo depende do momento vivido. Para o belo. E o fim. Em comunhão e em confrontação. Com vinho ou com virtude. Para o divino. No começo. argumentos. feito no poema de Baudelaire. Não podemos acreditar nesses seres derrotados que proclamam a missão depressiva da literatura. daquilo que almejamos investigar. Pensemos que esta não é a angústia existencial. à maneira que se escreve. é claro. provocando sofrimento. o meio e o fim podem ser alternados. por mais contraditório que seja. Até porque o começo. participamos de uma festa que também provoca a dor. SOMOS ESCRITORES E consideremos que a literatura é uma festa. de que tanto se fala e que tanto tememos. De felicidade. Isso é coisa do Romantismo. De prazer. meio e fim. Não somos vampiros. permanente. Ainda que sejam necessários muitos esboços. Escolhamos esse momento e iniciemos. depressão. Devemos escrever textos por inteiro. Direto. enredos rocambolescos. (Poética) Assim. aventuras cinematográficas. ao contrário. Por que e para quê? Para que estou eu me poupando? Eu já tive clara consciência disso quando uma vez escrevi: "É preciso não ter medo de criar". Meio é aquilo que se segue a outra coisa e após o que vem outra coisa. Basta dividir bem: Começo: Como em tudo. O COMEÇO. é o que. . ele estará unido. seguir o conceito de Aristóteles: Inteiro é o que tem começo. deve ser evitada. não se segue necessariamente à outra coisa. (A legião estrangeira. depois. talvez eu queira morrer toda inteira para que Deus me tenha toda. simples. filosofadas de terceira. como é que se realiza esse começo. Fim. não há mais nada. quer de modo necessário. como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e me levar Deus sabe onde. quer porque assim é na maioria das vezes. Começo é aquilo que. em si. Por que o medo? Medo de conhecer os limites de minha capacidade? Ou medo do aprendiz de feiticeiro que não sabia como parar? Quem sabe. Esqueçamos os malabarismos técnicos. O MEIO E O FIM E. no escrever também tenho uma espécie de receio de ir longe demais. Reflexão filosófica é perigoso na ficção. situações espantosas. Com uma visão bem clara. necessariamente. esse fim? Clarice Lispector tem um texto que vai nos ajudar muito: Como em tudo. para quem ainda não reúne muita experiência. Que será isso? Por quê? Retenho-me. afinal. Eu me guardo. assim como uma mulher que se guarda intocada para dar-se um dia ao amor. contos e crônicas) Além da reflexão sobre a arte de escrever ficção – o que é bastante significativo – todo o texto tem claramente um começo. Em geral. meio e fim. Objetiva. como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e me levar Deus sabe onde. É sempre aconselhável. esse meio. mas depois do que existe outra coisa. por natureza. no escrever também tenho uma espécie de receio de ir longe demais. Que será isso? Por quê? Retenho-me. acontece depois de alguma coisa.determinação. à qual. um meio e um fim. mas. meio e fim. talvez eu queira morrer toda inteira para que Deus me tenha toda.. Por que o medo? Medo de conhecer os limites de minha capacidade? Ou medo do aprendiz de feiticeiro que não sabe como parar? Fim: Quem sabe. sim.]. sobretudo. É POSSÍVEL INVENTAR UMA HISTÓRIA A intuição nos guia. Como se inventa uma história? O suor escorre no peito. (Os escritores) A VOZ ENCONTRA O ESBOÇO Por que não adotamos esta simplicidade de Faulkner com a colaboração de Aristóteles? Faremos esse exercício. sondamos personagens. Temos uma voz narrativa. A sequência é lógica e possibilita o exame. . terminá- lo. Enfrentamos uma espécie de leve agonia nebulosa. Terminar um texto tem sido um tormento. assim como uma mulher que se guarda intocada para dar-se um dia ao amor. Clarice tem razão: "Por que o medo?" Ouviremos agora o conselho quase didático de William Faulkner. montamos e desmontamos frases. A harmonia nesse sentido é fundamental. Conhecemos a montagem preliminar da história: começo. Escrever uma história é apenas uma questão de ir construindo esse momento. de explicar por que aconteceu ou o que provocou a seguir. Não é incomum encontrar escritores consagrados que não conhecem a medida e não sabem desenvolver o texto e. As palavras barulhentas continuam. Por que e para quê? Para que estou me poupando? Eu já tive clara consciência disso quando uma vez escrevi: "É preciso não ter medo de criar". explicando de que maneira nasceu Enquanto agonizo: Simplesmente imaginei um grupo de pessoas e as sujeitei às catástrofes universais da natureza que são as inundações e o fogo. Cada autor deve fazer isso sempre.. tentamos alguns esboços. com um motivo natural que desse sentido ao seu desenvolvimento [. Exige disciplina. parágrafos. A indecisão ainda é grande. Meio: Eu me guardo. nos braços. períodos. Os nossos personagens estão anotados e começam a ganhar corpo: a moça e o moço louro. pensamos nessa precisa lição do Henry James: imaginar. expostas ao acaso e às complicações da existência. Mais bobo. Examiná-las. E a história começa justo quando os encontramos em conflito. mas então tinha de encontrar-lhes as relações adequadas. apaixonando. interessando-o e encantando-o justamente como eram e pelo que eram. Anotamos. inventar e selecionar. Elas estão sempre nos interessando. Não custa nada observá-las. como figuras ativas ou passivas. "expostas ao acaso". tomamos as primeiras anotações. colegas de trabalho. feito se dizia antigamente. somente aos poucos. Ele as via. no momento em que vamos encontrá-los enfrentando os problemas amorosos. Mais simples ainda. meros passantes. vizinhos. A SEQ UÊNCIA DA CRIAÇÃO Que pessoas são essas que "pairavam diante do romancista"? A lição parece óbvia. Primeiro o esboço. Estudá-las. Disponíveis. as complicações que elas mais provavelmente produziriam e sentiriam. são os modelos: parentes. Foi isso mesmo que Faulkner disse. Estamos usando o exemplo mais simples. IMAGINAR Imaginamos o conflito. É só contar o que está acontecendo nesse momento. Ainda sem nada definitivo. solicitando-o. Gente nos bares. fotografias. Precisamos de ajuda? Ela vem do romancista Henry James: Lembro-me sempre com carinho de uma observação que escutei há anos dos lábios de Ivan Turguêniev. Exato. fazemos . devem participar das "complicações da existência". Para ele. E as via com nitidez. de juntar as situações mais úteis e favoráveis à natureza dessas criaturas. ainda sem nome. desse modo. sem a pressa que estraga o verso. Aos poucos. Que pessoas são essas? O que fazem? Conversam? Um breve argumento: a moça está apaixonada pelo moço louro e decide se matar. Inominados – isto é. quase sempre começava com uma visão de uma ou mais pessoas. encantando. aquelas em que mais se revelassem. que pairavam diante do romancista. tinha de imaginar. inventar e selecionar. retratos. em relação à sua própria experiência com a origem costumeira do quadro ficcional. como disponíveis. próprio de quem não tem ainda sequer uma remota experiência. conforme nossa voz narrativa. Vão surgir outros textos. Nada. as frases não prestam. jeito de caminhar. Procuramos novas intrigas. Mas é escrevendo. Duvidamos. Na seleção está um dos nossos segredos. procurar e provocar a seleção do texto. talvez os problemas provocados pela paixão da moça. Tudo e tudo é antes. optar por silêncios e elipses. ela sabe que a paixão é impossível. Um pouco de paciência ajuda muito. O suficiente para revelar as nossas ansiedades. No desenvolvimento. Ainda que com a voz narrativa lenta e informe. Em nossas mentes detalhamos roupas.rascunhos. sem pouso e sem parada. O medo do amor e do texto. melhorar diálogos. Deixemos que se manifestem. escrevendo sempre. questionamos a relação entre os dois. cuidado. Inventamos uma nova cena: os dois se preparando para o primeiro encontro. Rasgamos. Temos inúmeros fatos. Decidimos pela reflexão. cortamos. Tudo e tudo. Não devemos levar para o texto conclusivo tudo que escrevermos. Um passo de cada vez. INVENTAR Escutem bem: inventar. SELECIONAR Devemos em seguida – feitas as anotações – cortar palavras. Investigando e anotando. sem definições. escrevendo tudo que imaginamos. Nada deve ser descartado. dialoguem à vontade. envolvemos outras pessoas. calados. que podemos imaginar e inventar. É medíocre? E daí? É medíocre. As noites em silêncio. não é hora ainda de definições. Continuamos. . sem preocupações. Agora. acrescentamos. cenas. Insistimos. Ou é o moço louro quem está disposto a enfrentá-la e deseja provocá- la? Por algum motivo ainda não revelado. cenas. Não será importante um texto longo. O suor na coluna. Escolhemos o final. Não devemos parar. solitários. Gostaria de viver sozinha? Por que não conversar com ele? Por que não contar aos amigos? Não devemos ter medo. A história vai surgindo. materializando. Vamos adiante. lembra Clarice. Muitos textos. Esboçamos diálogos. mas a nossa imaginação é que vai decidir pelo melhor. Nunca. precisamos investigar. O primeiro texto sempre é confuso. Com dois textos: um que revela a história. Não existem assuntos maravilhosos. O nascimento – a gênese – já ocorreu. biografia breve. o que faz? Qual é o seu rosto. de linhas contadas. é comum ouvirmos que jovens – ou adultos . o escritor precisa revelar – ou não – situações que ainda não estão objetivadas no texto. Nosso sistema educacional não favorece muito o processo criador e quase sempre estamos bloqueados.querem escrever e não têm assunto. gostava dos temas comuns. As características psicológicas se revelam nos traços. mas precisamos conhecê-la. PROCURAMOS O ROSTO DA PERSONAGEM Aí está. o importante é destravar a criação. EM BUSCA DE ASSUNTO Aí temos um assunto – não importa se medíocre ou grandioso. os furos vão sendo fechados pela agulha e pela linha que completam o desenho. Então. o que fez. Procuramos inventá-la. outro que desvenda a personagem. façamos isso. assim feito quem borda um tapete. ainda envolto em sombras? Tateamos. o primeiro furo da história: Quem é essa mulher. Ainda que seja uma coisa pouca. Torna-se necessário agora conhecê-la. precisamos descobrir quem é essa mulher. Um lugar comum? Isso não é problema do criador. A questão é provocá-los. por exemplo. Na talagaça limpa. Um conselho primário: Tomemos uma manchete de jornal. todos o são. criando armadilhas e seduzindo o leitor. Ou seja. Henry James acusou-o de escrever uma "epopeia do comum". Os teóricos do romance – quase todos – sempre afirmam que devemos dar um passado ao personagem para descobri-lo. Absolutamente comuns. conforme Henry James. sem ler a matéria: "Mulher tenta suicídio no mar e é salva por pescadores" Investigando bem. Vamos trabalhando devagar. Por isso. . Ela está ali. Lembrando sempre que escrever é preencher furos. Flaubert. suas características físicas talvez nunca apareçam na história. d) Praticar. conduzem o leitor. A TEORIA DO BORDADO Para Henry James. uma história é formada pelos inúmeros furos que vão sendo preenchidos com paciência e determinação. . enquanto a fascinação dos acontecimentos reside. ademais. portanto. caso a própria natureza dos furos não fosse a de convidar. envolveu. Nem sempre todas as informações são repassadas ao leitor. c) Persuadir. a partir da voz narrativa. uma imensa contagem de furos e uma cuidadosa seleção entre eles. Revelando os segredos do texto. da figura. CONVIDAR. com o ilimitado número de perfurações distintas para a agulha e com a tendência inerente em suas variegadas flores e figuras de cobrir e consumir o maior número de furos. SOLICITAR. Este já lhe parecia um processo bastante corajoso. Diz ele. no pressuposto de haver algum lugar conveniente e visível para parar. Cada palavra. Mas não podemos deixar de: a) Convidar. milhares de armadilhas e logros. O principal efeito de um sistema tão sustentado. Até mesmo o motivo ou os motivos que levaram a mulher a tentar o suicídio. criando armadilhas e fechando ou abrindo os claros. PERSUADIR Os furos estariam na capacidade de se encontrar a verdadeira continuidade do enredo (desenvolvimento). No caso da narrativa que tentamos criar. praticar de fato milhares de armadilhas e logros. persuadir. Ficam escondidas. quase num tom de fábula: Tudo isso talvez não passe de um modo supersutil de apontar para a moral simples tirada da estória de um jovem bordador do tecido da vida que logo começou a trabalhar justificadamente aterrorizado com a vasta expansão daquela superfície. solicitar. cada período. E selecionar. é avançar sempre. O desenvolvimento da flor. de fato. cada sequência. preenchem o furo. b) Solicitar. o iniciante precisa identificar a mulher. Algumas somem. Ardente paciência. Paciência. de uma superfície tão preparada. furos não fechados que inquietam e provocam o leitor. Q UANDO A ELIPSE É UM BRANCO Marcel Proust também chama a atenção para a elipse perturbadora em Flaubert. pelo menos. Dão leveza ao tempo. Pela sequência. Vamos ao exemplo: O rei adoeceu. AS ELIPSES PERTURBADORAS Encontramos em Ítalo Calvino o melhor exemplo de elipse perturbadora. Há ainda outro fato grave. sem que exista falta de continuidade e que não preocupa. O fascínio da história resolve. Por isso tem função e tem efeito. Convencê-lo pela continuidade. Mostraram-lhe o caminho: "Em cima de um monte há sete cavernas. numa delas está o Ogro". Mesmo quando usamos elipses narrativas. . mas que joga a narrativa para a frente. O destaque de Henry James: Tudo isso é fundamental. interpretações. (Seis propostas para o próximo milênio) O próprio Calvino adverte para a elipse: a falta de informação sobre a doença do rei. aquela que faz o leitor se apaixonar pelo texto. que classifica de "branco". O rei pediu a todos e ninguém quis ir. perguntas. Escolher aqueles instantes que são decisivos. Trazê-lo para junto de nós. Pediu a um dos seus súditos. Não é verdade? Que doença tão grave é essa? Não nomeá-la causa ainda mais inquietação. As elipses são. o furo se transforma em silêncio. a princípio. Que rei era esse? Só um súdito. precisos. pois o Ogro come todos os cristãos que encontra O rei falou a todos mas ninguém se prestou a ir. Em algo que incomoda. Vieram os médicos e disseram: "Majestade. e que ajudam o escritor a dar profundidade ao personagem ou à narrativa. Ela se ajusta de tal maneira que não sentimos falta nos primeiros instantes. muito fiel e corajoso. Quando. Ter a informação e saber distribuí-la no texto de modo a formar um pacto com o leitor. fiel e corajoso. aceitou o pedido? Um texto curto com inúmeras elipses e com furos magníficos. exatos. A rapidez não permite interrogações. para a nossa contrariedade. e este disse: "Eu vou". e de como será possível que um ogro tenha penas. se quereis curar-vos é necessário arrancar uma pena de Ogro. de imediato. É um remédio difícil de arranjar. ou como podem ser tais cavernas. A narrativa se adensa e se multiplica. temos duas histórias que se ajustam numa só: a moça que se apaixonou pelo moço louro e a manchete do jornal. reconheceu Sénécal!" Aqui um "branco" um enorme "branco" e. de acordo com a questão temporal ou com o aprofundamento do personagem. Cuidadosamente.] Por volta do final do ano de 1867 etc. Escreve Proust: Na minha opinião. Primeiramente. A narrativa ficaria da seguinte maneira: . em Balzac. livrava-as do parasitismo das anedotas e das baixezas da história. boquiaberto. A história que veio com a manchete se ajusta nessa. sem sombra de uma transição. Conheceu a melancolia dos paquetes. Flaubert. Para ficar mais claro: as ações de Frédéric são narradas "durante páginas intermináveis" e são detalhadas minimamente. os Séchard eram" etc. Nos exemplos que usamos até agora.] Retornou. Mas. geralmente. ele as musica. Ele viajou. durante páginas intermináveis. Sobretudo no argumento. definida pela marcação dos verbos – "viajou". décadas (retomo as últimas palavras que citei para mostrar essa extraordinária mudança de velocidade. Flaubert acaba de descrever. "Em 1817. de contar.. boquiaberto. o autor passa-as mais tarde para o texto que se constrói. mas um "branco". a velocidade temporal. Examinando-as.. a coisa mais bela de A educação sentimental não é uma frase. Frédéric vê um policial avançar com sua espada sobre um insurreto que tomba morto. reconheceu Sénécal". essas mudanças de tempo têm caráter ativo ou documentário. No entanto. AS MULHERES SE ENCONTRAM NA NARRATIVA Essas elipses aparecem. diríamos. subitamente a medida do tempo tornando-se em vez de quartos de hora. "retornou". que o personagem reconheceu. sem preparação): "E Frédéric. os "brancos" – e aprofunda o personagem e a ação. Frequentou a sociedade etc [. "E Frédéric. temos muito frequentemente. por exemplo – provoca as elipses – ou conforme Proust. "frequentou". Sem dúvida. Estamos avançando. sendo o primeiro.. com incrível lentidão. o frio despertar sob a tenda etc [. São agora uma só. "A moça se apaixonou pelo moço louro e chorou". diante da morte de Sénécal. com a mulher que tenta o suicídio. as mínimas ações de Frédéric Moreau. nele.. nos esboços e argumentos –escritos depois da descoberta da voz narrativa – e devem ser analisadas. Deve ser interrogada no dia seguinte. No trabalho. gostos. o que será apenas sugerido. O fundamental é ter condições para continuar fechando os furos à maneira que se escreve. atenção. Um segundo rascunho. o cenário. ela tem um nome. É casada. Convivência. prestidigitação. mesmo quando muda. Cuidado. só há cena com a participação do personagem. É salva pelos pescadores e levada à praia. Silenciosa. o que não deve. através mesmo dessa manipulação de Flaubert: tempo verbal. Então. Em casa. A mulher se chama Gabriela e é casada. A história está montada. movimento. aceleração do tempo. . enfim. resolvendo-se. em seguida. Mais tarde. pede-lhe. Cena e cenário são coisas muito diferentes. recebe a visita da polícia. Tem gente que ainda confunde. atrasando-a. jogo. mas o escritor investe na intimidade da narrativa e dos personagens para dominá-los. A CENA E O CENÁRIO Onde ocorreu a tentativa do suicídio? Descreveremos logo a cena. Sempre questionando. desenvolvimento. para levar as crianças ao colégio naquela manhã. o que pode gerar dificuldades. o marido lê. ainda que aleatório. mas conhecê-la torna-se necessidade absoluta do narrador. Só para efeito do conhecimento da intimidade do texto procuramos saber com quem ela casou. Perguntando: o casamento tem importância no suicídio? E respondendo de acordo com nosso impulso: sim ou não. todavia. relacionamento. Este "o que não deve" pode provocar as elipses. Não o é. Cena é ação do conflito. A mulher pula na água e. o corpo já aparece boiando. que nada sabe sobre a tentativa de suicídio. e sobre a convocação. materializando o assunto. Escrevendo. depois. E o cenário. a técnica vai decidir: o que deve chegar ao conhecimento do leitor. O marido. Pode parecer óbvio. e os pescadores. a manchete do jornal: "Mulher tenta o suicídio no mar e é salva por pescadores” O CONHECIMENTO DA HISTÓRIA Procuramos depois examinar a cena do suicídio. representativa da movimentação dos personagens. Em geral. Pode ser que jamais essa informação seja usada. decisiva para a compreensão da história. Estão em cena Canção. o cenário é fixo. sim. Isso. Víamos as tropas em marcha pela estrada sempre envolvidas numa nuvem de pó. Gaspar – que é gago – e o juiz Nunes. As pessoas dizem sempre: "Essa foi a cena do crime". sem a participação ativa do personagem. "Esse foi – ou é – o cenário do crime". Uma grande mala ou um guarda- chuva”. só pintalgada das folhas secas. (Adeus às armas) . A guerra nas montanhas manchava as noites de clarões da artilharia. Apenas lembram os movimentos. Podemos dizer que há aí o cenário da guerra. mas elas não estão em movimento. As folhas caíram cedo naquele ano. A distinção é óbvia. Em geral. Os personagens não interferem na história. de Ariano Suassuna: Uma sala de casarão sertanejo. O teatro resolve esse problema com muita facilidade. "Cena" pede personagem ativo. muitos pomares. Uma grande mala ou um guarda-chuva. e víamos as folhas caírem ao sopro do vento. logo em seguida. As tropas de passagem pela estrada erguiam pó e o pó acamava-se sobre as folhas. Gaspar – que é gago – e o juiz Nunes". Portas para quartos e corredor. E não a cena da guerra. Vejamos em O casamento suspeitoso. O cenário sem personagem é. Cenário é o local. Observaremos que no cenário de Hemingway há referência a tropas. Não existe ação plena. Com a maior clareza: o cenário é formado por “uma sala de casarão sertanejo. a área ou o registro onde ocorre a cena. registrando o olhar do personagem ou do narrador. árvores frutíferas. que estão em cena os personagens que vão promover a ação dentro do cenário – "Canção. dinâmica. metafórico. e ao longe as montanhas pardas e descalvadas. Apenas. Também o tronco das árvores vivia empoado. a estrada estendia-se deserta e branca. mas em contraste com o frio da noite e nenhum sinal de tempestade. a cena. no máximo. um exemplo mais avançado de cenário. O SILÊNCIO DO CENÁRIO A seguir. Portas para quartos e corredor. Não é verdade. e depois que os soldados passavam. O autor adverte. Clarões que lembravam os relâmpagos do verão. A planície abundava de plantações. A MONTAGEM DA HISTÓRIA No nosso exemplo, façamos a mulher andar no cenário, revelando depois a cena do suicídio: praia solitária ou não, movimento das ondas, barcos ou não, mar. Aí atuam personagem e cenário. A cena do crime pode ser humana, sem natureza. Ou apenas natureza quando a personagem não atua no momento da apresentação. O escritor fecha o foco narrativo somente na personagem. Esquece o cenário da natureza: mar, ondas, areia, sol. A mulher toma um barco pequeno, quase uma jangada, entra na água, movimenta os remos. Quando as ondas crescem, ela joga os remos fora. Debate-se. Debate-se muito. Pescadores que se aproximam, aceleram os motores do barco. Investigaremos tipo por tipo, os pescadores. Dois? Três? E respondendo. Por escrito, inevitável. Ela é levada até a praia. Não. Eles percebem que ela mora ali perto, e não tão perto. Com diálogo ou sem diálogo? Diálogo externo ou interno? Só uma advertência: o diálogo aberto pode expor demais o personagem. Ou a narrativa. Cuidado, muito cuidado. Fazem o trajeto no barco. Até a exaustão. É levada logo para casa? Ou tratada na casa de um dos pescadores e só depois segue, sozinha, e a pé, pela areia? Qual o motivo? O moço louro? Não conseguiu suportar o conflito? Enquanto houver perguntas, devem ser feitas. Nem todas para conhecimento do leitor, mas para registro do autor. Ao anoitecer, enquanto descansa numa rede do terraço, recebe a visita dos policiais. A intimação. O que ela fez? O que deixou de fazer? Não participaremos dos pensamentos da personagem, nesse momento as elipses devem funcionar bem, muito bem. No café da manhã é informada pelo marido que deve levar as crianças ao colégio. Vai perder a hora? Por que não chama um advogado? Até fecharmos o texto, nenhuma questão será respondida por inteiro. O homem, na repartição, lê a notícia da tentativa de suicídio. Não uma grande notícia completa. Apenas um registro. Lacônico. Mas o nome da mulher está ali, sem foto. Toma o último gole do café e acende um cigarro. Quando toca com o cigarro no cinzeiro, decide telefonar. Não, agora não. Depois. Ninguém por perto. Só. Guardamos os papéis numa gaveta. Mais tarde voltaremos a examiná- los. Aí está ocorrendo o argumento, conforme Aristóteles, termo muito usado no cinema e que coloca em destaque as linhas gerais da narrativa. Ainda não é a história em detalhes. Estão sendo reunidos os elementos que poderão resultar num conto. Respondidas as perguntas essenciais da manchete do jornal, escreveremos no papel, quase sempre à mão, o argumento. O ESBOÇO SE MOVE, O ARGUMENTO SE APRESENTA O argumento nunca detalha. Na verdade, apenas resume o objeto da história. Os esboços estão se desenvolvendo, começam a clarear, risco para um lado, risco para o outro. No computador, as palavras jogam. Imprimem- se os resultados. O suor se acumula no peito. Só mais um pouco de paciência, um pouco. Aristóteles escreve o argumento da Odisseia: Um homem solitário vagueia, durante anos, em terras estrangeiras, Pois Posidon o impede de voltar; em casa, os pretendentes de sua esposa lhe devoram os bens e ameaçam a vida de seu filho, quando, finalmente, se dá o regresso, ele revela a alguns sua identidade, ataca e destrói os inimigos, salvando-se. Nada mais exemplar. Sem nome de personagem e sem peças soltas. O caminho limpo para o escritor. O ARGUMENTO TOMA CORPO A narrativa que estamos examinando – e criando – tem início com a voz narrativa, passa para o esboço nascido da manchete de jornal: "Mulher tenta o suicídio e é salva por pescadores" e se aproxima do argumento. No segundo esboço tratamos de definir a história, respondendo às perguntas insistentes. No terceiro chegamos aos personagens; cena e cenário; pescador, policial e marido. O nosso argumento está pronto: “Uma mulher tenta o suicídio, joga-se no mar depois de breve passeio de barco. É socorrida e salva por pescadores. Intimada pela polícia, por motivos ainda sem clareza, não pode comparecer à delegacia porque é convocada pelo marido a levar os filhos no colégio. Ao ler os jornais do dia seguinte ele sabe que a mulher tentou o suicídio”. OS PASSOS LENTOS DA MORTE Cuidaremos de criar movimentos, desenvolvimento do enredo ou ações episódicas. Fechando os furos, abrindo elipses, clareando o texto. No começo: Apenas a cena da tentativa de suicídio. A mulher para o carro no meio- fio da rua, vence a calçada, caminha pela praia sem sapatos. Calça comprida, blusa comum. Anda até onde estão os barcos, separa um deles, o conduz à água. É importante que não haja vozes. Nem oscilações. Ela age com extrema naturalidade. Move os remos. E joga-se n'água. Afunda, volta, afunda. Bate com os braços, procura a respiração, limpa o rosto. E começa a perder forças. Engole água. Debate-se. No meio: A cena de salvamento. Por dentro da água e dos cabelos caindo no rosto, vê um barco grande se aproximando. Os pescadores pulam. Diálogo ou não. Interno ou externo. Está salva. Eles tomam os primeiros cuidados. Diálogo ou não. Respiração boca a boca, limpeza dos pulmões. Diálogo ou não. É levada para a casa, que está próxima. Refugia-se num quarto, não fala com ninguém, toma um tranquilizante, dorme. No fim da tarde está no terraço quando os policiais chegam com a intimação. No fim: A cena de fechamento da narrativa. Já no café, o marido, que pede a ela para levar as crianças na escola, lê no jornal da repartição a notícia da tentativa de suicídio da mulher. Acende o cigarro. Quer falar logo com ela, inquiri-la. Tenta o telefone. Depois, quem sabe. Na verdade, não imagina como seria a conversa. Atenção: um dos maiores riscos do processo literário romanesco é o "autor-filósofo". Se não estivermos muito bem preparados para a reflexão filosófica é melhor nem começar. Confunde-se muito filosofia com divagação. São coisas bem distintas. Há divagações sem substância, o que é ainda muito pior. O estrangeiro, de Camus, é exemplo de romance que conta história, embora com preocupações filosóficas. Mas ali não se fala em filosofia – embora o livro tenha sido escrito para defender a filosofia de Camus –, as ações movem o texto. Receita humilde e correta. Direta. No impulso, tentamos apenas contar uma história. Claro. E clara. OS JORNAIS CONTAM HISTÓRIAS O exercício com manchetes de jornais tem sido muito discutido e muito aplicado, sobretudo no Brasil. É recomendado também por Doc Comparato, no seu livro Da criação ao roteiro. Comecei a trabalhar com notícias de jornais e revistas na década de 1970, no Diário de Pernambuco, onde mantinha uma coluna chamada "Romance policial", no suplemento Domingo. Usava as matérias curiosas, insólitas ou irônicas para desenvolver textos ficcionais, a exemplo de "Perna cabeluda" e de "Cachimbo eterno". Desde o princípio das minhas oficinas, tendo essa formação jornalística, procurei adaptar as notícias ao processo de criação literária. Às vezes, fazendo também o inverso: esquecendo as manchetes – que são em si mesmo um jogo de elipses e silêncios – e usando as matérias, aí procurando também estudar os enigmas narrativos, o que nos leva a um prosseguimento ou a uma nova versão da história. Os jornais estão sempre cheios de narrativas. Desde os tempos mais remotos. Desde o início do século XIX. A NOTÍCIA DE HAWTHORNE Jorge Luis Borges revela como nasceu o conto "Wakefield", de Nathaniel Hawthorne: "Hawthorne lera, ou fingiu, com fins literários, ter lido no jornal, o caso de um senhor inglês que abandonou a mulher sem motivo algum, instalou-se a um passo de sua casa e aí, sem ninguém suspeitar, passou vinte anos escondido". Nada mais do que um argumento. Em seguida, o próprio Borges escreve um texto que parece uma versão do conto. Utilizei um grande número de notícias e editais publicados em revistas e jornais brasileiros de vários estados – Estado de São Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, revistas Veja e Isto É – para escrever Somos pedras que se consomem. Uma notícia, publicada no Jornal do Commércio, do Recife, ofereceu o argumento para minha novela Os extremos do arco-íris: O corpo de um homem não identificado e já em processo de decomposição foi encontrado no telhado do Hospital Ulisses Pernambucano, na Tamarineira, especializado em tratamento de doenças mentais. A direção daquela unidade médica não sabe explicar se o estranho era um dos internos ou não, nem como ele teria ido parar ali e em que condições morreu (se foi assassinado, se teve morte acidental ou natural). O homem aparentava 25 anos de idade e trajava roupas semelhantes às dos internos. Estava no telhado do pavilhão de emergência, onde havia um buraco, mas não se sabe se ele era um estranho querendo entrar pelo teto para roubar ou se era um doente mental tentando fugir. É possível que tenha morrido de um choque elétrico, ataque cardíaco, aneurisma cerebral ou sido assassinado. Como estava em início de putrefação, não deu para perceber se tinha marca que denunciasse a causa-mortis. O registro de sua entrada no IML consta como tendo morte indeterminada. A direção do Hospital Ulysses Pernambucano não quis fornecer maiores detalhes à imprensa. As informações, no entanto, são de que aconteceram vários casos semelhantes, anteriormente. Como a vítima pode ser ainda um ex-paciente, ontem várias famílias foram contactadas. Até o fechamento desta edição ainda não havia sido identificada nem procurada por parentes no IML". Todo o trabalho constou em criar um detetive particular – especializado em filmes, anúncios misteriosos em jornais e livros de investigação –, através de um rapaz desempregado, irônico, brincalhão e cheio de vícios, traçando um fio narrativo e descobrindo os furos de enredo. Surgiu uma história mínima para uma editora pernambucana – a Bagaço – e de consumo imediato. A intenção era mesmo de fazer uma brincadeira. Ali tentei traçar, para fins didáticos, uma história ligeira da poesia de Pernambuco. TRABALHO EM CLASSE Nas notícias – ou matérias – o fundamental é costurar ou bordar sempre os furos com aquilo que imaginamos ter existido. E não só acontecido. Notícia igualmente veiculada em jornal do Recife revelou outro assunto para trabalho em classe. Vejamos: Jovem atleta pernambucano, de 17 anos, morreu, ontem à tarde, ao dar entrada no Hospital Samaritano, na rua dos Voluntários, vítima de edema de glote. Embora seu nome não tenha sido revelado, sabe-se que jogava handebol na equipe da Faculdade Santos Cosme e Damião, convocado para seleções estaduais. Segundo depoimento dos funcionários do hospital, ele teria ingerido uma espécie de lança-perfume muito popular em festas de classe média alta, no Recife, o que lhe provocou estrangulamento do esôfago. No momento da ocorrência participava de festa no apartamento de uma amiga, no bairro de Boa Viagem. A notícia era imprecisa e lacônica, claro, e publicada, imagino, apenas com o intuito de não perder a informação que, de alguma forma, poderia causar comentários na cidade, mostrando-se inteira depois por outros meios de comunicação e assim o jornal não estaria sendo omisso. Nada seria cobrado pela população que já comentava o fato. Não ficaria de fora, ainda que sem os detalhes mais imediatos. Embora contrariando as normas primárias de jornalismo, havia sinais evidentes de que a omissão seria mais grave: faltavam exato endereço do hospital, convocações, local do incidente, mesmo sem endereço correto. argumentos. parece que nascemos para escutar os outros e não a nós mesmos. "mude o pronome". gritando: nunca mais. justificá-la. A cópia se torna cruel. no impulso invadimos a ansiedade. Pelos exemplos. copiados. apesar do laconismo e das elipses. que tipo de lança-perfume era aquele. E. o corvo de Poe ocupa o lugar no ombro. mesmo aquilo que escrevemos de acordo com a nossa voz narrativa. "a concordância está errada". quase sempre também conduzimos dois críticos nos ombros. o jornal cumpriu com a obrigação de não deixar seu leitor sem a informação. a partir da notícia elíptica. nunca mais. Verificamos que. Ir em busca da história. difícil. Às vezes desistimos. Isso ocorre demais.Insisto: os editores não queriam demonstrar fraqueza nem perder a oportunidade da publicação. Não deve ser assim. as condições em que chegou ao hospital. A voz narrativa já existe. Era necessário criar o nome do atleta. Festejados. E que reclamam o tempo todo: "não faça isso". nada mais. está contaminado pelas influências. O leitor não ficou sem a notícia. São admirados. nada mais. com esse fardo enorme nas costas. a influência de autores clássicos e consagrados que impõem regras. Afinal. o exercício em classe não poderia ser mais rico. Amados. Surge aí mais uma vez a constatação dolorosa – "eu não sei escrever". Senti-la. nada mais. Investir nela. E. Pelas leituras. não avançamos muito porque somos incomodados por aqueles seres que reclamam. Rasgamos ou escondemos anotações. NOSSA VOZ CONTRA A TRADIÇÃO Reforçamos a ideia inicial: as nossas possibilidades surgem e se apresentam. esboços. Se. "não escreva assim". Carregamos nas costas. Estamos no caminho do desastre. as vozes dos funcionários. já tão pesadas. cruéis. exigentes. Além dos críticos e dos clássicos. Cabia construir ou fechar os furos. A estrada da criação não passa por aí. Investigá-la. escrevemos com um algum sacrifício. Críticos impiedosos. a festa. impossível. mais do que isso. dizem que não sabemos escrever. em geral. O FANTASMA DA INFLUÊNCIA . nunca mais. cansados e torturados. Tudo contribui para a decepção. Vêm da tradição. Portanto. Precisamos ouvir e amar a nossa voz. modificada por todos os objetos da natureza e da arte. Nossa orgia perpétua.] um poeta é o produto combinado de forças internas que modificam a natureza do outro. E amadurecemos. São palavras de Harold Bloom. O problema está em como podemos equilibrar essa questão. A quantidade de escritores que copiaram Hemingway é absurda. mas tem de estudar [.. citado por Harold Bloom: [. E as inconscientes? São aquelas armazenadas de escritores que são ou não são muito admirados... Aliás. Sabem que estão se contaminando. neste aspecto. aos poucos. ainda que à sombra de outro.] Dessa sujeição não escapam nem os mais grandiosos. e de influências externas que excitam e mantêm essas forças. agora não dói mais. A mente de todo homem é. As leituras são a certeza de que avançamos. cenas. assegura Shirley. Temas que guardamos. Se era isso que incomodava. Não interessa. Ainda que somente copiando depois. cenários – garantem a evolução. Muitos escritores passam a vida lendo os mesmos escritores e não abrem mão disso.] um grande poeta é uma obra-prima da natureza que outro não apenas deve estudar. . Personagens que circulam e nos quais não prestamos a atenção.] (A angústia da influência) Fim do conflito. Palavras que descobrimos. por toda palavra e sugestão que algum dia ele admitiu atuarem sobre sua consciência [. Continuamos o nosso trabalho permanente. dois tipos de influência: a consciente e a inconsciente. Muitos frequentaram Balzac.... pelos menos. Nossa luta. Porque a influência é o resultado de outros poetas – e romancistas – movidos por outras influências vindas de outras influências. mas ambas. Essa troca de influências é inevitável. Às vezes até com frequência. Impossível evitar as influências. Cenas de filmes. Pronto. ele não é umas ou outras. Até porque. mas lidos. "Não há fim para a influência". Os estudos – de estrutura. UM JOGO DE ESPELHOS SEM FIM Isso negaria a possibilidade de uma voz narrativa pessoal e intransferível? De maneira alguma. o livro do crítico norte-americano procura também refletir sobre questões de Shirley que proclamam: [. diálogos.. Há. Alguns tentaram ser Dostoiévski. Vão fazer as mesmas leituras o tempo todo.. procurando o próprio caminho. O problema é ir. Ou Flaubert. Frases que ecoam. e para o impulso. Depois as coisas se ajustam. A voz – e as vozes – do texto. Traz à tona a intimidade do autor. dos esboços e dos argumentos. forma outra voz.. Esclarecedora. passa pela intuição. de Shakespeare. Ismail Kadaré diz que o primeiro livro escrito por ele foi Macbeth. Aos poucos. e ainda no terreno movediço que é o impulso – e de que trataremos agora: quem conta? Como conta? Instaura-se aí um dos grandes dilemas do autor iniciante: a escolha do foco narrativo. um escritor de verdade. Além disso. O domínio dessas duas concebe o grau de originalidade ao iniciante. porque acham que a primeira pessoa é reveladora demais. um jogo de espelhos.. EM BUSCA DO FOCO NARRATIVO A originalidade do iniciante começa com o seguinte problema – depois da voz narrativa.] Aqui. E treinar. Ele afirma: Se você quer ser mesmo um escritor. Some por completo. ainda aos nove anos de idade copiou todo o texto à mão. Primeira pessoa? Ou terceira pessoa? Alguns sofrem. Fechando o assunto: Mas a influência poética não precisa tornar os poetas menos originais. Expõe. Sem problemas. o que. mas confirma-o. é conselho que me permito dar-lhe [. devagar e lentamente. Autran Dourado reforça essa troca de influências com muito mais ousadia em Breve manual de estilo e romance. todo malefício da influência – conforme a preocupação de muitos iniciantes – desaparece. Para treinar. naturalmente. pela técnica e pela pulsação narrativa. Só para treinar.. embora não por isso necessariamente melhores. sem dúvida. pelo impulso. se angustiam e ficam indecisos. Assim. Desde aquela inicial que se manifesta no impulso.] Ler e parodiar bons autores como exercício.. incorporá-los na sua mente e esquecê- los. símiles e metáforas deles passem a fazer parte do seu arsenal inconsciente. Um verdadeiro escritor sempre encontrará sua voz. encontraremos nossos próprios caminhos o que. com a mesma frequência os torna mais originais. para que as imagens. sobretudo. da angústia da influência. a influência não reduz o escritor.Isto é. temos proposto que o escritor procure a voz do personagem. . Ou seja. lembre-se que escrever é um ato mimético de apropriação e de astúcia [. Dinheiro ralo no bolso. De forma alguma. Bela e estranha cidade do Recife – habitada por banqueiros e pedintes.E não é isso. pequeníssimas. olhando para mim. casa de praia. homens de pastas nas mãos. inventado e elaborado pelo autor para se confirmar na pele do narrador ou do personagem. Não posso negar que senti dupla curiosidade: de tentar o destino e de visitas às . não adianta ter medo. mansão. o personagem. enriquecimento rápido. É claro: sei que os classificados oferecem excelentes oportunidades. desviei os olhos para o movimento da avenida Guararapes tão cheia de bancas de revistas. camisa puída. Além do mais. Paisagens e pessoas não ofereciam atrativos. mas somente as de Tchecov. bêbados e loucos. Pensei: crimes misteriosos se repetem. Me lembrei que os cinemas Art Palácio e o Trianon iam desaparecer. O problema parece surgir devido ao fato de que algumas pessoas confundem a natureza do relato. Estava para me retirar. O prédio estava ali. até montar bons textos. em certo sentido. Cismei que encontrara meu destino. mulheres. Ou seja: não consideram a confissão verdadeira do autor em relação a fatos. apenas na superfície. Muito distantes. Sinceramente. carro de luxo. e os dois têm caracteres diferentes. o ser humano se destroçando em sangue e desordem. Agência de detetives oferecia colocação vantajosa. Pretendo discutir o comportamento do personagem. O anúncio em letras pequenas. Não são as confissões do escritor. criado. justamente pelo medo. Com maior atenção de leitura se mostrarão distantes. O eu ficcional e eu confessional se assemelham. Trazem apenas o eu ficcional. Sapato furado. O EU FICCIONAL Tomo como exemplo minha novela Os extremos do arco-íris — escrita na primeira pessoa. Assim: Desempregado há dois meses. Escritores medrosos não chegam longe. mas o caráter do autor não está em jogo. às vezes. Podem. jet-ski. meninos e meninas prostituídas. na superfície. Embrulhei o jornal. Comprei um jornal e sentei-me na calçada que margeia o rio Capibaribe. Mas essa preocupação pode reduzir a narrativa. Romances em primeira pessoa não são romances confessionais. registros ou reflexões de episódios ou épocas. Absolutamente. Por uma dessas suspeitas do sangue verifiquei mais uma vez o jornal. coloquei-o embaixo do braço. Li os classificados. E somente do personagem. sebos e mendigos. O personagem não é Raimundo Carrero. pura invenção. inicialmente. uma homenagem e uma brincadeira – que. Definitivamente. Concede-lhe uma espécie de conversa entre irmãos. e depois. O eu é o eu de Tchecov. para alegria de meninos e meninotas. Invenção. pela editora Civilização Brasileira. metamorfoseado. mas não o autor. Está na superfície. Ele se transforma em personagem central. culturais e econômicas. embora pareça desconfortável.entranhas de prédios que acolhiam cinemas antigos. empobrecido. portanto. Tem essa vantagem. Com segurança. e que se transformariam. sociais. Romanescos. e em parte. Dolorosa. Inteiro. o autor assume a narrativa e joga-se nela. dormitórios de desempregados e vadios. a primeira pessoa traz a narrativa para muito perto do leitor. de carne. procurando o criminoso. feito se diz. O personagem se expõe por completo. apesar da esperança de que venha a ter grandes lojas. do Rio Grande do Sul. Conversa de cozinha. pela editora Mercado Aberto. publicada. o escritor pernambucano Hermilo Borba Filho escreveu a tetralogia confessional Um cavaleiro da segunda decadência. Conscientemente. do outro. os demais: muitos deles sou eu. porém. mas afetiva. o eu é o eu do autor. Os fatos são inventados. eu mesmo. De propósito. integral. novelescos. O primeiro volume traça de imediato nas primeiras linhas a intenção do autor com o uso do eu confessional: Eu estou na balança. circula pelas ruas do Recife. e. De forma que. Em plena luz. Em julgamento. para refletir sobre as condições e contradições políticas. examina a decadência do centro comercial do Recife. Apresenta o personagem e traça-lhe o perfil. em grandes lojas. Nunca o eu do autor. adulterado. A distância entre o eu ficcional e o eu confessional é grande. irreconhecível. Julgando e sendo julgado. Para examinar a época em que viveu no estado de Pernambuco. Uma força emocional enorme. Assim começa a novela. segundo uma visão pessoal e exclusiva. O EU CONFESSIONAL No romance confessional. mais tarde. Quase ao pé do ouvido. Claramente. no Nordeste. Jamais. O personagem é Tchecov – que é também uma homenagem ao escritor russo. e no Brasil. Todos os meus atos estão num dos pratos da balança. De um lado. enorme. as pernas penduradas no . A narrativa inteira leva a essa conclusão. Com certeza. e pelo menos em tese. Este. fazendo investigações e reflexões sobretudo na área política. transparente. Em plenos anos de chumbo. interpretados pela imaginação. ou seja. um passado real. É confessional porque os fatos são verdadeiros. às vezes. em 1971. O propósito do narrador é imediato: "Eu estou na balança". neste papel. porém. às vezes". Este sou eu. Citarei também o caso do norte-americano Henry Miller. de um branco para um mais que branco. sempre em formação. somente concluindo-a seis anos depois. "Um passado real. Admite. onde sempre atuou. de um negro para outro. A autobiografia não admite imaginação. (Margem da lembrança) Não há dúvida de que Hermilo é o personagem. no entanto. etéreo. porém. E me jogo numa longa viagem do útero à morte. em pastel. Não se trata de autobiografia – onde todos os acontecimentos. os escritores que passam a vida a limpo. Não são poucos. Não basta copiar a realidade. a imaginação procura revelar a intimidade dos movimentos. tanto no passado – vida morta – como no presente que se estende pelos dias e pelas noites sem nada com o futuro inexistente.vazio. em massa. Criação. Mesmo no tom confessional. absolutamente verdadeiros. Não existe separação entre o eu real e o eu imaginado. o material do escritor. puramente imaginado na esperança de que no fim Deus confunda o que vivi e o que inventei e me dê um saldo favorável para uma modesta pensão no Purgatório. . conforme atestam as datas registradas em Margem da lembrança e Deus no pasto. O ALTER EGO A definição da voz narrativa – do caos para a clareza – e do foco narrativo vão definindo o nosso destino de escritores. de um vermelho para outro vermelho. na verdade. às vezes". que causou profunda impressão no pernambucano Hermilo. primeiro e derradeiro volumes. que utiliza o elemento acrescentado – "puramente imaginado" – para ilustrar situações e circunstâncias que são. E acrescenta de forma enfática: "Teço. como era antes. O que permite uma oscilação narrativa. mas também ficcionados. apenas inventado pela imaginação e com certeza diferente do que espero. diáfano. Até porque não há outro. em tese. neste papel. um passado real. Merda para o futuro! Teço. uma dúvida. Os outros são: Porteira do mundo e Cavalo da noite. deu um passo à frente. e. começou a publicar a tetralogia em 1965. são verdadeiros. uma questão ficcional. Não apenas inventa. num só instante. mas nem tanto. os fatos. que é toda a nossa sociedade. Digamos: confessionais. mas aquele Carlos de Melo não tinha realidade. O Carlos de Melo que me chamavam era bem outra cousa que o Carlinhos do engenho. Agora. com o nome inteiro. O alter ego substitui o autor. E por quê? Porque embora os livros fossem memórias da sua formação humana e intelectual. Situa-se entre o eu ficcional e o eu confessional. o Seu Carlos da boca dos moradores. o Hermilo. Em casa. para os mais estranhos. e. Ficara um homem. o alter ego se revela com precisão: — Seu Maciel quer falar com Carlos de Melo. José Lins do Rego passou a ser Carlos de Melo. no famoso Ciclo da cana de açúcar. . esse dístico que o mundo me dava. suas lembranças. era Carlinhos. alterando os nomes e as situações. finalmente. O estilo. do eu ficcional e do confessional. mas não é ele. digamos. Era como se eu me sentisse um estranho para mim mesmo. Assinava o meu nome. Ou seja: é o autor. "como se eu me sentisse um estranho para mim mesmo". Ele é Jack Kerouac. Parecia que era outra pessoa que eu criara de repente. parece que uma outra personalidade se incorpora à nossa existência. o Carlos de Melo. diz ele. A gente. não da maneira como estavam sendo contados. quase sempre reúne os dois. mas aparece com outro nome – e até com outras características – para não se mostrar confessional. Verdadeiros. Conta os fatos da sua vida e recorre à criação. mas inventados. quando sente fora dos limites da casa paterna. mas. real ou imaginada. Em "Doidinho". pergunta. Mas Kerouac optou em não se apresentar no livro – que conta a história de sua vida de andarilho nos Estados Unidos – com o nome próprio. Inventa e registra. Estranha. De repente – e esse texto é exemplar –. A reunião também. Carlos de Melo. tem suas características. pelo menos. Outro caso típico: Sal Paradise. de On the road. no caso de narrativa verdadeira. é confessional. Mas não tem compromisso com o documento. o Carlos do meu avô. a rigor. Não só uma figura de ficção. Foi uma cousa que me chocou esse primeiro contato com o mundo. que é o próprio Hermilo. não eram verdadeiros. e não é Jack Kerouac. suas memórias. ou. mas com a impressão de que quem narra a história é Sal Paradise e não Jack Kerouac. que apenas representa José Lins do Rego. ou então Carlos. se inquieta. nem somente registra. José Lins do Rego parece assustado com o próprio alter ego. Era a primeira vez que me chamavam assim. Muito diferente daquele personagem Tchecov – que em nada se parece com o autor. sobretudo. que permanece sempre muito próxima. Com sua loucura e sua ingenuidade. Uma lata de talco ordinário estava sobre a cama e ele tocou-a com o pé esquerdo. Não adiantava imaginar porque fazia aquilo. ao lado de uma televisão portátil. uma linda garota pôs a cabeça na janela e perguntou: "Sim? Quem é?" "Sal Paradise". Aqui: Empenhei-me e me apressei para chegar a Nova Iorque e. certa noite. Um personagem. de imediato. Sal Paradise é o nome. e a intimidade do texto passa para o narrador que. menos dentro do texto. com o adorável olhar inocente e puro pela qual eu havia procurado durante anos. com intimidade. a garota. "Sabe" gritou ela. por assim dizer. como certos hospitais. de certa forma. No entanto. Era uma perda de tempo especular porque determinadas coisas dão prazer. do personagem e do leitor. deixa o leitor mais solto. "Ele" e "ela" ocupam os espaços. "Estou fazendo um chocolate quente". Basta observar. Mais à vontade. nem ele se considerava um psicólogo puritano querendo esconjurar a congênita corrupção feminina. será sempre preciso escolher entre a primeira ou a terceira pessoa. coberto por uma capa empoeirada de acrílico. da história. em Rubem Fonseca: A mulher estava deitada ao seu lado falando banalidades. de estar se expondo – se essa for a preocupação. sem temer qualquer tipo de intervenção confessional. Havia um toca-discos. já estava eu numa rua escura de Manhattan. (A grande arte) O distanciamento narrativo se verifica. Um alter ego pleno e absoluto. Então. ao contrario da primeira pessoa. Ele olhou à sua volta. Quem leu o romance sabe muito bem que o verdadeiro personagem é Kerouac. O P não tinha ressonâncias literárias. guarda distância com a narrativa. Então subi e lá estava. gritando para a janela de um apartamento onde achava que meus amigos estavam dando uma festa. e ouvi meu próprio nome ressoar na rua melancólica e vazia. A TERCEIRA PESSOA Passamos para a terceira pessoa que. sobretudo na expressão "a congênita corrupção feminina". É verdade que o narrador se aproxima demais. tanto tempo. no entanto. que cria a sensação de uma . ela. disse eu. E retira do escritor a responsabilidade. As paredes eram pintadas de verde. Reais. é em terceira pessoa porque se trata de uma anotação de Lima Prado. mas as revelações são concretas. na abertura. Ou seja. através de magros braços dos seus trabalhadores que se arrastam na servidão e na paisagem dolorosamente bela dos engenhos de Pernambuco. é o autor – com a função de criar condições para o exame de fatos e acontecimentos que não são reais – ou que são reais – e que pedem o exame do autor. portanto. Ressaltamos. (Na estrada) Filipe é o alter ego de Maximiano porque sua personalidade está centrada no autor. todavia. A sua imaginação se estendeu por várzeas e rios. Mesmo nas situações imaginárias. ainda conservava resquícios de um antigo fausto. o personagem tem poderes de autor. assim se chamava o rapaz. um ser concreto. Representa sua reflexão sobre assuntos que lhes são caros. sugere realidade. Não é confessional. Para provocar a distância entre a primeira e a terceira pessoas. Assim ele aparece em Os peixes já chegam mortos: O carro varava as ruas do Recife noturno. No entanto. embora meio arruinada financeiramente depois da venda do engenho. Voltava de uma aula na Faculdade de Direito.primeira pessoa e. volteou pó num vasto terraço da casa-grande. no sentido de mostrar a diferença. de forma consciente. lembrou- se da sua infância. Ou seja: a interferência do personagem na narrativa de autor em terceira pessoa. Os fatos são fictícios. Não porque os episódios sejam verdadeiros. há o distanciamento. mas não é o Maximiano real. na maneira como enfrenta o dia a dia. do discurso indireto livre. fora rei e guerreiro. O rapaz. o alter ego de Ernest . Fastígio que a cana-de-açúcar fincara em terra gordas. um personagem representativo do autor – e que. participante ativo. preocupações e conclusões. em muitos casos. personagem. A família de Filipe. utilizando a terceira pessoa. de repente. Absolutamente. todavia. O destaque aqui é para a primeira pessoa. O livro todo é em primeira pessoa. Outro exemplo clássico é o de Nick Adams. com convivência na sociedade. O ALTER EGO NA TERCEIRA PESSOA Não é incomum que o foco narrativo seja transferido para a terceira pessoa através do alter ego. Filipe é o alter ego do escritor pernambucano Maximiano Campos. Uma maneira muito interessante de se situar entre o eu ficcional e o eu confessional. menino. na infância e no engenho. passada num engenho onde. Ainda assim. que esse trecho do romance de Rubem. Ou permite também que um personagem converse com os outros. Além das naturais dificuldades do relato. e o próprio ritmo um tanto ingênuo. mas em nenhum instante é o verdadeiro autor de Por quem os sinos dobram? Têm características idênticas: filhos de médicos. de imediato. mas o outro barco afastava-se cada vez mais no nevoeiro. misturados aos índios. Os dois barcos partiram na escuridão. através de uma pontuação rigorosa e de expressões repetidas. as circunstâncias. Illinois. dando ao texto uma profunda intimidade. o criador não apenas conduz a narrativa. na terceira pessoa. nasceram em Oak Park. Os dois índios estavam à espera. Nick recostara-se nos braços do pai. Tio George sentou-se na popa do barco do acampamento. passavam as férias caçando e pescando no Michigan. Estava frio ali na água. Representa uma sofisticação literária. Ou frente a frente. O índio jovem empurrou o barco para a água e entrou para remar o barco de tio George. quase na fronteira com o Canadá. Nick e o pai foram para a popa do barco. (Contos de Hemingway. Conheceremos agora o exemplo de François Mauriac: Teresa. . pertence também ao autor. um requinte. eu. A familiaridade da situação. O índio que remava para eles fazia muita força.Hemingway. A SEGUNDA PESSOA Aparece em raríssimas ocasiões. e um deles entrou para remar. algo que pertence profundamente ao personagem e que. Mas eu sei que existes. Nick ouvia o ruído dos remos do outro barco bem à frente. Os índios remavam com braçadas curtas e rápidas. Criatura e criador estão juntos. Nick Adams possibilita a criação livre de acontecimentos ao lado de fatos reais. muita gente dirá que não existes. como conversa com o personagem – muito parecido com aquilo que Antônio Torres fez em Um táxi para Viena d'Áustria". Exemplo: À margem do lago já havia outro barco no seco. um tom de lembrança. Lado a lado. no entanto. sobretudo. Ele aparece. Aqui. "Acampamento de índios") Percebemos. naqueles contos que têm um tom autobiográfico. que há anos te observo e muitas vezes te detenho de passagem e te desmascaro. Uma perfeita interação entre autor e o seu alter ego. sugerem um mundo de recordações. no nevoeiro. e os índios o empurraram para a água. (Ana-não) AS DIFICULDADES PRECISAM APARECER Em princípio. diziam eles. de Agustin Gómes-Arcos. lembro-me de ter visto. É chegado o momento. Ou falando com eles. Algo novo e belo. sem medo. Com a esperança de que não sei tão mesquinha contigo quanto a Vida. Thomas Mann adverte: . Ninguém te verá partir. Pouco a pouco. Deixando que eles falem entre si. A história vai surgindo. Deixa a tua casa antes que ressurja o sol. é claro. teu rostinho branco e sem lábios. apareceste-me com as feições de uma moça selvagem. na tua cadeira: partir sem deixar vestígios. O foco narrativo exige muita habilidade e um esforço enorme de concentração. sem a vaidade do verso – ou da frase – perfeito. Nada é mais importante do que nosso trabalho. Não deve haver testemunhas do que tens de fazer. por eles." (Thérèse Desqueyroux) O diálogo entre autor e personagem se estabelece. várias vezes. Ninguém. Não cuidaremos disso agora. dão-se aberturas e interrupções. Em geral. Adolescente. numa sala abafada de tribunal. Era isso mesmo que desejavas quando adormecestes. "Nós a enchemos de tudo. executando-se. há pouco. Mesmo assim. e que lembra uma espécie de coro grego orientando a história. Deves empreender a viagem com dignidade. Nem animal. Que se repete. presa de advogados menos ferozes que as senhoras empenachadas. temos de obedecer apenas ao impulso. o caso de François Mauriac. Em Ana-não. O que nos leva a acreditar que conversar com o personagem é sempre um dado importante no criador. Agora: Ana Paúcha acorda. Mais tarde. além do desgaste do leitor. Deixaremos que os personagens se resolvam. "Mas afinal. A lua está morta. a quem irritavam os cuidados de parentas velhas e de um esposo ingênuo. A lição de Faulkner: uns poucos personagens e os seus conflitos. Às vezes. Nem estrela. o diálogo é entre a personagem e a morte. que é que ela tem?". Sem preocupações estilísticas. num salão de província. dificilmente um escritor realiza todo um romance apenas na segunda pessoa. na procura da voz narrativa. durante o romance. (A gênese do doutor Fausto) E Osman Lins acentua: O escritor. Na gênese. . nada é grotesco no instante inicial da criação. movendo-se. Estamos em pleno ato de criar. Caminhamos em "direção à flor ainda desconhecida". do grotesco. Nesse momento. sem censuras. nada é ridículo. no entanto. O suor escorrendo no rosto e as palavras vão surgindo no papel. Não é hora de cortes. Sem desprezos. As dificuldades precisam primeiro tomar vulto. daremos adeus aos tradicionais. podem evoluir para o ridículo e chegarem a ser grotescos. Cuidado para não confundirmos estado puro com inspiração. Talvez não possa ser publicado. Sem preconceitos. Serve. de supressões. O texto e os personagens estão apenas nascendo. Nesse estado puro. (Guerra sem testemunhas) Sem medo do medíocre. Adiante verificaremos que alguns são medíocres. aos clássicos. a linguagem própria. de acréscimos. Nunca devemos ter vergonha daquilo que apenas anotamos. Nada é medíocre. e tentava explorá-la até ultrapassar os limites. nelas deve apoiar- se. conforme dizia D. Por que não deixamos isso andar? CRIAR SEM MEDO Vamos colocar tudo no papel. Sem policiamento. longe de evitar ou ignorar suas dificuldades. Absolutamente tudo. só depois podem ser superadas. do ridículo. Lawrence – semelhante a nós – procurava a voz narrativa. para criação. Lawrence. Sem fiscalizações. aos consagrados.H. preocupado em escrever no estado puro até alcançar o estágio em que nenhum homem se encontrava. tirando os críticos dos ombros. parágrafos. avisa-nos: Como se passa de um primeiro impulso imperfeito a um texto definitivo de fazer seu autor figurar no panteão dos grandes escritores da França? Duas expressões atormentam – "primeiro impulso imperfeito" e "texto definitivo". a que ele acrescenta o imperfeito. esquecendo a voz dos clássicos. de organização. gera conflito – pela óbvia natureza – porque está eivado de situações grotescas e . sem fiscalização. precisam de cortes ou de acréscimos.] A ATENÇÃO CONTINUA A EXISTIR E MAIS OU MENOS UNIFORMIZA AS IMPULSÕES LÍRICAS PARA QUE A OBRA DE ARTE SE REALIZE. Ainda estamos terminando o impulso.. desvios. embora ainda não muito claro. e desconfiamos dos equívocos. Mário de Andrade AS NOVAS POSSIBILIDADES DO TEXTO Depois de escritos os primeiros momentos. A célebre pergunta de Albert Albalat. irônica ou não. incômoda ou não. e até um argumento. Todo primeiro impulso. tem mais possibilidades. Palavras se amontoam nas páginas. Mas sem muita exigência. INTUIÇÃO EM TODA CRIAÇÃO DÁ SE UM ESFORÇO DE VONTADE. descobrindo a voz narrativa. feita a materialização das ideias através de palavras. NÃO PODE HAVER ESFORÇO DE VONTADE SEM ATENÇÃO [. escrevendo esboços. observamos aquilo que identificamos como erros. confusão. exigente ou não.. frases. Descobrimos que o texto. períodos confusos. A nossa voz irrompe, torna-se visível no embate entre o papel em branco e a tinta, e até mesmo a clareza, ao contrário, quase sempre é obscura para nós. OS RUÍDOS SE MANIFESTAM Segundo Jean-Louis Lebrave, Albalat tinha o mérito incontestável de declarar-se contrário ao mito romântico da inspiração. Para ele, escrever bem residia na "caça às repetições, às assonâncias, aos hiatos", em todo aquele empenho que tornaria o texto limpo, feito se costumava dizer. Limpo e definitivo. Nesse momento voltamos ao estilo tradicional. Àquilo que chamam de escrever bem. Será mesmo preciso escrever um texto limpo, sem assonâncias, sem aliterações, definitivo? Um passo mais adiante e veremos que é diferente de escrever ficção. As palavras se alteram, os personagens se movem, os ruídos se manifestam, as vozes se entrecruzam. Vamos em busca do nosso texto. Estamos nos aproximando da intuição. Desconfiamos que há erros, equívocos, confusões. Lemos muitos autores, resenhas de jornais, de livros, de revistas, discutimos com os críticos. Queremos o texto definitivo. Ainda é cedo, muito cedo, mas queremos o texto definitivo. E, afinal, o que está errado? AS PALAVRAS BARULHENTAS Haveria mesmo um texto definitivo? Tormento de muitas gerações. E o que é mesmo um texto definitivo? O texto tradicional, clássico, à francesa, depois copiado pelos norte-americanos, apresenta aproximações e distanciamentos incríveis na arte de escrever bem e de escrever ficção. Sem ruídos, sem sons interiores, a ponto de Flaubert considerar que, se na frase uma palavra aparece mais do que as outras, ela deve ser cortada. É assim mesmo? Ou devemos entender que, às vezes, uma palavra precisa ter força e grito para revelar detalhes do personagem, do narrador ou da história? Como fica isso? Na ficção, a repetição – ou a reiteração – pode funcionar igual a um alerta. Tem efeito e tem função. Horácio aconselhava que o texto escrito no primeiro impulso deve repousar na gaveta, sem retoques, durante nove anos. Por que não oito? Ou dez? É difícil imaginar. Exageros à parte, não custa refletirmos sobre o assunto. Não é hora de reescrever. Bastam alguns retoques. Quando eles são feitos – um verbo que está se repetindo, adjetivo sobrando, pontuação deslocada, assonância, aliteração – percebemos que há um mundo que está apenas começando a ser explorado. Estamos inquietos e exaustos. OS MONSTROS MARINHOS Nas Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino conta – e analisa – que Leonardo da Vinci passou a vida inteira tentando ser escritor, mas "a ignorância do latim e da gramática o impedia de se comunicar por escrito com os doutos de seu tempo". Mesmo assim tomava anotações em vários cadernos. Impulsionava-se, registrava, escrevia. Precisou escrever, entre outras coisas, sobre a tese do crescimento da terra. Queria, ardentemente, registrar a imagem dos monstros marinhos encontrados no alto das montanhas. Os papéis guardados mostram que ele escreveu três vezes a mesma frase até encontrar sua verdadeira pulsação narrativa. No primeiro impulso impreciso, escreveu: Ó quantas vezes foste visto entre as ondas enfunadas do furioso oceano, com o cerdoso e negro dorso à guisa de montanha, movendo-se com grave e soberbo andamento. Na intuição, percebeu que a imagem ainda era imprecisa, natural no primeiro impulso. Optou, logo, pela substituição da expressão "Ó quantas vezes" por "E amiudadas vezes". Dividiu a frase em duas, colocando um ponto entre "marinhas águas" e "E com o cerdoso e negro dorso", o que facilitava a exatidão da imagem. Depois procurou "movimentar o andamento" do monstro, substituindo "andamento" por "movimento" e introduzindo o verbo "voltejar". Também deslocou a expressão "com soberbo e grave" do fim para o meio da frase. E amiudadas vezes foste visto entre as ondas enfunadas do furioso oceano, a voltejar com soberbo e grave movimento entre as marinhas águas. E com o cerdoso e negro dorso à guisa de montanha, a vencê-las e subjugá-las. Na técnica, conta Calvino, o verbo "voltejar" "parece-lhe atenuar a impressão de imponência e majestade que deseja evocar". Escolhe, então, o verbo "sulcar". E faz, ainda, outras alterações: retorna a expressão "Ó quantas vezes", corta "E amiudadas vezes", desloca "a vencê-las e subjugá-las", do fim da frase para o espaço entre "[...] enfunadas do furioso oceano" e a conjunção "e". Evita o ponto, que a divide em duas. Agora existe um "e" entre vírgulas – a chamada palavra enclausurada – e solta a frase definitivamente, "dando-lhe consistência e ritmo". Enfim, encontra o verbo certo "sulcar". A frase ficou assim: Ó quantas vezes foste visto entre as ondas enfunadas do furioso oceano, a vencê-las e subjugá-las, e, com o cerdoso e negro dorso à guisa de montanha, a sulcar com soberbo e grave andamento, entre as marinhas águas! (Seis propostas para o próximo milênio) Observamos, assim, que para atingir a possível perfeição de uma frase é preciso muito trabalho. A voz narrativa se manifesta no primeiro impulso impreciso, materializa a ideias e oferece um campo de investigação para o autor iniciante. Às vezes não devemos parar a cada frase. O trabalho será feito em duas palavras, três páginas, num conto inteiro. Cada um cria seu método, enfrentando as dificuldades e superando-as. O importante é inventar sua própria técnica. A LENDA DO ADJETIVO Em princípio, o adjetivo é uma palavra que grita, se expõe, fica solta na frase. Em grande parte foi rejeitado. Tornou-se uma lenda quando se admitiu que deveria ser abolido ou evitado na maioria das circunstâncias. Isto é, texto bom não considerava adjetivo. Parece haver uma cartilha sobre isso. As resenhas quase sempre falam desse assunto. Mas não é assim. Escutemos agora a voz de Osman Lins, em Guerra sem testemunhas: Daí o excesso de adjetivação, tão comum em textos de principiantes. Não é por desperdício, ou apenas por inexperiência que o autor, em certa fase primitiva, abusa dos adjetivos. O adjetivo é necessário e constitui muitas vezes uma via de acesso à captação das coisas, ao seu entendimento. Exprime, não raro, um combate com o desconhecido, o oculto – e uma vitória. O exame atento da adjetivação num escritor como Graciliano Ramos e num autor imaturo revela duas atitudes opostas. A adjetivação, no primeiro, tende a desnudar o objeto, a captar sua natureza; no segundo, seu papel é ocultar o objeto, disfarçá-lo em camadas espessas (e inconscientes) de atributos. No equilíbrio, Osman Lins considera-o necessário. E deve ser sempre assim. Até porque não podemos e nem devemos rejeitar a nossa tradição barroca da linguagem, nem esquecer um elemento que pede uso – e ajuste – técnico. Tudo deve ser utilizado. Na criação não se dispensa nada. O importante é estudar. Revelar os efeitos e as funções. Há personagens que se manifestam segundo o adjetivo. Outros, não. Se numa frase colocamos o adjetivo antes da personagem, observamos, com franqueza, que ela se mostra quase por inteiro. Grita. Perde a sutileza. Fica muito exposta. Susto, não? É assim: A ingênua moça se apaixonou pelo rapaz louro. O adjetivo entrega demais a personagem, ela está exposta, revelada. Então, cortamos o adjetivo. Durante o impulso contínuo ele não existia, estava desaparecido. Surgiu na intuição porque o escritor imaginava que somente assim emocionaria o leitor. E ainda está com pena da personagem. Nada disso. Quem tem piedade do personagem é outro personagem ou as ações narrativas. O autor cria condições, não estraga a visão do leitor com adjetivos inúteis. Recordaremos o caso em que o narrador procura confundir jogando com adjetivos contraditórios e ambíguos. Acentua uma qualidade que não é verdadeira. Provocativa. A ingêmia moça mostra-se, mais tarde, esperta, e dona de suas atitudes, ainda que apareçam outros adjetivos. Trata-se de um completo domínio técnico. Quando cortamos o adjetivo, criamos um abismo em torno da personagem. Ela está só. Quem sabe, desamparada. A personagem necessita de ação para que o leitor possa conhecê-la. E somente ele, leitor, decidirá o adjetivo. Será necessário, todavia, que o escritor esteja consciente do que pretende transmitir. Nesse momento bastam os movimentos internos. ADJETIVOS REVELADORES E CIRCUNSTANCIAIS Uma simples mudança na posição do adjetivo cria, sem dúvida, nova situação. Digamos: o adjetivo não é cortado e passa para depois da personagem: A moça, ingênua, se apaixonou pelo rapaz. Nesse caso, a possibilidade de que ela seja totalmente revelada desaparece. O adjetivo, na verdade, é circunstancial. Naquele instante ela é ingênua, não sempre. Assim, some a iluminação, a revelação exagerada. O leitor verificará a circunstância. Não basta apenas cortá-lo. Lembramos ainda que, por isso, há adjetivos reveladores e adjetivos circunstanciais. Os reveladores são sempre suspeitos e, na qualidade de suspeitos, podem e devem ser investigados. Analisados. Os circunstancias, em geral, merecem ficar, tudo de acordo com a estrutura da frase. AS DÚVIDAS PROVOCAM Tudo aquilo que o impulso decidiu deve ser investigado pelo escritor na intuição. Nada de pressa ou de queimar etapas. Há personagens que suportam adjetivos – nunca esquecer a voz do personagem – e, mais do que suportam, pedem os adjetivos. Outros, não. Mesmo assim, estamos intuindo, tentando dar harmonia ao nosso trabalho, percebendo as verdadeiras possibilidades da história e dos personagens. No cortar ou não cortar palavras, vamos descobrindo os segredos da ficção. Do personagem. Ou dos personagens. Deixando que eles se mostrem. Um pouco adiante verificamos que se no impulso tivéssemos escrito: A ingênua moça se apaixonou pelo rapaz louro. Teria alguma coisa atrapalhando. Isto é, além de revelar a personagem, o adjetivo encobriria uma situação que poderia ser mais eficiente. Seria preciso mesmo revelar a moça tão intensamente? A primeira impressão, no impulso, é de que bastavam algumas palavras. Muito bem. Surgem as dúvidas. Nesse momento, a frase incomoda, a dúvida é intuitiva. A leitura – e o amadurecimento – nos indicarão as soluções. Talvez fosse melhor transformar o adjetivo em diálogo, não? Anotamos ao lado da frase. Quando falamos em diálogo, estamos nos referindo a uma possível conversa que ela ouviria enquanto estivesse refletindo, digamos. — Cabeça de vento, é o que ela é. — Se apaixona por qualquer coisa, sempre foi assim. A forma indireta como o adjetivo é substituído pela conversa tornaria o texto mais rico, e com uma vantagem: a de não ser definitiva. As pessoas a consideram ingênua, mas ela não é. Ou é, mesmo? Ou seja: o leitor tem a possibilidade de acreditar ou não no que lê. E pode também imaginar que ela não ouve, porque não opina, nem questiona. Com uma certeza: adjetivos podem ser substituídos por diálogos. PRECISAMOS TER MAIS CALMA Essas questões só aparecem agora porque já escrevemos o primeiro texto. Ele está ali à nossa frente, incomodando, pedindo alterações, impondo investigação. As situações que pareciam ideias nebulosas, soltas, irreais, têm vida e incomodam. Os movimentos estão materializados. Mais uma vez e para sempre: literatura é materialização. Fazendo limpeza. Muito mais. outras questões. Quando percebe já está de novo envolvido com a luta. sentenças partidas. Então é natural que o autor iniciante pense na desistência. As soluções estão longe. mas bárbara. Em geral. As coisas estão se arranjando. Deixou de ser quando percebi a diferença entre o que está bem escrito e o que está mal escrito. Temos um argumento. entram adjetivos. Saem adjetivos. é preciso calma. páginas completas. O DOM E O CHICOTE "Deus nos dá um dom. e que poderemos chamar de Gabriela. em Música para camaleões. e aí fiz uma descoberta ainda mais alarmante: a diferença entre o que está bem escrito e a verdadeira arte é sutil. Ou joga os papéis na gaveta e esquece-os. Os primeiros problemas apenas apareceram. Há um momento em que o cansaço cede lugar ao desânimo. para quem o impulso gerava prazer: Era muito divertido no começo. Foi a partir de então que o chicote começou a estalar. exigindo. Uma obra de ficção é um acúmulo de problemas. De lixo que vai se amontoando. talvez o tom narrativo. palavras novas aparecem. Talvez uma surpresa. muita calma. Uma descoberta. A INTUIÇÃO É EXIGENTE Passada a fase do impulso. Então. a intuição está reclamando. Também na concretização da palavra. Isso é definitivo. já dissemos. cumprido o rito. o foco. reecrevendo cenas inteiras. Outros problemas aparecem. Normal. Quase sem querer. opera-se uma diferença básica entre o que se pensa e o que se escreve. O texto vai se tornando quase irreconhecível. mas também um chicote" – escreveu Truman Capote. Mas precisamos ainda de calma. Essas dúvidas vão crescendo ao longo do trabalho. normalíssimo. . sentenças acrescentadas. dias depois retoma o trabalho. cujo nome ainda nem sabemos o que significa. A MOÇA VAI FICANDO SOMBRIA Não é fundamental que os movimentos fiquem muito claros agora. outras dúvidas. palavras velhas são cortadas. Vão se acumular ainda mais. Conhecemos um traço do caráter da moça. Não apenas no reino da história. Podemos imaginar muitas outras situações. Reparemos no cenário. Cuidaremos apenas do final. Ou não. Não é incomum que o autor antipatize um personagem e não perceba as razões. As definições só aparecem na técnica. percebemos que a moça está sombria e não é o que desejamos. No momento resta investigar a mania da personagem. Esta cena deve ser anterior àquela ou é melhor distanciá-las? Talvez a primeira possa ser reduzida a uma frase ou a uma fala do personagem. Os caracteres estão se definindo. Reflitamos sobre a cena. Estamos ainda nos primeiros ajustes. Elas estão num gesto. como se tivesse limpando as lágrimas. Pode ser enriquecedora. Ou a segunda mais solta. é dramática. mais leve. um pouquinho acolá. Soltar o cabelo de Gabriela talvez a deixe menos tensa. "Ingênua e com a mão nos olhos". de um jeito no olhar. "INGÊNUA E COM A MÃO NOS OLHOS"? Volta a questão do adjetivo. Lá para a página 10. que têm uma identidade própria bem clara. A ingênua Gabriela. O que é isso? . mais um pouco ali. Uma cena inteira – de começo. que são mais ricos ou mais sugestivos. É tensa. meio e fim – talvez torne a tensão narrativa muito demorada. sugerem novas circunstâncias. mas a intuição se manifestou. sugere uma maneira sombria de se apresentar. A ingenuidade nela é provocada ou manifestação natural do caráter? E se ela estiver rindo? Sai o adjetivo ou a frase? Desloca o adjetivo? Imaginemos que no conjunto do texto. dirigiu-se ao alpendre. Talvez seja melhor esquecer o começo e o meio. de um toque com as mãos. Um detalhe. Ou transformar uma fala num diálogo. mais iluminada. de uma maneira de andar. num comportamento não examinado corretamente. é inquieta. Semelhante a um humorista que conte uma piada somente no fim. Durante o desenvolvimento do texto será fácil perceber que alguns personagens se impõem mais do que outros.Ajeitamos um pouco aqui. Ainda não está definido. Façamos com que ela perca aquela mania de passar a mão nos olhos. Se aparece em muitas circunstâncias. numa maneira. Ou na roupa que usa. pedem mudanças. Gabriela tenha por hábito passar a mão nos olhos. Um detalhe – é verdade. Alguns precisam de detalhes. Surgem as dúvidas quanto às cenas. Um gesto do personagem bota tudo a perder. por exemplo. depois de passar a mão nos olhos. O leitor fica mais próximo dos personagens e distanciado do autor. Nós nunca havíamos bebido juntos. revelados na Filosofia da composição. através de breve texto de Graham Greene: — Quer tomar um trago? – convidei. Não podemos esquecer. No caso de Greene. (O crepúsculo de um romance) AS DÚVIDAS DA MARCAÇÃO A marcação "nós nunca havíamos bebido juntos. O efeito é muito diferente. corta-se o texto aí. Depois de tantos anos. Rapidamente: — Nunca bebemos juntos fora de sua casa. Se é algo sem expressividade. basta a marcação: Convidei. tirando do autor a responsabilidade de narrar. Se o desejo é causar inquietação ou dúvida no leitor. fora de sua casa. é provocar o personagem. Nós nunca havíamos bebido juntos. Registra: a) Tom. a marcação sozinha basta. trazendo o problema para a frente. finalmente. ensaio pioneiro em que ele conta. Bendrix. Henry — É verdade. porém. fora de sua casa. Algo assim. e surpreendentemente ele aceitou. Tudo vai depender do efeito e da função. com detalhes. jogando o leitor no silêncio. fora de sua casa" será substituída por um diálogo. embora somente seja definido – com a mais absoluta clareza – na técnica.Vejamos. e surpreendentemente ele aceitou. mesmo que de forma um tanto inconsciente e ainda vaga. Eles começam a preocupar ainda na intuição. todos os movimentos internos ficam decididos. Se a intenção. Quando. Na ficção há dois movimentos decisivos: o efeito e a função. como escreveu O corvo. há sobriedade narrativa que oculta um pouco a intenção do personagem. num corte narrativo que apenas exponha a situação. provocando-o e provocando o leitor. bem simples. o desenvolvimento do diálogo vai montando o episódio. . OS Q UATRO MOVIMENTOS ESSENCIAIS Os movimentos essenciais – com exceção de andamento e ritmo – nascem com Edgar Allan Poe. Definidos. Se exigir maior tensão. Os dois conversam do assunto. fechando os furos do bordado. Tudo tem início naquilo que ele chama de erro radical na "maneira habitual de construir uma ficção". o autor senta-se para trabalhar na combinação de acontecimentos impressionantes. para formar a base da narrativa. poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de consequência. ou uma (história) é sugerida por um incidente do dia. por exemplo. Há vantagens em se estabelecer os esboços e o argumento. Em princípio. fazendo com que os incidentes e. por exemplo. ou causalidade. no melhor caso. A IMPORTÂNCIA DE ESBOÇOS E ARGUMENTOS Na verdade Poe quer negar a inspiração – ou seja. E o argumento. geralmente. (Poemas e ensaios) No entanto. esperamos pela inspiração. Em seguida. como exercício. especialmente. É preciso procurá-la. Diz ele: Só tendo o epílogo constantemente em vista. falo aos autores iniciantes que nem sequer têm uma voz narrativa porque lhes foram negados todos os atributos. Assim. planejando. é bom prestarmos atenção. afirmando: Ou a história nos concede uma tese. Ele condena esse tipo de trabalho quando feito espontaneamente. ou. encher de descrições. "inspirado". considero a necessidade do esboço. Conhecendo. b) Efeito e c) Função. mesmo quando se tem uma história. e iniciamos a aventura. de página a página. as peripécias. diálogos ou comentários autorais todas as lacunas do fato ou da ação que se possam tornar aparentes. precisamos então escrever o meio. a partir do instante em que a história pede composição. o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção. utilizamos: . A que acrescentamos d) Andamento e) Ritmo. desde a infância. alguém só pode se sentar para "trabalhar na combinação de acontecimentos" se conhece a sua voz narrativa. o começo e o fim da narrativa. nós temos em mente uma história com o começo e o fim. para um bom desenvolvimento da narrativa precisamos de: consequência e causalidade. tom é usado para um som de frequência regular. Portanto. "Sem crista embora. No vocabulário da acústica. impondo-se. assim. especialmente. prateado). No cantochão. (Dicionário Grove de Música) Poe explica como chegou ao tom de O corvo: Encarando. ó Corvo antigo e singular" – então lhe digo – "não tens pavor. cuja terminologia se aproxima da linguagem musical. que exigem outras técnicas. em seu desenvolvimento supremo. tom indica uma fórmula de recitação. No desenvolvimento dos esboços e dos argumentos o tom vai aparecendo. Uma estrofe basta para que se entenda o tom de tristeza em O corvo. "o tom da obra" para atingirmos o: c) Desenvolvimento. a beleza como a minha província. ACERTANDO O TOM No princípio é o tom. A beleza de qualquer espécie. invariavelmente provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é. E. Em geral a história ajuda muito a encontrá-lo. sobretudo no campo da criação de personagens. Isso deve ser trabalhando menos no esboço e mais no argumento. pode-se dizer que um oboé tem um tom "vibrante agudo" ou a execução de um violinista pode ser descrita como possuindo "um tom argênteo" (triste. de propósito. alma da noite. pelo autor: Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura. a distrair-me de meus ais. trabalhado. Estabelece todo o movimento da obra. que são fundamentais. e todas as experiêncios têm demonstrado que esse tom é a tristeza. a) Consequência e b) Causalidade. Desperta em mim um leve riso. então. . Fala comigo. E desenvolvimento é enredo. O termo "tom" também usado é para descrever um som musical. o mais legítimo de todos os tons poéticos. minha seguinte questão se referia ao tom de sua mais alta manifestação. além da conjunção "e". conduzindo o texto para a desolação. Eufórico. adágio' etc. qual o teu nome." Ela está aí para provocar – de forma antecipada – o riso também no leitor. na novela ou no conto – em que se trabalha. No poema. o equilíbrio narrativo é rigoroso. ó nobre Corvo. aproximando-se de O corvo. DE ACORDO COM O ANDAMENTO Diz o Dicionário Grove de Musica: "Desde o barroco tardio. o andamento passou a ser indicado. andante. Desperta em mim um leve riso. expectativa – que terminam por enternecer e encantar. Ali. podemos distinguir com clareza a combinação de andamentos. Alguns dos quais podem sugerir a atmosfera emocional em que deve ser executada". na prosa pediria mais sobriedade para que a palavra não saltasse aos gritos. Ao ver da ave austera e escura soleníssima figura. O riso e a lágrima. Exemplo muito interessante está nos dois primeiros versos citados. tais como 'allegro. com mais vírgulas e poucos pontos. sentimental. alegria. a distrair-me de meus ais. o nome teu no inferno torvo!" E o Corvo disse: "Nunca mais". o tom geral é de ironia e comédia fantasmagórica. o superlativo a "soleníssima" justifica-se pela métrica e pela imagem forte. tudo vai depender da maneira como isso é trabalhado. a ironia e a tragédia. conforme o andamento. o tom é de desolação: tristeza e mágoa. embora projete a ironia das palavras seguintes: "desperta em mim um leve riso. No silêncio da ficção – no romance. menos rápido. com o uso de duas vírgulas e um ponto. Em Poe. decidiremos por uma pontuação mais solta. triste. levíssimo. A partir desse princípio. em geral. Na cena a seguir compreendemos que o andamento – pelo menos . sobretudo nas cenas e nos parágrafos. observamos que o andamento.espectro torvo. Em "O capote". O TOM DE GABRIELA Naquele nosso exemplo da mulher – Gabriela – que tenta o suicídio. A leveza dos versos produz sensação de tristeza. precisa ser mais rápido. de Gógol. menos leve. O autor russo alcança o objetivo com a relação dos elementos interiores. pelo uso de modelos italianos de instrução de andamento. com jogos de sentimentos – tristeza. leve. em estado de felicidade extrema. Sem dúvida. Rapidez e sequência lógica: frases curtas na interrogação – "e agora. Akaki Akakievich resolveu reduzir suas despesas. ("O capote") A duração temporal precisa realiza-se quando o personagem resolve "reduzir despesas. pelo contraste do primeiro texto. pouco antes de ir para o ministério. de sequência lógica. mas aos poucos foi se acostumando e um belo dia acabou por se privar completamente da ceia". O alfaiate parecia plenamente convencido de que havia executado a grande obra de sua vida e entrevisto ali . essas privações lhe foram um tanto penosas. para não gastar roupa branca que. Para ser franco eu não saberia o dia em que Petrovich finalmente entregou o capote. pôs a andar bem depressa e na ponta dos pés a fim de poupar as solas". E sem perder a unidade da obra. Foi num. Na rua. o que se concretiza plenamente. firme. mas aos poucos foi se acostumando e um belo dia acabou por se privar completamente da ceia. que é o de contenção narrativa leve. A CONTENÇÃO NARRATIVA Para escrever a cena de perfeita satisfação de Akaki Akakievich e de Petrovich... trocava por um velho roupão de algodãozinho que não fora poupado pelo passar do tempo. solene. Petrovich levou ele mesmo o capote. ressalte-se que imediatamente entra em combinação rítmica com a tristeza de Akakievich. ao menos por um ano". como deve fazer um bom alfaiate. ao menos por um ano" e "desde então não tomou mais chá à noite". ao menos por um ano. só raramente recorria aos serviços da lavadeira. Era de manhã. segura. Jamais Akaki Akakievich vira uma expressão tão imponente em alguém.segundo o tradutor – tem duração temporal precisa. e o capote não poderia ter chegado mais a propósito. onde arranjar os quarenta rublos que faltavam?" – no ponto – "depois de pensar. pôs-se a andar bem depressa e na ponta dos pés a fim de poupar as solas. Desde então não tomou mais chá à noite e não mais acendeu a vela. o alfaiate. quase sincopada: E agora. é quase sincopado: na montagem da pontuação firme. que se mantém harmoniosa. Para dizer a verdade. decidida. Gógol optou por um novo andamento. enquanto o frio ameaçava tomar-se rigoroso. Akaki Akakievich não conheceu dia mais solene em todo o curso de sua existência. no ponto e vírgula: "na rua. onde arranjar os quarenta rublos que faltavam? Depois de muito pensar. rápida. Akaki Akakievich resolver reduzir as despesas. chegando em casa. elaborada – sempre de acordo com o tradutor. na conjunção: "para dizer a verdade. essas privações lhe foram um tanto penosas. Portanto. meio e fim. Akaki Akakievich não conheceu dia mais solene em todo o curso da sua existência" na abertura da cena e. teve o cuidado de dobrá-lo e enfiá-lo no bolso para voltar a usá-lo em outra oportunidade. Akaki Akakievich não conhece dia mais solene em todo o curso de sua existência". o autor prepara a cena através do personagem central e fecha-a com a voz dele também. a narrativa é toda de Petrovich. A cena é vista por Akaki sob a perspectiva de Petrovich: "Jamais Akaki Akakievich vira uma expressão tão imponente em alguém". começo. Akaki era visto pelo narrador. O PERSONAGEM ENTRE O SOM E A VOZ Embora tradicional. Com um olhar examinou um instante a sua obra-prima e depois. à maneira dos cavaleiros. a pontuação é suave.o abismo que separa o alfaiate de um mero remendão. Tirou o capote de dentro de um grande pano que o embrulhava – e. o próprio quis vestir as mangas. no final. num gesto decisivo: "Levando a sua idade em consideração. A atuação de Akaki se ressalta em dois breves momentos: "Sem dúvida. Petrovich ajudou-o na operação e essa prova final resultou excelente. Num texto brasileiro. em seguida. deixando os movimentos internos do meio para o alfaiate. "Petrovich levou ele mesmo o capote. como o dito pano tivesse vindo direto da lavadeira.. de fora para dentro. É também o som e voz da cena. Na contenção narrativa leve. o próprio quis vestir as mangas". e Atendendo-a nos braços. Ou seja. depois de esticar o tecido na parte de trás. elaborada. solene. vista de dentro para fora. Ou seja. como deve fazer um bom alfaiate". No outro texto citado.. na verdade é ele quem conta. envolveu. jogou a habilmente nas costas de Akaki Akakievich. E somente pelo narrador. Uma perfeita cena inteira. Akaki não é apenas testemunha – "jamais Akaki Akakievich vira uma expressão tão imponente [. . a pulsação narrativa. podemos mostrar como o personagem não é apenas o narrador em primeira pessoa. "Jamais Akaki Akakievich vira uma expressão tão imponente em alguém" e "Petrovich ajudou-o na operação e essa prova final resultou excelente". Ou seja. Levando em consideração a sua idade. No meio. o funcionário. Vê e conta. embora as frases não sejam curtas: "Para ser franco eu não saberia o dia em que Petrovich finalmente entregou o capote" "sem dúvida. o texto de Gógol mostra a interação entre a voz do narrador e a voz do personagem – com predominância do primeiro – mas sob a perspectiva do segundo.]'"– mas também o narrador. para o presente do indicativo. tempos verbais. novos ritmos... jogam. Tudo isso foi possível por que João Gilberto Nöll encontrou a pulsação narrativa. Nélson vem atrás de mim disparando tiros certamente para atingir os pneus. Os tempos verbais provocam o som e a respiração do texto. não vejo Léo pelo retrovisor.].. "encontro" [. vou. desvio agora para a esquerda. e c) Pulsação narrativa do leitor.se contra os vidros. quase perco a visão. não encontro o caminho da terra. dou numa pedra. paro o carro. poeira de todos os cantos.]. e eu dou mais velocidade e esmago o cachorro contra a pedra. "dirijo".]" "peguei a chave liguei e Estabelece. ensurdecido peguei a chave liguei o carro e aí vieram os tiros por trás. Ou seja. aos solavancos. os cachorros aparecem. e com alterações nas vírgulas: "eu corri veloz até o carro. fechei os vidros com a fúria dos cachorros a poucos metros de mim. uns dez minutos depois silêncio absoluto. ao lado da pontuação: sai do pretérito perfeito. (Hotel Atlântico) Observamos com clareza a interação dos elementos. pontuação ao lado de uma onomatopeia – "vou. fechei os vidros [. no carro com o personagem. vou. porque o autor está investindo no equilíbrio da cena – tensão. o latido dos cães já num sumidouro. o carro já em movimento vejo pelo retrovisor que Nélson solta os cães. vou. e coloca o leitor dentro do texto. o carro derrapa para fora do caminho de terra. Ainda mais uma vez: a) Pulsação narrativa do personagem.. abri a porta. esguicha sangue no para-brisa. A tensão narrativa encontra um correspondente muito forte na respiração do personagem que. UMA PAUSA INTEIRAMENTE À VONTADE . respiração. aproxima-o das palavras. "abri". de uma composição. era Nélson vindo ao meu encalço. mas ganha a beleza de uma melodia. "fechei" [. bato noutra. "vejo". um tiro estilhaça o vidro de trás. pego o caminho de terra enfim. e eu dirijo o carro numa velocidade estúpida. vou por onde der. abri a porta. o leitor sente e ouve a cena. dou toda a velocidade. bato com o carro duas três vezes contra a pedra. por sua vez. vejo uma pedra enorme na minha frente. ouço os tiros cada vez mais longe. b) Pulsação narrativa da cena. sem rumo. nos movimentos. e não apenas um narrador – narrador e personagem estão juntos. "corri". E chegando lá em cima eu corri veloz até o carro. introduz a linguagem sem adjetivos e acrescenta a mudança temporal decisiva. vou" – que lembra o ruído do acelerador do carro. vejo que um enorme cachorro expulsa a sua fúria contra o carro a pedra. ouço tiros.. A cena é extremamente violenta.. de forma que o personagem é o narrador que se volta para a realização de todos os ricos detalhes do texto. não apenas lê. desloca-se o advérbio. ele pode ser deslocado sem que altere o sentido. empurra as palavras que vêm antes ou depois. inclusive. Há gramáticos. a seguir. "finalmente". ainda. E psicológica. COMPLETAMENTE EQ UIVOCADO O exemplo. os advérbios. aparece apenas um "completamente". ou seja. tapar buracos mínimos [. É forte e violento. para que tenha a sua própria identidade linguística. Não se trata de erro. Ocupa muito lugar na frase. mais inesperado. Assim: Uma lâmpada em forma de pompa ardia em cima continuamente. A respeito dos advérbios e das locuções adverbiais. o uso desse advérbio é frequente: "raramente". no primeiro. – o que é mais importante – que a lâmpada esteja continuamente acesa ou o fato de a lâmpada estar acesa. atrapalhado: Completamente. sai da frase. o uso do advérbio de modo terminado em "mente".. E nada mais.] Os "afinal de contas" os "entretanto". verificamos que. marginalizado. que classificam o advérbio de modo terminado em "mente" como "termo marginal da oração". Uma única vez. É uma observação para que se identifique. No caso em que o personagem narrador oculto pretenda acentuar a continuidade da lâmpada acesa e não do texto ou da história.. citada por Proust. falando ou escrevendo. sinceramente. Proust era implacável com Flaubert. definitivamente. outros. um dos desafios do autor iniciante – do consagrado também – e um dos segredos da ficção. "plenamente". Escreveu em Nas trilhas da crítica: Por sinal. locuções adverbiais etc. mais pesado. assim como anotamos no caso do adjetivo – há personagens que aceitam o adjetivo. Se é a "continuidade" estão o . não – em que tipo de personagem fica melhor usá-lo. Ou seja. "completamente". Nos exemplos de Gógol e de Nöll. até por causa de sua apresentação gráfica. em vez de Flaubert. os "todavia" os "pelo menos"sempre são introduzidos em outras passagens onde teriam sido colocados por outra pessoa. como que para construir essas frases compactas. acentuando o advérbio "continuamente". Teremos que destacar. são sempre empregados por Flaubert a um só tempo do modo mais feio. Do ponto de vista visual. Esse advérbio deve ser tratado com muita habilidade. é de uma frase de Flaubert. No segundo. não raro. o que lhe pareceu decisivo para a concentração da beleza: Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada. o advérbio sai da oração. Luta. quase que estão desaparecendo. cabe ao narrador decidir sobre o seu uso ou não. Continuamente. foi o da extensão do poema. pus-me de pé a aproximei-me lentamente. os excessos. pois. uma lâmpada em forma de pompa ardia em cima. ou mais geralmente a alma. na ocasião atual. em primeiro lugar: "Dentre os inúmeros efeitos. barulho. escolher?" E o efeito que escolheu. Mantendo sempre a originalidade em vista. . continuamente. ou impressões a que são suscetíveis o coração. com uma breve passagem para o advérbio de modo terminado em mente. digo-me. da janela. ardia em cima. a inteligência. voluptuosamente. e destaca-se como uma palavra única e eloquente. sobretudo nos momentos de eloquência narrativa. Aqui o exemplo de Fernando Namora: De repente. para manter o fluxo do texto. pois é falso a si mesmo quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse tão evidente e tão facilmente alcançável. Poe ressalta que o efeito é imensamente importante: Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. b) Função e c) Ritmo. Embora eu considere essa questão um exagero e um excesso. Os exageros. Desejando-se acentuar a "pompa". ritmadamente. os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído. pânico… MAIS TRÊS Q UESTÕES ESSENCIAIS Depois de refletirmos a respeito de tom e andamento. retornamos a mais três questões essenciais na montagem do texto: a) Efeito. Ou. ele vai para depois da palavra: Uma lâmpada em forma de pompa. qual irei eu. ele próprio confessa. se se querem duas assentadas. devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão.advérbio abre a frase: Continuamente. para outra frase: Uma lâmpada em forma de pompa ardia em cima. O MISTÉRIO DO EFEITO No entanto. do relato de viagens. o poema tem dois refrões. mas em seu próprio domínio. tanto na frase quanto no diálogo ou na cena. Na verdade. de certa forma. há quem apresente divergências básicas. Não é sem motivo. Eikhenbaum concorda. Ele lembra em Sobre a teoria da prosa que: "O romance provém da história. O efeito de tristeza e desolação torna-se ainda mais dolente pela repetição. quanto ao problema da extensão. Ou seja. que o poeta considera que "a novela aproxima-se o mais possível do tipo ideal que é o poema. a função é tornar o efeito visível. nunca mais". da anedota. nada mais". tal um projétil de um avião. O Q UE SE DIZ E A IMPRESSÃO Q UE CAUSA A função. o que constrói e que faz avançar a obra. determinada pela extensão da obra". é usada para chamar a atenção de aspectos técnicos ou humanos relevantes na obra. O efeito vivo foi o refrão: "Nunca mais. como se decidiu por um efeito vivo – que preferimos chamar de função. da primeira parte. O autor de O corvo. tem o mesmo papel que o poema. De fato. Ela deve arremessar-se com impetuosidade. consagrado. tende para a conclusão. pela extensão e pela densidade. por exemplo. decidiu falar naquele que considera mais eficaz. O que queremos dizer e a impressão que queremos causar. nunca mais. a novela provém do conto. Chesterton assegurava que não se utilizava nunca de um efeito "se posso guardá-lo para o momento em que me servirá para introduzir efeitos ulteriores". Acentua também que "tudo na novela. porém. Aí está. preferindo surpreender o leitor. . em muitos casos. e que termina substituído pelo segundo. O poema-narrativo O corvo – que se assemelha a um conto. Poe não só escolheu um efeito objetivo – a extensão –. contando a morte de Lenora – tem 108 versos. O primeiro é "nada mais. nada mais. trata-se de uma diferença de princípio. para atingir com todas as suas forças o objetivo visado". quanto à visibilidade imediata e única do efeito. o efeito particular e não o efeito geral. todavia. Esse assunto é de tal forma decisivo que ele ainda destaca que "a unidade de efeito ou de impressão é uma questão da maior importância". o da prosa". assim como na anedota. nas marcações ou nas descrições de ambientes e cenários. mas sem retirar o prazer da leitura – "tive firmemente em vista o desejo de tomar a obra apreciável por todos". o seguia. aqueles pés enormes e grossos. Função e efeito se ajustam para seduzir o leitor. aquela mão maciamenete branca. repetição. com a intenção (efeito) de provocar tristeza ou dor. Gaspar. de forma que se pode perceber. Os pés que sofreram bragas e ferros. claramente. um erro. os passos ritmados e gingados atrás dele. Autran confessa: . o efeito e a função. o medo de pisar em galho seco ou cobra. gretados e duros" – ou apenas misturam – "desde quando aqueles pés". Januário. desde quando aquela voz pastosa. no ritmo que aprenderam em virtude dos negros andarem sempre juntos. Na aparência. Em Poética do romance – Matéria de carpintaria. Os pés atrás dele. gretados e duros. presos e ligados por grossas cadeias que atavam as gargalheiras entre si. OS MONÓLOGOS ENTRECRUZADOS Em Os sinos da agonia. Os pés pisando firmes e mansos. para que eles não fugissem de volta das faísqueiras e ribeirinhos. Ele mesmo tem dito que "com Flaubert aprendi – para desaprender conscientemente mais tarde – a objetividade formal". Observando-se bem e com justeza. quente. verificaremos que a repetição da palavra "pés" ora distingue os passos do primeiro personagem. os vincos da cabeça. cuidadosos" –. jogando com a repetição das palavras – no exemplo a seguir. ora revela os pés do segundo. Um exame mais cuidadoso mostra a qualidade técnica do autor. da vida e do destino cortados fundos. a palavra "pés" –. cuidadosos. – "firmes e mansos. podemos dizer que o refrão do poema de Poe tem função de reforçar uma impressão emocional no leitor. cantada. eco soturno de sua própria voz? (Os sinos da agonia) São as vozes de Gaspar e Januário. portanto. "desde quando aquela voz pastosa" –. mas reiteração. convidando-o a se envolver ainda com a obra e dando-lhe eficaz qualidade. que mesmo uma cigana cega podia ler. à francesa. Dessa maneira. Não há. das grupiaras. – "pés enormes e grossos. Desde quando aqueles pés. Autran Dourado estabelece várias técnicas narrativas e usa uma espécie de monólogo entrecruzado – em que as vozes internas parecem dialogar no silêncio dos personagens e do texto –. justificadas pelo entrecruzamento das vozes e que resulta numa única voz. e segundo o estilo clássico e tradicional. em geral. o melhor exemplo de ritmo numa obra de arte que ele conheceu. sem se verem. Como elemento fundamental – a música é algo que só pode ser escrita no tempo o ritmo tem um papel a desempenhar em muitos outros aspectos da música: é importante na melodia. terá que absorver o jogo do tom. Portanto. Inconscientemente. num poema."Embora tão solitários. Mesmo sem se falarem. Não se trata. Os personagens se comunicam subterraneamente – função narrativa – e a repetição da palavra – aí está o efeito – identifica a voz de cada um deles. A COMBINAÇÃO DOS ELEMENTOS ESSENCIAIS O ritmo é. Nas artes plásticas. Se ligam uns aos outros sem perceberem. Forster. o ritmo é um dos três elementos básicos da música. se intercomunicam. os meus personagens não existem sozinhos. para E. um dos segredos fundamentais da ficção. enfim. numa novela ou numa melodia podemos apreender o ritmo em sua totalidade. afeta a progressão da harmonia e desempenha papéis em questões de textura. do andamento. de texto mal escrito. Porém. Certamente. Num quadro. que todos nós podemos ouvir e tamborilar. Para que o leitor possa senti-la em toda a força narrativa. A RELAÇÃO ENTRE OS MOVIMENTOS A quinta sinfonia de Beethoven é. a sinfonia como um todo possui um ritmo – devido. mesmo sem se conhecerem. do efeito e da função. visual. A definição de ritmo. formando um conjunto. a unidade vertical e subliminar do livro". subterraneamente. a reunião de todos esses elementos. é a seguinte: Com a melodia e a harmonia. Assegura que aquela sinfonia: Começa com o ritmo ta-ta-ta-tam. a combinação dos movimentos essenciais que conduzem à pulsação narrativa. A habilidade na reunião equilibrada de todos esses elementos é. fica mais fácil agora compreender a função e o efeito da palavra "pés". Sobretudo naquele sentido de que fala Bakhtin: ordenação temporal. A função torna visível o efeito. com certeza. nesse texto. é possível observá-lo como um ser único. timbre e ornamentação. magicamente – vamos dizer. . sequer remotamente. M. ainda segundo o Dicionário Grove de Música. (Aspectos do romance) Porém. E a filha de Vinteuil e seu amigo transcreveram e publicaram-na. só um músico nos poder dizer. Esse ritmo algumas pessoas podem ouvir. uma vez. mas passa. é ilustrado pela obra de Marcel Proust [. nós a esquecemos. O ANDAMENTO SERVE DE LIGAÇÃO Forster deve ter sentido a falta da combinação entre o tom e os andamentos.. seu amor por Odete. A frase cruza com frequência. entre outras coisas. da relação entre seus movimentos.tazinho do interior. mal construído. no sentido fácil. Ele fala em ligação e. Ouvimos o nome de Vinteuil. por conter ritmos". não tem. à relação entre seus movimentos. mostra-se reticente quando trata de defini-lo na literatura de ficção. O caso amoroso fracassa. mas ninguém pode tamborilar. e Charlus – para nos fazer sentir que estamos num mundo homogêneo. por ser costurado internamente. Ou seja. sem perder seu próprio caráter divino. seu sofrimento e a felicidade passada.] O livro é caótico. contudo não tem nenhum poder de ligação. por um tempo. que: "O ritmo." Mas é. Quem compôs a sonata? Ao ouvir que é Vinteuil. estamos num salão em Paris. a frase é esquecida. Tanto é verdade que ele escreve. Isso parece tudo. nós nos esquecemos dela. ainda assim. Depois. pela primeira vez. A horrível cena deve irradiar-se em várias direções. sob o ponto de vista de ligação. que destrói sucessivamente Swann.. novamente irrompe quando está arrasado pelo ciúme. e uma pequena frase de seu andante chama a atenção de Swann e penetra. em circunstâncias abomináveis. que é feita pelo andamento. então. sorrateiramente. se é substancialmente a mesma da primeira. Esta segunda espécie de ritmo é difícil e. mas o mais importante. ainda: Existem vários exemplos (o retrato da avó é um deles). centenas e centenas de páginas adiante. o herói. permanece uno. sem qualquer fama – e sua filha está desonrando sua memória. sobretudo. Acompanha. assegurando. e. Gostamos de reencontrá-la. Uma sonata para violino está sendo executada. é o seu uso de uma "pequena frase" na música de Vinteuil. ao mesmo tempo. nem terá uma forma exterior. O músico morrera – um obscuro organis. porém como um eco. Acompanha.principalmente. ligação rítmica entre as partes. uma evocação. Faz mais do que qualquer outra coisa – mais mesmo do que o ciúme. quando Vinteuil torna- . um miserável organista com esse nome – não poderia ser dele. Então. e também dos efeitos e das funções. Então. diz Swann: "Conheci. em sua vida. "centenas e centenas de páginas adiante [. perdida entre vários elementos da narrativa: o amor por Odete. quase terrível universo. mudada. nós a esquecemos". a extensão pode quebrar a unidade dos elementos.. e fala-se em erigir uma estátua para ele. Segundo afirma o analista. uma outra obra sua é executada – um sexteto póstumo. como um eco. aparece uma "pequena frase" musical que causa o efeito narrativo. Para ele. um tom de ciúme e desintegração de Swann. mas esclarecedor para tudo o que estamos refletindo. Eikhenbaum. citado por B.] O que me preocupa é a noção do ritmo [. Na verdade. mesmo que não o diga. priva-se. também. da imensa força que confere totalidade – conjunto". na pontuação e no desenvolvimento do período. novamente. De novo "uma pequena frase" se mostra no salão em Paris e... com a função de combinar os vários andamentos da obra. tanto que se sente de volta ao lugar de sua infância. uma evocação". que se converte simplesmente na prosa que . Mais tarde. mas dando uma orientação completa. novo erro. De repente.se uma propriedade nacional. para ele e também para o leitor. conforme Cortázar: Acho que o elemento fundamental ao qual sempre obedeci é o ritmo [. embora sem que o efeito que o romancista inglês esperava tenha alcançado êxito. enquanto uma sinistra madrugada enrubesce o mar.. "porém. a quebra do andamento evita que a obra de Proust alcance o nível de convencimento. O herói ouve-a – ele está num desconhecido. o ciúme. "A frase é esquecida. na cidade onde foi tão desgraçado e obscuro.. é o principal efeito: o de extensão. a pequena frase da sonata se repete – entreouvida. Talvez o que ocorra. A interrupção do efeito causa o dano e não cumpre a função elementar. na ligação rítmica. sabendo que ela pertence ao desconhecido. Talvez por causa de equívocos no andamento.] a pequena frase da sonata se repete" e não produz mais efeito. Num romance de "centenas e centenas" de páginas. UMA FRASE ESQ UECIDA O texto de Forster é longo. naturalmente. E o conjunto surpreende pelo ritmo. Poe assegura que "como não podemos lê-lo – o romance – de uma só vez. Nova falha.] Acho que a escrita que não tenha uma noção de ritmo baseada na construção sintática. depois o sofrimento e a felicidade passada. Em outro ensaio. Tanto é verdade que a cena a que ele se refere não se irradia em várias direções. a pequena frase musical reaparece.. a voz dos personagens. progride. E muito mais. efeito. Ela virá a seu tempo. experimenta variações. Albalat já advertia: Flaubert escreve por sobreposição. mais uma vez. DOIS – E MUITOS OUTROS – TEXTOS Nesse instante. tempos verbais. Então ele relê e refaz. O que estamos escrevendo. ritmo. Querer significa ter consciência. anotando também. função. E outro. pontuação leve – vírgulas e conjunções de ligação – para uns. que se apresenta de acordo com a nossa intenção. muito mais. anotando ao lado do texto central. carece do que eu procuro nos meus contos. Que se revele no momento da releitura. Perde-se o sentido.. andamento. estamos fazendo dois textos. seis. [. busca as palavras.. O trecho se torna ilegível. O material é rico. Continuamos escrevendo e. devemos procurar a nossa voz também de narrador oculto – a voz narrativa – mais a voz do personagem e. advérbios de modo terminados em "mente" para outros. Deixamos o estado de inconsciência pura. o entrecruzamento de vozes. pontuação sincopada – pontos e pontos e vírgulas – para outros – e também metáforas. muda o aspecto. que foi durante todo o tempo da leitura a . em Criação em processo) A determinação é fantástica. muito rico. Carece dessa espécie de swing. adjetivos para alguns. símiles. Isto é.transmite a informação com grandes efeitos internos. a intuição começa a definir a técnica.. Aproveitando as margens do papel.] Flaubert retrabalha a página acabada. Ao invés de um. Ele recopia tudo e continua desta forma por mais quatro. (Citado por Jean-Louis Lebrave. já conhecemos muita coisa. Precisamos admitir que a aparência de uma talvez pulsação narrativa feia – no sentido clássico – exige um jogo de perícia e paciência. apagamos. recomeça-a. A frase transborda. Escutando. acrescentamos. Riscamos. É claro que ele estava buscando o estilo do narrador oculto. desenvolve. oito vezes. E é o andamento que inventa o ritmo. Primeiro algumas notas indicam as ideias de um parágrafo. Com a letra clara. segundo a nossa inquietação. instruída. e o que queremos. Em seguida ele retoma. a advertência de Proust: Nossa voz interior. Jogando-se no trabalho sem descanso. e agora.] Desenvolvimento do período não é outra coisa senão o andamento.. Um que aparece no papel. Quem sabe. o que é indicado. sem chegar à cacofonia. para empregar a uma expressão do jazz [. a frase se estende. ainda. a combinação dos elementos essenciais: tom. Saber escrever era fazer um pastiche. no princípio. semanas. noites. confusa e barulhenta. porque temos apenas a nossa voz. Tínhamos que seguir o "ritmo de um Balzac. e passa para a intuição. a intimidade da história. meses. Consultá-las sempre que possível. Não é. é essencial. Temos agora a nossa voz. como viver. dias. Mas raramente volto a olhar o que anotei. feito já se disse. O ideal. fazer um pastiche voluntário. Iguais a eles. até concluir a tarefa. Ou muitos outros textos. Os clássicos e os notáveis trabalharam muito. de um Flaubert". Descrições de personagem. Gore Vidal também observa em Os escritores: "Escrevo algumas páginas de notas para cada romance. rasura-se. suprime-se. Gore acrescenta novas informações. Feia. No final do dia. Circulando entre eles. Ao anotar – frases. é manter as notas sobre a mesa. deixar o pedal prolongar o som. ele (o texto) lhes parecerá outro. Retomá-las. dos personagens. precisamos acabar com a ideia geral de que não sabemos escrever. Reescrevê-las. nomes. desejaria continuar a falar como eles. resume-se. Nomes. grotesca e insegura. revelando-se. contudo. Revisá-las. Precisávamos falar como eles. É assim mesmo: fomos educados todo o tempo para imitar os clássicos e por isso nossa voz sempre foi rejeitada. um segundo texto. A página está escura. é uma viagem de descobrimento". voltar a ser original. ANOTAR E ESQ UECER. Os textos vão se acomodando. depois disso. sim. porém. e não fazer durante toda a vida um pastiche involuntário. busca-se concentrar o pensamento no menor número de palavras possíveis. recopiem-na. Conhece. Quem sabe nunca vai lê-las ou até desprezá-las. para poder. horas. Ainda Henry Miller. isto é. E ANOTAR Portanto. Frases. É preciso deixá-la agir por um momento. Fazendo. outra vez: "Escrever. Albalat chega a estabelecer uma regra. (Citado também por Jean-Louis Lebrave) SEM RESULTADOS IMEDIATOS .seguir o ritmo de um Balzac. anos. descrição de personagem – ele obedeceu ao impulso e materializou as ideias. Mesmo sem ler as anotações anteriores. de um Flaubert. anoto o que será trabalhado no dia seguinte". abranda-se. Uma vez recopiado. Pode parecer contradição. depois do primeiro impulso: Retomam-se então suas frases. A justa medida de quem deseja escrever ficção. Trabalhamos com erros. Paciência. Sem exigência de resultados imediatos. defeitos. O jogo entre os dois instantes iniciais parece não ter fim. elipses. sendas que permitem estabelecer relações com o mundo. também exposta em Seis propostas para o próximo milênio: Como um escolar que tivesse por tema de redação "Descrever uma girafa" ou "Descrever um céu estrelado" apliquei-me em encher um caderno com esse tipo de exercícios. Já conhecemos as dificuldades do foco narrativo. John Gardner . Nada de descanso. descrevemos. depois dos esboços e do argumento. dos adjetivos. até que se alcança a técnica. redigimos. A estrada tem de ser seguida. Escrevemos. silêncios. Esses dois estágios são fundamentais para o trabalho do escritor. mesmo que sejam necessários muitos anos. Afinal. é uma espécie de diário sobre os problemas do conhecimento minimalísticos. TÉCNICA O QUE EXISTE SÃO TÉCNICAS – CENTENAS DELAS AS QUAIS. As nossas oscilações vão acontecer o tempo todo. equívocos. da cena e do cenário. tempos verbais. COMO TRUQUES DE CARPINTEIRO. Não custa atentarmos para a lição de Italo Calvino. O processo de criação entre o impulso e a intuição pode ser demorado. a história está sendo escrita. imperfeito etc. Não devemos nos assustar com isso. Esse livro se chama Palomar. e saiu agora traduzido em inglês. humildade e trabalho. PODEM SER ENSINADAS E APREENDIDAS. perfeito. nada de repouso. deles extraindo depois a matéria de um livro. E muito menos de desistência. gratificações e frustrações no uso da palavra e do silêncio. Ninguém deve desejar ser criatura antes da criação. tem ressaltado: A maestria não é algo que ocorra a um só golpe. é necessário dividir os movimentos internos da obra. a montagem das cenas apontam para a certeza de que se é um escritor e de que sua capacidade inventiva existe. para alcançarmos a técnica é fundamental e básico conhecermos o ofício que é chamado pelo autor de iniciação à estética. o desenvolvimento do enredo. as dúvidas criativas começam a ser desfeitas. a vontade se estabelece. elas inquietavam porque se materializaram e exigiram solução. O conhecimento dos personagens. como ressalta Ariano Suassuna. mas uma energia que se acumula lentamente. O escritor John Gardner. autor de obras sobre a técnica do romance. A PARTE MATERIAL DA ARTE Para atingir a técnica que. No capítulo da técnica. porque conhece agora a história e tem alguma facilidade para manejar os seus elementos. Em princípio. Quando o escritor iniciante passa muito tempo entre soluções de palavras ou de cenas. não fixas nem absolutas. para estabelecer seu campo técnico. Na passagem do impulso para a intuição. sem muito esforço. Se em princípio aplicam-se o impulso e a intuição – geradores do processo criador –. a criação tem regras. às vezes lágrimas além do suor. de "a parte material da arte". Agora o autor iniciante pode criar com absoluta liberdade para estabelecer seu arsenal de técnicas. que progride passo a passo no tempo. Naqueles momentos precisavam apenas ser investigadas. (A arte da ficção) . o tormento não o leva muito longe. O artista está livre para criar. Não é mais um sonho. aos poucos. AS OPÇÕES DO ARTISTA Na técnica. num segundo. Uma remota possibilidade. Embora pareça arbitrária. como as condições atmosféricas. "Aí as opções do artista já são mais livres". como um relâmpago. As regras da liberdade criadora. corre o risco do desgaste. o nascimento da história oferece novo ânimo. sem dúvida. a desistência é quase certa. vai exigindo muito do artista. a capacidade criadora já está mais definida. Está ali e começamos a gostar dos resultados. o impulso. Como será possível mudar conceitos gramaticais sem conhecê-los? Sem intimidade com os monólogos interiores? Sem a eficiência dos diálogos ou das cenas? Só se muda a realidade dentro da realidade e não fora dela. O impulso trouxe-a. a adequação dos pronomes. ele nunca mais aparece. o ponto que tenciona a narrativa. mais tarde. Para alcançar bons resultados. Mesmo em se tratando de uma tensão entre o tema e o escritor. Aquilo que nos atormenta. e que começa a se revelar. desconhecida. as oscilações que vagueiam. uso literário da crase etc. Atenção: o escritor conhece. a intuição estabeleceu-a. Um iniciante precisa conhecer as regras gramaticais elementares. os mistérios da luz. Investiremos na técnica. Dominando a tradição para chegar à renovação. aquela que estava escondida. o impulso deixou escapar. Procura as sinuosidades. Ou na bolsa. Era o caos. somente o caos. porque carregamos no íntimo. a origem. Porque é exigente. Ou agenda eletrônica. A intuição chega com o toque ainda mágico que descobre a palavra certa. a explosão. Se lhe deixam fugir. Chamá. É individual e insubstituível. Tratá-lo com o afeto que estimula os amantes. ainda vagas. Até porque antes dele não havia nada. Insistindo: caneta e lápis no bolso. Nunca mais volta. passando pelo ofício e. Atraí-lo. DO IMPULSO À TÉCNICA Agora devemos refazer o caminho: A busca da voz narrativa é a fonte. enfim. Depois a intuição organiza. de alguma maneira. Aí está o ofício. Devemos conviver com ele a todo instante. A CONVIVÊNCIA COM O OFÍCIO Não basta ter impulso ou intuição sem os conhecimentos que conduzem à técnica.lo. É básico. alcançando a pulsação narrativa. os segredos que estão começando a chegar. Descobre as imprecisões que. os sinais de pontuação. Mais uma vez: é impulso e não inspiração. Alimentá-lo. Sem nada definitivo. mas indicando os caminhos. precisamos conviver com o ofício. a sua voz. a vírgula que simula. Na solidão do sangue. E o que é o ofício? . o impulso. portanto. alterando a pureza do verde que. o campo mais modesto. também. em Iniciação à estética: O ofício é a parte mais modesta. com o tempo. porque. Com uma qualidade que é só dele e que admite. por exemplo. Diz Ariano Suassuna. corre-se o risco de o pigmento entrar em combinação química com o da outra. Quando Gabriel Garcia Márquez. É um caso típico de regra de campo do ofício: o artista não tem nenhuma liberdade diante dela. anunciam a capacidade do autor criar um universo extremamente pessoal. Nesse campo. A técnica não é arbitrária. também qualquer pessoa pode. mesmo variando num mesmo livro. mas a reunião desses elementos que. o artista tem que saber que o verde chamado 'verde veronês' só pode ser usado puro. escrever um texto ficcional – não basta apenas escrever bem – é tarefa para os que conhecem os segredos da arte literária A literatura está cheia de exemplos. repetimos: qualquer pessoa pode. trabalhados conscientemente e com sutileza. mais ligada aos materiais de cada arte. Escrever bem uma história. se for misturado a outra cor. O campo do ofício é. Técnica no sentido mais amplo da revelação de um mundo artístico através de pessoal visão do mundo e que resulta na materialização dos elementos narrativos. Sem dúvida. evita o diálogo é porque tanto no espanhol clássico quanto no português tradicional a gramática do . Mais ou menos naquela direção apontada por Mário de Andrade. torna-se um castanho fosco e feio. válidas e indiscutíveis para todos os artistas. sob pena de prejudicar de modo fundamental a parte material de sua obra. Por exemplo: no campo da pintura. as regras são dogmáticas. No entanto. E a técnica começa por um dado fundamental: a gramática. diversas interpretações. o que não significa que seja destituído de importância. e tem de conhecê- la. A técnica é imprescindível. embora sem radicalismo: "A contribuição milionária de todos os erros". entre outras coisas. material e grosseiro da arte. O CONHECIMENTO DO OFÍCIO GRAMATICAL Um dos méritos do modernismo – entre tantos – foi dar à língua brasileira uma plasticidade que não conhecíamos antes em virtude da camisa-de-força gramatical vinda da tradição portuguesa. Escritores precisam ter conhecimento técnico. Cometer erros gramaticais. universais. A TÉCNICA NÃO É ARBITRÁRIA Escrever uma história. ele conta que recorreu aos amigos – Padre Silvestre. responsável justamente pela composição literária. já ressaltamos. de tal forma. Sempre disse que nesse idioma houve uma grande distância entre diálogo falado e diálogo escrito. A primeira grande lição de Graciliano: Escrever ficção não é apenas escrever bem. No encontro com Gondim. Ao mero documento. o personagem de Graciliano Ramos. Mas "o resultado foi um desastre". Há lá ninguém que fale dessa forma! (São Bernardo) .personagem repete a gramática do narrador e a tendência é tornar a fala artificial. Você acanalhou o troço. Arquimedes e Lúcio Gomes de Azevedo Gondim – para escrever o romance. um notável depoimento – ao jornalista Plínio Apuley o Mendoza. Na longa entrevista que concedeu – na verdade. está idiota. a ponto de se imaginar que o livro não é escrito – são as vozes dos personagens. Garcia Márquez explicou seu ponto de vista: — Por que você dá tão pouca importância ao diálogo nos seus livros? — Porque o diálogo em língua castelhana acaba por ser falso. (Cheiro de goiaba) A LINGUAGEM POR APROXIMAÇÃO Uma das técnicas indicadas. Ou seja. Paulo Honório percebeu a impropriedade do discurso: — Vá para o inferno. está safado. esquecendo o seu próprio universo. é a da linguagem por aproximação do personagem. Por quê? Porque foi usada a linguagem pedante e afetada dos amigos falsamente intelectuais. o autor se aproxima do universo psicológico do personagem. No primeiro capítulo de São Bernardo. Um diálogo em castelhano que é bom na vida real não é necessariamente bom nos romances. segundo as características de visão e comportamento. João Nogueira. Por isso o trabalho tão pouco. que pareça uma só. Gondim. Está pernóstico. deixa muito claro onde ocorre a linguagem por aproximação. Paulo Honório. Uma advertência séria: a linguagem do narrador precisa se aproximar da linguagem do personagem e. sem descer à fotografia. onde aprendi leitura com Joaquim Sapateiro. em Graciliano. sempre. Os desafios goram. porque "a literatura é a literatura". e arrochei-lhe um beliscão retorcido na popa da bunda. Ambos em absoluta cumplicidade. obediência cega às regras gramaticais – e nem sempre é assim. um que mudou o nome para furtar cavalos. Piranhas. verificamos que essa técnica é observada com precisão. abrequei a Germana. repetimos. Dois tacos conhecidos e um amigo do outro não pretendem desacato. Pinheiros. mas que o narrador oculto permanece nas proximidades. Durante a conversa. Então. para a terceira pessoa. Aproximação não é imitação. sem as naturais justificativas. pubo. Assim também acontece com o escritor João Antônio. ou seja. dos protestantes. E qual é a linguagem por aproximação do personagem? Até os dezoito anos gastei enxada ganhando cinco tostões por doze horas de serviço. acabavam sócios e partiam. três anos. como bárbaros. Gondim respondeu que “um artista não pode escrever como fala”. . Depois botou os quartos de banda e enxeriu-se com o João Fagundes. Isso mesmo. Aí pratiquei o meu primeiro ato digno de referência. O resultado foi eu arrumar uns cocorotes na Germana e esfaquear João Fagundes. ligado a malandros e periféricos. Saindo da primeira pessoa. num universo mais cosmopolita. Pompeia. tomei cabacinho e estive de molho. que o autor se aproxime da linguagem do personagem. acordados há pouco ou apenas mal dormidos. Equilíbrio. nem queriam saber se estavam certos ou errados. É necessário. Não perde a perspectiva. como relógios. que acabou em furdunço. desembocam num bom entendimento. Então o delegado de polícia me prendeu. nem tanto às gírias e coloquialismo. que tinha uma bíblia miúda. Nem tanto aos rigores da gramática. Lapa. Sofisticar demais ou descer à fotografia. de ordinário. (São Bernardo) MALANDROS E PERIFÉRICOS Percebemos que a linguagem de Paulo Honório corresponde ao seu universo psicológico. em João Antônio. Ela ficou-se mixando de gosto. O narrador tem voz e o personagem mantém a voz. Avistavam-se todas as tardes. conluiados. mas sem deixar manter a aproximação com o personagem. levei uma surra de cipó de boi. Numa sentinela. Perus e Bacanaço. nove meses e quinze dias na cadeia. cabritinha sarará danadamente assanhada. Funcionavam como parelha fortíssima. é erro grave. em princípio. e) Diálogo sem sinais gráficos. sobretudo por causa das marcações. tiraram essas marcações repetitivas. Na maioria das vezes. O DIÁLOGO DIRETO OU CONVENCIONAL O diálogo direto ou convencional todos nós conhecemos com facilidade. "perguntou" etc. "afirmou". Por um motivo mais do simples e óbvio: é ele que se manifesta diretamente. sem interferência. pelo menos cinco formas de diálogos: a) Diálogo direto ou convencional. Assim. Os autores contemporâneos. é preciso averiguar as diversas formas de diálogo. Também aqui o ofício gramatical pede muita atenção. É identificado pelo travessão ou pelas aspas. . (Malagueta. martelo. o narrador onisciente poderoso desapareceu. deixando que os personagens se manifestem sozinhos. "ela respondeu". trapaça. porque todo muquinfo é muquinfo. Negaça. marcados pelas expressões "ele disse". Aquelas que se revelam mais eficazes na ficção – ou ao autor de maneira a colocar o leitor diante ou distante das circunstâncias. marmelo.. d) Diálogo interno dramático. com repercussão no ofício gramatical. Um. com presença constante. são vistos nos textos assim assinalados: "disse". c) Diálogo interno (Rubem Fonseca e José Saramago).Água Branca [. A classificação desses verbos é longa e. Mais do que nunca a voz do personagem é decisiva. Perus e Bacanaço) AS CINCO FORMAS DE DIÁLOGO Para estudarmos o conflito das vozes narrativas. o outro era o cabo. que só embaralham e interferem na psicologia do leitor. quando iam os dois. em muitos casos. podemos catalogar. Esses verbos justificam o personagem ou interlocutor. A marcação dos diálogos é feita pelos verbos chamados "dicendi". b) Diálogo entrecruzado. geralmente.. quando se joga o joguinho e se está com fome.] Ou em qualquer muquinfo por aí. Afinal de contas. tu não fala assim – foi-lhe dizendo a mãe –. e nunca mais ouvir falar destas coisas. — Menina. Não bastava registrar. Só queria. sair desta terra. usei o "disse". "disse". a vida da gente vai ser esta. só vive de matar e de morrer. aliás. Isso mesmo. Bentinho. Fazer com que ele também se irritasse com a monotonia do autor e com a irritação dos personagens. Foi preciso provocar o leitor. o segundo. Assim: — Quem falou em estupro? – ela disse – Ainda não. "disse". menina. ainda não. Não tarda a cair no crime como os outros. E se tu for pro brejo é a mesma coisa. (Cangaceiros) A questão gramatical: . José Lins do Rego usou o diálogo direto ou convencional fotografando a linguagem dos personagens e não apenas se aproximando – o regionalismo tinha um forte compromisso com o documento. Tem que ficar aqui mesmo e chegar até às últimas. Zé Luís está no mesmo caminho de pai. para marcar a monotonia e a irritação dos personagens. o que quer dizer? Controle-se – a mãe disse – Você me prometeu. até o fim. Com muita habilidade. O que quer dizer com ainda não? – o pai disse – Hein. por exemplo. ou ainda: "pediu a mãe preocupada". estou aqui da mesma forma que saí. Tu quer sair do meio da gente mas não pode não. lhe deram sedativos? Se fosse grafado "ela disse com ironia". Fotografada a marcação do diálogo. O sertão é isso mesmo. Só estou querendo saber o que significa o ainda não – o pai disse – Exijo uma explicação. o texto ficaria óbvio demais. Eis a diferença de Graciliano Ramos e José Lins do Rego – o primeiro inventa por aproximação. o que quer dizer o ainda não – a mãe disse – Meu Deus. Repetir as falas tal qual ditas pelos personagens. menina. por favor não esqueça disso. Esse tipo de marcação muitas vezes aparece por motivos técnicos. homem de matar e morrer mas porém de coração de ouro. — Povo infeliz – disse Alice –. copia. Era preciso fotografar. ou "o pai perguntou irritado". Quisera tu que todo homem fosse como Jerônimo. recolhe a linguagem e não imita. Em Maçã agreste. decidia pela aproximação. Para não perder o contato com a linguagem do personagem. "declarandi" ou "sentiendi". eu disse irritado e com a voz grossa. Pode parecer antipático. Um risco. "respondeu" – do narrador. Graciliano opta pela primeira pessoa. mas o autor precisa sempre conhecer muito bem o terreno em que pisa para só então fazer novas investidas. ele perguntou. (Simulacros) Essas são as duas formas mais comuns de diálogo e que o iniciante deve exercitar até se sentir à vontade para investir noutros campos. de verbos de elocução. ignorando minha raiva. "Qual é o seu número. Além dos travessões. Exemplo de Sérgio Sant'anna: "Eu queria experimentar aquele ali". "Qual é o número da senhorita?". sem o apoio da marcação – "disse". exigem exame e ponderação. na gramática. O DIÁLOGO ENTRECRUZADO O diálogo entrecruzado é também uma criação de Flaubert e a função é fazer com que as vozes circulem livremente. as aspas parecem mais convincentes. reverendo?" "é pra essa senhorita aqui". há quem use as aspas. eu disse. No entanto. Um – José Lins – era regionalista. A única grande vantagem – ou desvantagem – é que as aspas têm o dom de provocar conflito visual. "afirmou". embora tivessem propósitos diferentes. um pouco nervoso. Repetimos: essas marcações chamadas. "dicendi". achando que o vendedor queria me gozar. de acordo com o modelo norte-americano. Os travessões são mais soltos e mais leves. de forma que a fala corre mais leve. se o propósito é provocar densidade na leitura. documentava. e comprometeu depois a concordância. sem compromisso documental. o outro. José Lins do Rego manteve a fala na segunda pessoa – com marcação severa: "disse Alice" e "foi-lhe dizendo a mãe". A função é a mesma do travessão: distingue um personagem do outro. provocando efeito idêntico. Ambos sabiam o que estavam fazendo. Entre uma e outra proposta preferimos os travessões. A intervenção do narrador oculto no diálogo deve ter razões . ao vendedor que se aproximara muito solícito. As aspas às vezes se confundem com a marcação do pensamento do personagem. . escutados no livro. de sentir. no ." — Como ficaria esta noite. Assim: E Rodolfo tomou-lhe a mão. O autor não podia intervir. Caron. declarare e sentire. Queria que os efeitos de uma sinfonia fossem.. Segundo Othon M. de Quincampoix.absolutamente técnicas.. Garcia: Dicendi. Nasce aí.. e significam: de dizer... bradava o presidente. Caron. mesmo no século XIX –. amanhã. e acabei ficando. O escritor não queria uma ação dramática qualquer.. seguia-a. (Comunicação em prosa moderna) Mas Flaubert cuidou de aboli-los porque sem eles estava chegando ao dramático pelo "entrelaçamento do diálogo" e pelas "oposições de personagens". contudo. um dramalhão – estava correndo todos os riscos." — Por isso. a ideia de personagens com estilo – aqueles que unicamente conduzem a narrativa. por exemplo. portanto. de declarar. toda a minha vida! "Ao sr. "Por um carneiro merino. todos os demais dias. "Ao sr: Bizet. por assim dizer. levá-la-ei na lembrança.. uma medalha de ouro!" — Porque jamais encontrei na companhia de alguém um encanto tão completo. — Há pouco. "Ao sr. quando fui à sua casa. convencional. respectivamente. de Givry-Saint-Martin." — Podia eu saber que a acompanharia? "Setecentos francos!" — Cem vezes mesmo pensei em partir. declarandi e sentiendi são genitivos do gerúndio dos verbos dicere. que ela não retirou." — Mas vai esquecer-se de mim e eu passarei como uma sombra. semelhante ao maestro. "Adubo. de Argueil. "Conjunto de boas culturas!". Além disso. tanto por brasileiros como por estrangeiros. Em todos os casos há maior rapidez nas vozes. "afirmou". com ou sem aspas. Personagem tem estilo. agora já sabes e dizes que não acredita. Não confundir com o monólogo interior. Eu posso. o distanciamento através da vulgarização. Ao invés de "disse". utiliza as aspas conflitantes com o efeito de densidade narrativa. Na primeira. às vezes fazendo uma marcação pesada que justifica a passagem das vozes. antes assim. ninguém pode olhar por dentro das pessoas. sinais gráficos fortes.. "respondeu". Não acredito. O mineiro Autran Dourado usa-o nas narrativas. Só acredito se fores capaz de dizer o que está dentro de mim agora. Os personagens se revelam justo nesses sinais. Esse tipo de diálogo tem muitas características: é trabalhado com aspas por Ismail Kadaré e por Rubem Fonseca. usa travessões para as palavras de Rodolfo e as aspas para o leiloeiro. negócios. intervenção psicológica. definindo a alternância de vozes. ou apenas com a sinalização da primeira letra no maiúsculo por José Saramago.momento em que Rodolfo estivesse fazendo a corte a Emma. Primeiro quiseste saber. Falam através deles. "ela respondeu". sim. Estás a mangar comigo. festas. às vezes por Ly gia Fagundes Teles. há uma só: "Bradava o presidente". não descansavas enquanto não soubesses. O DIÁLOGO INTERNO O diálogo interno tem sido mais utilizado na ficção contemporânea. quebrava a intensidade do dramalhão romântico e investia na vulgaridade da situação – paixão. e também inquieto. embora faça inúmeras modificações. Para diferenciar as duas vozes. José Saramago (maiúsculas): Sete-Sóis soergueu-se na enxerga. a declaração amorosa. Cruzando as vozes. mas daqui para o futuro não me tires o pão.] (Memorial do convento) Autran Dourado (com marcação): . na segunda. Não vejo se não estiver em jejum [. Na verdade.. Fundamental: Os personagens narravam a cena sem a participação do autor. embora as aspeadas tenham um maior efeito dramático. sequer com a marcação – "ele disse". Uma espécie de festa nacional. dr.. do ponto de vista visual. disse o dr. Nesse caso: Gjorg fazia parte dele. Seu filho não correrá o risco de partir sem avisá-la. o narrador decide usar aspas. minha cara senhora. disse comovido. por logo que devo ir?" "Exatamente porque matou. Alcebíades?. se o senhor quiser. se corrigindo: Vim mais na qualidade de amigo." Mas eu sou o gjaks." . o filho. uma densidade muito forte. que deve ser compartilhado pelo leitor. são a mesma coisa. Por vontade própria jamais teria ido.. disse João olhando de soslaio tia Margarida. é cedo demais. acabara de matar. quando o pai diz que Gjorg deve ir ao enterro e ao almoço fúnebre em homenagem ao homem que ele. você tem que ir. em dinheiro miúdo. Ocorrera entre ele e o pai aquela que esperava ser a última das desavenças mil vezes repetidas nas pradarias montesas. O que me preocupa é não saber cantar. Alcebíades.se um dia de atraso na viagem. interior. Pode permitir. uma adesão maciça aos interesses da pátria. como uma espécie de punição e de conflito psicológico. se prefere. A pátria e os trabalhadores. Eu sei que você não está doente. para não lesar os trabalhadores. num momento fundamental da narrativa. Não sou o médico da família?. carregada. (Um artista aprendiz) Agustin Gómez-Arcos (sem marcação): Isso quer dizer que a senhora não está com pressa. João. Não carecia de se dar a esse incômodo. Mas não tem ninguém doente aqui. menos você. para nós. (Ana-não) DIÁLOGO INTERNO DRAMÁTICO Nesse tipo de diálogo. eu lhe quero muito bem. Qualquer um pode faltar ao enterro e ao almoço fúnebre. no sentido dramático.] Ela diz sim. Consegue rapidez nas vozes e as aspas dão ao texto. senhor agente. Um dia de atraso? Estamos preparando uma festa. Mais uma achega de duzentas pesetas. O senhor aqui.. É usado em Abril despedaçado. disse sorrindo o dr. "Você deve ir ao enterro e também ao almoço fúnebre. Eles o esperam mais que a todos os outros. que são os nossos. [. de Kadaré. Alcebíades vacilando. Viagem e alimentação pagas.. ("Passeio noturno – Parte II" – Feliz ano novo) A ausência dos sinais gráficos permitem uma maior leveza psicológica do texto. A habilidade de Rubem Fonseca é o sinal do grande criador. e ele se calara."Mas por quê?". apesar da aspereza. pontos. Autores como Rubem Fonseca. mas para sua imposição. Uma delas é a retirada dos sinais gráficos. No entanto. precisamos estar sempre atentos ao processo criador do ficcionista. Pensa. enclausurando o leitor num sistema de sinais gráficos – aspas. A página é prazerosa. Às vezes. eu disse. Ângela perguntou. ainda. insistira Gjorg. não para a reconstrução do texto. por exemplo. "Por que devo fazer uma coisa dessas?" O pai então o havia fulminado com os olhos. As palavras se tornam mais vigorosas. pela condução dos elementos. de forma que o leitor se sente mais confortável. há uma perfeita interação entre texto e leitor. mesmo quando se pode evitar. Desta maneira: Você não bebe?. Além dos aspectos psicológicos convencionais da leitura. (Abril despedaçado) Observamos. . DIÁLOGOS SEM SINAIS GRÁFICOS Alguns escritores preferem não usar sinais gráficos – nem aspas e nem travessões – mas interferem com marcações insistentes. Mesmo quando está sendo conduzido para o abismo. quando eu te passei o bilhete? Não. vírgulas. A sedução do leitor ocorre por inteiro. Mas se você quer. o que dá a entender que a história é agradável. pela última vez. Mas o sinal é de que há tempo para o prazer. Ângela disse. O leitor vai sendo surpreendido. Agora diga. eu penso agora. interrogativas – e produzindo um efeito poderoso no resultado da leitura. estão sempre criando novas técnicas para a literatura de prosa moderna. Isso se chama: sedução. falando sério. que a função desse tipo de diálogo é a de carregar na forma dramática. você não pensou nada mesmo. Ele conduz todo o texto com poucos sinais. conduzem para uma impressão de agonia. do negrito ou do itálico. dois pontos. Isto é. não. reticências etc. inclusive. a frase de autor ou do entrevistado. No ensaio ou na reportagem. Pânico geral. aconselhado que não se usem as aspas em vão. as aspas pousando sobre as palavras – chegue impregnada de tensão ao leitor. ponto. muitos autores – mesmo alguns experimentados – costumam colocar aspas nas palavras. Inviolável. travessões. Nem aos advérbios terminados em mente. ou a frase. O negrito e o itálico expõem demais o personagem ou a palavra. jogando a narrativa para movimentos . Palavra que precisa de muletas não presta. É uma questão de harmonia interna. O texto literário reclama um tecido único. Ou a palavra está solta. Prudência com o uso. as aspas servem para destacar a citação. se temos essa riqueza em mãos por que não utilizá-la melhor? Exemplo: Um certo personagem usa o pronome correto como uma espécie de identidade psicológica e outro. – existem e pedem respeito. de dor. Isso em relação à ficção porque nada deve ser adiantado – ou revelado – ao leitor na hora incorreta. igualmente. AS SUTILEZAS DO OFÍCIO NARRATIVO Foi adotado quase que definitivamente no Brasil o que os gramáticos chamam de infração à ênclise. Os sinais gráficos – aspas. sozinha. de angústia. Nunca vimos centroavante de perna quebrada entrar em campo. para ironizar ou para atormentar. É assim e pronto. sim. No entanto. Não necessita recorrer aos adjetivos grandiloquentes. ou não precisamos dela. nem às marcações forçadas. Palavra aspeada não faz gol. Para distorcer ou até engrandecer uma palavra. Em geral não há necessidade deles no texto. concordamos. Ali as aspas forçam a leitura. quase sempre dispensáveis. AS ASPAS PEDEM RESPEITO É exatamente o contrário daquele diálogo de Kadaré. o uso do pronome oblíquo átono na abertura de frases. Só precisa que a página – cheia de urubus. Não se deve fazer isso. De certa forma. Isso é outra coisa. De forma que o autor não precisa forçar nada. brilhante. por exemplo. Nada deve ser destacado do tecido ficcional. Tenho. um tal de Pedro Páramo.técnicos. Assim: Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai. com aparente simplicidade. apenas. Não é bem assim. então haveria uma só voz: "Minha mãe que disse". Ele oferece muitas opções ao texto ficcional. Portanto. Se Rulfo tivesse. A primeira frase está claramente dividida: "Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai". em seguida: "Minha mãe que me disse". Por quê? Porque ele diz com ênfase. duas vozes. Verificaremos que o uso do pronome oblíquo átono não deve ser arbitrário. Ou a mãe havia dito e todos repetiram. é áspero e forte. no chamado discurso indireto livre – vozes que circulam no texto sem sinais gráficos ou marcações. "um tal de Pedro Páramo" não é frase do narrador mas da mãe dele. retirado o "me" da segunda oração. com todo ódio e todo desprezo. Disse o quê? O primeiro termo da frase – " Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai" – é leve. Minha mãe que me disse. Um caso típico – o romance Pedro Páramo. de forma direta. começa como já acentuamos. analisar. o segundo pronome "me" desaparece. Basta refletir. A FUNÇÃO NARRATIVA DO PRONOME Na primeira tradução brasileira de Pedro Páramo. O uso adequado e perfeito do pronome estabeleceu a sutileza. transita com facilidade. A novidade é que ele usou duas vozes. de forma que fica estabelecida uma nova leitura: "Minha . porque conheciam sua afirmação. de Juan Rulfo. Na primeira frase as pessoas lhe disseram que em Comala "vivia meu pai". questionar. Ou simplesmente jogamos com ele as sutilezas narrativas. Certo. mas o segundo – "um tal de Pedro Páramo" –. O JOGO INDIRETO DE VOZES Então fica muito clara a intenção do narrador – explicar o motivo que o levou ao lugarejo. o narrador se manifesta. Ou seja: as pessoas disseram o primeiro termo da frase e a mãe o segundo. O que nos leva a outra abordagem. Mas quem lhe disse que era "um tal de Pedro Páramo" foi a mãe. Ou usadas com absoluto controle técnico. facilmente resolvida no correr do texto. E ainda causaria dificuldades porque: a) Provocaria erro. escrevendo: Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai: – Um tal de Pedro Páramo – disse minha mãe. repetir o verbo com tanta proximidade. b) Porque incorreria no equívoco de usar uma marcação desnecessária – "disse minha mãe". então se compreende que as pessoas não identificadas disseram que ali vivia seu pai. no caso de uma narrativa simples ou plana. Até porque. por excesso de obviedade. em seguida. respondeu Joaquim. Minha mãe que me disse". bastaria escrever: "Vim a Comala porque disseram que aqui vivia meu pai. parece esquisito escrever "me disseram"– atribuindo a informação a pessoas não identificadas – e. Portanto. O autor queria mesmo criar uma nova função para o pronome. "me disse" – que transfere a informação à mãe. As marcações podem ser eliminadas. A ausência do pronome tornaria o texto uniforme. Consultamos o original. de forma plana. um tal de Pedro Páramo. Ali está escrito: "Mi madre me lo dijo". Um outro talvez quisesse fazer uma narrativa rasa. Mantidos os termos da frase: "Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai. e não apenas "um tal de Pedro Páramo". um tal de Pedro Páramo". ela havia dito às pessoas e também a ele. que já citamos. O diálogo direto ou convencional. mas somente a mãe "me disse" que se trata de "um tal de Pedro Páramo". com problemas estilísticos e aí ela teria dito tudo. no caso de Maçã agreste. essas expressões eram escritas porque no século XIX os . concordou Manuel. sem alterações narrativas. sabendo-se que não se deve. Em geral.mãe que disse". Disse Maria. no estilo clássico. assim com o ódio e o desprezo de quem foi abandonada. mesmo seguido da expressão: "Minha mãe que disse". DISCURSO TRANSFORMADO EM DIÁLOGO O autor iniciante precisa estar atento para encontrar a função e alcançar o efeito daquilo que deseja transmitir. Tudo isso é escandalosamente inútil. em princípio. Não haveria excesso? Exagero? Descuido? Se não houvesse necessidade da técnica. de pouca sofisticação técnica. O efeito é o de proximidade. devido ao efeito narrativo. já que ele fala do passado. O texto atua assim. Tudo bem se não fosse a sequência: "Vim a Comala porque aqui vivia meu pai". um drible gramatical. Do tempo ficcional. Aliás. Isto é. Se não há. Observemos esse caso registrado na novela Dão- Lalalão. assim. muitas irregularidades no radical e nas desinências. Está escrito: Chegava a casa. seria: "Fui a Comala". ainda. de Guimarães Rosa. Madri. Sem esquecer. de Pedro Páramo. no volume de novelas As meninas do sobrado. na edição espanhola da Cátedra – Letras Hispânicas. sem dar a impressão de que a história se realiza agora e não no antigamente. Jogaria o leitor para um passado remoto. no impulso – segundo anotações do original em espanhol – o texto era: "Fui a Tuxcacuexo". Além do mais. Então. causando funções e efeitos diferentes. considerando o uso do "a" acentuado – ou a crase. . O verbo "vim" tiraria o efeito de proximidade e.romances deveriam ser lidos em voz alta. "fui" e não "vim". Rulfo também temeu que usando Tuxcacuexo. que os verbos "ir" e "vir" são chamados de anômalos e têm. abria a porteira. A CRASE COM EFEITO NARRATIVO Há. o autor ainda não se decidira por Comala. é possível criar as suas oscilações e sinuosidades. segundo citação feita pelo escritor Hermilo Borba Filho. sem elas eram criadas dificuldades para a compreensão dos ouvintes. o autor demonstra habilidade no uso do tempo verbal – "vivia" – para lhe dar função de presente. Materializando o texto. ainda. regionalizasse demais a sua história. o exemplo claro de ofício que se realiza muito bem tanto no plano gramatical quanto no plano narrativo. Seduzido. Trata-se do verbo inicial: "Vim a Comala". seria "porque ali vivia" e não "aqui". levantado por González Boixo. aproxima o leitor da frase. pelo menos. O EFEITO DO TEMPO VERBAL Há ainda um problema a resolver nessa frase de Juan Rulfo. por isso mesmo. portanto. que afastava muito o efeito narrativo e que não tinha o leitor sob controle. Rulfo percebeu. Na verdade. em tempo. de credibilidade. nos chamados serões e. desapeava do cavalo. não. chegava à casa. que se revela mais simples. Não é só função. efeito narrativo. objetivo. compreende-se o movimento do personagem. puro ritmo. agora o "a" acentuado – à – porque está decidido que a casa é do personagem – ou a quem ele se dirige.] A frase atende ao ritmo interior do personagem – temos chamado sempre a atenção para esse aspecto técnico. afinal está indeterminado. metáforas. Chegava a casa O personagem está nas proximidades da casa. reiteramos. E em seguida reaparece o "chegava" recorrente – não é repetição. A CENA VALE POR UM VERSO Mais adiante. Crases e tempos verbais que se alteram de acordo com a montagem psicológica do personagem ou da cena. por assim dizer. há uma quebra verbal: o verbo "chegava" é substituído por "abria". está quase na casa e em expectativa.chegava em casa [. Não entrou. técnica. personagem e frase unidos em técnica. franco. Literatura exata.. ANSIEDADE E EXPECTATIVA Em seguida: Desapeava do cavalo . digamos. no pátio. Está. mais uma vez com extrema habilidade. Domínio do ofício. Guimarães opta pela "a". Sem que nada seja revelado. sem dizer especificamente que casa é essa. E poesia se faz com imagens. Arte. O coração parece bater com mais força. Seguro conhecimento gramatical com. Além disso. Para não revelar tudo em palavras óbvias. acrescenta: Abria a porteira Ritmo. Mas ainda não chegou. A indefinição do primeiro termo da frase – "Chegava a casa" – revela-se perfeita: a casa agora tem endereço certo. Casa de quem? Por isso a ausência do "a" acentuado. O que pode não ser a sua casa. Não subiu sequer o alpendre.. Chegava à casa Agora. com clareza. A cena parece composta em versos. artesãos). em sentido próprio ou figurado... Sem ter intimidade com a gramática e com o personagem seria impossível.. Othon M. Ele manda. O . Assim como frase passou a ser sinônimo de oração... A MÃO DE FERRO DESAPARECEU Em Comunicação em prosa moderna. deve saber em que terreno está pisando. a desenvolverem a técnica do tradicional solilóquio. E não são a mesma coisa. de maneira correta..] // (Abria) //[. para ajuste de contas. porque as escolas literárias foram criando tantas terminologias que ninguém mais respeita nem uma coisa nem outra.] E o fechamento da cena: "Chegava em casa" O autor. de propósito. organizado.. todavia. e que explora.. pronto. Portanto. Morto e sepultado. Ou seja. uma espécie de gramática criativa. monólogo é sinônimo de solilóquio. a mão de ferro desapareceu. Tudo isso leva à autonomia do personagem. ele ordena. Outra quebra verbal que mantém o ritmo de ansiedade e de expectativa.. Mesmo assim. O solilóquio é ordenado. sobretudo. O estudo dos diálogos e das vozes – discurso indireto livre. por exemplo – levou os criadores (além de criadores. o viajante: Chegava [. ainda há muita confusão. O autor iniciante. Domínio do ofício e domínio da técnica. Talvez porque nem se fale mais em solilóquio e. optou pela preposição "em". os movimentos interiores de Dão-Lalalão.. do monólogo – já nos referimos ao monólogo entrecruzado – e do fluxo de consciência. ele pode tudo. situação. segundo Evanildo Bechara – Moderna Gramática Portuguesa.] // (Desapeava) //[.] Chegava //[. Garcia distingue muito bem o que é solilóquio e o que é monólogo. E sabem por quê? Porque é matéria do narrador onisciente. o personagem chegou no lugar em tal situação – física e emocionalmente. A SOFISTICAÇÃO LITERÁRIA Ainda mais um pouco.] Chegava [. E do personagem com estilo. com absoluta clareza do que estava escrevendo. que denota lugar onde. Um capricho de sofisticação literária. Principalmente. de ótima qualidade. sentia-me cair num estado de perplexidade e covardia. e diante do narrador. E mudança radical. As imagens de gesso não se importavam com a minha aflição. que as horas se passavam. sem ordem. As minhas mãos contraíram-se. Os santos não sabiam. Nenhuma liberdade. Eis o que afirma Othon M. Basta um pouco de análise para observar a mudança. Em geral. diferenciado. Assim feito em Faulkner: Não conseguia ver o fundo. não admite narrador. em monólogo com os seus botões. Eis a questão. Daí. esquecida da presença de leitor ou ouvinte. às suas divagações". moviam-se para ela. O MONÓLOGO LARGA O PERSONAGEM O monólogo é uma conquista moderna e pós-moderna. mais uma vez: E olhava alternadamente Madalena e os santos do oratório.personagem não tinha autonomia. Por isso. Para que deixar viva mulher tão cheia de culpa? Quando ela morresse. Podia viver com a autora de semelhante maroteira? A medida. Eu tinha chegado fervendo. Por que estaria assim tão calma? Afirmei a mim mesmo que matá-la era ação justa. Othon chama a técnica de "feitio incoerente". o personagem diante de sua agonia. seu algoz. o seu feitio incoerente. Garcia: O autor "larga" a personagem. eu lhe perdoaria os defeitos. E Madalena tinha quase a impassibilidade delas. porém. O que me espantava era a tranquilidade que havia no rosto dela. deixa-a entregue a si mesma. entregue "a si mesma. mas agora as contrações eram fracas e espaçadas. Madalena não quis responder. projetando matá-la. Mas solilóquio – ou seja. às suas divagações. incoerência que pode refletir-se tanto numa ruptura dos enlaces sintáticos tradicionais quanto numa associação livre de ideias aparentemente desconexas. A mudança básica é essa. Um texto de grande qualidade. é ilógico. Ou quase nenhuma liberdade. Largar o personagem é dar a esse personagem um estilo pessoal e intransferível. mas via uma grande profundidade no . Por isso mesmo. Vamos a Graciliano Ramos. Embora muita gente confunda as duas coisas. com um pouco mais de rigor técnico. Se no diálogo indireto livre as vozes se alternam. O FLUXO CAÓTICO E ABSTRATO COM UNIDADE E. vivia na via mais larga imarginábil no seu rútilo habitáculo muilonge para missagens . então nós dois entre a reprovação e o horror para lá da chama pura". Autran Dourado afirma: O que é importante no stream-of-consciousness de Finnegans Wake é a sua mudança de ritmo. áspero e puro. (O som e a fúria) Apesar das aspas. a riqueza quase alucinada desse ritmo. Uma unidade estranha e complexa. imagens e metáforas. Então só terias a mim. que jogam o personagem às vezes para o aparentemente abstrato e para o caótico. Mesmo quando na verdade a estrutura interna passa pela luz do abstrato e do caótico. as aliterações. Profundamente caótica. corrente abaixo. pedreiro de livres ideias. que dá sentido ao texto. os lapsus. poderíamos evoluir para a técnica do fluxo da consciência. "Só tu e eu então entre a reprovação e o horror enclausurados pela chama pura". depois. e depois vi a flecha outra vez. As elipses. Retirando-se as aspas. o autor iniciante poderá fazer experiências. (O meu mestre imaginário) Exemplo de fluxo da consciência: O Bygmester Finnegan. O rodamoinho evanescente afastou-se. digamos. que poderiam ser dispensadas. são o que fazem da obra final de James Joyce uma obra maior do nosso tempo. e depois vi uma sombra pendurada como uma flecha gorda no fio da corrente. na própria frase – lembramos o exemplo de Pedro Páramo – e no solilóquio a voz do personagem é comandada pelo narrador onisciente. Moscas deslizavam junto à superfície para fora e para dentro da sombra da ponte. "Se pelo menos pudesse haver um inferno por detrás disso: a chama pura e nós dois mais que mortos. surgindo depois o monólogo com a incoerência e desordem interna. afinal. então só a mim.movimento das águas antes dos olhos desistirem. o que é fluxo da consciência? Com um pouco de paciência. o monólogo se impõe belo. A flecha aumentava seu movimento. o Mão-Gaga. nariz na corrente. o fluxo da consciência aprofunda a estrutura psicológica buscando motivos mais profundos. numa volta rápida. a truta apanhou uma moça por baixo da superfície com aquela espécie de delicadeza de um elefante a apanhar um amendoim. Aviso: a grandeza de Finnegans Wake é inimitável. agitando-se delicadamente ao ritmo da água sobre a qual as moscas esvoaçavam e pousavam. (Finnegans Wake) A VOZ NARRATIVA É BELA Agora podemos voltar a pensar um pouco naquele primeiro texto do começo. não era intenção. DO CAOS À PULSAÇÃO NARRATIVA São essas questões de técnica que somente se atingem depois de passados os estágios do impulso e da intuição. chorava na janela. aquela nossa voz narrativa que se manifestou confusa e barulhenta. nem queria. E o personagem existe para escrever.antes de juízes josueicos nos terem dado números ou Helvíticos tenha cometido o deuteronômio (em out’antontem ele machadeou a cara em estígias águas nas cubas do Brás para vislumbrar memórias pósteras mas antes de o queirós sair deça. uma Julieta. posto de fora. afinal. todos os dias. à pulsação narrativa do autor. Será mesmo assim? Ou pode ser o monólogo de um personagem. Optaríamos pelo monólogo ou pelo fluxo da consciência? A linguagem é produto da voz do narrador que passa pelo personagem e o entrega ao leitor. uma paixão romântica. tanta agonia e por isso viajou para longe. a moça não queria casar com o rapaz louro nem namorar. feito a técnica narrativa do Doutor Fausto. até a água tinha eviporado e todas as pyráguas genesíacas tinham achado seu êxodo assim isso deverá mostrar-lhes o sujeito pen. enfim. por artes de moisés. do narrador. sabia que era uma ilusão. ela nem sabia o que fazer. numa espécie de biografia? Repetindo e iluminando: A moça se apaixonara por um rapaz louro e chorou.taenrabado quele era!) e por oi! tenta años cimento est'homem de carrinho. mas nunca mais voltaria. uma pulsação narrativa. Resolvida a unidade da ficção. . A trajetória do impulso à intuição resulta na técnica que leva. cimento e mitifícios empilhou em Vila Pinga imagifícios sobre imagifícios para seus fieles según la canción. que sendo personagem é também narrador. a narrativa estava no caminho para conceder absoluta autonomia ao personagem. a voz narrativa é bela. e o coração aos saltos. do personagem e do leitor. O problema é o ajuste interno e os movimentos interiores. de Thomas Mann. Mas a técnica organiza a história para que ela tenha. Quando os escritores decidiram sair do solilóquio para o monólogo. ACUMULADAS. Ou seja. Estamos construindo o caminho do caos à pulsação narrativa. a técnica termina por se submeter à pulsação narrativa. Esta se manifesta desde a voz narrativa – no sentido até mesmo da estética filosófica embora ainda de maneira tímida. barulhenta. Ela então passa para a intuição. A história da literatura está cheia de arrependimentos e remorsos. PANDO. tornando-se mais visível e mais clara quando os textos começam a aparecer de verdade. Daí porque aconselhamos que as primeiras publicações somente sejam feitas quando o intelectual sentir uma espécie de amadurecimento interior. O SEU TEXTO TALVEZ NÃO PASSE DE PARÓDIAS ENTRELAÇADAS. confusa. E naquele instante em que o iniciante a encontra. PULSAÇÃO NARRATIVA A ÚNICA COISA QUE UM AUTOR TEM DE VERDADEIRAMENTE PRÓPRIO É O CORPO. EXPANDIDAS OU SUPERPOSTAS. EM CADA AUTOR HÁ UMA SÉRIE DE PEQUENOS AUTORES. Autran Dourado . com certeza: turva. ] Eram nuances e finezas onde eu não vi mais nada. se não estão ainda completas. Vinte páginas em um mês e trabalhando pelo menos sete horas por dia. nada em que se amparara não ser a ferocidade de um fantasma indomável [. Estamos em busca da compreensão do fenômeno literário através do processo criador.] Você sabe quantas páginas vou completar dentro de oito dias desde que voltei daí? Vinte. que não precisamos ser deuses – ou inspirados – para alcançar resultados. que a estrada é áspera. na tradução de Duda Machado: Há momentos em que tenho vontade de chorar [. nada disso. até onde nossa consciência pode enfrentar sombras e abismos expulsos pelo inconsciente? E ainda: o inconsciente que vai recebendo as informações e elaborando-as. A AMARGURA E A HUMILHAÇÃO Percebemos. humilhações internas. Falta descobrir como essa montagem se define. UMA TENTATIVA DE DEFINIÇÃO Flaubert tem razão. Porém. No entanto. também. exercícios. Vamos descobrindo como podemos fazer que esse imenso material seja resolvido. . Ela seria realizada através da consciência e. Às vezes dramática. uma novela.. Um conto. As iluminações – ou sombras – interiores.. a ardente paciência continua. Trabalho.. As cartas de Flaubert mostram uma incrível obstinação. ainda assim. exercícios. Não pretendemos conceituações psicanalíticas ou psicológicas. Confundem-se e se embaralham. Mesmo assim. está resolvido. Suamos muito. trabalho. e é muito difícil tornar claro por palavras o que está obscuro ainda no pensamento. variações. É difícil transformar em palavras aquilo que ainda é abstrato. Contamos com elementos diversificados. desânimo. O movimento natural da mente humana. vindas do consciente. Sim. labirintos.. com a maior clareza. precisamos definir bem o que é pulsação narrativa. um romance. técnicas. também da inconsciência absoluta do criador. nos ajudam a montar um texto. temos informações que. desânimo. Ele escreve. Há abismos. Por isso. e qual o fim de tudo isso? Amarguras. dolorosamente inúteis –. Fracassa a voz e. E na intuição encontramos o tom. no tom. em que as primeiras palavras davam início à voz narrativa. todavia. será feito. A moça se apaixonava por um rapaz louro e chorou. o andamento e o ritmo. etc. Portanto. a pulsação da nossa história começa a se manifestar embora. seguindo- se as questões de função e efeito. O sentimento de derrota traz a vontade de chorar. Apesar de todos os problemas que o gênero literário provoca – o pós-modernismo reivindica o entrecruzamento de gêneros. a pulsação é a forma e a forma é o princípio que estimula o artista. problemas etc". com referência a seus eventos. . ela nem sabia o que fazer. para quem "cada gênero possui a própria orientação da vida. O tom daquelas nossas primeiras palavras é dramático. todos eles inúteis. se o tom é dramático – como para Poe foi a tristeza – aprendemos agora que a melhor maneira de revelar o tom narrativo é descobrir o gênero literário. talvez confusa. E com o qual concordamos. tantos textos – inúteis. e novas humilhações internas começam a incomodar. sem deixar de reconhecer o entre- cruzamento – todos os gêneros movendo-se ao mesmo tempo – dividiremos os gêneros – o que é sempre muito complexo e cheio de artimanhas – em três modelos tradicionais e preponderantes: 1) Trágico. A Q UESTÃO DOS GÊNEROS Não é sem razão que Luís Costa Lima cita Medvedev e P. Bakhtin. Chegamos ao argumento que parece incompleto. sabia que era etc. Mais algum empenho. que a luz está próxima. (Teoria da literatura e suas fontes) Para efeito dos nossos estudos. e sonhos. na intuição. quem sabe disforme. O esforço e a humilhação indicam. A pulsação parece ter início. compreenderemos que. fracassam os esboços. o que. Montamos os esboços. naturalmente. para os estetas. aquele instante em que ela se manifestou. etc. Mais um pouco de trabalho. N. no impulso a voz narrativa se esparrama. A VONTADE DE CHORAR Mesmo assim sofremos amarguras e humilhações interiores. Se imaginarmos aquele momento. diz Flaubert. mas não cresce. em desordem. uma paixão romântica. Não temos essa pretensão. pelo menos no momento. A PULSAÇÃO NARRATIVA Enfim. Faz voltas incríveis. O iniciante deve ficar intrigado com tanta forma. É a questão de desenvolver um raciocínio que justifique o exame do texto literário através dos seus movimentos. a forma do personagem. de situação para situação. porque a forma tradicional e clássica não atende aos nossos objetivos. Varia de escola para escola. para que o . de uma beleza pura. Parece em nada se adequar e a tudo se adequar. de movimento para movimento. porém. com o pretexto de que a divisão dos fenômenos literários muda consoante as épocas e os países. Quando proclamamos o entrecruzamento das vozes – "Em cada autor há uma série de pequenos autores". A forma do romance. Não é a questão de desafiar a estética ou a filosofia. de Alejo Carpentier. a luz que conduz o escritor desde o nascimento. com atributos quase sempre platônicos. afirma Autran Dourado. desde o narrador até o leitor. (Poética da prosa) Na tentativa de resolver o problema de uma só vez e de um só golpe – considerando que é só uma maneira de organizar o debate –. afirma: Qualquer estudo que se queira científico depara-se com problemas de terminologia. Uma forma que vem da beleza romântica. precisamos definir primeiro o que é pulsação narrativa. que proclama: "O terceiro estilo é o estilo das coisas que não têm estilo". a forma do discurso. 2) Dramático e 3) Cômico. A forma no sentido estético. Tzvetan Todorov. O gênero não é pulsação – assim como o tom também não o é – mas aponta o caminho da montagem do texto literário. Decidimos pela escolha da pulsação. ao que acrescentamos: em cada gênero há uma série de outros gêneros –admitimos a teoria do terceiro estilo. a maior parte dos investigadores recusa aos estudos literários uma terminologia bem definida e precisa. E a forma? O que é? Não conhecemos termo mais flutuante em literatura. Está em todos os lugares e em todos os momentos. No entanto. Não é para menos. uma unidade limitada contraposta ao ilimitado. plenamente. O iniciante percebe que precisa organizar os seus movimentos interiores para alcançar a forma que se realiza. (Literatura: mundo e forma) Essa definição. que procura o gênero. às vezes misteriosa. Assim. E o gênero busca o caminho definitivo da pulsação narrativa. antes de apreciação mais demorada e lenta. profundo. se completam. constituindo uma unidade orgânica. que é a luz resultante dos elementos organizadores. Ariano Suassuna discorda. Nesse sentido. porém. na harmonia do objeto – harmonia. não raro. no entanto. autossuficiente. determinante e enigmático do Ser". movido pelo juízo do gosto – conhecimento. determinante e enigmático do Ser. cuja luz nasce no autor iniciante através da observação. agradável e estético (Kant). destacando que forma é: O princípio ativo. voltaríamos à ilusão de que o objeto não depende de . O primeiro objetivo e o segundo reflexivo. sobretudo. sonoridade e virtude. agora. de penetrar nos segredos do mundo. Passando. às vezes mágica. A FORMA É A BELEZA? A forma torna-se sinônimo de beleza. independente da sofisticação ou da revolução estrutural. como a maneira. Podemos dizer. pelo tom. que estamos em dois campos opostos que. um princípio fundamenta o conceito de forma: a estreita relação entre as partes de um todo. no "princípio ativo. primários e básicos. ou na simplicidade das partes (Plotino). Na Iniciação à estética. é claro. contraposta ao caótico e fluente. a beleza estava no caminho místico do objeto (Platão). reflexões e conjeturas. no sujeito contemplador. proporção e grandeza – (Aristóteles). de Platão a Kant. dos estudos e da técnica. individualizada. profundo. determinada e consistente. Uma luz interior que arrebata e que fornece os elementos para que a obra tenha ritmo. Massaud Moisés lança uma definição sincera: Em qualquer hipótese. retira as possibilidades da forma como reflexão sobre o mundo. a forma estaria no romance – o objeto que se revela aos olhos do leitor – ou na maneira como é admirado? Mas admirado por quê? Admira-se porque o romance é o resultado de um movimento espontâneo que gera beleza? Isto é. no entanto. naquele sentido que se instaurou desde os remotos tempos. mas está.assunto fique objetivamente claro diante dos nossos olhos. e não apenas estético. Ambos se entenderão muito bem. haveria a revolução kantiana: nada está no objeto. O COMPROMISSO DO ARTISTA Assim. até o formalismo russo. considerando o ponto de vista da intuição. com a natural evolução do pensamento. e vai muito além da proposta que pretendemos debater. no sentido mais puro. Independente da forma estética ou da forma estruturalista ou pós- moderna. Então. a descrição científica de um texto literário e. Ele é levado a criar porque está tocado pela luz – a inspiração ou a intuição – e é essa luz que vai lhe oferecer condições para alcançar a beleza – que em muitos sentidos é a forma. a demonstração de relações entre os seus elementos" (Todorov). chegamos às escolas literárias. num sentido mais restrito. respondendo aos seus anseios. para que daí chegue aos melhores resultados do próprio texto – a cena – e entre em comunhão permanente com o leitor.técnica e de elaboração – é beleza em estado puro e aí está a sua forma? No campo oposto. realismo fantástico na América Latina. A partir da estética. E o leitor só responde aos apelos do texto se entrar na pulsação do texto. O sujeito decide pela beleza do objeto mas o objeto integra-se também ao sujeito. acreditamos que em qualquer circunstância o escritor precisa considerar a necessidade de um texto em que ele entre em contato permanente com o seu principal elemento – o personagem –. novo romance na França. científico. nova crítica nos Estados Unidos. afinal. cuja pesquisa resulta no estudo do "funcionamento do sistema literário. pós-estruturalismo. para colocá-la no plano do científico. estruturalismo. seu compromisso de artista. Aí se retira da forma a beleza. Esse tipo de forma. O problema é complexo e demorado. mas no sujeito. em certas circunstâncias era o objeto que devia ser admirado – o romance. é que vai revelar a visão de mundo do escritor. Depois semiótica. a novela. Por isso. o caminho do artista começa na forma e termina na forma. que considera a forma um elemento literário. É o resultado da combinação dos elementos internos ou do funcionamento do sistema. o conto – somente pela beleza imanente e em seguida apreciado pelo sujeito arbitrário. a análise dos seus elementos constitutivos e a descoberta das suas leis. ou. . a partir dela. cabe ao criador buscar esse leitor. como seja. O sujeito que foi considerado mais tarde o senhor da história – história como resultado dos movimentos concretos do homem que modificam o mundo. Vem daí a pulsação narrativa. ou pelo menos em que o tema fosse quase invisível. conhecendo a intimidade do texto. toda regra. ela abandona toda liturgia. Na conceituação flaubertiana. com muitos tipos de diálogos e de metáforas. Assim: O que me parece belo. tudo dependendo das circunstâncias e das situações. que tanto apaixonava os formalistas: Talvez por isso mesmo. se mantém no ar. Nem o título.Inevitável. um livro que não teria quase tema. não conhece mais a ortodoxia e é livre como qualquer vontade que a produz. pois deles dependem. como a terra. o que eu gostaria de fazer. da antropologia. todos os cálculos de conteúdo e que entretanto pertencem à arte. político. e . Em qualquer sentido: estético. às vezes. Esquecendo as imposições vindas de fora. que ele chegou a formular. Madame Bovary. só o criador resolve esse conflito. segundo revela. instrumental. O MÉTODO DE FLAUBERT Numa de suas cartas a Louise Colet. contesta essa possível arrumação dos elementos. Por isso mesmo. tantas as mudanças de técnicas. E criando sua técnica. de movimentos. Flaubert tinha também seu sonho formal absoluto. se atenua. uma forma que elaborasse uma estética pura. a criação literária estaria muito próxima da composição musical. algo que intriga e questiona. Ou seja. é um livro sobre nada. parece disforme. sem estar sustentada. o verso pela prosa. da história. sobretudo no campo da música. onde o ouvinte não precisa conhecer sequer o tema. da fenomenologia. literário. um livro sem amarra exterior. e sobre o qual gostaria de se debruçar na velhice. Aliás. o que também tem sido feito hoje em vários níveis. Eu gostaria de fazer livros onde só fosse preciso escrever frases – se se pode dizer assim – como para viver basta respirar o ar.. que se sustentaria pela força interna de seu estilo.] A forma. as combinações de efeito. toda medida. da sociologia. se é que pode haver [. Flaubert se distancia sempre de um para outro elemento. Nem nada.. O criador. ela deixa o épico pelo romance. longe das convenções da psicologia. que criam perplexidade. Sente- se enclausurado. de soluções narrativas. O que me aborrece são as malícias do plano. ao se tornar mais hábil. o efeito do estilo. (Citada por Mario Vargas Llosa. E a metodologia de qualquer escola deve apenas ajudar na reflexão. A escritora Nathalie Sarraute. A voz narrativa e o processo criador indicam caminhos. os gêneros indicam caminhos que sugerem estudos mais demorados. No início. o desejo de todo artista –. de intrigas e de todos os velhos acessórios. devemos estudá-los sozinhos e separadamente. E é o mesmo do teórico? Não. Por isso necessita estar familiarizado com todas as possíveis linhas de pensamentos. As amarras são sempre preocupantes. mas não criam sozinhos. escritores. O primeiro deles. novas invenções.exclusivamente. A pós-modernidade entrecruza os gêneros. . são inevitáveis. imaginando: Livro sobre nada. o método formal do criador não é o mesmo método formal do teórico. A este interessa como a obra se realizou e de que maneira se realizou. como forma de conhecimento. os homens têm cada vez mais medo de si mesmos – é a tragédia. porém. reafirmou esse ideal de ficção. quase sem tema. de compreensão. ultrapassá-los e formular novas técnicas. A capacidade de renovação – e de revelação – vem justamente da maneira como enfrentamos esse conhecimento e conseguimos sair dele. em Contra vento e maré) CRIAR SEM CONHECER Este é o método formal do criador. no entanto. Todas. reduzido a um puro movimento que os torna parentes da arte abstrata. A NARRATIVA TRÁGICA Apesar dessa liberdade plena e absoluta que desejava Flaubert – e que é. O escritor deve criar o seu próprio método. Nós. temos que conhecer os fundamentos. afinal de contas. liberado de personagens. e que em nossa época tem sido tão massacrado – sob as alegações as mais injustas e as mais inconsequentes. autora de Infância e Os frutos de ouro. escolas e movimentos. Oferecem possibilidades e criam expectativas. Vamos abrir um novo parêntese para analisarmos a questão do gênero na procura do tom. deixou o fuzil escorregar para um lado e caiu para o lado oposto. tudo conforme Aristóteles e seus seguidores. antes de atirar. no sentido dos nossos estudos. ressalta Aristóteles. ele não tem mais escolha. A principal característica da tragédia é que ela é provocadora da catarse: liberação de emoções e tensões reprimidas. Nem na hora. Apesar do conflito interno. conforme mandava o costume. provoca temor e compaixão. Um tanto espantado. Gjorg ainda viu um rápido movimento de braço. ao aniquilamento". É só uma questão de conceituação. A narrativa é exemplar e cumpre o rito trágico. Por isso sempre causa tanta preocupação. muitas vezes esquecida. por isso mesmo. apesar dos heróis e das situações trágicas que temos em nosso tempo. Gjorg é obrigado a matar um homem de outra família para fazer cumprir o kanum albanês – o código de honra que obriga a vingar. encaminhando-a depois ao andamento e ao ritmo. o assassinato de um membro de sua família. ou à luz que inaugura e conclui a obra. Além do mais. de suas qualidades e dos seus defeitos. A verdade é que a vítima de repente virou a cabeça. resultado da beleza. Vamos acompanhar esta cena profundamente forte e bela de Abril despedaçado. segundo Ariano Suassuna. a tragédia se distingue pela grandiosidade dos seus elementos. . é levado pela própria natureza de suas paixões. a um conflito. "Só tenho que fazer o que deve ser feito". de acordo com os cânones estéticos. homem de caráter excepcional e. falhara antes na primeira tentativa: "Não tenho mais que pensar" – "Só tenho que fazer o que precisa ser feito". E porque é também uma ação de caráter elevado. Gjorg avisou o homem. e que coloca imediatamente aos nossos olhos os elementos trágicos: "Não tenho mais que pensar" disse consigo. assim. ergueu os olhos da arma para o morto. ao infortúnio. o autor iniciante pode encontrar o exemplo vivo de como é possível ajustar o tom de sua obra. Nessa obra moderna e bem escrita. O outro deu meio passo à frente. Como imaginara centenas de vezes. como que para pegar o fuzil. que gera a pulsação narrativa. horror e piedade. de Ismail Kadaré. Nem na hora nem depois teve certeza se falara ou se sua voz havia falhado. com a morte. "conduzindo o personagem ao esmagamento. Gjorg não tinha dúvida de que o matara). de seres maiores. que ainda esclarece: O personagem trágico. A tragédia. sobretudo um escritor contemporâneo da qualidade de Kadaré. e então atirou. (Embora ele estivesse de pé. personalidade na qual se misturam o bem e o mal. dentro do quaternário. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte. dete- ve-se. uma força interior que. compondo-se uma única ação. Embora não seja. o andamento é quase sempre vigoroso. o caso de Abril despedaçado. A princípio o vaqueiro não compreendeu nada. o barco ficou irresoluto. quase um dobrado de procissão ou de permanente marcha fúnebre. inclinando-se para um lado e para outro. Baixou a arma. até porque deve ser apresentada uma estrutura dramática. o amarelo teria caído esperneando na poeira. sobre o episódio O soldado amarelo. A marcação é dura e pesada. Às vezes monótono. coisa mais grave. uma autoridade. ao contrário daqueles que consideram a fatalidade. A lâmina parou de chofre. bem em cima do boné vermelho. num andamento que opera uma espécie de ternário. Daí a aproximação com o trágico. Em Kadaré. Vejamos: Tinha feito um estrago feio. Não é que o personagem trágico não tenha dúvidas. Aristóteles lembra que a mesmice é responsável pelo fracasso de tantas tragédias. bambo. Há uma determinação trágica em tudo. Menos: durou uma fração de segundo. Sentiu um choque violento. o gesto que ele fez teria sido bastante para um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço no sentido contrário. com o quengo rachado. o levara à cadeia. o tom permanece lento. a rigor. como convém ao processo narrativo trágico. Se houvesse durado mais tempo. É claro que tem. mesmo naquelas cenas em que os personagens estão mais leves. Podemos examinar assim a narrativa dramática de Graciliano Ramos em Vidas secas. a terra se cobria de palmas espinhosas. não altera marcha. marcado com justeza. No entanto. um ano antes. Deteve-se percebendo rumor de garranchos. onde ele aguentara uma surra e passara a noite. com passagens pela oscilação e pela dúvida. Num ritmo quaternário. junto à cabeça do intruso. (Vidas secas) . voltou-se e deu de cara com o soldado amarelo que. E que Suassuna chama de vontade e de decisão. Viu apenas que estava ali um inimigo. De uma monotonia trabalhada. De repente notou que aquilo era um homem e. A cena de abertura do romance é sombria. há uma determinação. mesmo no momento de questionamento. Aquilo durou um segundo. A NARRATIVA DRAMÁTICA No dramático. se manifesta prontamente na vontade: "Só tenho que fazer o que deve ser feito". mas não em relação a todo tipo de vício e sim quanto à parte em que o cômico é grotesco. o trágico. nas cenas anteriores. como dissemos. Vem daí a definição de Aristóteles: A comédia. Por isso oferece uma estrutura complexa. O grotesco é defeito. O dramático. isso prova a máscara cômica horrenda e desconforme. ora com variações que vão do eufórico ao melancólico. e na verdade a reduz ao pleno efeito de agonia. A própria imagem é de desolação. Ainda Ariano: É por isso que o drama é mais movimentado e menos hierático do que a tragédia: "aquilo que é nobre tende. no plano externo. O personagem parece esperar pelo momento adequado. o braço ficou irresoluto. mas de catarse e punição. e o andamento lento. deteve-se. mantendo. o tom é de exaltação e de brincadeira. Em Graciliano. Pode matar. é imitação de gentes inferiores. É oposto ao trágico. o andamento do dramático – ora com densidade e tensão. Temos a sensação de que engrandece a alma. não há. à lentidão e mesmo à imobilidade." Mais uma vez: O tom é dramático. Aristóteles sempre considerou que a tragédia deve mesmo apresentar uma estrutura dramática. se manifesta por uma dúvida na ação. O cômico não detém a história – nem o personagem – no seu equilíbrio e . As duas cenas deixam esse aspecto de análise bem claro. a vontade de matar. Reúne. no plano interno. mesmo que demore. mas sem expressão de dor. as características de piedade e compaixão. a tomar a decisão. A NARRATIVA CÔMICA No cômico. inclinando-se para um lado e para outro". mas é inevitável. quase imóvel. a vontade é traída pela dúvida sem vontade: "Sentiu um choque violento. como se observa aí em Graciliano. todavia. bambo. porém. No trágico. embora ingênuo e sem dor. Em Kadaré. igualmente. portanto. a vontade é determinante. por natureza. O dono do bar. ficara certo de que o velho era meio desmiolado. arrastou uma faca da cintura. farofeiro. um mulato baixo e gordo. mas não sou mentiroso nem frouxo como o senhor! O dono do bar. com a voz pausada. na comédia – . — Aquele velho é desmiolado.na sua harmonia. expulsando o negro. Ezequiel postou-se na sua frente e falou. venha tomar essa peixeira da minha mão! – e. o que resulta em "gentes inferiores. que não queria perder um freguês como o major. zombeteiro: — Major. quando viu o velho dar meia-volta e se retirar. Se tiver mesmo coragem. Isso não se faz. dizendo isso. Olhou para os rapazes como se estivesse procurando apoio e ajuda. o senhor não pode ser desfeiteado dessa maneira! Mostre ao atrevido a sua coragem! Valentim Cavalcanti de Albuquerque Wanderley recompôs a fisionomia e disse com a voz grave: — Só duelo com fidalgos! Não vou aceitar as provocações de um pé- rapado qualquer! — Sou um pé-rapado. O senhor não passa de um velho mentiroso. Tem as suas próprias características de equilíbrio e harmonia – a mentira. saiu de detrás do balcão e ia intervir. Mas um dos rapazes falou. em O major Façanha. mentiroso e frouxo. o engano. deixando-os em desordem e desarmonia. como se estivesse recitando uma lição: — Ouvi as histórias que o senhor contou. por isso mesmo descambando para o grotesco. Pressentiu que ia ganhar fácil aquele dinheiro. com a fisionomia transtornada pela surpresa. chamou a atenção deles: — Vocês podiam ter provocado uma morte. depois de perceber que aquilo havia sido tramado pelos rapazes que se confraternizavam com o negro e lhe entregaram um pacote de cédulas miúdas. E se o major atirasse nele? – perguntou apontando o negro. não atira em ninguém! — Mas por que vocês têm raiva dele? O homem ofendeu a vocês? — A gente só queria se divertir um pouco! – falou um deles." na classificação do autor da Poética. a simulação –. O major recuou uns dois passos. (O major Façanha) Está claro que. embora o cômico seja oposto à tragédia. de Maximiano Campos: Depois que ouviu a conversa de Valentim. Eis um exemplo. Os fregueses caíram na risada. O major ia tão preocupado que não ouviu o riso de deboche. Quando o major se levantou para sair. por todo esse mundo de estéticas. enfim. o revolucionário. não podia haver arte sem conteúdo político. agora e no momento. onde explica: O que nos caracteriza não é o formalismo enquanto teoria estética. A nós interessa.independente das teorias sobre o riso – "existe uma componente de crueldade em nossa maneira de rir dos outros". O teórico comunista reclamava a . ela surgia com apoio em Plotino. cenas etc – Aristóteles – unidade na variedade das partes – e Kant: o domínio do sujeito. Decidida oposição. no começo do século XX. E ainda mais: "Libertar a palavra poética das tendências filosóficas e religiosas cada vez mais preponderantes entre os simbolistas era a ordem do dia que reuniu o primeiro grupo de formalistas". Afinal. Ele é autor de "A teoria do método formal". Alguns dos teóricos tiveram de migrar para Praga. história não se faz quebrando correntes. O FORMALISMO FUNDA CIÊNCIA Feita a reflexão a respeito da procura do tom através dos gêneros – o que. pela estética sociológica. De certa maneira – e forçando um pouco a interpretação –. mas o desejo de criar uma ciência literária autônoma a partir das qualidades intrínsecas do material literário. o processo formalista recebeu forte oposição. Passam pela estética psicológica. entre os quais se incluía B. Estava decidido. – o estudo das partes: monólogo. acentuamos. em Formalismo russo. A forma não estava na beleza intuitiva da estética. deve ser observado no mesmo sentido com que se procura as vozes interiores do texto – retornamos ao problema da pulsação narrativa. pela estética psicanalista. mas no exame rigoroso da ciência literária. Para Leon Trotski. a estética literária. Instalado o poder comunista na Rússia. na expressão de Ariano. Havia uma ruptura definitiva no campo da investigação e da pesquisa. todavia. Eikhenbaum. diálogo. aquela que vai desaguar na construção da obra – o objeto em contemplação – e no estudo da forma científica. e do ideal de Flaubert ou de Sarraute – o formalismo russo – movimento que surgiu em Moscou no início do século XX – deu um passo decisivo para a conceituação de forma. resultado de nossa travessia. As derivações do estudo da estética são muitas e tantas. nem uma metodologia representando um sistema científico definido. Divergindo da estética. através de estudiosos. mas uma exigência histórica. muito trabalhado pelas vanguardas. Sua força reside no caráter objetivo da exigência histórica: não podemos iludi-la nem escapar à sua força". desenvolvimento de enredo. forma e tratamento formal. períodos e parágrafos. do estruturalismo. concretizada na obra de arte. embora construída com bases nos elementos internos.. por meio de combinações e permutas de palavras. apenas um conteúdo científico. Tudo isso sem esquecer os problemas de forma e conteúdo em Bakhtin. estrutura das frases. recomendando aos formalistas: Armai-vos de um dicionário e criareis.] Essa não é uma ordem de Estado. mecânica dos diálogos. também.. Porque há uma grande confusão entre pulsação narrativa. . desde que ela leve a uma visão do mundo. no caso de que tratamos – que submete ao seu desígnio artístico. ("A escola poética formalista e o marxismo". ao desígnio que consiste em dar acabamento à tensão ético- cognitiva do herói. do pós-estruturalismo. E ainda ironizava. materializada através do sentimento do humano e de uma permanente preocupação com o destino da sociedade. cenas e cenários. foco narrativo – interessam e preocupam na construção da pulsação narrativa. Exclusivamente.necessidade do conteúdo na obra de arte e advertia: "O proletariado deve encontrar na arte a expressão desse novo espírito que começa a surgir dentro de si e a que a arte deve ajudar a dar forma [. e não somente com o tratamento formal. Bakhtin assegura: O autor é orientado pelo conteúdo – pela tensão ético-cognitiva do herói em sua vida – ao qual ele dá forma e acabamento por meio de um material determinado – verbal. ou da teoria da recepção. as passadas e as futuras. Nem se considera.. ou seja. todas as obras poéticas do mundo. Interessa a pulsação narrativa como revelação do espírito criador. ou da nova crítica.. O SENTIMENTO DO HUMANO É claro que as qualidades intrínsecas do material literário – construção de personagens. em Teoria da literatura – Formalismo russo) A partir do formalismo vieram os estudos mais avançados da semiótica. Estudo. intuição. o autor iniciante deve se preocupar com a gênese da criação. Muitos exercícios. trabalho e estudo. muitos esboços. e tem uma pulsação ainda disforme. Devemos analisar a intimidade das obras. Quando o autor iniciante começa a manejar a caneta ou o computador. o vulto interior que vem emergindo. definindo aquilo que. pelo estudo – ainda que indisciplinado –. porque a visão do mundo já estará resolvida. segundo a ciência literária. porque é o espírito do verdadeiro artista. mas ela não é tampouco independente da natureza do material e dos procedimentos que este condiciona. é também consequência daquela tensão interior e exterior que resulta na elaboração da obra de arte. mesmo as influências mais fortes começam a desaparecer. será para sempre. ou o seu tema. (Estética da criação verbal) O PRINCÍPIO E O FIM: A PULSAÇÃO NARRATIVA A pulsação narrativa é o princípio e o fim de toda obra de arte. arma esboços e argumentos. e combinação de elementos interiores. Sendo assim. Estudo permanente. por incrível que pareça. deixando somente para depois – e para muito depois – a concretização de um sistema. aflorando na pele e no sangue. Esboços. escolhê- las. . interação de amavios entre artista e contemplador. mais tarde. de intensificarmos ainda mais as leituras. sem dúvida. antes de amadurecer a pulsação. Até porque: A forma não pode ser compreendida independentemente do conteúdo. Incontestavelmente. sobretudo. capazes de levá-lo à realização de uma obra. revelada pela voz narrativa e. técnica e pulsação narrativa. de acordo com a estética. E. com algum sofrimento. então. Compreendemos porque. Ou se resolvendo. O VULTO VEM EMERGINDO Chegou a hora. Fazer exercícios. atravessando. Este se alcançará com empenho. pela voz do personagem. sente-se movido pela observação. Perseverança e sinceridade. decidirmos pelos autores com quem sentimos maior familiaridade. Sem humildade e paixão tudo isso é impossível. a longa estrada do processo criador: impulso. para descobrir os seus temas. . . . A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM PODEMOS DIZER, PORTANTO, QUE O ROMANCE SE BASEIA, ANTES DE MAIS NADA, NUM CERTO TIPO DE RELAÇÃO ENTRE O SER VIVO E O SER FICTÍCIO, MANIFESTADA ATRAVÉS DA PERSONAGEM, QUE É A CONCRETIZAÇÃO DESTE. Antonio Candido GÊNESE A VERDADE, PORÉM, É QUE NINGUÉM SE LIVRA DE SUAS PRÓPRIAS LEMBRANÇAS, NEM DE VELHAS IDIOSSINCRASIAS, MALQUERENÇAS E DESEJOS RECALCADOS. E, QUANDO SE TRATA DUM ROMANCISTA, ESSAS IMPUREZAS MAIS TARDE OU MAIS CEDO ACABAM APARECENDO NA FACE OU NA ALMA DE SEUS PERSONAGENS. Erico Verissimo O PAPEL DO PERSONAGEM Precisamos compreender que o problema central da ficção é o personagem. Partindo do princípio de que toda ficção questiona o comportamento humano, devemos colocá-lo no centro da discussão. Até porque parece definitivo que não existe história sem personagem. Erico Verissimo diz com toda ênfase: importante é o personagem. Toda história tem personagem e todo personagem tem história. O romance é também, sem dúvida, uma experiência de linguagem escrita. Incontestável. Assim tornou-se natural que escritores façam as mais incríveis experiências porque o romance se realiza no texto. Óbvio? Não, nem sempre. Há os que acham que romance é para contar histórias. Simples e definitivo. APENAS UM ELEMENTO DA NARRATIVA Um choque entre duas correntes. A linhagem mais técnica considera que romance é campo de especulação linguística porque feito de palavras; de palavras, e de espaços em branco. Nesse caso, literatura é jogo de palavras, de movimentos interiores, de metáforas e de símbolos, e o personagem apenas um desses elementos. Sem esquecer as experiências que procuram eliminar o personagem – ou pelo menos torná-lo, como já dissemos, frio elemento do rigor linguístico, como aconteceu com Philippe Sollers, cujo livro, Drama, considera mais importante a linguagem. Ou as experiências de autores que nem sequer querem dar a ele um nome. Personagem inominado, por exemplo, significa apenas que não tem um nome convencional e não se trata de ausência. É claro que haveria toda uma bibliografia para explicar essas incursões literárias. Além do uso de pronomes – eu e tu, ele e ela – ou de rótulos profissionais – o escritor, o soldado, o advogado –, como tem acontecido em muitos casos. UM ROSTO NA SOMBRA O fundamental aqui, porém, é observar a nossa capacidade de criar personagens. Não há dúvida de que na maioria dos casos – não sempre, é claro, o personagem nasce sem nome – o inominado. Porque ainda estamos procurando a voz narrativa. Temos, pela frente, um rosto nas sombras. Quando damos um passo adiante, percebemos que ali há um personagem, e que ele precisa ter uma voz. Para que tenha uma voz, necessita de uma identidade: seu nome. E o nome gera assim uma identidade psicológica. Ainda quanto a experiências, destacamos, no Brasil, o caso de Osman Lins. O revolucionário Avalovara tem uma personagem sem nome, mas representada por "um círculo fechado, onde tudo começa e acaba, com seu alvo fincado no meio", conforme Antonio Candido, em O espiral e o quadrado. Também segundo ele, "trata-se da terceira mulher, a mais importante, representada por um signo meramente visual". Sem nome, é verdade, mas com uma marca. Apesar das experiências, Roland Barthes considera, em A aventura semiológica, que as tentativas experimentalistas realizadas até agora não foram para destruir o personagem, mas para despersonalizá-lo, o que "é completamente diferente". NASCIMENTO E AVENTURA O que nos interessa agora – pelo menos nesse instante – é o ponto de partida, o momento em que as palavras começam a se mover, a traçar o ainda confuso plano do texto. A gênese do personagem. Feita a investigação para a descoberta da voz narrativa, distribuídas as palavras na página – as frases, as orações, os períodos, os parágrafos – quem vai dar ordem ao disforme e ao caótico é o personagem. Um alerta de Tomachevski: O personagem tem a função de um fio condutor e permite que nos orientemos no acúmulo de motivos, de um meio auxiliar destinado a classificar e ordenar os motivos particulares [...] Caracterizar um personagem é um procedimento que o faz reconhecível. Mas no princípio, digamos, na tragédia grega, não havia personagens, conta Barthes: Não esqueçamos que a tragédia grega clássica ainda não conhecia senão o actante – um agente da ação – e não personagens. Lembra, ainda, que Aristóteles colocou a ação num plano superior ao personagem. Em tempo: não havia personagens com as qualidades e defeitos de criação como aprendemos a lidar. Com os elementos de que dispomos no momento. As ações são importantes na Poética, concordamos. Mas os personagens, e não meros agentes, também o são. As ações representam comportamentos. Não são elementos isolados. As apreciações de Barthes, porém, ajudam muito na compreensão da gênese do personagem. Do ponto de partida. O PONTO DE PARTIDA De que maneira nasce o personagem? A sua trajetória dentro da própria criação? O que significa? A contribuição para a história e para o desenvolvimento do enredo? De onde parte o autor? Em geral, nas primeiras palavras, na arrumação de uma possível frase, na tentativa de uma revelação, da faísca que gera o traço, apenas uma luz rápida: "ele" ou "ela". Decidimos sem maiores preocupações – eis o inominado: a moça. A moça que se apaixonou pelo moço louro. Dois personagens, nenhum nome. É assim. As frases vão se apresentando. E depois os movimentos iniciais levam ao nome. As características de cada um podem sugerir esse nome: mais romântico, menos romântico; mais concreto, menos concreto. Isso é importante. Acompanhamos a emoção das palavras, das frases, dos períodos, dos parágrafos. O LUGAR COMUM DO PERSONAGEM Estamos lembrando aquele caso do princípio deste livro, da descoberta da voz narrativa: "A moça se apaixonou pelo rapaz louro". Muito bem. Acontece que as palavras surgem assim e ficam martelando. Fazemos anotações. A primeira frase: "a moça se apaixonou pelo rapaz louro." A segunda: "e chorou". A terceira: "paixão romântica". Temos as características da personagem: é uma moça romântica que se apaixona e chora. Lugar comum? E daí? Nesse instante, todos os lugares comuns são bem vindos. Mais tarde decidiremos o que fazer com eles. Não devemos ficar rindo. Nem sofrendo. Ficção nasce de ideias comuns. Até de lugares comuns. Depois se agigantam. Já vimos como podemos trabalhar. Não se pode dar uma parada no processo criador para procurar um nome. Ele é muito importante, claro, depois. Agora é decisivo que as ideias, os temas, as imagens circulem dentro de nós. Umberto Eco confessa que pensou em escrever O nome da rosa depois que soube da notícia de um monge assassinado numa biblioteca. Aí temos a gênese do personagem. trabalhar no oposto: de uma virgem mística para uma mulher perversa. aliás. no entanto. Ali ele cuidava de inventá-la. uma mulher como se vêem muitas. Enquanto estava sendo criada. uma ideia nebulosa. No transporte inventivo tornou a história . em Umberto Eco uma notícia de jornal provocou a gênese de O nome da rosa. de conservar o ambiente. Mas a primeira ideia que tive foi de fazê-la uma virgem. Já não é mais um ser qualquer. Chegamos à revelação da primeira incógnita da história: o nome da personagem. Cuidou. afirma B. A modificação não podia ser mais inquietante. Os nomes também nascem ao acaso. sofreu alterações. na execução deste primeiro plano tais dificuldades que sequer ousei. tem uma personalidade. Só que para tomar a história mais compreensível e mais divertida. De modo que pudemos refazer a primeira frase: "Gabriela se apaixonou pelo moço louro". Gabriela também não é apenas um nome – tem um caráter. O ponto de partida de madame Bovary : uma virgem mística. Ele confessou em carta. inventei uma heroína mais humana. Deste primeiro plano. uma mulher de falsa poesia e de falsos sentimentos. UMA MOÇA ROMÂNTICA Flaubert fez uma verdadeira curva narrativa para criar Emma Bovary. O ponto de partida de Madame Bovary era uma virgem mística e terminou uma adúltera. À maneira que a escrita se desenvolve. no bom sentido da palavra. Precisou. no começo. no nosso caso é esta moça romântica. Depois procuramos ajustá-los à narrativa. E alterações profundas. contudo. A TRAJETÓRIA DA CRIAÇÃO Uma lição. a cor em suma. Apenas uma virgem. E encontramos: Gabriela. "A designação de um herói por um nome próprio é o elemento mais simples da característica". Tomachevski. mais tarde. vivendo no meio da província e envelhecendo na tristeza e chegando deste modo aos últimos estágios do misticismo e da paixão sonhada. no ensaio sob o título generalizado de "Temática" (em Formalistas russos). conservei o ambiente (paisagens e personagens negros). procuramos um nome. Eu entrevia. Convém ouvir Flaubert a respeito da gênese de Madame Bovary: Pois (ela) é de uma natureza algo perversa. E que nome teria? Era inominada. Descubra a incógnita. Shakespeare discordava quanto à importância do nome. E uma roupa. Nem do ridículo nem do grotesco. Podemos assegurar que os autores. o passo seguinte é dar-lhe um nome. Quando grafamos um nome. Dando-lhe um nome. Reforçando: no momento da criação não se pode ter medo. Está em Romeu e Julieta. decidimos que ela se chamaria Gabriela. Estão lembrados? Arbitrariamente. Ainda procuramos sua voz. a história se manifesta. mas uma história. Mas uma rosa cheira igual a rosa e não a jasmim. alteram muito. O que projeta o futuro. Numa linguagem matemática: o personagem é também uma incógnita que reclama revelação. com qualquer outro nome teria o mesmo perfume". Já dissemos: Uma história é como uma equação com várias incógnitas. O INOMINADO REPRESENTA UM GRUPO . E que dificuldades de primeiro plano teria enfrentado para mudar tanto? Talvez não tenha trabalhado bem – ou como gostaria – depois do primeiro impulso imperfeito. misteriosa. Sofre modificações. o personagem está apenas nascendo. e recorreu a "uma heroína mais humana". Naquele instante. Por que se manifesta? Porque um nome é também uma história – sutil. Nem procuram. em consequência da voz narrativa. De forma que se chamarmos José. reivindicamos toda uma identidade. Não inventam uma história. A roupa provoca visibilidade. José tem o caráter de José. não estaremos chamando João. Então. mesmo os consagrados. João tem o caráter de João. Alguns teóricos advertem para o fato de que devemos dar um passado ao personagem."mais compreensiva e mais divertida". Ainda que seja mudada depois. muitas vezes. O PERSONAGEM UMA INCÓGNITA É Já encontramos casos de alunos que dizem ter um personagem e não sabem o que fazer com ele. Escreveu: "O que é um nome? Aquilo que nós chamamos uma rosa. Ela está ali pedindo ajuda. No momento. Batizado de Tiu pelo homem. (Tremor de terra) É interessante observar. Todos os homens tristes e solitários. todos os homens solitários. com o copo de vinho na mão. Algo que exige e merece muita atenção. E ele é um homem solitário e. o personagem é chamado apenas "o homem". Às vezes uma experiência humana. Toda a força. o homem tinha visto a chuva começar. os filhos do casal Fabiano e sinhá Vitória também não têm nome: São apenas: o menino mais velho e o menino mais novo. Vilela trabalha o conto com muita habilidade. Em Vidas secas. esquecido da bebida e do cão. Pelo contrário. passa a incorporar uma identidade. E o soldado amarelo é apenas o soldado amarelo. Sozinhos. Todo o discurso e todas as ações. No começo: Da janela. alguns decidem definitivamente pelo inominado. olhando na direção da janela. todavia. porém. até se transformar num temporal. de Luiz Vilela. Em "Chuva". atende pelo nome de Baleia. Viu-a depois se engrossando. E é a ele que se dirige todo o discurso do homem. o homem. havia parado de falar. O menino mais velho: Deu-se aquilo porque sinhá Vitória não conversou um instante com o . OS SEM NOME DE VIDAS SECAS Esse conto lembra outro livro e outro autor muito importante –Graciliano Ramos. às vezes uma experiência linguística. A cachorra. que o personagem não tem nome mas outro personagem igualmente importante o tem: o cachorro. por exemplo. Fechou então a janela e foi sentar-se na cama. No fim: Olhando de novo pela janela. ao mesmo tempo. a ausência de um nome próprio significa o Ser ou é um silêncio provocativo? Não é falta de identidade. No meio: Durante algum tempo o homem ficou assim. de onde vinha o ruído da chuva. o personagem nesse caso representa todo um grupo. Assim como há autores que preferem nomes metafóricos e outros que optam por nomes pelo som e pela beleza. Isto é. Mas sossegou logo. O menino mais novo: Trepado na porteira do curral. estirava-se para ver a nuvem de poeira que toldava as imburanas. cheio de alegria e medo. ia tombar da porteira. A gênese e o desenvolvimento. qual o ponto de partida. contando etc. mas pensava pouco. apaga. em geral. Claro e objetivo. Com aquelas em quem confia. Ficou assim uma eternidade. É conforme. que era autoridade e mandava. Se muita gente não sabe mesmo como nasce um personagem. pediu informações. camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro? Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou. Elaboração. têm medo de perder o fio condutor – que na verdade é o personagem – e começam a fugir. Tinha muque e substância. Quer dizer. Acaba de vez com a ideia romântica de que um personagem – ou uma história – nasce da inspiração. e como o filho exigisse uma descrição. O soldado amarelo: Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano: — Como é. Sinhá Vitória. como se tivesse o diabo no corpo. Enfim. muitíssimo claro. O pequeno deu um grito. Levantou-se e caminhou atrás do amarelo. De repente a cilha rebentou e houve um desmoronamento. . encolheu os ombros. Discute. Anota. O autor discute consigo ou com outras pessoas. A discussão de Gabriel com os seus amigos coloca diante de nós todos as ideias que guardamos com receio. procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira: — Isto é. desejava pouco e obedecia.menino mais velho. a faísca que lhe dá início. Debate interno ou externo. Fabiano sempre havia obedecido. Literatura é raciocínio. até que a égua voltou e começou a pular furiosamente no pátio. Os iniciantes. Gabriel Garcia Márquez e seus amigos roteiristas oferecem pistas para a verdadeira gênese do personagem. Debate. DIVERGÊNCIAS E DEBATES Em Como contar um conto. distraída. Em quem tem confiança. Diverge. Estranhando a linguagem de sinhá Terta. Vamos e não vamos. aí temos um exemplo muito. aludiu vagamente a certo lugar ruim demais. o menino mais novo torcia as mãos suadas. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Pode avançar na história e tomar anotações e criar esboços. "O ladrão está caracterizado de um jeito que faz com que eu seja partidário até mesmo que ele use aquela pequena máscara que os ladrões das histórias de quadrinho usavam [. que "o personagem se apresenta como bonzinho desde o primeiro momento". O importante é anotar – começa a gênese física do personagem. Riscamos. um prestidigitador" e concorda com o tom de comédia. temem. Reinaldo volta a sugerir. a partir de um conto – ou um argumento – de Consuelo Garrido. Não paramos. À maneira que a história se desenvolve os dados vão se revelando. Riscamos.. em caracterização absoluta. há muitos anos. Pelo exercício. É ainda Gabriel Garcia Márquez quem adverte que não podemos empacar na caracterização do personagem. Em princípio. Para criar os personagens. Gabriel reforça a ideia de "um mágico. e depois ele poderia ia amaciando". Ele disse que o ponto de partida da história foi a lembrança de um cachorro sacrificado na Maniçoba. A FAMÍLIA NO PONTO DE PARTIDA Graciliano Ramos. A inspiração é substituída pelo trabalho. explicou o nascimento dos personagens centrais de Vidas secas.. procurar todos os seus caracteres físicos e psicológicos. a gênese do personagem não implica. Isso é obra de criador. necessariamente. É briga para depois. respondendo a uma pergunta do jornalista João Condé. reagem. Se esse dado é importante ou não para o desenvolvimento da história. renovamos. transformou o "velho Pedro Ferro. "na primeira sequência veríamos o personagem como uma fera. adiante. Trabalho. No entanto. diz Gabriel. Mesmo daquele que ainda não tem experiência alguma.Temem.]". . O iniciante não pode ficar aí parado. Adiante. em Cuba. interior de Pernambuco. Não devemos. está sendo estudada a história de uma mulher – e sua filha – que encontra um ladrão dentro de casa. Esse tipo de debate está – ou deve estar – sempre no íntimo do criador. não interessa. Vamos inventá-lo. Aparecem sugestões. nessa hora. Reinaldo apresenta o tom: Essa história tem muita coisa de comédia. então. adiante. meu avô. No processo criador da oficina de roteiros cinematográficos. Muito trabalho. não de teórico. Ilustrá-las. mesmo em se tratando de um problema do grande escritor. Estava escrevendo Um lugar ao sol quando precisou de um médico para dar uma injeção em Orozimbo. podem ser surpreendidas. são os personagens ilustrativos que são chamados para compor situações. namoros de caboclos". apesar de todo o conhecimento prévio que tem de alguns deles. reduziram-se a dois meninos”. Assim como há ausência de tabaréus bem falantes e de catástrofes naturais: queimadas. demonstra não acreditar em personagens planejados. Até porque não existem verdades absolutas no campo da arte. o dr. durante o processo criador. O próprio Flaubert confessou as alterações em Madame Bovary. palavra a palavra. Ocorre que . O humano está em constante ebulição. minha avó tomou a figura de sinhá Vitória. ou sequer secundário. Há autores que fazem alterações fundamentais de uma edição para outra. poentes vermelhos. que tinha um câncer no estômago. claramente que as pessoas viviam "Sem amor. Escreveu poucas paisagens e não há diálogos. Seixas não só aplicou a injeção como participou de outros romances e deu trabalho para desaparecer. Acrescentam. pelo que nos dizem os amigos. coadjuvante. com desenhos. Nada excepcional. O processo criador não é inalterado. Além do que."preocupadas com o estômago. muitas alterações podem – e devem – ser feitas. No primeiro artigo. Como fazer se o personagem não estava programado? Isso é possível? Sim. Seixas. meus tios pequenos. Nada de especial. perfis e anotações. Pensou na família porque a sua gente vivia numa casa velha da fazenda e porque as personagens adultas. nem cenas eróticas. não têm tempo de abraçar-se".no vaqueiro Fabiano. Ao invés de um personagem ilustrativo. Suprimem personagens. Diz. Até as obras planejadas. NASCE UM PERSONAGEM Em Galeria fosca. O autor iniciante não tem com que se preocupar. machos e fêmeas. Não esqueceu de citar Baleia: "Até a cachorra é uma criatura decente. Erico Veríssimo escreveu dois artigos reveladores: "Como nasce um personagem" e "Sete Mêis". E. cheias. O caso de Erico é muito interessante. nem mesmo na matemática. As sugestões vão aparecendo às vezes com grande lentidão. Cita o caso do dr. Como isso é possível? Foi inspiração? Nada disso. O aperfeiçoamento de uma obra demora muito. porque na vizinha não existem galãs caninos". Talvez "um homenzinho barbudo. No primeiro caso. a honestidade me obriga a dizer que não dei a menor importância a essa entrada.ele representava algo de muito profundo no espírito do criador Erico que veio à tona no instante em que o escritor precisou invocá-lo. Há quem confunda inconsciente com inspiração.] Devia eu trazê-lo para o romance assim como ele se me oferecia? Sempre resisti à tentação de fotografar tipos da vida real [. No meu cérebro começou a mover-se um homenzinho barbudo... Quase todos os personagens são inominados na hora em que nascem. O médico entrou. Eu havia chamado o doutor – que até então era para mim um desconhecido. naturalmente a de um médico que me impressionara quando eu era menino. Não é verdade. Um inominado.se Barbosa. Seixas fez a sua entrada no romance e (perdoem-me a modéstia) – na vida.]" E sem um nome.. Só muito mais tarde é que descobri que havia na vida real (traições do subconsciente) outro médico barbudo chamado Seixas. AGORA É A VEZ DO ACASO Embora a inspiração não exista. Recorreu à imaginação. Como foi possível dar- lhe um nome? É assim o dr. Aqui está o aspecto principal da criação do personagem. Podia chamar. ranzinza. o autor precisa de um personagem ilustrativo ou secundário e recorre à imaginação. Erico Verissimo conta com detalhes como nasceram os personagens dr. agressivo e ao mesmo tempo bondoso e terno [. mas não sempre. doutor". ele precisava de um médico para aplicar a injeção no doente. Inconsciente é o acúmulo de observação e experiência. A .. Inominado aí.. Médico? A palavra imediatamente me trouxe ao espírito uma imagem. Puro acaso – pensei no princípio. Seixas e Sete Mêis.] Alguém disse: "Entre. que é socorrida pelo inconsciente. Inspiração seria algo aleatório e irresponsável. O INCONSCIENTE SOCORRE O AUTOR Nos dois artigos de Galeria fosca. cujo nome eu não sabia e cujas feições nunca vira". Um simples extra. cujo nome eu não sabia e cujas feições nunca vira – apenas para vir dar uma injeção de morfina no pobre Orozimbo e retirar-se da cena talvez para sempre. não se pode deixar de descartar – insistimos – a participação do inconsciente e do acaso na criação literária. "até então era para mim um desconhecido. De repente.. Sem fotografar tipos reais.. ou Cunha ou Teixeira.. agressivo e ao mesmo tempo bondoso e terno [. e não sabem colocá-los em ação. que Sete Mêis entrou em meu romance. Seixas. Sem dúvida: observação e muito trabalho. Até que um personagem tome forma. precisamos escrever milhares de palavras. — Por quê? — Porque minha mãe diz que eu nasci fora do tempo. os artistas. somos apenas imitadores. mas também o senhor Mauriac não o é”. para criar Sete Mêis. Isso mesmo: muito trabalho. [. nos estádios. Mas me chamam de "Sete Mêis". Deus é criador e o artista também.. enquanto comprava um jornal ao garoto. Deus está acima de tudo.. — Como é teu nome? — perguntei. Para ele. "Eis um tipo representativo". O ARTISTA NÃO CRIA NADA Isso tudo nos leva a François Mauriac. Erico pediu socorro ao inconsciente e. porque existem nos bares. assim. até mesmo para aquelas pessoas que se dizem incapazes de inventar personagens. com o seu exacerbado catolicismo. Quando precisou do dr.questão. pois. No entanto. Todos nós outros. nas famílias. para quem "Deus não é romancista. nas calçadas. Não são competidores. — Milton. Aqui está a chave. mas tratá-los como elementos técnicos. . Matéria informe que exige elaboração. só quem cria é Deus. ainda. Teremos que recorrer. Foi rebatido por Sartre. centenas de páginas. freguês! "ótima sugestão" refleti.] Foi assim. quando numa tarde irrompeu em meu escritório um vendedor de jornais a gritar: — Olha a A folha. não é descartar o inconsciente e o acaso. Ou de não saber o que fazer com eles. Estava eu em 1942 a fazer planos para O resto é silêncio e a imaginar tipos representativos das várias camadas de nossa sociedade. às confissões do autor gaúcho. Desde a infância. o autor de Thérèse Desqueyroux tem razão num ponto: o artista cria de acordo com sua capacidade de observação. São duas formas distintas que servem como exemplo. contou com o acaso. sempre. Sempre tens de escutar o que conta a gente grande" (O romancista e suas personagens) NÃO APENAS UM NOME. já não está apenas subordinada à ação. Osman . havia uma criança espiã. encarnou o Ser. encarnou imediatamente uma essência psicológica. de um agente de uma ação.. e. Recorremos. porém. esboços. nesses rincões de província por onde ninguém passa e onde parece que nada se passa. mesmo quando nada fizesse. mesmo antes de agir. Por fim.desde quando abre os olhos para o mundo. mais uma vez: Mais tarde. ainda. Sem parar. a vida de todo dia em sua complexidade obscura. nessas regiões perdidas. na qualidade de Gabriela. alguém que se destaca com traços visíveis. Em primeiro lugar o inominado. retinha. registrava.. São anotações. uma pessoa. Muito bem. sem estancar. Ir adiante. chama-se Gabriela – a sua plena identidade – e. tornou-se um indivíduo. pedindo complemento. ganhou uma consistência psicológica. aquele que vai surgindo com a ajuda da memória e da observação. Uma criança parecida às outras e que não despertava suspeitas. não é uma tarefa simples. Esse é o processo de criação e que sempre exigiu muita reflexão dos teóricos. ganha uma autonomia psicológica. A moça romântica que se apaixonou pelo rapaz louro não é apenas uma moça romântica. Nesses ambientes sombrios em que escoou sua infância. em resumo. em segundo lugar. bem entendido. que até então não passava de um nome. O NOME E A ESTRUTURA PSICOLÓGICA Dar nomes aos personagens. que captava. e que tem um nome. sem o saber. um ser plenamente constituído. nessas famílias ciosamente fechadas aos estranhos. Talvez lhe dissessem com frequência: "Vá logo brincar com os outros! Sempre agarrado à barra da saia. sem pausar. agora percebemos porque a incógnita foi plenamente revelada. a Barthes. o personagem deixou de estar subordinado à ação. MAS UM SER A trajetória do personagem vai se estruturando lentamente. claros. um traidor inconsciente de sua traição. o personagem. é bom começar por aqui. investigando a estrutura psicológica do personagem e a estrutura da história. até encontrar o nome verdadeiro. pode fazer o que bem entende. Talvez. sendo casada. o arbítrio talvez seja necessário. Ela é força. Claro que teremos as oscilações psicológicas.Lins considera que "é na verdade tão embaraço como criar o próprio personagem". conforme os estudiosos de nomes próprios. teria o cuidado de evitar. Já falamos em respeitar a voz narrativa. é casada. portanto. É correto. A moça romântica chama-se Gabriela. Como é possível chegar a essa conclusão? Pelo exame do nome. a "força de Deus". mais criteriosa. Daí procura viajar e tenta o suicídio. um drama – tentou o suicídio. para efeito de orientação. e portanto não poderia se apaixonar pelo rapaz louro. para respeitar a voz do personagem temos algumas exigências. . a verdadeira voz narrativa do personagem. No começo. uma circunstância – a moça romântica que se apaixonou. Começamos a fazer esboços – um pouco ali. mesmo através de manchetes de jornais. Todos esses elementos devem auxiliar o criador. O nome do personagem pode orientar o enredo. Insistimos: arbitrariamente o autor pode fazer o que quiser. que Gabriela é aquela mesma mulher que tentou o suicídio no mar. um problema – é casada. um verdadeiro exame do nome. Temos. Como fizemos com Gabriela – arbitrariamente. um nome – ela se chama Gabriela. E por que não? Os esboços se cruzam. com certeza. O nome Gabriela é bom para a personagem? O autor escolhe. É para isso que eles existem. mas. Nem sequer se apaixonaria pelo rapaz louro porque. Gabriela resolveria o nosso conflito de criadores? Ali era necessário. O NOME COMO METÁFORA Feita a análise mais cuidadosa. uma resolução – não morreu. No entanto. O feminino Gabriela vem do masculino Gabriel. Reunimos os dois esboços. Ele precisa dispor de todos os detalhes para inventar. Gabriela não tentaria o suicídio. Pelo menos até onde chegamos. Percebemos. Observamos que há intersecção entre os dois esboços e que ameaçam se transformar numa história. Conhece a determinação. Isso pode acontecer com frequência entre os iniciantes. como já foi dito. Os mínimos detalhes. e é justo. também reconhecemos. O autor tem liberdade para nomeá-lo. Mas a história está se desenvolvendo. se quer assim. É aí que entra. um pouco acolá. As frases assumem novas formas: "Estela se apaixonou pelo rapaz louro. ou até mesmo Julieta. feito já aconselhamos: a sombra de um clássico pode diminuir os méritos do criador. optar por outro nome? E que nome? Estela." Sinônimos: "Astério. Estela seria uma metáfora criada com força de mistério e orientaria o trabalho do iniciante. navio é uma embarcação que viaja sobre o mar. Gabriela é força. enfim – metáfora em ação. O personagem é símbolo. Podemos. Isso não cabe para as adaptações. a não ser que façamos outra metáfora. Chorou. o deserto é o ermo ou "mar" de areia. abrindo clareiras na narrativa. o camelo cruza o deserto como o navio cruza o mar (símile componente da metáfora). A investigação do personagem é básica através do seu nome. de Tristão e Isolda. Os seus termos são insubstituíveis. Surge. "estrela do mar. Claro que o autor pode optar por nomes clássicos e facilmente visíveis: Heloísa. É comum o uso de combinações: Stella Maris. A associação estrela e mar justificaria a tentativa de suicídio nas águas marítimas. e força que tenta o suicídio? Aí está o seu oposto. força gera força. Paciência. . uma linguagem romântica. e fraqueza. No seu sentido literal. de Abelardo e Heloísa. Isolda. então. a estrela guia. a voz experiente de Autran Dourado: Vamos examinar um exemplo clássico de metáfora. Podem é ser desdobrados e analisados: o camelo (A) está para o deserto (B) como o navio (C) está para o mar (D). Insistimos no problema das oscilações psicológicas e narrativas. O nome agora concede uma voz à personagem. Paixão romântica. nesse caso. fica bem clara a incoerência. (Poética de romance . Estrela". fraqueza. No entanto. O nome da personagem Doralda. como é da natureza da metáfora. Por quê? Do latim Stella. construímos uma metáfora. de Romeu e Julieta." E mais: estrela é associado a devaneios na poesia. Quando dizemos que o camelo é o navio do deserto. Pelo que se observou na origem do nome – Gabriel –. não forma uma metáfora perfeita. De maneira alguma. então. Para ela.Matéria de carpintaria) Examinando assim. "Estrela". Ester. Há autores que preferem criar nomes. Devaneio: romântica.Mesmo aquele que possa parecer insignificante. Para o texto. é imagem em movimento. Força não gera fraqueza. Talvez servisse à ironia.] Você podia cantar. parece que dá um prazo de perfume [. E Emma? Existia na França uma ave mais desengonçada. Não se ofereça a uma interpretação rápida. Um equívoco muito grande.. andorinha esvoaçando em imagens pelo texto). Doralda pássaro que se abre em voo e dor (rola. A questão é descobrir: ele é realmente um sedutor ou Estela se deixa seduzir por causa do romantismo? A narrativa vai se tornando cada vez mais visível. de fácil assimilação. E que desconfie. ("O recado do nome" – Leitura de Guimarães Rosa à luz do nome dos personagens) O PERSONAGEM EM OPOSIÇÃO Como seria o nome do rapaz louro? Imediatamente. o ator. nos vem o nome do galã universal: Rodolfo Valentim. sempre quase a cair? Flaubert conhecia do traçado. o marido cego e lerdo. Estaríamos correndo o risco da figura clássica e mitológica que. Desconfia e entra no abismo.. a girar e girar ("já aos tontos me tonteio". codorniz... Roralda que dá. que ali há armadilhas para ele. Doralda durável. no meio das meninas [.. em suspensão ou em sedimentação por todo o texto. A Teoria da Recepção ajuda a explicar. é um exemplo de criação magnífica: Doralda adorada.. Entra aqui o . que os semas se vão misturando e decantando. por exemplo? Bovary é de Charles.] É nessa Doralda/roda de sensações. É fundamental – a não ser em circunstâncias especiais – que o personagem não se exponha muito. mesmo inconscientemente. Doralda de odor e sensualismo: Até o nome de Doralda. de Guimarães Rosa. sem saber como andar.da novela Dão-Lalalão. Sobretudo. É básico que o leitor seja sempre seduzido. você podia dançar.] Roda deflores – de flor de toda cor [. Sem esquecer que Rodolfo é um dos personagens que seduz madame Bovary – viria de bovino. diria Soropita). Rodolfo deixaria a metáfora muito exposta. pelo óbvio. torna-a menor. ao invés de enriquecer a metáfora. Afirmativa: Estela se apaixonou pelo rapaz louro. que. mesmo no momento da busca. de outro. Ele é Dom Casmurro – o título do livro e o apelido do personagem. A CLAREZA DIDÁTICA DE MACHADO Dom Casmurro. é também uma metáfora. que eu conheço de vista e de chapéu. O próximo passo não será. apresenta Bentinho – o Dom Casmurro – explicando o apelido. pode deixar o nome circulando no sangue. não é aconselhável a pressa. Como Estela já está definida. o aparente homem calado e sisudo. Aquele outro personagem que no choque narrativo possibilita o desenvolvimento do enredo pela ação ou pelo conflito. o romance começa por oferecer uma lição da gênese do personagem. porém. porém. O autor iniciante. sentou-se ao pé de mim. Além de todos os méritos de construção. Sucedeu. Naquele instante. sim. Na verdade. de Machado de Assis. o nome – mas a tentativa de fechar os furos do bordado. encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro. O nome pode esperar. De início. Cumprimentou-me.personagem em oposição. sem pressa. é de uma notável clareza didática no achado de nomes. Pode-se justificar que o nome de Dom Casmurro não é Dom Casmurro. anotando. e acabou recitando-me versos. o irônico e o brincalhão. através da ação. A viagem era curta e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. ainda. o apelido é outra. O texto vai ficando – pela dúvida – mais oscilante – o que não quer dizer sem objetividade. E é muito eloquente. anotando. Na verdade. enquanto procura conhecer a intimidade do rapaz louro. vindo da cidade para o Engenho Novo. A objetividade existe. não se refere a Bentinho. e passou por todo aquele processo que acabamos dever. Deixaremos o rapaz louro procurando sua identidade e nós também. ele seduziu ou foi seduzido? Há alguma mágica romântica nesse possível relacionamento? Também ele é um romântico? Um ingênuo? Anotando. é forte. Veremos: Uma noite destas. falou da lua e dos ministros. Há uma flutuação de termos. Até porque a primeira frase. como eu estava . De um lado. O nome é uma coisa. alguns nem tanto. Nem por isso me zanguei. Um nome tão poderoso . se não tiver outro daqui até o fim do livro. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para minha narração. — São muito bonitos. para atribuir-me fumos de fidalgo. disse eu acordando. deram curso à alcunha. Contei a anedota aos amigos da cidade. é que passou a ser a grande metáfora de Bentinho. e vai lá passar uns quinze dias comigo" – "Meu caro Dom Casmurro. chamam-me assim em bilhetes: "Dom Casmurro. do ciúme. Dom Casmurro não é Dom Casmurro – Dom Casmurro é Bentinho. Há livros que apenas terão isso dos seus autores. e eles. Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso. também da solidão. Os vizinhos. estava amuado. e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. que o livro tem este título porque precisou recorrer à alcunha que lhe dera o jovem poeta e que os outros passaram a usá-la por brincadeira. Casmurro não está aqui no sentido que eles dão. mas não passou do gesto. já agora. que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados. — Continue. O caráter permanece. poderá cuidar que a obra é sua. a casa é a mesma da Renânia. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. na visão do escritor. E é disso que Machado quer falar. mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. só não lhe dou moça". domingo vou jantar com você" – "Vou para Teresópolis. dou-lhe chá. (Dom Casmurro) UM NOME TÃO FORTE Q UANTO O AUTOR Machado explica. dou-lhe camarote. fechei os olhos três ou quatro vezes. em seguida. mesmo assim. O nome flutua. dou-lhe cama. E. vítima da inquietação. não cuide que o dispenso do teatro amanhã. porque para os amigos – e para o próprio Dom Casmurro – é apenas ironia. venha e dormirá aqui na cidade. — Já acabei. sendo título seu. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios. contudo. vai este mesmo. que afinal pegou. Enfim. E com pequeno esforço.cansado. Dom Casmurro – um nome marcado pela dor. por graça. Dom veio por ironia. Dom Casmurro. tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. Um Bentinho transformado. E. vê se deixas essa caverna do Engenho Novo. Não consultes dicionários. murmurou ele. O que se destaca. da angústia e da desconfiança. é melhor tomar cuidado. A letra leva ao seu próprio nome. "Peirce vê o nome próprio como índice. Iracema. E ainda mais: "Bertrand Russel vê no nome o modelo lógico do pronome demonstrativo. achava que o nome só teve brilho e significação na burguesia. são cada vez maiores. Ou Pedro. no entanto. mas apenas mostrar. de Guimarães Rosa. no estudo já citado. de Jorge Amado. O leitor recebe uma carga positiva. causa enlevação.. Sem esquecer que é Capitulina. Adiante veremos a apresentação de Bentinho. mas o problema dos nomes tem gerado muita discussão. mas não desvenda o enigma de Capitu. o Grande. Mas pode haver um deslize aí. em Ciúme. não raras vezes. Para Ana Maria Machado. Dez a zero. Tinha que ser misteriosa e. Outro belo nome. Cajango. um enigma. já revelamos. Capitu é já um mistério em si mesma. conclui que ele é desprovido de significado". não geraria a empatia. Não tem nem graça. Mas Capitu é forte demais. Robbe- Grillet. de Joy ce. Osman Lins. muita discórdia. de Cervantes. Ou quanto Madame Bovary. uma graça. muito debate. o teórico do novo romance francês. fatal. O próprio Dom Casmurro derrota Bentinho. que aparece em várias obras. o que termina por se considerar que toda a sua obra gira em torno dele mesmo. de José de Alencar. Encontrar um nome correto e justo para o personagem deve se tornar uma obsessão. . Dom Casmurro explica o título do livro. Belo e definitivo. Sem muita explicação. substitui o próprio escritor. João Grilo. Kafka começou a grafar um dos seus personagens mais intrigantes de K. sem dúvida. Um nome que todo escritor procura. indicar”. Tão decisivo quanto o Ulisses. de Flaubert. John Stuart Mill. Gabriela. A DISCORDÂNCIA DOS NOMES Pode ser curioso. de Tolstoi. de Adonias Filho. cuja função não seria significar. Todo esse debate precisa levar em conta a capacidade criadora e a significação literária. não valia mais nada. As discordâncias. de Ariano Suassuna. o personagem impressiona somente pelo nome. Às vezes. de alguma forma. negando no nome próprio a possibilidade de existência de conotação. Um nome tão impressionante que. E usava também letras – A. Tão definitivo como o Quixote. Se Capitu fosse apenas Capitulina. chegou a trabalhar com sinais gráficos.que está apenas no começo do livro. Riobaldo. esta serpente celeste e nojenta e vulgar de sete cores cruzando com o carneiro celeste.. aliás. sobretudo em conexão com o caráter do personagem".. vária. amando a calma... ainda não penetrara completamente no negro bosque vicejoso da noite. Assim mesmo: Leonardo reticências..] via [. Para ele. condicional e pretérito – "vendo"... "veria" e "via" – para que as emoções e os temperamentos fiquem bem claros. vendo Leonardo via esta mulher Alice. e diversa. a que mergulha em busca de aventura atravessando o arco-íris. em algumas ocasiões.. esta meretriz. o leão – de leo – e o guerreiro. esta serpente celeste de sete cores cruzando com o carneiro celeste alado de quatro cores.... mas lhes dar uma significação no texto. Ao lado da pontuação.... para que as dúvidas se revelem.] quem [. e Leonardo. esta puta donzela. Uma tarântula?..... de maneira que o leitor pudesse descobrir as suas emoções tão logo aparecesse a pontuação. há uso dos verbos – gerúndio. esta mulher. o que.. várias e múltipla.. gemidos de agonia e gozo. Alice interrogação.. apontando para o marido.] esta mulher e senhora? [.. esta puta. levando em conta o que podiam sugerir tanto aos olhos como aos ouvidos..] quem [.. E não havia o interesse.] viu vendo Leonardo veria [.. incompreendido. para que as oscilações de caráter se manifestem. procurei identificar os personagens – Leonardo e Alice – através da pontuação: Leonardo com reticências e Alice com a interrogação.] esta donzela? [.] viu esta puta senhora Alice ruiva. dança de pernas e braços. Não precisava de metáforas ou significados ocultos. de substituir os nomes. A informação é do crítico pernambucano Álvaro Lins. Queria a beleza. desejando a morte...] vendo Leonardo veria [.. E o significado metafórico? Alice.. o ponto de partida para a criação do personagem era o nome. o autor de Em busca do tempo perdido formava os nomes com "requintes de cuidado..] Leonardo vendo [. Numa mesma frase mudando a perspectiva do personagem.. Alice?. A PONTUAÇÃO REVELA OS PERSONAGENS Em Ao redor do escorpião. na ponte flutuante do céu.... a mão amando o revólver.] via vendo [. amando a arma. A ESCOLHA PELO GOSTO E PELA VOLÚPIA Em Proust..... Daí o título aparentemente esquisito e. . vendo.] vendo veria [. . vendo Leonardo via. gosto e até volúpia.. a leviana mulher sentada no arco-íris de sete céus [.. é óbvio.. A voz pertence aos dois: Leonardo.] viu [. quem?.. Uma variação. Solange. Porque se empenhava tanto pelos belos nomes. em ocasiões. Monsieur de Montfort. chamavam-se antes Maria. poderoso". Charlus foi encontrado uma vez na leitura de Saint-Simon. (A técnica do romance em Marcel Proust) Percebemos. e ainda outra: " Valério. Agradam. desagradam. saudável. Norpois. escolhendo sempre. modificava-os. ora para buscar uma identificação perfeita. também. resultou de uma sugestão wagneriana. só para efeito de construção do texto? Aí um problema sério: o nome se aproxima demais do caráter do personagem e interfere diretamente na criação. Valeriano. mas uma boa fuga. Septime. Rodolfo não é Valentim – destacado pode ter outro caráter. Jupien. É assim? Não custa investigar. Anna. do modelo. . Prejudica seu desenvolvimento. O narrador sabe que tem no texto um personagem valente. Ele se chamaria mesmo Rodolfo. do latim: "Forte. Serve de âncora. Sobretudo no caso do escritor francês. Estela se apaixonou por Valentim. De proteção. se será lícito a um escritor utilizar-se dele. Fica bem? Entregar de cara assim o nome dos personagens? Mas não é para revelar agora. Ora para fugir da influência viva. com a preferência de Valetim. Ou seria Valentim? Uma fuga. As "jeunes filles en fleurs". do latim: Cheio de saúde". que os nomes sofrem mudanças durante todo o processo de criação. por exemplo. que se inspirava em modelos reais para escrever. "Valentim (no). Odete de Crécy. as alterações são muitas. Charlus fora Marques de Quercy. E até que a obra seja publicada. Carmen. as modificações. Montargis. O autor iniciante sabe que o nome é Valentim. experimentando até à versão final. Não são simples de ser definidos. do latim: Valoroso. Swann. Quando se muda um caráter por conta de outro. pois escreve ao seu amigo Georges de Lauris para pedir-lhe informações acerca do nome de Guermantes: se o título está extinto. em outras. Em 1909 ele devia estar já lançado (escrevendo) no "côté de Guermantes". Saint-Loup. porém. depois Fleurus. em vez de Albertine e Andrée. Vai aguardá-lo para somente fazer a revelação mais tarde. substituía-os. (Dicionário de nomes próprios) Por enquanto. é inevitável a alteração. ajustando as opções. forte". Podemos tornar a pensar no nome do nosso personagem. ficamos com todos esses nomes. Continuamos. Borniche. tendo em pé à direita Ivan Ivanovitch. Arina Semenovna Belobriuchkova. Mulher de virtudes raras. "Não – pensou a falecida –. Dula e Varakhissi. que o filho também se chame Akaki". Para satisfazê-la. Sugeriram à genitora dar à criança qualquer um dos três nomes: Mokkia. Foi assim que tudo aconteceu. na segunda página da novela. mas Trifil e Varakhissi!" "Bem. de "O capote". seu patronímio. não. mandou batizá-lo como era devido. A falecida mãe. ("O capote" e outras novelas de Gógol) Assim testemunhamos a verdadeira gênese do personagem. imaginem o personagem. chefe da repartição no senado. nome de um mártir. sua chama. nunca ouvi nomes tão esquisitos. O próprio autor explica essa gênese esquisita. Já que é assim. e isso aconteceu justamente assim. O pai se chamava Akaki. com nome e destino. e a madrinha. é muito curioso. alma bondosa. esses nomes. Nasceu Akaki Akakievich no anoitecer de um 23 de março. este chorou e fez tamanha careta. Foi assim que se originou o nome de Akaki Akakievich. a cama em frente à porta. mulher de um funcionário público. "Só sendo castigo – articulou a mãe. pelo que vejo. o melhor mesmo é dar a ele o nome do pai. Akakievich. mas pode estar certo de que não houve qualquer rebuscamento: as circunstâncias naturais é que lhe tornaram simplesmente impossível outro nome. como pressentindo que viria a ser conselheiro titular. A FAMÍLIA DISCUTE O NOME O caso da Akaki Akakievich. o padrinho. Quem sabe não são esses os mesmos problemas que enfrentamos na hora da decisão? "Gógol" – assegura B. Batizaram o menino. Eikhenbaum – "atribuía uma enorme importância aos nomes de seus personagens". Se é difícil localizar o exato momento em que nasceu uma história. seu ponto de partida. Um dos raros – ou raríssimos – momentos em que o personagem nasce de uma discussão familiar. Tem fundamento: Seu nome era Akaki. uma beleza de homem. Varadat ou Varuk ainda vá lá. abriram o calendário em outro lugar e novamente saíram três nomes: Trifil. Talvez o leitor ache esse prenome meio esquisito e rebuscado. Sossia ou Khozdazat. se não me falha a memória. O nome foi ampla e . ele não tem sorte mesmo. E contamos toda a história para que o leitor possa ver por si mesmo que tudo aconteceu por absoluta necessidade e que outro nome seria inteiramente impossível. esposa de um oficial-de-quarteirão. Estava ainda ao leito. com direito a padrinhos e tudo. colocando- nos no centro do debate. aplicando a técnica da biografia. Neuvazhaj – não respeita. naquelas circunstâncias. com a inserção de um narrador. com a sua possível gagueira. Belobrjushkva – barriga branca. Já havia definido Leverkühn. mas isso se tornou impossível. ANSELM. e é dado até o dia exato e o mês em que nasceu. ele revelou que podia alterar o nome de Akaki. os apelidos. lia com perfeição as suas histórias em público. Nos rascunhos. Aí viu o nome do general Betrichtchev. anotou nos diários. Precisava definir o nome próprio. Começou escrever o romance na manhã de 23 de março de 1943. conforme revelou depois. Fundamental. e a escolha é da mãe. que lhe inspirou a silhueta e os bigodes brancos. quando já tomara decisões sobre nomes e planos narrativos. com frequência. que fazia rir com as suas consonâncias extravagantes. há nomes bem esquisitos como: Jaichnica – omelete. A gênese do personagem ocupava um bom espaço nas preocupações de Thomas Mann. nomes de santos. ANDREA OU ADRIAN Thomas Mann mostra também as inevitáveis preocupações com esses nomes exigentes. Na galeria de Gógol. Andrea ou Adrian. sem explicar as razões. ALITERAÇÕES. Recorre-se a folhinhas. da acústica e das aliterações. optou por Adrian Leverkühn. Há quem sugira – o que não parece corresponder à verdade – que o nome expressa o grau de timidez do personagem. Na França. Kory to – gamela.democraticamente debatido. Ele tinha o cuidado de escrever. Nos anúncios. Não devemos esquecer que ele aparece. Admirava os substantivos. Disputava popularidade com Ostrovski e Pisemski. por exemplo. E até mesmo Rabelais. para ele. e Bashmak – sapato. ACÚSTICAS Gógol tinha por hábito procurar o nome de personagens em todos os lugares. os nomes. Porque este é um grave problema do criador. ASSONÂNCIAS. Fazia rir as pessoas. não sem antes um esforço enorme. na maioria das antologias sobre o riso. Gostava no efeito fônico. Queria chamá-lo de Anselm. Molière divertia o público também com a inquietação dos nome dos personagens. Finalmente. Isso é o que precisa acontecer com todos nós. fazia anotações em cadernos variados. Todos nós . evitando as repetições constantes da letra "k". Estava em dúvida quanto ao personagem de Doutor Fausto. das assonâncias. Ou nas caixas dos correios. VIU. inquirindo. SENTIU OU APRENDEU. que vai sendo descoberto e trabalhado. Ernest Hemingway O CONHECIMENTO SECRETO O autor iniciante está compreendendo. perfeitamente. todavia. sem conhecer repouso. aos próprios personagens. sempre que possível. Além do nome. sem conhecer tranquilidade. A criação será sempre muito exigente. estrutura psicológica e oposições –. necessita ter maiores informações.devemos estar atentos para esse problema técnico que vai nos ocupar durante muito tempo. do seu mistério. CONHECIMENTO A VERDADEIRA FICÇÃO DEVE PROVIR DE TUDO O QUE A GENTE JÁ CONHECEU. Essas informações não precisam – e talvez nem devam – chegar ao leitor. mantendo-as sempre diante do seu olhar. Aos outros personagens. investigando. de inominado para o nome. Perguntando. Observemos a quantidade – e a qualidade – de informações que Eugene . e deve conhecer agora a intimidade daquele. que as conheça. detalhes. anotações. É forçoso. daqueles e daquelas com as quais vai trabalhar. Sem conhecer pausa. daquela. do seu pulso. Fazem parte do seu segredo. a gênese do personagem – de agente da ação para fio condutor a narrador com estilo. de forma que possa passá-las. Sua qualidade mais sedutora – e que nunca perdeu – é o simples e espontâneo encanto juvenil de uma menina de colégio. de sobrancelhas negras e pestanas frisadas. das oscilações – e repassa ao público de acordo com a orientação cênica. Foram lindas mãos de longos dedos finos. Veste-se com simplicidade. O cuidado do autor é apaixonante. ainda juvenil. seus olhos. uma inata inocência alheia à vida mundana. sobretudo porque se nota que Mary não consegue esconder o triste aspecto que apresentam.O'Neil passa ao diretor sobre sua personagem Mary : Tem cinquenta anos e é uma mulher de estatura mediana. tem conhecimento da intimidade física da personagem – e também. por isso. novelas ou contos deve ter anotações com esses detalhes. de um pardo escuro. Seu rosto é tipicamente irlandês. dos traços psicológicos. São excepcionalmente grandes e belos. O cabelo farto e de um branco puro emoldura sua testa. Não usa ruge nem qualquer espécie de maquilagem. atriz e os espectadores. o diretor – que na ficção é o próprio autor –. mas nela não se notam a cintura e as cadeiras da idade madura. Todos evitam fitá-los. no entanto. O que imediatamente chama a atenção é seu extremo nervosismo. Sua voz é suave e atraente. Sua silhueta elegante. parecem negros. é que o leitor secreto do teatrólogo. Tem os cabelos cuidadosamente penteados. mas o reumatismo tornou nodosas as articulações e deformou os dedos. ao leitor. Deve ter sido um rosto lindo. através dela. sente-se nessa voz um leve sotaque irlandês. que agora parecem mutilados. É enxuto e pálido. apesar de não usar um colete muito ajustado. Suas mãos nunca estão quietas. o que leva à verdadeira pulsação narrativa. Acentuados por esse cabelo e por sua palidez. nele sobressaindo-se a estrutura óssea. Não se harmoniza com a saúde que sua silhueta denota. e sente-se humilhada por não poder dominar esse nervosismo que mais chama a atenção sobre suas mãos. Uma pena que nunca apareça. Ainda . a encenação resulta da cumplicidade entre o diretor. E. é um tanto roliça. e ainda chama a atenção. O que queremos destacar. dos movimentos. mas com uma segura intuição do que lhe vai bem. É essa ideia que chega ao público – no nosso caso. Tem o nariz longo e reto e a boca larga. mas bem que poderia ser colocado na entrada do edifício para que todas as pessoas lessem a sua qualidade. (Longa jornada noite adentro) O REPASSE DAS INFORMAÇÕES É um texto para diretores de teatro. Quando está alegre. de lábios carnudos e sensíveis. com a técnica. O criador de romances. Enquanto Charles a vê com ternura. e já que a palavra humana é . de forma que possam ter um controle absoluto sobre eles. no momento em que conhece sua vulgaridade. achava que se devia fazer desconto nas expressões exageradas que escondiam aflições medíocres – como se na plenitude da alma não se extravasasse. Vem daí a Teoria da Iluminação. e não de Flaubert. pareciam pretos por causa das pestanas. mesmo com aspectos às vezes contraditórios e confusos. Um personagem constrói o outro. quase não acreditava na pureza das que ouvia agora. A exemplo da visão que Rodolfo tem dela. mesmo que jamais precisem usá-lo. os gêneros se cruzam. talvez. passem informações. as palavras se cruzam. o olhar de Rodolfo é de desprezo. Emma parecia-se às demais amantes. as cenas se cruzam. Porque lábios libertinos ou venais lhe haviam murmurado frases parecidas. do personagem. comprida demais. e o encanto das novidades. Um dado necessário. apesar de castanhos. Os mais exigentes e criteriosos elaboram um catálogo dos seus personagens. Gore Vidal faz isso e a vantagem é que as tem. portanto: O autor talvez jamais precise usá-las – no sentido convencional – mas deve torná-las acessíveis quando passa de personagem a personagem. concepções ou dores. de Henry James. a dessemelhança de sentimentos sob a igualdade das expressões. E. e sem brandas inflexões de linhas nos contornos. e só através do conhecimento repassa-a a Charles.que nunca as leia. Charles ficou admirado da alvura de suas unhas. e cortadas em forma de amêndoa. As vozes se cruzam. Tantas vezes já a ouvira dizer tais coisas. nas mais vazias metáforas. que consiste em fazer com que os personagens iluminem uns aos outros – falem. Até porque aquela não é a mesma leitura que outros personagens fazem dela. Eram brilhantes. pouco pálida. examinem –. às vezes. sempre da mesma forma e na mesma linguagem. O que ela possuía de verdadeiramente belo eram os olhos. mais brunidas que os marfins de Diepe. As visões podem ser contraditórias. o que torna a narrativa ainda mais ágil e rica. Basta lembrar o olhar de Charles Bovary sobre a mão de Emma – a descrição é dele. o autor. de irritação. repassá-lo a outros personagens que vão alimentar a iluminação de uns e de outros. homem prático que era. quase sempre. Não podia alcançar. que não lhe eram mais novidades. e um tanto seca nas falanges. além disso. que a revela com estilo. A mão nem por isso era bonita. finas. pois que ninguém pode jamais dar medida exata às próprias necessidades. exibia a eterna monotonia da paixão. o olhar era franco e de um arrojo cândido. caindo aos poucos como um vestido. Mas Flaubert a conhece – isso é o fundamento. de Pernambuco e de Alagoas. de proteção garantida". quando antes queremos enternecer as estrelas. ele confessou que sentiu constrangimento quando foi preciso criar Ana Terra. Respondendo a uma pergunta de Rosa Freire D'Aguiar em A liberdade de escrever. ao lado de girassóis e de desenhos. Mas lançou mão das experiências de adolescente para inventar Clarissa. embora sem o compromisso de refletir as opiniões e movimentos autobiográficos. de O tempo e o vento. pesadas e sombrias. E criou o seu alter ego. Cria intimidade. "sensação". O CONHECIMENTO PELO DESENHO Antes de começar um romance – ou durante o trabalho Erico Verissimo procurava conhecer o personagem. Assim como Graciliano Ramos se apoiou nas lembranças do convívio com velhas. Isso faz com que o personagem se torne conhecido e muito próximo do autor. Formando a frase: "Sensação de medo". Chama-se Floriano Cambará. tendo abaixo. Não é difícil verificar que o estilo é de Rodolfo – frases longas e demoradas. enquanto Olívia foi construída sem recorrer a observações e detalhes. desamparo – medo –. Para Erico. pouco a pouco. desenhava perfis.como um caldeirão fendido em que batemos melodias para fazer dançar os ursos. O estilo de Charles é mais leve. Num desses esboços – publicado no livro A liberdade de escrever. suave. aí metendo-se na pele de todas elas sem qualquer constrangimento. de segurança. se constroem. A simulação e o jogo do faz-de-conta possibilitam leveza e mágica ao texto. escrevia frases. Editora Globo ele desenha o personagem de frente. Repetindo: Tudo isso só é possível porque Flaubert conhece a intimidade de sua personagem – e de seus personagens – e repassa-a aos outros personagens que. até chegar a uma definição. de perfil. Depois uma única palavra de quatro letras: "Medo". "sensação". As repetições reforçam e reafirmam o quadro psicológico do personagem. Ainda mais: "Sensação de perigo. não seria a falta do pai?" Aparecem em seguida as palavras "sensação". Ele . a palavra: "Medo". a repetição: "Dependência do pai". arrastando-se em impressões e símiles que se misturam e se alteram. terno. Ao longo da página vai distribuindo frases: "De dependência do pai – que ele admirava e que era o símbolo de estabilidade. Logo embaixo. Fazia esboços. encimando o rosto do personagem. "ser". remotas tias. a criação de personagens femininas representou sempre uma dificuldade incrível. de novo. detalha os lábios. sobretudo para quem concebeu Ana Terra. sem a ditatorial participação do autor. dias depois. previamente combinado. lhe dissera o autor. Todos têm modelos. o jornalista Harold Loeb. Após a publicação de O sol também se levanta. O autor está inventando e não copiando. ter muito cuidado para não copiar. em resposta ao convite para um drinque. que na verdade era o personagem Robert Cohen do livro – palavras dele –. publicado em Papa Hemingway. também naquela entrevista. Às vezes o conhecimento se torna de tal forma real e verdadeiro que pode causar constrangimentos ao autor. O outro recusou o cumprimento. Mas que não se trata de uma "autobiografia estilizada e superficial". Hotchener. passou-lhe um telegrama avisando-lhe que estaria ali. Evita-se o escrúpulo de entrar na pele do personagem – sobretudo da personagem – mas não se aproxima tanto do modelo. A experiência pessoal é muito importante. O homem não apareceu. portanto. imprescindível. . O que não quer dizer que o autor tenha que revelar a parte sombria da alma. afirmando: "Jamais". Em depoimento ao jornalista A. Absolutamente. Estava jantando noutro lugar quando ele entrou. Nunca houve vingança. Foi o que aconteceu a Hemingay. Durante três noites aguardou que ele aparecesse num bar. Antes. É preciso. Hemingway gostava de contar ou de inventar histórias. também na vida real. "Então beba sozinho".assegurou. Na verdade. E. O PERSONAGEM AMEAÇA O ESCRITOR E o que acontece quando o personagem quer matar o autor? Impossível? Nem tanto. Os dois permaneceram distantes para sempre. ele conta que foi ameaçado de morte por um dos seus personagens. dizia que fora informado de que Harold Loeb. desde que o valente e o vencedor fossem sempre ele. Criou-se o mal estar. Para não dar essa nota de extrema sinceridade. Copiá-los é sempre um risco. Foi ao seu encontro e estendeu-lhe a mão. anunciou que iria matá-lo no primeiro encontro. Às vezes. É inevitável. Quando não literário. Não deixa de ser curioso o fato de um autor esperar pelo personagem que quer matá-lo. que o personagem se parecia psicologicamente com ele. Isso é mais ou menos o que acontece com a maioria dos escritores. Uma bela . a mulher que substitui Catherine no par romântico italiano. Na verdade. acrescentando que "aquilo que o tenente Henry sentiu. O traço inicial aconteceu dias antes. nunca foi. quando apareceram as primeiras personagens: Bernarda. viu. SENTIR E APRENDER "A verdadeira ficção deve provir de tudo o que a gente conheceu. ver. No inconsciente. e com quem o escritor viajaria pela Suíça. Há figuras. sentiu ou aprendeu". Permanecem numa área do inconsciente pedindo para surgir a qualquer momento. faces obscuras e sombras que nos incomodam durante todo o tempo. nasceu a partir de uma tia nossa que vivia na fazenda Poço dos Bezerros. Foram cinco dias de trabalho ininterruptos numa fazenda. Por isso é fácil distinguir o rosto delas em cada uma. AS MULHERES DE NOSSA VIDA Os modelos sempre incomodaram muito os romancistas. a noiva enlouquecida. CONHECER. às vezes com os braços para cima. e que foi mulher do escritor durante muito tempo. cantando e rezando. VER. A narrativa trabalha com a invenção. Inês e Gabriela estabeleceram-se. As mulheres sempre ofereceram bom material para a criação de personagens no autor de O velho e o mar. a personagem de Hemingway era uma enfermeira italiana com quem ele teve um caso amoroso durante a primeira guerra mundial. foi inventado tendo por modelo aquela moça de Turim – inventado. O escritor norte-americano estava acertando de vez: conhecer. não é copiar. A cópia não resulta em bom personagem e ainda oferece riscos. Sendo que Gabriela. não sabia que a influência das mulheres da casa era tão poderosa. Não era inspiração. todas as minhas irmãs começaram a se movimentar. quando Catherine Barkley soltou os cabelos e meteu-se em seu leito de hospital. Dizia palavras incompreensíveis. por causa da cesariana. assegurava Hemingway no mesmo depoimento. Ela andava pelo terreiro da fazenda o tempo todo. em Verdejante. sentir ou aprender. E também Hadley. Quando comecei a escrever A história de Bernarda Soledade. não copiado". Havia outras mulheres que o influenciaram: Pauline. Mas para por aí meu empréstimo direto da realidade. passou a ser modelo de outros .personagem. através das mulheres que. Como o coronel Zé Paulino. é só um modelo – a inquietação interior. que além de ter como modelo o avô do escritor. apenas imita a realidade. utilizei a história das receitas falsas de que a acusada se servira para conseguir os venenos". O que deve se tornar permanente. desde o começo. enquanto era julgado. Nenhum outro elemento lhes servia. Portanto. A VISÃO DE UMA MAGRA ENVENENADORA Mas nem sempre o conhecimento do personagem ocorre assim de forma tão tranquila. vou construir uma personagem toda diferente e mais complicada. onde a maioria dos autores copiavam. marcaram a nossa vida. Nunca pude esquecer que "Bernarda" era – e é – uma metáfora de toda a minha infância. seus santos. embora uma angústia de mulher. até mesmo por causa desse exemplo. as personagens denunciavam todo o conhecimento da casa. o comportamento. Tudo isso para não lembrarmos o caso do regionalismo. sociologicamente. Apenas o vestido de noiva era diferente. Mauriac conta que ficou marcado pela visão que teve. O modelo. Com o que a realidade me fornece. a singularidade. Além dos escrúpulos de Erico Verissimo na criação de personagens femininas. Lembrei-me dos depoimentos das testemunhas. de ordem mais simples: amava outro homem que não seu marido. ficam por conta da invenção. à medida que o autor amadurece. A marca da influência consentida ou da influência consciente. aliás. numa sala de tribunal. Nada mais de comum com a minha Thérèse. de José Lins do Rego. Os motivos da acusada haviam sido. há o caso de François Mauriac que viu o modelo de Thérèse Desqueyroux num tribunal. cujo drama consistia em nem sequer saber o que a impelia ao gesto criminoso. E a casa da fazenda estava toda ali: com seus móveis. na verdade. "aos 18 anos. seus santuários. de uma magra envenenadora entre dois gendarmes. Mauriac. a realidade. aquilo que parecia fácil não era senão a manifestação de alegrias e dores que vieram desde os primeiros dias em Santo Antônio do Salgueiro. Uma coisa não invalida a outra. insistia em afirmar que o escritor não cria. Mesmo que parecessem uma manifestação do inconsciente. Riobaldo e todos os seus irmãos são habitantes de meu universo.tantos coronéis da ficção brasileira. na França. mas um Raskolnikov sem culpa. LORENZ: Este Riobaldo – conforme li em várias ocasiões – seria considerado um Fausto. (Diálogo com a América Latina – Panorama de uma literatura do futuro) Um personagem extremamente brasileiro que. Isso equivaleria ao "Madame Bovary sou eu". irmão dos outros personagens. um místico. no que diz respeito ao conhecimento do personagem: GUIMARÃES ROSA: Sem dúvida o Brasil é um cosmo. Ninguém se torna um bom escritor se não se torna irmão da realidade que interpreta e inventa. e menos ainda um místico barroco. . e designações dessa espécie já lhe foram atribuídas. Riobaldo é mundano demais para ser místico. mostra que o conhecimento do personagem começa na reunião de elementos que o autor tem de uma certa região – de uma dada realidade –. é místico demais para ser Fausto. precisou do conhecimento – ou dos modelos – de diversos personagens universais. A conversa entre Guimarães e o estudioso alemão se desenvolveu dessa maneira. melhor. Revelada durante conversa com Günter W. Lorenz. e que entretanto deve expiá-la. Portanto. GUIMARÃES ROSA: Eu sei. de Flaubert. novamente. Sobretudo a partir desse surpreendente Raskolnikov e do distanciamento do Fausto. e com isso voltamos ao ponto de partida. Muitos dos meus intérpretes se equivocaram. é apenas o Brasil. portanto. Riobaldo é o sertão feito homem e é meu irmão. Mas creio que Riobaldo também não é isso. e de tal modo impregna o autor que ele próprio é personagem e. LORENZ: E o seu Riobaldo? Acho que você ainda não acabou de caracterizá-lo. o que chamam de barroco é apenas a vida que toma forma na linguagem. que a crítica sempre acreditou tão influente. Gostaria de acrescentar que Riobaldo é algo assim como Raskolnikov. exceto você. que respondia a uma pergunta que lhe fora formulada durante processo promovido pela promotoria pública. O PERSONAGEM É MEU IRMÃO A frase é de Guimarães Rosa: "Riobaldo é o Sertão feito homem e é meu irmão". Riobaldo não é Fausto. Como você delineia o seu Riobaldo? GUIMARÃES ROSA: Não. um universo em si. no entanto. um homem do barroco. onde existe uma tradição política. seria necessário esvaziar a cabeça dele. O exterior. Numa entrevista ao Le monde. Torna-se o personagem. segundo conta: Para escrever um romance sobre Nixon. a política é também mais profissional. completamente diferente. e de onde vem o conhecimento dos seus personagens. Toda vez . Não o compreendo o suficiente. Aliás. Terminam quase biografados. Na América. Às vezes muito mais um criador de tipos do que de perfis jornalísticos. Na Europa. uma criação. embora se transformem em modelos ao longo do trabalho – que atiçam a imaginação do escritor. Mas uma coisa é compreender um personagem de fora e outra. ele revelaria as razões que o levaram a isso: Os políticos não se interessam por problemas políticos. nada mais. Conhecimento que provoca a apresentação. a política é um esporte praticado pelos muitos ambiciosos. mesmo quando se sabe que a biografia é. e fundamental. Conhecê-lo bem é a grande tarefa do nosso ofício. O PERSONAGEM IDEALIZADO Há os personagens reais – não apenas modelos. nada menos. Não compreendo como um homem de sua têmpera se deixou vencer pelo desânimo. É um salto mortal. penetrar na sua cabeça. resultado das escolhas. Mailer demonstrou uma obsessão por dirigentes internacionais que tornariam célebre o seu universo literário e jornalístico. o celebrado escritor norte-americano. Desde muito jovem. são atores. o idealizado aparece também na autobiografia. dos movimentos do escritor. igualmente. Acho que eu não seria capaz disso. das seleções. O modelo visto de fora quando passa para o papel é outro. O importante. é que o autor iniciante comece a perceber que a criação de um personagem não é tão arbitrária quanto a princípio parece. Quando precisou do modelo chamado Nixon – o presidente dos Estados Unidos que renunciou depois do Caso Watergate –. Isso é ainda mais verdadeiro nos Estados Unidos do que na Europa. Nenhum personagem histórico é verdadeiramente ele: é o personagem idealizado. e da apresentação surge o desenvolvimento. onde ela procede menos do estrelismo. É uma carreira razoável. sim. teve enormes dificuldades. Trata-se da idealização do eu. Vejamos agora Norman Mailer. Temos que buscar os muitos conhecimentos internos que temos para que se possam desenvolver o caráter e o comportamento do personagem. E sem aquilo que os românticos chamavam de inspiração. sua reação. escreveria depois. não duvido. Não sem um riso de sarcasmo. Coisa chata e sem criatividade. reconhecia que precisava investigá-lo. Ela ficou sozinha. E. Fazia tudo o que os jovens atores aprendem a não fazer após o primeiro curso de arte dramática. Decide investigar melhor as palavras e escreve Raimundo. devemos entrar na sua cabeça. Investigar agora. mundo. na solidão devastadora do branco. investigar sempre. Mas o que fazemos sem investigar as nossas possibilidades? Até onde podemos chegar sem o sutil e. Um modelo exterior serve aos primeiros traços. Mailer. brincadeira de . Digamos que Drummond escreveu em seu livro de anotações. Ele passaria algum tempo olhando-a. Investigação – palavra chave do criador. Aliás. Se queria expressar sua alegria ao anunciar uma boa nova. Teria sido um dos piores atores do mundo. porém. Se dizia que a América devia ser forte. E em seguida. não uma solução.que abria a boca para fazer um discurso era um fracasso estético. pela calça. Mas é básico. sorria com todos os dentes. brandia o punho. lembra que não passa de uma brincadeira itabirana. pois era incapaz de comunicar uma emoção ou um sentimento sem exibi-lo grosseiramente. ou quase nada. As roupas do personagem podem defini-lo psicologicamente. concordo. No seu segredo. ali arrodeada de outros brancos. mas a investigação psicológica conduz à intimidade. embaixo: mundo. ele sonhava em ser ator! (Literaturas – Entrevistas do Le monde) MUNDO MUNDO VASTO MUNDO Esta declaração nos leva a algumas reflexões. Lá no seu mistério. no entanto. Seu comportamento. quando era jovem. ao mesmo tempo. É claro que Nixon estava se mostrando inteiro. a palavra: mundo.cialesca. No entanto. em seu papel em branco. Isso é pouco. Sem outra coisa que fazer. Mais uma vez: seria uma rima. Conhecer um personagem não é apenas tratá-lo fisicamente. Não demora. Ele era particularmente morno. Podemos conhecê-lo pela camisa. como diz Mailer. pela meia. Pode ser uma palavra poli. áspero e árduo trabalho de investigação? Exercício de imaginação. muito pouco. se eu me chamasse Raimundo. do medíocre ou do horroroso no momento inicial – impulso – da criação. mudam de lugar ou de posição. mas tencionando muito o verso. Na técnica. as palavras começam a dançar. o escritor procura o movimento e. No impulso.repartição pública: Se eu me chamasse Raimundo seria uma rima e não uma solução. seria uma rima e não uma solução. mundo. apenas a palavra: mundo. Um personagem pode começar um romance como principal e terminar . À maneira que se investiga. solitário. arrumam-se na frase ou no verso. agora pontilhado de palavras – mundo. mundo. imenso. vasto mundo. seria uma rima e não uma solução. torcem e retorcem. No aperfeiçoamento da pulsação narrativa. uma brincadeira. Apenas sugiro ao autor iniciante que a criação literária começa pela investigação de uma palavra ou de um número de palavras que podem ser medíocres ou apenas uma brincadeira. escreve piada. Ora. Uma palavra perdida na vastidão do papel em branco. mudam de lugar ou de posição. o que se pode esperar de um personagem. Do ponto de vista estético. adiante. Por isso não pode ter medo do grotesco. Para quebrar a monotonia e provocar pressão rítmica. e vão criando novas possibilidades. Mundo. Mundo mundo mundo e. o escuro causado pelo excesso da palavra "mundo" e pela letra "m" se repetindo. mundo mundo vasto – aquele papel em branco. a palavra "vasto". Na pulsação narrativa. Aquilo que afirmei no começo: escritor não conta piada. seria uma rima e não uma solução. com toda a sua pulsação humana? Os personagens também dançam. uma frase. se uma palavra leva a uma frase e uma frase leva ao verso e o verso leva ao poema. torcem e retorcem. De forma alguma. Na intuição. Conhecer bem um personagem é investigá-lo. portanto. o verso. arrumam-se na história. Ou que ele escrevia dessa maneira. mundo. preenchendo os espaços em branco. e vão criando novas possibilidades. mundo. se eu me chamasse Raimundo. na narrativa. As sutilezas das palavras repetidas levam a uma ideia clara de vastidão. Vejam bem: Nem de longe procuro afirmar que Drummond teve essa intenção. a de José. o nome da personagem que nos guia. o autor percebe que ele não tem força suficiente para ocupar aquele papel. Não. a noite esfriou. Precisamos definir o nome do rapaz para que ele se transforme em personagem em oposição. e muda de lugar. Nada de extraordinário nisso.secundário. Um momento de alta capacidade criadora. suportar várias metáforas. já não pode beber. pode. Valentim? Valentino? Valério? Anotamos. Na trajetória da escrita. Ele se chamará José. ao longo do texto. ou o oposto. filmes e peças de teatro etc. optamos por um nome em branco. cuspir já não pode. em roteiro cinematográfico e num livro. está sem discurso. retorce. Isto é. Em que ele pode ser valente. Ou apenas o José. fazem exposições de arte: esculturas e pinturas. tradicional. Sendo assim. está sem carinho. calado e bom. O mineiro Carlos Herculano Lopes transformou também um poema de Drumomnd. Então. O CONHECIMENTO DO NOME EM BRANCO Agora podemos voltar ao herói das nossas anotações: o moço louro. Pode ter sido esse traço que provocou a paixão de Estela? Ou seria José do Egito. de qualidade. mais tarde. por ironia? Não é tencionar demais o personagem? Vamos deixá-lo aí. finalmente. O vestido. Valentim. E. de Drummond? E agora José? O poema nos ajudaria a compor a história. segundo a qual a oposição dos caracteres geram um assunto interessante. Valentino ou Valério pode expor demais o personagem. fraco. Ele é um nome em branco. o poema nos levará ao conhecimento do personagem. Não tem sido esse um recurso incomum nas artes. vendido pelos irmãos a um administrador brilhante. Uma questão elementar de trabalho. Entre elas. seguindo aquela sugestão de Flaubert. UM POEMA DEFINE O CONHECIMENTO Algumas palavras definidoras do caráter de José: Está sem mulher. comum. . humilde. um nome convencional. o marido de Nossa Senhora. Os criadores pedem socorro a outros e montam histórias. aliás. Então torce. já não pode fumar. Temos uma incógnita resolvida: Estela. não serve. Legítimo. José. confusas. podemos colocar José fugindo. O conhecimento psicológico dos personagens nos ajudará. Pois não é ele quem diz "cozinho no quarto qual bicho-do-mato. você marcha. José!. mas personagens conhecidos. Aquela que nos guia com a fatalidade do suicídio e outro que lamenta. que anotou durante o impulso – "a moça se apaixonou pelo rapaz louro" –. o autor iniciante pode verificar que aquelas palavras medíocres. para onde? Ao invés de Estela. Depois o argumento. O conhecimento. nos levará ao ponto de vista dos personagens – o que eles pensam e como agem na história – e daí ao foco narrativo. Rearrumaremos as palavras iniciais e criaremos o esboço definitivo. começam a alcançar o verdadeiro sentido porque Estela e José não são apenas palavras. sem teogonia. assim. Assim. depois da tentativa de Estela. O poema de Drummond leva ao conhecimento do personagem. barulhentas. sem cavalo preto que fuja a galope. APRESENTAÇÃO 1: RITO E AUTONOMIA . sem parede nua para se encostar. Será uma narrativa de vozes interiores? Diálogos? Monólogos entrecruzados? Monólogo simples? Fluxo da consciência? Podemos pensar no foco narrativo a partir mesmo das sugestões do poeta. E que está irremediavelmente despojado. talvez de ônibus. Com um monólogo interior. mas sempre de acordo com as visões do personagem. ESPÉCIE DE SUPORTES VIVOS PARA OS DIFERENTES MOTIVOS. Ou seja. Não tem mais opção. alguns detalhes. leva-as às páginas. Muitas vezes. tímida e atrapalhada. adiantando ou esquecendo. e faz com que ele se movimente para permitir a completa interação com o leitor. mesmo quando pode parecer alguém insignificante. que exige equilíbrio e tensão. O autor não diz. fala assim. O escritor precisava que ele estivesse inquieto e nervoso na cena. As circunstâncias da cena mostram o caráter do personagem. Flaubert jogou muito bem com os nomes dos personagens. Por assim dizer. o personagem Charles Bovary é apresentado de uma só vez. O narrador já não é aquele que possui sozinho as informações. Em primeiro lugar. Nada disso. comporta-se assim. Tomachevski APRESENTAÇÃO POR CIRCUNSTÂNCIA Na apresentação. Não podia fazer simulações. narra. mas cuida disso com habilidade. É UM PROCEDIMENTO COERENTE PARA AGRUPAR E COORDENAR ESTES ÚLTIMOS. o autor mostra conhecimento e domínio do personagem. num ímpeto. é jogado no palco-sala. nenhuma palavra esclarecedora: o personagem é assim. resta-lhe representar. . cada uma de acordo com a técnica. o leitor assim imagina que está descobrindo o personagem naquela hora e que ele é o criador. trata-se de uma figura linear. Fica estabelecida uma espécie de parceria. A APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS. realizou plenamente aquilo que ele mesmo chamou de "oposições de temperamento" e operou as apresentações por circunstância ou por ação. Em Madame Bovary. Em geral usamos o próprio personagem como narrador dissimulado ou o narrador oculto que cuida de bordar os furos da narração. conforme Henry James. Afinal. dando-lhes as características psicológicas e físicas. de propósito. Isso é muito importante. como uma bomba mal apagada. num só instante. Fez a autópsia. Canivet chegou. com a voz trêmula. Ou a metáfora do médico – o canivete – que corta cadáveres? Importante destacar: a apresentação de Charles é perfeita. Como não podia ser mais desastrada a vida de Charles em todo o livro. que era um homem espirituoso. "Trinta e seis horas depois. os leitores? "Nós". A cena de apresentação é cruel. Por isso o intrigante "nós" – que tem causado tanta preocupação aos estudiosos. dificilmente acalmadas. "Nós" somos nós. pondo-o sobre os joelhos. um narrador plural? Ele agora está ali. reavivando-se aqui e ali. — Livre-se desse boné! – disse o professor. Ele está ali. A entrada no palco-sala – no romance – não podia ser mais desastrada. Aapateava-se. — Mais alto! Tomando então uma resolução extrema. — Diga de novo — gritou o professor. como se chamasse alguém. Um vizinho o fez cair com uma cotovelada. . à nossa frente. num crescendo de gritos agudos (uivava-se. Canivet? Esquisito. subitamente. Carbovari!). Houve uma explosão de riso entre os alunos. O novato articulou. Ele se abaixou para erguê-lo. sem uma palavra que revele a intenção do autor. recomeçava numa fileira de bancos. — Levante-se — repetiu o professor – e diga-me o seu nome. Sem uma palavra que esclareça o personagem. se o deixava no chão ou se o punha na cabeça. latia-se. um nome ininteligível. lançou a plenos pulmões esta palavra: Carbovari Foi uma algazarra que explodiu de repente. a pedido do farmacêutico. personagem dissimulado? Ou "nós". mas nada encontrou" Dr. A classe inteira pôs-se a rir. repetia-se: Carbovari!. O leitor inteligente sabe com quem vai tratar. desastradamente. mas ele tomou a erguê-lo. Levantou-se. Apesar de "um novato" – artigo indefinido – e "o novato" – artigo definido – a apresentação se dá de chofre. o dr. sem uma palavra que justifique o personagem. que ele não sabia se segurava o chapéu. que depois passou a ecoar em notas isoladas. Afinal sentou-se. de vez em quando. o novato abriu uma boca desmesurada e. na tradução já citada: — Levante-se – ordenou o professor. a ponto de morrer de nada. o boné caiu. embaraçando o coitado de tal forma. . apenas "uma moça": Uma moça. E. Enquanto Charles foi jogado no palco e se atrapalhou com um simples boné. só muito depois. Na abertura. Estela chega com suas características psicológicas – "se apaixonou" e "chorou". a apresentação e. principalmente agora que tinha quase inteiramente a seu cargo todos os cuidados da quinta.. ao lado. O caráter dissimulado da personagem que. Emma: Emma. de um indefinido rapaz louro. O RETRATO DE ESTELA No nosso trabalho. no capítulo II. no mesmo movimento..]" Em seguida "a moça": [. APRESENTAÇÃO POR LEVEZA E SIMULAÇÃO A apresentação de Emma Bovary se dá em circunstâncias bem diferentes e ressalta a "oposição de temperamentos". lobrigando-o. Portanto. curvou-se sobre os sacos de trigo. a formação do caráter. a senhora Bovary : A sra. sentiu o peito tocar as costas da moça. De um lado. Bovary reparou que algumas senhoras não tinham colocado as luvas em seus copos. Rouault não gostava da aldeia.. Agora a sequência dos artigos e definição da personagem. é verdade.. o pai impacientou-se [.] Logo depois "srta. de outro. Rouault": A srta. Emma é apresentada por "leveza e simulação". curvada abaixo dele. com as características .] E a moça tratava de coser os chumaços. vestindo um merino azul guarecido de folhos. finalmente. Estela entrou no texto logo na primeira frase. Mais tarde. Um dado sempre muito importante: o autor deve saber como apresentar os seus personagens ou deixar que eles se apresentem. nem sequer sabendo pronunciar o próprio nome. apareceu à porta [. O ideal é que o personagem masculino seja mostrado por oposição.. se apresentará por inteiro. Já avançamos bastante: temos uma voz narrativa. que personagem. e que. apesar de detalhe. Ou é escondido por ela. Sempre considerando a advertência de Henry James a respeito da seleção de material. que já foi Valetim. é importante – já percebemos que os detalhes constroem a narrativa. Não na primeira pessoa. Na terceira. Conhecemos uma técnica: o rapaz louro esconde-se – do ponto de vista narrativo – na mulher. portanto. sobretudo na literatura. Isso ocorre por causa das vozes dos personagens – um constrói o outro e estabelece o seu próprio estilo. mas quem estabelece os movimentos é a mulher. E avançando: Para que o rapaz louro não fique apenas apresentado – e até julgado – . Fica estabelecido. Observamos sempre a posição do narrador – ou dos narradores –. assim. pelo óbvio. mais tarde. E temos um nome: que é uma metáfora. Ou aprofundamos o texto a partir dos monólogos de José. que ela é mais alma e ele mais físico. do personagem ou dos personagens. devemos estar atentos para esse detalhe técnico. A decisão seguinte: quem narra? Um personagem ou os personagens? Aqui centraremos o foco narrativo em Estela.físicas. Escondido mas com voz ativa: há monólogos. trabalhamos com dois personagens. o caráter de José. Selecionar os personagens e os episódios é exigência natural do escritor. Acontece que alguns iniciantes acham que tudo surge de uma vez. se percebemos que é melhor esconder o personagem masculino. história e técnica vão nascendo quase ao mesmo tempo. A SELEÇÃO DOS ACONTECIMENTOS Percebemos. Através do foco narrativo – monólogo – podemos construir. Trata-se de questão de estudo. Cabe ao escritor organizar os acontecimentos. e descobrimos a voz deles – uma mais psicológica. sim – porque o escritor narra. À maneira que se escreve. Não é que deva ser sempre assim – repetimos: não existe verdade absoluta no campo das artes. feito ocorre no primeiro momento: "rapaz louro". É claro. Os dois têm monólogos? Vamos decidindo. Então. vamos tratar de formular a técnica de apresentação de José. Por isso essa história de inspiração. a outra mais física. – o rapaz louro – através do seu ponto de vista. Ou até o narrador plural que aparece em todo o livro. (Orgia perpétua – Flaubert e Madame Bovary). acompanhando e vivendo os acontecimentos. Mesmo Flaubert usa-o no início do primeiro capítulo e nunca mais. ouve e sem dúvida comete as brincadeiras com que os alunos recebem o garoto provinciano: "Seria agora impossível a qualquer um de 'nós' lembrar alguma coisa a seu respeito. Havia. não exatamente o observador. com o máximo de consciência. OS ESPECTADORES E OS ATORES Apresentada por leveza e simulação. Tão raro que não o classificamos no começo deste livro. reiteramos. De cada situação. registra um aspecto do foco narrativo muito raro ou raríssimo: a primeira pessoa do plural – o "nós". Emma Bovary é construída pelo olhar de Charles. Era um rapaz de temperamento moderado. Ocorre que o personagem pode também ser o leitor oculto. Não cabe dúvida. Aparece. mesmo as contraditórias. tudo na classificação do próprio Mário Vargas Llosa. entre todos. À maneira que escrevemos. comendo bem no refeito". Está ali. dormindo bem no dormitório. diálogo entrecruzado. entre os personagens. quem fala é algo mais que um observador comum: um participante ativo. imagens obstrutoras. que brincava durante o recreio. Para Mario Vargas Llosa não há dúvida: Quem é o narrador que. narrador-personagem. trabalhava nas horas de estudo. Encontra-se nessa sala de aula a que chega Charles precedido pelo diretor do colégio. basta um olhar. que faz parte do mundo narrado. Quem sabe? O NARRADOR PLURAL Madame Bovary. uma opção técnica e não um foco narrativo permanente. um cúmplice. singular. atento em aula. entre nós. Às vezes apenas uma frase ou uma observação rápida ajuda muito. palavra em cursiva. estilo livre indireto. Não raro. devemos verificar. personagem da história. De cada circunstância.por Estela. a função e o efeito de cada palavra. é conveniente talvez que ela possa escutar a voz de um terceiro – ou terceira – personagem que acrescenta novas informações. nos relatos de viagens e nas impressões de acontecimentos. Narrador plural justificando os vários narradores – ou estilos narrativos – em todo o livro: narrador onisciente. inicia o relato? Trata-se de alguém que está lá. . Porque é incomum. portanto. quase com frequência. emborcado atrás da primeira pessoa do plural. de certa ocasião. jogado no romance – como compete a um personagem linear e. Sem esquecer nunca: o autor não tem estilo. analisado. quem tem estilo é o personagem. que também observamos e. observado. essa é uma questão que será discutida amplamente. Nos engajamos ao texto. Mesmo nos autores mais tradicionais isso pode ser visto. O olhar do personagem é um dos fundamentos deste livro – mais um segredo da ficção. Flaubert – na verdade. apareceu à . o narrador – reconhece apenas o vestido. mesmo assim. nossa posição diante dela evidencia-se à primeira vista. Somos espectadores e atores – assim sempre o papel do leitor. um bom indicador. entramos com Charles na história. é construído por um personagem-testemunha ou por "nós". escreveu Percy Lubbock: Se a história tiver de ser mostrada a nós. ali é ainda uma moça sem firmeza e não merece atenção especial. Tanto é que o olhar de Charles é deslocado para o cenário e nele. No entanto. Aliás. participamos. foi o próprio autor tradicional que cedeu espaço para as conquistas do personagem. por assim dizer. nossa relação com ela. participando do privilégio do romancista – abarcando-lhe a história com uma ampla esfera de visão e absorvendo o efeito geral? Eis aqui uma alternativa necessária. Charles. diretamente. Afinal. não tem importância. Em primeiro lugar. Os revolucionários iguais a Flaubert compreenderam e trabalharam. Estamos colocados em face de determinada cena. ela não está. (A técnica da ficção) Sem perder a voz narrativa – que afinal de contas coordena o texto e a multiplicidade de olhares que o vão montando –. UM INDEFINIDO COM VESTIDO A apresentação de Emma começa pelo artigo indefinido – "uma moça" – que revela a inconsistência da personagem. conforme a tradução de Araújo Nabuco: Uma moça. A respeito desse assunto. ou seja. testemunhamos. desastrado – ou no palco-sala. vestindo um merino azul guarnecido de folhos. Assim. O iniciante deve estar atento. que somos parte do romance. de uma hora escolhida na vida dessas pessoas cujos destinos acompanhamos? Ou estamos observando suas existências de um lugar mais elevado. Não foi sempre assim. ao mesmo tempo. Charles é. o escritor precisa ir de encontro à voz do personagem que tem estilo. "Nós". O detalhe da mão e. começa a participar da cena: Como fossem necessárias umas talas. para receber Bovary. E só – a única referência ao estado físico dela. que ela está "vestindo um merino azul guarnecido de folhos". ela não respondeu. "Uma moça" permanece ali e. Lembramos a função gramatical e a função narrativa. O DESTAQ UE DA CENA MUDA . cortou-a aos poucos e raspou-a com um caco de vidro. No interior da lareira estavam várias peças de roupa estendidas a enxugar. Depois de o médico – Charles – atender o doente. ao longo da parede. Em seguida. reafirma sua capacidade de inventar. Como levasse muito tempo à procura da caixa de costura. todos de proporções colossais. também em cena muda. a descrição dos elementos do cenário. apenas. Ou uma troca de olhares. a quem fez entrar na cozinha. brilhavam como aço polido. ela reaparece. Ela vem se definindo. A pá. o almoço dos trabalhadores. Nesses detalhes o criador se realiza plenamente. estendia-se copioso apetrecho culinário. O leitor percebe. casando-se aos primeiros raios do sol que entravam pelas vidraças. por mais rápida que fosse.porta da casa. nem os olhares se mostraram. de ter domínio sobre a técnica. no qual se refletia desigualmente a chama clara do fogão. em panelas de vários tamanhos. embora não seja ainda uma personalidade firmada: "a moça". ainda que seja inconscientemente. foram buscar no telheiro das carroças um punhado de tabuinhas. enquanto a criada rasgava um lençol para fazer ligaduras e a moça tratava de coser os chumaços. transformaria o cenário em cena. mas ao costurar picava os dedos e nervosamente os levava à boca para chupar. Fervia ao redor. É preciso ter cuidado com o uso dos artigos. Uma conversa. E mais nada. de relance. a tenaz e o bico de fole. Charles escolheu uma. do olhar. Pode parecer mais um detalhe. onde crepitava um bom lume. O olhar logo se dirige ao cenário estático. em seguida. A distribuição de elementos cênicos. o pai impacientou-se. A APRESENTAÇÃO DEFINE EMMA E já não é "uma moça". Não houve cena porque os dois nem sequer trocaram saudações. O espaço romanesco então se desloca para o primeiro andar. ele sabe. Não o é. onde se encontra o doente. nunca existiu. A CURVA IMPULSIONA O LEITOR Registramos aí também a oscilação narrativa: "uma moça" cuja sombra passa pelo cenário. o pai impacientou-se: — O que você está fazendo que não encontra logo essa caixa de costura? Ela não respondeu. a cena muda – pelo menos na aparência – se resolve muito bem. ele próprio já preocupado com ela. o leitor se deixa seduzir. A oscilação narrativa. com ansiedade e nervosismo. cortou-a aos poucos e raspou-a com um caco de vidro. até chegar ao domínio da cena. Os diálogos ficam por conta da marcação – "o pai impacientou-se". é o resultado de três movimentos: a) Pulsação do personagem. refeita através do diálogo direto. exporia algo que não é decisivo. enquanto a criada rasgava um lençol para fazer ligaduras e a moça tratava de coser os chumaços. conforme estamos destacando. Ao invés da leveza e da simulação. Como levasse muito tempo para encontrar a caixa de costura. aceitando a leveza e a simulação. Ou seja. simula-se narrativamente a importância do acidente que o pai sofreu – acabara de quebrar uma perna – para que "a moça" seja apresentada. A cena. Pelo menos. com travessão. O que em verdade. além dos artigos e do cenário. algo impensável nesse caso. . a personagem seria apresentada pelo conflito. nesse momento. ficaria assim: Charles escolheu uma. É aí que o criador procura ajustar a verdadeira pulsação narrativa que. No efeito cênico escrito por Flaubert. dessa maneira. traria a conversa para bem perto do leitor. pede uma curva no discurso para condicionar a pulsação do leitor. Um diálogo direto. digamos. atinge o caráter de "a moça". A função do diálogo indireto interno – ou da tentativa de diálogo. E. "ela não respondeu" – e do nervosismo de Emma – "mas ao costurar picava os dedos e nervosamente os levava à boca para chupar". O importante é revelar a ansiedade e o nervosismo de Emma diante da presença masculina. depois a fratura do pai. é deixá-la sem destaque – ou seja. o importante é apresentar Emma – por leveza e simulação mostrar a presença dela e não destacar uma possível discórdia com o pai. chamaria muito a atenção. mas ao costurar picava os dedos e nervosamente os levava à boca para chupar. b) Pulsação da cena e c) Pulsação do leitor. A curva chega à linha que decidirá a estrutura do romance. Aquela "uma moça" – artigo indefinido – que não recebera qualquer atenção. o pai. talvez. – deslocado de "uma moça" para o cenário. E não somente se completa. além disso. . que costumava mordiscar em silêncio. Emma surge sob o olhar de Charles. é ele quem está narrando: Charles ficou admirado da alvura de suas unhas. para não destacar Emma. personagem oculto – apresentamos Charles que. depois do tempo e dos lobos que à noite infestavam os campos. A srta. fica claro que quem tem estilo é o personagem. apresentou Emma. aqui o olhar está nela. A mão nem por isso era bonita. aquela que foi "uma moça" e igualmente "a moça" nervosa com características físicas. como estamos vendo. tem agora um nome. o que lhe descobria um tanto os lábios carnudos. "Nós" – leitores. apresentar as características físicas e de indicações psicológicas. pouco pálida. por sua vez. Se ali foi importante. mais do que nunca. Logo adiante. comprida demais. Rouault": Falaram primeiramente do doente. a moça e a criada – não há descrição do ambiente. A leveza e as simulações ainda não estão resolvidas. ela tiritava mesmo ao comer. É a "srta. A NARRATIVA POR INTERSECÇÃO A identidade se completa. As curvas e as oscilações levam à personagem. finas. e sem brandas inflexões de linhas nos contornos. Rouault não gostava da aldeia. cruza com a de Charles. principalmente agora que tinha quase inteiramente a seu cargo todos os cuidados da quinta. O que ela possuía de verdadeiramente belo eram os olhos. pareciam pretos por causa das pestanas. enfim. narradores múltiplos. mais brunidas que os marfins de Diepe. Como a casa era fria. pura fuga narrativa –. Definitivamente. tem uma caracterização física. apesar de castanhos. Unicamente. passa por "a moça" – artigo definitivo – numa rápida cena de impaciência e nervosismo. Mesmo com os personagens bem distribuídos na cena – Charles. oposta a Charles. Agora. o olhar era franco e de um arrojo cândido. Eram brilhantes. e um tanto seca nas falanges. para. e cortadas em forma de amêndoa. Finalmente. Charles. entretanto. sentiu o peito tocar as costas da moça. é óbvio. E pôs-se a remexer em cima da cama. se ampara e se esconde nos personagens. precisa chamar a atenção do leitor. . Uma perfeita intersecção. correu e. da visão do narrador oculto que. curvou-se sobre os sacos de trigo. encontrou-a de pé. com uma passagem pelo diálogo direto – aí sim. onde as estacas de feijão tinham ruído sob o ímpeto do vento. a cena desastrada de Charles em contraste com o romântico de Emma – as oposições são sempre muito fortes. lobrigando-o. Com calma: Quando Charles. avisá-lo. — O meu chicote. por galanteria. que esta cena é o que se pode classificar de cena fundadora do romance. porque essa mulher manifestadamente sonhadora e lenta. Embora precise. porque o chicote gera o conflito. Olhava para a horta. tornou a entrar na sala antes de partir. Voltou-se para trás. os caracteres de Charles e Emma encontram-se. e se cruzam. para usar o termo da teoria dos conjuntos em matemática – ou seja. o que confirma as qualidades e os defeitos dos dois. É básico destacar. atrás das portas e por debaixo das cadeiras. Emma. como estendesse também o braço no mesmo movimento. depois de ter ido em cima despedir-se do sr. corresponde ao boné no colégio. uma narrativa onde dois pontos se encontram. olhou para ele por cima do ombro e entregou-lhe o chicote. como se pudesse adquirir os defeitos de Charles por intersecção moral. Rouault. se faz favor – respondeu ele. O caráter leve e por simulação de Emma destaca-se na atitude romântica de permanecer na sala. de pé. Ela endireitou-se. curvada debaixo dele. Depois. com a testa colada à vidraça. vai se tornar também uma amante desastrada e confusa. muito corada. — Está procurando alguma coisa? – perguntou ela. Ela tenta ajudá-lo e ele quase se deita sobre ela: "sentiu o peito tocar as costas da moça. necessário. a olhar a horta "com a testa colada à vidraça". numa espécie de narrativa por intersecção. o chicote tinha caído no chão. entre os sacos e a parede. A CENA FUNDADORA DO ROMANCE Não fica difícil observar que as duas apresentações – por circunstância e por oposição – se encontram para mostrar a diferença de caracteres. básico e fundamental. curvada debaixo dele". Sua descrição. Já vimos que não é. Através dessa troca de olhares. não quero dizer que esteja narrando literalmente uma experiência própria. A própria Emma escreveu a confusão de Charles na cena passada. parece impossível. durante uma viagem de trem. Mais de uma vez. passando a narrativa ora para o narrador. se estivéssemos no mesmo lugar naquele momento. Diz ele: Às vezes. nesse caso. Os outros personagens assumem a narração. você e eu. durante o seu estudo. conversas que talvez tenha escutado. no olhar do personagem. Mesmo assim. OS OLHOS SE ENCONTRAM NA INTERSECÇÃO Depois da apresentação de Charles e de Emma podemos demonstrar a habilidade técnica de um narrador tradicional – aliás. cada vez mais. E dá tal importância a ela que para ele "não existe mais ninguém no livro em condições de retomar a narração quando Emma falha". tradicionalíssimo – em função dos olhares e verificar de que maneira isso acontece. Percy Lubbock vai chamando a atenção para este aspecto definitivo: os olhos da personagem. olhando "para ele por cima do ombro" e entregando-lhe "o chicote". É através dessa técnica que o conceito se realiza. Nós mesmos vimos agora como o olhar de Bovary possibilita essa criação. sim. a voz dos personagens se manifesta. Por isso estamos falando. ora para Emma. . Acontece aí a construção narrativa através dos olhares e eles são apresentados ao leitor na condição de possíveis amantes. Trata-se do clássico Leon Tolstoi e do seu romance Ana Karenina. Ana e Vronsk encontram-se. mesmo contando com a ajuda inquestionável do narrador oculto – escondido também nos personagens. A carga narrativa aí é imensa. A Q UESTÃO DA AUTONOMIA Para que o personagem tenha cada vez mais o seu estilo é preciso dar-lhe a autonomia que. parece estar descrevendo o que ele (Flaubert) mesmo viu. Foi a autonomia do personagem que mais impressionou Percy Lubbock. toca apenas assuntos que nós mesmos. Tem autonomia para isso. poderíamos ter percebido sozinhos. faz toda uma análise daquilo que considera visão "de fora" e visão "de dentro". lugares e pessoas que conheceu. senão que escreve como se o fizesse. pela primeira vez. E é verdade. Ele está contando e vivendo a cena. em muitos casos. A reconstrução do texto cabe ao leitor. que pertencia à alta roda. graças à espessas pestanas. A direção do olhar acompanha os incidentes e aí concordamos com Henry James. detendo. Vronski teve tempo de lhe observar a expressão de uma vivacidade contida. Seus brilhosos olhos cinzentos. Os movimentos internos e sutis conduzem à narração de personagens.se à entrada do compartimento para dar passagem a uma senhora que saía. mesmo assim sofre uma ligeira alteração na maneira como Ana . "sentiu". E mais do que isso. pelo aspecto da desconhecida. No momento em que se voltou. Embora sem a preocupação do rigor técnico de Flaubert. revelam-se. mas apenas porque a expressão do seu rosto encantador. Naquele rápido olhar. se mostrara especialmente suave e delicada. embora a tradição leve o autor a usar verbos que fazem a marcação: "bastou-lhe". "curvou-se". Percebe-se. justo por causa da técnica. (Ana Karenina) O INCIDENTE COMO ILUSTRAÇÃO O foco está nos personagens e eles passam a narrar. ora do sorriso. apesar dos pesares. para pesar seu. é definido pelo olhar do primeiro. porque o incidente é a ilustração do personagem. a mudança narrativa. detiveram-se nele. Veem-se e. Com sua velha experiência de homem da sociedade. nem pela singela graça que se desprendia de toda a sua pessoa. de certa forma. Curvou-se e ia entrar no vagão quando sentiu necessidade de voltar a olhá-la. o russo esbanja emoção. Parecia que algo excessivo lhe inundava o ser e. A técnica emocional de Tolstoi: Vronsk seguiu o condutor e subiu ao estribo do vagão. diferentemente do primeiro que é mais elaborado. onde se encontra o pai doente. amistosos e atentos. de logo. transbordava ora do olhar luminoso. não atraído pela sua beleza. bastou-lhe um olhar para compreender. O foco segue acompanhando Vronski. quem sabe por causa da presença do médico. ela transparecia através do leve sorriso. também ela olhara para trás. quando passara junto dele. embora ela tenha ficado nervosa – quem sabe por causa do pai. Os olhares funcionam em situações diferentes. para quem o personagem é o incidente. os olhos reluzentes e o sorriso quase imperceptível dos lábios rubros. que pareciam escuros. como se procurando alguém. a interferir. Tornamos a lembrar: o narrador é impessoal. que lhe fizera uma advertência. Não obstante ter velado intencionalmente a luz dos olhos. nem pela sua elegância. O encontro de Charles e Emma na casa dela. passa a conduzir a cena – por um instante apenas, em pouquíssimas palavras. Uma rápida narrativa por intersecção. Os dois cruzam o mesmo espaço e o mesmo tempo. Ela se volta – "os olhos cinzentos [...] detiveram-se nele"–, amistosos e atentos, e logo observam outro ponto da estação. Uma circunstância emocional muito densa. Mesmo assim, o escritor nada comenta, nada diz, nada revela. O incidente – o cruzamento dos olhares – provoca a intersecção. Observando-se bem: somente Vrosnki – um dos narradores – comenta e pensa. A participação de Ana é silenciosa e eficiente. Os seus olhos compõem o conflito. Têm o mesmo efeito de Flaubert – ou seja, se comportam – mesmo por um milésimo de segundo – como narradores do incidente. Oferecem condições para que o personagem passe a condutor do texto. Tudo acontece porque Tolstoi narra muito próximo de Ana. Está na pele dela. Nesse primeiro encontro, os olhares falam mais do que o narrador onisciente que, na verdade, é Leon Tolstoi. O que deve ficar objetivamente claro é que, em Tolstoi, a narrativa é emocional. Em Flaubert, impessoal. A impessoalidade consiste em fazer o autor sair da cena e deixar que os personagens resolvam. No emocional, o autor atua junto com os personagens, tirando-lhes a autonomia. A METÁFORA DA TEMPESTADE Logo depois, os olhos de Vronski e Ana assumem posição de narradores, dentro de uma cena metafórica extremamente eficiente. Tolstoi faz com que os dois voltem a se encontrar, mas prepara elementos que, mesmo sem dizer no discurso, de modo aberto e direto, alertam para a tensa relação futura entre ambos. Há, pelo menos, três movimentos, na cena: a) Tensão; b) Passagem e c) Conclusão. No primeiro, a narrativa pertence ao autor e ele estabelece as circunstâncias que vão gerar, mais tarde, o conflito entre os personagens; no segundo, os personagens se veem e se cumprimentam elegantemente, estabelecendo uma ligação mais estreita entre ambos; e, no terceiro, Ana Karenina revela, no íntimo, o começo da paixão por Veronski. Na trajetória, o anúncio de uma relação tumultuada, que leva ao suicídio da mulher. O texto de Tolstoi: Desencadeara-se uma terrível tempestade de neve, o vento sibilava entre as rodas do trem e dos postes próximo à estação. As carruagens, os postes, as pessoas, tudo ficava coberto de neve, que aumentava constantemente. Após uma curta calmaria, a tempestade redobrou de intensidade e tão violentamente que nada parecia poder resistir-lhe. Entretanto a porta da estação abria-se e fechava-se continuamente, para dar passagem a pessoas que corriam de um lado para outro ou ficavam a conversar alegremente na plataforma cujas pranchas rangiam debaixo dos pés. A sombra de um homem curvado pareceu sair de sob a terra junto do local onde Ana se encontrava; ouviu o retinir de um martelo num pedaço de ferro e em seguida, do lado oposto, uma voz irritada, que saía das trevas, e vociferava: "Mande um telegrama!" dizia, e outras gritavam: "Por aqui, se faz favor! O número 28!" Ana viu passar diante de si vultos cobertos de neve, atrás dos quais dois senhores caminhavam fumando tranquilamente. Ana respirou outra vez a plenos pulmões o ar frio, e, já com a mão na portinhola do compartimento, de novo se preparava para embarcar quando um homem de capote militar se aproximou, ocultando a luz do farol. Ana observou-o e reconheceu Vronski. Este levou a mão ao barrete, inclinou-se e perguntou-lhe se podia ser útil em alguma coisa. Ana olhou-o um momento sem responder. Embora ele estivesse de costas para a luz, julgou ver-lhe nos olhos e na fisionomia a expressão de respeitoso entusiasmo que tanto a impressionara na véspera. Acabava de dizer para si mesma, depois de o repetir tantas vezes e tantas vezes naqueles últimos dias, que Vrosnki, para ela, era um rapaz como outro qualquer que encontrava por todos os lados da sociedade, e em quem nunca se permitiria pensar, e eis que, de repente, ao vê-lo, se apoderava dela a alegria e o orgulho. Não precisava de lhe perguntar por que estava ali. Estava ali, sabia-o com toda a certeza, como se lhe tivesse dito, evidentemente, para se encontrar com ela. Vejamos: Na tensão, o cenário era de tempestade, o vento sibilava, a porta batia, a estranha sombra de "um homem curvado" – o próprio Vronski, vozes e vultos – a metáfora anuncia a tragédia. A pulsação narrativa torna-se enevoada, dramática. Portanto, o tom é dramático. O iniciante precisa saber que, em literatura, as coisas, em geral, não devem ser ditas, mas narradas. Antecipar ou julgar o futuro relacionamento dos dois é erro grosseiro. Do mais absoluto erro. A passagem se dá numa frase, com o aparecimento do futuro amante – "Ana observou-o e reconheceu Vronski" – num vigoroso corte narrativo. Quase num anúncio fatídico: aquele que sai das trevas. E que leva o leitor ao terceiro movimento. Para um autor com graves preocupações religiosas, isso é claramente um julgamento. Na conclusão, a voz indireta de Ana se manifesta, passa da tensão para a euforia e, antes, uma nova frase surpreende: "Nos olhos e na fisionomia a expressão de respeitoso entusiasmo que tanto a impressionara na véspera". Na véspera? Onde isso ficou dito? Talvez ali: "Seus brilhosos olhos cinzentos que pareciam escuros graças às espessas pestanas, detiveram-se nele, amistosos e atentos, como se o reconhecessem [...]" Ou: "Imediatamente se desviaram". Ela teria pensado naquele instante e o autor preferiu esconder? Aí atua a arte sutil da narrativa. OS AVANÇOS E SILÊNCIOS NARRATIVOS Enfim, o discurso revela que ela criou a expectativa do relacionamento amoroso. Pensou nele durante aqueles últimos dias e preferia vê-lo apenas como um outro rapaz qualquer que "encontrava por todos os lados da sociedade". Os recuos e os avanços, os silêncios e os abismos, vão sendo elaborados pelos olhares dos personagens, de forma tão rica e sutil que o leitor termina cúmplice de um futuro caso amoroso, num clima tenso, elevado e de conquista. Os personagens sabem conduzir a narrativa com simplicidade e força. Tolstoi esquematiza um texto que se aproxima e se separa, ao mesmo tempo, daquele outro de Flaubert, onde ela e Leon vivem as cenas eróticas. Em Tolstoi, a paixão das palavras e dos olhares, a emotividade; em Flaubert, a impessoalidade, o distanciamento emocional, o leitor solidário e envolvido, os olhares que também narram. APRESENTAÇÃO 2: O ESQUEMA DOS OLHARES JÁ ME REFERI À MANEIRA COMO ELE (FLAUBERT) FUNDE CONSTANTEMENTE A SUA VISÃO MAIS AGUDA COM A DE EMMA, SUPRINDO ASSIM AS DEFICIÊNCIAS DA EXPERIÊNCIA DELA; E A AJUDA É MÚTUA, POIS, POR OUTRO LADO, A VISÃO DELA É SEMPRE ATIVA NO QUE LHE DIZ RESPEITO, E A INTERVENÇÃO DE FLAUBERT É TÃO DISCRETA QUE O PONTO DE VISTA DE EMMA PARECE GOVERNAR A HISTÓRIA MUITO MAIS DO QUE REALMENTE O FAZ. Percy Lubbock ESQ UEMA DO JOGO DOS OLHARES Para elaborar a apresentação do personagem – a princípio conhecimento secreto do autor, depois entregue aos personagens e ao leitor devemos adotar o seguinte esquema, em três movimentos: 1) O narrador oculto finge que não sabe de nada – ou que parece não saber – e que, assim, precisa da opinião – do olhar – dos outros personagens; 2) Os personagens fingem que também não sabem de nada e fornecem informações, às vezes contraditórias ou erradas, se necessário, a outros personagens, que as remetem ao narrador oculto e ao leitor; 3) O leitor pede ajuda ao narrador oculto e aos outros personagens e, seduzido pelos dois, imagina que está também criando o texto, descobrindo sutilezas que somente ele parece conhecer. A SUTILEZA DO NARRADOR OCULTO EM PROUST Álvaro Lins trata da questão dos olhares narrativos em A técnica do romance em Marcel Proust. Ele assegura: "À la recherche du temps perdu oferece-nos a este respeito pelo menos três perspectivas: na primeira, as personagens nos aparecem segundo a visão que delas têm outras personagens; na segunda, mostram-se com seus atos e palavras, segundo o que desejariam ser ou como quereriam que os outros as vissem; na terceira, por fim, revelam-se nas suas fisionomias várias e sucessivas, à visão do narrador que – somente ele, pelo artifício da onisciência – poderá contemplá-las nas múltiplas faces e aspectos com que desfilam no decorrer da ficção. Quanto ao problema do narrador onisciente, preferimos, como já dissemos, o sutil narrador oculto que acompanha, sempre e sem dúvida, o olhar do personagem. Aliás, o próprio Álvaro Lins ainda acentua: Contudo, o que importa, para dar o tom do romance, a sua concepção como a sua atmosfera, não é uma perspectiva de espectador, nem mesmo de narrador onisciente, mas as perspectivas das próprias personagens. E estas perspectivas, sendo duas, não são, no entanto, nem fixas nem uniformes. Cada uma delas se desdobra em várias outras, conforme as oportunidades ou os A primeira impressão é de que a visão é do próprio Flaubert.estados de espírito. tão bela e erótica. a desconformidade entre o que parecem ser e o que fazem. Com as pontas dos dedos segurou o vestido na altura do joelho e. Mais do que o narrador onisciente – considerando as interferências que pode provocar – está no leitor a capacidade de interpretar as sutilezas do romance. Somente aí vamos perceber que os olhos são de Leon Dupuis. e de desejo. O PERSONAGEM PASSA A INFORMAÇÃO A construção e apresentação de Emma Bovary no capítulo II da segunda parte do romance de Flaubert é feita com afeto. e que se transformará no seu primeiro amante. A labareda iluminava-a em cheio. de certa maneira. com o passar da aragem que penetrava pela porta entreaberta. Com extrema habilidade o narrador oculto – que. é o leitor quem termina por definir o personagem. levantando-o assim até o tornozelo. Mas não. tão verdadeiros e examinadores: Do outro lado do fogão. o pé calçado em botinha negra. Mas ela sabe que ali estão os seus olhos. Embora com ressalvas ao papel do espectador. uma rapaz de cabelos louros a olhava . Mas quem a viu assim inteira. a variedade de sentimentos. não é. Estava toda corada. fez com ela entrasse na hospedagem de Homais. o narrador. deixou Charles para trás – "ele adormecera profundamente desde que anoitecera" – e passa a visão a outro personagem. quando chegou à cozinha. é a própria Emma – preparou a cena. Daí decorre a multiplicidade de seres que encontramos numa só personagem. sobre a perna de carneiro que girava no espeto. a descontinuidade nas ações. para os valores da época? Tão cheia de doçura? A sra. aproximou-se da lareira. tempos depois. penetrando com a sua luz o pano do vestido. que ela piscava de vez em quando. a quem ela nem sequer vira. Bovary. uma espécie de ternura secreta. os poros iguais da pele branca e até as pálpebras. estendeu para o lume. agora. cada um. não foi? Uma mulher linda. são a função e o efeito. O autor não pode tirar a autonomia dos personagens. quem a viu e informou ao leitor. OS OLHARES COM FUNÇÃO E EFEITO Sem dúvida. por último. É ele quem a vê e a interpreta. Ter o completo conhecimento do personagem é levá-lo à página através de técnicas elaboradas sem dúvidas ou inquietações. E segundo suas condições psicológicas. porém. pouco pálida. O que nos interessa. As mãos. Eis Leon em seu posto de observação. b) Inventar e c) Selecionar. selecionamos fatos e acontecimentos que são importantes. É na seleção que o escritor mostra a capacidade de contar e desenvolver a narrativa. Imaginamos uma história. Os personagens. e ao leitor. que tem o arbítrio de decidir.. E. Na história não pode entrar tudo que imaginamos e inventamos. uma moça bela. mas o erotismo é algo camuflado.] a mão era bonita. ao autor.. Efeito é a impressão que desejamos causar. Relembramos Henry James: a) Imaginar. por exemplo. A APRESENTAÇÃO PELO JULGAMENTO . vão passando as informações que podem chegar aos outros. a questão principal – a apresentação dos personagens – é feita pelos personagens.silenciosamente. depois inventamos a história e. Função é sempre o que queremos dizer. talvez [. tudo de acordo com o conhecimento do autor.. a matéria – palavra ou frase – ou o detalhe de uma cena.]" É claro que psicólogos e psicanalistas podem ver aí centenas de sugestões eróticas. ele se preocupa com as mãos de uma mulher de que ainda não conhece sequer o nome: "[. E somente o leitor tem o arbítrio.. No primeiro momento do romance. foi Charles. novamente. E a seleção é algo imprescindível. como quem diz: "Se você vai pagar quinhentos groshë pela morte que causou. Com a ajuda de personagens decisivos. Kadaré faz de conta que não conhece nem descreve o . ao mesmo tempo. Em Flaubert. o esquema do jogo dos olhares vai ficar mais compreensível. estudaremos o caso da apresentação através de um personagem secundário. Gjorg escreve e tem estilo. É aí que encontra o homem e começa a fazer a apresentação – pelo julgamento – com os olhos para os leitores. que Gjorg não notara até então. espiava a tarja negra da manga. movimenta-se através da ação de três personagens básicos: Gjorg. O narrador precisa da opinião do personagem. temos uma personagem – Emma O Bovary – que é o centro da preocupação romanesca. Há entre os três uma densidade de olhares. depois de assassinar uma pessoa. É. porém. por assim dizer. As primeiras imagens: O estalajadeiro. Entra numa estalagem tosca e pobre. ao dizer: "Quer alguma coisa?". o que enriquece a narrativa e a torna mais ágil. Ela atrai todas as cenas. aparece diante dele. pensou Gjorg. Agora. Todas as atenções.] aparece diante dele" – e sabemos que Gojrg é.. Bessian e Diana. Constroem leituras contraditórias. pois. de Kadaré. E até divergentes. não custa nada deixar um ou dois na minha estalagem". "sem dúvida um espertalhão". em vez de fitá-lo nos olhos. sobretudo naquilo que diz respeito ao estalajadeiro – um intrigante personagem montanhês que não tem nome. inquieta. O romance Abril despedaçado. Eles fazem a apresentação dos personagens pelos olhares. a narradora da história. Com certeza. o narrador oculto e o personagem.. Ou seja. cansado e torturado. É natural. e em estados psicológicos diferentes. Está faminto. O narrador oculto finge não saber de nada. Apenas uma leve marcação deste narrador oculto – "o estalajadeiro [. para pagar a dívida do sangue – uma espécie de imposto que os matadores pagam às autoridades na Albânia. Revela essa figura estranha. E em seguida: Era um estalajadeiro magro e um pouco torto. Ele aparece a Gjorg no momento em que este faz uma longa viagem pelas montanhas. . nem mesmo fora notado. Não há uma só palavra de reconsideração. Apenas vesgo. o homem insistiu em não enfrentá-lo. o que releva. apesar da advertência de Bessian: "Ele é vesgo". o estado de espírito em que Gjorg se encontra. Somente quando ele retorna com o prato de feijão solicitado. e "espiava a tarja negra da manga". A irritação de Gjorg continua com a força do advérbio de modo terminado em mente e o adjetivo pejorativo: Os estalajadeiro. mais tarde. [.] e o estalajadeiro troncho correu para eles. o estalajadeiro irrompe de repente: Entretanto. Não podemos esquecer que. e ele surge de algum lugar. Apenas uma rápida reflexão. não tem a mesma opinião. além de espertalhão. "desengonçadamente" – refletem o julgamento de Gjorg. o estalajadeiro. vesgo e troncho. plena autonomia do personagem. Nenhuma interferência do autor. Na cena seguinte. em que se revela a preocupação com o imposto a pagar.] O estalajadeiro conduziu desengonçadamente o grupo [.. Mas o estalajadeiro seria apenas esse personagem espertalhão. na cena de Gjorg. movimentando-se desajeitadamente entre os bancos [. A MARCHA LENTA DO OLHAR Percebemos. portanto desconhecido. Kadaré opta pelo uso agressivo do advérbio – "desajeitadamente" e "desengonçadamente" – e do adjetivo troncho. que essas palavras – desajeitadamente". sem qualidades morais ou físicas? Diana.. o que provocava raiva e julgamento.. então. no instante em que chegam também na estalagem. que Gjorg não notara até então. olhando "para um ponto do outro lado"..] De propósito – para evitar discurso moralista e falsa interpretação –. agora não é um espertalhão que não enfrenta a vítima com os olhos. com clareza. acompanhando com os olhos a apresentação do personagem – ele conhece e faz a apresentação. O estalajadeiro desviava constantemente os olhos. Portanto. apareceu diante dele. Gjorg o via "magro e um pouco torto". . Gjorg percebe que é vesgo. "troncho"..estalajadeiro em nenhum momento. é "um outro". Vai precisar de algum tempo. Nem de longe é o mesmo estalajadeiro visto por Gjorg. que saiu por último. tem outras . "Às ordens. é como se o estalajadeiro estivesse surgindo pela primeira vez na história. não é o narrador oculto. o que ela fez com um leve salto. rigorosamente. com destaque para o artigo indefinido. é. Ela olhou e viu três ou quatro pessoas que haviam saído para admirar os recém-chegados. Um outro. a princípio. cheias de curiosidade. Kadaré esconde-o e ele é chamado apenas de "um outro". mesmo assim. claramente. adjetivos pejorativos. surge o estalajadeiro – chamado aí apenas de "um outro" – com o cão. passando pelas pessoas que se mostram e. o que significa também que não é um personagem qualquer. parece – e só parece – estar ali por acaso. E. Vejamos: Dois elementos são utilizados para construção do olhar na cena. com a força e a aridez da primeira – ali havia o estilo de Gjorg: advérbios terminados em mente. o destacado mas não ofendido "um outro" e que tem "um andar claudicante" – o primeiro instante da observadora. Agora a montagem é bem diferente. Três ou quatro pessoas haviam saído à porta e. com segurança. só depois. embora peça atenção. ESCONDIDO NA MULTIDÃO A cena se revela tecnicamente bem construída porque. Aqui há. Diana e o marido chegavam à estalagem. Já se via que era o estalajadeiro. Diana olhou na direção da estalagem. seguido de um cão coxo. não é Gjorg nem Bessian. espiavam os recém-chegados. Há uma marcha lenta. aproximou-se com um andar claudicante. Sem dizer nada. senhores". o leitor não perceberá logo que se trata do estalajadeiro. Foi escrito na primeira cena. marcação pesada. disse. verbos altissonantes. um novo narrador – alguém que não é Kadaré. AS MUDANÇAS DE CARACTERES A delicadeza da cena contrasta. Sem tirar a mão do braço do marido. Bessian apeou na frente e deu a mão à mulher para ajudá-la a descer. Diana. com certeza. não ofende. cujos "olhos fitavam um pedaço da parede onde não havia nem porta nem nenhum outro tipo de entrada". O leitor reconhece as contradições e pede ajuda aos outros personagens ou narrador oculto ou autor. que vai buscar imediatamente na memória os elementos informados por Gjorg. Prepara o leitor para o personagem que vai encontrar. acrescido de um novo elemento: o cão cotó. não é culpa do estalajadeiro. A personagem manifesta a sua curiosidade. A MISSÃO DO CÃO COTÓ Isso funciona muito bem. Vem de fora. de forma definitiva. justificando-o: a feiúra não é culpa dele. Diana olhava para ele espantada. a relação psicológica é atenuada. Não precisa interpretar ou reagir. agora sem agressão ou afeto. Nada de "desengonçadamente" ou "desajeitadamente". o olhar do leitor. Ele é vesgo. A voz narrativa – a voz da personagem – é de afeto e de compaixão. não nasceu com ele. Ao contrário de Gjorg. Em Diana. e pronto. feito ela não quisesse reprovar – ou testemunhar – imediatamente o estalajadeiro. A voz narrativa de Bessian desequilibra e joga o julgamento para o leitor. A marcha lenta dos olhares oferece novas possibilidades. Na primeira vez o cão não aparece porque não interessava a Gjorg justificar o estalajadeiro. A PARTICIPAÇÃO DO LEITOR Entra. de certa forma enfraquecida. O estilo de Diana é leve e sem afetação. o estalajadeiro impressiona Diana. já agora preocupada com ele. mas não agride. que está reconhecendo o . Um elemento metafórico exterior. Mesmo assim o cão é abandonado e não aparece mais. que ofende e agride. tem agora apenas "um andar claudicante". Basta constatar. Cumpriu sua missão narrativa Isolado e só. compõe as suas atribulações. Conduz um cão cotó – como se a narradora quisesse transferir os defeitos físicos do personagem para o cão. está fora.características. Somente nesse instante ele percebe. "troncho". e Bessian lhe sussurrou: "Ele é vesgo!" Esse corte narrativo mostra a definição do personagem. E é sempre bom ficarmos atentos. É sempre bom observarmos o uso dos verbos. Múltiplo. "desaparecer" e "voltar" – mostra a impiedade do julgamento e seu interesse em provocar danos na interpretação do homem. também lemos os personagens de ficção. trouxe outras. no segundo. ora de um lado ora do outro. que dão firmeza à frase. Os movimentos de suas juntas traduziam vivacidade e também uma certa inquietação. o que sempre resulta num trabalho enriquecedor. leveza e doçura. O que se deve perceber é que para a apresentação do personagem entram em jogo também as nossas alegrias e as nossas antipatias. modos diferentes de julgamento. nossas maneiras de interpretar as pessoas e os acontecimentos. sem dúvida. Estabelecemos o segundo movimento do olhar: Os personagens fazem de conta que não sabem de nada e fornecem informações às vezes contraditórias ou erradas a outros personagens que as remetem ao leitor. "tirar". para afinal voltar trazendo a xícara de café. movimentando-se desajeitadamente entre os bancos. E que pede ao leitor que participe desse . sobretudo os verbos altissonantes. quando chega transtornado ao mesmo local: O estalajadeiro. o tempo todo. OS VERBOS ALTISSONANTES No primeiro texto. enaltecem o discurso e agitam o personagem. a rapidez dos verbos – "movimentar". já agora enternecido: O estalajadeiro os acompanhou até a porta. Duas visões de um mesmo personagem em momentos distintos da narrativa. sim. "trazer". tirou alguma coisa da mesa. depois desapareceu mais uma vez. àquela outra visão de Gjorg. Neles aparecem os nossos sentimentos mais antagônicos e não devemos perder isso de vista. Oposta. aos personagens em oposição – personagens com caracteres bem distintos –. em consequência. Mas será ele mesmo? Ou o mesmo? A doçura e a leveza de Diana encontram. como dissemos. a pontuação apresenta.estalajadeiro. Porque a exclamação de Bessian é vigorosa. o mesmo objeto. que criam choques e. Assim como lemos a sociedade. Com o máximo de habilidade e de perícia. sobretudo em relação a Frédéric. porque é básico. a corrente está partida. na construção de Educação sentimental. passa as informações para o personagem e ele não sabe levá-la a outro – ou outros – personagem. mas não saber o que estava fazendo caracterizou o erro absoluto. E deixa claro que um personagem tão medíocre não poderia concentrar essa única visão da personagem ou da história porque o leitor não pode se comunicar com ele. Para ele. Ainda mais: O leitor imaginará sempre que também participa da construção e do desenvolvimento da história. O fato de o autor francês ter errado. O IMPERDOÁVEL "ERRO" DE FLAUBERT Foi a falta de multiplicidade de visões que levou Henry James a criticar Flaubert. ainda. que "é melhor mencionar imediatamente que se trata de um erro gravemente contra ele". A COMUNICAÇÃO FRACASSADA James não perdoa. . ressalta. Ou seja. o fato de Madame Arnoux ser construída por uma única visão – a de Fréderic – é erro lastimável. o leitor não consegue receber do personagem as informações básicas para a construção da narrativa. porque ela também falhou em relação aos outros personagens. o que chama de "épico do comum". Ou seja. Da história e dos personagens. fundamental e definitivo que o uso das múltiplas visões no conhecimento do personagem enriquece a obra. que classifica de comprometedor. de imediato. Não faz nenhuma concessão e. o romance fracassa. e o personagem ao leitor. ou da forma como ela devia ser mostrada. com veemência. não se comunica com outros personagens. Quebra a corrente. para ele. Insistimos: Se o narrador faz de conta que não conhece. Para Henry James. Considera.jogo de quebra-cabeça. Flaubert tinha de saber que cometia o erro. Uma aterradora realidade. Afirma: O que compete a nós mostrar é que ele realmente pensou que a estava mostrando da melhor maneira que podia. Será seduzido a participar dessa tarefa. se justifica. em Flaubert. duramente. que o erro foi mais imperdoável porque Flaubert não percebeu esse fracasso. com o que não concordamos. Ou seja: a pulsação do personagem não passa para a pulsação da cena. Frédéric falha. O foco narrativo pertence ao autor. Personagens medíocres podem gerar bons romances. na maioria das vezes. Para Forster. por onde vai caminhar a observação do narrador oculto ou dos personagens. Felicidade. sem aspiração ou zelo. o personagem está "incansavelmente ocupado com as relações humanas". Uma obsessão. Charles. segundo mesmo a expressão de Henry James. Quando a apresentação – ou o exame – é feita de maneira equivocada. Por isso. para que o universo do personagem pairasse pleno em todo o romance. FOCO NARRATIVO NÃO É PONTO DE VISTA O múltiplo conhecimento do personagem é importante. Mas quando ele quebra a corrente. uma espécie de "épico do comum" e que "nos afeta como um épico sem ar". assim. não provoca ou questiona o conflito. não é o ponto de vista. Os personagens medíocres – ou os homens medíocres – sempre impressionaram Flaubert – a própria Emma Bovary. isso não ocorre porque ele é um personagem medíocre. e não se comunica. Foco narrativo é a técnica de enfoque. O autor precisa conhecer muito bem seu personagem e ele trabalhará os movimentos. no foco narrativo – que. O próprio Flaubert disse isso várias vezes. fica como? O definitivo é que o autor iniciante faça a seleção das técnicas com o máximo de consciência. Porque cabe ao personagem decidir. mas nem assim deixando de ser bons personagens. Conhece. Ponto de vista é a ideologia do personagem – aquilo que considera básico a respeito de assuntos e de personagens no seu universo ou dos outros. o autor. a comunicação deixa de ser feita. o ponto de vista pertence ao personagem. inevitavelmente. mas não é a única técnica que pode ser explorada. Tudo tem início. Se. E ele deve saber mais sobre os outros personagens do que todos nós – escritores e leitores. no entanto. e aí. Ou todos os personagens decidem. Parece que houve uma opção definitiva e radical do autor em relação à técnica. aliás. no conhecimento. daí porque "podemos saber mais sobre ele do que sobre qualquer dos nossos semelhantes". O conflito ou o questionamento fica por conta . a comunicação fracassa. todos medíocres. ao narrador oculto que organiza – e só organiza – a narrativa. Decida o foco narrativo e o ponto de vista. — D. voltou . aí há uma ilustração. não deu por mim. Vamos ficar com Bentinho atrás da porta e no corredor para recebermos a comunicação. Dessa forma. Através das vozes. E. E escutemos José Dias. onde o enredo começa a se desenvolver. o autor justifica o título do livro e justifica-se – há uma lenda segundo a qual esse encontro entre Dom Casmurro e o poeta realmente aconteceu entre Machado de Assis e um famoso poeta brasileiro –. explica os motivos que o levaram a escrevê-lo. num rápido corte narrativo. MACHADO. depois de alguns instantes de concentração. surge Bentinho. Todos os outros emergem. Muitas vezes.da apresentação. Bentinho ia entrar na sala e ouviu vozes. ouve os outros personagens e eles informam a ele e ao leitor. o Dom Casmurro e. Desaparece. e já agora pode haver uma dificuldade. Não há um ângulo de visão. típica da apresentação – e o personagem emerge. e no segundo – "Do livro". No terceiro capítulo – "A denúncia" –. Bentinho é apresentado e. Ou seja. então. escondido atrás da porta. dirá mais tarde – e aos outros personagens e ao leitor – pelo ouvido. conhecimento e apresentação correm lado a lado. os leitores apresentam os outros personagens. pode ouvir mas não pode ver. O foco narrativo é a primeira pessoa. A APRESENTAÇÃO PELO OUVIDO Em Dom Casmurro. Como isso acontece? Dom Casmurro é um livro didático para o estudo da construção do romance. Não sempre. Glória. O mestre de cerimônia é José Dias. Realiza-se a perfeita comunicação na apresentação: o personagem não sabe de nada. a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo. — Que dificuldade? Minha mãe quis saber o que era. com muitas elipses e segredos. as informações. desaparece o conflito central da obra – o verdadeiro conflito de Dom Casmurro aparece mais tarde. No primeiro capítulo – "Do título". Glória. Machado usa uma exemplar estratégia de apresentação. não pelo olhar. Não sabe quem está na sala. José Dias. A primeira personagem que ele chama é D. Os outros personagens são chamados a entrar no romance. a mãe de Bentinho. veio ver se havia alguém no corredor. o personagem Bentinho é apresentado a si mesmo – "foi a mim que ele me denunciou". É através dele que a conhecemos. pelo ouvido. Ele se esconde atrás da porta. ele pode adicionar novas informações. prima Justina?? Uma reunião de família. disse que a dificuldade estava na casa ao pé. Glória. . Ele soube – assim como nós – através das chamadas nominais. Conhecemos José Dias pela voz e pela intriga. E numa sequência muito lógica. Glória. você que acha. abafando a voz. no que é rebatido pela mulher. Na narrativa em primeira pessoa. acrescenta Bentinho. uma aula de montagem da história. No entanto. a senhora terá muito que lutar para separá-la. o homem aumenta a suspeita do relacionamento entre os meninos. mas não me atrevia. é identificada como a mãe – "minha mãe quis saber". você que acha? Seguidas as explicações e opiniões. chegou a vez do tio Cosme – nomeado tio pelo próprio Bentinho – chamar mais uma personagem: — . de quem ele ouvira a voz. Este princípio de Dom Casmurro é didático. É ela quem chama um novo personagem. De forma alguma ele poderia nomear as pessoas que estavam reunidas. — A gente do Pádua? — Há muito tempo estou para lhe dizer isto. portanto. que joga a narrativa para a frente. Nós não sabíamos quem estava na sala. de forma a conduzir o leitor. ouvidas as personagens. a não ser pelo ouvido.. além de José Dias. e esta é a dificuldade. A HIERAQ UIA DA APRESENTAÇÃO A partir do capítulo 4 Machado faz com que os personagens sejam examinados através de cortes narrativos. Mano Cosme. não pode antecipar. o personagem não vê essas áreas obscuras – sobretudo uma reunião da qual ele não participa e que se realiza em lugar fechado – e.. sob o foco de Bentinho. no final da fala: — Pois eu hei de crer?.. É o que ocorre aqui. Na sequência. com hierarquia. a gente do Pádua.e. D. Em Machado. e ele chama D.. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga. porque se eles pegam de namoro. Bentinho também não. assim como são didáticos os dois primeiros capítulos de São Bernardo. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida. Talvez valha a pena dá-la. e tio Cosme. espécie de chefe da casa. a sinfonia. capítulo 7. A Teoria da Iluminação em plena atividade. Glória." – surpreendemos os personagens também em cena." E de Turguêniev. Flaubert fez Charles entrar na história através de uma sala de aula. e os verdadeiros condutores da casa. Essas pessoas estão aí. é só um capítulo.. tudo o que sucedera antes foi o pintar e o vestir das pessoas que tinham de entrarem cena".. uma tarde clara e fresca. desse modo. O próprio Machado ressalta: Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro. de outro. Os personagens se iluminam. e agora são conhecidas. apresentando notáveis exercícios de criação. e. o preparo das rabecas. o acender das luzes.. há uma hierarquia no conhecimento. Glória. O único problema é saber se o diálogo não traz muito os personagens à tona. conforme Bentinho: "Verdadeiramente foi o princípio da minha vida. José Dias. sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. Parece que voltamos àquela sugestão de Faulkner: "Simplesmente imaginei um grupo de pessoas e as sujeitei às catástrofes naturais. Ele realiza a didática da criação do romance. Dom Casmurro é quase um meta- romance. Poderíamos usar o diálogo na apresentação. UMA DIDÁTICA DA CRIAÇÃO A aula de Machado de Assis prossegue. a apresentação ocorre com a chamada dos personagens à cena. tio Cosme.. direto. não ocorrendo ainda a apresentação. José Dias. prima Justina. como disponíveis. Agora é que eu ia começar com a minha ópera. Assim mesmo. De um lado.Capítulos 4 e 5. D. em tal maneira que me fez crer nela. a função do diálogo aberto. o efeito que ele pode causar no leitor. e só no capítulo 21. no capítulo 8. capítulo 6.. tudo o que sucedera antes foi como o pintar e o vestir das pessoas que tinham de entrar em cena. D. aqueles mais decisivos: o intrigante... a mãe. na falta do pai. através de Henry James: "Ele as via. E explicou-me um dia a definição. Naquele nosso exemplo de ficção desde o início – "a moça se apaixonou. Primeiro. . expostas ao acaso e às complicações da existência".. confirmam-se os traços do conhecimento. "A vida é uma ópera " dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu. nessa sala. conversando. De maneira alguma. faz com que ela seja apresentada. apertada em um vestido de chita. e usando a metáfora da ópera. eram curadas com amor. Os cabelos grossos. meio desbotado. Há coros numerosos. com as pontas atadas uma à outra. feitos em duas tranças. No diálogo indireto livre a impressão é de uma atuação psicológica. tenso e inquieto: Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos. muitos bailados.. Tudo isso não pode ser esquecido. . em som estridente. Podemos. e a orquestração é excelente [.. Um grito da mãe. a que ela mesma dera alguns pontos. Morena. em voz baixa. em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. para destacar a importância dessa personagem. mostrando que "o tenor e o barítono (personagens centrais) lutam pelo soprano. Calçava sapatos de duraque. ouvi bradar uma voz de dentro da casa". rasos e velhos. Um detalhe. Mas não há regra fixa. As técnicas aqui desenvolvidas são indicativas. Cada autor iniciante deve procurar descobrir e revelar a própria técnica. Ela troca algumas palavras com a mãe e só em seguida vem o conhecimento físico e já. interior. nariz reto e comprido. a despeito de alguns ofícios rudes. forte e cheia. Machado traça a distribuição dos personagens na história. entre outras técnicas. Não uma apresentação qualquer. não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador. É um grito e. Em seguida. O diálogo direto aqui em Machado funciona muito bem. utilizar o diálogo interior entre aspas. porque a função dele é trazer mesmo todo o problema de Bentinho para os olhos do leitor. em presença do baixo e dos comprimários (personagens secundários). tinha boca fina e o queixo largo. um alerta: "De repente. Bentinho destaca. sem a exibição dos elementos. pelos olhos. mas cheio de significado técnico. As mãos. outra vez. quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor. à moda do tempo. no caso de uma necessidade de densidade maior e mais grave. mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. olhos claros e grandes. alta. E o efeito fica por conta da impressão que isso pode causar. um detalhe sutil e aparentemente bobo.]" A CHAMADA DE CAPITU Depois Capitu é chamada. desciam-lhe pelas costas. por isso mesmo. " OS PERSONAGENS REFLETIDOS Como em Dom Casmurro. o que dificulta a visão de Gjorg. É o caso de Ali Binak e seus auxiliares. portanto é ele quem escreve. Um criador inteligente percebe que precisa usar estratégias para conquistar o leitor e não afastá-lo do livro. no meio do grupo. o personagem pode dizer quem está ali porque sabe – e viu – quando entrou na sala. e já agora com vozes indiretas – vozes que não são explícitas e de personagens inominados. Destacamos a habilidade do escritor. indicativas. até porque tinha "plena consciência de sua fama". A maneira como o autor atua para a apresentação dos personagens. Os personagens não são chamados. Agora. os outros são os seguintes: Atrás vinha outro. E os outros? Bem. Ligeiros traços físicos. mesmo que os personagens ali sejam mais ilustrativos. O terceiro exibia uma expressão arrogante que lhe arredondava as feições e umedecia os olhos. depois. que já encontrou a reunião em andamento. era baixo e tinha o rosto branco e frio". no entanto. E Gjorg é aí o narrador – a narração está sob o seu domínio. são refletidos participam da construção narrativa através de vozes indecisas. É movido pela curiosidade. "Um deles. dos ouvidos. estranhamente vestido à moda da cidade. . não ultrapassando os limites de sua técnica – muitos escritores fazem intervenções desastradas. um grupo de pessoas. os personagens vão para outra sala. primeiro através dos olhos e. sabemos que é o tal Ali Binak. Logo se via. confusas. Sabe por que os viu. mas não os conhece. OUVINDO VOZES INDIRETAS Noutro momento de Abril Despedaçado. sob sua perspectiva. que a atenção de todos se concentrava no homem baixo. sob a sua visão. Tivemos dois níveis de apresentação em Machado de Assis. O importante é destacar a estrutura narrativa. e ainda com Gjorg na estalagem. pelo menos em Dom Casmurro: pelos olhos e pelos ouvidos. porém. além do natural "ouvir. Kadaré – que chamaríamos de narrador oculto – só organiza o texto. com um paletó xadrez e culotes enfiados nas botas. conhecidos a princípio pelo aspecto físico. ao contrário de Bentinho. a apresentação pelo ouvido funciona de modo eficaz. revelado pelos verbos de marcação: "diziam" ou "perguntavam". de alguma forma – e ainda com perguntas –. O grau de dúvida e inquietação preocupa.. Ele pode não . absolutamente. Bentinho. AS VOZES CRIAM UM TECIDO FINO Nenhuma certeza.] E seus acompanhantes. As vozes e as narrativas se entrecruzam. Um jogo de simulação que faz a narrativa se movimentar.. vinha para acertar uma questão de divisas a ser arbitratada no dia seguinte num flamur vizinho [. o das roupas esquisitas. Anotações e exames devem existir para o escritor. quem é?. pergunta. Bentinho vai direto ao assunto. Oscilações e dúvidas no caráter do personagem criam um tecido fino narrador. no seu segredo ficcional. Gjorg pergunta. assim como as outras pessoas também não o conhecem. Apresentar o personagem não significa revelá-lo por inteiro. perguntavam.. Aqui os personagens refletidos ajudam. As vozes são coletivas – "diziam. sabe quem são. como afirma o próprio Kadaré. Uns diziam que na verdade ele viera tratar de outro caso. pergunta. O outro.] vontade de ficar para ouvir os comentários. Na primeira pessoa. mesmo escondido e sem ver ninguém... Ninguém tem certeza. o dos olhos claros. quem seria o outro? Dizia-se que era um médico. Gjorg sentiu [. no exame dos personagens. Por que Ali Binak estaria ali? Com certeza para tratar de algum caso complicado. Talvez tivessem entendido errado o motivo da vingança dele.."perguntavam". trata-se de sua família organizada e resolvida. "diziam". O personagem finge não conhecer os outros. E ouve. quem são? Reflete o personagem narrador em terceira pessoa. Daquela voz. Foram para outro aposento. Na sequência: Era possível que Ali Binak [. "Talvez". diziam. quem seria? De fato. numa de suas revelações da técnica.] Mas e o outro. Os homens entraram na estalagem. A técnica se apresenta justamente nesse entrecruzamento de vozes. criando apreensão no leitor. E MERCÊ DESSE FATO LIGA-SE NA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA. O QUE MAIS IMPORTA É QUE NÃO SÓ CONTEMPLAMOS ESTES DESTINOS E CONFLITOS À DISTÂNCIA. À CONTEMPLAÇÃO.chegar inteiro ao leitor. GRAÇAS À SELEÇÃO DOS ASPECTOS ESQUEMÁTICOS PREPARADOS E AO "POTENCIAL" DAS ZONAS INDETERMINADAS. A INTENSA PARTICIPAÇÃO EMOCIONAL. Faz parte de sua arte. Anatol Rosenfeld . OS PERSONAGENS ATINGEM UMA VALIDADE UNIVERSAL QUE EM NADA DIMINUI A SUA CONCREÇÃO INDIVIDUAL. CLASSIFICAÇÃO TODAVIA. faz parte da condução do enredo – mesmo esse enredo não tradicional. onde os elementos estão no jogo dos tempos verbais ou nas oscilações ou no aspecto físico – nos olhos ou nos ouvidos. a questão toda está na criatividade. a mais simples e interessante classificação de personagens. Isso é inquestionável. enriquecendo-se. INTERESSA O BÁSICO Partindo da nossa experiência. personagem ser vivo copiado da realidade. Diante disso. com a ajuda das suas experiências e dificuldades. Na voz narrativa. onde alcançou extraordinárias dimensão e projeção. Daí as classificações de personagem as mais diversas. sobretudo no conhecimento e na apresentação. Personagem agente da ação. UMA CLASSIFICAÇÃO SIMPLES E OBJETIVA Há inúmeras teorias a respeito da classificação do personagem – e dos personagens. não será estranho que deixemos de lado as classificações teóricas das diversas escolas literárias. talvez. A volta a Forster é interessante porque torna menos complexo o estudo da classificação dos personagens e apresenta as questões básicas. foi no século XX que o romance tornou-se motivo de maior especulação teórica. Que são o que interessa. pelos criadores. . E que nos ajuda muito a trabalhar. em geral – que não precisam ser analisadas aqui. do século XVIII. isso não é importante. mas com amplo apoio na criação. por assim dizer. voltaremos a E. O autor iniciante precisa de informações seguras. M. personagem elemento da linguística. Forster – na qualidade de criador e teórico – e que realizou. embora com o amparo em algumas reflexões teóricas. sobretudo. considerando que estamos apenas empenhados no estudo do processo criador da pulsação narrativa. A classificação é imensa. mas sustentados. atingindo um nível excelente no século XIX. Filho. no impulso e na intuição. Por aqueles que também elaboram teorias e análises. Aí basta criar sem preocupações formais. conforme ela mesma diz. é apenas Pomba Enamorada. Não é simplicidade ou ingenuidade. A terminologia pode levar a esse equívoco. Micawber". Serve de partida para qualquer conhecimento e apresentação. POMBA ENAMORADA É PLANA O autor de Aspectos do romance expõe os personagens planos: Em sua forma mais pura são construídos ao redor de uma ideia ou qualidade: quando há mais de um fator. as mentiras que pregue ou os pratos que quebre. ele não usa esta frase. Está aí a chave da mulher que perdeu até mesmo o nome. Ou: "Devo encobrir. O autor iniciante está trazendo os personagens para o seu controle. Senão vejamos: Acho que vou amar ele pra sempre. de Ly gia Fagundes Telles. Não pode falhar. tudo será feito para demonstrar o seu amor. mas ela o descreve completamente. Segurança plena. Essa é mrs. como "Nunca irei desamparar mr. nenhum dos desejos e dores pessoais que devem embaraçar o mais coerente dos criados. Básico. Micawber – diz que não vai desamparar mr. A mulher é a legítima – e perfeitíssima – personagem plana. onde quer que vá. No entanto. Qualquer coisa que faça. Para ilustrar o exemplo. . onde quer que vá. pensemos agora na "Pomba Enamorada". Este é Caleb Balderstone em The bride of Lammermoor. para amar Antenor – este tem um nome porque não perdeu a identidade – para sempre. feitos os esboços e o argumento. a pobreza da casa do meu patrão". Estão fechadas em seus desejos. atingimos o início da curva em direção aos redondos. e age assim. as mentiram que pregue ou os pratos que quebre". fora disso. Na realidade. Mesmo quando eles escrevem a narrativa. A personagem realmente plana pode ser expressa por uma só frase. ele não existe: nenhum prazer. Planas porque incapazes de alterar o rumo de suas vidas. Ou o rumo da narrativa. Forster classificou os personagens de: a) Planos e b) Redondos Isso é suficiente. Micawber. mesmo com subterfúgios. tudo é para encobrir a pobreza da casa do seu patrão. É o ponto de apoio. E será capaz de se manter assim em "qualquer coisa que faça. personagens planas não são personagens menores ou medíocres. É fundamental. ansiamos por indestrutibilidade. e para não perdermos de vista o problema da técnica. movendo-se através delas. mesmo os sofisticados. Não no caso específico de Ly gia. Nós todos queremos livros que perdurem. casa. num só ritmo psicológico e temporal. para o tom dramático. Isso é o que lhes dá. é a mesma mulher do início do conto. E. não tem nome próprio. No caso do conto de Ly gia. o reconhecimento emocional do leitor sempre encontrará a personagem. A primeira delas. Funciona tanto quanto O corvo. na sua trajetória inalterada. e. (Pomba Enamorada). e as preserva. e as personagens planas tendem a justificar-se por causa disso. de Poe. só o romântico P. mas não simplória. num retrospecto. chamamos a atenção. mas não arreda um milímetro. A segunda vantagem: É que mais tarde são facilmente lembradas pelo leitor. essa indestrutibilidade é a principal desculpa para uma obra de arte. ainda. envelhece. O leitor o apreende num só instante. AS VANTAGENS PARA O CRIADOR Para Forster. tem filhos. quando o livro que as produziu poderá decair [. mas tem uma profundidade psicológica incrível. tenta o suicídio. a personagem é a mesma. num só momento. a personagem é plana. E o efeito emocional se realiza pleno. O leitor se surpreende com a capacidade criadora dela a cada momento. Procura-o. Ela permanece intacta na mente do leitor. Quando necessário. não confundir plana com simples ou simplória. A grande capacidade criadora de Ly gia Fagundes Telles está na objetividade com que trata a personagem. que sejam refúgios e que seus habitantes sejam sempre os mesmos. para os não sofisticados. que parece fiel a . Porém. netos. embora numa perspectiva irônica do texto. é chamada apenas de "ela". pois este só nota a repetição de um nome próprio. com uma bela e legítima função: a da extensão. três vantagens na criação de personagens planas. O mesmo acontecendo com Antenor. Permanecem inalteradas em sua mente pelo fato de não terem sido transformadas pelas circunstâncias.. não pelo olho visual.] Todos nós. Só por uma questão didática. pelos menos. Pomba Enamorada não faz outra coisa senão lutar pelo amor de Antenor. No entanto.. uma qualidade confortante. É preciso. cuja personagem. porém. há ainda. se surpreende porque a autora tem enorme capacidade inventiva. insistimos. segundo afirma: É a de serem reconhecidas com facilidade sempre que aparecem: reconhecidas pelo olho emocional do leitor. me tire da cabeça pelo amor de Deus. também para sempre. mesmo quando muda muito de emprego ou ocupações. Enquanto ela o ama para sempre. São aqueles que nos instigam pelas oscilações de caráter. As pessoas de Dickens são quase sempre planas (Pip e David Copperfield aproximam-se da redondez. Talvez por serem ambos planos. pelo menos duas frases são identificadoras: 1) "Não o perseguisse mais porque já não estava aguentando" e 2) "Não queria namorar com ela porque estava namorando com outra. Sempre é conveniente que existam personagens tanto planos como redondos numa obra literária – conto. e mais . Quase cada uma pode ser resumida numa frase. Nele. E usando essa personagem. embora nem sempre tratados com a habilidade técnica que exigem.uma namorada ou noiva com quem vai casar. O caso de Dickens é significativo. aliás. o cruzamento emocional não acontece. ainda assim há essa maravilhosa sensação de profundidade humana. de acordo com os experimentalistas ou teóricos. A terceira vantagem: O romance que tem alguma complexidade requer com frequência gente "plana". Podemos afirmar que estão presentes em toda a narrativa universal. Inevitável. tanto quanto "redonda". OS REDONDOS DA TRADIÇÃO LITERÁRIA Quanto aos personagens redondos. Douglas faz supor. Se não convence. O decisivo é que a oposição de caracteres oferece contradições e controvérsias no interior da narrativa. é óbvio. romance. desde logo sabemos que apresentam um maior grau de complexidade – e não só de profundidade. ele a rejeita. às vezes só. Seja ele uma pessoa – conforme define Forster – ou um elemento da linguagem. que é atributo também do personagem plano. A consistência do personagem é que sempre dará força e importância à criação literária." Verificamos aí que não existe curva de personalidade em nenhum dos dois. de comportamento e de reflexão. crônica. ou casa. e o resultado de seu entrechoque assemelha- se à vida com maior exatidão do que Mr. em vez de sólidos). Agora: os dois são planos e são eternos. é plana. sistemática e obsessivamente. é plana pretendendo ser redonda. Se ela nunca surpreende. Isso. Possui a incalculabilidade da vida – a vida dentro das páginas de um livro. mantendo-se plano no seu comportamento. novela. pelo amor de Deus. mas tão timidamente que mais parecem bolhas. Forster é muito claro: O teste para uma personagem redonda está nela ser capaz de surpreender de modo convincente. alguns em Fielding – Parson Adamas. Tom Jones. da . Madame Bovary – que. Ou seja... "a mão nem por isso era bonita. viva. de Charlus e Saint Loup. Já uma antecipação do seu comportamento. erótica e sedutora. Primeiro momento: observação crítica das mãos de Emma. sem alternâncias de comportamento. A visão de Emma. Embora construída pela leveza e pela sutileza. Charles se apega ao aspecto físico e detalhado. os personagens que considera redondos. mas não de caráter. todos os personagens de Dostoiévski. Se naquele primeiro exame – no momento em que foi atender o pai dela com a perna quebrada –.. no segundo momento. como Moll Flanders. percebemos nela.]"–. Tremor de carnes.frequentemente. por exemplo: o antigo criado da família. ela é obsessivamente carnal. não convence.. feito se diz nas ruas.]". Mesmo lembrando que ela tremera – com medo do pai ou incomodada pela presença do médico – e agora esbanja erotismo. mostra-se no capítulo III. conforme sua própria definição: Todos os personagens principais em Guerra e paz. aventuresco. a visão que ele tem de Emma é verdadeiramente erótica. algumas de Proust. a Duquesa de Guermantes. porque é natural nela a paixão pelos homens. alguns de Charlotte Brontë. o romancista realiza sua tarefa de aclimatação e harmoniza a raça humana com os outros aspectos de sua obra. sem emoção ou arrojo. Mesmo quando tenta convencer pela surpresa. (E muitas mais. "o que ela possuía de verdadeiramente belo eram os olhos [. essa manifestação de caráter quando treme e erra tudo na presença do inútil Charles. feito e escrito por ele – quando "ficou admirado da alvura de suas unhas [. muito especialmente Lucy Snowe. É obsessivamente erótica e romântica.) EMMA BOVARY TEM ESTRUTURA PLANA Sempre me pareceu que Emma Bovary era uma personagem plana. isto não é um catálogo. E aponta. pode expandir-se e ter seus segredos sem ser controlada. M. Está toda dirigida para o romantismo carnal. Há alternâncias de visão. já no princípio.". Falha. em combinação com a outra espécie.. em seguida. Segundo momento: Emma se mostra erótica e sedutora. quando o pai dela já progredia na cura. alguns de Thackeray – tais como Becky e Beatrix. tem um livro inteiro para si.. embora estupidamente. Se não convence. A grande surpresa do personagem consiste. romance de amor. e. sem outra determinação que não fosse a paixão carnal. Estamos tratando de examiná-lo. dobrou-se um pouco para trás. com a convicção de que atuou como um apaixonado. Não precisamos justificá-lo. Essas duas ambíguas faces revelam-se ainda mais no pêndulo narrador: em primeira pessoa – naquela que poderia ser chamada de a primeira parte – e em terceira pessoa – na estranha mudança de foco narrativo do narrador – dos narradores. o romance tem dupla face: a política – o todo poderoso absoluto que tudo obtém e tudo sacrifica – e a romântica – o frágil amante desvalido que se lamenta e chora devorado pela própria paixão. um único caso. com a ponta da língua passando-lhe por entre os dentes finíssimos. os lábios e o pescoço estendidos. justamente. Susana. Saindo de uma paixão para outra. Romance de morte e de destruição e. mas segura de sua força. é redondo. dava pequenas lambidas no fundo do cálice. Não somente alguma coisa. Esperei até eu ter tudo. Até mesmo o suicídio é previsível. o personagem de Juan Rulfo. Por isso. Assim como é previsível também toda a existência de Charles. Talvez um tanto iludida pelo romantismo. já que se acreditava apenas um poderoso canalha que tudo pode e tudo quer contra os pobres e contra os ricos. absolutamente plano. em se descobrir nele um obsessivo amante. é plana". e. A correta classificação de Forster. ria de não sentir nada. NARRATIVA DE DUPLA FACE Pedro Páramo. com a cabeça inclinada. É ele próprio quem afirma que "se ela nunca surpreende. no entanto.primeira parte. Até porque não tinha em vista. é plana. A cena: Como estava quase vazio (o cálice de licor). digamos. Aqui na tradução de Eric Nepomuceno: Esperei trinta anos pelo seu regresso. mas tudo o que se pudesse conseguir de maneira que . de esperança. Atua da mesma forma do princípio ao fim do livro. de maneira bem acentuada. PEDRO PÁRAMO. A revelação completa – e não a justificação – desse amante atormentado e desequilibrado está num dos fragmentos centrais. Todas lhe interessavam. A técnica promove a redondez de Pedro Páramo. também uma história da injustiça. . permanente. hierarquização. No prefácio à edição da Record. Mas de muitas e ambíguas faces. de modo a compreender de maneira bem objetiva a distribuição dos personagens no texto. o leitor vai submergindo num mundo angustiante. há o problema de. e a de um povoado habitado por mortos e fantasmas. momento em que praticamente desaparece para ceder espaço a um narrador em terceira pessoa. tão romântica. A ORDEM DISTRIBUIDORA DOS PERSONAGENS Além de personagens planos e redondos – o que pode parecer uma classificação antiga e ultrapassada. outra. ainda assim. ao mesmo tempo. e o desejo de você.não nos sobrasse nenhum desejo. contraditoriamente. Vem dele a análise da dupla face de Pedro Páramo: Na primeira parte. intensificado pelo foco narrativo. em distintos planos narrativos. e em suas páginas rompem-se todas as fronteiras entre vivos e mortos. desesperado e belo. ressalta o caráter redondo do personagem. de vingança. e mais um painel do México de uma época imprecisa. Quantas vezes convidei seu pai para tornar a morar aqui. Diz ele: Pedro Páramo se move entre diferentes tempos. mas eficiente para servir de ponto de partida. que não terá presença muito ativa. através da reflexão estrutural. Precisamos investigar isso tudo. só o seu. sobretudo no nosso caso –. Uma narrativa não só de dupla face. e por isso mesmo. que não são marcados por números ou sequer identificados. Uma história de amor desmesurado. Construída em 70 fragmentos. a montagem dessa narrativa impressionou o crítico José Carlos González Boixo que. Eric Nepomuceno esclarece – de maneira objetiva – como este personagem se apresenta de forma tão cruel e. que produz cada vez mais tensão e. dizendo que precisava dele? Fiz isso até com mentiras. se sente identificado com o narrador em primeira pessoa. Há vários livros dentro deste romance conciso e contido. A segunda parte começa quando esse narrador situa o leitor no tempo que narra (fragmento 37). vamos dizer. e também a história de um filho à procura do pai. Podemos falar nos casos mais comuns de personagens: a) Centrais. Não é segredo para ninguém que Kadaré sofre uma forte influência de Shakespeare. ainda. Tomemos. tudo. O DRAMA HAMLETIANO No segredo do texto. desde as primeiras páginas até as últimas. Ricamente metafórico. Afinal. o estalajadeiro e o príncipe. Tem um tom hamletiano. A compreensão do texto deve ser total. nesse caso. mas serve para orientar o autor iniciante na estruturação da narrativa. segunda pessoa. Bessian e Diana formam a trinca de personagens centrais. Isso é técnica. o exemplo de Abril despedaçado. Há quem não goste de classificações. Dramático. no primeiro capítulo de Abril despedaçado. Tudo bem. Foco narrativo é a técnica que o autor escolhe para conduzir a narrativa – primeira pessoa. Gjorg . nos seus mínimos detalhes e nos seus menores segredos. Essa classificação também é primária. destacando-os uns dos outros e examinando-os separadamente. Aí toda a ideologia se mostra e permite a absoluta compreensão da intriga. Têm enredos diferentes. b) Secundários e c) Ilustrativos. o quarto. procuramos aqui aquilo que Lubbock expõe em A técnica da ficção: Tentei isolar nestas páginas os vários elementos do ofício. No entanto. que estranhamente conta com um capítulo à sua disposição. monólogo etc. O personagem secundário é Mark Ukaçjerra. E por quê? Porque não somente a história gira em torno deles. Na verdade. como refletem o ponto de vista do narrador oculto. Com segurança. Abril despedaçado começa com o drama de Gjorg. é preciso então que todo o foco narrativo esteja sobre ele. E dos trágicos gregos. o feitor do sangue. terceira pessoa. tenso e metafórico. e formam um único texto. espécie de coluna reveladora da narrativa. Gjorg. reúnem-se apenas nos movimentos de intercessão. Para que seja um personagem central. Tudo importa. nada deve permanecer na sombra para os criadores. paralelos. E os ilustrativos são o pai. obrigado a matar. O ponto de vista é a posição psicológica – opinião – do personagem ou do narrador oculto. com certeza. não sente o braço direito. Ele expõe o personagem em toda a sua grandeza. Algo inusitado. anoitece. E com o sono – dizem extinguir Dores do coração e as mil mazelas naturais A que a carne é sujeita. Kadaré evita o discurso direto. As articulações doíam. Densa. É preciso que o outro passe para matá-lo. e da absoluta ausência do escritor. Um tanto para a luz. um tanto para o não ser. Ele ocupa toda a cena. a introdução do solilóquio de Hamlet: Ser ou não ser – eis a questão. Aproxima os olhos da mira do fuzil. ora para "as romãzeiras silvestres". através dela. dar-lhe fim? Morrer. O que é melhor: lutar pela pacificação nas montanhas albanesas ou tornar a guerra ainda mais cruel? O CORRETO ENCONTRO DA PULSAÇÃO . eis uma consumação Ardentemente desejável. combatendo-o. o ser ou não ser exposto nas palavras. um tanto para a guerra. e é possível ver o suor da agonia escorrendo no seu rosto. Será mais nobre sofrer na alma Pedradas e flechadas do destino atroz Ou pegar em armas contra o mar de angústias – E. Densa e tensa. Um tanto para o ser.vive aquele instante dramático do ser ou não ser. Repetir o drama clássico seria imitação barata. temeroso. A mira do fuzil se transforma em elemento narrativo para expor a dúvida. o escritor albanês cria. Gjorg. Só isso. Ouve a voz do pai: Ele vai passar antes que a noite o impeça de mirar. que parece gotejar. É pendular: ora para a "neve que não derretera". uma bela sequência de metáforas. O possível criminoso tem medo. Um tanto para a paz. depois. que surpreende o leitor. quase amedrontado. Só por ilustração. Então a mira do fuzil começa a se mover. um tanto para o sangue. a inquietação. (Hamlet) Então. em toda a sua fraqueza. A ambientação é soturna. narra o drama. em agonia. dormir. são a mira do fuzil – portanto. que pareciam esperar desde o meio-dia para ver o que ele iria fazer. A NARRATIVA CARREGADA DE SENTIDO O discurso do personagem é muito claro: ora a neve (paz). ele aqui é central .. A narrativa pendular se fortalece. então. Ou do desejo do personagem de não ser responsável por essa guerra. das romãzeiras para os restos de neve. está em processo de agonia e de dor. no momento em que o autor consegue encontrar: a) A pulsação do personagem. ao longo da estrada. no sentido inverso.]" Portanto. Somente assim é possível alcançar um grande resultado técnico. Gjorg. Esse personagem central. Além de um dado curioso. a responsabilidade é da mira do fuzil e do cano da arma e não dele. ora a romãzeira (guerra). Seus olhos não são seus olhos. Sem qualquer interferência pode se transformar na pior de todas as manifestações do narrador. O que ele chamava dia extraordinário já se reduzia àqueles restos de neve e àquelas romãzeiras silvestres. Essa metáfora vai de encontro a outras metáforas. de que já falamos: a neve e a romãzeira.. por restos de neve que não derretera. ora a neve (paz).. os olhos tenham que ver através da mira do fuzil – na verdade. A infelicidade é que. pela mente. b) A pulsação da cena e c) A pulsação do leitor. ora a romãzeira (guerra). em se tratando da análise do personagem. É central porque conduz o texto. A ideia de que aquele era um dia extraordinário na sua vida lhe passou. duas frases muito fortes e definidoras: "Lentamente a mira do fuzil deslizou [.. através da mira do fuzil – ou seja: a metáfora absoluta da guerra permanente. na verdade. Os pastos mais adiante estavam pontilhados por romãzeiras silvestres. Entretanto.]" e "O cano da arma se moveu de novo [. nebulosa. não joguem sobre os seus ombros a responsabilidade. Tudo isso estrutura a pulsação narrativa. O cano da arma se moveu de novo. Assim: Lentamente a mira do fuzil deslizou. os olhos do personagem são a mira do fuzil. para refletir sobre esse problema tão grave. Conduz. suave e terna porque. se as metáforas interiorizam o personagem que narra. Não só porque ele aparece na frente. porque ele reflete a ideologia do romance – o ponto de vista. O fundamental a destacar é que nada está fora do personagem. parece narrativa de autor. Trata-se de questão intricada. através do discurso metafórico. importante na cena. não é interferência.ainda porque. A VISÃO EM VOZES ENTRECRUZADAS Bessian e Diana aparecem somente no terceiro capítulo. que reflete todo o romance. Assim. oferece a opinião dele. o que é perfeitamente possível – e na maioria dos casos aconselhável – o texto ficaria plano. Tinha pneus. ao invés do que aconteceu antes. estabelecendo um corte leve. esperar". De que maneira acontece essa visão introdutória. Portanto. "Ele vai passar antes que a noite o impeça de mirar. carregada de sentido. com peso reflexivo. ele narra a cena através de uma densa linguagem metafórica. aqui. É habilidade textual. como os veículos normalmente usados para passeios pela capital . branco. na verdade. digamos. em primeiro lugar. suave e alguma ternura na tragédia que se estabeleceu nos primeiro e segundo capítulos. provocam maior tensão. das aspas – no que Kadaré é mestre. com o crepúsculo. É preciso ter cuidado com isso. a princípio. e plena de técnica. Mas. com certeza" – disse-lhe o pai. sua introdução é feita através de uma visão que. Leve. Ou seja. A não interferência do narrador está no fato de que ele entrega todas as sensações e todas as visões a Gjorg. Como já dissemos. A intensificação disso está nas vozes entrecruzadas: Dali a pouco. "Basta ter paciência. dando-lhe a condição de condutor do texto. mas de solução clara depois de analisadas as partes. E não o é. As vozes se entrecruzam com o surgimento da fala do pai e com o uso adequado. e passaria uma ideia de relaxamento psicológico ao olhar do leitor. o narrador oculto promove a força gráfica que tem função e efeito – a função é revelar a angústia do personagem e o efeito é atrair a cumplicidade do leitor. os olhos do leitor não sofreriam a densidade dos pontos negros – os chamados urubus do texto que. na tradução de Bernardo Joffily ? A carruagem continuava a subir sem dificuldade a estradinha montanhesa. Retirando-se as aspas. se o tom é dramático. sobretudo. ficaria difícil fazer a pontaria. O ponto de vista a define. que . possuidora de uma leveza quase didática. A voz é de natureza sensível. As vozes entrecruzadas. Nesse momento. numa sequência singela. Coordena. Diana. Sua marcha pelos caminhos escarpados talvez parecesse ainda mais macia. não escreve. Voltamos a afirmar: a visão é resultado do estado psicológico dos personagens. sim. expõe apenas um traço de sua personalidade. Algo inconsciente. Com absoluta tranquilidade. O narrador oculto apenas os surpreende. Três frases e uma reflexão próxima da ingenuidade. O foco narrativo expõe. juntos. leveza e suavidade. relaxada no banco. De quem é a visão? E. voz feminina. É isso que quero dizer. encantada com a viagem rural. não fosse o bater dos cascos e o arquejar dos cavalos. – por isso são personagens centrais. que aparentavam não ter nada em comum com aquele meio de transporte janota – demonstrando em relação a ele apenas má vontade e um profundo desprezo. Tinha pneus. principalmente. Ao comentário de Diana. Exibe seu caráter de moça urbana. não fosse o bater dos cascos e o arquejar dos cavalos. feito quem fala apenas com os lábios. Juntos. A carruagem continuava a subir sem dificuldade a estradinha montanhesa.ou os veículos de aluguel. O personagem tem estilo. nesse exato instante. Não só os bancos eram forrados de veludo preto como seus elementos em geral apresentavam algo de aveludado. mas juntos de que maneira? Um exame paciente – embora às vezes pareça arbitrário – mostra que se trata daquela conversa silenciosa entre personagens de que fala Autran Dourado. Absolutamente feminina. que sugere também os diálogos e monólogos entrecruzados. Bessian responde: Sua marcha pelos caminhos escarpados talvez parecesse ainda mais macia. Sem dúvida: de Bessian e Diana. as opiniões? Porque o texto é rigorosamente opinativo. Não que as mulheres sejam ingênuas. Não só os bancos eram forrados de veludo como seus elementos em geral apresentavam algo aveludado. Uma conversa mental. até desejado. mas inconsciente. como os veículos normalmente usados para passeios pela capital ou os veículos de aluguel. A REVELAÇÃO DAS VOZES Em Diana. no episódio em que encontra o grupo sombrio. ganhando agressividade. "Nada". austero. observamos que a visão começa num tom brando e vai. passando pela depreciação com "aquele meio de transporte janota". Ismail Kadaré oferece muitas pistas para a técnica que está utilizando para construir Abril despedaçado. E não somente porque têm atividade principal. ressaltando "o bater dos cascos e o arquejar dos cavalos". com a mesma qualidade com que introduziu Gjorg através das metáforas e do jogo pendular do ser ou não ser – a mira do fuzil circulando. vigoroso. Então. magra e bela. já no capítulo seis. apresentem-se. a pouco e pouco. Em outra ocasião.aparentavam não ter nada em comum com aquele meio de transporte janota – demonstrando em relação a ele apenas má vontade e um profundo desprezo. fruto da irritação e da tensão da viagem. entrecruzando-se em silêncio: "O que você vai fazer com a 'bessa' de trinta dias?" "O que vou fazer?" pensou Gjorg. a . a voz masculina dá sequência à leveza feminina – para não perder o fluxo de continuidade – e vai ganhando identidade própria. As vozes preenchem o vazio de um instante peado. É uma conversa de caverna. impondo um esquisito "ele" – feito aquele nós da abertura de Madame Bovary – para desaguar num grito de irritação e força: Apenas má vontade e um desprezo profundo. O leitor atento verificará que tem personagens bem claros e definidos. Assim os personagens centrais são definidos. identifiquem sua personalidade. Ou central. De forma que agora podemos concluir que Kadaré prepara assim a participação de ambos na narrativa. sem aquele discurso aborrecido de "ela é alta. Os homens conversam e Gjorg ouve. o autor dá a pista: Lentamente as narrativas escapavam daquelas vestes de lã grossa. No começo. feio". fazendo com que exponham seus pontos de vista. como baratas pretas. casmurro. e ele é irritado. no final do capítulo três. A identidade se resolve na cena. enfim. claro. quando o casal – Bessian e Diana – conversa com uma anciã sobre a vendeta nas montanhas da Albânia. Num exame cuidadoso. através do foco narrativo. UMA CONVERSA DE CAVERNA Aliás. Secundário. seria exagero demais. por assim dizer. mas antecipação do próprio autor. Gostariam de arrancá-lo mesmo. a exemplo do que realiza. E Kadaré desejou que fosse assim. E até uma certa condescendência com ele. misteriosamente. A princípio imaginamos: não seria um personagem secundário com função central? A dúvida permanece por muito tempo. Mudavam também os espaços entre elas. Abril despedaçado é um romance estruturado nas vozes entrecruzadas. transformá-lo em central. a princípio sem nenhuma função. Tem a missão de esclarecer o conteúdo da história – embora nem fosse . no Brasil. sua fala estava pronta a passar de um estado ordinário para outro. Com certeza. Tão intruso que parece cortar o livro ao meio. À maneira de um fruto prestes a amadurecer. porém. porque é entregue. E a sua voz é a voz da técnica: Ela se pôs a contar detalhes sobre o neto e sobre como o haviam matado. E não só a ordem. O problema é que o caráter de Mark é limitado. Porém. E a sua principal função é essa mesma. Ele parece intruso. como se ali se instalasse um ar específico. Isso porque a técnica narrativa concede autonomia ao personagem. preocupação exclusiva – e até certo ponto entendida como inventiva – do analista. sem permitir que saia do seu domínio. muito colado. pois. mas sob o olhar do narrador oculto. novo: como o prelúdio de uma canção ou da melodia de uma carpideira. sobretudo em Os sinos da agonia.mulher se adianta e fala. tal o poder dos personagens. É a impressão que temos ao lê-lo pela primeira vez. doloroso e perturbador. Mesmo assim. tão esquisita a sua participação. não deixa de ser secundário. percebem que estão diante do personagem que explica. UM SECUNDÁRIO INTRUSO O capítulo quatro é tão estranho que poderia ser arrancado do livro. na aparência. Por isso o capítulo é tão estranho e esquisito. Depois. um homem fechado que se atormenta com a sua trágica função. sobretudo. a narrativa. ao narrador oculto que parece construí-lo de maneira bem próxima. Não é. o escritor mineiro Autran Dourado. a ordem de suas palavras e frases começou a sofrer uma transformação. Os leitores têm dificuldade de compreendê-lo. a de ser intruso. que já chamamos de livro não escrito. e os movimentos são pesados. de um tipo sombrio de monarquia – serve a um certo príncipe obscuro e misterioso – tem por missão cobrar o imposto das pessoas que são obrigadas a matar outras. derrubando dois ou três [. mas. talvez por não encontrar o lugar adequado. alimenta a briga entre famílias. ele não acompanha ao vivo os acontecimentos. Uma raiva surda. mas nas histórias.preciso.] Não sentia o mau cheiro que soprava das cidades hermafroditas? Ocorre que esse homem.. e tentava penetrar nas montanhas e contagiá-las também [. Tão pesado quanto ele próprio. através de uma linguagem severa. E os seus pensamentos. A bem da verdade. OS VERBOS. Uma das suas manifestações é esta: Mark Ukaçjerra voltou a sentir aquele desagradável vácuo no estômago. recuava outra vez entranhas adentro.. Tão austero quanto sua função social e política. Mete medo nas pessoas. com um gesto entre acariciador e brutal. Comporta-se de forma desprezível.. Ele mesmo. AS LEMBRANÇAS... algumas tremem ao ouvi-lo falar.]" A sua posição secundária na narrativa é destacada pelas lembranças. OS ADJETIVOS Os verbos. um conservador que busca o passado. . havia tempo detectara um vento amaldiçoado. O que enriquece demais o livro: as vozes se entrecruzam não só nos diálogos e nos monólogos.. A sua apresentação parece ser feita por outro autor. calunia. mente. O estilo de Mark é pesado. Ele tinha ânsias de vômito. mas precisa vê- los à distância. E desagradável. Em certo sentido.. Estas também se entrecruzam. monta a sua biografia. que soprava desde longe. inventa. É composto de austeridade e de lembranças.]" [. e ainda deve aumentar – através das mortes – a renda do governo a que está ligado.] deu mais um passo em direção à estante. das cidades e das planícies completamente privadas de virilidade.]" "Pela segunda vez a mão de Mark percorreu nervosamente os livros. buscava um caminho para emergir. Tão desagradável quanto sua atuação. mas o pior é que ele mesmo tem medo dele. tocou a fileira de revistas e livros contemporâneos [. mesclada de náusea. os adjetivos. austero e ameaçador. para fazê-lo sofrer.. através do pensamento. como se quisesse se penitenciar enfrentando aquela luz [. duros: "Cravou os olhos lá fora.. e sua mão. e ele mesmo treme ao ouvir sua voz.. que é chamado de feitor do sangue. Assim como das mais inusitadas e variadas linguagens: tempos verbais. por isso mesmo. cabendo ao autor iniciante criar as suas próprias técnicas. que os exemplos são para ser analisados. É ao mesmo tempo dispensável e indispensável. Não se pode passar por ele sem uma grande sensação de raiva e . que alimenta o medo para viver. Nunca devemos esquecer que nesse sentido Flaubert tinha razão – acrescentando. adjetivos. baseadas na observação. Kadaré cria um capítulo extremamente esquisito e. Mesmo considerando ser Mark um personagem secundário. diante de quem se humilha. Justamente o amo a quem ele venera. Talvez interesse cada vez mais aos teóricos. Esse. preposições. coloca Diana – uma das personagens decisivas da narrativa – no papel ilustrativo. já o dissemos. os personagens ilustrativos. reticências etc. conjunções. AS VARIAÇÕES ENTRE PERSONAGENS Por fim. Porque aquele capítulo tem vida própria. Em relação à Diana – uma das personagens centrais – é rude e grosseiro. ela havia de ser. incapaz de um gesto fidalgo: E logo diante de quem! Diante de uma mulher! Mulher não. ainda. é um detalhe que o autor iniciante deve observar com rigor. mas uma ninfa do mal. É devastador. Os verdadeiros criadores criam as suas teorias. Bela como as ninfas dos bosques. A classificação dos personagens não impõe condições. A construção do personagem secundário fica mais rica. pontuações – jogo de vírgulas e pontos. São aqueles de quem o autor lança mão para compor o estado psicológico dos personagens centrais e secundários. pontos e vírgulas. Para ilustrar esse comportamento. aliás. O verdadeiro criador deve cercar o seu trabalho das mais inusitadas variações entre personagens. de provocar a adesão do leitor. mais para o primeiro do que para o segundo. na experiência e no trabalho. embora em Abril despedaçado Kadaré tenha usado Diana para ilustrar o sentimento humano e trágico de Mark. capaz de fazer a maravilha da história. Mark é um conservador clássico. A oposição entre personagens se torna muito forte. não haveria de ameaçar o poderio do seu amo.Ali estão as suas raízes e justificam o seu comportamento insistentemente estúpido. bruxa. É desta oposição que nasce o choque narrativo. pronomes. Do contrário. de chamá-lo à participação. Afinal. porque as pessoas não se matavam e era preciso matar e morrer. E o surpreendente entrecruzamento de personagens. cumprir as regras trágicas da agonia. quando Gjorg havia chegado. depois de tomar conhecimento do caso mencionara inclusive o velho ditado: "O chumbo tanto faz furo como tem paga". no dia 18. Falara-lhe paternalmente. Daí o tratamento paternal que Mark dedicara a Gjorg. São vistos – não podem reagir – e não veem. "meu rapaz". com compaixão. uma ameaça. Apenas aquele 17 de março quase ficara sem mortes. O susto do leitor é justamente esse: encontrar alguém que nem sequer fora citado e que ocupa um capítulo inteiro. Com o agravante de que. uma adversária. onze. e cinco no dia 20. Gjorg é reduzido a um personagem que ilustra o estado de ânimo psicológico em que se encontra Mark. na véspera. oito mortes. que é tão importante quanto o entrecruzamento de vozes. . enquanto os outros dias eram pródigos: 16 de março. para que a monarquia se mantivesse plena. Aqui se realiza aquilo que poderíamos chamar de ciranda de personagens. A MORTE SALVADORA O dia 17 de março registrava apenas uma morte. Mas ocorre o entrecruzamento de histórias. Se Diana é uma bruxa. chamara-o de "meu filho". Mark Ukaçjerra o fitara nos olhos. O ENTRECRUZAMENTO DE PERSONAGENS Pois além de Diana. tornando-o ilustrativo de suas preocupações. a ponto de o outro encabular. Diante dessa força todos os personagens cairiam na classificação. A primeira porque ameaça a monarquia do sangue. louvara sua pontaria. até então. Uns passam para trás e outros para a frente. cinco no dia 19. reduzindo os outros personagens à mera ilustração. o jovem Gjorg transforma-se no carinhoso "meu filho" amado querido. o segundo porque a justifica. para pagar o seu tributo do sangue. com gratidão. Gjorg salvara do desastre um dia que se anunciara aterrador. Por isso. Mark não existe na história. Mark lia no caderno de anotações. menos o feitor do sangue. Mais: de sua personalidade atormentada.de nojo. senhor". como foi dupla a linguagem do começo da segunda parte. O problema é refletir as condições estruturais da obra e suas conquistas. signos ou singulares. sendo que o primeiro tem função psicológica. a imagem é dupla. em intersecção. Os dois veem de só uma vez. A INTERSECÇÃO DO OLHAR Os outros dois importantes personagens ilustrativos do romance são o estalajadeiro e Ali Binak. por natureza. serve para apresentar ao leitor o representante de um momento dramático. Os personagens mudam de posição para que a narrativa projete o efeito humano e técnico. e. Unas. Não é o caso de distinguir apenas personagens como pessoas ou personagens elementos linguísticos. Via-se que ele sofria ao correr entre os dois grupos tão distintos. Nesse aspecto. parecia se entrevar ainda mais. São duas. A marca da duplicidade de visões está nos verbos: "via-se" e "tinha-se". Imprecisos. dois personagens centrais atuam como personagens ilustrativos e isso é importante na narrativa pós-moderna. Assim. A morte salva a narrativa. com aquela espécie de diálogo – ou monólogo – entrecruzado. Precisas e claras. esbaforindo-se na sala estreita para servir os novos fregueses sem esquecer os mais antigos. por isso. É ilustrativo porque tem função social e. e Diana disse que queria apenas dois ovos fritos com um pouco de queijo. Como já verificamos anteriormente. Kadaré é habilidoso ao provocar uma terceira visão do estalajadeiro – que continua e continuará sempre inominado deste vez diante dos olhares perplexos de Diana e Bessian. . Na dúvida. o estalajadeiro é apresentado por Gjorg e Diana em circunstâncias bem diferentes. determinam que não há uma única visão. embora figura importante. e por vezes tinha-se a impressão de que seus membros do lado esquerdo se dirigiam a um grupo e os do lado direito ao outro. e o segundo ilustra a tragédia da vendeta nas montanhas albanesas. a que ele está para sempre ligado. sem atinar qual seria o mais importante. O estalajadeiro respondia a tudo com seu "sim. Assim: Bessian perguntou o que havia. a participação do autor iniciante é fundamental. ENREDO E PERSONAGENS EXPRIMEM. OS SIGNIFICADOS E VALORES QUE O ANIMAM. Antonio Candido . DESENVOLVIMENTO O ENREDO EXISTE ATRAVÉS DAS PERSONAGENS. A VISÃO DA VIDA QUE DECORRE DELE. OS INTUITOS DO ROMANCE. LIGADOS. AS PERSONAGENS VIVEM NO ENREDO. Na maioria das vezes. o sertão. não são fotógrafos espaciais. O problema também está ligado à estrutura psicológica do narrador. ali integrados. embora dois deles sejam tradicionais e se entrecruzem quase sempre: o psicológico e o real. onde. em que circunstâncias e de que forma os personagens estão sendo criados. sobretudo para o autor iniciante. Alguns escritores. mesmo quando o personagem precisa fragmentar a narrativa. o bairro etc. ou até por desconhecimento técnico. No sentido imediato. a sala. o espaço é facilmente identificável: a cidade. obedecem a uma linearidade espacial. por índole natural ou por preguiça. não desejam a pura . O problema central diz respeito à maneira como a narrativa se desenvolve. ou seja. Fecham muito o plano narrativo e se comportam como máquinas fotográficas de pouco alcance. O DESENVOLVIMENTO É O ENREDO O desenvolvimento do personagem está intimamente ligado ao enredo. O tempo nem sempre é fácil de ser compreendido. assim como aos problemas de espaço e de tempo narrativos – sempre um desafio para o criador. a casa. a praia. reagindo. num ângulo de chão. Essa varanda é uma larga galeria coberta. força. que o narrador pode estabelecer um sofisticado sistema técnico em que o espaço tenha uma função e um efeito absolutamente criadores. A NARRATIVA EM ÂNGULO FECHADO Por isso. Pois esses gêneros exigem. Como sua largura é igual na parte central e nas partes laterais. Isso é inquestionável. simplesmente". segundo Robbe-Grillet. neste instante. numa casa. Assim. densidade e. principalmente dramática ou trágica. quando deve ser apenas – e meramente – circunstancial. . Porém. pois apenas as lajes da varanda são alcançadas pelo sol. a fachada e a empena ocidental – ainda estão protegidas de seus raios pelo telhado (telhado comum à casa propriamente dita e à varanda). Ele é. Não se pode negar ao escritor o desejo de registrar. não raro. quase sempre. o perigo está em se considerar o registro permanente. Acontece também. Não há personagem mais importante do que o espaço. não há espaço mais importante do que o personagem. que formam a varanda e as duas faces verticais da quina da casa. claro.fotografia – ou o mero retrato criam ambientes e situações. Tudo pode ocorrer por decisão técnica: o autor precisa trabalhar em ângulo fechado para não comprometer a rigidez da narrativa. mas detém-se ali. Em dificuldades de sair dali. que cerca três lados da casa. da casa – isto é. Uma das propostas do chamado novo romance francês é justamente a de destacar que "o mundo não é significativo nem absurdo. de madeira. num jardim. o enredo se fecha num ângulo só – num pedaço de terra. As paredes. A literatura de ficção não tem compromisso com o registro – tem compromisso com a criação. Agora a sombra da coluna – a coluna que sustenta o ângulo sudoeste do telhado – divide em duas partes iguais o ângulo correspondente da varanda. o criador do novo romance francês. em ângulo reto. o mais grave é quando o autor pretende retratar o espaço. a sombra da beirada do telhado coincide exatamente com a linha. o traço da sombra projetada pela coluna chega exatamente à quina da casa. mas não se sentem aptos a desestruturar o espaço. É o caso da abertura de O ciúme. ainda demasiado alto no céu. A FUNÇÃO SECUNDÁRIA DO ENDEREÇO Aí o espaço obedece a um movimento da técnica narrativa em que espaço e paisagem têm a mesma função e a mesma importância que o personagem. de Alain Robbe- Grillet. Essa técnica faz com que o leitor conheça. No primeiro caso. Essa técnica é facilitada pelo uso da múltipla primeira pessoa – personagens que se revezam no desenvolvimento do texto – na divisão dos módulos e consegue plena eficácia. Absolutamente. a esses problemas.o líder do movimento. Nem mais militante político do que Julio Cortázar. no romance é facilmente identificável a criação direta e indireta de personagens. Há um equívoco enorme em se considerar. com leve organização do narrador oculto. o enredo tem função secundária – cada vez se ressaltando mais o personagem –. ainda. que puxa episódio. E políticas. Por isso mesmo o enredo – ou desenvolvimento – está submetido às regras internas da narrativa e não ao convencional "episódio puxa episódio. Na ficção moderna. e Essa terra apresenta os melhores níveis de criação da nossa literatura pós-moderna. de maneira que os personagens – e somente os personagens – conduzem a narrativa do princípio ao fim. destacando-se. Através dele – criação direta com autonomia – surgem Nelo. Técnica. que puxa episódio". Ninguém mais renovador e mais político. Nem mais polêmico e revolucionário – na escrita – do que Mario Vargas Llosa. a estruturação narrativa como algo fora da compreensão do humano e do social. Basta que o autor iniciante saiba colocar em seu processo técnico toda a carga de preocupações sociais. o pai e a mãe. Totoim é criado pelo autor para conduzir o desenvolvimento na primeira parte: "Essa terra me chama". A CRIAÇÃO DOS PERSONAGENS NO ENREDO Um autor brasileiro que apresenta grande vinculação com o político e o social é o baiano Antônio Torres. de maneira incisiva. A técnica serve. Há um perfeito entrecruzamento de vozes. Sua técnica de criação de personagens está intimamente ligada ao desenvolvimento – enredo – do texto. com profundidade. do que Gabriel Garcia Márquez. com certeza. por exemplo. Por isso. e não ao contrário. Mas isso não . a solidão metafísica do homem. assim criando sugestões que terminam por intrincar o leitor num todo narrativo. Algo como alienação política – distanciamento dos problemas do homem. a estruturação psicológica do personagem e fazendo com que a narrativa ganhe maior força humana e social. todavia. em Torres. na narrativa pós-moderna não há uma linha direta e única para as vozes. Nelo. que geram monólogos. No texto vão circular as vozes com as diversas visões – ou versões – desses acontecimentos que provocam e seduzem o leitor. o conflito se resolve pelas vozes e não pelo enredo tradicional. Foi assim em Abril despedaçado e foi assim em Pedro Páramo. Os monólogos geram monólogos. destacamos em Essa Terra. Não fatos que geram fatos. a força do entrecruzamento de vozes. pelo menos no sentido tradicional. massacrado pela vida. Simples. Em Torres. se . um personagem desestruturado. um desenvolvimento. O narrador entrega toda a responsabilidade aos personagens. que geram monólogos e nenhuma certeza.acontece de maneira pacífica: Nelo é também uma construção do pai e da mãe. A história se conta a si mesma e não precisa da mão de ferro do narrador. Portanto. as marcações são constantes. A LINHA NARRATIVA DE "ESSA TERRA" Compreendemos. Naquilo que poderíamos chamar de romance não escrito. atormentado. feito acontece com Dom Casmurro. personagens que se escondem. justamente. em Torres. Como acontece com os gêneros. a complexidade está na criação de personagem e no seu desenvolvimento. com revelações e sinuosidades. No exame do desenvolvimento. mesmo quando se pode traçar uma linha narrativa de Nelo: Retirada para São Paulo – Traição da mulher – Volta para o interior baiano – Suicídio. Fragmentário. muito simples. Todo o esquema narrativo do texto se estrutura aí. A maravilha do texto está em fazer com que as vozes deem essa sensação de desestrutura. o que temos aí é uma linha narrativa. que Nelo é o personagem que une todo o desenvolvimento. que. Tem muito mais importância o aprofundamento psicológico dos personagens do que a manipulação e interrelação dos fatos. desconfianças e conclusões. Podemos considerar. e uma criação dele mesmo. e não um enredo. assim. Por isso. E o fato que gera todo o conflito está no seu suicídio. os personagens têm autonomia para viver. sem que seja necessário o enredo de intricados movimentos internos. personagens que aparecem e reaparecem. de Machado de Assis. mesmo quando. Às vezes externo. Para ele. seu terno folgado e quente de casimira. Tio. um alvoroço de doido. O exemplo vivo de que nossa terra também podia gerar grandes homens – e eu.manifestam o tempo todo. mas da invenção de personagens e. por exemplo. Ele parece não vir das preocupações do autor. Uma figura decadente e abandonada. Eis a voz: Bem. apesar de assistir à derrocada do irmão. Embora o homem tenha sua própria visão de Nelo – que não o ajudava a ir também para São Paulo – é criado indiretamente por seu Caboco. eloquente. (Essa terra) Um grande homem. um personagem ilustrativo – nesse caso tem a função de ilustrar outros personagens –. Nelo gritou de novo. como que por encantamento. um português zangado. Podem decidir o ponto de vista narrativo. CRIAÇÃO INDIRETA NÃO É SECUNDARIA Uma advertência: O personagem de criação indireta não é personagem ilustrativo ou secundário. Esse senhor a quem Nelo queria que eu dissesse quem era a nossa família aqui na Bahia era o dono do bar. A visão de Totoim é grandiosa. e que desestrutura toda a versão do rapaz. Tio. Aí funciona a apresentação pelo ouvido. não passa de um bêbado de barraca. . o pai e a mãe. ia ver se acordava o grande homem de duas décadas de sono. às vezes. – Fez um rapapé danado. Nas outras visões. porque o foco está centrado sempre na primeira pessoa. Nelo era "o exemplo vivo de que nossa terra também podia gerar grandes homens". de pouca prosa. Mas não para o pai. com seus dentes de ouro. Todas as visões convergem para Nelo e aí reside a grandeza fragmentária da obra. É apenas personagem criado por outro ou por outros personagens. Muitas linguagens e muitas opiniões. que nem havia nascido quando ele foi embora. Se. tem um papel de suporte. para o outro. ele tinha bebido demais. Conta aqui para esse senhor quem é a nossa família lá na Bahia. têm esse papel. para o primeiro. num homem belo e rico. Nelo: Um dia pegou um caminhão e sumiu no mundo para se transformar. ele gritou pra mim. como já lhe disse – continuou o homem chamado Caboco. seu rádio de pilha – faladorzinho como um corno – e um relógio que brilha mais do que a luz do dia. ele não quer me vender uma cachaça fiado. seus ray -bans. que testemunha e não inventa. Fui agarrado. se a mulher e as duas crianças que estavam na fila eram que eu estava pensando: "Pega. atropelei pessoas. dando ênfase à circulação de . E qual seria a interpretação que Nelo tem dele mesmo? Dentro das vozes que somam vozes. Então paguei a cachaça que Nelo queria beber fiado. que o traiu com um primo de Nelo. teve filhos e foi derrotado pela mulher. Forcei as canelas. que eles têm de Nelo. simulacros e revelações. A desgraça do homem. O ESPAÇO E O TEMPO SE CONFUNDEM O conjunto narrativo substituiu o enredo. é a bebida. E eu parei. porque não sou homem de deixar em dificuldades um parente necessitado. E muito. iluminando o centro da história. ladrão!" Me desviei de carros. quando eles gritaram: "Pega. ladrão!" Não ouvi. Eu não podia deixar que aquele ônibus partisse ali da Praça Clóvis sem que primeiro eu visse. NELO REVELA NELO As oposições de narrativas criam o desenvolvimento que não depende de fatos e acontecimentos. mas já não adiantava. Tudo está no plano das visões que os personagens têm uns dos outros e. O ônibus partiu. o tratamento narrativo não o é. Mestre. Com certeza. me bati contra os postes. botando as tripas pela boca. uma dor imensa no coração. Zé do Piston. nesse caso. ainda por cima. Nelo revela o fio narrativo de sua tragédia. ladrão! – desta vez foi bem perto e eu pensei: – Roubaram um comerciante e este ônibus está roubando a minha mulher e os meus dois filhos. e não me arrependo. casou-se. o denunciou como um bandido. Isso importa. Foi só essa vez que me encontrei com ele. que. Talvez se pudesse dizer que aí está o nó da questão. O enredo pode parecer recambolesco. Quando mais novo. avancei mais uns metros. Estão lembrados do argumento? Pois aí está o argumento de Essa terra. me meti em muitas. Continuei correndo e eles voltaram a gritar "Pega. sempre correndo. temi uma confusão maior. ainda mais se esse parente está longe da sua terra. com os meus próprios olhos. Sabemos que ele se retirou para São Paulo – igual a todos os retirantes nordestinos –. repito. Nelo conta: Eu ia correndo para o ponto final do ônibus.Não é um desaforo? O dono do bar parecia que não estava gostando daquilo. Se tivesse ouvido nunca iria imaginar que era comigo que estavam gritando. Não que eu tenha medo disso. transitando ao mesmo tempo em Junco.vozes. é que a narrativa pós-moderna dispensa o narrador – em alguns casos – até o narrador oculto – para permitir que os personagens assumam o controle absoluto da narrativa. tanto em relação à linguagem quanto em relação à história ou ao – como prefiro chamar – desenvolvimento. Assim. e em São Paulo. também no tempo e no espaço. Com o isso. sem que tenham de acontecer deslocamentos traumáticos. o espaço pode ser São Paulo. por exemplo. a mãe. na Bahia. como em relação ao personagem central. e que procuro demonstrar em todo o livro. O fundamental a destacar. mas o tempo é Junco. Nelo. Caboco. . Na criação indireta de personagens – tanto com relação aos personagens secundários – Totoim. o pai. o texto pode ocupar circunstâncias diferentes. Dessa maneira: O estilo é o personagem. . do argumento. Aristóteles traçou um plano de trabalho para o teatro que deve ser examinado com muita atenção por todos os ficcionistas. São Paulo: Cosac & Naify. Em seguida estrutura os personagens. 2004. mais leve e mais ingênuo. no palco do Ofício e da Técnica. Glória. até por causa do tempo. a gíria. D. Rio de Janeiro: Record. Baby Abrão. ASSIS. Sequer normas. Sem deixar nunca de ser imensamente criativo. Bentinho. João Antônio realiza uma linguagem que chamamos de "aproximação" – isto é. do exame. Nem regras. Não há imposições. Dom Casmurro e Bentinho têm características diferentes. Embora sejam os mesmos. Sem copiar a realidade e. cria a partir do real com aprofundamento técnico. Parece ensinar: primeiro o título e o objetivo do livro. sem sair do enredo (desenvolvimento). Dom Casmurro. Uma lição de montagem do romance. Trad. existem sugestões e caminhos que precisam ser observados. a malandragem. depois de Mano Cosme. 1998. Por "aproximação" se compreende a linguagem do personagem. Um guia. ARISTÓTELES. profundamente identificado com ela. Capitu e os pais dela vêm pela ordem. Atenção para a criação do personagem. Inevitável. Nos capítulos seguintes expõe a estrutura física ("Um dever amaríssimo") e psicológica de José Dias ("O agregado"). Aí o escritor percebe que. reunindo todos numa sala: José Dias. Malagueta. Personagem que . Um livro fundamental para que se possa compreender a evolução dos processos narrativos da literatura brasileira. e mais tarde de Justina. as regras passam pelo campo da sugestão. Machado de. 2004. sem copiar a realidade. sim – um verdadeiro guia. BIBLIOGRAFIA COMENTADA ANTÔNIO. Podem ser feitos exercícios. mas trabalha com elaboração. Qualquer estudo que se faça para a compreensão da intimidade da obra de arte narrativa tem que passar por este livro. João. São Paulo: Nova Cultural. do episódio. Dom Casmurro é irônico dentro da amargura. Poética. Mano Cosme e Justina. E com uma novidade: o alter ego do personagem – Bentinho – é Dom Casmurro. O narrador conta com proximidade e cede espaço ao personagem. mantendo-se a estrutura da frase e o ritmo. perus e bacanaço. que lhe empresta a linguagem. no entanto. Na criação. Didático. Machado mostra como deve ser planejada uma narrativa. da indicação. E. que termina por construir o grande diálogo do romance. 1977. de Sabino. na terceira pessoa. "O problema do texto" precisa ser examinado com lentidão e cautela. Para nós. Múltiplo e complexo. o livro enriquece o estudo. em algumas circunstâncias. Maria Santa Cruz. do herói. Ronald. Mikhail. em certos momentos. examinar a crescente autonomia do personagem. mas alguém que oferece toda uma humanidade. Trad. Maria Ermantina Galvão. Trad. a maravilhosa companheira de Sartre. Trad. Leia-se também "O Amor de Capitu". o iniciante observará que o personagem não é apenas uma fotografia do mundo. A velhice. BAKHTIN. sobretudo. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Atenção especial para a "Introdução à análise estrutural das narrativas". mesmo considerando-se. aqui. O ato criador tem sido uma das suas preocupações básicas. Segue uma linhagem própria. a presença indispensável do autor na construção do objeto estético. Mikhail. no sentido mais amplo. quase exclusiva. Paulo Bezerrra. A carga que o homem – principalmente o escritor – carrega durante toda a vida até a velhice é corretamente examinada por Simone. Estética da criação verbal. A partir daí. o mais importante se apresenta no estudo . cuidado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. o escritor iniciante pode encontrar dificuldades no início – Bakhtin não é autor fácil. BARTHES. e "O Amor de Capitu". rebela-se contra o criador. Problemas da poética em Dostoiévski. Principalmente para o exame da estrutura do personagem e para a narração. 2000. também é crítico de escolas literárias. A aventura semiológica. Até porque. de Fernando Sabino. Simone de. sobretudo para uma aula de foco narrativo e de ponto de vista. então. Lisboa: Edições 70. BAKHTIN. Trad. Merece exame especial sua preocupação com o personagem. particular. Maria Helena Mendes.1985. Tem que ser lido com atenção.inventa personagem. No entanto. sua visão do processo narrativo é grandiosa. É verdade que. e com uma vantagem: revela verdadeira independência em relação ao autor. em Dostoiévski. o personagem é formado pela interação de várias consciências. São Paulo: Martins Fontes. Dom Casmurro escrito na primeira pessoa. Estudo que revoluciona o exame do personagem. sua caracterização e desenvolvimento. Será preciso. BEAUVOIR. 1990. Trad. inevitável. Marcos Santarrita. CALVINO. Hermilo. São Paulo: Companhia das letras. O primeiro volume de uma tetralogia que oferece visões diferentes dos complexos problemas brasileiros e da literatura de ficção no Brasil. Bloom demonstra que não há motivo para isso. O fundamental é descobrir como as palavras começam a se alojar no espírito do iniciante. O autor examina toda a questão ponto por ponto. A angústia da influência. Sem dúvida. Aí descobre-se uma série de segredos que esclarecem a composição da obra de arte literária. Um escritor constrói o outro e assim por diante. Pontos de vista diferentes levam a uma autonomia do autor e uma autonomia do personagem. Uma das fugas da influência. BORBA FILHO. Ivo Barroso. Porto Alegre: Mercado Aberto. Não há diminuição de criatividade. Um verdadeiro manual – ou guia – da escrita de ficção. a literatura. o esgotamento. Assim como Aristóteles. Impossível deixar de ler e de examinar. Rio de Janeiro: Imago. com os problemas intelectuais e humanos. Margem da lembrança. A disciplina e o trabalho vão resolver o conflito a seu tempo. 2002. Trad. e como desvendar o próprio caminho. Um mestre da narrativa moderna brasileira. Ler tudo. Seis propostas para o próximo milênio. Todos temem e tremem. temos demonstrado. 1990. Tempo de radicalismos e de confrontações. Objetivamente claro e belo. entre outras coisas. de uso das palavras. Há. social e política – do artista no interior de Pernambuco. 1993. .do processo criativo no longo caminho da vida até a morte. as primeiras vitórias. os primeiros fracassos. ítalo. A dilaceração diante dos problemas existenciais: a religião. Um lugar-comum na literatura: este livro já nasce clássico. Este livro coloca o leitor diante da formação – intelectual. nem camisa de força. E sempre. Sem preocupações. BLOOM. a motivação diferente. Este volume é fundamental para que se conheça a formação de um artista desde a província até a metrópole. da clareza da frase. exemplos de exercícios. A criação envelhece? Quais os sintomas? Onde nos mostramos mais frágeis? Um painel daquilo que aprendemos e realizamos desde o nascimento. Harold. Um detalhamento minucioso da criação literária. resulta da criação de um estilo para o personagem sem que se perca a unidade da obra. De que maneira enfrentá-las. Aqui o autor iniciante encontra seu tema crucial: a influência. a política. A lentidão. As primeiras leituras. CARRERO. O major Façanha. Truman. sufocados pelo desejo de morte e de prazer. está repleto da complexidade do ser humano. Trad. aliás. e que se reduzem a símbolos e . sem rebeliões". Música para camaleões. 1981. Sem a tradicional estrutura psicológica. Uma antologia dos contos do escritor pernambucano. as mãos firmes nas rédeas. CAPOTE. uma tarântula? São Paulo: Iluminuras. Herói armorial – de acordo com o movimento criado pelo escritor Ariano Suassuna – major Façanha parece ter saído dos folhetos de cordel e dos heróis das feiras do interior. 2002. Raimundo. com muitos significados. com sustança para aguentar viagem longa. que se reafirmam iguais a pessoas.. Deve ser examinado como um personagem que. A sinceridade do escritor nos remete à passagem do impulso. seu verdadeiro caráter se revela nas ações. numa trajetória metafórica. no campo urbano. CAMPOS. aflição e ansiedade. a grandeza e a mediocridade. à intuição e à técnica. Milton Persson. Ou seja. Ao redor do escorpião. Vale por muitos compêndios juntos. O prefácio de Capote é. Incluímos este livro entre os romances nordestinos que revelam a grandeza do seu povo através de um personagem cômico com estrutura dramática. 2003. Trabalho que se opera com calma. seres humanos. Maximiano Campos trabalha a linguagem por aproximação do popular na área rural. Aí ele coloca o autor iniciante em contato com a lenta paciência do processo criador – as vitórias e os fracassos. São Paulo: Iluminuras. Maximiano. Viu a boiada tomar o rumo certo. uma lição de coragem e de humildade. aparentemente comum. nos episódios. embora quase sempre tocados pela loucura e pelo delírio. O importante aqui é apenas acompanhar a leitura das palavras: elas representam sons e movimentos que vão conduzir o leitor ao orgasmo. sem dúvida.. Na estrada. e daí à pulsação narrativa. CAMPOS. Uma orquestração para dançar e ouvir. Aqui há mais um exemplo dessa linguagem "por aproximação": "Fez-se no destino. Assim como acontece com João Antônio. 2004. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Personagens. Seus personagens são sempre surpreendidos pela valentia e pelo destemor. Os arreios seguros. no desenvolvimento. A montaria era um quartau. Na estrada conta a história um personagem que luta contra a morte. Maximiano. Os personagens são representados por sinais gráficos – reticências para Leonardo e interrogações para Alice –. Recife: Edições Bagaço. Um jogo entre a tradição e a renovação do personagem. 1994. das adversativas. 1975. Rio de Janeiro: Editora Arte Nova. e se revela culpado em carta enviada à redação de um jornal. a marcação em letras do alfabeto. do pecado. uma linguagem urbana. de Henry James. 1993. um tanto "por aproximação". irritação e dor. embora lírico. para Ernesto. com marcação através dos números – e no plano aberto – o passado. odes. com a agulha e a linha da imaginação. agonia. sem radicalismos. Metáfora do poder absoluto. a fatalidade do destino. Uma investigação na linguagem de cada personagem. Raimundo Os extremos do arco-íris. toca saxofone nas pontes e nos cabarés. para Raquel. Rio de Janeiro: José Oly mpio. 1989. numa nota de jornal. O desempregado Checov investiga a morte de pacientes psiquiátricos no Hospital da Tamarineira. Sinfonia para vagabundos: visões em preto e branco para sax tenor. CARRERO. incomodadas pelo fantasma de um cavalo – Imperador – que corre pelo pátio. Maçã agreste. Ou seja. cartas. a Teoria do Bordado. Recife: Edições Bagaço. para que o seu caráter de agonia não sofra oscilações. Amor. Estudo de composição de personagens e de estrutura narrativa: no plano fechado – o presente. Inventar situações onde só existem silêncio e elipse. pelo terreiro e pelo telhado. Raimundo. entre outras técnicas. Raimundo. Fazer a narrativa evoluir. Recife: Bagaço.metáforas. com as mulheres de Puxinanãnã presas na casa-grande. Na tentativa de compreender a sua vida esfarrapada e dilacerada. Às vezes agressivo e rebelde. CARRERO. Assim as histórias são criadas. Uma narrativa em dois tempos: passado e presente. CARRERO. Tudo começa. Raimundo. Uma narrativa carregada de discursos. para Jeremias. depois do estupro e do assassinato de uma menina. no Recife. os furos narrativos da notícia são fechados pelo autor. salmos. o personagem Natalício . apesar do cinismo. da tortura. Para Dolores. estupra. Um músico fracassado percorre as ruas do Recife marcado pela dor e pelo pessimismo. tradição. ausência sempre que possível. O fundamental aqui é aplicar. a rigor. A história de Bernarda Soledade: o tigre do sertão. embora com mais liberdade. durante uma agoniosa noite de chuva. A influência também das notícias de jornal é evidente: baseei-me nas informações de um grupo que roubava com justificativa religiosa. CARRERO. Da criação ao roteiro: o mais completo guia da arte e técnica de escrever para televisão. A questão é a credibilidade do autor. uma leitura semanal – ou até quinzenal. 1998. Rio de Janeiro. oferece aprendizado com satisfação. ao lado da gramática de Evanildo Bechara. Lindley. A televisão e o cinema oferecem. Um grande esforço para reunir todas as informações ligadas à música em várias partes do mundo. Quem sabe. Até porque o livro traz um roteiro que pode ser examinado momento a momento. comprados em qualquer banca de revistas ou em livrarias. (Milhares de alternativas para dar nome ao seu bebê). São Paulo: Traço Editora. O homem é tímido e gago. Dicionário de nomes próprios. Observe e leia com interesse. A desinformação a respeito de gramáticas é tão grande – e grave – que muitos alunos desconhecem a existência dos estudos de estilística. Uma maravilha. verificar o peso e a leveza dos nomes. as indicações criativas pedem leitura atenta. elementos fundamentais para o processo criador. O iniciante observará como é possível traçar um plano narrativo e investir nele. Um diálogo mal conduzido pode estragar toda a narrativa. CUNHA. Camille Vieira da. Esse dicionário. Sem esquecer os estudos de Celso Pedro Luft. sobretudo. Não é uma coisa apenas pedagógica. Portanto. Um momento de verdadeira aflição. ou criá-los. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1995. Rio de Janeiro: Rocco. Celso e Cintra. O capítulo reservado à estilística é ótimo.”. Doc. sobretudo na distribuição das cenas e dos diálogos. Nova gramática do português contemporâneo. hoje. não custa nada ter sempre à mão diversos dicionários de nomes próprios. Montar uma história é arte de perícia e habilidade. COSTA. Impossível pronunciar o nome de Akaki Akakievich sem gaguejar. Utilizando. 2001. pedante.afirma: “A felicidade dói. chata. Eis o problema: o nome dos personagens. Jorge Zahar Editor. dois momentos importantes e decisivos para a montagem do texto literário. . COMPARATO. É preciso fazer avaliações. 1998. É preciso imenso cuidado na distribuição das cenas. Dicionário Grove de música. Embora seja um trabalho voltado para roteiro de televisão. Principalmente. Tradução de Eduardo Francisco Alves. na área da montagem. para o estudo do andamento e do ritmo. de elipses. Os sinos da agonia. Sem medo de errar: ali o escritor aprende a rezar e a se comunicar com os deuses da criação. DOURADO. se perceberá que a obra de arte. a exemplo do que ocorre quase sempre com livros de Autran Dourado. Reúne o que parecem escritos à parte. Rio de Janeiro: Record. momento após momento. de armadilhas. DOURADO. mas que exige maturidade. Autran. anotações. Rio de Janeiro: Rocco. UFMG. na melhor expressão da palavra. 2000. Autran Meu mestre imaginário. Deve-se fazer um trabalho inteiro sobre esse aspecto. Breve manual de estilo e romance. Livro para ser esquartejado. 1982. Um artista aprendiz. Autran. Em algum lugar ele mesmo aconselha: às vezes se aprende mais com o silêncio do que com o que está escrito. destrinchando as frases. a estrutura do monólogo e do fluxo da consciência merecem atenção à parte. Rio de Janeiro: Rocco. Belo Horizonte: Ed. às vezes rápida. quem acrescentou. Uma aventura é acompanhar João na sua lenta compreensão do processo criador. Rio de Janeiro: Rocco. Os trabalhos sobre Joy ce. DOURADO. Existe ainda a elipse. Muitas vezes. Um quase diário para exercícios de reflexão. se realiza pela elaboração e pelo detalhe. está cheio de silêncios. toda obra de arte. As . Carinhosamente chamado de "o livrinho". divagações e certezas – se é que existe alguma certeza plena na consciência do artista. quem disse. Não pode ser uma leitura de fim de semana ou de final da tarde. com o tempo e a atenção. Ou seja. DOURADO. quem falou. Na verdade. Um livrão. parece um delírio. Autran. Poética do romance – Matéria de carpintaria. A grande vantagem é que se trata de uma leitura leve. Autran. O escritor Autran Dourado aparece inteiro aqui com o lento e corajoso aprendizado. No entanto. O livro não escrito. lê-lo com um caderno e uma caneta na mão. Deve ser lido com muita paciência porque. pode-se dizer. Um destaque: "em cada autor há uma série de pequenos autores". DOURADO. 2003. Dia após dia. O estudioso encontra aí um assunto que exige o máximo de exame: a planta baixa do romance. parece um catecismo de antigamente. E estudado. quem fala. Neste romance a experiência das vozes entrecruzadas atinge o seu nível mais seguro. a ficção tratada com o cuidado de geômetro. 1999. Se possível. 2000. riscos. As cartas desse escritor francês formam. Ligeiro destaque para a novela italiana dos séculos XII e XIV. Rio de Janeiro. Um guia perfeito para o estudo do monólogo interior. 1976. Investiu com determinação. Parece que o autor não o considerou pronto nunca. O delírio dos personagens – transformados em diálogos. Algo que espantou a crítica. pref. B. Org. sobretudo para quem já conhece a teoria. porque alguns estudiosos acharam que aquilo era muito confuso. igual se dizia na época. Companhia Aguilar Editora. ora isolados. Porto Alegre: Editora Globo. percebeu que tinha em mãos um amplo abismo da alma humana. o autor russo pretendia escrever um romance sobre o alcoolismo no seu país. na literatura americana. DOSTOIÉVSKI. cada uma sob um foco narrativo e um ponto de vista diferentes. EIKHENBAUM. sobretudo belo. Gustave. Com a vantagem de ser uma obra de ficção. com um painel da ficção na história. Criada a figura de Raskolnikov. mas um escritor com técnica apurada. Queria investir ainda mais um pouco. com destaque para Poe. Atinge aquilo que Van Gogh chamou de beleza brutal. 1993. Seria uma espécie de libelo acusatório. um documento . Não era apenas um espírito atormentado. selvagem. com certeza. 2004 O mais trabalhado de todos os romances de Faulkner. Ana Mariza Ribeiro Filipouski. E belo. as buscas. Ou mais. Trad. Foi escrito várias vezes. Um estudo curto e que situa a trajetória do romance moderno. as inquietações. Natália Nunes. FLAUBERT. Maria Aparecida Pereira.dúvidas. "Sobre a teoria da prosa". ora entrecruzados – revela um mundo caótico. In: Teoria da literatura: formalistas russos.feldt. Cartas exemplares. inclusive nos Estados Unidos. da narrativa. áspero. funda-se sobre os seguintes princípios: unidade de construção. Fiodor M. 1963. FAULKER. criando a sua técnica narrativa com o envolvimento de várias vozes no tecido novelesco.. passa por Dickens e Hawthorne. no entanto. De maneira rápida. Trad. Em princípio. envolvendo até o romance policial. Paulo Henriques Britto São Paulo: Cosac & Naify. Rio de Janeiro: Imago. William O som e a fúria. Conta episódios da família Compson – patriarcal e decadente. Demonstra que a ficção. Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohl. efeito principal no meio da narração e forte acento final. Trad. Crime e castigo. e notas Duda Machado. FONSECA. O personagem segue uma linha narrativa única: mata. sossega. É obrigado a receber. Não é para menos. São Paulo: Companhia das Letras. uma narrativa em segunda mão. Aqui se realiza. São Paulo: Cia. Este trabalho aparece no computador – pelo menos como chegou até minha mesa. O papel do narrador em Os sinos da agonia e Autran Dourado (estudo divulgado pela Internet). E com uma consciência crítica impressionante. Destaque para a criação dos personagens em oposição e dos diálogos entrecruzados nos comícios agrícolas. FORSTER. Rubem. Por assim dizer. O autor . o que desvia um pouco a atenção do leitor para o fato central do romance. uma cartilha: às vezes ingênua. Um unidade igual. muitas vezes para provocar o leitor. Embora certa crítica o considere ultrapassado. Laura Goulart. perícia e determinação. Daí o distanciamento. plenamente. A abertura é feita na terceira pessoa. 1989. Trata-se de uma estratégia dos romancistas hábeis.incomparável em toda a literatura ocidental. Exemplo para o estudo. A grande arte. principalmente tendo às mãos os romances Madame Bovary e Educação sentimental. Sérgio Alcides. É preciso lê-lo com calma. a técnica do conto em condensação e força interior. onde as vozes dos narradores parecem substituir. O texto na primeira pessoa traz o leitor para dentro da narrativa: na terceira pessoa. da estrutura do conto. firme e definitiva. nunca encontrado nas livrarias – e fornece os elementos essenciais e básicos para a compreensão da posição do narrador no romance moderno e pós-moderno. São Paulo: Globo. Luta e delírio. ouve e reconta. detalhado. os principais textos examinam o processo criador obstinado e torturante de Flaubert. A terceira pessoa parece contar uma história que ouve de alguém. a realização. é o começo de tudo. das Letras. Aspectos do romance. Dores fiscais e emocionais. FONSECA. embora digam que existe em livro. Isto é. Um nocaute no primeiro round. várias vezes. Basta um murro e a luta estará terminada. Daí o aprofundamento num livro ímpar de Autran Dourado. 1990 O romance que consagrou definitivamente o nome de Rubem Fonseca. 2005. "Passeio noturno – Parte II" (Feliz ano novo). os movimentos internos. Edward M. em Madame Bovary. segundo Cortázar. o leitor parece jogado para fora. com eficiência. FONSECA. Trad. Numa tradução bem cuidada. o narrador tradicional. por assim dizer. às vezes verdadeira. Rubem. trad. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.iniciante não pode deixar de guardá-lo sobre a mesa para consultas e exames. a crítica a Proust. que serviu de base para muitos outros estudos. No entanto. Não é apenas um livro para concursos nem só para professores. Pode ser estudado com o mesmo entusiasmo do livro de Forster. Fica longe demais. Trad. tudo para Gardner parece acontecer de maneira uniforme com todos os criadores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Não se pode indicar. FGV. In: 100 melhores contos de humor da literatura universal. Trad. sem menosprezo pelos teóricos. causando confusão no leitor. a classificação de personagens. Inclui-se na categoria daqueles livros que devemos ler todos os dias. GARDNER. 2003. Comunicação em prosa moderna. Uma gramática criativa onde as asperezas das regras e normas cedem lugar ao exame das técnicas ficcionais. que é o caso de Flávio. sem perder o enfoque gramatical. de diálogos e de situações. Há uma parte de exercícios e de construção de textos que enriquece muito o estudioso. em sala de aula. Uso a tradução de Flávio Moreira da Costa. Uma espécie de bíblia do processo criador nos Estados Unidos. Não na estante. diminuir o trabalho de Paulo. Mesmo para a formação do crítico de ficção é imprescindível. adotado em universidades e centros de arte. Um trabalho competente. em nenhum instante. dei preferência aos criadores. 1997. "O capote". porque parece ter mais leveza no andamento. um mestre.V. É criterioso e correto. John. Paulo Bezerra. 1997. Ocorre que. um único caminho. Othon M. em geral. N. . 1990. GÓGOL. Faz análises minuciosas de frases e de orações. apesar da pouca diferença de uma e de outra. GARCIA. embora pudesse ter sido mais cuidada. É preciso ter cuidado. Os primeiros passos. Rio de Janeiro: Ed. e notas Flávio Moreira da Costa. Isso sem. As traduções da novela de Gógol são muito boas. A arte da ficção: orientação para futuros escritores. "O capote" e outras novelas. Rio de Janeiro: Ediouro. Int. As variantes são fundamentais. Raul de Sá Barbosa. O problema é que se torna enfadonho por causa da mistura dos temas. embora Paulo Bezerra tenha doutoramento em russo. de solilóquios e de monólogos. Não se trata de um simples defeito de tradução. Destaque para o estudo do fluxo da continuidade e do uso do gerúndio. 2. Trata do problema do começo. São Paulo: DIFEL. lentidão narrativa. Conta a história de uma mulher que sai do Sul para o Norte da Espanha disposta a visitar o filho preso por causa da guerra. GREENE. sobretudo na procura dos primeiros instantes que torturam o iniciante. Ou o consagrado. Trad. um ajuste romântico. HEMINGWAY. HEMINGWAY. Política e amor se misturam. Graham. Sem . o autor prepara o leitor. Bianca Maria de Queiroz Costa. Os movimentos iniciais sempre geram conflito. Civilização Brasileira. Agustín. quanto na segunda e na terceira pessoas. Ana-não. na maioria das vezes. Agora pode representar também uma passagem – de um movimento narrativo para outro. Os traços fisionômicos são decisivos. 2001. Ana- não oferece inúmeras vantagens para o estudioso. Isso funcionava muito bem dentro de uma perspectiva realista: tudo está pronto. É preciso que o criador conheça bem a função e o efeito que pretende conquistar. entre outros dados. mostra onde os personagens viverão seus dramas. tudo solucionado. com possíveis alterações no espírito do personagem. Trad José J. No romance tradicional o cenário servia para preparar a movimentação com ambientação. Um ponto definitivo: Hemingway impõe seu pulso e o leitor não pode criar o personagem junto com ele. 1960. como no caso de Hemingway. por assim dizer. todo um jogo de detalhes. Se possível. São Paulo: Bertrand Brasil. sonhando e mendigando. Rio de Janeiro: Ed. GOMEZ-ARCOS. Adaptado para o cinema com o título de Fim de caso – que corresponde mais ao original – neste romance Grenne mostra como escritor e personagem podem conversar. Uma espécie de digressão romântica. do meio e do fim da história. Em Adeus às armas. Pode ser lida como a história de uma velhinha simpática e guerreira. Trad. Monteiro Lobato. com uma visão inquieta do mundo. Ernest "A vida breve e feliz de Francis Macomber". com um final doloroso. Romance muito pouco conhecido no Brasil. Ajuda a tirar dúvidas. Há aí. 2002. Trad. tudo está resolvido. Veiga. Adeus às armas. In: Ernest Hermingway – contos vol. Em linguagem lírica e trabalhada tanto na primeira. Há. O crepúsculo de um romance. A questão do cenário sem a cena merece atenção especial porque provoca. Uma trajetória heroica. Ernest. São Paulo: Bertrand Brasil. demonstrando que o início está naquele momento arbitrário – para os que não conhecem técnica – escolhido pelo criador para desenvolver a narrativa. Octávio Mendes Cajado. 1983. Contenta-se em receber e digerir. Assim: na terceira pessoa. HORTCHNER. 1967. sem imposições. embora não conheça os detalhes. E faz um grande relato em que aborda as dificuldades para escrever O som e a fúria. Imagens vivas. A. Coisa de narrador onipresente. No entanto. Papa Hemingway. A Veiga Fialho. Cabe ao leitor reinventar. "Acampamento de índios". Nesse livro. Esses detalhes são exclusivos do personagem- testemunha que os guarda para o momento adequado. São Paulo: Companhia das Letras. Exigência absolutamente técnica. com medo de fracassar. "ele" conta. 1988. que exige muita habilidade. o autor iniciante deve refletir sobre a construção do personagem. mas repletos de ficção. procurava na memória episódios da infância e da adolescência. Como contar? E na opinião de quem? Um dado fica claro. refazer. Faulkner expõe todas as suas preocupações. reconstruir. Depois foi desenvolvendo o trabalho com a habilidade técnica que conquistou. Frases precisas e pontuação severa. Alberto Alexandre Martins e Beth Vieira. Para evitar uma quase autobiografia.E. às vezes repetidos. na maioria dos casos. o alter ego possibilita mais eficiência no distanciamento do narrador. de invenção. Um ser atormentado pelo álcool e pelo sexo. William. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. A força física que . concretas. Ou seja: o narrador oculto conta. mas de acordo com a opinião de quem testemunhou. que o fez mudar de mulher várias vezes. v. O melhor personagem de Hemingway é Hemingway. Trad. In: Contos de Hemingway. atormentou Faulkner durante quinze anos. Além do mais. Por isso. e não verdades. para que os exercícios fossem verdadeiros. medroso. Brenno Silveira. Com um andamento vigoroso. In: Os escritores. os contos estão repletos de temas reais. HEMINGWAY. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Os seus contos devem ser lidos todos os dias. Personagens sugerem reflexões. p 10-19 O problema do Alter ego aparece em Hermingway quase que espontaneamente. a narrativa flua no sentido de sugerir comportamentos. o ideal é que. sobretudo numa particularidade definitiva do seu caráter: a fragilidade. Reais. 1996. Trad.1 Nessa entrevista. mas adotar o ponto de vista do autor ou de outro personagem. Esse problema. criou o personagem Nick Adams. O narrador pode recorrer a uma pessoa gramatical. E. Ele começou a escrever através de exercícios. FAULKNER.problemas para o leitor. Ernest. em relação a esse livro. Ressalta-se aí o problema do foco narrativo e do ponto de vista. porque ele está todo ali. todas as suas dúvidas de narrador. Trad. 2003. a quem acusou de ter inventado o "épico dos comuns". conforme dizia. portanto. E às vezes fraco. de técnicas. mas este livro de Joy ce continua a ser permanente desafio – para o iniciante e para o leitor. Henry. Quem fizer isso sairá sempre enriquecido..desmoronava diante do espírito dilacerado. Trad. Org. respirando. pensando. Trad. E se não tivesse escrito ficções. Donaldo Schüller realizou um trabalho de mestre. Ao lado da Poética. Um guia para quem deseja criar histórias. Um tratado fundamental para quem se interessa pelos segredos da ficção. No entanto. para o autor iniciante: a absoluta devoção ao trabalho e a crença nos personagens comuns. E isso era. . executando cada operação de vida apenas como um devoto desta causa". Ninguém se meta sequer a copiá-lo. Rio de Janeiro: Ed. que povoam o mundo. insignificantes. Donaldo Schuler. Lenta e progressivamente. bastavam os ensaios. deve ser lido e examinado. São Paulo: Ateliê Editorial. São Paulo: Globo. na maioria das vezes confuso e complicado. Finnegans Wake. sobretudo porque. A arte do romance: antologia de prefácios. cresceu. de Henry James. "ele nasceu romancista. 1999. James não entendeu o mundo de Gustave Flaubert. JAMES. Cada prefácio apresenta um grande número de sugestões. E que fazia muita falta para os iniciantes que não o leem no inglês. JOYCE. de caminhos. Sempre movido pela angústia. James conhece. JAMES. Sem o preconceito do leitor que procura enredos emocionais. Casa de Cultura Guimarães Rosa. Henry. justamente. o risco do bordado. O fluxo da consciência permite conhecer o espírito da literatura. Dois exemplos. trad. Investindo no conhecimento – palavra por palavra. Inimitável. Por algum motivo. Sempre. Obra rigorosamente desafiadora. James. sentido. Talvez nem fosse o que notável criador desejava. de Aristóteles. Com uma paciência de monge. se impõe como um trabalho seguramente inevitável. e das Cartas. Lea Viveiros de Castro. falando. de Flaubert. Diante da vida e diante da obra. viveu e morreu romancista. rendia homenagens ao autor de Madame Bovary. mas suas investigações são fundamentais. Gustave Flaubert. o que mais preocupava o escritor francês – essas criaturas miúdas. feito ninguém. 2000. Conforme expressão grafada por Autran Dourado. 7 Letras. Mesmo assim. Com a certeza de que está investindo no conhecimento humano e literário. Sempre em crise. Ou fraco na maioria das vezes. e notas Marcelo Pen. lerdas. Este minucioso trabalho do pernambucano Álvaro Lins a respeito dos personagens de Em busca do tempo perdido mostra a maneira como o escritor francês elaborou uma a uma as suas criaturas romanescas. On the road. É certo que Kerouac escreveu sob o efeito de cocaína. Ajuda a criar. a exemplo de Gjorg e de Mark Ukacjerra. lendo as cartas dos amigos até atingir a pulsação narrativa. KADARÉ. ampliando o diálogo entrecruzado. Não é o mesmo. nem finge – escreve uma tragédia a partir da violência nas montanhas albanesas. no entanto preparou-se muito. O estudo de On the road acaba com a miséria de um escritor movido pela automação e pela espontaneidade. LINS. o estudo leva a exames e conclusões notáveis. Kadaré esbanja conhecimento técnico. Ismail. Aqui. um comportamento. No instante em que é criado. Um livro que marcou o surgimento da nova narrativa norte-americana. muitas delas saídas da sociedade parisiense. Mesmo drogado. Explora. opostos e importantes para a narrativa. Estuda- se aqui o material que o autor deve ter para desenvolver seu trabalho. Trad. Além do que. sua condição e a realidade social. a leitura de Proust é um dever. as . KEROUAC. desse modelo. Sem concessões. mesmo que tenha o propósito. Apresenta várias técnicas de diálogos de acordo com as situações – os diálogos com aspas dentro do texto para demonstrar densidade e tormento psicológico são um achado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. radicalmente. Trad. não transpõem para a narrativa o personagem. E é uma ótima reflexão sobre a composição do personagem. é preciso ressaltar que ninguém copia personagem. Álvaro. Abril despedaçado. 1968. separa-se. também o entrecruzamento das narrativas. No entanto. Bernardo Joffily. São Paulo: Ática. escreveu conscientemente. Um estudo radical sobre a atividade do escritor. E cria personagens fortes. todavia. 2004. A agitação do texto e a revelação da técnica demonstram que sem conhecimento – estudo – não é possível chegar a lugar algum. Quanto muito é um modelo. LINS. tão importante quanto Hemingway e Faulkner. um cabelo. Osman. Guerra sem testemunhas: o escritor. uma roupa. 1974. Influenciado por Shakespeare – o que não nega. Um toque real. jamais. Porto Alegre: L&PM. 2001. Eduardo Bueno. São Paulo: Companhia das Letras. Jack. A técnica do romance em Marcel Proust. E uma advertência séria: não abra mão de nada. Madame Bovary tem a participação de Emma. Mais tarde foi desmembrado em dois ou três. do malfeito. Anotações de contos. daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça”. nem mesmo escrevendo artigos para jornais. reúne um imenso material de Clarice Lispector. que revela: "Escrever é uma maneira de negar o mundo tal como o escritor o sente ou vê".dificuldades e as conquistas. Escritor não pode se dedicar a empregos. LORENZ. nem com os leitores. Só escrever e escrever. não se deve perder as entrevistas de Astúrias e Vargas Llosa. São Paulo: Cultrix: Ed. Surpreendem pela maneira como destacam a criação de textos e de personagens. com sutileza. A legião estrangeira. Na introdução à segunda parte. Sem desviar a atenção jamais. Rio de Janeiro: Editora do autor. principalmente de Grande Sertão. LISPECTOR. É isso que dá a dimensão de grandeza do livro. 1973. onde Flaubert apresenta duas novidades: a . embora na terceira pessoa. Falam das fontes. Uma bela Clarice em desenvolvimento. Mostram o processo criador de ambos. As entrevistas com Guimarães Rosa e Adonias Filho são reveladoras e importantes. de forma que o iniciante começa a desconfiar que as funções literárias estão mudando completamente. Lubbock mostra que. Nem desajeitada. Otávio Mendes Cajado. 1976. reflexões pela metade. este livro. de 1964. É decretada a morte do narrador onisciente. A autonomia do personagem é estudada aqui com precisão. Nem mesmo com os livreiros. nem com os editores. A técnica da ficção. Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro. a autora adverte: "Gosto de um modo carinhoso do inacabado. Gunter W. contos e crônicas. diários em elaboração. das análises. a exemplo dos "comícios agrícolas". Trad. LUBBOCK. São Paulo: Editora Pedagógica Universitária. Rosemary Costhek Abílio e Fredy de Souza Rodrigues. com alguma coisa de baú de lembranças. Guimarães Rosa. Nem deve ser colunista. Publicado pela extinta editora do Autor. Percy. Clarice. sonhos extintos. nem incompleta. crônicas apenas rascunhadas. Veredas. Trad. Plena. Desde o ponto de partida da criação até a cobrança de direitos autorais. longos capítulos parecem escritos por ela. 1964. Além do mais. adverte para as interpretações enganosas de sua obra. ou seja. USP. Ajudam o iniciante no estudo da composição dos textos. das reflexões. A gênese do Doutor Fausto. Ainda a questão dos nomes dos personagens. estudos. (Conversas com Plínio Apuleyo Mendonça). para a realização de uma biografia. Thomas. o autor estuda Tolstoi e Thackeray. Gabriel Garcia. suportam várias metáforas e muitos significados." A partir daí já não construo personagens femininos com a mesma inocência". 1995. O escritor iniciante vai percebendo aqui que. Ana Maria. Gabriel Garcia.renovação da narrativa. Um nome metafórico leva a toda uma reflexão. Então decidiu inserir um narrador. a revelação mais expressiva diz respeito ao aparecimento do narrador no romance. Trad Ricardo F. Eric Nepomuceno. A grande vantagem é que o entrevistador conhece a intimidade intelectual de Gabriel Garcia Márquez e toca em assuntos cruciais. MÁRQUEZ. 2001. Niterói: Casa Jorge Editorial. a uma vida – ainda que literária. diz. análises. fugindo. MACHADO. O recado do nome – Leitura de Guimarães Rosa à luz do nome dos personagens. do romance. um autor pouco – ou quase nunca – lido no Brasil. Erico sentiu o conflito desde os primeiros momentos. No entanto. Diz ele. Desde as dificuldades materiais até os problemas da composição da novela. 2003. além dos nomes convencionais. José. 1982. MANN. que surgem da metáfora dos personagens. Mais um problema de foco narrativo e de ponto de vista. Trad Eliane Zagury Rio de Janeiro. Cheiro de goiaba. Além de Flaubert. Ou seja. São Paulo: Mandarim. Mann duvidava da eficácia de uma narração convencional. MÁRQUEZ. Algumas revelações interessantes do Prêmio Nobel de Literatura são encontradas aqui. com as influências. Um estudo de foco narrativo que merece destaque. A solução está no exercício constante. Não poderia haver melhor contribuição do que este trabalho que explica e expõe o problema. Gabriel Garcia Márquez conta como contar um conto. tomando por base a obra de Guimarães Rosa. Nomes simples: Maria. Henrique. Além do que já advertimos: há nomes que são metáforas em branco. . Rio de Janeiro: Nova Fronteira. inclusive com o filósofo Adorno. Record. um desafio em si mesmo. A paciente elaboração de Doutor Fausto levou Thomas Mann a rigorosos estudos. a um signo. por assim dizer. Trad. A construção de personagens femininos é também analisada e parece que se constitui num problema para escritores. mas o autor de Cem anos de solidão foi despertado pelos críticos. Tanto Erico Verissimo quanto Gabriel falam dessa dificuldade. há sobretudo aqueles criados. Deixa que outros se apiedem e assim cria-se a expectativa no leitor. Em Ana-não. já não há compulsão alguma. é essa alegria que cria o impulso. e justificável. que via na personagem um tipo social verdadeiro. Evita a exposição do autor. na abertura do romance. S. Thérèse Desqueyroux. Carlos Drummond de Andrade. Henry. João Gilberto. já não há terapia alguma nisso. MILLER. às vezes. estabelece a intuição. o que quer que faça efeito de pura alegria: deixo cair meus frutos como uma árvore madura. s. a partir do encontro da voz narrativa. Trad. Trad. Augustin Gomez – Arcos transfere à Morte a compaixão pela mulher. Andamento e ritmo são técnicas fundamentais em João Gilberto. solidariedade com o personagem. trabalhados como um poema. a orgia perpétua de que fala Flaubert. Porto Alegre: L&PM. mas os episódios.: W11 Editores. um autor com plena e absoluta consciência da construção literária. François. Muito comum.22 Às vezes o ensaio de Henry Miller é superior à ficção. Reflete um certo carinho do autor pelo personagem. é importante ressaltar a eficácia das conversas. uma pessoa." No entanto. é preferível essa técnica ao adjetivo que alguns autores usam para expressar. sobretudo nesses adjetivos. Verifica-se aqui que o desenvolvimento (enredo) exerce o papel de simples ligação entre os episódios.1. de um impulso. e nunca se deseja sofrimento e tormento do escritor. Sem isso é impossível escrever. exigem . 2002.d. No entanto. mesmo assim ele nega a necessidade de uma compulsão. São Paulo: Cosac & Naify. em Reflexões sobre a arte de escrever. Mauriac tem grande habilidade na construção do romance e aqui decide por um foco narrativo não convencional: na segunda pessoa. p. A sabedoria do coração. Ly a Wy ller. NOLL. move a técnica. na expressão de Forster. Hotel Atlântico. É o caso deste livro que reúne alguns trabalhos bem interessantes e proclama a morte criadora. ou algo parecido. com a mesma facilidade tanto posso escrever como não escrever. de uma impulsão. Uma longa conversa sobre o processo criador entre Gabriel Garcia Márquez e seus alunos de oficina. 1996. Ressalta: "Hoje. MAURIAC. mas – isso sim – alegria. Um escritor não deve demonstrar compaixão ou piedade. Mesmo que se trate de uma oficina para roteiros de filmes. que partem sempre de anotações e geram todo um longo debate sobre a história e a condução dos personagens no desenvolvimento. no humanismo cristão do escritor francês. ou seja: trabalhar "a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-la". Trad. Trad. Expõe. A questão é ter a habilidade exigida. PIGLIA. aparece o conceito dos planos da narrativa. há a montagem de James Ty rone. que parece ter dez anos menos". segundo ele. Longa jornada noite adentro. nas anotações. Além do mais. Piglia cita. São Paulo: Abril Cultural. Trad. Poemas e ensaios. Mais um exemplo em Harmada. Oscar Mendes e Milton Amado. O bom escritor. assim como em Borges. Porém. Muitas vezes em busca de nomes exóticos. Regina. Formas breves. Ou seja. Em Piglia. POE. como realização plena nesse sentido. É certo. esconde os verdadeiros motivos do texto. Não é importante que os aspectos físicos apareçam na obra. sem dúvida. Durante uma lenta e longa noite os personagens fazem revelações e confissões que sufocam e magoam. . abandonar o final surpreendente e a estrutura fechada. pelo menos. A história é construída com o não-dito. ainda. Ricardo. divididos em dois: o oculto e o verdadeiro. Helena Pessoa. São Paulo: Companhia das Letras. 1977. porém. Além de Mary. Aí. 2004. com o subtendido e a alusão". O livro dos nomes. o cuidado necessário. Toda ficção de Noll resulta num todo harmônico indivisível. Para o autor argentino. Há um dado curioso: alguns escritores. mas é importante que o autor os conheça. Um bom estudo para construção de personagens. Edgar Allan. um homem de "sessenta e cinco anos. E que estejam. mas oferece um guia de qualidade para escritores de toda ordem. o conto "O grande e generoso rio". Mais uma série de nomes que podem ser aplicados aos personagens. "O norte-americano usa com tal matéria a arte da elipse que logra fazer com que se note a ausência do outro relado". com genialidade. O'NEIL. a "pergunta que sintetiza os problemas técnicos do conto é a seguinte: como contar uma história enquanto se conta outra?" A resposta estaria nele mesmo. OBATA. José Marcos Mariani de Macedo. 1994. Eugene. 1999. São Paulo: Nobel. para torná-lo um tecido único e definitivo. a partir dos aspectos físicos. Rio de Janeiro: Globo. de Hemingway.andamento e ritmo para alcançar a pulsação narrativa sem atropelos. antes de começarem um romance. leem listas telefônicas. o fundamental neste livro é o retrato dos personagens que O'Neil faz na rubrica de abertura. decidir logo: "o mais importante nunca se conta. É claro que Poe nunca pretendeu fazer um manual. ele afirma: "A conjunção 'e' absolutamente não tem em Flaubert o sentido que a gramática lhe confere. períodos e parágrafos. e também de uma peça de teatro. Rio de Janeiro: José Oly mpio. Se Piglia pede a tensão entre o oculto e o verdadeiro. O fascínio das palavras – entrevista com Julio Cortázar. Numa dessas entrevistas mais sinceras e leais. Omar. este artigo pode mudar a vida literária de muita gente. Trad. Os dois precisam ser lidos e relidos. PREGO. Ainda assim. Deixando-se envolver pela música. deixa esclarecido. Cortázar vai expondo. É o modelo e a pausa de tantas frases admiráveis. Sem ele. é impossível ler o escritor argentino. mas de um romance ou de uma novela. 1975. verdadeiramente refletivos. A vida tensa e dramática de Paulo Honório – repleta de culpas e de arrependimentos – leva Graciliano a escrever um romance cheio de sugestões técnicas. particularidade e dimensão.” Com certeza. No entanto. Ela marca uma pausa numa medida rítmica e divide um quadro. O conceito de literatura do personagem Gondim é mais do que . não somente para O corvo.Trad. Não sem uma leitura atenta do seu poema. Sem cansaço nem preguiça. mas que se estende a todos nós. como para qualquer outra obra de arte. 1994. Na verdade. Graciliano. escrevendo e escrevendo. Tudo está no ritmo. Um clássico. tanto para a poesia como para a prosa de ficção. a sua técnica narrativa. Com efeito. Marcel. Os conceitos de tom e efeito ajudam muito na elaboração não apenas de um conto. pela melodia do seu trabalho.a sua filosofia da composição. examinados palavra a palavra. Flaubert o suprime. embora ele se sinta com incrível compromisso gramatical. Rio de Janeiro: Record. Plínio Augusto Coelho. Aí. com rigor na composição de frases. A respeito da conjunção em Flaubert. definitivamente. Eric Nepomuceno. um absoluto segredo de ficção. cada ponto e cada vírgula. Nas trilhas da crítica. no encontro dos dois conceitos. pouco a pouco. São Paulo: Imaginário. Cortázar chama para o ritmo. em todos os lugares em que se colocaria 'e'. São Bernardo. são vários ensaios. os dois capítulos iniciais ajudam muito na análise da estrutura romanesca. Há também estudos sobre as conjunções e as preposições que nos pedem maiores exames. por exemplo. o segredo de sua narrativa ao mesmo tempo tensa e leve. para aprendizagem. o iniciante pode cuidar do seu laboratório. Este breve ensaio do escritor francês faz revelações surpreendentes sobre o uso dos tempos verbais em Flaubert. 1991. Proust ensina a escrever um texto valorizando cada palavra. PROUST. RAMOS. Basta usar a linguagem dos personagens. Editora da Universidade de São Paulo. ROBBE-GRILLET. REGO. o mundo coberto de penas. contas. Líder do novo romance francês. fuga. por influências de meios regionais neles projetados". RAMOS. 1987. o promotor. Allan. e de tipos sócio antropológicos. quase sempre "por aproximação". do . o juiz. São Paulo: Círculo do Livro. Em seguida. Sinhá Vitória e Fabiano. de serem caracterizados por variantes desse comportamento. Pela ordem: inverno. Martins Editores. (Heróis e vilões no romance brasileiro. Ficção completa: cangaceiros. José Lins do. o menino mais novo. José Lins tem mais compromisso com a documentação desses traços de caráter do que com a composição rigorosamente literária da ficção. o padre. bastam as palavras de Gilberto Frey re: "Em romances brasileiros podem ser destacadas peculiaridades brasileiras – nacionais. portanto – de caráter antropológico – isto é. 1987. leituras e releituras. Uma visão mais infantil. as figuras folclóricas. de comportamento. tem fundamental preocupação com a documentação sócio antropológica do Nordeste. Editora Cultrix. para só depois falar dos pais e do irmão. Assim. 1979). o soldado amarelo. a partir do menino mais velho. O enfoque mudaria completamente.conservador: literatura é coisa pedante. e depois Baleia. O ciúme. surgido em Paris na década de 50. Por isso mesmo chama-se regionalismo. Para que fique mais claro o que isso representa. cujo capítulo abriria o volume. por isso exigindo a aproximação da cadela e do papagaio. Sinceramente. o Papagaio. Rio de Janeiro: Record. 1992. E não é. estudos com tesoura e cola. para se ter uma linguagem mais solta e mais cuidada. A seca nordestina poderia ser vista. Claro que tudo de acordo com Graciliano. festa. tantas são as montagens e remontagens. de sorrir. Rio de Janeiro. Graciliano. v. Liv. O livro revolucionário do escritor alagoano se oferece para muitas montagens. Nova Aguilar. Integrante da escola regionalista. sem alterar uma só palavra do texto. Vidas secas. de andar de homens e mulheres. Waltensir Dutra. cadeia. Todo o seu Ciclo da cana-de-açúcar mostra a decadência dos engenhos e registra personagens regionais: o coronel. por exemplo. Mudança.2 Embora menos conservador na linguagem. José Lins do Rego segue a tradição linear da estrutura do romance. Trad. Trad. simplesmente". revistas as mais tradicionais. com imagens precisas e cenas sofisticadas." Ver também edição de Pedro Páramo (Madri: Cátedra. tortura. muitas técnicas narrativas foram criadas. tudo a partir do original e das anotações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Atenção para o rigor narrativo e para o tempo verbal – entraria. a frágil mulher louca e tísica? Depois de cometer atrocidades e assassinatos. Juan. Letras Hispânicas. de uma maldade e de um terror que arrepiam os ossos. ainda RULFO. Dessa forma. o todo poderoso criminoso que mata. apresentada em Ciúme. é claro. um romance muito bem escrito. Será mesmo? Pedro Páramo será só isso? Ou é também a metáfora do herói romântico que tudo sonha e tudo realiza em função de seu amor por Susana San Juan. Procura o pai. sem vida interior. contra os pobres camponeses mexicanos.] Havia uma lua grande no meio do mundo. examina as partes. Não me cansava de ver essa aparição que era você. SANTANNA. esfregada de lua. a literatura latino-americana sofreu uma reviravolta. sugere a solidão metafísica de suas personagens. Os raios da lua filtrando-se sobre a sua cara. sem nenhum caráter. de tempo abandonado e solitário. e outras simplesmente desapareceram. Ele é. Num texto de pouco mais de 150 páginas. sacrifica. mas pode ser também uma questão de técnica – e. Robbe-Grillet renova as linhas narrativas da ficção com uma técnica que procura retirar o humanismo dos personagens – a condição de Homem tornada condição literária – sob a justificativa: "O mundo não é nem significativo nem absurdo. colorida de estrela. 2000) em que José Carlos Gonzáles Boixo examina todo o processo criador e a estrutura narrativa do livro com habilidade admirável. as palavras. Nasce a história de um estúpido. umedecida. Susana San Juan. O leitor fica conhecendo as dúvidas e as inquietações de Juan Rulfo. Simulacros. seu corpo transparentando-se na água da noite. sua boca inchada e suave. Pedro Páramo e Chão em chamas. .. morre declarando o seu amor a Suzana. as frases. Juan Preciado chega a Comala e só encontra fantasmas. futuro do pretérito – que estabelecem uma ambiguidade: entaria o sol ou entraria um personagem oculto? Pode ser um problema de tradução.. Os personagens revelam-se apenas por movimentos e palavras.século passado. Uma metáfora precisa do carrasco latino- americano. Suave. o perfeito ditador perverso e sanguinário. Sérgio. Eric Nepomuceno Com Pedro Páramo. São elementos da paisagem. com um cinismo que atormenta. Divide-o em fragmentos. Num clima áspero. a composição dos personagens. Susana. dizendo essas palavras: "[. Eu perdia meus olhos olhando você. Saramago surpreendeu com uma narrativa forte. Mas não tirou sua mão da minha. a se ressaltar aqui é a maneira como Kadaré utiliza- o para montar as primeiras páginas do seu romance. Investiu. todavia. Autores brasileiros também já haviam optado por esse caminho. Philip disse que a gente não podia fazer. O que é bem diferente: teatro é fala. literatura é palavra escrita. o constrangimento dela." O leitor se encontra diante de uma simulação. Philip Harold Davis disse que nos comportássemos como personagens. No entanto. Vedetinha estava muito envergonhada. o mundo é apenas aparência. Rubem Fonseca – que estende o campo a outras experiências – e Ly gia Fagundes Telles. Trad. ainda. Com um desdobramento: "O dr. vestido de padre. Que sentíssemos e fizéssemos o que eles deviam sentir e fazer em determinadas situações. Porto Alegre: L&PM. 1997. o que mais se percebe aí é a qualidade literária do texto. repetido e imitado até a exaustão. Entre eles. pois isso o dr. São Paulo: Difel. ali as mãos dadas comigo. Só que as situações muitas vezes eram imprevisíveis. um solilóquio – de Hamlet tornou-se uma espécie de centro intelectual da literatura da literatura. SARAMAGO. José. estabelecendo o mesmo conflito. Mas aí eu apertei sua mão e sorri para ela o meu melhor sorriso. 1998. SHAKESPEARE. "Cuidado que tem gente olhando'. Memorial do convento reúne os elementos que têm enriquecido e intrigado a literatura em vários níveis: magia e fabulação. Prêmio Nobel de Literatura. com eficiência. através da inquietação de Gjorg. Hamlet. Visão de mundo e realização literária se completam e se ampliam. William. numa espécie de diálogo indireto livre. O interesse. onde as letras iniciais maiúsculas distinguem as vozes e permitem a livre circulação do narrador e dos personagens. as ." O estilo debochado e rápido simula bem uma situação de constrangimento na linguagem e na aparência dos personagens: uma espécie de vedete ao lado de um padre. e com uma rara capacidade narrativa.1977. de personagens vigorosos. sobretudo naquele sentido existencial: "ser ou não ser?". Millôr Fernandes. para Sérgio Sant'Anna. Vedetinha disse. e isso parece dizer que. Usa. O monólogo – na verdade. Eu sentia isso na pele. Velocidade e eficiência. ainda. Memorial do convento. ainda que se considere ser ele um trabalho teatral e não rigorosamente literário. hoje. que é assunto de conteúdo. Além da montagem dos atos. pergunta. Por isso. aprofunda o tema. a sequência das cenas merece atenção especial. e a ingenuidade esperta – Lúcia – e o formal – a construção dos personagens. clímax na tensão da história e no desenvolvimento (II). e estrutura das cenas. O autor iniciante pode se exercitar procurando outros textos clássicos. Rio de Janeiro: José Oly mpio. mecânica dos diálogos. essa variação apresenta destaques que merecem exame. Estão aí o material de conteúdo – a presença do popular – Canção – que enfrenta o poder – o juiz Nunes. O casamento suspeitoso. Recomenda-se a leitura de O auto da Compadecida e de A farsa da boa preguiça. TELLES. o livro de Ariano vai muito mais longe. Rio de Janeiro: José Oly mpio. por duas vantagens: disciplina e objetividade. O teatro de Ariano ajuda muito no estudo da estruturação da cena. . por exemplo. Ao refletir. por um paradoxo: não se pode mais narrar.metáforas do rifle e das romãzeiras silvestres. Embora tenha sido chamado de manual. A grande vantagem é que o iniciante vai encontrar logo todo assunto num único volume e. Não pode deixar de ser lido. SUASSUNA. Já não falamos em temática. aprofundando aquele questionamento apresentado por Adorno. Os contos de Ly gia Fagundes Telles destacam-se pela variação técnica. Iniciação à estética. Ariano. Esta peça apresenta os elementos essenciais que formam o teatro de Ariano. naquilo que é essencial: apresentação do conflito e dos personagens (I). de forma que aponta novos caminhos. e ele próprio trabalha a sua interpretação do efeito estético. é uma revisão. quanto à posição do narrador na moderna ficção: "Ela se caracteriza. examina. 2004. Um exemplo típico de estudos. Pomba Enamorada ou Uma história de Amor. Claro. um dos autores mais inventivos da cena brasileira. Não é apenas uma visão da trajetória estética. Em "Pomba Enamorada". 2003. Entrecruzam-se as vozes dos personagens e do narrador. 2005. ao lado de Iniciação à estética. Ly gia Fagundes. o autor remete a novas reflexões. à maneira da necessidade. e desmontagem da tensão e anticlímax (III). embora a forma do romance exija narração". e fazendo até paródias. Ariano. Porto Alegre: L&PM. SUASSUNA. ajuda demais a estudar e solicita a investigação através dos filósofos – que podem e devem ser estudados no original – mas questiona. Tudo isso. Um avanço notável. Tolstoi seria capaz de preenchê-lo com facilidade". Leon. através das suas vozes e de suas sensações. Respondendo à sua própria inquietação. no que também era um mestre. E informa: a opinião do escritor prevalece sobre todas as outras. Poética da prosa. com a estrutura – variação de técnicas e distanciamento do narrador – enquanto Tolstoi se propunha a fazer uma avaliação moralista. corresponda uma proposição". Tanto que começa com um típico comentário de autor: "Todas as famílias felizes se parecem entre si. Sempre lembrando: as técnicas para depois escrever. a mais decisiva capacidade ficcional do . a cada ação distinta da história. Esse esquema encontra-se no argumento e auxilia na estrutura. ser tão grande quanto a vida. as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira". Portanto. São Paulo: Liv. Ver Adorno. Adorno acrescenta que "o romance precisaria se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato". O crítico Percy Lubbock escreve: "Se um romance pudesse. Martins Fontes. sem dúvida. Esta é. Fundamental. Até porque imitação é fraqueza. permitindo que o personagem – e os personagens – construam o relato. Trad. TODOROV. digamos. cria um problema de ponto de vista. devemos. Difere de Madame Bovary pela proposta técnica – o tema é o mesmo. Tzvetan. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. sequências e consequências – o autor iniciante deve armar um esquema antes de começar a escrever ficção. 1963. E Ly gia soluciona o problema fazendo com que o narrador apareça em segundo plano. Trad. estratégias. 2003. Maria de Santa Cruz. João Gaspar Simões. Sem perder de vista os problemas teóricos. – Notas de literatura. A materialização do texto oferece os elementos técnicos. João Gaspar Simões. Mesmo sabendo-se que o enredo é cheio de movimentos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. TOLSTOI. Não há erro – este é apenas o ponto de vista do autor. Trad. Todorov apresenta um ótimo modelo para a montagem do desenvolvimento. Lisboa: Edições 70. realmente. primeiro. Guerra e paz. Leon. Embora dirigindo-se a teóricos. Tem como aliado outro autor importante: Autran Dourado. Diz ele: "Para estudar a estrutura da intriga de uma narrativa. Ana Karenina. 1971. TOLSTOI. São Paulo: Livraria Duas Cidades/Editora 34. Theodor W. tradução e apresentação de Jorge de Almeida. Flaubert se preocupou. 1962. Não deve ser imitado. a infidelidade feminina. apresentar essa intriga sob a forma de um resumo em que. O conteúdo – todo conteúdo – aliás – deve ser dominado pela forma. De forma que deve se transformar logo num autor de cabeceira. concretizado nas vozes narrativas provocadas pela desestrutura mental dos personagens. Tanto isso é verdade que Lubbock ainda acrescenta: "Guerra e paz parece uma Ilíada. Ninguém pode estudar a composição do romance ou da novela – em seus aspectos de tempo e de espaço – sem estudar. sem a sua pulsação em montar cenas e em construir personagens. Homero e Virgílio". Essa terra. Rio de Janeiro: Record. B. Nesse importante romance brasileiro. a montagem de cenas num grande número de personagens e de situações. poderosos. Destaque. Muitas vezes o escritor iniciante confunde ficção com tema. a história de certos homens. para a composição da personagem Natacha. TOMACHERSKI. vista desde a infância até a fase adulta. e não fora dela. O tema – conteúdo – é deslocamento de pessoas pobres e desvalidadas do Nordeste brasileiro para os grandes centros urbanos. Isso dá uma ideia desse romancista marcante. Cai. até porque se corre sempre o risco de tratar de assunto que não se conhece bem. e a pulsação narrativa (forma) é o tratamento artístico. 1976. a história de uma nação. pelo menos mais . Trad. condensadas num livro só por um homem que nunca percebeu que era. preconceito em literatura não conta. quase sempre. Não é bem assim. O que dá a dimensão literária é a pulsação narrativa (forma). na autoajuda. Zilberman e Antônio Carlos Hohfeldt. Daí a busca de temas eloquentes. 2001. Antônio. Tomacheski chama atenção para o problema destacando que "a aspiração a uma novidade profissional. no Brasil. Observe-se mesmo o caso de Guerra e paz – seria desastroso sem a capacidade inventiva de Tolstoi. a maneira formal como o autor constrói o livro. Estudo e estudo. foi sempre o traço definitivo das maneiras e escolas literárias mais progressistas". Regina L. Aí reside também um equívoco. Ana Mariza Ribeiro Filipouski. Sem parar. com disciplina. Sem os preconceitos de escritor do século XIX ou não.grande russo. ainda. A emoção romanesca se realiza na composição literária. alternativamente. O tratamento da obra-prima está na qualidade do texto e não na sua mensagem conteduística. na filosofia barata. sem passar por Guerra e paz. O que dá a dimensão artística é a pulsação. Sem qualidade artística é impossível realizar uma obra. Porto Alegre: Editora Globo. grandiosos. "Temática". a uma obra-prima. Aliás. In: Teoria da literatura: formalistas russos. Há. Antônio Torres mostra com clareza a diferença entre tema e tratamento ficcional. É preciso cautela e estudo. e uma Eneida. Maria Aparecida Pereira. TORRES. ] o aspecto urbano favorece o jogo das situações. Há toda uma elegia que se manifesta e se desenvolve no livro. Para o teórico comunista. Mesmo as vozes têm força de coro teatral. In: Teoria da Literatura: formalismo russo. São tipos de ironia diferentes. Nesse segundo texto. saudável. as artes devem provocar sempre o sentimento de transformação no leitor. Vejamos. que não admite o risco. Em Um táxi [. apesar de dramático em ambos. os casos de Graciliano Ramos e de Machado de Assis. Montagens linguísticas e estruturais não podem existir. áspero. TROTSKY. 2001 O tom narrativo muda muito entre Essa terra e Um táxi para Viena d'Áustria. A questão do desenvolvimento deve ser vista através da interação entre personagens e situações. Globo. L. mais sinuosidade. Um táxi para Viena d'Áustria.uma centena de romances que tratam desse tema. Mesmo assim. é franco. sobretudo porque os críticos declaram mortas as vanguardas e as experiências literárias. O primeiro é ácido. Isso leva a um período imenso. porque não causam a insatisfação revolucionária. o riso é cruel. puxando mais para a dor do que para o riso aberto. embora mais tarde tenham ocorrido acordos. há um elemento que dissolve a força da tragédia e envolve o leitor noutra dimensão: a ironia. mesmo quando ele é provocado. Ambos habitando no mesmo escritor e ambos atormentando. o problema continua ainda hoje. Em Essa terra. Por isso mesmo tanta gente estranha os dois ficcionistas num só. Assim é a diferença entre um Antônio Torres mais rural e um Antônio Torres mais urbano. Antônio. TORRES. O segundo tem mais leveza. 1976. a força do campo e do elemento agrário produz uma espécie de dor permanente. "Escola poética formalista russa e o marxismo". . O que não é de se estranhar. e permitindo-se que os personagens se manifestem numa espécie de teatro grego. que coloca numa mesma linha a qualidade artística da obra literária e a vendagem nos balcões e nas bancas. A questão gerou um enorme desconforto.. Rio de Janeiro: Record. Vem daí sua ironia a respeito de dicionários. É sempre importante destacar o problema da ironia entre o rural e o urbano. através dos diversos enfoques narrativos.. com o aumento das vendagens. Porto Alegre: Ed. Um libelo contra o formalismo. esquecendo-se a eloquência tradicional do dramático. O que importa é a satisfação pura e simples do leitor. Em Graciliano. por exemplo. mas nenhum com a grandeza ficcional de Torres. em Machado. Deve. ninguém que esteja de acordo com a realidade em que vive cometeria este empreendimento tão desatinado e ambicioso: a invenção de realidades verbais". flagrado em seu momento de desespero: "Ninguém que esteja satisfeito é capaz de escrever dramas. longos artigos – escritos por Vargas Llosa para jornais e revistas. em absoluto. Estuda a montagem do romance desde o momento em que foi tomado pela leitura num quarto de hotel em Paris. Rio de Janeiro: Francisco Alves. aprofundando-os. São confissões de um homem a respeito das dificuldades de criar personagens femininos. 1985. contos ou romances que mereçam este nome. Lembra que "Camus era admirável quando se deixava guiar pela intuição e imaginação. Coleções de artigos – aliás. romancista medíocre. VARGAS LLOSA. Rio de Janeiro: Francisco Alves. inclusive. 1999. ser analisado ao lado do estudo de Henry James que questiona e critica. Filho. Dessa maneira. Mario. no entanto. Uma convicção absoluta: não pode deixar de ser lido pelo iniciante. Erico Verissimo não era. Erico. e um escritor medíocre quando se abandona à pura reflexão". separa situações e examina detalhes. nem sempre um bom romancista. Elogios atrapalham e confundem. linguagens e estruturas. Filósofo extraordinário. isola partes. 1979. o que somente se adensou nas últimas produções. o que. Trad. mesmo assim. Divide todos os movimentos. o conteúdo e a forma. No entanto ele não está falando sobre conteúdo. São Paulo: Globo. conscientemente teórica. mas de uma natural insatisfação do escritor com a existência. ainda assim. invoca o problema do escritor. Este. Sempre. a situação do artista do mundo contemporâneo merece leituras e releituras. Mario. Contra o vento e maré. e da sua perspectiva política. Mas. Trad. e que resulta na construção da obra literária artística. Este é o conflito da literatura. envolvendo todos os movimentos internos do romance. Considera. A liberdade de escrever: entrevistas sobre literatura e política. VARGAS LLOSA. ainda muito jovem. Apesar de enfocar vários assuntos. sobretudo em Incidente em Antares. é possível avaliar as qualidades e os defeitos. e de guardar na memória . Remy Gorga. VERISSIMO. Carlos Jorge Rio Branco. também. um mero autor intuitivo. observa-se que ele tinha uma consciência muito clara do seu trabalho. A partir das leituras desse livro. Uma leitura extremamente apaixonada de Madame Bovary e. provocou dificuldades em Sartre. A orgia perpétua – Flaubert e Madame Bovary. coloca Flaubert numa espécie de vanguarda do romance no século XIX. p. "Chuva". e nas oscilações do menino. Pouco a pouco. quero dizer. As vozes resolvem a narrativa. em muitos pontos. é a análise das conjunções. sobretudo. não é proibido ter modelos. Nada impossível quando se está diante de um contista do nível deste mineiro notável. às vezes inconscientemente. E ainda mais uma vez aparece aqui o problema do papel do narrador na ficção contemporânea. não retrata conscientemente as pessoas que conheceu. o autor se sente seguro e tem diante dos olhos um imenso material que exige trabalho. Acerto absoluto. ele começou a dizer e fazer coisas que não estavam previstas". A força do conto está. Mesmo quando as anotações não são lidas. com o menino se submetendo mais a um interrogatório do que a uma confissão simples. Feito o estudo atento. Portanto. diálogos. Trad. tudo – absolutamente tudo. o processo criador do escritor norte-americano Gore Vidal. Mesmo que queira fazer isso. justamente. verifica-se que não é preciso dizer. São Paulo. nas provocações e apelos do padre. é a obsessão pelas notas – pelas anotações. conforme Vidal. 2003. O que se destaca. Ocorre aí o andamento por gradação. É preciso sair do texto e deixar que a linguagem e os personagens o inventem. sobretudo em relação a andamento e a ritmo. de repente. Companhia das Letras. A materialização do texto é o fundamento da criatividade. Luiz. Gore. Eles até ajudam. Tudo deve ser anotado. Valem por um tratado inteiro. 1988. In: Tremor de terra. na evolução gradativa do andamento. e sem a intervenção do narrador. VIDAL. No computador ou num caderno deve-se fazer uma escala de valores – cenas. VILLELA. verá que não é de todo possível. A entrevista revela. Nada revela fora daí. Até porque o inconsciente a expulsa. nem mesmo com marcações e rubricas. São Paulo: Publifolha. Uma lição para a construção do personagem: "Um verdadeiro romancista não fotografa. e lá. cenários – que será a orientação para a obra. sobretudo em "Chuva". O conto "Confissão" apresenta as vozes narrativas do padre e do mineiro sem que se estabeleçam planos de espaço e de tempo. Alberto Alexandre Martins e Beth Vieira.tipos que encontrou durante as viagens. 45-51. basta sugerir e informar. Mas não se pode preocupar com a realidade. In: Os escritores: as históricas entrevistas da Paris Review. . através do "e" e do "mais". O melhor deste livro de Villela. Muitas vezes fiz planos para um personagem meu. para o examinador. um parágrafo. para atingir o estágio de grandeza a que chegaram. quando um grupo de linguistas. Uma frase. um período. e o tormento. Iluminuras. riscos e palavras construídas a cada momento em circunstâncias diferentes. com problemas desiguais. uma vantagem para todos nós criadores: a de revelar os segredos da ficção em autores consagrados. a partir do contato com os manuscritos de Haine. Fazer e refazer. A crítica genética oferece. . entre tantas outras. os autores passaram por um processo longo e doloroso. São Paulo: Capes/Fapesp. Anotações. Criação em processo: ensaios de crítica literária. Essa nova perspectiva procurava aproximar-se de aspectos do fazer artístico. Sem acreditar. que foram durante séculos obscurecidos por noções vagas de "musa" ou "inspiração". jamais. ZULAR. Dessa forma. vislumbraram a possibilidade de um estudo autônomo do processo de criação. 2003. com base nesses documentos. Roberto (Org). no talento e na inspiração. rascunhos. a análise dos textos mostra que. no século passado. revelando a intimidade dos seus textos. planos. Ela surgiu no final dos anos 60.
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