Os Piaratas (obra)- Texto dramático (2)

March 25, 2018 | Author: Ana Paula Oliveira | Category: Piracy, Noah's Ark, Sail, Nature


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Escola Básica Elias Garcia_________________________________________________________________ Educação Literária Os Piratas Texto dramático Manuel António Pina Nome: ____________________________________________ N.º ____ Turma ___ A presente obra constitui a adaptação para teatro da novela Os Piratas, de Manuel António Pina. A adaptação foi feita pelo próprio Autor, no quadro de uma residência na Companhia Pé de Vento, do Porto, realizada com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Com encenação de João Luiz, «Os Piratas» - primeira parte de um díptico dramático sobre o mar – foi estreado pelo «Pé de Vento» no Teatro da Vilarinha, no Porto, em 30 de abril de 1997. 1 Cenário A cena é desnivelada. O nível inferior é constituído pelo quarto de uma casa pobre: uma cama de ferro, uma cómoda; alguns livros e cadernos sobre a cómoda; uma cadeira. Uma porta à direita. O mesmo nível serve ainda de sala, após mudança de adereços: a cómoda passa a ter um vaso de flores sobre um «naperon» de renda; a cama é substituída por uma mesa rodeada por três cadeiras. Breves escadas dão para o nível superior, o sótão, um metro acima. As escadas constituem outro «espaço», autónomo embora escasso: é um «espaço entre realidades», um lugar de passagem... No sótão amontoa-se todo o tipo de velharias: pilhas de caixas, alguns brinquedos, pneus, uma máquina de costura, um manequim, a inevitável arca. Paus altos e cordas, uma ou duas pipas. Bancos e cadeiras velhas. Entre os dois níveis, uma janela alta para a rua (o chão do sótão encontra-se aproximadamente ao nível do terço inferior da janela, pelo que esta pertence tanto ao «espaço do quarto/sala» como ao «espaço do sótão»).A janela tem largas cortinas brancas soltas. Os espaços relativos do quarto/sala e do sótão distribuem-se aproximadamente no sentido da diagonal do palco, de modo que um e outro possam dispor de toda a profundidade de cena. Personagens: Manuel e Ana, adolescentes ambos; Capitão dos piratas (voz e vulto); Mãe de Manuel. 2 Ana e Manuel estacam. Cena um Sótão. ANA (Rindo alto) .Não me digas que tens medo de trovoadas. Dia de tempestade. MANUEL . em silêncio... MANUEL (Rindo) . Manuel e Ana estão. Pronto.E o céu. ah! Os raios a cair no mar e tu a cair no chão.. Quando abre o pano.. ANA (Recua.. Palerma. ANA – E tu não tens?..Sai da janela! Pode cair algum raio! MANUEL .Ah. A cadeira tem uma perna partida e Manuel quase se desequilibra. Ana puxa Manuel para o centro da cena. Ana. O gemido da ronca. MANUEL (Dá-lhe a mão) trovejo mais. Meio da tarde. A chuva bate furiosamente na janela. erguendo os braços ameaçadoramente) Brrrrrrrrummm!. O ruído do mar embravecido ao fundo. Os raios caem no mar! Ana senta-se num banco. ANA . Água caindo pelas vidraças...Ora. olhando pela janela.. assustados.Os barcos hoje não saem. ANA (De costas. um raio!..Que tempestade! Se algum barco sai hoje ao mar...Não sejas palerma! Assustaste-me.. de pé. O mar está muito bravo.. afunda-se! MANUEL (Também de costas) .... 3 . diante da janela) . assustada) . Manuel vai sentar-se numa cadeira.O mar e a terra.Eu não te dizia?. MANUEL ... e o céu também. Vem aí uma trovoada...Uma trovoada? Deus nos livre! Não dês azar! MANUEL (Volta-se para Ana. O «espaço do quarto» está invisível (negro). desculpa! (ainda a rir:) Eu não Um trovão lá fora.. Manuel muda de cadeira e vem sentar-se ao lado de Ana. ANA .... ANA . o vento agita as cortinas..«Manuel» «Ana» «A Mãe» Esboços de Suzanne Rosler para os figurinos de Os Piratas. . ANA . Debruçam-se os dois sobre a arca tentando.Lembras-te do naufrágio?.Não fales nisso.Eu sei lá! É do outro lado do mar.. ANA (Cheia de curiosidade) ...Morava na casa ali defronte. Lá fora... Foi para a América e a família nunca mais soube dele.. Só se for uma tesoura.. MANUEL – (Aponta para a janela) .Abrimo-la? E se cá estivesse um tesouro?. Ana levanta-se e anda de um lado para o outro. ANA -Abrimo-la.Qual chave qual carapuça! Está é perra! (Afasta-se. até que se detém diante da arca. um cão ladra furiosamente MANUEL – Achas que a América é muito longe? ANA (Sem o olhar) . Um dia... e tenta abri-la:) O que é que haverá aqui dentro? Manuel fica um momento em silêncio... ANA – Está fechada à chave. mesmo do outro lado da rua. Ana encolhe-se de medo. em vão. (Põe-se de joelhos diante da arca. A minha mãe tem a mania de guardar tudo. MANUEL – (Sem tirar os olhos da janela) . Como agora. MANUEL -Devem ser roupas e coisas assim. deve ser longe. mirando as coisas espalhadas no sótão.. Finalmente levanta-se e aproxima-se de Ana... abrimo-la? MANUEL -Está bem. Foi num dia de tempestade assim. A minha mãe tem medo que lhe tenha acontecido alguma coisa. procurando mudar de assunto:) As coisas que a tua mãe aqui guarda! (Pega numa boneca semidesfeita:) Não me digas que tu também brincavas com bonecas! Outro trovão. Chovia e trovejava... quando ninguém estiver à espera.Um tesouro?! Em minha casa?..Não.. aparece.Foi no dia em que fomos despedir-nos do meu pai. (Pausa:) Lembras-te do senhor Albino? ANA . (Olha em volta.. mas eu sei que está aflitíssima. MANUEL . olhando para a janela.. à procura de qualquer coisa com que abrir a arca..MANUEL (Voltando-se para a janela) .Ora.. É triste. MANUEL (Baixando-se ao lado de Ana) .. abre-se.. A última vez que escreveu disse que ia ti trabalhar para outra fábrica........ MANUEL . ANA . Volta com uma 4 .O meu pai não escreve há três semanas! A minha mãe não fala. abri-la. Cem pai-nossos e cem avé-marias.Ena. Manuel cala-se e fica quieto e muito sério.Eu não te dizia? Ana puxa um velho vestido preto de dentro da arca.. soa a ronca. Regularmente...Do naufrágio? Outra vez? Oh. lembreime do naufrágio. Agora só falta o tesouro. Até acendemos uma vela. Rezai pelos vossos pecados... O Padre Timóteo dizia que. Nossa Senhora não nos ouviu.. é muito triste. tanta tralha! MANUEL . e para diante dele a olhá-lo. porque as crianças lhe faziam lembrar o filho.. imitando o padre. se rezássemos todos juntos. Ana deixa também de rir...O Padre Timóteo.O que foi.. Ana está de joelhos a seu lado.Nada. Esforçam-se ambos por abrir a arca com a tesoura. ao longe. MANUEL .. Manuel e Ana conseguem finalmente abrir a arca.. (Pausa:) Lembras-te do nome do navio? Era o «Dover»… Morreram todos. De repente.Rezámos um terço inteiro. Manuel. Ana sentou-se de novo.. soa a ronca. (Mete o vestido pela cabeça e põe as mãos. Manuel . que morreu na cruz. encontrei a tal tesoura.. mas despedaçaram-se todos nas rochas. De vez em quando. na catequese. Manuel vai buscar o banco e senta-se. rindo) ... Nossa Senhora salvava os náufragos.Olha! Parece a batina do Padre Timóteo! MANUEL (Tira-lhe o vestido da mão. ANA . já foi há tanto tempo. ANA (Inclinada para dentro da arca) ..tesoura ferrugenta:) Olha... Quem dá mais.Sei lá. tentando forçar a arca.. 5 . ANA . Nossa Senhora ouvia as crianças. quem dá mais? Ana ri e salta à volta de Manuel.. ANA . ao longe. O vento continua a soprar lá fora e a chuva a cair.. Manuel? MANUEL (De cabeça baixa e braços caídos ao longo do corpo) .) Caros irmãos..Dá cá . sem compreender ANA .. pediu-nos que rezássemos pelos náufragos. Manuel senta-se ao lado de Ana.. Depois de várias tentativas..Não fales nisso. lembras-te? ANA . Ana tira um chapéu e coloca-o na cabeça de Manuel. ANA . é horrível! Não fales agora nisso. a pedir ajuda. O navio estava deitado de lado e as ondas passavam-lhe por cima. Manuel está de pé. O navio afundou-se. MANUEL – (Pegando no lenço) – O lenço vermelho! 6 . atirando-o para a arca... despedaçado... ANA – Não fales mais nisso … Ana aproxima-se de novo da arca. ao quinto dia e ao nono dia … (Pausa:) O terço a Nossa Senhora não valeu de nada … Manuel fica em silêncio MANUEL – Sabias que. ANA – Fica-me bem. ANA – Anda! Vamos procurar coisas na arca … Ana recomeça a mexer no fundo da arca. Depois tira um velho xaile de renda branca e põe-o na sua própria cabeça. (Pausa) A minha mãe diz que o mar atira os náufragos ao terceiro dia.Eu fui lá. antigamente.. Quando o vejo ainda hoje me arrepio todo.MANUEL . com os braços no ar.. meio desfeito. Pega na mão de Manuel e puxa por ele. MANUEL . Viam-se os marinheiros no meio do nevoeiro. ao longe.. Ana continua a vasculhar e ergue-se com um lenço vermelho na mão. a seu lado. não para de gemer. Estava tão perto! Quase se lhe podia tocar. e morreram todos. correndo de um lado para o outro. ANA – E isto? O que é isto? Manuel endireita-se subitamente... Manuel levanta-se e despe o vestido. as pessoas acendiam fogueiras nos dias de tempestade para enganar os navios e os fazerem naufragar? Depois apanhavam na praia as cargas e as riquezas que os navios levavam … Até vinha gente do outro lado da ilha! ANA – Eu sei...Eu sei. varrendo tudo. meio desfeito. à Ponta de Santo António.Ainda lá está. A ronca. Fiquei no cimo da falésia a ver.Ainda lá está. só ficou a proa de fora... MANUEL . Continua a chover. Mas os bombeiros não conseguiram atirar os cabos. fica-me bem? (olha em volta:) não há por aqui um espelho? MANUEL – (Sorrindo) – Pareces uma noiva … Manuel acaba por debruçar-se também sobre a arca.. Manuel pousa o lenço vermelho nos joelhos e olha o vazio. O vento. juro! Conta. Jurando com a mão sobre a garganta) . Ana força Manuel a sentar-se sobre a arca e senta-se a seu lado.. Manuel. Foi no dia do naufrágio do «Dover». já disse! Manuel fita o lenço. Nessa noite eu não conseguia dormir. não mintas … Dizme. o que é? Parece um lenço de pirata … MANUEL – (Num murmúrio. MANUEL – (Virando-se para Ana) – E depois não te ris de mim? ANA – (Faz um gesto. Penumbra.. conta! MANUEL – Não sei se foi um sonho ou não. Não existem piratas! MANUEL – Existem... Um relâmpago atravessa o céu. Chovia muito e havia trovoada. Não me saiam da cabeça os gritos dos marinheiros a pedir ajuda... conta! MANUEL – Não …Não sei… Tu não acreditavas.. Manuel está deitado na cama. ANA – Não acredito. ANA – Conta. conta. Ana tira-lho da mão e observa-o. O vento atira furiosamente a chuva contra a janela.. Cena dois Acendem-se lentamente as luzes no -espaço do quarto». Ana … ANA – Acredito... cheia de curiosidade) – O que é. 7 . existem! Se eu te contasse … Manuel torna a pegar no lenço. curiosa. juro! Manuel faz uma pausa. A chuva e o ruído do mar. diz-me … MANUEL – É um lenço de pirata. outras vezes … Não sei … Foi no dia do naufrágio … Nunca contei isto a ninguém … Até a mim me custa a acreditar … ANA – Conta. As luzes apagam-se lentamente. a chuva. a ronca. ao longe. sombras..ANA – (Ao lado de Manuel. fitando paradamente o lenço) – E é … ANA – (Incrédula) – É um lenço de pirata? Oh. em pijama. ANA – Não acredito … MANUEL – Não se se existem ou não existem … É uma história tão estranha … Às vezes acho que foi um sonho.Não. ouvem-se agora distantemente. de olhos abertos e com as mãos sob a cabeça.. Noite. dando-lhe o braço. ... Eu. sobressaltado.Eu quem? VOZ . ouve-se uma voz (vinda das sombras. Mas tens que vir depressa.. do “espaço das escadas”)..Manuel. Do escuro.. VOZ .. Está a fazer-se muito tarde... Uma mão invisível pega na mão de Manuel puxa-o... não é um sonho. Quem está aí? Silêncio. Depressa.... Vem depressa. oferecendo apenas uma tênue resistência.Silêncio.. VOZ (Do escuro) ...(0lhando em volta) . Manuel deixa-se levar. ainda não.Sim. 8 . olhando para fora.Manuel. meu tolo! Vem! MANUEL . olhando em volta...A minha mãe? Aconteceu alguma coisa à minha mãe? VOZ . VOZ ... esfregando os olhos e perscrutando a escuridão do quarto.Não. Manuel soergue-se de novo. Manuel senta-se na cama. Manuel.Quem? Eu? VOZ .. assustado) . Anda...Eu sou tu. tu! (Pausa:) Confia em mim. Depois acaba por voltar a deitar-se... O vento agita levemente as cortinas da janela. soergue-se na cama..Quem é?. MANUEL (Assustado) ... Levanta-se e vai à janela. (Insistindo:) Vem.Mas. MANUEL (De novo virado para o escuro das escadas) . MANUEL ..Não.Anda depressa! Manuel deixa-se arrastar em direção ao escuro.Sou eu.Manuel. Manuel senta-se de novo na cama. Devo estar a sonhar.. Ruído da chuva na janela.. Quem és tu? VOZ . Daqui a pouco amanhece e eu desapareço … Depressa! É muito importante! Tens que salvar a tua mãe! MANUEL (Detém-se. tu.Não compreendo.. VOZ . VOZ (Num murmúrio) . anda.. Aos poucos. MANUEL . Eu... vem! MANUEL (respondendo para o escuro) .Mas. enquanto se acendem luzes translúcidas sobre o “espaço das escadas”.. Eu. Anda depressa. Estou acordado ou estou a dormir? VOZ – Estás acordado. que está nas costas da cadeira. MANUEL (Aflito) . da mão que o leva e tenta pegar na sua capa. meu tolo! Vem! (A mão puxa por Manuel com mais firmeza:) Depressa. vem! Enquanto Manuel é arrastado para o escuro. são cada vez mais nítidos.. Ao fundo deste espaço.. assustado. a ronca e o mar. o mar e a ronca. por momentos. pipas.MANUEL (Sem compreender) . inclinado.. MANUEL (Num grito abafado) .Mas. Acaba por regressar apressadamente em direção às escadas (ao escuro). Manuel. junto à janela. as cortinas da janela batidas pelo vento/velas enfunadas. sombras de piratas: vultos de perfil e de frente e em atitudes e movimentos dispersos. Espreita para cima.Diz-me o que é que aconteceu à minha mãe! Ao longe. O quarto fica lentamente na obscuridade. agarrando-se às escadas.. com medo de ser descoberto. . Manuel.Aqui. num écran. paus altos/mastros. Estão agora a ancorar. MANUEL (Mais alto..Piratas? Onde? VOZ . A cadeira cai e a capa também.. muito assustado.. sombras de 9 . cordame. As tralhas do sótão tornaram-se cenograficamente no tombadilho de um navio pirata: um gradeamento de madeira. Cena três Ilumina-se o nível do sótão...É um barco pirata! Vão assaltar a ilha e levar as mulheres! Tens que salvar a tua mãe! (A mão torna a puxar por Manuel:) Vem depressa! MANUEL (Muito assustado) . como a tempestade.0 que aconteceu à minha mãe? VOZ . uma caixa de pé/bitáculo da bússola. sobe as escadas. detendo-se mais uma vez) . deita alguns livros ao chão.Piratas! A minha mãe! Manuel mergulha no escuro. Manuel liberta-se.. Manuel põe-se de pé.O que é que estás a fazer aí parado? Nunca me viste? Vai apagar os lampiões! (Apontando com a espada para o chão:) E apanha o raio do lenço! Não quero ver ninguém sem o lenço na cabeça! Manuel baixa-se e apanha o lenço vermelho do chão. o vulto do capitão. transido de medo. MANUEL . traz uma garrafa ao Capitão. 10 . Subitamente. de um lado ao outro do tombadilho. suas bestas! Olhem-me as vergas. correndo. ao seu esconderijo. que o vento está a dar de popa! Mexam-se ou atiro-vos a todos aos tubarões! O Capitão corre furioso. Barulho infernal de vozes e de passos correndo de um lado para o outro. obedece. ficando depois paralisado diante dele. Manuel afunda-se ainda mais no seu esconderijo. ó grumete! O que é que estás aí a fazer? Mexe-te também. cheio de medo. grumete dum raio? Vaime buscar outra garrafa! Mexe-te! Manuel. coxeando. Manuel está escondido ao cimo do “espaço das escadas”. O Capitão emborca ruidosamente a garrafa.Meu Deus! Os piratas! CAPITÃO (Sempre aos berros) .Não ouviste.Preparar para a abordagem! Mexam-se. CAPITÃO (Voltando-se de novo para Manuel) . CAPITÃO (Cada vez mais furioso). Ata-o à volta da cabeça e regressa. entre cordas e caixas. onde Manuel se esconde) . outros com os braços no ar. enquanto o Capitão continua a berrar e a dar ordens à tripulação.Baixem as velas. CAPITÃO. uma espada numa mão e um óculo noutra. o capitão dá com ele e aponta-lhe a espada. suas bestas. E sempre o ruído do mar e da tempestade. hipótese de a «tripulação» ser constituída par sombras de bonecos atrás da cena. VULTO DO CAPITÃO (Dando ordens à tripulação. como um autómato.E tu aí. alguns piratas subindo. de grande chapéu largo e com uma perna de pau. aos berros) . CAPITÃO (Virado ameaçadoramente para o lugar das escadas. O Capitão olha com um longo óculo para terra. no entanto. ou enforco um! Depressa antes que nos descubram! Baixem as velas! Gritarias e correrias dos piratas. movimentar-se-á e intervirá na ação. aterrorizado. seus animais! Manuel.cordame. ou vais para os tubarões! Vai-me buscar uma garrafa! Mexe-te! Descoberto. brandindo espadas. agora muito alto e muito próximo.Mexam essas pernas. Traz ainda o lenço vermelho atado à cabeça.Meu Deus! Já estão cá em casa! Estamos perdidos! Manuel atira-se para cima da cama. assustada. O resto do palco está invisível. terra! Tudo a estibordo.Mãe. tem que ser um sonho. entra e acende a luz. tenho que acordar! Se não acordo eles levam a minha mãe! Manuel senta-se. MANUEL . tem que ser um sonho! Abre-se então a porta do quarto e a Mãe. depressa! CAPITÃO (Voz vinda do sótão) . botes à água! Ao assalto! Queimem tudo! Apanhem as mulheres.Tenho que acordar.Apanhem-nas! Apanhem-nas! Manuel surge. CAPITÃO. MANUEL (Corre precipitadamente para a porta do quarto gritando) . Tropeça no cordame e cai.CAPITÃO (Dá de repente um salto) -Terra.Meu Deus! A minha mãe! Tenho que salvar a minha mãe! Apagam-se lentamente as luzes. descendo em correria as escadas. tapando os ouvidos com as mãos. mãe! Foge! Manuel tenta abrir a porta do quarto. aflitíssimo. dentro da casa.Para terra! Remem. Levanta-se de novo e precipita-se pelas escadas.Mãe. Continua a ouvir-se a gritaria dos piratas e o barulho das espadas e da tempestade no mar CAPITÃO . e corre para as escadas. Cena quatro “Espaço do quarto” na penumbra como na Cena 2. Olha por um momento os piratas e o Capitão aos saltos e aos gritos. MANUEL . tem que ser um sonho! Tenho que acordar. 11 . mas não consegue. Bate desesperadamente com os punhos fechados na porta. salta do esconderijo.Botes à água. MANUEL – É um sonho. Os piratas gritam e correm. remem. suas bestas! Ruído de objetos que tombam do lado de lá da porta. MANUEL . MANUEL . sacudindo-se desesperadamente. mãe! Os piratas! Depressa. Passos em correria e gritaria abafada. tudo a estibordo! Grande algazarra no navio. apanhem as mulheres! Manuel. MANUEL .) Oh. com homens com espadas a entrarem pela casa dentro! (Aperta Manuel com mais força:) Deve ter sido por causa do naufrágio. Vira-te para o outro lado e dorme.. MÃE . (Dá de repente conta do lenço que Manuel tem ainda atado à volta da cabeça:) E que é isso que tens na cabeça?. mãe. (Rindo. a porta estava aberta e o bengaleiro no chão.. na América. Havias de ver a casa! Quando acordei com os teus gritos. Onde é que arranjaste isso? MANUEL – Depois conto-te... Manuel deita-se na cama e a Mãe aconchega-lhe os cobertores... ficámos os dois muito impressionados. Depois força-o ternamente a deitar-se.Eu também tive pesadelos esta noite. MÃE (Correndo para a cama) . Manuel. MÃE (Abraçada a Manuel) . Desaparece subitamente o barulho dos piratas.Está bem. Vamos dormir como se estivéssemos todos juntos em casa.. professor e peço-lhe para te mandar os deveres de casa por um colega. deve ter sido um pesadelo. MANUEL (Olhando em volta e escutando. que engraçado que estás! Pareces um pirata.....Dorme.. depois conto-te . A Mãe beja Manuel e afasta-se...E por causa do temporal. Manuel tapa a cabeça com os cobertores. 12 .O que foi. mãe. Eu também vou deitar-me.Vá. (Pausa:) Sabes que a esta hora. eu vou falar com o Sr... MÃE ..Foi um pesadelo. O quarto fica de novo na penumbra.. o que foi? (Abraçando Manuel:) Tiveste um pesadelo. não foi? Manuel abraça com força a Mãe. MÃE . Mesmo o vento e o mar só se ouvem açora muito ao longe...O quarto ilumina-se. (afasta docemente Manuel de si:) E tu? (Observandoo:) Estás todo molhado. se Deus quiser..Deve ter sido. A Mãe fecha a luz do quarto e sai.Até amanhã. que estou muito cansada. dorme. mãe.. A mãe tira o lenço da cabeça de Manuel e pousa-o na cama. ainda assustado) . está a começara anoitecer? O teu pai também deve estar agora a deitar-se.. está bem? MANUEL ..Até amanhã.... mãe... O corredor está cheio de areia e tudo fora do sítio. Um pesadelo horrível. MÃE . que já é muito tarde… (Aconchegando-o:) Amanhã não vais à escola. MANUEL .... Parece que andou o Diabo cá em casa! Deve ter sido o vento. . Manuel segue-a.Mas... a cena recomeça. Lá fora. Depois senta-se de novo na arca... O mesmo cenário da Cena 1. MANUEL ... Ana fita o lenço na mão de Manuel..Foi assim que nós nos conhecemos.. (Pausa..Juro que não conto. não consigo compreender. Ana torna a levantar-se e aproxima-se da janela.Não acreditas. não conto nada a ninguém. Cena cinco Ilumina-se o “espaço do sótão” como na Cena 1. Foi quando tu vieste para cá. [Nota do Autor: «continuação» da Cena 1. por isso. Manuel põe-se de pé. ANA . ANA . É um segredo nosso. Manuel e Ana estão sentados sobre a arca.. Mas.. como é que tu apareceste com o lenço na cabeça? MANUEL . Manuel pega no lenço e fita-o. Ana guarda silêncio por um momento.É isso....] MANUEL . MANUEL . pois. Mudando de tom:) Eu sabia que não ias acreditar.. juro-te.Nunca contes à minha mãe. lembras-te? MANUEL . Não sei. Deve ter sido a minha mãe quem guardou o lenço na arca.As luzes de cena apagam-se lentamente.. É tudo tão estranho. MANUEL ..Ah.. Mas isso foi depois. Eu não lhe contei nada. 13 ..Por causa do naufrágio do «Dover». ANA . pois não? ANA (Com a cabeça baixa e as mãos entre os joelhos) .Foi tudo há tanto tempo.Acredito. ANA -Acredito. É..Assim como? ANA . com ambos na posição em que se encontravam no final desta. Depois levanta os olhos para Manuel.. Ana levanta-se e mete o braço a Manuel. se foi um sonho... a tempestade amainou. A pensar em quê? ANA . Um pequeno pinheiro de Natal a um canto.... (Repara no silêncio de Manuel:) Desculpa. estou só a pensar. Vem. MANUEL .. O mar já atirou mais três corpos à praia.A chuva e o vento amainaram definitivamente... Mesa posta para três pessoas..Sabes que chegaram as famílias dos marinheiros do navio afundado? Coitados. A Mãe regressa para junto da mesa e Manuel entra.. A comida está a arrefecer… Manuel e a Mãe sentam-se à mesa e começam a comer. em quando. MÃE ... não devia falar de coisas tristes. MÃE . não devia estar a falar destas coisas. da cena 1.Manuel! A Mãe vem à porta e chama de novo.. Cena seis «Espaço da sala». 14 .Manuel.. Distante.] MÃE (Voltando-se para Manuel) . quem sabe se ele não aparece sem nós esperarmos? Gosta tanto de fazer surpresas. As luzes extinguem-se. (Pausa. Mãe . Aos poucos. MANUEL . a ceia já está na mesa. Amanhã é Dia de Natal.Manuel! A Mãe coloca a travessa na mesa e volta a chamar. Só à meia-noite.Não. a ronca.. sugerindo que a presente cena decorre noutro «tempo». [Nota do autor: Manuel vestido diferentemente. MÃE (Chamando para fora) . apenas se ouve ainda.Anda.Pus também um prato e um talher para o teu pai...Em tudo. de vez. mesmo que pouco. É Natal. Mudando de assunto:) Queres que te dê já a tua prenda? MANUEL . MÃE . MANUEL – Estás triste? ANA .. num passado narrado. senta-te. começa a ouvir-se um som de sinos ao longe («raccord» para a cena seguinte).A pensar em tudo.Não.Em tudo o quê? ANA . Noite. Comem os dois em silêncio. trazendo uma travessa na mão. mãe. Entra a Mãe de Manuel. mãe. Tinha 10 anos. Mudando de tom:) Mas não falemos mais disso.Quem?. Coitada! Perder assim um filho...Eu sei.Pronto.. A Mãe levanta-se outra vez e traz. Toma.Fiz biscoitos de limão. eu não digo nada. MANUEL . Vi as duas na missa por alma dos náufragos. que é um desígnio qualquer de Deus..Acho que vais gostar...Pronto..O Padre Timóteo contou-nos que no navio vinha um rapaz. a olhar para o mar.. MÃE ....... Também chegou ontem.A menina. que se salvou a nado.. com as outras famílias. Queres que a descasque? E depois.Eu também as vi.. Ela e a noiva dele. e o dele não..Achas que ela também vai à missa da meia-noite? 15 .) Coitadinha.... Andavam as duas a passear na praia. MÃE . uma nobre. A Mãe tira a laranja das mãos de Manuel e começa a descascar-lha:) Dizem que um mago disse à senhora inglesa que o filho ainda está vivo. agora não se fala mais de coisas tristes.. MÃE .. MANUEL . Ela julga que ele pode estar por aí..MÃE . ou em algum ilhéu abandonado. come os biscoitos … (Chega-lhe também o prato dos biscoitos:) Ficaram-me muito bons. não digas! Só à meia-noite! MÃE. Ele pensa que aquilo quer dizer alguma coisa. (Pausa:) Tinha a tua idade..... Vinha no bote que o navio lançou logo que encalhou e que se partiu contra os rochedos.Ela é muito bonita... E depois vai-te arranjar que daqui a pouco são horas de irmos para a missa da meia-noite... a laranja na mão. Manuel roda. um cesto com algumas peças de fruta... O jornal diz que se chamava Robert. (Pausa.. Tão novo. (Suspirando.Come uma laranja. tirando um prato com bolos e Colocando-o sobre a mesa. MÃE.Não digas. em qualquer sítio da costa.. distraído. E tão branca e tão bonita! (Pausa.. MÃE. A Mãe levanta-se e abre uma gavela da cómoda. MANUEL . A Mãe torna a sentar-se.. MANUEL .. MANUEL .O Padre Timóteo contou-nos também que encontraram um caixote na praia com uma cruz lá dentro. É uma coisa de vestir.. de cima da cómoda. Tira o prato da frente de Manuel e põe-lhe um de sobremesa.. não é? MANUEL . uma menina de 9 anos.... come a laranja. chamada Ana. A mãe dele é uma senhora inglesa. Mas já apareceram os corpos todos do bote.. MÃE (Entregando a laranja descascada a Manuel) . coitadinhas. MÃE . A Mãe força docemente Manuel em direção à porta.. olhando pensativo para a rua.Que estás a fazer? Já acabaste os deveres? (Aproxima-se de Manuel. tirando a mesa. E a senhora inglesa parece tão doente. Manuel levanta-se também. Veste a capa. Chove suavemente.. Anda. de costas para o público.) Não estejas a apanhar frio... Cena sete «Espaço do sótão». A Mãe pega na mão de Manuel e puxa-o em direção às escadas.Afinal o teu pai não veio. MÃE .MÃE . As luzes extinguem-se lentamente.Não gosto que te ponhas para aqui sozinho. Põe a cesta da fruta e o prato dos bolos em cima da cómoda.. Manuel sai. de avental. MÃE (Em voz off) . Manuel dirige-se para a porta. A mãe fica sozinha. Dia. Manuel faz menção de ajudar a Mãe a tirar a mesa. leva um biscoito. que está frio..Quem? MANUEL . MANUEL.. Elas estão as duas tão cansadas. Principiam ambos a descer as escadas.Achas que elas irão à missa? MÃE . amanhã é melhor não ires à escola.A menina.. 16 .Manuel! Surge a Mãe. vou fazer-te o lanche. A Mãe vai atrás dele.. MÃE ...Toma.Não. Pode ser que a Ana apareça e lancham os dois. vinda das escadas. Vai-te arranjar que já é tarde..Gostaram.. deixa.. eu faço isso. MÃE (Tristemente) . Manuel está à janela. que estás constipado! (Põelhe a mão na testa:) Estás cheio de febre. MÃE . Ela e a senhora gostaram da marmelada que lhes mandei? MANUEL ..Não sei. em silêncio.. A Mãe levanta-se e começa a tirar a mesa. . doente.. como tu. obrigado. que frio deve ser! MANUEL (Olhando a carta) . o teu pai escreveu. Manuel está vestido com a mesma roupa da cena anterior]. Nunca vi neve… Meu Deus. (Pausa:) Era bom era que ele voltasse.] 17 . Na fábrica das conservas já estão a meter gente outra vez. [Nota do Autor: Ana vestida e penteada diferentemente das Cenas 1 e 5 do sótão.. MÃE . pois era. Entra a Mãe com uma carta na mão..Olha..Amanhã faço mais e tornas a levar-lha. MÃE – Queres outro copo de leite? MANUEL . de modo a sugerir um tempo distinto. Mas diz que talvez em breve lá possamos ir nós. Também esteve doente.. (Procurando mudar de assunto:) Tomaste o comprimido? MANUEL . Pancadas na janela.... MÃE – (levantando-se..Tomei.. Fim da tarde. (Acaricia a cabeça de Manuel:) Não gostavas de ver neve? Manuel entrega de novo a carta à Mãe e volta a deitar-se.Não. (sentando-se na beira da cama:) Na América ainda faz mais frio do que aqui! Mostra a carta a Manuel.Não sei. alvoroçada) ..Diz ele que tem estado sempre a nevar. Manuel está de cama. que se soergue e pega nela. Rosto de Ana sorrindo à janela.MÁE . Manuel ajeita a roupa da cama. Podia arranjar trabalho cá. tem por objetivo sugerir uma breve passagem de tempo e dura o necessário para a mudança do cenário da sala para o quarto.Pois era.Não.. Manuel e a Mãe voltam-se. [Nota do Autor: cena de passagem. MÃE . (Pausa:) Um dia volta.Ele não diz quando vem? MÃE . Cena oito Quarto. Neve.. mãe. MANUEL .É a Ana! Veio visitar-te! A Mãe dirige-se para a porta e sai. MÃE . A Mãe regressa pouco depois com Ana. Ana senta-se na cama. nem apaga a luz. Está convencida que. MANUEL (surpreso e assustado) . só para fazeres companhia à Ana.Lady Elisabeth está muito mal.. Entrega um à Ana e outro ao Manuel.Toma..Lady Elisabeth? Não... está cada vez mais fraca. Não quer ir-se embora. Manuel. ANA .... A Mãe sai.. A Mãe sai... Ana e Manuel ficam sós. Está convencida de que os piratas hão de voltar à ilha e que.. MANUEL ... a tentar dormir e sonhar o mesmo sonho.. (Pausa:) E a senhora? Está melhor? ANA (Para a Mãe) . nem sequer abre as cartas que recebe de Inglaterra. muito obrigado. sempre a olhar para o mar. (Pausa:) Passa os dias fechada no quarto. Ficou a dormir no hotel. não digas nada à tua mãe. depois. Robert morre. ANA . tornará a encontrá-lo.. ANA . nem de noite. com o prato sobre o travesseiro. obrigada... se chorar. Ana fica um momento em silêncio e..Coitadinha..Não se incomode. MÃE (Saindo de novo) . mãe.Estou. Afasta o prato e torna a meter-se sob os lençóis. MÃE ...Teve um sonho. Nunca fecha as janelas. A Mãe regressa com dois pratos com torta. O que ela está a sofrer.. segurando o seu prato. (Mudando de tom. Manuel soergue-se. Mãe -Ainda tem um bocadinho de febre.. então. (Dirige-se para a porta). para ver Robert outra vez.ANA (Entrando) -Estás melhor? MANUEL . 18 .Não quero..Agora fiquem os dois um bocadinho a conversar que eu vou lá dentro e já venho. Ana sorri. MÃE .. sabes? Viu Robert apanhado por piratas e levado no barco deles pelo mar fora. Vou buscar-lhe um bocadinho de torta de laranja... para muito longe. Manuel olha-a sem dizer nada. Mas segunda-feira já vai à escola outra vez. (Pausa:) O que mais me aflige é que não chora.. volta-se para Manuel.. obrigado.) E a Ana? Já lanchou?. está muito boa. MÃE -Vá lá.Um barco de piratas? Robert?.. ANA (Sentando-se sobre a arca) . Eu não queria..ANA .Até amanhã.. Não quer que mais ninguém o saiba.. não comeste nada. [Nota do Autor: cena de «continuação» do tempo e do lugar delas)... Manuel fica de novo só. Mas és a única pessoa da ilha de quem ela gosta.. coitadinha.Sim.. ANA .. reparando que ele mal tocara no doce.. mal te conhece.. ANA (Para Manuel) .. não? Nem ao capelão que a confessa ela o contou. não digas nada à tua mãe..Não estejas triste. Gosta muito de ti! É estranho. Pediu-me que te contasse o sonho dela.Eu sei.. Extinguem-se as luzes. 19 .Tu é que me pediste para eu contar.. Ana. A Mãe abre a porta e entra novamente. MANUEL .A mim? Porquê a mim? ANA . MANUEL . Saem as duas..) Oh. Cena nove Sótão. Mesmo cenário das Cenas 1 e 5. sim? MÃE . na mesma situação em que terminam a Cena 5. vá. A cena começa com Manuel e Ana junto à janela... ANA .. Lady Elisabeth pode precisar de mim. Eu amanhã faço um bolo para levar à senhora. Vê se ficas bom.Parece que foi tudo há tanto tempo. Ana põe-se de pé. a tempestade e o gemido da ronca. ANA .Até amanhã.. Vira-se de lado e cobre a cabeça com os cobertores. Ela precisa de companhia. ANA . Manuel.Eu não estou triste. Ao longe.. Ana.Pois parece.Tu é que me fizeste lembrar estas coisas.Já? (Pegando-Ihe na mão:) Tem razão. MANUEL . vá..Não sei. Uma torta de laranja tão boa. MÃE (Para Ana) . MANUEL (Aproximando-se e ficando de pé a seu lado) . desculpa.. MÃE (Para Ana) ...Então a torta? Estava boa? (Para Manuel...Tenho que me ir embora. eu sei... (Puxando o seu banco para diante dele:) Mas tens que me contar. Às vezes acho que foi um sonho.Coisas que não me contaste? Mais coisas? O quê? MANUEL . também sonhou com os piratas.Pronto.Não vês que.. Há tantas coisas que não te contei. tenho medo que fiques zangada comigo... MANUEL .... Ana..... Manuel deixa-se cair sobre o banco. agora quero saber. MANUEL (Endireitando-se) . ANA . ANA .. não sou capaz. nem dos piratas. ANA (Insistindo) . ANA .. MANUEL . ANA – O que é? Conta! Depressa. ANA (Libertando-se) .. Ana ergue-se e aproxima-se dele. baixa os olhos para o chão:) Lembras-te do dia em que me encontraste na praia com aquele pescador? ANA ..Não posso. alarmada:) Meu Deus! MANUEL (Tapando-lhe a boca) -Não.Conta. não digas nada..Com o velho maluco? 20 .. MANUEL (Afastando-se de repente) .Pronto. não podemos ter coisas escondidas um do outro.MANUEL ..Oh.. longe de Ana..Tens que contar...Zangada contigo? Não sejas tolo.. não tem? MANUEL (Num murmúrio) – Tem ....) Tem que ver com os piratas. Falaste nisso. se tu soubesses. eu não digo nada. ANA (Erguendo a cabeça para Manuel) .. MANUEL . E se o sonho dela e o teu. Não quero ouvir.Não queria que ficasses triste.Não posso.. Mas há tantas coisas que não compreendo. (Pausa:) É tudo tão confuso... ANA ...Não quero contar. (Detém-se... Ana volta-se para ele. Mas não quero ouvir! ANA (Docemente) . pronto. lembras-te?. Lady Elisabeth. depois. eu conto.Não estejas. Nunca me hei de zangar contigo..Nunca me tinhas falado do teu sonho. tens que contar! (Sentando-se a seu lado. MANUEL ..Eu sei. (Encara Ana e..É porque. MANUEL ... Não é possível. porque os piratas regressaram. a certa altura. depois do sonho....Mas.E depois?. 21 ..Não pode ser. Por isso é que te disse que não compreendia.. deram com um rapaz estendido entre as rochas e que pegaram nele e o levaram.Sim. Perguntou-me se. O grumete. Sabia tudo. MANUEL . E que o Capitão gritava com eles que procurassem o grumete! Que os enforcava a todos se eles não encontrassem o grumete! ANA ..... MANUEL ...Os piratas? Falou-te dos piratas? MANUEL . Disse-me que eu devia ter adormecido outra vez... desculpa! Eu não tive culpa. eu não tive culpa.. Não faz sentido..Sim....Desculpa.. Como.Pois não! ANA .Não sei... ANA (Ansiosa) . da minha idade. ANA (Num grito sufocado) .... ANA . MANUEL .. (Pausa:) Ele contou-me uma coisa terrível. é que ele podia saber?. Manuel segura a cabeça entre as mãos. eu tinha adormecido outra vez.... aquele que esteve na América...Robert! Levaram mesmo Robert! Mas.E que mais? O que é que ele disse mais? MANUEL (Num fôlego... Ana. ANA ..Conta. Foi o que o Capitão me chamou no sonho.. MANUEL (Agarrando-se a Ana) . e que viu os piratas descerem um bote.. vês? Por isso é que eu não te queria contar.Eu sei. e que tinha caído e desmaiado! Meteram-no no barco e tornaram a zarpar para o mar! (Num murmúrio:) Um rapaz mais ou menos como eu.. ele não podia saber do meu sonho nem dos piratas.Ele falou-me do meu sonho! ANA ..Do teu sonho? Do sonho dos piratas? O velho? Mas.Sim.. Contou-me que ia para a cabana dele e que viu o barco dos piratas a rondar novamente a ilha e pensou: «O rapaz deve ter adormecido outra vez!» ANA . Ana pôs-se também de pé e encostou-se à janela com os olhos fechados. eu.Mas.....Disse-me que os piratas andaram de um lado para o outro à minha procura e que... ANA (Incrédula) . sem se deter) – Disse que se escondeu nos rochedos a espreitar. MANUEL .MANUEL .Vês.. Convenceram-se de que era eu.) Não sei se sou capaz de te contar . (Hesita de novo. Se calhar é tudo mentira. MANUEL .. agora que já começaste tens que me contar tudo! MANUEL (Pondo-se de pé bruscamente) . . (Deixa-se cair sobre a arca. O naufrágio.Mas então.. está bem? MANUEL . Mas.Eu nunca mais conto. como no início da peça. os dois ficam. Não pode ser.. ANA ..Fui eu que te pedi.. olhando a Manuel põe os braços sobre os ombros de Ana. Não compreendo mas foi de certeza tudo um sonho. não compreendo.. MANUEL ....... acho eu..Julgaram que eras tu! Levaram Robert!!.. ANA . (Agarra Manuel pelos braços:) Agora não contes a mais ninguém. MANUEL ....Claro que dou..Eu não conto. O sonho de Lady Elisabeth. juro! A chuva volta a cair com força... Amanhã acordamos e não nos lembramos de nada. Manuel? Manuel volta-se também. não pode ser! Foi um sonho.. Foi tudo um sonho. rua.Vês? Não devia ter-te contado.. MANUEL .. olhando em silêncio a rua e a chuva a bater nas vidraças. foi tudo um sonho! Só pode ter sido um sonho! Se deitarmos fora o lenço até esta conversa foi um sonho..Dás-mo.Fica um segredo só nosso. Mas. 22 . dás-mo? MANUEL . não?! Nunca contes isto a ninguém! (Metendo a cabeça entre as mãos:) Meu Deus.. ANA ... de pé.Meu Deus. foi só um sonho! ANA .... Ana.Pois não.... os piratas. ANA (Guarda o lenço e aproxima-se de novo de Manuel e da janela) – Nunca mais contes estas coisas a ninguém. Manuel e Ana estão agora parados.. confundida e angustiada:) Meu Deus! Eles levaram mesmo Robert!! MANUEL . A ronca geme mais alto. Robert a ser levado pelos piratas. (Abanado a cabeça:) Não pode ser! Os piratas não existem! Foi tudo um sonho! Como é que velho sabia? Não pode ser..O quê? O lenço?.. MANUEL (Muito aflito) . Ficam os dois longamente em silêncio. diante da janela.Sim. Mas. ANA . tudo. Lado a lado. Ana volta-se devagar e caminha em direção à arca. tinhas que contar. e as cortinas estremecem de novo com o vento.ANA (Voltando-se para Manuel) ... ANA (Pegando no lenço vermelho) .Não pode ser. As luzes. * * 23 * .Manuel põe o braço sobre os ombros de Ana. extinguem-se. lentamente.
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