Os filósofos e a Educação - SANTOS, Fausto dos

March 25, 2018 | Author: Scheila Meira | Category: Sophism, Plato, Relativism, Thought, Pedagogy


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OS FILÓSOFOSE A EDUCAÇÃO Folha de Rosto Fausto dos Santos Amaral Filho OS FILÓSOFOS E A EDUCAÇÃO Chapecó, 2014 Ficha catalográfica Reitor: Odilon Luiz Poli Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Maria Aparecida Lucca Caovilla Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski Vice-Reitor de Administração: Antônio Zanin Diretora de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Valéria Marcondes Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. 370.1 A845f Amaral Filho, Fausto dos Santos Os filósofos e a educação / Fausto dos Santos Amaral Filho. – Chapecó : Argos, 2014. 2.318 MB. ; ePUB. - (Debates ; 11) Inclui bibliografias ISBN: 978-85-7897-139-7 1. Educação – Filosofia. I. Título. II. Série CDD 370.1 Catalogação elaborada por Caroline Miotto Pecini CRB 14/1178 Biblioteca Central da Unochapecó Todos os direitos reservados à Argos Editora da Unochapecó Av. Atílio Fontana, 591-E – Bairro Efapi – Chapecó (SC) – 89809-000 – Caixa Postal 1141 (49) 3321 8218 – [email protected] – www.unochapeco.edu.br/argos Coordenador: Dirceu Luiz Hermes Conselho Editorial Titulares: Murilo Cesar Costelli (presidente), Clodoaldo Antônio de Sá (vice-presidente), Celso Francisco Tondin, Dirceu Luiz Hermes, Lilian Beatriz Schwinn Rodrigues, Maria Aparecida Lucca Caovilla, Ricardo Rezer, Rodrigo Barichello, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski, Vagner Dalbosco, Valéria Marcondes Suplentes: Arlene Renk, Fátima Ferretti, Fernando Tosini, Hilário Junior dos Santos, Irme Salete Bonamigo, Maria Assunta Busato Dedicatória Para minha esposa, a professora Valéria Marcondes Brasil, por tudo. Epígrafe PROFESSORA Ai, ai, Professora querida Sala de aula Power point Maquinaria Gráficos Tabelas Esquemas Ai, ai, Professora querida Como será Que seria Se Ao invés De tanta Metodologia A sua aula tivesse Um pouco Um pouquinho mais De melodia. Fausto dos Santos Sumário Capa Folha de Rosto Ficha catalográfica Dedicatória Prefácio Apresentação Heráclito: educação e lógos Protágoras e o parâmetro humano A efetivação do projeto político pedagógico na República de Platão Platão: ensinando a aprender aprendendo a ensinar (epistéme, eunoia, parresía) Aristóteles: do negócio ao ócio Tomás de Aquino e os conselhos a frei João Descartes e a dúvida educativa Meditando com Descartes Os mais belos tratados de educação e a hermenêutica das suas possibilidades Com Marx, contra os marxismos: a educação tem que ser pensada Hannah Arendt e a crise na educação Sobre os autores Créditos Prefácio SEM A PRETENSÃO de fazer história da filosofia da educação, Fausto dos Santos, em Os filósofos e a educação, numa série de ensaios, comenta questões filosóficas orientadas para o fenômeno da educação. O conjunto de estudos contribui para o esclarecimento de aspectos relevantes da educação. Sem esquecer Heráclito e Protágoras, passando obrigatoriamente por Platão e Aristóteles, examina posições de Marx e Hanna Arendt, de Tomás de Aquino e Descartes, portanto, abre o debate para uma ampla visão histórica que apresenta questões relevantes para um estudo sistemático. A abordagem não pretende ser uma investigação completa de autores e temas, mas uma introdução ao leitor que deseja o entendimento das reais conexões entre filosofia e educação. A filosofia surge na Grécia Antiga, intimamente ligada à pedagogia. Pode-se afirmar, sem exagero, que a filosofia nascente é por natureza pedagógica. Assim podem ser lidos Platão e Aristóteles. Todavia, séculos depois, essa conaturalidade entre as duas manifestações, devido ao avanço dos conhecimentos e das caraterísticas de nossa época e especialmente da situação econômico-política, tornou essas instituições autônomas, embora ainda ligadas por laços de origem e aspectos éticos e epistemológicos. Com o surgimento das ciências sociais e humanas, houve um momento em que até se pensou que se poderia fazer educação sem filosofia. Todavia, esse equívoco momentâneo parece já ter sido superado. Atualmente, pode-se assistir, no Brasil, a um retorno dos estudos filosóficos na área da educação. Inúmeros artigos e livros comprovam isso. Nesse cenário, no entanto, a importância das relações entre a filosofia e a educação não pode ser reduzida a uma disciplina, ou seja, à filosofia da educação. Na realidade, interessa à educação a pesquisa filosófica que abarca os domínios ontológicos, epistemológicos, éticos, estéticos, enfim, todo o pensamento filosófico. E, isso, conjuntamente com a investigação científica e o desenvolvimento dos saberes em geral. A natureza da educação exige uma abordagem que ultrapassa os limites das matérias institucionalizadas. Nesse sentido, a filosofia ocupa, em relação às teorias pedagógicas, uma função especial de inter e de transdisciplinaridade. A educação é de fato o exemplo de processo que exige o envolvimento de toda sociedade. Fausto dos Santos mostra, com seu jeito de professor e sensibilidade de escritor, as possíveis conexões entre o pensamento filosófico e a ação pedagógica. De fato, há uma dimensão pedagógica da filosofia, especialmente na tradição e, igualmente, há uma dimensão filosófica da pedagogia que ninguém pode negar. Hoje as relações entre filosofia e educação ganham novos contornos, pois se apresentam enriquecidas com outros conhecimentos necessários para descrever e explicar o fenômeno educacional e da aprendizagem. As aproximações entre o pensamento filosófico e os processos educativos e formativos, no essencial, continuam vivas e atuantes. Não é possível nenhum sistema educacional sem pressupostos e definições filosóficas, mesmo quando esses pressupostos priorizam aspectos econômicos, sociais e políticos. Apesar da relevância do tema, há o problema de seu acesso e de investigação das relações entre filosofia e educação. Pode-se reafirmar que filosofia não pode ser reduzida a estudos disciplinares parciais. Em vista disso, torna-se quase impossível falar da filosofia da educação sem abranger os domínios da ontologia, da epistemologia, da ética, da estética e da história da filosofia. As disciplinas que tratam o assunto, quando superficiais, não suportam mais a emergência e a complexidade do pensamento filosófico atual que, por sua vez, também se vê dividido em posições contrárias e complementares. São comuns, na atualidade, os estudos filosóficos da educação que investigam apenas um ou alguns autores e/ou textos ignorando outras tendências e posições. Também é comum se observar notáveis professores de filosofia que não escreveram uma linha sequer sobre educação, como se o tema fosse de exclusividade de professores da área educacional. Portanto, o panorama do ensino da filosofia, na perspectiva da formação na área da educação, apresenta dificuldades naturais. Por isso, uma obra que oferece a possibilidade de examinar alguns filósofos frente à educação, na perspectiva da história da filosofia e da pedagogia, sempre é bem-vinda, pois, além de despertar o interesse dos estudiosos, contribui efetivamente com o esclarecimento de questões fundamentais. O título deste livro, Os filósofos e a educação, é adequado aos objetivos do autor. Não se trata de filosofia e de educação, mas da apresentação de filósofos, de sistemas filosóficos que refletem sobre a educação, ou que influenciam processos educacionais. Apesar das dificuldades naturais de uma apresentação, ora pela extensão e rigor da obra, ora pelo enfoque das reflexões, Fausto dos Santos, experiente em seu ofício, assume o risco de examinar temas consagrados e os revê de modo acessível, facilitando assim a comunicação entre o leitor e os textos clássicos. Esse trabalho de mediação entre os textos e os problemas educacionais, que os professores cotidianamente realizam ensinando nas salas de aula e nos trabalhos escritos, tem como meta a aprendizagem dos estudantes e dos leitores em geral. Jayme Paviani Caxias do Sul, 30 de maio de 2014 Apresentação COM O TÍTULO Os filósofos e a educação não se quer aqui produzir uma espécie de historiografia filosófica que, não poucas vezes, confundimos com a tarefa do pensamento, não. Aqui se quer pensar com os filósofos a educação, mormente na contemporaneidade que nos é própria. Pensa errado quem pensa que pensar é coisa difícil e que filosofia é coisa esotérica apenas para um grupo de iniciados. Se definimos o ser humano como sendo o animal que pensa, qualquer um de nós, sendo humano, é capaz de pensar. No entanto, de fato, hodiernamente, quando somos engolfados pela brutal quantidade apressurada da desconexão informativa, dificilmente temos tempo para pensar. Sendo assim, podemos concluir que levamos, cada vez mais, uma vida desumana. Possibilidade própria apenas do que é humano. O pensar requer o humano tanto quanto o humano requer o pensar. A temporalidade de ambos solicita a conexão com o simples. Mas o simples desvanece em meio ao ruidoso da maquinação da maquinaria do modo de produção da existência humana vigente. Perceber o quanto tal modo de produção determina a nossa existência, é o primeiro passo para, abafando o ruidoso, auscultar o simples pensar. Abafar o ruidoso é o esforço para o começo de todo pensamento que simplesmente eflui. O simples pensar, uma vez efluído, constantemente flui. Em meio à finitude nada mais é capaz de detê-lo. Ainda que as questões que envolvam a educação sejam extremamente complexas, pois interligadas à totalidade do fenômeno social, foi com este intuito, de simplesmente pensar a educação, que este livro foi escrito. É na simplicidade pensante que a totalidade complexa se desvela no apuramento do olhar. Nos capítulos que compõem Os filósofos e a educação tentei, de alguma forma, estabelecer um diálogo entre os filósofos e os possíveis leitores dos textos. Diálogo este que, se profícuo, como espero que seja, poderá ser prolongado nas salas de aula, nos grupos de estudo, nas rodas de amigos e onde mais a educação necessite ser pensada e dialogada. Educação que não diz respeito apenas aos profissionais e especialistas no assunto, mas, também, à sociedade de uma forma geral. A ordenação da grande maioria dos capítulos segue uma ordem cronológica. Poderia não seguir particularmente essa ordem, visto que, como já foi dito, não se trata aqui de um estudo historiográfico, mas, antes, de uma tarefa do pensamento, o que não se produz necessariamente de maneira linear. Por isso mesmo, o leitor pode ler o livro na ordem dos seus interesses, o que não o exime de lê-lo todo como um todo, em busca da sua integralidade orgânica; aquela que lhe confere o simples pensar a partir dos filósofos da educação. Comece por onde começar, é a hora, então! Fausto dos Santos Amaral Filho Curitiba, julho de 2014 Heráclito: educação e lógos HERÁCLITO DE ÉFESO certamente é um dos pensadores gregos que mais contribuiu para a constituição da filosofia, sendo, portanto, um dos alicerces originários do pensamento ocidental. Estando, assim, instalado em nossas origens, permanece sempre adstrito à contemporaneidade, dando-nos ainda e sempre muito que pensar. Levando em conta a classificação historiográfica que costumamos seguir, é um filósofo présocrático; o que, dito dessa maneira, pouco nos diz a respeito daquilo que pensou, revelando-nos, antes, um aspecto da sua cronologia. Tendo isso em vista, melhor seria, talvez, fazermos como Aristóteles, chamando-o de physikós, ou seja, um filósofo da phýsis: aquilo que se manifesta enquanto abertura para um despertar. Como sabemos, a filosofia surge como uma tentativa de ruptura com a concepção exclusivamente mítica da realidade, até então vigente. Para os filósofos, pode-se dizer até hoje, não basta mais saber auscultar, repetindo a linguagem dos deuses, o mythos, mas, sim, estar aberto para as possibilidades do lógos: a fala que advém, sustentando a ordenação (kósmos) daquilo que se mostra a partir do movimento de si mesmo (phýsis). É tendo isso em vista que podemos reafirmar que Heráclito é um filósofo exemplar. Conheçamos, pois, um pouco a respeito da sua vida. Ainda que não exclusivamente, a maior parte do que sabemos sobre a vida de Heráclito encontra-se em Diógenes Laércio, na obra intitulada Vida, opiniões e sentenças dos filósofos mais ilustres. No entanto, não esperemos de Laércio algo assim como uma biografia objetivamente constituída, aos moldes das exigências da historiografia moderna, o que, ao seu tempo, evidentemente, ainda não era o caso. Provavelmente escrita por volta do terceiro século d.C., a obra de Laércio é uma espécie de compilação daquilo que as gerações anteriores haviam dito sobre os filósofos da antiguidade, em tom, não raras vezes, jocoso e fabulosamente mitificado. O que, é claro, antes de ser puramente um prejuízo historiográfico, adentrando na seara da produção de sentido, ajuda-nos a compreender sobremaneira o impacto causado por Heráclito aos seus póstumos. Com alguma certeza podemos dizer que o filósofo nasceu em Éfeso, cidade situada na costa ocidental da Ásia Menor. Não se pode precisar a data do seu nascimento, nem da sua morte, sabemos, contudo, que sua vida transcorreu entre o final do século VI e o início do século V a.C. O auge de sua existência – a faixa dos 40 anos – teria se dado em meio à sexagésima nona Olimpíada (entre 504 – 501 a.C.). Ainda, segundo Diógenes Laércio, Heráclito teria sido uma pessoa admirável desde a sua infância. Filho da Aristocracia local, contudo, ao contrário do que comumente se esperava dos bem-nascidos, recusou-se a participar do governo da cidade, tendo, inclusive, renunciado ao título de Rei em favor do seu irmão; ao que tudo indica, decepcionado com os rumos da política local, o que equivale dizer, de uma maneira geral, com a vida que então se levava em sua cidade. Deixando-nos antever a vocação político-pedagógica do filósofo, preocupado com a paidéia (educação) do cidadão, ao invés de imiscuir-se diretamente na política já corrompida da pólis, onde pouco ou quase nada de bom poderia ser feito, Heráclito retirou-se para o templo de Artemis, local apropriado para a constituição do saber, onde passava os seus dias entretido com as crianças, certamente preocupado com a formação (paidéia) dos futuros cidadãos. E, quando os seus conterrâneos o questionavam por essa sua atitude, sem papas na língua, repreendia: “Imbecis, o que isso tem de assombroso? Não será melhor passar o tempo assim, em vez de administrar o Estado em vossa companhia?” (Laércio, IX, 2). Por essas e outras ficou conhecido pelo seu caráter “excepcionalmente altivo e arrogante” (Laércio, IX, 1). Outro exemplo das ações político-pedagógicas de Heráclito – e da sua altivez – pode ser percebida pela seguinte história: estando a cidade de Éfeso cercada pelos Persas, os seus moradores não deixaram de levar a vida opulenta com a qual estavam habituados. Porém, quando se deram conta de que o cerco a que foram submetidos poderia durar algum tempo, comprometendo, assim, o abastecimento da cidade, os cidadãos reuniram-se para deliberar sobre o que poderia ser feito. Contudo, ninguém chegou a sugerir que deveriam precaver-se, refreando os seus impulsos, adotando um modo de vida menos faustoso, mais modesto. Foi então que Heráclito, em silêncio, juntando um pouco de farinha de cevada com água, sentou-se no chão e comeu a mistura, “foi uma lição para todos” (Temístios, DK 22 A 3 b). Mas, além das suas ações silenciosas, nosso filósofo também sabia dirigir a palavra aos seus concidadãos quando necessário: “Que a riqueza não vos venha a faltar, Efésios, a fim de vossa miséria desvendar-se toda.” (Fr. 125). Ainda que uma parcela da tradição aponte para o fato de que Heráclito teria tomado aulas com Xenófanes e com o pitagórico Hipase (Cf. Laércio, IX, 5; Suda, DK 22 A 1 a), isto parece ser bem improvável[1]; reforçando, assim, a ideia de que “ele não foi aluno de ninguém” (Laércio, IX, 5), tendo sido “educado pela natureza e pelo seu próprio zelo” (Suda, DK, 22 A 1 a). Ideia essa propagada pelo próprio filósofo, “[...] pois dizia que é necessário estudar a si mesmo e tudo aprender por si mesmo.” (Laércio, IX, 5). Contudo, o que não significa dizer que Heráclito não conhecia, evidentemente, tanto a tradição mítico-poética do seu tempo, quanto o pensamento dos filósofos de então, sendo-lhes, antes pelo contrário, por conhecê-los, um crítico ferrenho, como atesta o Fragmento 40: “Muito saber não ensina sabedoria, pois teria ensinado a Hesíodo e Pitágoras, a Xenófanes e Hecateu.” Dessa maneira, sendo de fato um filósofo, como normalmente acontece quando efetivamente filosofamos, Heráclito não retirou o seu pensamento de uma cartola, como se o fizesse ex nihilo, por um passe de mágica, mas adentrou em um diálogo crítico com a tradição filosófica do seu tempo através da sua historicidade própria. Sabemos que Heráclito escreveu um livro, embora não saibamos muito bem como a obra teria sido estruturada; assim como ocorre com todos os pré-socráticos, dos seus escritos restaram apenas fragmentos, recolhidos através de vários ensaios doxográficos, citações e testemunhos, cuja compilação mais famosa em nossos dias é aquela realizada por Hermann Diels, editada pela primeira vez em 1903 e revisada posteriormente por Walther Kranz em 1934 e em 1952. Como de resto acontece com praticamente todos os livros dos filósofos daquela época, consta que a obra de Heráclito também se chamava Sobre a Natureza (Perì Phýseos), e, a julgar pelo testemunho de Diógenes Laércio, escrita em prosa, ela estaria dividida em três seções: Do Universo, da Política e da Teologia (Laércio, IX, 5). Embora também saibamos da existência daqueles que defendem que a obra do filósofo teria sido escrita em versos. Há, ainda, os que pensam que o livro de Heráclito seria uma espécie de compilação de sentenças e aforismos (Cf. Costa, 2002). O fato é que, atentando para o estilo do que nos restou dos seus escritos, podemos notar um tom, além de apotegmático e críptico, um tanto quanto oracular. Estilo esse que, impondo sérias dificuldades para a compreensão do pensamento do filósofo, desde a antiguidade, lhe valeu o epíteto de o obscuro. Por conta principalmente de Platão, influenciado sobremaneira por Crátilo, discípulo de Heráclito, nosso filósofo de Éfeso passou para a história como o pensador do constante devir, do fluxo contínuo de todas as coisas, pensamento este sedimentado na fórmula pánta rheî (tudo flui), cujo fragmento mais representativo é aquele que nos diz que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio” (Fr. 91). Aristóteles, seguindo o Mestre da Academia, reforçou ainda mais esta interpretação, ressaltando os problemas que tal concepção impõe à filosofia[2]. Na modernidade, é Hegel quem dá continuidade a esta interpretação, ao conceber a filosofia de Platão como a síntese dialética entre pensamentos opostos, o movimento em Heráclito (pánta rheî) e o repouso em Parmênides (hén kaì pán). E, assim, no mais das vezes, é como continuamos a conceber até hoje o pensamento de Heráclito[3]. Contudo, ainda que reconheçamos a importância de tal interpretação para a constituição histórica da filosofia, se esquecermos um pouco esta tradição interpretativa e nos voltarmos diretamente para os fragmentos de sua obra, veremos que “[...] a filosofia de Heráclito está longe de se reduzir à mera proclamação do fluxo universal das coisas.” (Reale, 1993, p. 65). Pois, de fato, se tudo fluísse incessantemente, sem que nada pudéssemos apreender, a não ser a mudança escorredoura, nenhum projeto pedagógico seria possível. O que, evidentemente, não é o caso do nosso filósofo, pois tanto quanto a filosofia de Platão – educador por excelência –, a filosofia de Heráclito “tem, em geral, uma clara orientação educadora” (Spinelli, 1998, p. 252). Assim, se de fato encontramos entre os quase 130 fragmentos que temos de Heráclito, três que, através da metáfora do rio, ressaltam o fluxo constante das coisas[4], lendo os restantes podemos perceber claramente que, para o nosso filósofo, “[...] o que tinha importância vital era a ideia complementar de medida inerente à mudança, a estabilidade que persiste através dela e a governa.” (Kirk; Raven; Schofield, 1994, p. 192). Ideia essa presente, sobretudo, nos diversos usos que a palavra lógos comporta. Muito se fala sobre “[...] a indigência da nossa língua ante a riqueza dos recursos verbais do povo [...]” (Schüler, 2007, p. 21) grego e, com isso, aponta-se para a dificuldade particular que a palavra lógos impõe aos seus tradutores, ainda mais nos usos que dela faz Heráclito. Assim como o nosso pensador, a palavra lógos empregada por ele “e aquilo que ela designa são obscuros” (Heidegger, 2002, p. 251). Afinal, se Heráclito foi chamado de o obscuro é porque, ao fim e ao cabo, “[...] ele pensa o ser enquanto o que se vela e tem que pronunciar a palavra de acordo com o que assim se pensa.” (Heidegger, 2002, p. 47). Como diz o Fragmento 123: “surgimento já tende ao encobrimento”. O lógos é justamente o que favorece este acontecer, na medida em que constitui o próprio acontecido; por isso é preciso saber escutá-lo: “Auscultando não a mim, mas o lógos, é sábio concordar que tudo é um.” (Fr. 50). Dessa maneira, para tentarmos compreender melhor o que Heráclito nos faz pensar através do lógos, talvez o melhor seja pensarmos com ele; até mesmo porque é bem provável que este seja um dos seus maiores ensinamentos pedagógicos, diga-se de passagem, muito propício para ser lembrado em nosso tempo, quando confundimos informação com conhecimento: acumular informações transmitidas não é exatamente compreender o mundo, devemos, antes, saber pensá-lo. Como diz o Fragmento 40 já citado anteriormente, só que agora em outra tradução: “A polimatia, ou o aprender muita coisa, não aperfeiçoa a inteligência.” Para Heráclito, a verdadeira paidéia, capaz de constituir a sabedoria, “[...] consiste em uma simples coisa: conhecer o pensamento, que ordena tudo em toda parte [...]” (Fr. 41), e não acumular uma infinidade de informações desconectadas da totalidade. Pois, desconectado do todo, imerso apenas e tão somente na acumulação, é o próprio homem que acaba perdendo as possibilidades de compreensão de si mesmo e do mundo, fragmentado na particularidade da percepção de cada um. Portanto, se a educação tem a capacidade de desenvolver a totalidade das potencialidades humanas, e visto que “é dado a todos os homens conhecer-se a si mesmo e pensar” (Fr. 116), ela não pode se restringir ao acúmulo de informações, mas antes, deve [...] dar um rumo, um sentido básico a estas informações, na medida em que se estabelece um relacionamento adequado com o todo da realidade, de tal modo que a pessoa possa situar qualquer realidade num todo coerente de sentido. (Oliveira, 1997, p. 242). Esta é a tarefa própria do lógos pensante, da sabedoria, que conjuga informações, pois “pensar reúne tudo” (Fr. 113). Consequentemente, é “[...] necessário serem os homens amantes da sabedoria para investigar muitas coisas.” (Fr. 35). Se assim não for, ficamos como aqueles homens do Fragmento 34 do nosso filósofo: “Sem compreensão: ouvindo, parecem surdos, o dito lhes atesta: presentes estão ausentes”; para os quais “[...] lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono.” (Fr. 1). Logo, isto é o próprio da educação: desencobrir o mundo, revelando-o para além do meramente aparente. Faz-nos perceber o extraordinário em meio à cotidianidade fenomênica que, no mais das vezes, imergindo-nos na azáfama das ocupações do dia a dia, oblitera tal possibilidade. Pois “[...] o fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graças ao seu contrário [...]” (Kosik, 1976, p. 15), em conjunção com o lógos. Mas, para percebê-lo, é preciso saber auscultá-lo em meio à fragmentação da cotidianidade, para então perceber a unidade da totalidade, “pois tudo é uno, e o uno é tudo” (Fr. 10). Pois bem, se Saviani tem razão, e “[...] o clássico não se confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual [...]” (Saviani, 2008, p. 14), pelo que pudemos ver, com certeza, Heráclito é um clássico tanto para a Filosofia quanto para a Educação. Recorrendo ao pensamento do filósofo de Éfeso, podemos pensar uma das questões mais urgentes para a Pedagogia na contemporaneidade: a fragmentação do mundo, que acaba por fragmentar o próprio homem, cerceando-lhe a possibilidade de viver a sua humanidade integralmente. Pois, afinal, como Oliveira não nos deixa esquecer: No sentido mais originário da palavra, é precisamente isto que o ocidente chamou de Educação, ou seja, o processo através do qual o homem singular e empírico adquire um relacionamento adequado com a totalidade, de tal modo que se abre o espaço para a efetivação de sua liberdade nas estruturas fundamentais de seu ser pessoal e social. (Oliveira, 1997, p. 240). Referências ARISTÓTELES. Metafísica. Edición trilingüe por Valentin García Yebra. Madrid: Gredos, 1982. CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para principiantes. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. DIELS, Hermann; KRANZ, Walther. Die fragmente der vorsokratiker. Weidmannsche Verlagsbuchandlung, 1960. LAERTIUS, Diogenes. Life of eminent philosophers. England: Havard University Press, 1995. HEIDEGGER, Martin. Heráclito: a origem do pensamento ocidental: lógica: a doutrina heraclítica do lógos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. HERÁCLITO. Fragmentos. Edição bilíngüe com tradução, introdução e notas de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. ______. Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1976. GOMES, Pinharanda. Filosofia Grega Pré-socrática. Lisboa: Guimarães Editores, 1987. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Tópicos sobre Dialética. Porto Alegre: Edipucrs, 1997. PLATÓN. Diálogos. Madrid: Gredos, 1997. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1993. v. 1. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2008. SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2007. SPINELLI, Miguel. Filósofos Pré-socráticos: Primeiros mestres da Filosofia e da Ciência grega. Porto Alegre: Edipucrs, 1998. Protágoras e o parâmetro humano A PRINCÍPIO, talvez possa parecer estanho que, em um estudo que pretende perscrutar as possíveis contribuições dadas pelos filósofos, para que possamos, nós mesmos, pensar a educação em meio a nossa contemporaneidade própria, traga-se à baila alguém como Protágoras. Entrementes, Protágoras, ao invés de filósofo, não foi um dos mais renomados sofistas da Hélade? E os sofistas, como atesta a historiografia, baseada no mais das vezes nos testemunhos dos maiores filósofos da antiguidade, não eram os antípodas justamente dos filósofos? Afinal, como nos ensinou Aristóteles, os sofistas podiam até fazer pose de filósofos, mas, para além da mera aparência, efetivamente, não eram filósofos (Cf. Aristóteles, IV, 1004 b 20-25). No entanto, tal semelhança tinha lá o seu fundamento, pois, como o próprio Aristóteles reconhece, ainda que o télos da vida de ambos diferisse em demasia, falavam a respeito dos mesmos assuntos (Cf. IV, 1004 b 20-25), estando, assim, próximos o suficiente para se tornarem inimigos. Poderse-ia, inclusive, ver aqui uma espécie de coincidentia oppositorum. Mas o certo é que, se os filósofos da antiguidade – não apenas, é claro – tiveram sempre em seus pensamentos um fortíssimo intuito pedagógico, preocupados, sobretudo, com a formação integral do ser humano (paidéia), com os sofistas não foi diferente, antes pelo contrário, foram os legítimos “herdeiros da vocação educacional da poesia” (Jaeger, 1995, p. 346), que até então havia sido a grande, e por que não dizer a única, formadora humana na Grécia Antiga. Assim, ainda que reconheçamos que os sofistas partiam de uma concepção de vida oposta à dos filósofos, eles também se preocupavam profundamente com as questões educacionais do seu tempo, até mesmo antes dos próprios filósofos. Aliás, não é por menos que se tornaram conhecidos como pais da pedagogia, “fundadores da ciência da educação” (Jaeger, 1995, p. 348), pois, com os sofistas, “[...] o problema educativo e o empenho pedagógico emergiram ao primeiro plano e assumiram um novíssimo significado [...]” (Reale, 1993, p. 194), iniciando, desta maneira, uma verdadeira revolução na práxis pedagógica entre os gregos (Cf. Marrou, 1998, p. 216). E, confluindo para tal revolução, dentre todos os chamados sofistas, Protágoras certamente se destacou[5]. Sinal disso é a obra de Platão que, mostrandonos “três concepções diferentes de educação” (Brisson, 2003, p. 156) – a poética, a sofística e a filosófica –, não apenas traz Protágoras como expositor e defensor do modelo educacional sofístico, mas o nome do nosso sofista intitulando o próprio diálogo[6]. O personagem deste nosso estudo, que se tornou “o maior e mais famoso dos sofistas” (Reale, 1993, p. 200), nasceu em Abdera, cidade grega situada na costa da Trácia, onde também nasceu Demócrito, filósofo pré-socrático de quem Protágoras teria sido discípulo (Cf. Diógenes Laércio, X, 1). Mesmo que não saibamos com muita precisão a data do seu nascimento, podemos situá-la entre os anos 491 e 481 a.C. Como praticamente todos os sofistas, o nosso também levou uma vida errante, lecionando de cidade em cidade, quando certamente tinha oportunidade de aprender muitas coisas também. Consta que foi um grande leitor (Cf. Diógenes Laércio, X, 1) e um exímio estudioso da linguagem (Cf. Diógenes Laércio, X, 3). Estando mais de uma vez em Atenas, tamanho o seu sucesso, Péricles lhe encomendou a escrita de uma Constituição para a colônia de Turi. No entanto, por razão do seu pensamento a respeito dos limites humanos em relação ao conhecimento dos deuses[7], pelo qual “conquistou fama de ateu” (Diels; Kranz, 80 b 4), foi expulso da cidade e seus livros foram recolhidos e queimados em praça pública (Cf. Diógenes Laércio, X, 1). Diógenes Laércio, conferindo-lhe o epíteto de filósofo, diz que Protágoras exerceu tal atividade por cerca de quarenta anos (Cf. X, 5), período no qual teria escrito as seguintes obras: A arte de disputar; Sobre a contraposição; Sobre as matemáticas; Sobre a República; Sobre a ambição; Sobre as virtudes; O estado das coisas no princípio; Sobre as coisas que existem no Hades; Sobre as coisas não bem feitas pelo homem; Preceptivo; Juízo sobre a ganância e Sobre as contradições. A sua morte ocorre entre os anos 415 e 410 a.C. Mas, então, chegou a hora de perguntarmos, de uma vez por todas, no que um homem que viveu há praticamente dois mil e quinhentos anos, ainda mais sendo um sofista, pode nos ajudar a pensarmos a educação na contemporaneidade? Pois bem, se realmente adentrou no pensamento, a contemporaneidade não deixará nunca de estar presente naquilo que ele pensou. Vejamos se este é o caso. “O homem é a medida de todas as coisas, das que são pelo que são, e das que não são pelo que não são.” (Diels; Krans, 80 b 1). Esta é a frase mais conhecida de Protágoras, considerada a sua “proposição fundamental” (Reale, 1993, p. 200). É sobre ela que queremos nos debruçar com mais atenção. Ao que tudo indica, tal frase pode nos levar diretamente a nós mesmos, ajudando-nos a compreendermo-nos um pouquinho melhor. Das possibilidades da sua interpretação, dependeu o destino do mundo grego, da mesma forma que o nosso destino depende hoje também. A interpretação da referida frase, que se tornou hegemônica, é aquela que nos ofereceu Platão, fundamentalmente no seu Teeteto e no Protágoras. Diálogo este, o Protágoras, no qual o Filósofo da Academia nos apresenta, justamente, “a luta de dois mundos antagônicos pela hegemonia na educação” (Jaeger, 1995, p. 621). Pelo que, tal diálogo nos interessa sobremaneira. Mas, antes, vejamos qual é a interpretação dada por Platão para a dita frase no Teeteto. Diálogo no qual Sócrates, em determinado momento (166 a – 168 c), fala em nome de Protágoras, para quem, “cada um de nós é a medida do que é e do que não é” (Teeteto, 166 d), impondo-nos, assim, “[...] a conclusão de que o que aparece a cada pessoa só devém, ou melhor, só existe para essa pessoa.” (Teeteto, 166 c). Como podemos perceber, esses são os fundamentos do relativismo individualista, do qual Protágoras teria sido, na antiguidade, o maior porta voz. Esta posição, não poucas vezes, leva ao ceticismo. Daí é fácil compreender porque o filósofo se ocupa em combater o sofista. O filósofo, pelo menos aquele aos moldes de Platão, é quem crê na possibilidade do conhecimento, pressupondo-a sempre, mesmo quando parte da dúvida. Afinal, sem que haja a possibilidade de um conhecimento que seja intersubjetivamente válido (plano epistemológico), como é que podemos viver uma vida em comum (plano ético)? Que tipo de sociedade pode-se construir a partir do relativismo individualista? Que tipo de educação sustentaria tal Estado? Vejamos o que o Protágoras de Platão nos mostra a este respeito[8]. Na Grécia Antiga surgem duas propostas para ocupar o vazio deixado pelo esgotamento da compreensão poética do mundo: a sofística e a filosofia. A primeira busca a manutenção da crise[9], a segunda, a sua superação. Em comum, sintonizados com as exigências dos novos tempos, ambas concordavam pelo menos em um aspecto: a capacidade (areté) de participar ativamente do governo da pólis pode ser ensinada. Diferentemente do que ocorria no mundo grego regido pela compreensão poética, onde a capacidade (areté) para governar a cidade era considerada uma espécie de herança genética transmitida através das gerações por aqueles poucos que a possuíam, os kalói kagatói, a bem-nascida aristocracia da pólis. É isto que tanto o sofista quanto o filósofo tomam como encargo para si: produzir um novo modelo de educação (paidéia) para um novo modelo de Estado (pólis), sintonizados com as exigências próprias da contemporaneidade de ambos. No entanto, a partir de concepções divergentes sobre o significado da palavra areté, consequentemente, de paidéia e de Estado também. Para o sofista, a partir do seu relativismo individualista, fundamentalmente em relação à política democrática de então, não havendo a possibilidade de um discurso intersubjetivamente válido, na medida em que seu horizonte epistemológico é reduzido apenas à individualidade do sujeito – donde o cada um, cada um, expressão tão comum em nossa cotidianidade própria –, resta ao discurso apenas o seu caráter de força e poder, em última instância, de persuasão. O importante é que a linguagem seja capaz de convencer o outro. Sendo isto propriamente dito, o que se propõe ensinar o sofista: a técnica para a produção de discursos persuasivos, independentemente do valor intersubjetivo do dito (rhetoriké). Como se pode perceber, algo extremamente valioso para a constituição da pólis democrática, aonde a linguagem vem para frente do cenário político. Tão valioso que apenas a aristocracia, que vinha perdendo aceleradamente a capacidade de influenciar no governo da cidade com o advento da democracia, é que podia pagar pela educação fornecida pelos sofistas, que, evidentemente, não custava pouco. Mantendo o princípio da linguagem poética, a polissemia, trazendo-a para o centro da ágora, a retórica sofística fornece os meios para que a aristocracia tente manter o status quo até então vigente, o que só pode fazer por meio da manutenção da crise, através da adaptação da linguagem poética aos novos tempos. Assim, a tradicional aristocracia, servindo-se das técnicas de persuasão ensinadas a alto custo pelos sofistas (rhetoriké), apesar de toda aparência democrática, podia, persuadindo a massa – hoje, talvez, disséssemos, manipulando-a –, manter-se no poder. Afinal, a cidade em crise, com o jogo do poder se transladando para o horizonte da linguagem, segundo Protágoras, sem parâmetros intersubjetivamente válidos para a produção de um mundo comum para além da percepção meramente subjetiva de cada um, o que passa a valer é a capacidade (areté) individual de convencer a massa a aderir a um projeto cujos interesses, ainda que não explícitos, não são propriamente comuns, mas, antes, particulares. Como podemos perceber, o projeto educacional de Protágoras, a partir do relativismo individualista que o sustenta, convém muito bem ao projeto de reprodução do poder da aristocracia tradicional em um novo horizonte político que, a princípio, poderia lhe ser hostil, mas do qual, antes, acaba tirando proveito, através de uma educação apropriada para isso. Educação essa oportunizada aos poucos que podem pagála, ou seja, àqueles mesmos que a sustentam em vista dos seus interesses particulares. Ora, é claro que tal educação, ainda que possa sustentar um Estado, é insuficiente para a experiência de uma vida em comunidade. Pois, ao fim e ao cabo, parte de um princípio que contraria um dos traços ontológicos fundamentais da produção fática da vida humana, que se dá sempre a partir do comum. Sem dúvida que podemos falar das nossas percepções individuais, mas isto apenas a partir do previamente comum que nos perpassa. Afinal, em última instância, o eu só faz sentido quando imerso na inter-relação da totalidade pronominal (eu-tu-ele-nós-vós-eles). Creio que para nós é fácil compreender o que seja o alargamento de uma crise sustentada pela percepção relativista individualista do mundo. Pois, conosco, mutatis mutandis, parece que ocorre o mesmo: indiscutivelmente, estamos em crise. As promessas da Modernidade, a qual ainda estamos ligados, nem que seja por um hífen (pós-modernidade), não foram cumpridas. Os ideais revolucionários, Liberté, Égalité et Fraternité, não apenas não se cumpriram como, antes pelo contrário, levaram-nos a um modo de produção da existência humana cada vez mais injusto, controlador e individualista. O modelo unívoco da racionalidade pura e absoluta definitivamente esgotou-se, chegou ao seu final. Contudo, ao fim e ao cabo, continua vigendo, pois, de fato, ao nosso tempo ainda não produzimos nada que seja capaz de superá-lo. As tentativas que houve no século XX ruíram concomitantemente com o Muro de Berlim, resquício das duas guerras mundiais pelas quais havíamos passado antes. No entanto, se de fato sabemos que, na contemporaneidade, a “Razão, una, única e com letra maiúscula, é declarada morta” (Cirne-Lima, 1996, p. 15), ao mesmo tempo sabemos que, apesar disso, ela não foi superada. É justamente o vazio deixado pela sua morte, agravado pela sua evidente não superação, que chamamos de crise, como diz Hannah Arendt, o momento do “não mais e ainda não” (Arendt, 2008, p. 187). Em um momento assim, o que fazemos? Uma das possibilidades é pensarmos: “A razão, una e única, morreu, vivam as múltiplas razões com seus relativismos.” (Cirne-Lima, 1996, p. 15). Assim, é justamente esta a posição que vem, cada vez mais, consolidando-se como hegemônica. Para tal concepção de mundo, evidentemente, a manutenção da crise é vital, pois é ela própria que realimenta a crise, com a qual realimenta a si mesma. Esta concepção, hodiernamente, tanto na cotidianidade da vida comezinha, quanto no encoberto da vida pública, acaba concretizada no vigor da vivência do relativismo subjetivista. Aquele mesmo que, na Grécia Antiga, foi sustentado por Protágoras, lembram? Que, ao fim e ao cabo, era sustentado pelo interesse da aristocracia, até então dominante, manter-se no poder, ainda que reconfigurada em conformidade com o grau de exigências da pré-configuração do mundo novo à sua frente. Portanto, se queremos de fato repensar a nossa situação na contemporaneidade, tendo em vista a superação do status quo vigente, entre outras coisas, precisamos, assim como Platão o fez, preocuparmonos com o Protágoras que habita o espírito do nosso tempo: o relativismo subjetivista. Sem o que, dificilmente seremos capazes de superar a modernidade, mesmo sabendo que ela já não nos serve mais, servindo, antes, aos interesses de uma grande minoria. Para tanto, ajuda-nos rever as possibilidades semânticas do pánton chremáton métron ánthropos. Se bem pensada, para além do mero registro historiográfico, a dita frase, ainda hoje, pode nos doar um pensamento. Vejamos, então, como isso é possível. A palavra ánthopos pode ser tomada, fundamentalmente, em dois sentidos: tanto pode denotar, com ou sem artigo que a preceda, o homem em geral, quanto a individualidade humana particular. Como sabemos, a interpretação que historicamente se tornou hegemônica foi aquela dada por Platão através de um dos personagem dos seus diálogos, no caso, o sofista Protágoras. Ora, mas o que aconteceria se nós interpretássemos o ánthropos do pánton chremáton métron da outra maneira possível? O homem (como ser humano em geral, na totalidade da sua espécie, ou seja, na sua especificidade própria) é a medida de todas as coisas. Assim denotado, o pensamento parece reencontrar o seu caminho. Ainda que seja válida, como já vimos, a denotação de um eu só se torna possível a partir da inter-relação semântica com a totalidade da denotação pronominal. O ánthropos da frase, assim compreendido, recoloca onto-semanticamente tanto o homem, quanto um homem, no seu justo lugar, assumindo uma disposição. É julgando as coisas através de um critério de valor (métron) que somos (eu-tu-ele-nós-vós-eles) capazes de constituir sentido e, assim, produzirmos mundo. A produção do mundo é, antes de tudo, produção da linguagem; constituição de sentido, sem a qual nenhuma ocupação especificamente humana é possível. Portanto, se de fato nos reconhecemos em crise, e, se de fato julgamos que o mundo produzido pela modernidade já não nos serve mais e que, para superálo, é preciso que possamos acessar um outro modo de produzir a existência humana, precisamos começar, antes de tudo, pela superação da linguagem que, desde os gregos, no seu movimento próprio, até a modernidade, produziu o ocidente, que hoje se pretende global, mas que, na contemporaneidade, parece ter se esgotado, chegando assim ao seu final. Para tanto, precisamos produzir uma linguagem capaz de reconstituir os cacos que restaram de forma tal que, reconfigurando-os sejamos capazes de um novo métron que não se reduza ao cálculo das coisas, mas que possa, antes, produzir sentido. Mas que linguagem seria esta? É claro que não sabemos nem ao menos se de fato seremos capazes de produzir tal linguagem capaz de superar nossa crise! O vir a ser do mundo não é algo que possa ser calculado. No entanto, assumir o que coube à historicidade própria da existência contemporânea, ou seja, a crise que se instaura ao final da modernidade ainda não superada, pode ser um bom começo para a possibilidade de efetivação de um outro modo de produzir a existência humana (mundo). Afinal, só após o diagnóstico da doença é que a cura se torna possível. Parte fundamental do tratamento, desde Platão sabemos, se dá através da educação. Daí a disputa no diálogo Protágoras para saber qual educação prevaleceria naquele momento de crise. A do Sofista que, ampliando e perpetuando a crise serve aos interesses particulares da aristocracia, até então detentora do poder político, que se vê ameaçada pela iminente derrocada do mundo que a sustentava, ou a do Filósofo que, na tentativa de superar efetivamente a linguagem poética (mythos), em oposição a ela, dá início à produção de uma nova linguagem, a linguagem lógica (lógos), capaz de produzir um outro mundo, o nosso, onde a hegemonia da linguagem lógica, fundamento da ciência e da técnica, já não faz mais sentido. Sendo assim, nossa tarefa é superar o filósofo, pois agora somos capazes de entender que aquilo que chamamos de racionalidade, a redução da linguagem intersubjetivamente válida à lógica técnica e científica, “[...] é uma tradição entre muitas, e não um modelo a que as tradições devam se adaptar.” (Feyerabend, 2011, p. 11). Mas que, no entanto, se impõe politicamente através do poder controlador que a produção científica e técnica comportam. É este poder controlador que não suportamos mais, pois quanto mais avançamos na crise mais perdemos um dos traços fundamentais da nossa constituição ontológica: a liberdade, ainda que a ideologia hegemônica faça-nos pensar ao contrário. Porém, o que a dita ideologia faz é reduzir o conceito de liberdade às liberdades individuais que, sozinhas, desvinculadas do nosso ser social, que precede ontologicamente a possibilidade da constituição do indivíduo, apenas agravam a crise enquanto restringem a liberdade pública, instaurando, ao fim e ao cabo, o cada um, cada um, tão característico do relativismo individualista imputado a Protágoras, ao qual, na histocidade do nosso momento, estamos tão habituados. Talvez, uma das possibilidades de pensarmos e, portanto, produzirmos um outro mundo, seja auscultando as outras possibilidades de produção da existência humana, principalmente aquela que, na constituição da tékhne e da epistéme foi tão duramente combatida e reprimida: a compreensão artística do mundo efetivada pela linguagem poética. Talvez agora, ao final da modernidade, possamos voltar com o vagar adequado àquilo que, desde os gregos, não deixou de nos constituir, ainda que reprimido: a linguagem poética. Mas atenção! Voltemo-nos à poesia, mas não desejemos algo assim simplista como a sua volta. Até mesmo porque sabemos o quanto a volta do reprimido é desastrosa. No entanto, também sabemos que a compreensão do reprimido é uma forma eficaz de superar o repressor. Então, escutemos assim o poeta: não saudosos pelo passado, mas na esperança do que, através do passado, ainda está porvir: DESMEDIDA Tentei Ser sóbrio Mal consegui Conseguindo mal Com as palavras Não bastam Apenas Dois goles Desmedidas É que elas doam Limitadas Ressecam Fausto dos Santos Referências AMARAL Fº, Fausto dos Santos. Platão e a Linguagem Poética: o prenúncio de uma distinção. Chapecó: Argos, 2008. ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ARISTÓTELES. Metafísica. Edición Trilingüe por Valentin García Yebra. Madrid: Gredos, 1982. BRISSON, Luc. Leituras de Platão. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. CIRNE-LIMA, Carlos Alberto. Dialética para principiantes. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. DIELS, Hermann; KRANZ, Walther. Die fragmente der vorsokratiker. Weidmannsche Verlagsbuchandlung, 1960. DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas, Opiniones e Sentencias de los Filósofos más Ilustres. 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Seus genitores, Ariston e Perictione, pertenciam a tradicionais famílias da aristocracia ateniense. Por conta disso, a política sempre foi algo presente em sua vida juvenil, para a qual deveria estar preparado para assumir o seu lugar quando chegasse o momento adequado. Este fato é atestado pelo próprio Platão na Carta VII: “Quando era jovem, sentia o mesmo que muitos outros sentiam. Tinha a ideia de dedicar-me à política tão pronto estivesse preparado para isso.” (324 d). Mas isto foi antes da Atenas, democrática, condenar à morte aquele homem que mudou os rumos da sua vida, Sócrates, o qual Platão, a julgar pelo Fédon, considerava “o melhor e também o mais sábio e mais justo” (118 a) entre os homens que conheceu. Platão conheceu Sócrates ainda jovem, naquela época em que, conforme Diógenes Laércio, ainda se dedicava à pintura e a compor ditirambos, cantos e tragédias (Laércio, III, 3), o que largará para se dedicar à filosofia. Essa convicção se consolidou com a morte do mestre, abandonando de vez a possibilidade de atuar politicamente em sua cidade. Após este triste episódio, viaja para Megara, hospedando-se na casa de Euclides, onde não permanece por muito tempo. Em seguida, ruma para o Sul da Itália – à época a Magna Grécia –, onde pôde conviver com Arquitas de Tarento, um governante pitagórico. Depois Platão vai à Sicília, mais precisamente a Siracura, onde acaba se tornando grande amigo de Dion, cunhado do tirano local Dionísio, com quem Platão não vai se dar tão bem assim. Para Siracusa ainda retornará por mais duas vezes em sua vida, sempre com interesses políticos que acabarão frustrados. Na continuidade da sua viagem, passa ainda pelo norte da África e pouco sabemos sobre a sua ida ao Egito. Mas, de sua viagem a Cirene é conhecido o seu interesse pela investigação matemática de Teodoro. É nesta fase das viagens que Platão começa a escrever os Diálogos Socráticos, gênero literário que não foi criado por ele, mas que, certamente, podemos dizer que nosso filósofo soube utilizá-lo tão bem como nenhum outro. Talvez por isso mesmo toda a sua obra escrita tenha sido preservada e, assim, o seu pensamento tenha chegado até nós. De volta a Atenas, por volta de 387 a.C., Platão funda a sua escola, a Academia, que logo se tornará o grande centro de produção e irradiação do conhecimento epistêmico, fundamental para a constituição definitiva do mundo ocidental. Quando morre o Mestre da Academia, em 347 a.C., deixa-nos como um legado as estruturas sobre as quais o mundo em que vivemos foi erguido, nada mais que isso. Para tanto, é claro que dentre tantas outras coisas que pensou, a questão da educação não poderia deixar de estar presente. Vejamos, então, em um dos seus projetos de mundo (A República), o que seria da educação. Como nos diz Saviani, “[...] aceita-se correntemente como inquestionável a existência de uma dimensão filosófica na educação.” (Saviani, 2009, p. 11). Pois bem, que haja um vínculo estreito entre Educação e Filosofia, de fato, dificilmente alguém seria capaz de negar. Sintomático, inclusive, é o fato de ambas dividirem o mesmo símbolo, a coruja. Afinal, a maior parte dos grandes temas que fazem parte das reflexões dos filósofos, como Ética, Política, Antropologia, Epistemologia, Estética, são os mesmos dos educadores. Ainda que frequentemente associemos o trabalho filosófico ao descortinamento teórico da realidade e o trabalho educacional ao fazer da cotidianidade, seguindo as palavras de Paviani: Em educação não basta fazer, é preciso conhecer o que se faz. Professor, no sentido pleno, é aquele que reflete sobre a própria experiência e tem consciência dos limites da ação pedagógica. Um carpinteiro ou eletricista, mesmo não sendo capaz de teorizar a prática, não prejudica seu desempenho profissional ao executar mecanicamente as tarefas que lhe são solicitadas. O professor, ao contrário, lida com pessoas, sempre numa relação entre sujeitos, necessita ter clareza sobre as possibilidades e fins do ato de ensinar. (Paviani, 1988, p. 12). Poder-se-ia dizer que o filósofo precisa ter presente a dimensão prática do seu teorizar, ou seja, a dimensão da efetividade do seu pensamento, o que, evidentemente, pressupõe o alcance pedagógico do seu mister, sem o que a filosofia pode se tornar, apenas, um jogo estéril com as palavras, um passatempo inócuo, ou, quem sabe, até mesmo deletério[10]. Tendo isso em vista, é preciso reafirmar, aqui, a intrínseca relação entre Educação e Filosofia, tanto quanto a imbricação de ambas ao horizonte político[11] no qual necessariamente navegam. Contudo, sem que as especificidades próprias tanto da Filosofia quanto da Educação e da Política sejam suprimidas. Pois, embora possamos considerá-las inseparáveis, como Saviani (2008, p. 66) não nos deixa esquecer, Educação e Política não são idênticas[12], assim como, também, não podemos identificar Filosofia e Política, bem como Filosofia e Educação, embora as três confluam conjuntamente para a sua constituição: a efetivação histórica do homem. Para corroborar a intrínseca relação anunciada, nada melhor do que um exemplo historicamente concreto, no caso, um clássico das origens gregas do filosofar; convoquemos, então, para cumprir tal intuito, o homem cujo legado, como nos diz Reale, “constitui o vértice mais alto atingido pelo pensamento antigo” (Reale, 1994, p. 7), confluindo, assim, decisivamente, para o desenvolvimento do modo de ser no mundo ocidental, que, na contemporaneidade, se tornou praticamente global, seu nome, Platão. Para tanto, antes que alguém, apressadamente, possa estranhar o fato de se requisitar Platão para confirmar o que foi dito, considerando-o, pejorativamente, um filósofo puramente idealista, perdido no hiperurânio, imerso em seu mundo ideal, sem vínculos com a empiria da cotidianidade, não esqueçamos que tal homem, que de fato nos ensinou a importância da contemplação teórica, chegou ao mundo das ideias pelas vias impostas pelas práticas políticas do seu tempo, em busca de uma transformação social radical, poder-se-ia dizer, até mesmo, revolucionária, aos seus olhos inadiável. Pelo que, pode-se afirmar: se Platão chegou no nível teórico das ideias, foi movido pelos problemas que as práticas políticas e, consequentemente, pedagógicas do seu tempo, impuseram a sua reflexão, mais precisamente, pela necessidade de fundamentar novas práticas contrapostas as até então vigentes, lançando-se no confronto com o establishment através dos seus diálogos bem antes de ter alçado teoricamente o mundo das ideias[13]. Como diz Scolnicov (2006, p. 33), para Platão, “a filosofia sempre começa in medias res”; em um movimento que pode nos fazer lembrar, mutatis mutandis, o que Saviani nos ensina a respeito da relação dialética estabelecida entre teoria e prática na constituição da Pedagogia histórico-crítica[14]. Porém, não foi apenas com o seu trabalho literário – e dizer apenas aqui é praticamente uma injustiça – que Platão buscou intervir em seu tempo. Não esqueçamos que o filósofo, como parte de sua estratégia política de inserção na sociedade, fundou uma instituição de ensino, a Academia. Portanto, como nos diz Paviani: “Platão não se limita a falar da educação, não oferece apenas uma filosofia pedagógica, ele concretiza seus objetivos de ensino na fundação de uma escola.” (Paviani, 2008, p. 87). Mas não é só isso, não esqueçamos, também, as três viagens que o filósofo fez à Sicília, “[...] especialmente a segunda e a terceira, pois se ligavam a intenções políticas de Platão [...]” (Szaif, 2005, p. 173), com as quais pretendia “enriquecer suas experiências políticas e praticar sua Politéia” (Lledó, 1997, p. 127). E, por fim, não esqueçamos da piada contada pelo próprio Platão em seu Teeteto que ridiculariza o filósofo, no caso Tales de Mileto, por, de tanto olhar para cima, preocupado com as estrelas, não perceber o que estava por debaixo dos seus próprios pés, vindo a cair em um buraco. Assim, julgando o que foi dito suficiente para sanar um possível estranhamento pelo fato de requisitar Platão, o filósofo das ideias, lá dos confins da Hélade Clássica para nos ajudar a pensar a tarefa da educação na contemporaneidade, podemos agora adentrar em sua República. Certamente, não no intuito meramente historiográfico de reconstruirmos o seu pensamento, nem tampouco na intenção de assumi-lo, o que seria um anacronismo altamente improdutivo, visto situarmo-nos em horizontes históricos bem distintos, mas antes, na tentativa de seguirmos as pegadas deixadas pelo filósofo que possam nos ajudar a prosseguir firmes em nossa própria caminhada. Afinal, como nos diz Saviani, “[...] eu não posso compreender radicalmente o presente se não compreender as suas raízes, o que implica o estudo de sua gênese.” (2007, p. 4). Sigamos, então. Se é certo dizer que “[...] o problema para o qual desde o primeiro instante se orienta o pensamento de Platão é o problema do Estado [...]” (Jaeger, 1994, p. 749), já que o Estado é o lugar onde se desdobra a vida humana, é na República, “a mais arquitetada de suas obras” (Jaeger, 1994, p. 750), que o problema é tratado na perspectiva da interdisciplinaridade das suas múltiplas interconexões. Sem rupturas internas, vemos o perfeito imbricamento entre Ética, Política, Estética, Epistemologia, Psicologia e Educação, sem que um tema se sobreponha ao outro, antes pelo contrário, todos confluem para a constituição do todo. É neste sentido, e tendo em vista o nosso interesse específico, que Scolnicov nos diz que, “[...] para Platão, a educação tem uma importância primordial na formação da sociedade, mas ela é apenas um fator, por importante que seja.” (Scolnicov, 2006, p. 120). Assim, ainda que não possamos minimizar de jeito algum a importância da educação na composição da República, contudo, não podemos subscrever, sem mais, as palavras de Rousseau: “Se quiserdes ter uma ideia da educação pública, lede A República de Platão. Não é uma obra política, como pensam os que julgam os livros pelo título: é o mais belo tratado de educação jamais escrito.” (Rousseau, 1995, p. 12). Pois, pensando desta maneira, certamente correríamos o risco de cairmos na armadilha das pedagogias “ingênuas e não críticas” (Saviani, 2008, p. 51), que acreditam na possibilidade de, por si mesmas, independentemente do todo da conjuntura histórico-social, “modificar a sociedade por meio da educação” (Saviani, 2008, p. 51), única e exclusivamente. O que, certamente, não é o caso de Platão, que, buscando pensar as possibilidades para a estruturação da vida justa na pólis, donde surge, de fato, a necessidade de repensar o sistema educacional do Estado que se quer erigir, nunca perde a visão da totalidade, na qual, evidentemente, a Educação está inserida. Afinal, a noção de educação “faz parte da própria natureza do Estado e de seus objetivos” (Schlesener, 2007, p. 179). É neste sentido que devemos compreender A República em sua integralidade orgânica[15], pois “o livro é um todo unitário e orgânico” (Barker, 1978, p. 147), tanto quanto o Estado que nele está projetado pelo filósofo. Ora, assim como todo organismo é constituído pela conjunção de suas partes, o Estado platônico também tem as suas. A República é constituída por três classes sociais, distintas fundamentalmente pelas funções que exercem na conformação do todo: a classe dos lavradores, pecuaristas e artífices; a classe dos guardiões guerreiros; a classe dos guardiões governantes (Cf. 414 a – 415 c). A primeira seria responsável pela produção dos meios materiais necessários para a subsistência do Estado; a segunda cuidaria da segurança interna da cidade e, conforme a necessidade, da anexação de novos territórios (Cf. 373 a-e); à terceira classe caberia o governo do Estado e seria constituída necessariamente por filósofos (Cf. 484 a-c). No entanto, cabe aqui ressaltar que, embora o Estado projetado por Platão seja realmente uma sociedade de classes fortemente delimitadas pelas funções que cada uma exerce em vista do bem da pólis, não podemos confundi-lo, contudo, com uma sociedade de castas sem movimentos possíveis, pois há na República uma certa possibilidade de mobilidade social, conforme as potencialidades dos indivíduos (Cf. 415 a-d; 423 c-d). Assim distinguidas, cada classe social vai receber uma educação correspondente as suas respectivas funções dentro do Estado. A primeira classe, a dos produtores, ao que tudo indica, é a que menos se beneficiará com os investimentos do Estado na educação, como nos diz Hare, “[...] os estudiosos divergem sobre se Platão pretende que as massas partilhem a educação proporcionada aos guardiães e soldados, mas seu silêncio quanto a isso parece sugerir que ele não pretende.” (Hare, 2000, p. 86). Dessa maneira, podemos supor que aos trabalhadores será concedida, apenas, a instrução técnica necessária para o cumprimento das suas respectivas funções, o que pode ser adquirido no próprio seio familiar. Serão, portanto, as classes dirigentes – guardiões e governantes – que se beneficiarão com o que de melhor o Estado pode oferecer para educá-las. Ideia essa que, de resto, parece ter sido recorrente na própria história da educação em nosso país (Saviani, 2007). Para tais classes é que será destinada a paidéia, que visa não somente à capacitação técnica, mas antes, à formação integral do homem. Para tais classes, Platão propõe um currículo específico que deve abarcar a música – que, dentro dos parâmetros da Grécia Antiga, inclui a literatura – e a ginástica; confluindo, assim, para a fomentação das virtudes necessárias para a concretização da sociedade almejada, como a temperança e a coragem (Cf. 410 a – 411 a). Mas não é só isso, pois a referida educação também deverá englobar as mais recentes conquistas epistemológicas vivenciadas pela Hélade filosófica, ou seja, a aritmética, a geometria, a astronomia, a estereometria, para, por fim, culminar na dialética, a linguagem propriamente epistemológica, destinada àqueles dentre os guardiões que vierem a se tornar filósofos, e, portanto, governantes (Cf. 522 c – 531 d). Afinal, o Estado proposto por Platão é uma Aristocracia epistêmica, governado, portanto, por aqueles que detêm o conhecimento científico (epistéme) no seu mais alto grau. Como se vê, ao que tudo indica, não é de hoje que a classe produtora tem restringida a possibilidade de ampliar os seus horizontes para além de um saber fragmentado, calcado meramente na instrução necessária para desempenhar o seu papel de produtora dos bens materiais necessários para a subsistência do Estado. No entanto, antes de condenarmos o filósofo, arrancando-o da historicidade própria do seu tempo, julgando-o a partir das categorias da contemporaneidade, façamos um esforço na tentativa de tentarmos compreender o aspecto revolucionário da sua proposta política. Não esquecendo, porém, que, aquilo que outrora, de acordo com as condições históricas de uma determinada sociedade, foi revolucionário, em outra situação, pode tornar-se reacionário. Platão certamente não é um democrata. Antes pelo contrário, é um crítico ferrenho da democracia ateniense de então. Evidentemente, a única que o filósofo conheceu. Crítica essa imputada, sobretudo, à atividade pedagógica dos Sofistas, através da qual uma pequena parcela da população, a mais rica e poderosa, herdeira da antiga nobreza aristocrática hereditária, que, com o advento da democracia corria o risco de perder a sua hegemonia[16], conseguia resguardar os seus interesses particulares em detrimento dos interesses da totalidade da pólis, mesmo em um regime democrático. Com o advento da democracia, a prerrogativa aristocrática de então, fundamentada na hereditariedade das virtudes homéricas, ser a única classe capaz de governar a cidade, cai em desuso. No novo regime, o que passa a valer como elemento de apropriação do poder é a capacidade de persuasão, o que se dá, fundamentalmente, pela linguagem[17], mais precisamente nos discursos feitos nas Assembleias, com o intuito de convencer os cidadãos. Assim sendo, é a capacidade retórica do cidadão que passa a ser a tékhne apropriada para se obter o poder político na pólis. Tanto é que a palavra grega rhétor, normalmente traduzida por orador, pode ser usada, à época de Platão, para designar, concomitantemente, o político, conforme podemos ver no diálogo Górgias, sendo que rhétor também serve para nomear o professor de retórica. Aqui entram os sofistas que, na maior parte dos casos, se apresentavam como mestres de retórica, cujos ensinamentos eram fortemente demarcados pelos interesses prático-políticos daqueles que procuravam os seus saberes. Para a nova ordem política, os sofistas propunham um tipo de formação completamente novo, que “revolucionou a educação em Atenas” (Paviani, 2008, p. 43), sendo considerados “os primeiros mestres profissionais da Grécia” (Barker, 1978, p. 65), construindo, inclusive, prodigiosas riquezas, como no caso de Górgias, indo de cidade em cidade oferecendo os seus serviços. Pelo que podemos inferir, aquilo que vendiam, a arte retórica, devia valer muito e só os mais ricos podiam pagar por este novo ensinamento. Como nos diz Jaeger, “[...] já desde o começo a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas não era a educação do povo, mas a dos chefes. No fundo não era senão um nova forma da educação dos nobres.” (Jaeger, 1994, p. 339). Era, pois, assim, aprendendo as diversas e mais sofisticadas técnicas de persuasão – ou seja, a manipulação da linguagem em vista da manipulação do povo –, que as mesmas elites de outrora conseguiam se manter no poder em um regime em que, supostamente, todos os cidadãos (homens livres) deveriam ter ingerência no governo da cidade. Isso fazia da democracia de então um regime propício não exatamente para a consecução do bem comum, mas, antes, para a satisfação dos interesses individuais dos membros da elite dominante. Ideologia preponderante deste escol, “[...] a maioria dos democratas convictos representava o seu ideal como um Estado em que cada um ‘podia viver como quisesse’ [...]” (Jaeger, 1994, p. 382), desde que conseguisse, é claro. Corroborando epistemologicamente tal ideologia, está o ceticismo e o relativismo propagado pelos sofistas, nas palavras de hoje, cada um, cada um, ou, como dizia Protágoras, um dos grandes sofistas da época, o indivíduo é a medida de todas as coisas. Ora, é fundamentalmente contra esta perspectiva individualista, fundamentada no ceticismo e no relativismo, que obliterava a possibilidade do bem comum, que se insurge Platão. Para o filósofo, um perseguidor da verdade, ou seja, de proposições intersubjetivamente válidas, a política democrática da pólis e a prática pedagógica dos sofistas confluíam conjuntamente para a dissolução da cidade como um todo, visto que não beneficiavam toda a cidade. Nas mãos, única e exclusivamente, dos interesses privados, tanto a política quanto a educação desviam-se efetivamente daquilo que deveria ser público: o belo e o bem. Portanto, a República de Platão pode ser compreendida como uma tentativa de se pensar um antídoto para a situação vigente na Atenas de então. Para tanto, um dos passos necessários seria a transferência da Educação para as mãos do Estado. Educação esta que, embora não proporcionada a todos, mas apenas às classes dos guardiões, por isso mesmo, para que a referida educação não perdesse o seu télos próprio, o bem comum, vindo a beneficiálas em detrimento da classe dos lavradores, pecuaristas e artífices, exigiria uma estruturação do modus vivendi de tais classes completamente diverso do que a grande maioria do povo grego conhecia até então. É com este intuito que Platão propõe para a classe dos guardiões a abolição da família patriarcal[18] e da propriedade privada[19], instituições estas que, ao que parece, para o filósofo estão intimamente ligadas e confluem decisivamente para o desenvolvimento dos sentimentos individualistas, que acabam obliterando a possibilidade do bem comum[20]. Abolindo também as distinções sociais de gênero, outra ideia completamente nova para os padrões da cultura grega da época, caberia às mulheres da classe guardiã a mesma educação destinada aos homens, bem como os mesmos encargos (Cf. 451 d – 457 a). Eis aí, de maneira generalíssima, a Política Pedagógica do Mestre da Academia apresentada em sua República. Como pudemos perceber, as propostas de reformulação da paidéia vigente em sua época, aos olhos de Platão, estão intimamente relacionadas, concomitantemente, em conjunção com o todo, à necessidade de reformulações políticas, sociais e culturais, e surgem para responder as idiossincrasias propriamente históricas da Atenas do filósofo. Pois bem, uma das formas, infelizmente, até mesmo comum de reduzirmos enormemente a produtividade hermenêutica do texto de Platão é desviarmos a nossa atenção para a questão, por exemplo, da exequibilidade literal das suas propostas, quer no seu próprio tempo, quer em outro. Como de resto, em todos os seus diálogos, o filósofo não nos apresenta um sistema filosófico pronto e acabado e que, portanto, dever-se-ia segui-lo até mesmo dogmaticamente, mas antes, nos leva a pensar, abrindo brechas para tanto[21]. Talvez, a maior prova disso seja justamente a maneira como legou à posteridade os seus pensamentos em forma de diálogos. Como observa Charles Kahn (2000, p. 31), “literatura de ficção e, muito frequentemente, de fantasia”. Platão não escreve tratados filosóficos, que já existiam em seu tempo[22], e sim peças literárias,[23] obras que podem sim estabelecer um mundo, sem, contudo, apresentar receitas para tanto. Outro indício do que se está querendo dizer aqui é a própria escola fundada pelo filósofo, a Academia, pois, como nos diz Jan Szaif, “[...] devemos pensar a Academia de Platão como uma comunidade de filósofos cuja independência intelectual era respeitada, portanto não como um círculo esotérico que venera um mestre e haure seus ensinamentos.” (Szaif, 2005, p. 174). Platão, antes de tudo, ao que tudo indica, quer que pensemos, estimulando-nos. Ora, como podemos perceber, as questões que fomentam a elaboração das políticas pedagógicas, como soluções para uma sociedade em crise, que surgem na República de Platão, são muito semelhantes, quando não as mesmas que enfrentamos hoje, na contemporaneidade pós-moderna, mormente o individualismo, respaldado epistemologicamente pelo relativismo e pelo ceticismo. É claro que as liberdades individuais devem ser consideradas uma conquista, o que, no entanto, não respalda a subsunção do indivíduo em relação à sociedade. Pois, assim, dificilmente constrói-se uma sociedade efetivamente justa, onde o belo e o bom sejam de fato um horizonte comum. Dessa maneira, com as pistas deixadas pelo filósofo, podemos compreender, principalmente, mas não apenas, que as políticas pedagógicas não devem ser pensadas à parte das políticas econômicas e sociais que estruturam a totalidade do Estado, que deve ser compreendido, antes, como um todo orgânico, onde todas as partes confluem para a sua vivificação. Afinal, como Hegel não nos deixa esquecer, [...] a mão cortada perde sua subsistência autônoma; ela não permanece como era no organismo; a sua agilidade, movimento, forma, cor e assim por diante se modificam; aliás, ela apodrece e toda a sua existência acaba. (Hegel, 2001, p. 136). Ou, como nos diz Nicolau de Cusa em sua apurada dialética: Já que o olho não pode ser mão e pé e todos os outros membros em ato, contenta-se com ser olho e o pé pé; e todos os membros são mutuamente úteis, de modo que cada um é da melhor maneira possível o que é. A mão e o pé não estão no olho, mas no olho, são olho, enquanto o olho está imediatamente no homem. Da mesma maneira, todos os membros estão no pé, enquanto o pé está imediatamente no homem, e o homem ou o todo está em qualquer membro por meio de qualquer membro, assim como o todo está nas partes, através de qualquer uma em qualquer uma. (Cusa, 2002, p. 127-128). Dessa maneira, seguir as pistas do filósofo da Academia pode ser um bom caminho para pensarmos as políticas educacionais na contemporaneidade do nosso enraizamento histórico, pois que é possível e pode se mostrar produtivo. Referências AMARAL Fº, Fausto dos Santos. A Filosofia de Hegel e a Poesia de Platão, ou ainda, Integralidade Orgânica: para uma hermenêutica dos diálogos de Platão. In: COSTA, Danilo Vaz Curado; PIMENTEL JR., Paulo Albino; SILVA, Adriano Silveira (Orgs.). Dialética e Metafísica: o legado do Espírito. Festschrift em homem a Paulo Meneses. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2010. ______. Filosofia Aristotélica da Linguagem. Chapecó: Argos, 2002. ______. Platão e a Linguagem Poética: o prenúncio de uma distinção. Chapecó: Argos, 2008. BAQUERO, Rute Vivian (Org.). Educação e Técnica: possibilidades e impasses. Porto Alegre: Kuarup, 1989. BARKER, Sir Ernest. Teoria Política Grega: Platão e seus predecessores. Brasília: Editora UnB, 1978. CUSA, Nicolau de. A Douta Ignorância. Tradução, prefácio e notas de Reinholdo Aloysio Ullmann. Porto Alegre: Edipucrs, 2002. DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas, opiniones y sentencias de los Filósofos más Ilustres. Traducidas directamente del Griego por Jose Ortiz y Sanz. 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Platão: ensinando a aprender aprendendo a ensinar (epistéme, eunoia, parresía) QUANDO LEMOS os diálogos de Platão, logo percebemos que, concomitante ao seu projeto filosófico, caminha pari passu, não só um projeto político como, também, um projeto pedagógico, assim como uma estética, uma antropologia, uma psicologia, uma cosmologia, para pararmos por aqui. Contudo, ainda que consigamos fazer tais distinções analíticas, não podemos perder de vista a intrínseca unidade que perpassa o pensamento do Mestre da Academia, sob o risco de empobrecermos a sua filosofia. Talvez, por isso, pela diversidade de temas que podem ser reconhecidos nos escritos de Platão, quando os diversos especialistas resolvem estabelecer em um determinado diálogo um suposto tema específico acabam por discordar. Tomemos, por exemplo, o Górgias, que será o locus do nosso breve estudo. Se formos seguir aqueles subtítulos que, conforme Diógenes Laércio, já desde Trásilo de Alexandria, acompanham algumas edições dos diálogos de Platão, teremos que afirmar que, no Górgias, o filósofo trata da retórica (Laertius, 3. 32). No entanto, a julgar pelas palavras de Olimpiodoro, já na antiguidade havia dúvidas quanto à sua temática (Olympiodorus, 1998, p. 57). Dúvidas essas que, ao que tudo indica, os mais próximos de nós no tempo ainda não dirimiram. Pois, se para Magalhães-Vilhena trata-se de “uma apologia apaixonada da justiça” (Magalhães-Vilhena, 1998, p. 237), para Grube é mesmo “uma discussão sobre a retórica e o seu papel dentro do Estado” (Grube, 1987, p. 91). Já para Crombie, diferentemente, “o tema do Górgias é o poder” (Crombie, 1988, p. 260). Porém, no momento, deixemos tal questão para os especialistas, ocupando-nos com algo mais singelo. Sem deixarmos de considerar a integralidade orgânica dos textos de Platão[24], foquemos o nosso olhar naquilo que, no Górgias, o filósofo tem a nos dizer sobre o processo de ensino/aprendizagem. Ainda que Gramsci, reverberando o Protrético de Aristóteles, tenha razão ao dizer que a filosofia é inerente à condição humana, e, portanto, movemo-nos de uma forma ou de outra sempre no horizonte do filosofar (Cf. Gramsci, 1991), também é certo que o ensino formal de filosofia tem lá as suas especificidades e, com isso, exigências próprias inerentes à efetivação do seu processo. No mais das vezes, pensando no ensino universitário, quem procura uma graduação em filosofia possui um grande interesse em, entrando em contato metódico com a produção filosófica da tradição, aprender a pensar filosoficamente de maneira mais acurada. O que, por estranho que possa parecer, não é inexoravelmente garantido àquele que faz um curso de filosofia. Pois, como Heidegger nos diz: O fato de mostrar-se um interesse pela filosofia ainda não revela, de modo algum, uma disponibilidade para o pensamento. Mesmo que durante anos e anos nos ocupemos aplicadamente com os volumes e os escritos dos grandes filósofos, isso ainda não nos garante que realmente pensamos ou mesmo que estejamos dispostos a aprender a pensar. A ocupação afanosa com a filosofia pode, de modo mais caturro e cego, iludir-nos com a aparência de que pensamos porque, ora, afinal ‘filosofamos’.(Heidegger, 2002, p. 113). Portanto, como se vê, tanto daquele que tem a pretensão de ensinar filosofia, quanto daquele que quer aprender a filosofar, exige-se algo para além do mero interesse, exige-se uma decisão. Mas quem é que tem autoridade para fazer tal exigência? Ora, a própria filosofia, a tarefa do pensamento em tarefa. Mas será que em sala de aula é possível vigorar tal decisão? Bem, o mais provável é que sim. Talvez a sala de aula seja até mesmo o lugar privilegiado onde a filosofia possa se instaurar com todo o seu vigor, desde que sejam postas as condições de possibilidade para que o pensamento, efetivamente, aconteça. Aqui, para compreendermos tais condições, é certo que Platão pode nos ajudar, mais especificamente com o seu diálogo intitulado Górgias, onde o Mestre da Academia parece ter se decidido definitivamente pelo filosofar. Não é por acaso que neste texto encontramos um filósofo “[...] diferente do nosso velho conhecido dos primeiros Diálogos, em que a discussão terminava quase sempre em aporia.” (Nunes, 2002, p. 25). No Górgias Platão parece expor pelo menos uma certeza: a decisão pela filosofia, o que inclui um redirecionamento da própria vida. Talvez seja isto, a decisão propriamente dita que dificulte o acontecer da filosofia, até mesmo em sala de aula, onde estão aqueles que, a princípio, se interessam pela filosofia. Mas, então, vejamos no que o Górgias pode nos ajudar. Querefonte, Górgias, Polo, Sócrates e Cálicles são os personagens do diálogo Górgias escrito por Platão. Sem sombra de dúvidas, dentre eles, Cálicles é aquele que mais chama a nossa atenção. Poder-seia mesmo dizer que ele, e o filósofo, é claro, são os protagonistas do referido drama. Um indício disso é que a conversa entre os dois ocupa a maior parte da obra, toda a sua segunda metade. Aliás, pensando bem, talvez Cálicles seja um dos personagens mais surpreendentes de todos os diálogos do Mestre da Academia. Esse personagem, surpreendentemente, diferente da quase totalidade dos outros, não denota ser histórico algum; que Platão tenha tido a necessidade de efetivamente inventálo, deve falar muito a respeito dos outros personagens, os mimetizados. Ainda mais se levarmos em conta que o próprio filósofo nos diz que encontrou no seu conterrâneo o parceiro ideal para aferir a sua alma, para averiguar se a vida filosófica realmente vale a pena ou não. Ao que parece, para o autor do diálogo, faticamente não havendo ninguém, foi preciso inventar alguém que estivesse à altura de Sócrates para testar as suas convicções mais próprias; capaz, quem sabe, de tocar nos medos mais profundos do filósofo. Talvez por isso, sob determinados aspectos, Sócrates e Cálicles sejam tão parecidos. Mas o que faz de Cálicles um personagem tão especial? Para Sócrates, seu conterrâneo possuiria três requisitos indispensáveis para iniciar uma investigação filosófica pela confrontação das palavras: epistéme, eunoia e parresía. Dito em português: conhecimento, benevolência e desvergonha/franqueza. É pela conjunção desses três requisitos que a investigação filosófica pode lograr êxito. No nosso diálogo, Górgias e Polo, os primeiros interlocutores do filósofo, mesmo tendo o conhecimento requerido e sendo benevolentes, com vergonha de falar em público o que realmente pensam, acabam se contradizendo, e por isso eles têm de ficar calados. Mas qual seria o conhecimento necessário para se iniciar o empreendimento conjunto de uma investigação filosófica? Simples, muito simples. É preciso conhecer a especificidade mais própria da linguagem filosófica, admitindo a legitimidade do princípio de não-contradição. No jogo filosófico, a contradição é falta gravíssima, e, quem a comete está fora da brincadeira, independentemente de ser benevolente e franco. É que sem a vigência do referido princípio não há a possibilidade de conhecimento (epistéme) algum. Por isso é preciso, antes de tudo, reconhecê-lo. Já a benevolência é a boa vontade que se deve ter tanto em relação aos parceiros da investigação quanto para consigo mesmo. Fazer filosofia, como indica a própria philía – o amor amigo – que constitui seu nome, deve incluir, portanto, uma boa dose de afetividade. Pois, sem que um se importe verdadeiramente com o bem do outro, o saudável confronto filosófico corre o risco de virar um jogo estéril das palavras pelas palavras. E na filosofia, ainda que não se efetive sem as palavras, o que está em jogo é a alma, ou, mais precisamente, a intelecção epistêmica de quem filosofa. O terceiro requisito nomeado, a desvergonha, é a coragem de se expor, revelando efetivamente o que se pensa. É a ousadia de não se esconder atrás das palavras, usando-as, sim, com franqueza para desnudar-se. Coisa que, tanto o tímido quanto o hipócrita, por razões diferentes, não conseguem fazer. Contudo, a dissimulação do hipócrita confirma um conhecimento. O conhecimento daquilo mesmo que, aos seus olhos, não convém revelar. No Górgias, essa é a conduta que mais tipifica as relações políticas nas democracias-retóricas de então. Já o tímido, se não vencer seu medo da exposição pública, jamais saberemos o que ele realmente pensa. Com o que, não fazendo lance algum no jogo filosófico, em nada contribui para a investigação. Para fazer filosofia não se deve temer muitas coisas, inclusive o ridículo. Até mesmo porque, como revela a piada sobre a queda de Tales de Mileto no buraco, contada por Platão no Teeteto, é sempre a escrava da Trácia quem ri do filósofo. Desde Platão, ainda hoje, uma das formas mais produtivas de investigação filosófica é lecionar filosofia. Não foi por menos que o Mestre fundou uma escola, a Academia. A Academia é, antes de tudo, um estabelecimento de investigação filosófica. Por isso é que lá, também, leciona-se filosofia. Muito se engana quem pensa que aquele que ensina filosofia, se é que ensina, não está sempre e constantemente, em sala de aula, conjuntamente, aprendendo a filosofar. Do ponto de vista platônico, aprender a filosofar é tarefa para uma vida. Mas, para tanto, como vimos, é fundamental que os três requisitos, epistéme, eunoia e parresía, também estejam conjuntamente presentes dentro das nossas salas de aula, na mente de todos os envolvidos no processo pedagógico em questão. O que, como se fora um diálogo de Platão, naturalmente, nem sempre é o caso. Para os neófitos, evidentemente, quase tudo é novidade, quase tudo é estranhamento. Para usarmos a imagem do nosso filósofo, soltar-se dos grilhões que nos prendem à habitualidade do senso comum, rompendo com os modos de pensar da maioria, sendo forçado “a subir o caminho rude e íngreme” (Rep., 515 e) da filosofia, efetivamente, não é nada fácil, tanto para o professor quanto para o aluno. Estando os dois em situação difícil, compreende-se porque a benevolência é requisito fundamental para os que, em conjunto, filosofam. Sem o mínimo de boa vontade, de disposição para tomar, no passo certo, o rumo adequado, o mais provável é que não se chegue a sair do lugar. É porque ocupam em sala de aula posições distintas que um é o aluno e o outro, o professor. Para o iniciante, é lícito esperar do mestre que ele tenha conhecimento suficiente para poder ensiná-lo, mostrando-lhe o caminho adequado. Para o mestre, obviamente, é lícito esperar do aluno que ele esteja disposto, de fato, a conhecer, suportando, corajosamente, inclusive, as dores que o início desta longa caminhada certamente provocará. Já que, é sim, coberto de pedras o referido caminho. Porém, sendo este o caso, mais ainda do que o conhecimento daquilo que deve conhecer, o professor deve ter, sobretudo, a capacidade (areté) de transmitir o dito conhecimento (epistéme), inserindo o aluno na tradição. Para tanto, é claro que não pode estar intimidado, deixando de falar com franqueza (parresía) aquilo que, necessariamente, tem a obrigação de dizer. O que, com muita frequência, pode espantar o aluno, deixando-o, a princípio, até mesmo confuso e inseguro. Afinal, o que se pode esperar de uma investigação na qual aquele mesmo que investiga, lançando-se ao aberto, onde “todas as margens ficam para trás” (Heidegger, 1969), está sempre em jogo, tendo a dúvida como o primeiro passo do seu método, a qual deve constantemente voltar? (Descartes, 2006). No entanto, se para o filósofo, o espanto é a origem própria da filosofia, que o aluno se espante, ainda mais o neófito, isto só pode ser um bom sinal[25]. Sinal de que, em sala de aula, perpetua-se a origem do filosofar. Lembremos aqui de outro diálogo de Platão, o Mênon, onde o homônimo personagem, um jovem que julgava ter opiniões corretas a respeito da condução do seu povo, ao submeter-se à conversação filosófica (diáleksis), diz que já não se sente mais tão seguro a respeito delas, antes pelo contrário, de tão confuso, sente-se como se estivesse embriagado. É por isso que, ainda que o professor tenha a obrigação de ouvir com benevolência (eunoia) tudo o que o aluno tem benevolamente a dizer, ele não pode dizer apenas e tão somente aquilo que o aluno quer ouvir. Mesmo sabendo que “[...] todos gostam dos discursos acomodados aos seus hábitos e se aborrecem dos que lhes são contrários.” (Górgias, 513 c). Mas, assim, aborrecendo os alunos, o professor não corre o risco de habitar uma sala vazia? Quando alguém decide filosofar são vários os riscos que corre. Ao extremo, lembremos de Sócrates, o filósofo exemplar que, de tanto incomodar, foi condenado à morte por seus conterrâneos. Portanto, certamente que o professor em sala de aula corre lá os seus riscos, aqueles mesmos inerentes a sua profissão, tanto quanto o aluno corre os seus. Talvez o maior de todos eles seja que o professor não consiga ensinar e que o aluno não consiga aprender. O que seria, evidentemente, um imenso fracasso. Pelo que, para evitar o fracasso, é preciso um esforço conjunto, já que vencer a ignorância, superando-se a si mesmo, deve ser a finalidade (télos) de ambos. Mas, para tanto, como pudemos ver, conhecimento, benevolência e desvergonha/franqueza são requisitos fundamentais, sem os quais a investigação filosófica em conjunto dificilmente consegue avançar. Pois, então, façamos votos para que os envolvidos em tal processo pedagógico tenham os três requisitos. Pelo menos o suficiente para conseguirem dar os primeiros passos. Provavelmente os mais decisivos. Como pudemos ver, fazer filosofia implica colocar em jogo, antes de tudo, aquele mesmo que filosofa, quer na condição de aluno, quer na condição de professor. Assim, quando em sala de aula nos propomos filosofar, corremos necessariamente alguns riscos: que não filosofemos, apesar de falarmos sobre filosofia – ou, por isso mesmo –, talvez seja o mais iminente. No Górgias, Platão nos mostra as disposições básicas para que a filosofia efetivamente aconteça, desenvolvendo-se em um processo de ensino e aprendizagem em conjunto, onde aquele que ensina e aquele que aprende acabam confundidos. São elas: epistéme, eunoia e parresía, ou, dito em português, conhecimento, benevolência e desvergonha/franqueza. Sem que tais disposições aconteçam, ainda que preenchamos o tempo em sala de aula com a diversidade dos conteúdos filosóficos, é pouco provável que filosofemos, pois, assim, repassando assepticamente os conteúdos, dificilmente nos colocamos em jogo. Tendo isso em vista, levando-se em consideração que, ao tempo de Platão a filosofia está longe de ser considerada apenas um ramo específico do conhecimento, constituindo, antes, a sua totalidade, bem que poderíamos ampliar a nossa breve reflexão para a totalidade dos processos pedagógicos que envolvem os conhecimentos sistematizados. Dessa maneira, não só quando filosofamos, mas quando estamos em sala de aula, de uma maneira geral, para que o processo de ensino/aprendizagem efetivamente aconteça, não esqueçamos, conhecimento, benevolência e franqueza são fundamentais. Referências AMARAL Fº, Fausto dos Santos. A Filosofia de Hegel e a Poesia de Platão, ou ainda, Integralidade Orgânica: para uma hermenêutica dos diálogos de Platão. In: COSTA, Danilo Vaz Curado de Menezes; PIMENTEL JR., Paulo Albino; SILVA, Adriano Silveira (Orgs.). Dialética e Metafísica: o legado do Espírito. Festschrift em homem a Paulo Meneses. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2010. ARISTÓTELES. Protreptique: Invitation à la Philosophie. Paris: Gallimard, 2006. CROMBIE, I. M. Análisis de las doctrinas de Platón 1. El hombre y la sociedad. Madrid: Alianza, 1988. DESCARTES, René. Discurso sobre o Método. Petrópolis: Vozes, 2006. DIOGENES LAERTIUS. Live of eminent philosophers. English translation R. D. Hicks. 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Paris: Les Belles Lettres, 1955. ______. República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. ______. Teeteto. Belém: EDUFPA, 2001. Aristóteles: do negócio ao ócio CONTA UMA ANTIGA anedota que, quando Aristóteles, por algum motivo, deixava por um tempo, por menor que fosse, a Academia do seu mestre, Platão costumava dizer: A Academia está acéfala! De fato, o filósofo de Estagira, cidade na qual nasceu por volta de 384 a.C., adentrou na Academia de Platão logo que chegou a Atenas, entre os seus 17 e 18 anos, para dar continuidade a sua formação (paidéia), em um nível, agora, poder-se-ia dizer, superior. Academia essa onde permaneceu por vinte anos da sua vida e, a julgar pelo que diz Diógenes Laércio, período este no qual se tornou “o discípulo mais legítimo de Platão” (Diógenes Laércio, V, 1). O que confirma a anedota. Aliás, não apenas Diógenes Laércio, mas toda a posteridade vai dizer o mesmo. No entanto, como um legítimo discípulo, não pensemos que se ateve apenas à reprodução do pensamento do seu mestre, não. Antes, pelo contrário, buscando ir, com Platão, além de Platão, acabou sendo um dos maiores críticos do pensamento do seu mestre, tanto quanto o seu continuador. Um exemplo claro disso é a maneira como Aristóteles deu continuidade ao projeto estrutural de Platão da construção da linguagem filosófica[26]. Quando da morte do Mestre (347 a.C.), a direção da Academia passa a ser exercida por um sobrinho de Platão, Espêusipo, “o qual encabeçava a corrente mais distante das que eram as convicções” (Reale, 1994, p. 315) de Aristóteles àquela época. O estagirita deixa, então, não apenas a Academia, mas a cidade de Atenas também. Entrementes, segue para Assos (Ásia Menor), onde, conjuntamente com outros dois platônicos, funda uma escola, permanecendo nessa cidade por aproximadamente três anos, quando migra para Mitilene (Ilha de Lesbos). Por volta de 343-342 a.C. antigas relações familiares do filósofo levaram-no à corte da Macedônia para ser o educador do filho de Felipe, Alexandre, então com 13 anos, e que mais tarde será conhecido como O Grande. Ao que parece, não é de hoje que aos filhos das elites é destinada a melhor educação possível. Ao que tudo indica, quando Alexandre, com a morte do pai, assume o seu lugar, Aristóteles deixa a Macedônia (336 a.C.), provavelmente passando por Estagira. É fato que entre os anos de 335334 a.C. já está de volta a Atenas, onde funda a sua escola, o Liceu, que à época rivalizava com a Academia do seu antigo mestre. Porém, justamente por suas ligações macedônicas teve que deixar tanto a direção do Liceu quanto a cidade de Atenas. Com a morte de Alexandre (323 a.C.), quase que imediatamente, os atenienses, retomando o poder, passam a denunciar “[...] como colaboracionistas todos aqueles que tinham de algum modo recebido apoio da Macedónia.” (Allan, 1983, p. 14). E, evidentemente, Aristóteles era um desses. Antes que Atenas pudesse condená-lo, rumou para a terra natal materna, Cálcis, na Eubeia, onde morreu logo em seguida, em 322 a.C. Quando morto, já era viúvo, mas vivia com uma outra mulher. Deixou dois filhos, uma menina do primeiro casamento e um menino de sua segunda mulher. Influenciando sobremaneira a constituição do pensamento ocidental, deixando marcas em todas as áreas científicas, produziu uma vasta obra, o Corpus aristotelicum, organizado e editado por Andrônico de Rodes no século I a.C. Seus livros mais importantes são: Órganon, Física, Metafísica, De anima, Política, Ética a Nicômaco, Poética, dentre tantos outros. A nós, é claro, interessa sobremaneira o que o filósofo tem a nos dizer a respeito da Educação. Considerando-o sempre como um discípulo de Platão, podemos suspeitar, dentre os livros que citamos, aonde poderemos encontrar nosso tema explicitado mais especificadamente por Aristóteles: acertou quem pensou na Política. Mas, antes, vejamos a classificação que Aristóteles faz dos diversos tipos de conhecimento (epistéme). Nosso filósofo distingue as ciências conforme os seus objetos específicos, o que acaba por determinar, também, o grau de verdade que cada uma delas é capaz de comportar: 1) As ciências teoréticas: a) Ciência Primeira, ou Teologia, aquela que nós chamamos de Metafísica, que trata da fundamentação do conhecimento em si mesmo e, portanto, é aquela capaz de atingir o primeiro princípio do mundo, a verdade no seu mais alto grau. Ciência (epistéme) da qual dependerá ontologicamente todo e qualquer tipo de conhecimento; b) Física, que estuda a percepção da manifestação motora da phýsis, ou, dito de outro modo, a realidade sensível. Ciência esta que, ao fim e ao cabo, acaba sempre desembocando diretamente na Metafísica, de onde retira a possibilidade da sua fundamentação. 2) As ciências práticas, voltadas especificamente à cotidianidade da existência humana: como a Política, a Ética e a Retórica, das quais não se pode exigir o mesmo grau de veracidade das ciências teoréticas. 3) As ciências poiéticas, ligadas à produção dos meios materiais necessários à existência humana, que praticamente não envolvem diretamente a questão da verdade, mas antes estão ligadas aos conhecimentos meramente empíricos, cujo valor é dado pela práxis. Para nós, como já sabemos, interessa sobretudo a Política, ciência que está inexoravelmente ligada à educação, sem a qual a prática da vida humana torna-se inviável. Ora, como o próprio nome diz, a Política trata da existência humana em comunidade, mais propriamente da vida naquela comunidade que para o filósofo é a mais adequada para a realização plena do bem especificamente humano, ou seja, a pólis (cidade-estado) (Cf. Aristóteles. Política, 1252 a)[27]. Bem este ao qual um homem isoladamente não é capaz de alcançar[28]. Até mesmo porque somos fisiologicamente constituídos para vivermos em sociedade. Nas palavras de Aristóteles: “ánthropos phýsei politikón zóion” (“o homem é por natureza um animal político”) (Pol., 1253 a); tanto quanto é um animal que fala (ánthropos kaì zóion lógon), na verdade o único. Dessa maneira, há uma relação fundante entre a sociabilidade humana e a linguagem, que a seguinte passagem da Política não nos deixa esquecer: Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples voz pode indicar a dor e o prazer, e outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida somente até o ponto de ter sensações do que é doloroso ou agradável e externá-las entre si), mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto também o justo e o injusto; a característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade. (Pol., 1253 a). Sentimentos estes que constituem concomitantemente a comunidade política e a comunidade linguística. Pelo que, linguagem e comunidade são traços essencialmente ontológicos do ser humano. Portanto, ontologicamente, a vida significativa em comunidade tem primazia em relação à vida individual, “pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre as partes” (Pol., 1253 a). Assim, fica claro que o desenvolvimento pleno das potencialidades individuais depende inexoravelmente do desenvolvimento pleno das potencialidades da comunidade política. O que, evidentemente, pode se efetivar ou não. Afinal, “[...] o homem, quando perfeito, é o melhor dos animais, mas é também o pior de todos quando afastado da lei e da justiça.” (Pol., 1253 a). É justamente isto que chamamos de liberdade: quando, diante da multiplicidade das nossas potencialidades, podemos decidir quais iremos atualizar ou não. Decisão da qual depende o destino da comunidade e, portanto, dos indivíduos que a compõem também. Podemos dizer que, para Aristóteles, a Ciência Política é aquela que pode nos ajudar a tomar as melhores decisões, ou seja, aquela na qual podemos amparar o exercício da liberdade tendo em vista o estabelecimento do melhor bem possível: “aquilo a que todas as coisas tendem” (Ética a Nicômaco, 1094 a)[29], cuja efetivação ou não dependerá fundamentalmente do télos (finalidade) que tivermos em vista enquanto praticamos a vida. Mas qual será o melhor bem possível para a existência humana? Ora, o melhor bem possível é aquele após o qual não podemos querer outra coisa, pois esse deve ser algo em vista de si mesmo, não algo a partir do qual possamos ainda buscar outra coisa (Cf. Et. Nic., 1097 a). Bem este que será a destinação propriamente humana, ou seja, a ação cotidiana em vista do melhor bem possível para a comunidade política. Pois, como diz o filósofo: Ainda que a finalidade seja a mesma para um homem isoladamente e para uma cidade, a finalidade da cidade parece de qualquer modo algo maior e mais completo, seja para a atingirmos, seja para a perseguirmos; embora seja desejável atingir a finalidade apenas para um único homem, é mais nobilitante e mais divino atingi-la para uma nação ou para as cidades. (Et. Nic., 1094 b). Mas, então, qual é a finalidade própria da vida humana e, portanto, o seu maior bem? Aquilo que, ainda que a partir de concepções diferentes, todos nós buscamos e que só pode ser realizado plenamente através da via política? Ora, em uma só palavra, a eudaimonía (a felicidade) (Cf. Et. Nic., 1095 a). Pois a “[...] felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais.” (Et. Nic., 1097 b). No entanto, seria simples se a palavra felicidade não abarcasse uma pluralidade de sentidos distintos. Na verdade, são tantas as possibilidades semânticas da referida palavra que “[...] seria infrutífero, de certo modo, examinar todas as opiniões sustentadas a este respeito.” (Et. Nic., 1095 a). Não esqueçamos que o ser humano é justamente o animal das múltiplas potencialidades, podendo atualizar tanto aquelas que realmente lhe convém, quanto aquelas que o podem corromper e, em ambos os casos, indistintamente, agirá sempre em busca da felicidade. Por isso, evidentemente, torna-se necessário conhecer qual seria o melhor bem possível alcançável pelo homem, a felicidade suprema, para que possamos agir conforme tal conhecimento, colocando-nos em sua senda[30]. Para tanto, Aristóteles propõe que levemos em consideração as significações da palavra felicidade “mais difundidas ou as aparentemente mais razoáveis” (Et. Nic., 1095 a). Dentre estes não se enquadra, por exemplo, a vida que busca na acumulação de dinheiro, a felicidade, pois tal vida “é vivida sob compulsão” (Et. Nic., 1096 a) e o dinheiro nunca poderia ser propriamente um fim, na medida em que sempre o buscamos em vista de algo ulterior que o seu valor de compra pode nos proporcionar. Não sendo, portanto, autenticamente um fim, a vida dedicada única e exclusivamente à acumulação de dinheiro não será necessariamente uma vida autenticamente humana (Cf. Et. Nic., 1096 a)[31]. O filósofo destaca, para analisar, três distintas concepções de vida, pode-se dizer, as mais relevantes para a reflexão sobre o viver, que levam a três concepções diferentes de eudaimonía: 1) a vida voltada aos prazeres; 2) a vida voltada à honra; 3) a vida voltada para a compreensão do mundo, a contemplativa. A primeira Aristóteles considera desqualificada para cumprir o papel de máximo bem alcançável, ainda que seja a preferida pela maioria e pelos mais vulgares. No entanto, reconhece que não é sem algum fundamento que tantos possam pensar assim: que a finalidade da vida seja a busca pelo prazer. Afinal, “[...] muitos homens alçados a elevadas funções de governo compartilham dos gostos de Sardanapalos.” (Et. Nic., 1095 b)[32]. O segundo tipo de vida e a felicidade que lhe corresponde é a vida voltada à busca das honrarias, sinal do reconhecimento e do respeito da comunidade, que, apesar de mais plausível do que a primeira concepção, pois está ligada à vida política, e não ao gozo individual, “parece muito superficial para ser o que estamos procurando” (Et. Nic., 1095 b), ainda que muitos homens qualificados identifiquem “a felicidade com as honrarias” (Et. Nic., 1095 b). Não esqueçamos que Aristóteles busca, com a presente reflexão ética, identificar qual o bem final realizável por nós. Ora, as honrarias, se pensarmos bem, não pertencem propriamente ao cidadão honrado, mas antes àqueles que as concedem que, conforme o caso, podem deixar de concedê-las. Portanto, algo que não pode ser concebido como a felicidade suprema, pois, para o filósofo, a felicidade, como o maior bem possível, “[...] é algo pertencente ao seu possuidor e que não lhe pode ser facilmente tirado.” (Et. Nic., 1095 b). Isto seria próprio do terceiro tipo de vida, a vida contemplativa. Esta vida não pode ser compreendida como uma vida puramente passiva, como a vida daquele que apenas observa, sendo antes uma vida atuante, pois é só na ação em meio ao mundo que podemos ser realmente felizes. Mas, então, qual a atividade própria à tal vida, a contemplativa, que pode nos levar ao nosso maior bem possível, a felicidade? Ora, ela coincidirá com o exercício pleno da nossa especificidade própria, portanto, com aquilo que nos define, tornando-nos diferentes de todos os outros seres vivos que habitam conosco a Terra. Sendo assim, tal atividade não é o mero viver fisiológico (nutrição, crescimento, reprodução), pois isto compartilhamos até com os vegetais. Como também não são as atividades ligadas às sensações, compartilhadas por nós com todos os outros animais. O propriamente humano, aquilo que só pode ser exercitado por nós, é a atividade vital do lógos. Atividade esta que engendra tanto a nossa capacidade (areté) dianoética, quanto a nossa areté (capacidade) ética. Dessa maneira, viverá feliz aquele que, “dentro das limitações da condição humana” (Et. Nic., 1101 a), desenvolver ao máximo tais capacidades, mas não apenas, pois feliz, feliz mesmo, é aquele que, além de desenvolver tais capacidades, é capaz de viver em concordância com a inter-relação ativa entre a capacidade de compreensão do mundo (capacidade dianoética) e a capacidade de agir no mundo (capacidade ética). Dito de outra maneira, para Aristóteles, sumamente feliz é aquele que sabe observar o mundo a fim de compreendê-lo, agindo em consonância com tal compreensão. Nas palavras de Aristóteles: Nas ciências práticas o objetivo não é chegar a um conhecimento teórico dos vários assuntos, e sim pôr em prática as nossas teorias. Se for assim, saber o que é a capacidade ética e a capacidade dianoética não é o bastante; devemos esforçar-nos por possuí-las e praticá-las. (Et. Nic., 1179 b). O que em outro momento histórico poderá ser chamado de práxis. Portanto, quanto mais formos capazes de atualizar o melhor das capacidades humanas em meio ao mundo da vida, mais possibilidade teremos de alcançar a vida feliz, “o fim a que visam todas as ações” (Et. Nic., 1097 b), pois “felicidade é ação” (Pol., 1325 b)[33]. Mas como será que podemos atingir esta máxima felicidade ativa sobre a qual nos diz Aristóteles? Pois, “[...] entregar a própria sorte o que há de melhor e mais belo seria totalmente dissonante.” (Et. Nic., 1099 b). Ainda mais que a felicidade, do ponto de vista do filósofo, é uma atividade para ser exercida por toda a vida, é um caminho a ser trilhado, negando assim o nosso cancioneiro popular, que nos diz que a “felicidade não existe, o que existe são momentos felizes”[34]. Ora, dentro da perspectiva aristotélica os ditos momentos felizes são momentos de euforia, ou entusiasmo, de um estar fora de si. Porém, antes pelo contrário, para o filósofo a felicidade não pode depender de momentos felizes, que nos levem para fora de nós mesmos. Visto que, para o filósofo, a felicidade exige um autocontrole de si, capaz de colocar-nos no caminho da felicidade, caminho este que só se completa efetivamente quando a vida do caminhante chega ao seu final: O bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades da psykhé em conformidade com a capacidade, e se há mais de uma capacidade, em conformidade com a melhor e mais completa entre elas. Mas devemos acrescentar que tal exercício ativo deve estender-se por toda a vida, pois uma andorinha só não faz verão (nem o faz um dia quente); da mesma forma um dia só, ou um curto lapso de tempo, não faz um homem bem-aventurado e feliz. (Et. Nic., 1098 a). Então, como podemos chegar a adentrarmos no caminho da felicidade? Nosso filósofo não esquece que, em meio à miséria, isto seria muito difícil, visto que “[...] a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor das hipóteses não é fácil praticar belas ações sem os instrumentos próprios.” (Et. Nic., 1099 a). Mas não é só isso, pois encontramos homens extremamente abastados e poderosos aos quais não podemos chamar de felizes, antes pelo contrário. Como se vê, se é verdade que o dinheiro não traz felicidade, também é verdade que, sem condições materiais adequadas, dificilimamente alguém poderá chegar a ser feliz. Mas, então, o que podemos fazer para sermos felizes? Esperarmos a sorte? A graça divina? Ou será que podemos aprender a sermos felizes? Antes de tudo, penso que o leitor atento pode estar se perguntando: “Ora, Fausto dos Santos não disse que, em se tratando de Educação, o livro que mais nos interessaria seria a Política de Aristóteles? Mas, ao que parece, até aqui, falou-se mais da Ética a Nicômaco do que da primeira obra referida”. Sim, dito desta maneira, nosso querido leitor atento tem razão. Porém, tenho lá a minha também. O caso é que a Ética é uma ciência subordinada à Política. Na constituição de cada uma das duas ciências a outra se encontra inexoravelmente presente. Como bem expressa D. J. Allan: Aristóteles tem em mente uma investigação dupla em que cada uma das partes se articula e implica a outra. Se nos perguntarmos que tipo de organização política é a melhor, achar-se-á que o único critério de avaliação é o bem estar dos homens individuais. Se começarmos por considerar qual é a melhor vida para o indivíduo, seremos forçados a tomar em consideração, por seu turno, a sua necessidade de associação permanente com os outros. (Allan, D.J., 1983, p. 151). Dito de outra maneira, assim como não há ética sem política, também não há política sem ética: “É evidente, então, que a mesma vida deve ser melhor tanto para cada ser humano individualmente quanto para as cidades e a humanidade em geral.” (Pol., 1325 b). Nossa! Como podemos aprender com Aristóteles, não é mesmo? Então, continuemos. Como já sabemos, a felicidade da qual nos fala Aristóteles é aquela alcançável pelo homem e, portanto, é do esforço humano que ela depende; não do acaso, da sorte, nem mesmo da graça divina. Dessa maneira, a eudaimonía é uma potencialidade humana que só se atualizará nos seus diversos graus através de uma preparação (paraskheuázo) específica: a educação (Cf. Et. Nic., 1180 a). Formação (paidéia) essa que, na perspectiva do filósofo, deve começar desde a mais tenra infância, tendo sempre em vista a otimização plena das potencialidades de cada indivíduo, não restringindo, portanto, as melhores possibilidades do seu ser; o que significaria um processo de desumanização. Da mesma forma, ainda em relação ao télos educativo, é certo que o ser humano deve ser preparado para “dedicar-se aos negócios e à guerra” (Cf. Pol., 1333 a), contudo, deve ser mais preparado ainda para “viver em paz e no lazer” (Cf. Pol., 1333 a). Tanto quanto deve estar preparado para saber “fazer o que é necessário e útil, mas deve preferir o ótimo” (Cf. Pol., 1333 a), ou seja, o belo e o bom. Os primeiros cuidados PARA ARISTÓTELES a paidéia dos primeiros anos de vida deve ser “[...] orientada no sentido de exercer uma influência preponderante em relação ao vigor físico.” (Cf. Pol., 1336 a). Daí a importância dedicada à alimentação e aos movimentos físicos, tanto quanto à exposição das crianças ao meio ambiente. Aqui, pode-se dizer, vale uma regra aristotélica que não vale só aqui, mas que tem a sua vigência no decorrer de todos os aspectos da nossa vida: Orthós lógos (a medida certa). Esse é um dos princípios norteadores da Ética aristotélica, justamente aquele que efetivará a phrónesis (prudência). Como? Evitando a extremidade dos exageros, nem para mais, nem para menos[35]. No nosso caso específico, fazendo com que evitemos tanto o excesso de zelo para com nossas crianças, quanto o desleixo nos cuidados que elas exigem, ambos extremamente prejudiciais para a formação dos pequeninos. Passada essa primeira fase após o nascimento – que Aristóteles não precisa em termos cronológicos, mas podemos pressupor que dure até as crianças conseguirem andar com segurança e falar com desenvoltura – até os cinco anos de idade, ainda “[...] não é aconselhável encaminhá-las a qualquer espécie de estudo ou afazeres compulsórios [...]” (Cf. Pol., 1336 a), ainda que não devamos deixá-las cair na indolência corporal, pois isto seria prejudicial ao desenvolvimento corporal das crianças. O que poderia ser evitado “por meio dos jogos infantis” (Pol., 1336 a), apropriados e ordenados conforme o grau de desenvolvimento dos infantes. Também “convém contar às crianças nesta idade” (Pol., 1336 a) estórias e fábulas, desde que estejam sob os cuidados da autoridade devida: o Paidonómos – o Legislador Infantil (Cf. Pol., 1336 a). Não apenas nos contos infantis, mas em relação a todos os aspectos da vida das crianças, o Paidonómos deve estar atento para evitar que elas entrem em contato, “mais do que qualquer outra coisa” (Pol., 1336 b), com as inconveniências da obscenidade; seja ao presenciarem conversas indevidas ou serem expostas a determinadas expressões artísticas, como a pintura e o teatro. Pois, para Aristóteles, o uso da linguagem obscena, levianamente, facilmente se transformará em atos obscenos (Cf. Pol., 1336 b). Ao fim e ao cabo, o filósofo recomenda que não sejamos insensatos com nossas crianças, para que não formemos seres humanos maus e depravados, mas antes, pessoas educadas para o que de melhor o télos humano possa alcançar. Educação essa que, até os cinco anos de idade, é dada em casa, onde as crianças devem ser criadas obrigatoriamente até os sete anos de idade (Cf. Pol., 1336 b). Para Aristóteles, dos cinco aos sete anos de idade, as crianças já poderão frequentar as aulas, mas ainda não de maneira formal, como serão conduzidas a fazê-lo mais tarde. A educação dos jovens ARISTÓTELES AGORA investigará a educação dos jovens. Juventude (neótes), esta que o filósofo divide em dois períodos: a) dos sete anos até a puberdade; b) da puberdade até os vinte anos (Cf. Pol., 1337 a). No entanto, não começa propriamente pelas práticas pedagógicas, mas, antes, pela política educacional e pela sua gestão. Visto que “[...] ninguém contestará que a educação dos jovens requer uma atenção especial do legislador, pois a negligência das cidades a este respeito é nociva aos respectivos governos.” (Pol., 1337 a). Se alguém ainda tinha dúvidas, esqueça-as. Sim, a educação é sempre uma questão política! O que Aristóteles deixa-nos perceber ainda mais, mostrando a relação intrínseca que há entre a forma de governo de um determinado Estado e a educação que o sustenta. Ouvindo as suas próprias palavras: A educação deve ser adequada a cada forma de governo, porquanto o caráter específico de cada constituição a resguarda e mesmo lhe dá bases firmes desde o princípio – por exemplo, o caráter democrático cria a democracia e o caráter oligárquico a oligarquia, e o melhor caráter sempre origina uma constituição melhor. (Pol., 1337 a). Aqui não podemos deixar de citar a preocupação de alguns pensadores educacionais contemporâneos como, por exemplo, Dermeval Saviani, que nos alerta para uma visão ingenuamente salvífica, mas corrente, da educação, como se ela sozinha pudesse redimir todos os problemas sociais, atribuindo-se “[...] à educação um conjunto de papéis que no limite abarcam as diferentes modalidades de política social.” (Saviani, 2008, p. 27). Mais uma vez: educação e política fazem parte inexoravelmente do mesmo processo vital, ainda que resguardem as suas idiossincrasias. Portanto, se um determinado Estado possui um governo injusto, é certo que a sua educação também assim o será, e vice-versa, obviamente. Sigamos com Aristóteles, então. Para o estagirita a educação formal neste período deve ser uma obrigação do Estado (pólis) e “necessariamente uma só e a mesma para todos” (Pol., 1337 a). Pois a paidéia só será um bem para o indivíduo se, antes de tudo, for um bem comum. “É claro, portanto, que tem de haver uma legislação pertinente à educação e que ela deve ser um encargo público.” (Pol., 1337 a). Isto posto, Aristóteles passa a investigar as práticas curriculares, onde primeiramente constata as “dúvidas embaraçosas” (Pol., 1337 b) e os desacordos que tal tema suscita. A princípio, o filósofo constata, entre as diversas teses em relação ao que se deve ensinar aos jovens, que os conhecimentos úteis (khrésimoi) são, de fato, importantíssimos para a vida e, portanto, devem ser ensinados. Contudo, não ao ponto de reduzir o télos da educação às estreitas possibilidades daquilo que se mantém apenas e tão somente no nível do utilitário em nossa vida comezinha, como se o útil fosse um fim em si mesmo. Sempre empregamos os conhecimentos úteis tendo em vista os seus resultados. Assim, se a educação nos prender apenas aos conhecimentos úteis, tal qual o ensino meramente tekhnikós (profissional) que, inclusive, pode ser que não sirva apenas aos nossos interesses, mas, sobretudo, aos interesses de outrem, que podem até mesmo ser contrários aos nossos, que realizamos de fato a ação, não teremos condições de aprender as qualidades éticas (areté) capazes de nos levar para o caminho do verdadeiro télos da vida humana, este sim, um fim em si mesmo. Como já sabemos, a felicidade, sem a qual degradamos tanto o nosso corpo quanto a nossa mente (psykhé), ou seja, perdemos a liberdade, nos desumanizamos. Ao fim e ao cabo, em relação aos conhecimentos úteis, tudo vai depender da finalidade que eles se propõem: se ensinados para serem realizados apenas servilmente, ou tendo em vista as qualidades éticas (Cf. Pol., 1337 b). Dito isso, Aristóteles prossegue analisando a paidéia da sua época. Vejamos o que ainda tem a nos dizer. O filósofo começa dizendo que “há quatro ramos de educação” (Pol., 1337 b) em seu tempo: grammatiké (gramática), gymnastiké (ginástica), graphiké (desenho) e mousiké (música). Sendo que “[...] a gramática e o desenho são consideradas úteis na vida e com muitas aplicações, e se pensa que a ginástica contribui para a bravura. Quanto à música, todavia, levantam-se algumas dúvidas.” (Pol., 1337 b). É sobre tais dúvidas em relação à música que Aristóteles daqui para frente ocupar-se-á. Revela-nos, conjuntamente, uma dimensão humana que foi sendo historicamente reprimida, ao ponto de ser praticamente suprimida nas sociedades contemporâneas, onde, conforme o ditado que reflete os interesses do modo de produção vigente, apenas e tão somente o trabalho é que dignifica o homem. Aqui as palavras-chave são, além de mousiké, é claro, skholé, e a sua oposição askholía. Ora, a primeira já sabemos o que significa em nossa língua materna, música, que podemos tomar, assim como Aristóteles faz preferencialmente na Política, como música mesmo, cantada ou instrumental apenas, ou, pois o filósofo também anuncia tal possibilidade, como qualquer uma das artes sobre as quais as Musas[36] presidem, ou seja, as artes de uma forma geral, “na fecunda exaltação da Vida e da Alegria” (Torrano, 1995). Mas e as palavras skholé e a sua negação askholía, como podemos traduzi-las? Comecemos pela segunda, askholía, que facilmente podemos traduzir por negócio, assim como faz o tradutor da edição em português que estamos seguindo, Mario da Gama Kury. No entanto, para skholé, não poderemos seguilo, pois ele usa a palavra lazer. Muito provavelmente querendo evitar a conotação negativa que a tradução mais apropriada (ócio) tem em nossa sociedade, onde, ao que tudo indica, apenas o trabalho (negócio) é valorizado positivamente. No modo de produção da existência humana vigente – o capitalismo de massa –, o lazer (ócio) até chega a ser valorizado, mas apenas quando, gerenciado, acaba por negar-se a si mesmo, tornando-se também um negócio, com a chamada indústria do lazer e do entretenimento. Aí, então, profissionalizando-se, gerando oportunidades, passando a controlar e a lucrar até mesmo com o nosso escasso tempo livre do trabalho alienado, o lazer (ócio) transvaloriza-se em negócio sério[37] (Cf. Jordão, 2007) e, por isso, aceitável. Todavia, voltemos a Aristóteles, para quem o ócio é mais dignificante do que a sua negação, o negócio, e que por isto, pela sua importância, deve estar presente no currículo educacional, para que os jovens aprendam a aproveitar o tempo livre com o melhor produzido pela psykhé, não desperdiçando tamanho bem com futilidades que não confluem de maneira alguma para a felicidade humana. Como se confirma, a paidéia aristotélica visa à integralidade hilemórfica (corpo e mente) das potencialidades do ser humano, não a sua fragmentação apequenadora, como faziam alguns povos antigos e muitos de nós contemporâneos, deixando os estudantes “[...] ignorantes em relação a outras partes indispensáveis da educação, fazendo dos jovens meros trabalhadores braçais, porque pretendem torná-los úteis à sociedade em uma única tarefa.” (Pol., 1338 b). Não esqueçamos que, para o nosso filósofo, o fim último (télos) da vida humana, para o qual a educação exerce um papel fundamental, é a felicidade. Felicidade esta que deve ser sempre guiada pelo comedimento, pelo não exagero, em grego, orthós lógos. Portanto, “[...] não se deve dirigir a educação num sentido único, ou mais num sentido que nos outros.” (Pol., 1338 b). Educação para o ócio (lazer) PELA CARGA IDEOLÓGICA com a qual essa palavra chegou até nós, é preciso esclarecer o que significa o ócio (skholé) para Aristóteles, esta disciplina curricular que consta da sua política educacional. Evidentemente que não é um mero não fazer. Aliás, como se isso fosse possível para um ser humano, nada fazer. Não é toda frase significativa que tem um referente. A vida humana é sempre um devir ativo, gramaticalmente estamos sempre no gerúndio. Não é também dedicando-nos aos jogos, por exemplo, àqueles ditos de azar, que fruiremos da especificidade de tal ócio. Pois, para o filósofo, a finalidade dos jogos é fazer descansar (anapaýo). Ora, mesmo que o descanso seja importante, ainda mais para quem está envolvido pelos negócios, não estamos nesta vida simplesmente para descansar. Por aqui, há coisas muito melhores para se fazer, principalmente em nossos momentos de ócio. Já que o ócio do qual nos fala Aristóteles “[...] parece conter em si mesmo o prazer, a felicidade e a bem-aventurança de viver.” (Pol., 1338 a). Dessa maneira, alguém que só pensa em negá-lo não poderá atingir tais desígnios, os mais significativos para a vida humana, pois isto não está ao alcance do homem que corre atrás de algo tendo em vista outro algo, como o homem de negócios. Aqui, para a educação para o ócio, Aristóteles não está procurando algo que seja secundário para a existência humana, como as formas de conhecimento “cultivadas como necessárias e como meios para atingir outros fins” (Pol., 1338 b). Antes pelo contrário, quer que se eduque os jovens para que ocupem o tempo livre com atividades prazerosas que os levem à felicidade, finalidade em si mesma, télos último e primeiro especificamente humano. Ora, mas de que tipo de prazer e de felicidade ligados ao ócio são estes dos quais nos fala Aristóteles? Afinal, sabemos que as pessoas buscam o prazer das mais variadas formas, até mesmo naquelas nitidamente nocivas, tanto para o seu corpo quanto para a sua mente. O filósofo também sabe disso, que “[...] nem todos homens definem este prazer da mesma forma, cada um o concebe segundo a sua própria natureza e o seu próprio caráter.” (Pol., 1338 a). Não é justamente por isso que a educação para o ócio integra o currículo da sua política educacional? Se não tivermos a possibilidade de apreender a utilizar da melhor maneira possível o nosso tempo livre, assim como aprendemos os demais ramos do conhecimento, como iremos saber como fazê-lo, em vista do prazer e da felicidade que ele pode nos proporcionar? É por isso que o ócio (skholé) proposto por Aristóteles não se estende a toda e qualquer atividade, mas apenas e tão somente àquelas ligadas aos ramos do conhecimento e da educação que se dedicam ao aprimoramento intelectual (têi manthánei) que podemos prazerosamente alcançar em nossos momentos de lazer, tornando-nos seres humanos cada vez melhores e, portanto, cada vez mais serenos e corajosos no caminho da felicidade. Tais ramos do conhecimento apropriados ao ócio já sabemos quais são: de uma maneira geral, todos aqueles ligados às musas, ou seja, as artes. Aristóteles, na Política, investiga de maneira especial, das artes, a música. A educação musical AGORA QUE JÁ sabemos o que é propriamente o ócio para Aristóteles e que ele se estabelece através de uma educação voltada para as artes, é preciso continuar seguindo o filósofo para compreender as especificidades de tal educação. Educação inclusa no seu projeto político pedagógico “[...] não por sua utilidade ou necessidade, mas por ser libertadora e auspiciosa.” (Pol., 1338 b)[38]. Afinal, “[...] buscar a utilidade em qualquer circunstância é incompatível com os homens magnânimos e livres.” (Pol., 1338 b). Eis, portanto, a primeira indagação do filósofo em relação ao estabelecimento curricular da música: “[...] em qual dos três tópicos a música é mais poderosa: na educação, na diversão ou no entretenimento.” (Pol., 1339 b). A música “parece participar da natureza de todos eles” (Pol., 1338 b). A diferença se dá a partir da finalidade para a qual está destinada em cada um desses tópicos. A música como diversão tem por finalidade, segundo Aristóteles, o descanso, o alívio “para as penas resultantes do esforço” (Pol., 1339 b), cumprindo agradavelmente tal papel como um phármakon (remédio). A música também está presente nos entretenimentos. Sendo elevada e agradável, tem por fim, por exemplo, alegrar as festas. No entanto, para o estagirita, ainda que apropriada para as referidas circunstâncias, a música em tais situações não é buscada por aquilo que ela pode nos dar por si mesma, mas apenas por causas acidentais, e, apenas por isso. Empregada em vista desses fins, não teria cabedal suficiente para pertencer à educação para o ócio constante do currículo do projeto político pedagógico de Aristóteles, que tem por finalidade o aprimoramento intelectual da juventude. Por isso continua indagando “[...] se a natureza desta arte não é algo mais importante do que a aparência resultante do uso que se faz dela [...]” (Pol., 1340 a) nessas situações. Se além do prazer inerente à música, que todos são capazes de perceber, ela não é capaz de comunicar-nos mais nada. É isto que o filósofo está se perguntado. A resposta não tarda: sim, prazerosamente, a música é capaz de influenciar o éthos da nossa psykhé, ou seja, ela é capaz de ampliar a nossa compreensão do mundo e, portanto, influenciar os nossos hábitos, a nossa maneira de viver. Seguindo a teoria mimética da arte, já elaborada por Platão e seguida pelo próprio Aristóteles, para os quais a arte é uma imitação da realidade, o filósofo nos diz que, quando ouvimos música, quer cantada ou apenas instrumental, “somos levados a um estado emocional equivalente à realidade” (Pol., 1340 a) das disposições da psykhé que elas imitam. Portanto, a música nos leva prazerosamente a compreender tais disposições como o amor e o ódio, a cólera e a doçura, a coragem e a covardia, a melancolia e o entusiasmo “[...] e todos os sentimentos antagônicos das qualidades éticas, correspondentes com mais aproximação à verdadeira natureza destas qualidades.” (Pol., 1340 a). Assim, dando resposta ao seu questionamento inicial, Aristóteles afirma: Destas considerações emerge a evidência de que a música tem o poder de produzir um certo efeito ético na mente, e se ela tem este poder, é óbvio que os jovens devem ser encaminhados para a música e educados nela. (Pol., 1340 b). Mais apropriada ainda para os jovens, e continuará sendo na vida adulta, por exercer tal poder prazerosamente. Neste momento, já estando suficientemente fundamentado o ensino da música constante da educação para o ócio, nosso filósofo se pergunta como e até onde a música deve fazer parte da formação dos jovens. A principal pergunta aqui é se os jovens serão ensinados a serem apenas ouvintes, ou se aprenderão a cantar e a tocar algum instrumento também. Aristóteles pensa que para que possam aprender a apreciar adequadamente a uma execução musical, sabendo distinguir a boa da má, é preciso que tenham algumas noções de execução instrumental, “[...] pois é impossível, ou no mínimo difícil, ser um bom juiz do desempenho de uma arte que não se praticou.” (Pol., 1341 a). Porém, não esqueçamos que aqui está a se tratar da educação para o ócio, portanto não é o caso de uma educação musical que vise à profissionalização, não se trata de formar músicos que possam atuar profissionalmente, mas sim que possam distinguir a qualidade das músicas, das execuções e que também possam extrair alguma melodia de instrumentos de fácil execução (Cf. Pol., 1341 b). Por último, Aristóteles quer “[...] dedicar atenção também as harmonias e aos ritmos, e à questão de definir se para fins educacionais temos de usar todas as harmonias e todos os ritmos ou podemos estabelecer distinções.” (Pol., 1342 a). Dito de outra maneira: será que toda música é, em stricto sensu, educativa? Aristóteles diz que não. Dentro do contexto musical da sua época, diz que, evidentemente, só se deve usar aquelas músicas que correspondam ao princípio geral da educação para o ócio, o aprimoramento intelectual da juventude como condição para a ampliação da compreensão do mundo encaminhando o éthos da nossa psykhé rumo à felicidade. Pois é este o sentido da vida, ou ainda, só assim que a vida faz sentido. Como se viu, cabe a nós produzir tal sentido. Mas, para tanto, é preciso aprender o que devemos fazer de nossas vidas, até mesmo nos momentos de ócio. Referências ALLAN, D. J. A Filosofia de Aristóteles. Lisboa: Presença, 1983. AMARAL Fº, Fausto dos Santos. 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É Arendt quem não nos deixa esquecer que “[...] a grande obra-prima não terminada de Tomás, a Summa Theologica, pretendia originalmente servir para objetivos pedagógicos, como manual para as novas universidades.” (Arendt, 2008, p. 379). Como nos diz Grabmann, Tomás sempre escreveu tendo em vista a educação: Distinguem-se, com efeito, entre as obras de S. Tomás, as que se originam de sua atividade acadêmica, isto é, as que foram primeiro ensinadas na cátedra, que nasceram nas salas de aula, publicadas em seguida por ele; e as que não tiveram origem imediata em seu ensinamento teológico. Entretanto, mesmo nestas, o autor procura, sobretudo, instruir seus alunos; bem que não tenham nascido da escola e na escola, são compostas para a escola. (Grabmann, 1944, p. 12). Não é por menos que, geralmente, quando a Igreja se pronuncia sobre a Educação, o Aquinate é constantemente lembrado, e os católicos envolvidos com o magistério conclamados a seguir as suas pegadas (Cf. Paulo VI, GE). A julgar, pois, pelas palavras de Leão XIII, para a Igreja, “[...] entre todos os doutores escolásticos, brilha, como astro fulgurante, e como príncipe e mestre de todos, Tomás de Aquino.” (Leão XIII. Aeterni Patris, 21). E isto é assim porque nele, em última instância, “o Magistério da Igreja viu e apreciou a paixão pela verdade” (João Paulo II. Fides et Ratio, IV, 2, 44), refletida, sem sombras de dúvida, em sua atividade docente, pois, como se diz: “Tomás não perdia de vista as necessidades científicas de seus alunos, porque se consagrava com toda a alma e a mais generosa predileção ao ensino acadêmico, de que tinha tão alta ideia.” (Grabmann, 1944, p. 15). É tendo isto em vista, levando em consideração não exatamente a santidade de Tomás, mas o reconhecimento de ser um professor por excelência, granjeado desde o seu exercício docente[39], que vamos escutar algumas de suas dicas sobre o modo de estudar (De modo studendi). Carta onde o nosso Doctor Ecclesiae[40] responde às perguntas de um jovem frei dominicano, ansioso por adquirir “o tesouro do conhecimento” (Tomás De Aquino, 1998, p. 303). Afinal, “[...] a leitura da obra de Tomás de Aquino, especialmente seus escritos sobre a educação, são fundamentais à formação docente na atualidade.” (Oliveira, 2009, p. 75). Até mesmo porque, queiramos ou não, saibamos ou não, “[...] a maior parte dos temas propostos por Tomás são hoje doutrina familiar, se não comum.” (De Libera, 1998, p. 405); com certeza no âmbito do cristianismo, mas fora dele também. Sua obra, como de resto a obra de todo grande pensador, ainda que situada “[...] num tempo e num espaço determinados, sob o signo de contingências históricas precisas [...]” (Torrel, 2011, p. XV), “permanece perpetuamente aberta para o futuro” (Gilson, 1995, p. 671). Mas antes, vejamos alguns dados sobre a vida deste grande professor. Tomás de Aquino nasceu em 1225, no castelo de sua família, em Roccasecca, na Itália meridional, próximo a Nápoles. Em consonância com os costumes da época, sendo o filho mais novo da família, na idade oportuna foi encaminhado à formação eclesiástica no mosteiro beneditino de Monte Cassino, nas proximidades de sua casa, o que se deu por volta de 1230. Porém, a contragosto dos seus pais – Landolfo de Aquino e Teodora –, que, certamente, por questões de poder político gostariam de vê-lo abade em Monte Cassino, em 1244 Tomás entra para a Ordem dos Dominicanos. Por conta disso, inconformados, seus familiares tramam o seu sequestro e, após realizá-lo, submetem o jovem a uma espécie de prisão domiciliar em Roccasecca, tentando a todo custo fazê-lo mudar de ideia[41]. Tal situação dura aproximadamente um ano, quando, então, percebendo a determinação de Tomás, a família deixa-o voltar a conviver com os dominicanos, que o enviam a Paris para dar continuidade aos seus estudos, onde permanece até 1248, sob a orientação de Alberto Magno. Após este período, acompanhando seu mestre, vai para Colônia, dando continuidade aos seus estudos e ao seu trabalho de assistente, além de exercer o cargo de bacharel bíblico[42]. Etapa decisiva em sua vida, também data desta época a sua ordenação sacerdotal. Em 1252 está de volta a Paris, só que agora também exerce o cargo de bacharel sentenciário[43], outro passo necessário para a obtenção do título de mestre, concedido a Tomás em 1256. Continuou lecionando em Paris até 1259, indo, no início do mês de junho, “[...] participar dos trabalhos de uma comissão encarregada de promover os estudos [...]” (Torrel, 2011, p. 113) em Valenciennes. Rumando em seguida para a Itália (Nápolis, Agnani, Orvieto, Roma e Viterbo), onde permanece até 1268, lecionando, pregando e compondo as suas obras. Retornou, então, a Paris, exercendo suas atividades até o seu regresso à Itália, o que se dá em 1272. Em 7 de março de 1274, aos 49 anos de idade, Tomás de Aquino veio a falecer em Fossanova, a caminho do IV Concílio de Lyon, deixando para a posteridade uma obra vastíssima, que pode ser classificada da seguinte maneira: sínteses teológicas, questões disputadas, comentários bíblicos, comentários de Aristóteles, outros comentários, escritos de polêmica, tratados, cartas e pareceres, obras litúrgicas, sermões e preces. Aqui, como já foi dito, interessa-nos, sobretudo, uma carta intitulada De modo studendi, que teria sido redigida por Tomás como resposta às perguntas de um certo frei João, jovem dominicano que, podemos supor, admirador do já afamado professor, estava desejoso por seguir os seus passos. Sobre a carta, antes de tudo, cabe dizer que, como de resto uma certa quantidade de escritos do nosso Doutor da Igreja, nem todos os especialistas consideram-na um texto legítimo, tomando-a umas vezes por inautêntica, outras como duvidosa, havendo, no entanto, aqueles que a consideram autenticamente de Tomás[44]. Legítima – como a considera Lauand (Cf. 1998, p. 299) – ou não, ao nosso estudo cabe, já adentrando no texto, escutar o que ele (o texto) tem a nos dizer; mesmo por que, uma das dicas de Tomás é justamente esta: “Não atentes a quem disse, mas ao que é dito com razão e isto, confia-o à memória.” (Tomás de Aquino, 1998, p. 304)[45]. Afinal, a validade ou não do que é dito não depende do sujeito enunciador, mas, antes, da relação que se estabelece entre o enunciado e a possibilidade de mundo que ele contém. É por isso que mais tarde, já no século XX, Paul Ricoeur vai nos ensinar que a compreensão de um texto, a leitura, pouco ou nada tem a ver com a apreensão da intencionalidade do seu autor, mas sim com a habitação de um mundo possível; dito de outra maneira, “[...] com o processo pelo qual o desvelamento de novos modos de ser proporciona ao sujeito uma nova capacidade de a si mesmo se conhecer.” (Ricoeur, 1987, p. 106). É exatamente por isso que ainda nos interessa, estudantes do século XXI, a carta de Tomás. No caso aqui, frei João somos nós, todos nós, cada um que deseja adentrar na “adega do vinho da sabedoria” (Tomás de Aquino, 1998, p. 303). Contudo, antes dos conselhos propriamente ditos, Tomás escreve um breve preâmbulo, onde já faz constar algo de fundamental para quem quer dedicar-se aos estudos: “[...] deves optar pelos riachos e não por entrar imediatamente no mar, pois o difícil deve ser atingido a partir do fácil.” (Tomás de Aquino, 1998, p. 303). Como se vê, antes das dicas sobre como estudar propriamente ditas, o Aquinate advertenos que “[...] a formação intelectual é mais um contínuo processo do que pacífica posse decorrente de uma ação que se perfaz de uma vez.” (Lauand, 1998, p. 300). Tal qual o prisioneiro da Caverna de Platão que, degrau por degrau, avança gradativamente. O estudante, para Tomás, ainda que possa, ou até mesmo deva aspirar à imensidão marítima, deve conscientizar-se de que tal projeto, sendo um processo contínuo, demanda tempo, muito provavelmente o tempo de uma vida. Até mesmo porque, quando estudamos de fato, é a vida, toda ela, que está em jogo: a integralidade da vida e não apenas uma parcela das suas potencialidades. Não é à toa que, incitado a dar dicas sobre o modo como se deve proceder nos estudos, antes de fazê-lo Tomás escreva: “Eis o que te aconselho sobre como deve ser tua vida.” (Tomás de Aquino, 1998, p. 303). Como nos diz Lauand: Se um grande educador de hoje fosse consultado sobre ‘o modo de estudar’ ou sobre como ‘adquirir conhecimentos’, certamente a sua resposta dirigir-se-ia a questões técnicas, programáticocurriculares, motivacionais... O conhecimento é, para nós, compartimentado, separado da existência. Já Tomás, que pensa no saber como algo integrado à existência, ante as mesmas perguntas, aconselha ‘sobre como deve ser a tua vida’. (Lauand, 1998, p. 301). Como podemos ver, para o Aquinate, estudar diz respeito à totalidade da existência humana, englobando, em sua linguagem, tanto a vida contemplativa quanto a vida ativa (Cf. Tomás de Aquino, 2004, p. 60-61). Para nós, que vivemos em uma sociedade aligeirada e fragmentada, onde frequentemente estudar diz respeito mais à urgência da instrução técnica para a inserção no mundo do trabalho do que à formação integral do homem – condição de possibilidade para a efetivação da liberdade[46] –, parece ser diferente. Ao que tudo indica, acostumamo-nos a uma educação que, ao invés de promover a totalidade das nossas possibilidades, limita-nos, transformando-nos em meros instrumentos do modo de produção hegemonicamente vigente. Em definitivo, para Tomás, o objetivo da educação não é apenas e tão somente o conhecimento de um determinado setor de objetos, mas, sobretudo, “a própria realização do homem” (Lauand, 1998, p. 303), que se dá através do conhecimento concebido em sua integralidade orgânica. Mas, então, de uma vez por todas, vejamos algumas das dicas que o Aquinate ainda hoje pode nos dar em relação aos estudos, ou seja, em relação à vida. A primeira delas é a seguinte: “Exorto-te a ser tardo para falar e lento para ir ao locutório.” (Tomás de Aquino, 1998, p. 303). Ora, quem estuda, põe-se imediatamente em relação com o outro através da escuta, seja em uma sala de aula ou através da leitura. Só estuda de fato aquele que reconhece o seu desconhecimento, a sua incompletude. E, portanto, pode desejar aquilo que não tem, buscando no outro uma nova possibilidade de si. Daí que estudar é antes um despojamento de si em vista da ampliação das possibilidades do eu, ao invés da afirmação de um ego. Despojamento que não implica, dessa maneira, perda alguma, mas antes uma conquista, tal qual se dá na passagem do senso comum à consciência filosófica, do saber popular à cultura erudita[47]. Mas, para tanto, como ressalta Tomás, é preciso saber auscultar, pois, como já dizia Heráclito, quem não sabe ouvir, não sabe falar (Cf. Heráclito, fr. 19); o que, ao nosso tempo, demarcado pelo falatório da compreensão mediana, que busca na publicidade a visibilidade do ego reconhecido, dispensando “a tarefa de uma compreensão autêntica” (Heidegger, 1998, p. 229), pode não ser um empreendimento tão fácil assim. Talvez, para tanto, valha um outro conselho do Aquinate que se quer comentar, vejamos. “Ama frequentar tua cela” (Tomás de Aquino, 1998, p. 304). Pois bem, cela, aqui, não é lugar de aprisionamento, mas antes de libertação. É o espaço que abriga o resguardo próprio da introspecção necessária ao estudo. Não é preciso um grande aparato para tal concentração. Até mesmo porque, no mais das vezes, o excesso dispersa, e quem ama deseja a reunião. Não esqueçamos que, “evitar, sobretudo, a dispersão intelectual” (Tomás de Aquino, 1998, p. 304) é outro conselho da carta de Tomás ao jovem dominicano que tanto deseja conhecer. Mas, para isso, é preciso ter consciência de que estudar requer a frequência do convívio. Na medida em que o conhecimento doa, ele demanda doação. Quanto mais lhe dedicamos atenção, tanto mais ele atende. Daí, ainda mais uma dica: “Não te metas em questões e ditos mundanos.” (Tomás de Aquino, 1998, p. 304). Compreendamos mundano, aqui, sobretudo como aquilo que dispersa a disposição para os estudos, não a alienação da vida. Quem estuda, estuda em meio à vida, não suspende a sua existência. Mas também é fato que, em meio à azáfama e ao deslumbre do chamamento das coisas no mundo, o desvio é uma das nossas possibilidades mais próprias. Da mesma maneira como não há atalhos que encurtem o caminho dos estudos, pelos desvios não apenas alongamos o nosso trajeto, mas corremos o risco de nunca alcançarmos o destino almejado (télos). Para mantermo-nos no caminho adequado na busca pelo conhecimento, ajuda-nos um outro conselho de Tomás: “Não descuides do seguimento do exemplo dos homens santos e honrados.” (Tomás de Aquino, 1998, p. 304). Afinal, antes de nós, muitos já trilharam o mesmo caminho, dedicando-se ao estudo. São estes que devemos seguir. Não exatamente para andarmos apenas sobre suas pegadas, mas, antes, para sabermos que é possível persistir no caminho. Até mesmo porque, na persistência da caminhada, em algum momento, não haverá pegadas a seguir: somos nós que deveremos deixar nossas próprias marcas. Tal qual, em algum instante, aconteceu com aqueles que vieram antes de nós, e que devem, portanto, nos servir de exemplo. Agora, para que possamos, em algum momento, seguir o nosso rumo, abrindo o nosso próprio caminho, é preciso, antes, estarmos suficientemente abastecidos. O que Tomás não nos deixa esquecer, aconselhando-nos: “Esforça-te por abastecer o depósito de tua mente, como quem anseia por encher o máximo possível um cântaro.” (Tomás de Aquino, 1988, p. 304). E, para tanto, não há outra forma possível a não ser estudar. Por isso, “faz por entender o que lês e por certificarte do que for duvidoso” (Tomás de Aquino, 1988, p. 304). Ler, aqui, é antes de tudo intendo, o modo propriamente adequado de estender-se, expandindo as possibilidades do eu que, quando solipsista resta na ilusão. O que ilude é justamente o duvidoso que, no esforço de fechar-se sobre si mesmo na certificação do eu, ainda não se compreendeu na conjunção com o tu, ele, nós, vós, eles, para a qual a alteridade do mundo e dos textos convoca. Para nós, por fim, prestemos atenção, mais uma vez, ao que nos diz Tomás: “Não busques o que está acima do teu alcance.” (Tomás de Aquino, 1988, p. 304). Mas como saber o que está fora do nosso alcance? Ora, para descobrir isto, só há uma coisa a fazer: dedicar-se aos estudos, é claro. Pois bem, das 13 dicas que o Aquinate dá ao seu correspondente, frei João, ouvimos aqui nove delas, através das quais pudemos ver que a busca pelo conhecimento propriamente dito requer o direcionamento de uma vida. Assim, não é o caso de, por exemplo, prosseguir nos estudos tendo em vista apenas e tão somente a mera bonificação de quem, titulando-se, conta pontos para o mercado; mormente na Educação, onde o que vale, fundamentalmente, ao fim e ao cabo, é o que não se pode contar. É por tudo o que vimos e vemos que, ainda hoje, urge continuarmos a ouvir Tomás, que – assim como muitos dos nossos professores – “[...] consagrou aos seus alunos não somente a profundeza e a clareza de sua inteligência, mas ainda a pureza e a riqueza do seu coração.” (Grabmann, 1944, p. 54). Referências ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. AQUINO, Tomás de. De Modo Studendi. In: LAUAND, J. L. Cultura e Educação na Idade Média. Seleção, tradução, notas e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ______. Sobre o Ensino (De magistro). Tradução e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2004. CALO, Petro. Vita S. Thomae Aquinatis auctore Petro Calo. Tolosa: Edit. D. Prümmer O. P., 1911. DE BONI, Luis Alberto. Apresentação. In: ULLMANN, Reinholdo Aloysio. A Universidade Medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. São Paulo: Loyola, 1998. 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Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2008. TORRELL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e obra. São Paulo: Loyola, 2011. Descartes e a dúvida educativa Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos inatos, espontâneos, e a cabeça mais universal de todos eles, Aristóteles, já havia chegado a penetrar nas formas mais substanciais do pensar dialético. Entretanto, a nova filosofia, ainda tendo um ou outro brilhante mantenedor da dialética (como, por exemplo, Descartes e Spinoza), caía cada vez mais, influenciada principalmente pelos ingleses, na maneira metafísica de pensar. (Engels, 1941, p. 48). Não obstante ser chamado por Engels de “brilhante mantenedor da dialética”, Descartes, certamente, é o filósofo da dúvida, para a qual o seu método exige o constante retorno. Mesmo porque, sem a dúvida por princípio não chegamos à possibilidade de certeza alguma, da qual, imersos na historicidade que nos é própria, sempre cumpre duvidar. Como diz o poeta: “certezas o vento leva / só dúvidas continuam de pé” (Leminski, 2009, p. 38). É claro que sabemos que esta não é exatamente a imagem que, no mais das vezes, fazemos do pensador francês, conhecido, antes, por ser o filósofo da certitudo (certeza), pai da filosofia moderna. No entanto, talvez possamos, ou até mesmo devamos, cartesianamente, duvidar dessa hegemonia interpretativa, pois, mesmo que estejamos errados, parece que, ao que tudo indica, pela maneira como Descartes é visto, sobretudo em certos meios educacionais – ainda que por outro viés – não erramos sozinhos, ou, se erramos, pelo menos aqui, exercitaremos o pensamento, não o deixando anquilosar-se em meio às nossas confortáveis, mas incertas certezas. Afinal, suspeitamos que “[...] o status quase canônico de Descartes levou a que seu pensamento fosse assemelhado a uma gama de filosofias muito diferentes e recebesse uma ampla variedade de usos diversos e, muitas vezes, incompatíveis.” (Gaukroger, 1999, p. 23). Dessa maneira, queremos antes ressaltar os aspectos do pensamento do filósofo que talvez possam nos ajudar a pensar a Educação, ao invés de ficarmos apontando os seus possíveis pecados. Ainda que, como foi dito, possamos estar errados. Aliás, possibilidade constante de quem enfrenta o pensamento, como parece reconhecer o próprio filósofo da certeza: “[...] pode acontecer que me engane, e talvez não passe de um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes.” (Descartes, 1973, p. 38). Assim, mantendo-nos abertos para a possibilidade do erro, podemos ao menos saber que, no esforço da dúvida, filosofamos. Visto que: Nenhum ser cognoscente encontra-se, de modo necessário, tão firmemente e a cada instante à beira do erro quanto o filosofante. Quem não compreendeu um tal fato ainda não fez a menor ideia do que significa filosofar. (Heidegger, 2003, p. 24). Mas, antes de adentrarmos no pensamento do filósofo, procuremos saber, ainda que por mera curiosidade, um pouco que seja a respeito da sua vida. Descartes nasceu na França, em La Haye, hoje chamada de Descartes, próximo a Tours, em 31 de março de 1596. Filho de Joachim Descartes, conselheiro no Parlamento da Bretanha e Jeanne Brochard. De sua mãe, morta um ano após o seu nascimento, diz-se ter herdado a saúde um tanto quanto precária, sobretudo na infância, passada em sua cidade natal sob os cuidados de sua avó materna, Jeanne Sain. Com dez anos, portanto em 1606, foi para o prestigiado colégio jesuíta de La Flèche, com suas próprias palavras, uma “das mais célebres escolas da Europa” (Descartes, 1973, p. 38), permanecendo nesta instituição até 1614. E, como nos diz um biógrafo seu: O colégio desempenhou um papel central em seu desenvolvimento pessoal e intelectual, pois lhe serviu de lar durante oito anos formadores, além de lhe haver proporcionado sua única educação institucional significativa. (Gaukroger, 1999, p. 65). Em La Flèche estudou gramática, retórica, latim, grego, dialética (lógica), aritmética, música, geometria, astronomia, metafísica, filosofia natural e ética. Quando, então, com 18 anos, em 1614, completa seus estudos, indo em seguida para a Universidade de Poitiers, onde, em 1616, forma-se em direito civil e canônico. Após uma breve estada em Paris, em 1618 vai para Holanda, alistando-se como voluntário no exército de Maurício de Nassau. É nessa época que Descartes conhece Isaac Beeckman, que vai exercer [...] sobre o filósofo uma fascinação intelectual, dando à espontânea atração que ele sentia pelas matemáticas um alcance científico bem mais aberto do que aquelas aplicações técnicas consideradas tão pouco elevadas. (Rodis-Lewis, 1996, p. 42). Sobretudo, mostrando-lhes as possibilidades da ligação entre as matemáticas e a física. Em 1619, encontramo-lo, estimulado pela sua amizade com Beeckman, envolto em questões matemáticas e mecânicas. Planejando uma viagem para a Alemanha, onde pretendia se alistar no exército de Maximiliano da Baviera, deixa as tropas de Maurício de Nassau. É neste mesmo ano que Descartes, cada vez mais envolvido com a ideia do saber em sua totalidade, tem três sonhos que, de tão perturbadores, confluem para a determinação dos rumos que deveria dar a sua vida. Um deles foi procurar o conhecimento no “grande livro do mundo” (Descartes, 1973, p. 41). É assim que nos próximos anos encontraremos o filósofo vagueando por vários países da Europa, não deixando nunca de manter-se ocupado com as suas investigações: depois de abandonar Ulm, em 1620, estará na França entre 1622-1623, na Itália até 1625, voltando para França onde fica até 1628, indo então para a Holanda, onde permanece por vinte anos. Por lá, além de trabalhar proficuamente, nasce sua filha, Francine, em 1635, fruto de um relacionamento que tivera com a empregada de uma casa onde se hospedou em Amsterdã. Também neste período, por conta das suas obras, entra em várias polêmicas, sendo, inclusive, em 1643, ameaçado de ser expulso da Holanda e da queima das suas publicações. Isso só não ocorre devido à intervenção do príncipe de Orange. Lembremos que em 1633, após ficar sabendo da condenação de Galileu, temeroso, deixou de publicar alguns dos seus tratados. Após algumas idas e vindas entre a França e a Holanda, em 1649, a convite da rainha Cristina, vai para Suécia, onde é acometido por uma pneumonia, vindo a falecer em Estocolmo em 11 de fevereiro de 1650. Esta foi, resumidamente, a vida de Descartes: matemático, físico, astrônomo, botânico, anatomista, fisiologista, mas, acima de tudo, filósofo, pois sempre viu os diversos ramos do conhecimento a partir de uma totalidade fundante. Como nos diz Rodis-Lewis, “[...] ele é filósofo porque coordena as questões e, mais tarde, as soluções, graças a um sistema que lhe garante o fundamento.” (Rodis-Lewis, 1996, p. 48). Isso faz com que possamos perceber que o filósofo, ao se debruçar sobre questões particulares, já esteja “animado por um cuidado de unificação” (Rodis-Lewis, 1996, p. 49). É justamente por isso, por, permanecendo no particular, não vislumbrar a totalidade, que Descartes, apesar de sua admiração por Galileu, censura-o, dizendo que o afamado pisano “[...] buscou apenas as razões de alguns efeitos particulares, e assim construiu sem fundamento.” (Descartes, AT II, 380), ou seja, sem ter em vista a totalidade. Totalidade para a qual, certamente, o seu método aponta. Ora, se é de fato “[...] inquestionável a existência de uma dimensão filosófica na educação [...]” (Saviani, 2009, p. 11), dimensão essa que desempenha um “papel imprescindível na formação do educador” (Saviani, 2009, p. 11), na medida em que “toda educação deve ter uma orientação filosófica” (Saviani, 2009, p. 11), também é fato que tal orientação é dada sobretudo pela questão do método, que conflui de maneira determinante para a constituição do rigor necessário à reflexão pedagógica, pelo que, essa deve ser feita “sistematicamente, segundo métodos determinados” (Saviani, 2009, p. 21). Portanto, se a questão do método é de suma importância para a efetividade da reflexão nos meios educacionais, antes de rejeitarmos o pensamento de Descartes, não custa nada atentarmos para o que o filósofo tem a nos dizer sobre o método, visto que ninguém pode negar a importância filosófica do seu livro Discurso sobre o Método. Até mesmo porque, como sabemos, ainda que para negá-lo é preciso conhecê-lo. Assim como uma boa parcela da tradição filosófica sempre esteve inexoravelmente ligada a um claro intuito pedagógico, é certo que Descartes também tinha as suas preocupações educativas, voltadas, inclusive, não apenas para os doutos, mas também para aqueles que normalmente eram excluídos da formação científica. O que podemos constatar se atentarmos para o fato de que, em um período onde a grande maioria do conhecimento filosófico-científico era produzido em latim, nosso filósofo escreve a sua maior obra, o Discurso do Método, em língua laica, o francês; rompendo, assim, até mesmo com a hegemonia escolástica em relação à produção do conhecimento, ainda que não tenha sido o primeiro a fazê-lo. Tendo isso em vista, ouçamos o que Rodis-Lewis tem a nos dizer sobre o Discurso: Na verdade, a obra se dirige a todos, a fim de ajudar cada leitor a desenvolver, graças ao método, a razão igual em todos os homens. Foi escrita em francês, para ser acessível aos que desconhecem o latim: em outras palavras, a maioria das mulheres, assim como as pessoas simples, que não estudaram em escolas – o próprio Descartes não orientou um de seus criados, e um sapateiro da vizinhança, para as mais altas matemáticas? (Rodis-Lewis, 1996, p. 9). Dessa maneira, devido à repercussão do Discurso, podemos perceber a importância de Descartes para o processo de laicização e universalização do conhecimento. O próprio filósofo diz ter concebido a sua filosofia “de maneira que pudesse ser recebida em todo lugar, mesmo entre os turcos, sem ofender a ninguém” (Descartes, AT IX, 159), ou seja, independentemente da fé professada. Assim, “[...] a universalidade que a ideologia medieval queria obter pela catolicidade da fé cristã, Descartes pensa encontrá-la mediante o apelo ao ‘bom senso’.” (Granger, 1973, p. 27). Sendo, portanto, o seu método um caminho que todos podem seguir. Vejamo-lo, então. Buscando a eficiência do método na simplicidade da sua prática, Descartes, ao invés “dos inúmeros preceitos de que a lógica se compõe” (Descartes, [s.d], p. 39), propõe quatro passos para a consecução do seu caminho. O primeiro podemos chamá-lo de dúvida e consiste em: Jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. (Descartes, 1973, p. 45). Como primeiro passo, esta é a mola propulsora de toda e qualquer investigação, a dúvida, ou, dito em outras palavras, o questionamento rigoroso dos nossos pré-conceitos, condição sem a qual não passamos do senso comum à consciência filosófica, como nos diz Saviani, procedimento necessário para “elevar a prática educativa desenvolvida pelos educadores brasileiros” (Saviani, 2009, p. 2). O segundo momento do método de Descartes podemos chamá-lo de análise. Deixemos o próprio filósofo enunciá-lo: “[...] dividir cada dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las.” (Descartes, [s.d.], p. 40). Aqui, não esqueçamos de dizer que a divisão analítica é uma decomposição metódica, não uma dissolução ontológica do mundo. Não é o caso que nosso filósofo seja uma espécie de pós-moderno avant la lettre, possuindo uma concepção fragmentada do mundo; muito antes pelo contrário, a divisão é uma operação que só pode ser realizada por aquele que pressupõe a totalidade e, inclusive, tratando-se especialmente de Descartes, não quer perdê-la de vista. O que o terceiro passo do seu método só nos confirma, a síntese: Pôr ordem em meus pensamentos, começando pelos assuntos mais fáceis de serem conhecidos, para atingir, paulatinamente, gradativamente, o conhecimento dos mais complexos, e supondo ainda uma ordem entre os que não se precedem normalmente uns aos outros. (Descartes, [s.d.], p. 40). Dessa maneira, a síntese reúne, ordenando metodicamente, o anteriormente analisado, buscando a reconstituição do todo. Pressupõe, inclusive, a totalidade para além da mera consecução ordenatória dos casos. Só então, levando em consideração a percepção do todo, é que podemos ter a pretensão de termos auferido o conhecimento do que quer que seja. Isto seria assim, simplesmente, se, no entanto, não houvesse um quarto passo a ser seguido no caminho proposto por Descartes, a revisão: “[...] fazer, para cada caso, enumerações tão exatas e revisões tão gerais que estivesse certo de não ter esquecido nada.” (Descartes, [s.d.], p. 40). Ora, pensemos: só propõe uma revisão dos resultados de uma investigação qualquer aquele que, de uma forma ou de outra, não os considera evidentemente claros, ou seja, aquele para quem a dúvida é algo que anda sempre à espreita. Assim, podemos pensar que o método de Descartes, ao invés de nos levar linearmente à imobilidade das certezas, coloca-nos em movimento, na produtividade circular do constante questionamento. Não podemos minimizar o papel que a dúvida exerce sobre o pensamento do filósofo, que, reconhecendo a finitude do seu entendimento (Cf. Descartes, I, 36), afirma desejar inclinar-se antes “para o lado da desconfiança que para o da presunção” (Descartes, [s.d.], p. 15). Até mesmo porque esta é a grande certeza do filósofo: a dúvida, pensamento que fundamenta a singularidade da existência humana. Somos “uma coisa que pensa, isto é, que duvida” (Descartes, 1973, p. 107) antes de tudo. É assim que Descartes, pelo fato de “duvidar, podia concluir que existia” (Descartes, 1973, p. 110). Mas como é que nosso filósofo chega a essa certeza? Ora, duvidando de tudo. Vejamos. Após ter aplicado com sucesso o seu método para a resolução de questões referentes à geometria e à álgebra (Cf. Descartes, 1973, p. 48), nosso filósofo, depois de muito exercitar-se no método e sentindo-se maduro o suficiente para tanto – o que não deixa de ser um efetivo ensinamento pedagógico –, resolve enfrentar “a coisa mais importante do mundo” (Descartes, 1973, p. 49), ou seja, a questão da sua fundamentação ontológica, o questionamento radical sobre a possibilidade da constituição do real como tal. Assim, se a dúvida é para Descartes o primeiro passo para a possibilidade do conhecimento, e se a suspeita filosófica recai sobre a totalidade do real, nosso filósofo metodicamente começa a duvidar de tudo, dividindo analiticamente, como prescreve o seu método, a questão a ser enfrentada em suas partes constituintes, tomando por absolutamente falso tudo onde a menor dúvida ainda puder residir, buscando, dessa maneira, encontrar algo de certo, ou, se isto não for possível, procurando persistir nesta via “[...] até que tenha aprendido certamente que não há nada no mundo de certo.” (Descartes, 1973, p. 99). E, para atingir o seu intento, obviamente que não será necessário questionar todos os supostos conhecimentos particulares auferidos ao longo da vida, “o que seria um trabalho infinito” (Descartes, 1973, p. 93), bastando antes interrogar os princípios sobre os quais foram erigidos os supostos conhecimentos, “[...] visto que a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício.” (Descartes, 1973, p. 93). Tendo isto em vista, ainda que saibamos o quanto o pensamento do filósofo estruturou-se historicamente, como não poderia deixar de ser, a partir da tradição filosófica que o precedeu (Cf. Gilson, 1930), é justamente sobre esta tradição que recai a primeira suspeita de Descartes, ou seja, sobre tudo aquilo que aprendera com os seus mestres e com os seus estudos pessoais. Com suas próprias palavras: Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto. (Descartes, 1973, p. 93). Considerando, pois, duvidosa a tradição e, portanto, desqualificada para fundamentar a possibilidade do conhecimento, afinal, “[...] nada se poderia imaginar tão estranho e tão pouco crível que algum filósofo já não houvesse dito [...]” (Descartes, 1973, p. 44), Descartes passa a questionar o modo pelo qual supostamente entramos em contato com a realidade apreendendo-a: a percepção sensível. Chegando à conclusão de que os sentidos também não são suficientemente confiáveis ao ponto de poderem fundamentar a apreensão de algo verdadeiramente real, pois, se nos enganam às vezes, seguindo os seus preceitos, considerando que “[...] é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez [...]” (Descartes, 1973, p. 94), passa então a julgá-los completamente falíveis. Rejeitados os sentidos, a dúvida hiperbólica do nosso filósofo chega à matemática, com suas demonstrações e princípios aparentemente indubitáveis o suficiente para chegarmos ao conhecimento. No entanto, pensa Descartes, na medida em que “[...] há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de Geometria [...]” (Descartes, 1973, p. 54), inclusive ele próprio estando “sujeito a falhar como qualquer outro” (Descartes, 1973, p. 54), fica claro que a matemática também não é tão indubitável assim como poderíamos pensar, ao ponto de tomá-la como o fundamento da realidade. Desta forma, duvidando, ao fim e ao cabo, de tudo aquilo que pudesse ser pensado, Descartes se dá conta de uma coisa: de que não poderia duvidar de que estava duvidando, pois, se assim o fizesse, necessariamente confirmaria que estava duvidando, chegando, assim, à síntese de toda análise anterior e, concomitantemente, a uma primeira certeza, a certeza da sua própria existência como ser duvidante, com suas palavras: “do fato de eu duvidar, podia concluir que existia” (Descartes, 1973, p. 110), cogito, ergo sum (penso, logo existo). Sendo este, portanto, “o primeiro princípio da Filosofia que procurava” (Descartes, 1973, p. 54). Porém, Descartes não para por aí. Pois, ainda que necessário, instaurando a certeza de si, o cogito cartesiano não é suficiente para dar conta do outro de si, que é o mundo. Da certeza do eu pensante não decorre a certeza da realidade exterior ao pensamento de si. Por isso nosso filósofo, ainda que certo de si, como “uma coisa que pensa” (Descartes, 1973, p. 102), prossegue duvidando, já que, no ponto onde estamos, a suposta alteridade bem que poderia ser apenas e tão somente fruto dos sentimentos e da imaginação do ego pensante.[48] Mas, então, pensemos nós: como estabelecer a objetividade do eu sem a subjetividade do outro? Sem o outro, haveria a possibilidade do eu? Dessa maneira, ao prosseguir duvidando, Descartes percebe uma característica determinante do eu: a imperfeição. Porquanto, nosso filósofo “via claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar” (Descartes, 1973, p. 55). Passando, então, a tentar compreender de onde lhe adveio a ideia da perfeição, na medida em que não se reconheceria imperfeito se não possuísse tal ideia, pois, para nosso filósofo, “a imperfeição ligada à dúvida só é conhecida à luz da ideia de perfeição” (Ricoeur, 1991, p. 20), sendo-lhe claro, também, que ela, a ideia da perfeição, não poderia advir de si mesmo, ser duvidoso e, portanto, indubitavelmente imperfeito, “[...] visto que não há menos repugnância em que o mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do que em admitir que do nada procede alguma coisa.” (Descartes, 1973, p. 55). Portanto, para Descartes, a ideia da perfeição só poderia ser advinda de outra existência que não a sua, oriunda de um ser propriamente perfeito e, assim, totalmente outro; nomeando-o, Deus (Cf. Descartes, 1973, p. 55). É assim, através desses raciocínios, que nosso filósofo pôde dar um passo decisivo para além da certeza de si proporcionada pelo cogito, ergo sum, certificando-se de que ele “não era o único ser que existia” (Descartes, 1973, p. 56) e, consequentemente, averiguando, com a clareza necessária, que há uma realidade distinta da percepção individual do ego. Pois, evidentemente, para quem chega à certeza da realidade do totalmente outro, com todos os atributos que lhe são inerentes[49], torna-se necessário admitir a existência de toda alteridade particular, ou seja, de tudo aquilo que está disposto no mundo na distinção do si mesmo. Isto posto, restaria, contudo, para sermos fiéis ao método, partirmos para o seu quarto momento – estão lembrados? –: a revisão. Revisão essa que nada mais é do que se manter na circularidade produtiva em meio à espreita da dúvida. O que acabamos de ver, com certeza, é o ponto alto da ontologia de Descartes; Metafísica que, como todas aquelas elaboradas pelos seus antecessores, e ainda por um bom tempo por seus posteriores, acaba por chegar a Deus. No entanto, se toda Metafísica, enquanto onto-teologia, parece ter se esgotado no século XX, e se, em todo caso, talvez nem precisemos ir tão longe para pensarmos as nossas questões mais comezinhas, ligadas à produção da nossa existência cotidiana, mormente, no nosso caso aqui, a Educação, será que Descartes ainda pode nos ajudar? Ora, é bem provável que sim. Vejamos. À parte a produtividade do seu método de investigação e concomitantemente a ele, nosso filósofo ensina, sobretudo, a mantermo-nos metodicamente abertos para o horizonte da dúvida; resguardando-nos, assim, de todo dogmatismo, de toda reificação do conhecimento, ainda mais quando, assim como na Educação, o que está em jogo são as questões referentes às especificidades da vida propriamente humana. Pois, não poucas vezes, em vista da premência da vida, da dinamicidade da existência humana, o tempo próprio para a maturação da possibilidade de alguma verdade não nos é dado, por isso “[...] não raro somos forçados a adotar o que é apenas verossímil; ou até mesmo a escolher por vezes uma entre duas coisas ainda que nenhuma delas pareça mais verossímil do que a outra.” (Descartes, I, 3). Uma vez que, “[...] muitíssimas vezes a ocasião de agir passaria antes que pudéssemos nos desvencilhar de nossas dúvidas.” (Descartes, I, 3). Desta maneira, desconfiados dos limites do nosso entendimento e, consequentemente, da adequação de nossas ações, é que podemos dar o primeiro passo para assegurarmos o nosso envolvimento crítico e, portanto, filosófico com o mundo da vida no fluir da sua historicidade. Historicidade essa que circunscreve a provisoriedade, tanto dos nossos modos de existência quanto dos conhecimentos que somos capazes de produzir. Não foi o próprio Descartes, ao preparar-se para exercitar a dúvida hiperbólica, metodicamente elaborada, sabendo que o mundo não para, por mais que desejemos nos afastar da azáfama do dia a dia, quem elaborou algumas regras para direcionar as suas ações no mundo, chamando-as de moral provisória? Não estaria o filósofo, assim, chamando a nossa atenção, com uma boa dose de ironia, para a provisoriedade ontológica da condição humana? Afinal, “[...] a moral provisória, enunciada no Discurso, é finalmente substituída por uma moral científica?” (Granger, 1973, p. 23). Sabemos que, ao fim e ao cabo, não. Voltando ao começo deste nosso estudo, se Engels tinha razão ao chamar Descartes de “brilhante mantenedor da dialética” ou não, para nós pouco importa. O caso é que, sendo inegavelmente um dos pensadores que mais confluiu para a constituição daquilo que chamamos de modernidade, como educadores, talvez fosse adequado atentarmos para as possibilidades de pensarmos conjuntamente com o próprio filósofo, ao invés de, no mais das vezes, praticamente a priori, contrapormo-nos a uma caricatura. Referências ENGELS, F. Del Socialismo Utópico al Socialismo Cientifico. Moscu: Ediciones em Lenguas Extranjeras, 1941. DESCARTES, René. Discurso do Método; As Paixões da Alma; Meditações; Objeções e Respostas. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores). ______. Discurso sobre o Método. Tradução de Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima. São Paulo: Hemus, [s.d]. ______. Ouvres de Descartes. Publiées par Charles Adam et Paul Tannery (AT). Paris: J. Vrin, 19651974. ______. Princípios da Filosofia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. GAUKROGER, Stephen. Descartes: uma biografia intelectual. 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Meditando com Descartes RENÉ DESCARTES (1596-1650) geralmente é apresentado como o pai da filosofia moderna, filósofo francês das ideias claras e distintas, da racionalidade metódica que, pelos caminhos seguros da ciência, nos leva às certezas da verdade. O que, certamente, não está errado. No entanto, como geralmente acontece, todos estes epítetos são somente uma primeira aproximação pedagógica, uma espécie de apresentação, apenas. E, assim como não chegamos a conhecer efetivamente uma pessoa apenas por sermos apresentados a ela, o mesmo acontece com o filósofo. Para chegarmos a conhecê-lo melhor, é preciso que convivamos, um pouco que seja, com ele. Pois bem, mas como é que podemos conviver com um pensador do século XVII, já morto há muito tempo? Aliás, por isso mesmo, será que ele ainda tem algo a nos dizer para além da mera curiosidade informativa? Afinal, diante de todos os avanços no tempo, o filósofo já não está para lá de ultrapassado? Ora, se o filósofo de fato pensou, e creio que ninguém estaria disposto a negar o título de pensador a Descartes, é claro que ele ainda tem muito a nos dizer. Mas, para ouvi-lo, no vigor da nossa contemporaneidade própria, é preciso que saibamos pensar com ele. Como? Dialogando com Descartes em meio aos escritos que nos deixou, pois, para manterem-se vivamente pensantes é que os escritos solicitam a nossa atenção. No caso aqui, vejamos o que o filósofo nos diz nas suas meditações; mais precisamente, na primeira e na segunda. Concluída entre os anos de 1630 e 1640, publicada em 1641, a referida obra do nosso filósofo, cujo nome completo é Meditações concernentes à primeira filosofia, nas quais são demonstradas a existência de Deus e a distinção real entre a alma e o corpo do homem, possui um parentesco direto com outro texto de Descartes, aquele que se tornou o mais famoso, o Discurso do Método. Nas Meditationes pode-se dizer que o filósofo percorre detalhadamente o caminho que outrora percorreu a passos largos na parte IV do Discours, mostrando-nos, assim, fundamentalmente, o exercício produtivo da dúvida. O que, muito provavelmente seja, para nós, o grande ensinamento de Descartes. Pois, aquele que nunca duvidou, profunda e primeiramente de si mesmo, questionando-se acuradamente, é certo que leva uma vida apequenada por suas pseudo-certezas. Afinal, como já nos ensinou o Sócrates de Platão na Apologia, perde-se a vida ao vivê-la sem questionar-se (Cf. Platão, 38a). A dúvida, portanto, é uma das maiores virtudes filosóficas, pois, só quem duvida pode se aproximar propriamente de alguma certeza. Mas, pensando bem, quem duvida, duvida de alguma coisa, quer seja de si mesmo, da disposição das coisas no mundo, do próprio mundo, ou ainda do ser no mundo disposto entre as coisas que se é. Pois, então, do que especificamente duvida Descartes? Ora, Descartes duvida de tudo. É a chamada dúvida hiperbólica. No entanto, metodicamente instaurada, ela segue um determinado caminho. Vejamos qual. Meditação primeira O PRIMEIRO questionamento de Descartes é em relação ao que podemos chamar de tradição; aquelas supostas verdades que lhe foram ensinadas e que, com o passar do tempo, mostraram-se falsas. Aliás, é por isso mesmo que nosso filósofo decide desfazer-se “de todas as opiniões a que até então dera crédito” (Descartes, 1973, p. 93) e tentar, por si mesmo, em vista da possibilidade de alcançar um conhecimento firme e constante, “começar tudo novamente desde os fundamentos” (Descartes, 1973, p. 93). Notemos antes de tudo que, como filósofo, Descartes não se propõe questionar um determinado setor de objetos, mas os fundamentos da própria objetualidade. Dessa maneira, ainda que a proposta seja duvidar de todas as opiniões que lhe foram inculcadas no transcorrer dos anos, não é o caso que seja necessário questionar particularmente cada uma delas, bastando, para tanto, questionar os alicerces sobre os quais foram erguidas as ditas opiniões. Pois, “a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício” (Descartes, 1973, p. 93). Para cumprir tal intento, nosso filósofo rejeitará, considerando totalmente falsa, qualquer opinião na qual a dúvida possa persistir pelo menor motivo que seja. Isto posto, já a partir da dúvida, instaurado este protocolo metodológico, Descartes começa a questionar a percepção sensível: o modo através do qual apreendemos o mundo. Inclinando-se logo a concluir pela sua dubiedade, e, assim, pela falsidade dos supostos conhecimentos efetivados através dos sentidos. Afinal, quem de nós não se enganou, pelo menos uma vez, através da percepção sensível? E, na medida em que, como foi protocolado, “[...] é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez [...]” (Descartes, 1973, p. 94), é preciso refutar a percepção sensível como fundamento do conhecimento. No entanto, nosso filósofo mostra-se relutante para tanto. Afinal, não sendo louco, como negar algo tão arraigado à experiência da nossa cotidianidade mais comezinha? Como duvidar de que estou aqui, em frente ao computador, escrevendo este texto sobre Descartes, enquanto escuto o barulho da construção ao lado e sinto o cheiro gostoso do almoço que está sendo preparado na cozinha em meio ao frio do inverno curitibano? Descartes receia parecer extravagante em demasia. Todavia, se como ficou acertado, se “é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez”, urge continuar meditando sobre a possibilidade da fundamentação do conhecimento através da percepção sensível. E é isso que nosso filósofo faz. Como? Introduzindo o chamado argumento do sonho, que pode ser ilustrado aqui pela música de Raul Seixas, Conto do Sábio Chinês. Sábio este que, tendo sonhado um dia que era uma borboleta, quando acordou, de tão vívido que foi o seu sonho, já não sabia mais: Se ele era Um sábio chinês Que sonhou Que era uma borboleta Ou se era uma borboleta Sonhando que era Um sábio chinês[50]. Dito de outra forma, como podemos assegurar que isto que chamamos de realidade quando estamos acordados não é apenas um sonho ilusório? E vice-versa: o que nos garante que aquilo que chamamos de sonho quando estamos dormindo não é a verdadeira realidade? Como sabemos, nosso filósofo tinha razões de sobra para levantar tais dúvidas devido às suas experiências oníricas, principalmente aquelas acontecidas no ano de 1619 que tanto o atormentaram, mas que, no entanto, foram decisivas para o seu desenvolvimento intelectual, quando, por várias vezes, no meio da noite ficou tão confuso que não conseguia, justamente, distinguir se estava dormindo ou acordado (Cf. Gaukroger, 1999, p. 146). Assim mesmo como o sábio chinês da canção do Raul. Porém, Descartes não para por aí, pois, se é verdade que podemos levantar tais dúvidas através do argumento do sonho, também é verdade que, tanto acordados quanto dormindo, aquilo que nos é representado, por exemplo, as imagens que vemos, quer em vigília, quer em estado onírico, devem possuir alguma realidade. Suposta realidade esta que, no entanto, pensando bem, não deixa de ser, por vezes, enganosa, o que nos impede de considerar tais imagens verdadeiramente reais. Todavia, ainda que possamos enganarmo-nos em relação às diversas particularidades representadas pelas ditas imagens, deve haver coisas “mais simples e mais universais” (Descartes, 1973, p. 95) que, sendo, por assim dizer, a condição de possibilidade que sustente a representação de imagens em nosso pensamento, sejam efetivamente “verdadeiras e existentes” (Descartes, 1973, p. 95). Descartes, então, conclui a cadeia deste seu raciocínio, fazendo eco, de alguma forma, àquilo que Aristóteles chamava de categorias, os predicados primeiros do ser: Desse gênero de coisas é a natureza corpórea em geral, e sua extensão; juntamente com a figura das coisas extensas, sua quantidade, ou grandeza, e seu número; como também o lugar em que estão, o tempo que mede a sua duração e outras coisas semelhantes. (Descartes, 1973, p. 95). Para nosso filósofo, de tais coisas simples e gerais – figura, quantidade, espaço, tempo –, ao fim e ao cabo, objetos da Matemática, não há como duvidar. Afinal, quer estejamos acordados ou dormindo “[...] dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que quatro lados.” (Descartes, 1973, p. 95). Portanto, os objetos da Matemática, indubitáveis, seriam os fundamentos da realidade. É, seriam, pois, todavia, Descartes, por incrível que possa parecer, não para por aqui, na medida em que, aos seus olhos ainda é possível levantar uma dúvida em relação a tudo isso, introduzindo um argumento que podemos chamar de teológico. Assim sendo, supondo a existência de Deus, fundamentalmente do Deus da tradição judaico-cristã, na qual nosso filósofo foi criado, principalmente a partir do atributo da onipotência deste Deus, Descartes supõe, dentre tantas outras coisas, a potência do Criador em enganar as suas criaturas. Desta maneira, o que nos garante que, ao julgarmos verdadeiramente existentes quer o céu, quer a terra, tanto quanto a figura e a quantidade, o espaço e o tempo, ou ainda quando realizamos a soma de dois mais três, não estejamos sendo enganados por tal Deus, que nos permite apenas viver na ilusão, ocultando-nos a verdadeira realidade? Pois, ainda que a ideia de um Deus em tudo enganador possa repugnar seus fiéis, até mesmo pelo seu caráter duvidoso, principalmente tendo em vista aquele outro atributo divino, a bondade, não há como duvidar de que Ele, por vezes, permita que nos enganemos. Mas, se pode repugnar a ideia de um Deus sumamente enganoso, pensemos, junto com Descartes, na suposição de um Gênio Maligno; este sim, poderosamente ardiloso e enganador, ao ponto de nos iludir a respeito de tudo, inclusive da nossa própria existência. Esta é, portanto, a obstinação do nosso filósofo, suspender todos os seus juízos, tomando todas as suas crenças como falsas. É apegado a este pensamento, duvidando hiperbolicamente de tudo, que Descartes termina a sua primeira meditação. Meditação segunda DESCARTES COMEÇA a sua segunda meditação reafirmando aquilo que chamamos anteriormente de protocolo da dúvida: tomar por absolutamente falso o que puder apresentar a menor dúvida possível. Agindo assim, nosso filósofo pretende, em algum momento da investigação, achar alguma coisa efetivamente certa, ou, pelo menos, adquirir a certeza de “que não há nada no mundo de certo” (Descartes, 1973, p. 99). Mas no momento, como filósofo, é certo que Descartes tem a esperança de encontrar ao menos “uma coisa que seja certa e indubitável” (Descartes, 1973, p. 99), pois sabe que assim como Arquimedes dizia precisar apenas de um ponto fixo para deslocar o globo terrestre, se encontrar uma primeira certeza indubitável poderá fundamentar solidamente uma ordem de razões a respeito do mundo, estabelecendo, portanto, a possibilidade do conhecimento verdadeiro (epistéme). É por isso que o filósofo segue duvidando. Pois então, continuemos a duvidar conjuntamente com ele. Retomando o que ficou estabelecido na primeira meditação, muito simplesmente, estamos duvidando de tudo. No entanto, avançando na dúvida pensante, para que a dúvida seja possível é necessária a existência de um ser duvidante. Mesmo que haja um Gênio Maligno capaz de nos enganar em relação a tudo, ele só pode agir desta maneira se de fato algo é enganado. Dito de outra forma, ao me enganar em relação a tudo, o tal Gênio Maligno dar-me-ia a certeza de mim mesmo, de que sou algo, ainda que seja um algo enganado. Nas palavras do próprio Descartes: “Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa.” (Descartes, 1973, p. 100). Fica, assim, estabelecida a primeira verdade buscada através da dúvida: enquanto penso, sou[51]. No entanto, esta é apenas uma primeira certeza, generalíssima, e, portanto, vazia de conteúdo. Pois, ainda que nos dê a certeza da nossa existência, que eu sou, nada me diz a respeito daquilo que sou. E assim, o filósofo segue pensando. Mas ora, pensamos nós, para que ficar dando tratos à bola, se sabemos que somos homens? Porém, dito isso, é claro que o filósofo vai nos perguntar: mas, então, o que é o homem? Para nós, muito fácil, não aprendemos desde os primeiros bancos escolares que o homem é um animal racional? Contudo, isto posto, é claro que o filósofo vai nos perguntar: mas, então, o que é um animal? O que é racional? Como se vê, “[...] assim, de uma só questão, cairíamos insensivelmente numa infinidade de outras mais difíceis e embaraçosas.” (Descartes, 1973, p. 100). E, além do mais, não aprendemos logo no início da primeira meditação a duvidar daquilo que nos foi ensinado através da tradição educativa que nos formou? Não esqueçamos, portanto, que, mesmo seguindo os passos trilhados por Descartes, só podemos fazê-lo produtivamente com os nossos próprios pés. Sigamos, então. Mantendo a suposição do Gênio Maligno, que em tudo apraz enganar-nos, e que, por isso mesmo, nos permitiu concluir a verdade da nossa existência – apenas –, é certo que não podemos identificar-nos quer com o nosso suposto corpo, quer com uma suposta alma. Pois, tudo aquilo que pensamos ser, pode ter-nos sido inculcado pela malignidade do gênio. Todavia, enquanto pensamos que o Gênio Maligno pode nos enganar a respeito de tudo aquilo que pensamos, por isso mesmo, há uma coisa sobre a qual ele não pode nos enganar: nós indubitavelmente pensamos. Na meditação de Descartes: “[...] o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim.” (Descartes, 1973, p. 101). Portanto, o que somos nós? “Uma coisa que pensa” (Descartes, 1973, p. 102). Donde surge, então, a próxima pergunta: mas, afinal, o que é uma coisa pensante? Ora, responde Descartes, antes de tudo, privilegiadamente, por onde tudo começou, somos uma coisa que duvida, mas, também, “[...] que concebe, que afirma, que nega, que quer, que imagina e que sente.” (Descartes, 1973, p. 103). Para nosso filósofo, todas estas coisas enunciadas são atributos do pensamento, pois não podem existir fora dele. Mas, sendo assim, não é difícil, talvez seja até mesmo necessário, desconfiarmos da existência de algo que seja externo ao nosso próprio pensamento. Visto que posso perguntar: será que existe efetivamente um outro distinto de mim, ou será que tudo não passa apenas de uma espécie de projeção do meu pensamento? Para averiguar se este é o caso, Descartes passa a analisar algo que julga ser exterior a si mesmo, um pedaço de cera que julga estar à sua frente. Poderia ser outro objeto qualquer supostamente exterior a si mesmo. O que está em jogo aqui, dada a certeza do eu pensante, é se existe algo verdadeiramente real distinto daquele que pensa; um outro particular ontologicamente distinto do si mesmo. E, por mais estranho que possa parecer para o senso comum, o filósofo, com tal análise, só consegue reafirmar a certeza de si mesmo. Não há, pois, percepção do pedaço de cera enquanto tal, que, para tanto, não passe necessariamente pelo crivo do pensamento. Nas palavras do próprio Descartes: Só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós existente e não pela imaginação nem pelos sentidos, não os conhecemos pelo fato de os ver ou de tocá-los, mas somente por os conceber pelo pensamento. (Descartes, 1973, p. 106). É assim, ainda encerrado em si mesmo, que o filósofo termina a sua segunda meditação. Nós, infelizmente, vamos parando por aqui. O que não significa dizer que não devamos continuar meditando com Descartes, pois, além das Objeções e Respostas que as acompanham, ainda temos mais quatro meditações pela frente, onde sabemos que o filósofo vai ampliar por demais o seu conhecimento, e nós, quem sabe, se continuarmos meditando com ele, possamos aumentar o nosso também. Afinal, depois de tudo que vimos, alguém ainda seria capaz de duvidar que, meditando, na insistência do pensamento, podemos chegar efetivamente a conhecer? Sinceramente, se aprendemos alguma coisa com Descartes, espero que sim. Pois, como nos diz o poeta: De todas certezas A dúvida É a melhor Das apostas Fausto dos Santos Referências DESCARTES, René. Meditações. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores). GAUKROGER, Stephen. Descartes: uma biografia intelectual. Rio de Janeiro: EDUERJ; Contraponto, 1999. PLATÓN. Apología. In: ______. Diálogos. Introducción General por Emílio Lledó Íñigo. Traducción y notas por J. Calonge Ruiz, E. Lledó Íñigo, C. García Gual. Madrid: Gredos, 1997. Os mais belos tratados de educação e a hermenêutica das suas possibilidades NOSSO FILÓSOFO, “[...] uma dessas figuras diante das quais não se consegue manter a neutralidade nem a passividade [...]” (Streck, 2008, p. 9), foi, antes de tudo, em relação ao seu próprio tempo, um contemporâneo. Mantendo-se em conjunção singular com a sua historicidade própria, não sucumbiu às luzes emanadas por ela, mas, aderindo ao luminoso, foi capaz de enxergar a inerente obscuridade correspondente[52]. Dessa maneira, escrevendo “textos que repercutiram em seu próprio século e nos que se seguiram” (Garcia, 2011, p. 168), criticou mordazmente a sua época, instalando as bases para a sua superação, mormente ao pensar a ciência, a política, a ética, a arte, a educação, a religião e a linguagem, para citar alguns dos temas que ocuparam o seu pensamento. Deixando-nos um legado que acabou por constituir-nos, adentrando em nossa vida. Tendo em vista o tema aqui perseguido por nós, a educação, nosso filósofo nos ensinou, fundamentalmente, o vínculo inexorável entre política e educação, poder-se-ia dizer, como sendo duas faces da mesma moeda. Em linguagem antiga, é inegável que politéia e paidéia tornaram-se pontos cardeais da sua obra (Cf. Jaeger, 1995, p. 752). Mas, então, quem será o nosso filósofo? Ao que tudo indica, ele não é um, mas dois: Platão e Rousseau. E os mais belos tratados de educação aos quais o título deste breve estudo se refere são, evidentemente, a República de um e o Emílio do outro. Obviamente sabemos das distâncias que separam os dois pensadores: um imerso nos confins da Hélade, o outro em meio às luzes do enciclopedismo francês. Porém, também sabemos que podemos buscar compreender as aproximações entre ambos. Afinal, o movimento histórico é sempre a síntese constante entre rupturas e continuidades. Portanto, aqui buscaremos, tendo em vista a questão da educação, o que é que pode aproximar os dois filósofos[53]. Ao que tudo indica, tal aproximação é possível e começa, justamente, pelo tema Educação. Acima de tudo, pelo que já foi ressaltado antes: a imbricação inexorável entre política e educação. Coisa que hoje dificilmente alguém estaria disposto a negar, na medida em que, ainda que cada uma resguarde as suas especificidades próprias, “toda prática educativa contém inevitavelmente uma dimensão política”, assim como “[...] toda prática política contém, por sua vez, inevitavelmente, uma dimensão educativa.” (Saviani, 2008, p. 71). Para confirmarmos que o Emílio seja uma obra tanto de política quanto de educação, basta lembrarmos, não somente, que a referida obra foi escrita ao mesmo tempo que o Contrato Social, poderíamos dizer, como obras complementares, pois que “[...] toda educação do Emílio é conduzida para que ele possa, no fim, viver numa sociedade regida pelo contrato.” (Streck, 2008, p. 27). Muito provavelmente seja por isso mesmo que ao final do Emílio encontremos um arrazoado político, uma espécie de “[...] resumo do contrato social, indicando o tipo de sociedade na qual Emílio e Sofia poderiam viver suas liberdades.” (Streck, 2008, p. 27). Dessa maneira, como nos diz Oliveira, a intenção políticopedagógica de Rousseau é clara, pois “[...] o próprio fato do Contrato Social estar contido no Emílio explica a vontade instrutora do autor de ensinar as regras básicas para que o cidadão insira-se na sociedade” (Oliveira, 2000, p. 69). Assim, podemos afirmar, junto com Streck, que no Emílio, “Rousseau faz da educação uma ação eminentemente política” (Streck, 2008, p. 31). Na obra A República, que busca compreender as necessidades para a constituição de uma cidade adequadamente propícia para a superação do establishment até então vigente, encontramos, como de resto, em todos os textos de Platão, a imbricação dos mais variados temas, dentre os quais, certamente, a “sua teoria da educação e sua concepção da sociedade” (Lan, 1992, p. 11). Assim, não erramos ao valorizar a importância da educação para a Politéia do Mestre da Academia, pois, como nos diz Jaeger, “[...] a paidéia não é um simples elo externo que faz da obra um todo; constitui a sua verdadeira unidade interna.” (Jarger, 1995, p. 752). O que o próprio Rousseau soube reconhecer no princípio do seu Emílio, o que, efetivamente, aproxima ainda mais as duas obras dos nossos dois pensadores: Quereis ter uma ideia da educação pública, lede A República de Platão. Não se trata de uma obra política, como pensam os que julgam os livros pelos títulos: é o mais belo tratado de educação que jamais se escreveu. (Rousseau, 1992, p. 14). Mas, à parte a consideração da intrínseca correlação entre política e educação, uma outra similaridade em relação às referidas obras dos dois filósofos, que não deve ser pensada em absoluta disjunção a essa correlação, pode muito bem nos intrigar. Como sabemos, Platão não escreveu propriamente tratados filosóficos, que, também é sabido, já existiam em seu tempo[54], mas, antes, peças literárias, os chamados Diálogos Socráticos, gênero poético à disposição de vários autores da época[55]: “Literatura de ficção e, muito frequentemente, de fantasia.” (Kahn, 2000, p. 31). O que, certamente, nos impõe uma disponibilidade hermenêutica própria em relação aos seus escritos; na medida em que, pressupõe-se, não podemos ler um tratado filosófico da mesma forma que lemos uma obra de arte. Há que se respeitar o alcance e as possibilidades de cada um dos gêneros literários a nossa disposição, tanto em relação à escrita, quanto em relação à leitura. A obra poética, diferentemente do modo como se pensa operar o tratado científico, embora também tenha em vista a chamada realidade – talvez pudéssemos dizer a realidade propriamente humana –, busca acessá-la através de um outro nível semântico, abolindo o que Ricoeur costuma chamar, tendo em vista Frege, referência de primeiro nível[56]. Sendo assim, em relação à leitura de Platão, julga-se aqui que não podemos deixar de levar em consideração aquilo que nos diz Gagnebin: Se esquecermos a forma literária ‘diálogo’ para procurar estabelecer um ‘sistema’ de afirmações platônicas e, a partir delas, extrair algumas proposições essenciais que formassem a verdade procurada, encontraremos muitas contradições, muitas incoerências, poucas certezas e poucas evidências. (Gagnebin, 2004, p. 14). Embora Rosseau, diferentemente de Platão, tenha escrito tratados filosóficos, apesar do título deste nosso estudo, o Emílio não é exatamente um deles. Sendo, antes, quanto ao gênero literário, um romance. Mais especificadamente classificado por Bakhtin como romance de educação ou formação (Bakhtin, 1997, p. 235). Mais especificadamente ainda, como romance de formação didático-pedagógico, ao lado, por exemplo, de obras como Ciropedia de Xenofonte e Telêmaco de Fénelon (Cf. Bakhtin, 1997, p. 239). Sendo, portanto, o personagem Emílio “um aluno imaginário” (Rousseau, 1992, p. 27) com todas as suas características[57]. Tanto quanto, há de se supor, o seu pedagogo-governante e a sua prometida companheira Sofia, que “deve ser mulher como Emílio é homem” (Rousseau, 1992, p. 423). Poder-se-ia dizer tão imaginária quanto Emílio; ou, dito de outra forma, ainda mais elucidativa, como nos propicia o próprio Rousseau, em relação à construção do personagem, “[...] é preciso generalizar nossos pontos de vista e considerar em nosso aluno o homem abstrato, o homem exposto a todos os acidentes da vida humana.” (Rousseau, 1992, p. 16). Aqui, certamente, não podemos esquecer o que já foi dito sobre a concepção hermenêutica de Paul Ricoeur a respeito do modo de atingir a realidade operada pela linguagem poética, matéria-prima da literatura de ficção, a qual o gênero literário romance está vinculado. Afinal, parece que não há mais condições para mantermos anacronicamente determinados preconceitos filosóficos que nos levam a uma depreciação da linguagem poética, julgando que nela encontramos apenas uma espécie de glorificação da linguagem, onde as “palavras têm apenas sentido” (Frege, 1978, p. 107), sendo completamente incapazes de referenciar algo[58]. Pois, como muitos de nós conseguem perceber, contos, romances, poemas: [...] não existem sem referente. Mas esse referente estabelece uma ruptura com a linguagem cotidiana. Pela ficção, pela poesia, abrem-se novas possibilidades de ser-no-mundo na realidade quotidiana. Ficção e poesia visam o ser, mas não mais sob o modo do ser-dado, mas sobre a maneira do poder-ser. Sendo assim, a realidade quotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que poderíamos chamar de variações imaginativas que a literatura opera sobre o real. (Ricoeur, 1997, p. 57). Dessa maneira, a linguagem poética conclama, poder-se-ia dizer, privilegiadamente, à compreensão do ser-no-mundo que somos nós[59], seres necessariamente imersos, entre outras coisas, na política e na educação. Portanto, quando Rousseau fala sobre o seu aluno imaginário, dizendo ser necessário considerá-lo como o homem abstrato, como será que devemos compreender isso? Ora, levando a sério o gênero literário no qual o Emílio se enquadra, não diferente do que está dito: Emílio, personagem do romance, não é exatamente um indivíduo particular concreto, mas resguarda todas as possibilidades de um universal abstrato. Valendo o mesmo para os outros personagens. Afinal, como nos diz o próprio filósofo em relação à sua obra, “nosso verdadeiro estudo é o da condição humana” (Rousseau, 1992, p. 16). A partir desta compreensão, podemos dirimir uma determinada interpretação corrente que vê na referida obra um programa educacional que [...] se reduz a uma educação aristocrática, na qual o preceptor se ocupa de um aluno (nobre e rico), num trabalho pedagógico individualizado, não escolar, sem preocupação com a educação das massas, do povo trabalhador, dos filhos do terceiro estado. (Giolo, 2011, p. 218). Compreensão essa compartilhada, por exemplo, por Eby (Cf. Eby, 1976, p. 295-300) que, comparada com a educação proposta pelo filósofo nas Considerações sobre o Governo da Polônia e no Discurso sobre a economia política, faz surgir uma espécie de contradição, ou, no mínimo, duas propostas opostas de educação, instaurando um “conflito entre a educação estatal e a familiar” (Eby, 1976, p. 299) [60], que, aos olhos do referido historiador, pode ser facilmente explicado, porque “[...] o problema que Rousseau discutiu no Emílio é bem diferente do que ele tinha em vista em suas outras obras.” (Eby, 1976, p. 299). Dentro desta concepção, ao fim e ao cabo, Rosseau teria achado “[...] necessário construir dois sistemas de educação para condições sociais radicalmente diferentes.” (Eby, 1976, p. 296). Uma seria a educação familiar, supostamente proposta no Emílio; a outra seria a educação estatal tal qual a proposta nas Considerações sobre o Governo da Polônia e no Discurso sobre a economia política. A primeira adequada “para a civilização existente” (Eby, 1976, p. 297), seria a educação de um indivíduo dissociado da vida em sociedade; a segunda adequada para “um Estado e sociedade organizados de acordo com o ser natural do homem” (Eby, 1976, p. 296), onde os alunos seriam “educados juntos e da mesma maneira” (Rousseau, 1982, p. 37)[61] com base em uma “[...] educação pública, segundo as regras prescritas pelo governo e os magistrados estabelecidos pelo soberano.” (Rousseau, 1996, p. 40). Como se vê, a partir desse tipo que compreensão teríamos em Rousseau duas propostas educacionais distintas para distintas condições sociais. Mas será que de fato é assim? Será que, tendo em vista a concepção hermenêutica declarada neste nosso breve estudo, podemos ler o Emílio da mesma forma que lemos as Considerações sobre o Governo da Polônia e o Discurso sobre a economia política? Poder até que podemos, aliás, pelo que vimos, no mais das vezes é assim mesmo que se faz. Da mesma forma que, inclusive, também se faz com Platão, não levando em consideração o gênero literário da escrita do Mestre da Academia, como se isso fosse uma questão menor, ou até mesmo inexistente. No entanto, tentou-se mostrar aqui que, ler um texto, observando o alcance e os limites do gênero literário ao qual ele pertence, não é uma questão de somenos. Antes pelo contrário, tal atitude hermenêutica é fundamental para a compreensibilidade produtiva das nossas leituras, tanto quanto para a produtividade noética daquele que escreve. Tendo isso em vista, como sabemos, para Rousseau a pedagogia não é exatamente uma ciência – com toda a positividade que uma ciência supostamente pode comportar. Ao tratarmos as especificidades propriamente humanas, não temos em nossas mãos o controle de todas as variáveis que podem adentrar no processo em questão. Como nos diz o filósofo, a educação é antes uma arte[62]. Dessa maneira: Sendo a educação uma arte, torna-se quase impossível que alcance êxito total, porquanto a ação necessária a esse êxito não depende de ninguém. Tudo o que se pode fazer, à força de cuidados, é aproximar-se mais ou menos da meta, mas é preciso sorte para atingi-la. (Rousseau, 1992, p. 11). Ora, pensemos nós, se o processo educacional, como foi dito, não é passível de um controle plenamente efetivo, qual seria a linguagem mais adequada para a compreensibilidade de tal processo a não ser uma linguagem que também não seja passível de um pleno controle, tal qual a linguagem poética? Sendo assim, por fim, poderíamos pensar que Rousseau, talvez até mesmo ainda mais do que Platão, soube compreender as incertezas da vida humana, ou seja, a abertura para as possibilidades que ela comporta, sabendo, inclusive, quando julgou conveniente, valer-se de uma linguagem apropriada para dizê-lo. Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2010. 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Rousseau & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. Com Marx, contra os marxismos: a educação tem que ser pensada PODE-SE DIZER que Karl Marx foi um dos pensadores que mais adentrou na vida e no imaginário dos homens no século XX. Nasceu em 5 de maio de 1818, em Treves, capital da província alemã do Reno e seus pais eram de origem judaica. Ainda que seu pai tenha abandonado o judaísmo, e sua mãe não tenha dado especial atenção à formação religiosa do seu filho. Marx estudou inicialmente em Treves, mas, ao concluir o curso secundário foi para a Universidade de Bonn estudar Jurisprudência. Lá, ao invés de se engajar nos estudos, acabou levando uma vida desregrada, própria da boemia. Seu pai, insatisfeito com o estilo de vida que levava em Bonn, transferiu-o para Berlim em 1836. Nesse mesmo ano, Marx fica noivo da jovem de família aristocrática Jenny von Westphalen. Na Universidade de Berlim vai perdendo progressivamente o seu interesse pelo Direito enquanto toma corpo, cada vez mais, a sua predileção pela História e pela Filosofia. É nessa época, como não poderia deixar de ser, que entra em contato com a filosofia de Hegel, àquela altura, o pensamento hegemônico em Berlim. Marx logo se alinha às rodas de discussão que ficaram conhecidas como a Esquerda Hegeliana. Em 1841, formou-se em Filosofia, com o trabalho intitulado: Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Foi então buscar a ajuda do amigo, o teólogo Bruno Bauer, que lecionava na Universidade de Bonn, pois, se ali fizesse o seu doutorado, o mais provável é que se tornasse professor na mesma instituição. Mas as pressões contra Bauer começavam a crescer, e Marx acabou por fazer o seu doutorado em uma Universidade de menor expressão, em Iena. Entrementes Bauer acabou sendo expulso de Bonn. Com isso Marx abandona a sua intenção de seguir a carreira universitária, abraçando o jornalismo. Pode-se dizer que é nesse período, quando se torna redator e logo em seguida redator-chefe da Gazeta Renana, que Marx começa a prestar maior atenção aos problemas especificamente políticos e sociais. Porém, em 21 de janeiro de 1843, a Gazeta foi fechada pelos órgãos governamentais. Marx então casa com sua noiva, Jenny, e parte para a França, onde, refugiada, a Esquerda Hegeliana preparava a publicação dos Anais franco-alemães, dos quais Marx seria um dos diretores. Contudo, os Anais ficaram apenas no seu primeiro fascículo. Em Paris conhece Proudhon, Blanc, Heine e Bakunin, mas, principalmente, aquele que será o seu grande amigo pessoal e intelectual por toda a sua vida, Friedrich Engels. Geralmente em situação econômica difícil, ajudado pelos amigos, Marx prossegue pesquisando e escrevendo, além de engajar-se na luta a favor dos trabalhadores. O que às vezes lhe traz prejuízos, como a sua expulsão da França em janeiro de 1845, indo refugiar-se em Bruxelas, onde começa a escrever os seus primeiros textos em parceria com Engels. É de 1848, por exemplo, o mesmo ano em que Marx deixa Bruxelas, o célebre texto redigido pelos dois amigos a pedido da Liga dos Comunistas, o Manifesto do Partido Comunista. De Bruxelas, Marx vai para Colônia, onde tenta fundar a Nova Gazeta Renana sem obter êxito; seguindo, então, para Paris, onde não é permitida a sua permanência. Diante do que, nosso filósofo aporta na Inglaterra em 1849, mais precisamente em Londres. É na Inglaterra, apesar de toda a dificuldade econômica que enfrenta com sua família, que realiza a maioria das pesquisas que serão de suma importância para o surgimento da sua obra mais conhecida: O Capital. Também em Londres Marx funda, em 1864, a Associação Internacional dos Trabalhadores, mais conhecida como Iª Internacional. Em 2 de dezembro de 1881, morre a sua esposa, e Marx, que nunca abandonou o trabalho, veio a falecer em 14 de março de 1883, em Londres. As principais obras de Marx, pelo menos aquelas publicadas em português são: O Capital, Manifesto Comunista, Manuscritos econômico-filosóficos, A Sagrada Família, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A ideologia alemã, Sobre a questão judaica, O 18 de Brumário de Luis Bonaparte, A guerra civil na França, Crítica do Programa de Gotha e Grundrisse. Mas, então, agora que conhecemos um pouco a respeito da vida e das obras de Karl Marx, o que será que significa, conforme o nosso título, pensar a educação com Marx, mas contra os marxistas? Se lermos o texto até o seu final, talvez tenhamos uma possível resposta. Temos, pois, que ir em frente! Primeiramente é preciso falar que não se quer aqui enredar-se pelo caminho fácil, mas vazio, das nomenclaturas. Queremos apenas aproximar-nos de um fenômeno extremamente comum nos meios educacionais, mormente no campo da pesquisa sobre educação, qual seja, a influência de Marx. Não é novidade para ninguém, antes pelo contrário, o fato dos nossos departamentos estarem cheios dos chamados marxistas, ou ainda, marxianos ou marxólogos, como preferem alguns[63]. O que, evidentemente, por si só, não é problema algum. Pois, se de fato ainda vivemos sob o modo de produção capitalista, e se os pensamentos dos filósofos “[...] são insuperáveis enquanto o momento histórico de que são expressão não tiver sido superado [...]” (Sartre, 1972, p. 12), é certo que o pensamento de Marx ainda se encontra, na contemporaneidade, em plena produtividade. Nas palavras de Hobsbawm, “[...] Marx é hoje, mais uma vez, e com toda justiça, um pensador para o século XXI.” (Hobsbawm, 2011, p. 15). Ou ainda, como nos diz Avelino da Rosa, falando justamente sobre Marx, mas valendo conjuntamente para todo pensador, [...] o que há de mais fértil numa construção teórica é a sua capacidade de sempre renovar-se, pôr-se diante dos dilemas históricos, atiçar o pensamento e fornecer-lhe os meios de ainda avançar. Pois é o que ocorre com Marx. (Oliveira, 2004, p. 15). No entanto, não necessariamente com os marxismos que, por mais estranho que possa parecer, não poucas vezes acabam reproduzindo aquilo mesmo que, de voz, dizem evitar. Talvez, o maior exemplo, e quem sabe o mais aberrante, seja a estratificação do pensamento do filósofo num patamar, poder-se-ia dizer, praticamente metafísico. Logo Marx que, na antiga tradição de Heráclito de Éfeso, sempre ressaltou o movimento como a base ontológica da existência. Afinal, para o filósofo, “[...] tudo o que existe, tudo o que vive sobre a terra e sob a água, existe e vive graças a um movimento qualquer.” (Marx, 2009, p. 122). Por que, então, o pensamento do filósofo deveria ficar, como que morto, estagnado? Talvez nós, os professores, diante do aligeiramento da educação, acabemos achando que, pelo menos para os alunos, “o conhecimento de segunda mão basta” (Konder, 2009, p. 135), deixando de ler os textos do próprio filósofo, agarrando-nos aos manuais, quando não às cartilhas; quando, “[...] naturalmente, o primeiro lugar em que se deve pesquisar o marxismo é na obra de Marx.” (Lefebvre, 2011, p. 122). Dessa maneira, pelo continuar da prática profissional, corremos o risco de acabarmos na mesma situação que impomos aos nossos alunos. Talvez também seja por isso que, para alguns autores: Desponta a desconfiança de que, ao se declarar marxista, o intelectual pode estar correndo o risco de alinhar-se a uma corrente de ideias institucionalizadas, em vez de assumir desde logo a posição de leitor e de investigador. Não é contra essa institucionalização que o próprio Marx se negou ao recusar o rótulo de marxista? (Giannotti, 2011, p. 19). Podemos julgar que sim, pois todo aquele que faz efetivamente a experiência do pensar, dificilmente aceita ser encapsulado em um rótulo que, no mais das vezes, serve para destruir a historicidade própria do pensamento, fragmentando a tradição e, consequentemente, emperrando a disposição pensante. Pensar significa justamente adentrar livremente na tradição do pensamento, não julgar ingenuamente que se está a inventar a roda ex nihilo. Assim como a andorinha, um pensador sozinho não faz verão. Então, podemos julgar que Marx, ao não se julgar marxista[64], acaba por alertar-nos para a sua pertença a uma tradição viva que, sendo produtiva, deve continuar em movimento, como sabemos, o movimento próprio da dialética, não se deixando, portanto, ancilosar, tornando-se, assim, antidialética. Como nos alerta Bornhein: Realmente, a dialética apresenta-se hoje munida de um peso irracional considerável, e esconde amiúde um caráter numinoso só comparável ao pseudoconceito de Ciência da segunda geração positivista; e o que é pior ainda: é uma palavra que funciona frequentemente no sentido de pacificar a consciência de quem a emprega, tornando-se antidialética, elemento aliciador de dogmatismos e totalitarismos. (Bornhein, 1977, p. 8). Ao que tudo indica, esquece-se que “[...] o compromisso da dialética marxiana com a realidade impede o seu compromisso com o dogma [...]” (Marcuse, 2011, p. 12), sendo, antes de tudo, pensamento em movimento, devir que perfaz o mundo. Movimento dialético pensado por Heráclito, Platão, Plotino, Proclo, Santo Agostinho, Scotus Eriúgena, Nicolaus Cusanus, Ficino, Giordano Bruno, Espinosa, Schelling, Hegel, dentre outros, e que, certamente, não foi interrompido com Marx (Cf. Cirne-Lima, 1996, p. 49), como se tivéssemos chegado, com o filósofo, ao fim da história. Aliás, é bem provável que seja o desconhecimento desta longa tradição dialética que nos impeça de adentrarmos produtivamente no pensamento de Marx, principalmente nos círculos educacionais. Manfredo Araújo nos dá um exemplo de como isso pode acontecer, ouçamo-lo: As repetidas referências por parte de alguns marxistas à ‘realidade’ e ao ‘concreto’ só fazem afirmar a tendência vigente, nestes círculos, de interpretar (muitas vezes sem a consciência clara disto, pois se julgam dialéticos) o pensamento marxiano na perspectiva de uma postura realista. (Oliveira, 1997, p. 101). Mas não é só isso que nos impede de adentrarmos no pensamento de Marx produtivamente. Pois, se segue sendo certo que vivemos sob o modo de produção capitalista e, com isso, o filósofo que pensou como pouquíssimos a existência humana, subsumida em meio a tal modo de produção, continua sendo indispensável para pensarmos a nossa contemporaneidade própria. Também é certo que “[...] a dialética (teoria do devir) diz que as realidades mudam, portanto as situações históricas também se modificam.” (Lefebvre, 2011, p. 120). Afinal, sabemos que “[...] a concepção de mundo sob a qual Marx assinou seu nome também se encontra em devir.” (Lefebvre, 2011, p. 122). Sendo assim, as condições sobre as quais surgiu e se desenvolveu o capitalismo, antes, e ao tempo de Marx, já não são mais exatamente as mesmas com as quais nos deparamos hodiernamente[65]. Tanto quanto as questões especificamente educacionais e o entendimento epistemológico ao qual chegamos na contemporaneidade. Para ficarmos no plano epistemológico, sem esquecermos que ele se interliga a todos os demais, não podemos ler Marx, hoje, como se a crítica à racionalidade moderna, culminando na assunção da linguagem ao paradigma inelutável da filosofia contemporânea, não atingisse o cerne do seu pensamento (Cf. Oliveira, 1997, p. 98)[66]. Se segue sendo certo que o homem é aquele ser que necessariamente tem que produzir a sua própria existência, aquilo que produz fundamentalmente a existência propriamente humana é a linguagem. Mesmo que seja extremamente correto dizer “[...] que os homens têm de estar em condições de viver para poder ‘fazer história’ [...]” (Marx; Engels, 2007, p. 33)[67], é certamente impossível que seres como nós, ainda que suficientemente bem nutridos e abrigados, viessem a fazê-la sem a linguagem. Mas é claro que um marxista que não queira, após Marx, continuar pensando, ainda pode argumentar que é o trabalho que especifica o homem, definindo-o, ou seja, demarcando a sua especificidade própria, diferindo-o de todos os outros seres, pois “[...] é a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem.” (Engels, 2004, p. 11). Julga-se assim o trabalho como sendo ontologicamente anterior à linguagem. E, para chegar a tal conclusão, bastaria comparar-nos com os outros animais: “A comparação com os animais mostra-nos que essa explicação da origem da linguagem a partir do trabalho e pelo trabalho é a única acertada.” (Engels, 2004, p. 15). Sendo assim, como já foi dito, o trabalho, ao especificar o homem, é a sua especificidade própria[68]. Mas, aqui, bem que alguém poderia argumentar que os demais animais, que não o homem, de alguma forma, também trabalham. Afinal, “[...] uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia.” (Marx, 2010, p. 211). Mas, então, o que é que faz do trabalho algo especificamente humano? Ora, a maneira própria da produção humana é bem diferente da dos outros animais. De acordo com Marx, só o homem: Figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu operar e ao qual tem de subordinar a sua vontade. (Marx, 2010, p. 212). Mas se o trabalho, especificidade humana, que seria ontologicamente anterior à própria linguagem, no intuito de produzir a existência propriamente humana, assim como diz Marx, pressupõe uma figuração na mente de algo idealizado pela imaginação tendo em vista a consecução de um projeto conscientemente subordinado a uma vontade, ou seja, como um ato volitivo do pensamento, como é que isto – o pensamento – se daria sem o uso da linguagem? Afinal, hoje estamos em condições de perceber que “o pensamento é a proposição com sentido” (Wittgenstein, 1987, 4) e que “a totalidade das proposições é a linguagem” (Wittgenstein, 1987, 4.001). Dito de outra forma: Um pensamento é ele mesmo uma proposição na linguagem do pensamento, mantendo um vínculo estreito com o signo proposicional. Assim como um signo proposicional só constitui uma proposição dotada de significado se é projetado sobre o mundo por um pensamento, também uma relação entre elementos psíquicos só é um pensamento (e não, por exemplo, uma dor de cabeça) se constitui uma projeção de um signo proposicional. Os pensamentos não são entidades que estão além da linguagem, e a linguagem não é um simples meio para a transmissão de um processo pré-linguístico do pensamento. (Glock, 1998, p. 273). Aliás, não é de somenos perceber que a descrição dada por Marx do ato produtivo não é diferente da que nos dá Platão no Crátilo, justamente um diálogo que perscruta, dentre outras coisas, a instituição da linguagem, fazendo-nos crer que a primeira obra humana (érgon) é a linguagem, a partir da qual, pelo mesmo modelo da produção da linguagem, dá-se a possibilidade da produção de todo o resto[69]. No entanto, é claro que não seria justo culpar Marx ou Engels por não terem levado mais a fundo a reflexão sobre a linguagem, encobrindo-a, no caso, por uma sobrevalorização ontológica do trabalho. Seria mais ou menos como culpar um daltônico por não distinguir as várias nuances do amarelo. Ainda que Platão e Aristóteles[70] já tivessem apontado a primazia ontológica da linguagem, essa não era exatamente uma questão extremamente relevante ao tempo de Marx. Porém hoje, não podemos nos apropriar do pensamento de Marx para que nos ajude a apreendermos a contemporaneidade sem levarmos em consideração a reviravolta linguística da filosofia contemporânea, sob o risco de não ficarmos “à altura do nível de consciência crítica de nossos dias” (Oliveira, 1996, p. 13). Ao fim e ao cabo, se aprendemos alguma coisa com Marx, não podemos deixar de levar em consideração a nossa historicidade própria que, com certeza, é bem diferente daquela com a qual teve que se haver o nosso filósofo entre os anos de 1818 a 1883. Como sabemos: Marx demonstrou uma fé incondicional na ciência moderna e no progresso e racionalidade que ela podia gerar. Pensou mesmo que o governo e a evolução da sociedade podiam estar sujeitos a leis tão rigorosas quanto as que supostamente regem a natureza, numa antecipação do sonho, mais tarde articulado pelo positivismo, da ciência unificada. (Santos, 1999, p. 35). Fé esta que, ao nosso tempo, a não ser por uma espécie de anacronismo epistemológico, ou por interesses externos ao próprio conhecimento, dificilmente alguém poderia sustentar[71]. Afinal, hoje sabemos que, em relação às nossas possibilidades cognitivas, “a Ciência não é sacrossanta” (Feyerabend 2011, p. 22), sendo antes, uma tradição entre outras tantas – mesmo quando mitificada ao ser pensada como o único padrão determinante de racionalidade. Dentre tantas coisas que se esvaziaram na contemporaneidade, se desmanchando no ar, “[...] a ideia de que a fé na ciência, no produto da ciência, na tecnologia, enquanto era a fé na possibilidade de uma verdade buscada, também se esvaziou.” (Stein, 2001, p. 22). Aliás, mesmo ao tempo de Marx muitos já desconfiavam desta fé desmedida na racionalidade científica, e aonde, aliada à política, ela poderia nos levar. Um bom exemplo disso é a resposta de Proudhon, de 17 de maio 1846, a uma carta do filósofo do dia 5, do mesmo mês e ano: Mas, pelo amor de deus, após termos demolido todos os dogmatismos a priori, não nos deixemos cair no devaneio de querer doutrinar as pessoas [...]. Vamos dar ao mundo um exemplo de aprendizagem e prudente tolerância, não nos tornemos, meramente por sermos líderes de um movimento, líderes de uma nova intolerância, colocando-nos como apóstolos de uma nova religião, ainda que seja a religião da lógica, a religião da razão. (Proudhon, 1982, p. 435). Portanto, é realmente espantoso que muitos de nós ainda continuemos professando um dogmatismo hodiernamente pseudocientífico que, de fato, assemelha-se muito, quando não idêntico, aos dogmas religiosos, não de hoje já expurgados como padrão único da vida política. Não é mais possível sustentar a unidade de uma racionalidade científica capaz de, “[...] através de um único sistema filosófico, dar explicações que tenham eficácia em todos os domínios do saber humano.” (Stein, 2001, p. 21). Ao nosso tempo, “[...] o homem descobre-se a si mesmo como sendo sujeito à história e, sobretudo, à linguagem.” (Flickinger, 2010, p. 38). Assim, coerentemente, aprendemos a aceitar todas as consequências que a finitude nos impõe. Uma delas é termos desenvolvido a convicção de que não há a possibilidade de instalarmo-nos em um lugar privilegiado, a partir do qual sejamos capazes de julgar clarividentemente o mundo; em meio à temporalidade, turva-se o nosso olhar. Uma razão científica, tida como soberana, capaz de, não apenas julgar o mundo, mas, fundantemente, julgar a si mesma, fere um dos seus próprios princípios, sendo antes uma petitio principii, portanto, uma falácia. Dessa maneira: Se o investigador recusar a armadilha de se acreditar arauto de uma classe privilegiada, que teria do real uma visão de sobrevôo, deverá ainda abandonar a ilusão de que poderia abarcar todos os segredos de um corpus teórico de um único ponto de vista. (Giannotti, 2011, p. 64). Sendo assim, se não há um lugar privilegiado a partir do qual possamos julgar absolutamente o mundo, também não há tal lugar para que alguém – ou uma tradição interpretativa –, possa arvorar-se ao direito de ser o único arauto legítimo do pensamento de um filósofo. Se é que, ao invés da defesa cega de uma ideologia qualquer, queremos de fato, na experiência do pensamento, continuarmos indagando as possibilidades da produção de sentido, na perspectiva de ampliarmos o nosso eu pensante, e não de encastelarmo-nos na estreiteza do ego. Mas, para tanto, é preciso inverter a lógica da dominação que perpassa, no mais das vezes, o mundo acadêmico[72], o que se dá “pela aceitação da primazia do outro em relação a mim mesmo” (Flickinger, 2010, p. 42), resguardando a alteridade como constituinte de si. O que, evidentemente, impõe-nos uma tarefa, a tarefa do pensamento que, ao invés de se julgar onipotente, conta com a voz do outro. É por tudo isso que, ao invés de nos fecharmos às diferenças, na segurança dos nossos catecismos, nas imprecações de praxe[73], não podemos nos contentar, apenas, com a segurança do já sabido, furtandonos ao trabalho do pensamento, ou, ainda pior, furtando do outro a possibilidade de fazê-lo, forçando-o a mimetizar as nossas incertas certezas. Mas, para tanto, é preciso dialogar com nossos alunos contando com a presença de quem soube pensar e que, portanto, pode nos ajudar a continuarmos pensando a partir da nossa contemporaneidade própria. Portanto, talvez mais urgente do que nunca, leiamos Marx, mesmo sabendo que [...] não podemos prever as soluções dos problemas com que se defronta o mundo no século XXI, no entanto, quem quiser solucioná-los, deverá fazer as perguntas de Marx, mesmo que não queira aceitar as respostas dadas por seus vários discípulos. (Hobsbawm, 2011, p. 24). Contudo, não esqueçamos de Kant, de Hegel e Rousseau; de Tomás, Aristóteles e Platão; Wittgenstein, Adorno e Ricouer; e de qualquer outro – antigo, medieval, moderno ou contemporâneo – que possa nos ajudar a mantermo-nos no movimento pensante. Afinal, em meio ao mundo, a educação tem que ser pensada. Referências AMARAL Fº, Fausto dos Santos. Filosofia Aristotélica da Linguagem. Chapecó: Argos, 2002. ______. Platão e a Linguagem poética: o prenúncio de uma distinção. Chapecó: Argos, 2008. ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora UnB, 1997. BORNHEIN, Gerd A. Dialética: teoria e práxis. São Paulo: Universidade de São Paulo; Porto Alegre: Globo, 1977. CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para Principiantes. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. ENGELS, Friedrich; LAFARGUE, Paul; LAFARGUE, Laura. Correspondance, II, 1887-1890. Paris: Éditions Sociales, 1956. ______. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). A Dialética do Trabalho. 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Hannah Arendt e a crise na educação EM UM MEIO, o filosófico, profundamente delimitado pelo gênero masculino, Hannah Arendt desponta praticamente como uma espécie de estrela solitária, e foi uma das pessoas mais importantes para o pensamento filosófico do século XX. Nascida em 1906, em Hanover, no seio de uma família judaicoalemã, ainda que a prática religiosa não fosse um hábito familiar, tal condição marcará profundamente a sua vida. Passa a sua infância em Königsberg e, em 1924, vai para a Universidade de Marburg para estudar com Martin Heidegger, já não apenas e tão somente um jovem professor promissor. Nas palavras da própria Hannah Arendt, referindo-se ao que ouvira falar de Heidegger: O boato dizia bem simplesmente: o pensar voltou a ser vivo, os tesouros culturais do passado que se julgavam mortos falam, e vê-se que produzem coisas bem diferentes do que, desconfiados, suspeitávamos. Existe um mestre.[74] Tal relação de professor e aluna não demorou muito para se tornar uma relação amorosa, que transmutouse, assim como pode transmutar-se o amor, mas que, ao que parece, perdurou pela vida de ambos. Hannah percebeu a impossibilidade de categorizar suas emoções quando confessou a Heidegger, em um bilhete não postado, que ele era o homem ‘a quem permaneci fiel e infiel, mas amando em ambos os casos’. (Ettinger, 1996, p. 9). Em Marburg, Hannah atraía as pessoas não apenas pelas suas roupas e cabelos curtos, mas, também, pelas suas conversas. Seus amigos da época relatam que “seu jeito era uma mistura de segurança e timidez” (Safranski, 2000, p. 175). No início de 1926, deixa Marburg, pressionada por Heidegger[75], indo estudar em Freiburg. No mesmo ano estará em Heidelberg, onde permanece até 1928, estudando sob a orientação de Karl Jaspers, doutorando-se em filosofia com a tese intitulada O conceito de amor em Santo Agostinho. Karl Jaspers, que àquela altura já era um grande amigo de Heidegger, tornar-se-á, também, um grande amigo de Hannah, com o qual sempre pôde contar, até a morte do filósofo. No começo dos anos 1930 está casada com Günther Stern e, em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, deixa a Alemanha, passando por Praga e Genebra, para fixar-se por oito anos em Paris, onde trabalha para organizações de refugiados judeus, sem deixar de lado o seu trabalho intelectual. Em 1936, separa-se do seu marido, casando-se com Heinrich Blücher em 1940. Em 1941, o casal tem que deixar a França, rumando para Nova York, onde adentra nos círculos intelectuais e passa a proferir conferências em diversas universidades, como Princeton, Berkeley e Chicago. Foi professora de Filosofia Política na New School for Social Research até a sua morte, em 1975. Suas principais obras publicadas em português são as seguintes: As origens do totalitarismo; A Condição Humana; A vida do espírito; Entre o passado e o futuro; Crises da República; Compreender: formação, exílio e totalitarismo; Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal; Responsabilidade e Julgamento: escritos morais e éticos; A dignidade da Política; Homens em tempos sombrios; O que é Política; e Sobre a Revolução. Vejamos, então, o que a filósofa do século XX tem a dizer a respeito da educação. O texto que vai nos guiar chamase: A crise na educação[76]. Para começar o nosso diálogo com Hannah Arendt, primeiramente é preciso perguntar sobre qual educação ela está falando. Afinal, sabemos que todas as palavras são polissêmicas, ou seja, guardam a possibilidade de várias significações possíveis, o que não seria diferente com a palavra educação, antes pelo contrário. Resposta que encontraremos, com mais precisão, por estranho que possa parecer, ao final do texto que estamos seguindo. A educação da qual nos fala a filósofa é aquela formação que visa a introduzir as novas gerações no mundo como um todo, sendo, então, independentemente das nomenclaturas, que são variáveis no tempo, aquela que se dá na infância; ainda que o conceito de infância também seja um tanto quanto variável. Educação essa, através da qual a humanidade é apreendida. Pois bem, mas e a crise? Que crise é essa? Ora, a crise da educação! Acho que ninguém em sã consciência negaria que a educação, pelo menos em nosso país, com certeza no âmbito público, não anda lá estas coisas, vai, sim, muito mal: condições precárias das escolas, a desvalorização material e ética dos professores, imensas dificuldades em relação ao letramento, o que já se reflete, inclusive, no crescimento do analfabetismo em nosso país[77], e assim vai. No entanto, a crise educacional da qual fala Hannah Arendt é especificamente a crise da educação nos Estados Unidos e, levando em conta que tal texto foi publicado pela primeira vez em 1957, na Partisan Review, será que isto tem alguma coisa a ver conosco? Não esqueçamos aqui que o pensar ativo pouco ou nada tem em comum com as possibilidades crônicas do relógio e, em relação à suposta especificidade geográfica da questão, é a própria autora do texto quem nos alerta que “[...] há sempre a tentação de crer que estamos tratando de problemas específicos confinados a fronteiras históricas e nacionais, importantes somente para os imediatamente afetados.” (Arendt, 2013, p. 222)[78]. O que nós, viventes do século XXI, em um mundo globalizado, somos capazes de compreender perfeitamente. A filósofa que, de acordo com a promessa do título do seu texto, falará sobre a crise na educação, não começa por aí, mas, ao contrário, começa falando da “[...] crise geral que acometeu o mundo moderno em toda parte e em toda esfera da vida se manifesta diversamente em cada país, envolvendo áreas e assumindo formas diversas.” (p. 221). Mostra, assim, que a crise na educação não é uma crise isolada, mas antes está inserida em um contexto muito maior: em uma crise universal da humanidade. Aliás, isolar os aspectos que performam a totalidade do ser-no-mundo é sempre uma forma de ocultar mais do que revelar as possibilidades de tal ser. Nas palavras de Hannah Arendt: “[...] é impossível chegar a isolar completamente o elemento universal das circunstâncias específicas em que ele aparece.” (p. 223). É impossível, como nos diz, isolar o universal do particular. Talvez, o melhor a fazer seja tentarmos compreender primeiro a crise da humanidade para compreender, então, como tal crise se especifica na educação. A crise da modernidade Seria, pois, de certa importância observar que o apelo ao pensamento surgiu no estranho período intermediário que por vezes se insere no tempo histórico, quando não somente os historiadores futuros, mas também os atores e testemunhas, os vivos mesmos, tornam-se conscientes de um intervalo de tempo totalmente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda. (p. 35-36). Podemos tomar a citação como uma definição de crise, o momento do “não mais e ainda não” (Arendt, 2008, p. 187). Nossa filósofa tenta compreender o início da crise da Modernidade como uma ruptura com a tradição do pensamento ocidental. Ruptura que, embora possa ser identificada inicialmente no pensamento de Kierkegaard, Marx e Nietzsche, “[...] não é o resultado da escolha deliberada de ninguém, nem sujeita a decisão ulterior.” (p. 54). A prova mais cabal de tal ruptura são as duas grandes guerras mundiais do século XX, com todas as suas atrocidades e decorrências posteriores, apoiadas justamente naquele modelo de conhecimento que, quando do seu surgimento, prometia iluminar o mundo, deixando-nos como herança “[...] a ausência do pensamento – a despreocupação negligente, a confusão desesperada ou a repetição complacente de ‘verdades’ que se tornam triviais e vazias.” (Arendt, 2010, p. 6). Hannah Arendt distingue o que chama de era moderna e mundo moderno. Para a filósofa, a era moderna teve o seu começo no século XVII, terminando em meio ao século XX. Já o mundo moderno começou ao final da Segunda Guerra “com as primeiras explosões atômicas” (Arendt, 2010, p. 7). No nosso jargão, o que Hannah Arendt chama de mundo moderno é o que nós chamamos de pósmodernidade. Nome que parece ser perfeito para caracterizar o interstício que caracteriza a crise, o não mais e ainda não, do qual nos fala a filósofa. A Modernidade corresponde ao que chamamos de Iluminismo. Como o próprio nome declara, nesta fase da história a humanidade seria liberta da obscuridade imposta pelo dogmatismo religioso da Idade Média, caminhando para a luminosidade benfazeja da Razão. No entanto, tal conceito de razão, calcado, fundamentalmente, na validade universal da lógica fundamentada no princípio da não-contradição, arrastou cada vez mais a possibilidade do conhecimento intersubjetivamente válido, e assim o dizer da verdade, para o horizonte delimitado dos conceitos de tempo e de espaço, e, portanto, para o horizonte daquilo que pode ser calculado. Com o que, no seu desenvolvimento, a questão da verdade encastelou-se no seio das ciências empírico-formais; ou seja, tornou-se uma propriedade daquelas ciências que nada podem dizer a respeito do especificamente humano. E as ciências do homem, quando tentam equipararse a tais ciências, calculando-nos, acabam, não poucas vezes, manipulando em nós apenas o que apequena a nossa humanidade. Pois, afinal, como nos diz Heidegger: Na ciência contemporânea encontramos o querer dispor da natureza, o tornar útil, o poder calcular antecipadamente, o predeterminar como o processo da natureza deve se desenrolar para que eu possa agir com segurança perante ele. A segurança e a certeza são importantes. Exige-se uma certeza no querer controlar. O que se pode calcular de antemão, antecipadamente, o que pode ser medido é real e apenas isso. (Heidegger 2001, p. 47). É assim que, na contemporaneidade, só possamos existir enquanto realidades dadas, quando adentramos no reino do utilitário calculavelmente controlável, quando assumimos tal padrão como o único modo possível de produzir a existência humana. Como já nos disse Hannah Arendt, quando deixamos de pensar (Cf. Arendt, 2010, p. 6). Afinal, “a ciência não pensa” (Heidegger, 2001, p. 115), a ciência calcula. E, como vimos, diferentemente das promessas do Iluminismo, não o faz no intuito de nos libertar, antes pelo contrário, calcula-se que é para controlar, obscurecendo, assim, o livre desenvolvimento das potencialidades humanas. Dessa maneira, podemos dizer que as promessas da Modernidade não se cumpriram e, pior, a ciência, aquela mesma que libertaria a humanidade do dogmatismo religioso da Idade Média, tornou-se, para nós, ela mesma um dogma que, como dantes, também encobre interesses econômicos e políticos. O que acontece é que a Modernidade está esgotada, já chegou ao seu final, deu tudo o que podia nos dar. Porém, e este é o problema, a crise ainda não foi superada. O que está exposto claramente no próprio nome que usamos para designar a contemporaneidade: pós-modernidade. Ainda estamos ligados a ela, o hífen não nos engana. A contemporaneidade a suporta no descompasso prestíssimo delirante do consumo. Ao mesmo tempo em que a ideia de uma racionalidade universal foi questionada e, pode-se dizer, até mesmo derrotada, a mesma racionalidade unificante parece que em momento algum da nossa história foi mais poderosa. É desta contradição universal que emana a nossa crise. Talvez aqui aconteça justamente o que nos diz Hannah Arendt: O fim de uma tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicionais tenham perdido o seu poder sobre as mentes dos homens. Pelo contrário, às vezes parece que esse poder das noções e categorias cediças e puídas torna-se mais tirânico à medida que a tradição perde sua força viva e se distancia da memória de seu início; ela pode mesmo revelar toda sua força coerciva somente depois de vindo seu fim, quando os homens nem mesmo se rebelam mais contra ela. (p. 53). Talvez por isso mesmo não consigamos nem ao menos vislumbrar à distância a possibilidade de esboçar seriamente uma direção para a saída da crise. Uma das características do pensamento contemporâneo é justamente dar as costas para a tradição, repelindo o passado, posto que seria o velho que já não nos serve mais. Mas como desvencilhar-se de algo, se não conhecemos de fato o algo do qual queremos nos desvencilhar? Como pensar o novo, aquilo que está por ser, sem pensar o que já foi? Parece que quando nos sentimos tão poderosos quanto a noção de deus, pelo menos aquela da tradição judaicocristã, querendo criar o mundo ex-nihilo, acabamos correndo o risco de destruí-lo. Na recusa do que já foi a razão pós-moderna é fragmentada. A pós-modernidade “[...] põe um subsistema ao lado de outro subsistema, e mais outro, e ainda mais outro.” (Cirne-Lima, 1996, p. 15). No entanto, diferentemente do que pensa Cirne-Lima em relação aos subsistemas, não parece correto afirmar que não haja “uma unidade mais alta e mais ampla, que os abranja” (Cirne-Lima, 1996, p. 15). Ao que tudo indica, os cacos da racionalidade pós-moderna são recolhidos e reunificados pelo mercado, onde todos os fragmentos reencontram um valor, reconfigurando um mundo. Valor este que, up-to-date pode ser, inclusive, calculado. Como se vê, não podemos dizer assim, simplesmente, que a crise contemporânea é uma crise de valores, não. Os valores que unificam a pós-modernidade são concretos o suficiente para serem, inclusive, calculados pelas bolsas de valores ao redor do globo terrestre. Talvez, seja exatamente o excesso e a preeminência deste cálculo de valores que esteja no cerne da nossa crise, arrastando tudo o que era dantes considerado especificamente humano para as periferias do ser-nomundo, inclusive a educação. A crise na educação COMO JÁ FOI aqui ressaltado, ainda que a autora esteja pensando a partir dos anos cinquenta do século XX, nos Estados Unidos da América, nós, filosofando, pensamos primordialmente a partir das nossas experiências. Sempre lembrando que a crise na qual Hannah Arendt está inserida é, por princípio, a mesma na qual estamos inseridos ainda hoje: a crise da Modernidade. Tal crise ainda não foi superada. Antes pelo contrário, a permanência no interstício, no não mais e ainda não, só aumenta a esgarçadura do tecido social. Para nossa filósofa, a crise da educação é um dos aspectos mais característicos e sugestivos da crise geral que acomete o mundo, tornando-se um problema político de primeira ordem e nem “[...] é preciso grande imaginação para detectar os perigos de um declínio sempre crescente nos padrões elementares na totalidade do sistema escolar.” (p. 221-222). A crise da totalidade do sistema educacional interessa a todos, inclusive ao leigo, pois da essência da educação, a natalidade – “o fato de que seres nascem para o mundo” (p. 223) – todos nós participamos, direta ou indiretamente. Por isso todos precisamos dar a devida atenção à crise da educação. A crise educacional, destruindo os conceitos válidos até então, abre caminho para a essência da questão da educação. É, então, um momento profícuo para o pensamento, pois “nos obriga voltar às questões mesmas” (p. 223). Só se torna um desastre quando respondemos às questões com os próprios conceitos já constituídos e destruídos, ou seja, com preconceitos. Como nos diz Hannah Arendt: “Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão.” (p. 223). Tentemos nós, então, junto com a filósofa, refletir sobre a nossa crise. O novo e a educação TANTO OS Estados Unidos quanto o Brasil situam-se no chamado Novo Mundo. O ser novo, em relação, sobretudo, à Europa, é um dos fatores constituintes de ambas as nações, onde a imigração desempenhou, e por que não dizer que ainda desempenha, um papel fundamental para a constituição dos seus povos. Em países como esses, a educação tem um valor fundamental para a construção de uma identidade nacional. Agora, falando de nós mesmos, talvez por sermos ainda um país relativamente novo, nos interessamos por demais por tudo que é novidade. Na educação, ao que parece, não vai ser diferente. Ainda mais em meio à crise da Modernidade que nos afeta, caracterizada por um dar as costas à tradição. Hannah Arendt chama nossa atenção para o fato de que “todas as utopias políticas” (p. 225), desde a antiguidade, ao proporem o início de um novo mundo, propõem iniciá-lo pela educação dos novos, aqueles há pouco nascidos. O que, para a nossa filósofa, “no que toca à política, isso implica obviamente um grave equivoco” (p. 225), pois, dessa maneira, o novo não é instaurado efetivamente através do plano político. Aqui é preciso compreender, ainda que de forma sumária, qual o conceito de política para Hannah Arendt. Dito de maneira direta: “O sentido de política é a liberdade.” (Arendt, 2006, p. 38). Liberdade esta entendida negativamente, no seu sentido grego “como o não-ser-dominado e nãodominar” (Arendt, 2006, p. 48). Assim, a política, tal qual concebida por nossa filósofa, é ação que só pode ser exercida entre iguais “no mundo público comum a todos nós” (Arendt, 2006, p. 53), sem o uso da força ou da coerção, deixando de lado a esfera da “existência privada e da conexão familiar” (Arendt, 2006, p. 53). Fora disso, não há política propriamente dita, havendo apenas o seu simulacro. Mas, então, voltemos às utopias políticas ao estilo platônico que querem, rompendo com o mundo até então vigente, instaurar um mundo completamente novo. Qual seria mesmo o seu equívoco? Ora, para Hannah Arendt, o seu equívoco seria justamente romperem com o plano político. Pois, ao invés de, na tentativa de instauração do novo, aquele ou aqueles que propõem a novidade juntarem-se aos seus iguais [...] assumindo o esforço da persuasão e correndo o risco do fracasso, há a intervenção ditatorial, baseada na superioridade do adulto, e a tentativa de produzir o novo como um fait accompli, isto é, como se o novo já existisse. (p. 225). Para a filósofa, isto é justamente o que se passou na Europa com os movimentos revolucionários de feitio tirânico quando chegaram ao poder, ao invés da educação das crianças, a doutrinação. Daí a sua afirmação que deve ser bem compreendida a partir do conceito estrito de política: “A educação não desempenha papel nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já são educados.” (p. 225). Lembremo-nos aqui que a política é feita por aqueles que já estão, bem ou mal, inseridos no mundo da vida. Inserção no mundo da vida que é a especificidade da educação da qual está nos falando Hannah Arendt. Por isso a palavra educação não lhe soa bem agregada à política, pois lhe parece que sempre que a política se infiltra nos meios educacionais é mais como um simulacro de educação que, ao fim e ao cabo, almeja única e exclusivamente “a coerção sem o uso da força” (p. 225). Para a filósofa, quem realmente quiser instaurar politicamente, isto é, sem o uso da força e da coação, um novo mundo através da educação, deverá, assim como fez Platão em sua República, banir o velho, lá representado pela expulsão do poeta da cidade-ideal. O que, no fundo, é simplesmente uma ilusão, não passando de uma aporia insolúvel. Do ponto de vista das crianças que a utopia quer educar, o mundo dos adultos, por mais novo que se proponha ser, é sempre mais velho do que o das futuras gerações políticas: Pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo. (p. 226). No Brasil, país do Novo Mundo, a ilusão de que estamos a gestar o novo e que para isto é preciso aderir, de maneira irrestrita, às novidades, inclusive nos meios educacionais, parece ser ainda maior. Quando não poucas vezes a roupagem da novidade serve apenas para obliterar a possibilidade de mudanças, por pequenas que possam ser, tendo em vista a reprodução daquilo que sempre foi[79]. Para Hannah Arendt, em relação à educação, esta “[...] ilusão do pathos do novo produziu suas conseqüências mais sérias apenas em nosso século [...]” (p. 226), o século XX, nos EUA e, pari passu, também no Brasil. Tomando como modelo o que na Europa era exercitado, aqui e acolá, apenas como experimentos, “miscelânea de bom senso e absurdo” (p. 226), iniciou-se “uma radical revolução em todo o sistema educacional” (p. 227) em ambos os países, com o intuito de efetivar uma educação progressista em relação àquela que havia até então. Daí para diante, a educação, de uma forma geral, passou a desprezar e por isso combater a educação tradicional, na busca da instauração “de uma educação inteiramente nova” (Azevedo, 2010, p. 64). Educação essa que, segundo Hannah Arendt, chega a eliminar o mais básico dos ajuizamentos humanos, o bom senso. Aquilo que no início da Modernidade Descartes dizia que era a coisa mais bem repartida entre os homens. Para a filósofa, sinal seguro da crise em que vivemos: o final da Modernidade ainda não superada. Mas em qual momento histórico Hannah Arendt identifica tal acontecimento? No texto que estamos lendo, ela diz que isto teria ocorrido há uns 25 anos. Então, se como já sabemos, se A crise na educação foi publicado pela primeira vez em 1957, tal acontecimento teria se dado a partir de 1932! Ora, você deve estar se perguntando, mas por que a exclamação? Certamente não é por nenhuma feliz coincidência que este é exatamente o ano em que, no Brasil, se torna público O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Educação esta que se propõe a ser “[...] uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida.” (Azevedo, 2010, p. 40). E, portanto, se vencida, aos olhos dos escolanovistas, morta; que, estando morta, deve ser enterrada. Daqui para frente, em termos de educação – mas não somente –, com o desenvolvimento da sociedade de massa, a novidade é o que vai nos interessar cada vez mais. Não por outra coisa, a não ser por isso mesmo, pela própria novidade. Independentemente de saber se o novo será adequadamente propício ou não, ele passará a ser autojustificado por si mesmo, ou seja, não carecerá de fundamentação. Como se vê, os signatários do Manifesto escolanovista estavam perfeitamente sintonizados com os movimentos educacionais que ocorriam pelo resto do mundo. Afinal, os idealizadores do Manifesto tinham uma excelente formação. Tomemos como exemplo Anísio Teixeira, um dos principais idealizadores do documento escolanovista que, por duas vezes foi aos Estados Unidos para estudar, quando, então, “[...] travou contato com uma literatura pedagógica e um sistema público de ensino que não conhecia.” (Nunes, 2010, p. 18). A primeira vez em 1927, a segunda entre 1928 e 1929, período no qual esteve no Teachers College da Universidade de Colúmbia. As duas viagens foram marcadas profundamente pelo conhecimento da obra de John Dewey, que imprimirá um novo rumo à sua vida e, consequentemente, à educação no Brasil. Como nos diz Clarice Nunes: Escolher Dewey, de quem seria o primeiro tradutor no Brasil, era optar por uma alternativa que substituiu os velhos valores inspirados na religião católica e abraçados com sofreguidão. Era apostar na possibilidade de integrar o que, nele, estava cindido: o corpo e a mente, o sentimento e o pensamento, o sagrado e o secular. Era abrir seu coração para o pensamento científico, apostando na crença de que o enraizamento e as direções da mudança social a favor da democracia estavam apoiadas na infância. (Nunes, 2010, p. 19)[80]. O que mais nos interessa aqui é o fato de que, desde a publicação do Manifesto, os ideais da Escola Nova vão, cada vez mais, imiscuindo-se na nossa constituição pedagógica, ao ponto de, entre altos e baixos (Cf. Saviani, 2007), tornar-se um traço indelével da educação brasileira. Não tanto tempo atrás, em 1983, Saviani nos diz como, em geral, o professor brasileiro pensa a sua prática educativa: Diríamos que ele tem uma cabeça escolanovista. Devido à predominância da influência ‘progressista’ nos cursos de educação, o professor absorveu o ideário da Escola Nova. Ele concebe o processo educativo tendo o aluno por centro. (Saviani, 1983, p. 40). Nos nossos dias, as concepções pedagógicas da Escola Nova permanecem vigorosas, inclusive como política de Estado, presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), sob “o lema ‘aprender a aprender’, tão difundido na atualidade” (Saviani, 2007, p. 429), que “remete ao núcleo das idéias pedagógicas escolanovistas” (Saviani, 2007, p. 429). Mas, afinal, o que a Escola Nova tem a ver com A crise da Educação da nossa filósofa? Voltemos, então, ao texto, pois nele Hannah Arendt aponta três pressupostos básicos das novas teorias determinantes para a instauração da crise educacional. E lá, talvez, possamos perceber algum elo de ligação. Vejamos quais são tais pressupostos. Os três pressupostos O PRIMEIRO É QUE existe um mundo da criança e uma sociedade formada entre crianças autônomas, e que se deve, na medida do possível, permitir que elas governem.” (p. 230). Tal pressuposto pode ser facilmente identificado no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, quando diz que a Escola Nova “[...] transfere para a criança e para o respeito de sua personalidade o eixo da escola e o centro de gravidade do problema da educação.” (Azevedo, 2010, p. 49). Em tal escola, a criança viverá sua vida própria espontaneamente satisfazendo os seus interesses (Cf. Azevedo, 2010) e o professor será apenas uma espécie de estimulador para que isso aconteça. Para Hannah Arendt, isso rompe com “as relações reais e normais entre crianças e adultos” (p. 230). No dia a dia factual do ser-no-mundo, as crianças não vivem isoladas, em um mundo onde elas mesmas impõem suas regras, convivendo, antes, com pessoas de todas as idades, já comungando regras comuns. E mais, para Hannah Arendt, tal pressuposto acaba levando em conta “somente o grupo, e não a criança individual” (p. 230)[81]. “ Dessa maneira, considerando a criança individual no seu grupo infantil, a sua situação não é nada boa e está totalmente sujeita à tirania do grupo, visto que esse possui autonomia em relação ao mundo dos adultos e que, portanto, deve se auto-organizar. Em tal situação, o indivíduo infantil, que age diferentemente do padrão grupal, não tem a quem recorrer quando reprimido. “Assim, ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria.” (p. 230). Situação que, para Hannah Arendt, leva ao conformismo ou à delinquência juvenil, quando não a uma mistura dos dois. Agora temos o segundo pressuposto que emerge junto com a crise educacional na contemporaneidade, visto que é uma das suas condições de possibilidade. Nas palavras da nossa filósofa: Sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo, a Pedagogia transformouse em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada. (p. 231). Ora, que a Escola Nova esteja pautada pela Psicologia moderna, fortemente marcada pelo seu caráter naturalista e, portanto, biológico, logo se vê pela terminologia empregada no Manifesto dos Pioneiros, quando diz que o escolanovismo está pautado no fator psicobiológico do desenvolvimento humano,[82] e a lógica do seu programa educacional não é a lógica formal dos adultos, mas a lógica psicológica, “que se baseia na natureza e no funcionamento do espírito infantil” (Azevedo, 2010, p. 50). Quanto ao pragmatismo, se não bastasse dizer de toda a influência que John Dewey exerceu sobre a formação de Anísio Teixeira[83], e que, portanto, tal corrente do pensamento influenciou decisivamente a constituição da Escola Nova, os signatários do Manifesto expressam a vocação pragmatista do escolanovismo no próprio documento, dizendo que a educação nova é “certamente pragmática” (Azevedo, 2010, p. 40). Mas por que a educação calcada na psicologia moderna e no pragmatismo nos levou à crise mesmo? Já esquecemos? Conforme Hannah Arendt, tais princípios levaram à depreciação dos conteúdos a serem ensinados. Visto que o importante em tal concepção pedagógica não seria mais a apreensão dos conteúdos, mas, antes, a aprendizagem dos processos de aprendizagem, ou seja, o importante é aprender a aprender. Tal processo, como diz o Manifesto da Escola Nova, se daria ou se dá “[...] sobre a base de uma cultura geral comum, em que importará menos a quantidade e a qualidade das matérias do que o método de sua aquisição.” (Azevedo, 2010, p. 55). Para nossa filósofa, a partir da instauração desse pressuposto, passou-se a negligenciar a formação específica dos professores, na medida em que eles não precisam mais conhecer especificamente qualquer coisa em particular, como diz o Manifesto, bastando uma cultura geral comum. Assim, o professor perde um dos fatores que legitima a sua autoridade, o conhecimento. Com o que, “[...] não apenas os estudantes são efetivamente abandonados a seus próprios recursos [...]” (Arendt, p. 231), mas, também, o professor se vê no abandono, praticamente perdendo a sua própria razão de ser. “Dessa forma, o professor não-autoritário, que gostaria de se abster de todos os métodos de compulsão por ser capaz de confiar apenas em sua própria autoridade, não pode mais existir.” (p. 231). Chegamos, então, ao terceiro pressuposto básico apontado por Hannah Arendt que sustenta a crise da educação. Tal pressuposto diz “[...] que só é possível conhecer e compreender o que nós mesmos fizemos, e sua aplicação à educação é tão primária quanto óbvia: consiste em substituir, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer.” (p. 232). Exatamente o que está dito no Manifesto dos Pioneiros brasileiros: Mas, se a escola deve ser uma comunidade em miniatura, e se em toda a comunidade as atividades manuais, motoras ou construtoras “constituem as funções predominantes da vida”, é natural que ela inicie os alunos nessas atividades, pondo-os em contato com o ambiente e com a vida ativa que os rodeia, para que eles possam, desta forma, possuí-la, apreciá-la e senti-la de acordo com as aptidões e possibilidades. (Azevedo, 2010, p. 50). Na ânsia de romper totalmente com a educação tradicional, para que ela, e, portanto, os seus conteúdos não sejam mais transmitidos, pois considerados “conhecimento petrificado” (p. 232), ou ainda, “artificial e verbalista” (Azevedo, 2010, p. 40), substitui-se o ensino-aprendizagem pelo fazer para aprender a aprender fazer. Portanto, “[...] a intenção consciente não era a de ensinar conhecimentos, mas sim de inculcar uma habilidade.” (p. 232). Diga-se de passagem, intenção esta muito apropriada para um país como o nosso que, àquela altura, em 1932, começava de fato a industrializar-se, necessitando, portanto, mão de obra habilitada para lidar com as máquinas. No entanto, tal intenção consciente falha quando a questão é fazer que nossas crianças adquiram “os pré-requisitos normais de um currículo padrão” (p. 232). Mas Hannah Arendt não para por aí. Como acabamos de ler no excerto citado do Manifesto, a escola nova é uma comunidade onde as atividades manuais, motoras ou construtoras, devem ser realizadas de acordo com as aptidões e possibilidades dos educandos, e se, como também nos diz o Manifesto, a educação escolanovista tem em vista “a atividade espontânea, alegre e fecunda” (Azevedo, 2010, p. 49) dos mesmos educandos, qual atividade estaria mais de acordo com as aptidões da criança, sendo-lhe a mais espontânea a não ser a brincadeira? Nossa filósofa critica esta opção pelo brinquedo da nova Pedagogia, onde o brincar é “[...] visto como o modo mais vívido e apropriado de comportamento da criança no mundo, por ser a única forma de atividade que brota espontaneamente de sua existência enquanto criança.” (p. 232). Dessa maneira, a escola passa a ser um lugar para se brincar, uma espécie de playground, onde não se admite nenhum esforço por parte da criança no processo educativo, tudo devendo partir da espontaneidade lúdica do mundo infantil. Sendo assim, só pode adentrar nos meios escolares aquilo que pode ser aprendido através da brincadeira. Para Hannah Arendt, novamente, “[...] sob o pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu mundo próprio [...]” (p. 233), se é que assim a criança possa ter, de fato, um mundo. Tal isolamento das crianças faz que as mais velhas permaneçam mais tempo ligadas à primeira infância (Cf. p. 233). Procura ocultar o fato de que a criança é um ser-no-mundo, e que, portanto, na origem do seu ser está o ser-com-os-outros, inclusive, é claro, com os adultos, cujo relacionamento inclui o ensino e a aprendizagem (Cf. p. 233). Uma Pedagogia assim também oculta que a infância não é um fim último, encerrado em si mesmo. Por ser uma etapa do desenvolvimento humano, o mais provável é que a criança chegue à fase adulta, para a qual será preciso estar suficientemente preparada. As duas questões DESVELADOS os três pressupostos básicos inerentes à instauração da crise na educação, seja à época que Hannah Arendt detectou-a, seja em nossos dias, visto que, inegavelmente, a crise perdura em nosso país, a filósofa propõe buscar respostas para duas questões: Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional, isto é, quais são os motivos reais para que, durante décadas, se pudessem dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom senso? Em segundo lugar, o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação – não no sentido de que sempre se pode aprender, dos erros, o que não se deve fazer, mas sim refletindo sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização, ou seja, sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana? (p. 234). Hannah Arendt começa pela segunda questão. Mas começa a partir do que se põe na primeira, para ressaltar não apenas a profundidade da crise educacional na qual nos encontramos, mas, também, a gravidade de toda crise da educação. Ainda que tal crise não estivesse inexoravelmente ligada à crise geral da Modernidade, mesmo assim, a crise educacional “originaria séria preocupação” (p. 234), na medida em que a educação é um dos aspectos da existência humana sem a qual a mundanidade[84] deste animal que somos nós, que continuamente chegamos ao mundo, deixaria de efetivar-se. Diferentemente dos outros animais, não somos, assim como eles, determinados apenas fisiologicamente. Quando uma criança nasce, ela não adentra apenas na vida, mas adentra no mundo, para o qual não tem nenhuma estrutura prévia que a ampare, a não ser um corpo biológico já diante de uma dupla situação no mundo: “é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação” (p. 235). Daí a necessidade da educação. Sem que a criança seja minimamente educada, ela não se aprenderá por si mesma como ser-nomundo. A nossa mundanidade não nasce conosco, é uma produção que sempre se reconstitui e se renova em cada criança que nasce. Como se vê, a educação não está ligada apenas ao nosso desenvolvimento biológico, senão [...] a educação seria apenas uma função da vida e não teria que consistir em nada além da preocupação com a preservação da vida e do treinamento e na prática do viver que todos animais assumem em relação a seus filhos. (p. 235). A educação mundaniza os recém-chegados ao mundo. Dessa maneira, os pais não trazem uma criança apenas à vida, mas a inserem concomitantemente no mundo. E, consequentemente, são responsáveis por dar conta educacionalmente deste duplo aspecto da concepção de animais humanos: o desenvolvimento da vida do filho e a continuidade do mundo através da criança. O que nem sempre se efetiva harmoniosamente, mas, antes, a partir do conflito. Não há fase mais frágil da vida humana diante do mundo do que a infância. Portanto, a criança requer cuidados especiais para que nada de mal lhe aconteça. Por outro lado, o mundo também “[...] necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração.” (p. 235). Diante da necessidade de proteção, o lugar habitual da criança é o seio familiar, a casa, espaço privado que também propicia segurança aos adultos; refúgio diário da publicidade do mundo, resguardo da vida humana em geral. Pois, “[...] toda vez que esta é permanentemente exposta ao mundo sem proteção da intimidade e da segurança, sua qualidade vital é destruída.” (p. 236). Porque, para o mundo comum, o mundo público, a vida enquanto vida não é levada em conta, mas, antes, aquilo que conta é o trabalho de cada pessoa que conflui para a existência e continuidade do mundo comum. Para Hannah Arendt, o mesmo acontece com a educação criticada, que força as crianças, “seres humanos em processo de formação” (p. 236), a viverem em uma espécie de mundo público comum. O que agrava ainda mais a situação é que não se leva em conta que “esta não é uma vida pública real” (p. 236). Parecendo, antes, uma espécie de fraude que, na ânsia por estabelecer um mundo propriamente infantil, “destrói as condições necessárias ao desenvolvimento e crescimento vitais” (p. 236) das crianças. Contudo, o que mais espanta a nossa filósofa é o fato de que um modelo educacional que se apresentava como renovador e progressista em relação ao modelo anterior, o tradicional – que deveria ser deixado de lado entre tantas outras coisas por tratar a criança como uma espécie de adulto em miniatura –, ao fim e ao cabo, com a aplicação de todas as suas teorias ditas revolucionárias, que considerava a criança a partir da “[...] lógica psicológica, isto é, com a lógica que se baseia na natureza e no funcionamento do espírito infantil [...]” (Azevedo, 2010, p. 50) e que, portanto, libertaria a criança dos padrões impostos pelo mundo dos adultos, tenha feito exatamente ao contrário de suas promessas, expondo a infância “[...] àquilo que, mais do que qualquer coisa, caracterizava o mundo adulto, o seu aspecto público.” (p. 237). Não leva justamente em consideração aquilo que os signatários do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova chamaram de espírito infantil, as necessidades inerentes à infância. Porém, para Hannah Arendt, o que propiciou o fracasso de tal modelo educacional não está diretamente ligado a uma questão propriamente da educação. Mas sim a um fenômeno que, segundo ela, se inicia ao final da Modernidade, ou seja, na segunda metade do século XX: os conceitos e preconceitos acerca da vida privada e do mundo público e do inter-relacionamento entre ambos. Na pós-modernidade, as fronteiras entre o público e o privado vão se diluindo cada vez mais. O que pode ser considerado um fator de emancipação para os trabalhadores e para as mulheres, na medida em que passam a ter “[...] direito ao mundo público, isto é, a verem e serem vistos, a falar e serem ouvidos.” (p. 238). Para as crianças, seres humanos ainda em formação, é um verdadeiro desastre que o mundo público invada a esfera do privado, e o privado se torne público, pois isso as deixa sujeitas àquilo para o qual ainda não estão preparadas para se defender. Agindo dessa maneira, a sociedade torna a existência mais difícil “[...] para suas crianças, que pedem, por natureza, a segurança do ocultamento para que não haja distúrbios em seu amadurecimento.” (p. 238). Como se vê, se a diluição entre a esfera do público e do privado pode ser considerada, de alguma forma, uma emancipação no caso dos trabalhadores e das mulheres, para as crianças, as últimas a serem agregadas a tal processo, essa diluição “constituiu abandono e traição” (p. 238). Mas, diante do que está posto, será que ainda é possível para a escola cumprir a sua tarefa em relação às crianças? Mas, afinal, qual seria a tarefa da escola? Ora, geralmente é a escola que, por primeiro, introduz a criança no mundo. Contudo, a escola não pode ser confundida com o mundo, muito menos fingir que o é, pois “[...] ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo, com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo [...]” (p. 238), cuja adesão não é exigida necessariamente pela família, mas pelo Estado. Esta transição do âmbito familiar para a publicidade do mundo, tendo em vista que a criança ainda é um estranho em face às possibilidades do ser-no-mundo, não deve ser feita abruptadamente, mas antes, aos poucos, gradualmente. O educador, ainda que não tenha produzido o mundo sozinho, ou mesmo que pense que o mundo deveria ser bem diferente daquilo que é, será, para a criança, inevitavelmente, o representante do mundo, pelo qual, consequentemente, deve assumir a responsabilidade. Afinal, cabe a nós, os adultos, introduzir as crianças no constante devir do mundo. Como nos diz Hannah Arendt: “Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.” (p. 239). Para nossa filósofa, o que chamamos de autoridade nada mais é do que a contrapartida da responsabilidade que assumimos em relação ao mundo. Não são a mesma coisa a qualificação e a autoridade do professor, ainda que sem qualificação a autoridade do professor fique seriamente prejudicada: “A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo.” (p. 239). Pois, afinal de contas, é ele quem vai dizer para a criança “isso é nosso mundo” (p. 239). Como se vê, existem para nossa filósofa dois traços essenciais que caracterizam, ou deveriam caracterizar o educador: qualificação e autoridade. Sem entrarmos em maiores detalhes, pelo menos no nosso tempo, ninguém negaria que o que não falta é oportunidade para a qualificação. São muitas as ofertas, tanto por parte dos governos quanto por parte da iniciativa privada: cursos de curta duração, tanto presenciais quanto a distância, da mesma forma as especializações, mestrados e doutorados. Agora, quanto à autoridade em sala de aula, até mesmo com os pequeninos... Com certeza, desde a derrocada da escola tradicional, o professor perdeu muito da sua autoridade em sala de aula. No entanto, para Hannah Arendt, a perda da autoridade em sala de aula nos remete antes para a situação da vida política e pública ao final da Modernidade. Pois, em tais esferas, poucos exercem os seus encargos com a responsabilidade em relação ao mundo que legitimaria os seus lugares no horizonte social. O que talvez possa indicar que, na contemporaneidade, todos nós, e não apenas aqueles que exercem cargos políticos e públicos, devamos nos responsabilizar pelo mundo. Tanto quanto, também pode ser que, “[...] toda e qualquer responsabilidade pelo mundo está sendo rejeitada, seja a responsabilidade de dar ordens, seja a de obedecê-las.” (p. 240). Para a filósofa, as duas situações confluem para a efetivação do fenômeno da perda geral da autoridade hodiernamente. No entanto, em relação à criança e à educação não há como aceitar, de forma alguma, a existência desta perda de autoridade, mesmo porque não foram as próprias crianças que recusaram a autoridade dos adultos. Evidentemente, elas não têm poder para fazê-lo. Mesmo que as ditas pedagogias progressistas, absurdamente, tenham tratado as crianças como um grupo autônomo de oprimidos em busca da libertação em face à tirania dos adultos. Para Hannah Arendt: “A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças.” (p. 240). Essa talvez tenha sido a maneira mais radical da humanidade contemporânea de expressar, consciente ou inconscientemente, a sua total insatisfação e rejeição ao mundo tal qual ele se estruturou após o término da Segunda Guerra: É como se os pais dissessem todos os dias: – Nesse mundo, mesmo nós não estamos muito a salvo em casa; como se movimentar nele, o que saber, quais habilidades dominar, tudo isso também são mistérios para nós. Vocês devem tentar entender isso do jeito que puderem; em todo caso, vocês não têm o direito de exigir satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por vocês. (p. 242). Para a filósofa, essa maneira de pensar, adentrando na escola, destrói um dos traços essenciais da educação: o seu caráter de conservação. Abrigar e proteger, e, portanto, conservar, são tarefas inalienáveis da atividade educacional. É neste sentido, no âmbito das relações educativas, ou seja, das relações que se dão entre crianças e adultos, que podemos dizer da necessidade da escola ser sempre conservadora. O que, diferentemente, na relação política, que se dá entre pessoas iguais – os adultos –, não pode ocorrer o mesmo. O mundo, no seu constante devir, exige o constante surgimento do novo para acompanhar as suas mudanças, sob o risco de perecer. Risco ao qual, diante da finitude dos formadores de mundo, nós mesmos, estamos sempre correndo. Daí a necessidade da educação fomentar a emergência do novo latente em cada nova geração, conservando-a, a fim de preservar a possibilidade da novidade em face a um mundo velho que, por mais revolucionário que possa ter sido em seu surgimento, da perspectiva das gerações seguintes, será sempre velho, despropositado e prestes à dissolução (p. 243). Dito isso, Hannah Arendt passa para a tentativa de responder ao seu segundo questionamento, que na verdade é o primeiro. Estão lembrados? Podemos repeti-lo: Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional, isto é, quais são os motivos reais para que, durante décadas, se pudessem dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom senso? (p. 234). Aqui também poderemos ver, de maneira claríssima, o quanto a crise contemporânea da educação está inexoravelmente ligada à crise da Modernidade em sua totalidade, ou seja, “com a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado” (p. 243). O que, nos meios educacionais, torna a crise ainda mais amplificada. O educador é justamente o “[...] mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado.” (p. 244). E assim foi até o final da Modernidade. O passado efetivamente já não nos serve como alicerce para continuarmos a construir novos patamares no mundo. A tradição perdeu a sua autoridade. No entanto, ainda não fomos capazes de construir alicerces realmente novos para a edificação segura de um outro mundo possível. Isto é o que chamamos de crise, o momento do estranhamento, do não mais e do ainda não. Contudo, ainda que a crise possa se arrastar por muitíssimo tempo, levando-nos à destruição ou à possibilidade de formação de um outro mundo, a educação não pode ficar à mercê do nonsense que nos caracteriza, abrindo mão da autoridade e da tradição. A não ser que a opção seja de fato pela destruição do mundo. Para tanto: Cumpre divorciarmos decisivamente o âmbito da educação dos demais, e acima de tudo do âmbito da vida pública e política, para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados mas não possuem validade geral, não devendo reclamar uma aplicação generalizada no mundo dos adultos. (p. 246). Sem autoridade, ou seja, sem que não nos responsabilizemos pelo mundo, mesmo que não nos reconheçamos nele, mesmo que saibamos que ele, assim como está, já não nos sirva mais e, sem tradição, sem o reconhecimento do passado, sabendo que o novo não se produz ex nihilo, não há educação que seja efetivamente possível. Não havendo a possibilidade da educação fundamentalmente divorciada daquilo que já é, não há a possibilidade da emergência de um mundo realmente novo. Contudo, ainda que aquilo que se está propondo seja uma ruptura entre o mundo público e político e a educação, não podemos cair na armadilha das novas pedagogias, fazendo com que tal ruptura se torne uma barreira entre as crianças e os adultos, como se ambos vivessem em mundos distintos, onde as crianças vivessem de maneira autônoma a partir de suas próprias leis. É inegável que, independentemente da educação escolar, os adultos não só se relacionam com as crianças e vice-versa, mas tal relação se constitui também em um constante vir a ser das novas gerações por meio da natalidade. Natalidade que traz à baila a questão da educação. Educação esta que, nas palavras de Hannah Arendt: É o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las do nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (p. 247). Como se vê, em meio à crise, a educação pode ser o lugar tanto da lucidez pensante quanto do amor. Referências AMARAL Fº, Fausto dos Santos. A Estética Máxima. Chapecó: Argos, 2003. ______. Presença distante, distância presente: uma reflexão sobre a EaD. Cadernos de Pesquisa: Pensamento Educacional, v. 6., n. 13, maio/ago. 2011. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. ______. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2008. ______. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2013. ______. O que é Política? 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Sobre o autor Fausto dos Santos, nasceu em Santos (SP). Graduado em Filosofia (bacharelado e licenciatura) pela PUCRS (1996), onde também fez o seu Mestrado em Filosofia (1999). Doutorou-se em Filosofia pela UFRJ (2005) com tese sobre Platão. Lecionou disciplinas filosóficas por dez anos na ULBRA – Canoas, e atualmente é professor-pesquisador do PPGEd da Universidade Tuiuti do Paraná. Além de diversos artigos e capítulos de livros, são suas as seguintes obras: Filosofia aristotélica da linguagem (Chapecó: Argos, 2002), A estética máxima (Chapecó: Argos, 2003), Platão e a linguagem poética: o prenúncio de uma distinção (Chapecó: Argos, 2008), Prospecções filosóficas: Platão e Aristóteles, Estética, Hermenêutica e Teologia (Chapecó: Argos, 2012). É organizador da obra de Edvino A. Rabuske, publicada postumamente: Teologia e Filosofia: irmãs rivais (Chapecó: Argos, 2013). Créditos Argos Editora da Unochapecó www.unochapeco.edu.br/argos Título Os filósofos e a educação Autor Fausto dos Santos Amaral Filho Coleção Coordenador Assistente editorial Assistente de vendas Secretaria Debates, n. 11 Dirceu Luiz Hermes Alexsandro Stumpf Neli Ferrari Leonardo Favero Marcos Domingos Robal dos Santos Distribuição e vendas Neli Ferrari Andressa Cazalli Ximena Gil da Silva Reinehr Divulgação Joice Juliana Godoi de Oliveira Projeto gráfico e capa Alexsandro Stumpf Diagramação Alexsandro Stumpf Caroline Kirschner Kamila Kirschner Preparação dos originais Emanuelle Pilger Mittmann Bárbara Cristina Milioransa Michailoff Revisão Carlos Pace Dori Emanuelle Pilger Mittmann Oneida Maria Ragnini Belusso Publicação Produção de ebook 2014 S2 Books [1] Para a confirmação de tal improbabilidade ver: Spinelli (1998). [2] “Como vissem que todo este mundo sensível está em movimento, e a respeito do que muda nenhuma declaração verdadeira se pode fazer, disseram que no tocante àquilo que por toda parte e a todos os respeitos está mudando, evidentemente nada se podia afirmar com segurança. Foi essa opinião que floresceu na mais extrema das doutrinas acima mencionadas, a dos que se dizem discípulos de Heráclito, qual a defendida por Crátilo.” (Aristóteles, Met. 4, 1010 a). [3] “É entre Parmênides e Heráclito que se abre o espaço em que, desde então, se faz Filosofia. Parmênides, dizendo que tudo é uno, fornece o elemento do lógos universal que abrange tudo; Heráclito, dizendo que tudo flui, que tudo é movimento de pólos opostos, fornece o elemento da Dialética. Hen kai Pan e Panta Rei, ‘O todo e o Uno’ e ‘tudo flui’ são desde então lemas de toda e qualquer Filosofia.” (Cirne-Lima, 1996, p. 23). [4] “Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas; mas do úmido exalam também os vapores.” (Fr. 12). “No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos.” (Fr. 49 a). “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio.” (Fr. 91). [5] “Ao lado da formação meramente formal do entendimento, existiu igualmente nos sofistas uma educação formal no mais alto sentido da palavra, a qual não consistia já numa estruturação do entendimento e da linguagem, mas partia da totalidade das forças espirituais. É Protágoras quem a representa.” (Jaeger, 1995, p. 342). [6] Para uma leitura do Protágoras de Platão, pode-se ver: Amaral Fº, Fausto dos Santos. Platão e a Linguagem Poética: o prenúncio de uma distinção. Chapecó: Argos, 2008. [7] “Sobre os Deuses não tenho possibilidade de afirmar nem que são, nem que não são.” (Diels; Kranz, 80 b 4). [8] Sabemos a complexidade que envolve a interpretação dos Diálogos Socráticos de Platão, obras cênicas por excelência, “literatura de ficção e, muito frequentemente, de fantasia” (Kahn, 2000, p. 31), não relatos propriamente historiográficos. Porém, se a arte grega é, como reconhece o próprio Platão no livro X da sua República, uma espécie de imitação (mímesis) daquilo que é (phýsis), deve haver alguma relação entre o pensamento do Protágoras personagem e do Protágoras histórico. No entanto, nunca podemos deixar de esquecer que é Platão quem fala através dos seus personagens. [9] Na medicina crise é o momento aonde o desenvolvimento da doença, chegando ao ápice das suas possibilidades, impõe uma decisão: o começo da cura ou a dissolução na morte. [10] Para desenvolver esta questão pode-se ver o primeiro capítulo de: Gadotti, Moacir. Educação e Poder: Introdução à Pedagogia do Conflito. São Paulo: Cortez, 2008. [11] Com o termo horizonte político deve-se compreender, conjuntamente, a dimensão histórica, social, econômica e ética que a palavra política comporta. [12] “Se em política o objetivo é vencer, em educação o objetivo é convencer; se a prática política se apóia na verdade do poder, a prática educativa apóia-se no poder da verdade.” (Saviani, 2007, p. 224). [13] O que pode ser visto em: Amaral Filho, Fausto dos Santos. Platão e a Linguagem Poética: o prenúncio de uma distinção. Chapecó: Argos, 2008. [14] “Quando entendemos que a prática será tanto mais coerente e consistente, será tanto mais qualitativa, será tanto mais desenvolvida quanto mais consistente e desenvolvida for a teoria que a embasa, e que uma prática será transformada à medida que exista uma elaboração teórica que justifique a necessidade de sua transformação e que proponha as formas da transformação, estamos pensando a prática a partir da teoria. Mas é preciso também fazer o movimento inverso, ou seja, pensar a teoria a partir da prática, porque se a prática é o fundamento da teoria, seu critério de verdade e sua finalidade, isso significa que o desenvolvimento da teoria depende da prática.” (Saviani, 2008, p. 107). Na linguagem dos estudiosos de Platão, chamaríamos tal movimento de dialética ascendente (do particular ao universal) e dialética descendente (do universal ao particular). [15] Para o conceito de integralidade orgânica aplicado às obras de Platão, pode-se ver: Amaral Fº, Fausto dos Santos. A Filosofia de Hegel e a Poesia de Platão, ou ainda, Integralidade Orgânica: para uma hermenêutica dos diálogos de Platão. In: Costa, Danilo Vaz Curado; Pimentel Jr., Paulo Albino; Silva, Adriano Silveira (Orgs.). Dialética e Metafísica: o legado do Espírito. Festschrift em homem a Paulo Meneses. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2010. [16] “Quando o Estado aristocrático desaparece nos centros mais importantes da Grécia e com ele a transmissão hereditária das qualidades do estadista, surge para os helenos o problema de como realizar essa transmissão por via não hereditária. É quando tem lugar o grande movimento educacional dos sofistas.” (Mello, 1981, p. 71). [17] Para uma compreensão das principais vertentes teóricas sofisticas sobre a linguagem pode-se ver: Amaral Fº, Fausto dos Santos. Filosofia Aristotélica da Linguagem. Chapecó: Argos, 2002. [18] “Que estas mulheres serão comuns a todos esses homens, e nenhuma coabitará em particular com nenhum deles; e, por sua vez, os filhos serão comuns, e nem os pais saberão quem são os seus próprios filhos, nem os filhos os seus pais.” (Rep., 457 c-d). [19] “Em primeiro lugar, nenhum possuirá quaisquer bens próprios, a não ser as coisas de primeira necessidade; em seguida, nenhum terá habitação ou depósito algum, em que não possa entrar quem quiser. Quanto a víveres, de que necessitarem atletas guerreiros sóbrios e corajosos, ser-lhes-ão fixados pelos outros cidadãos, como salário da sua vigilância, em quantidade tal que não lhes sobre nem lhes falte por um ano. As suas refeições serão comuns, e em comunidade viverão, como soldados em campanha.” (Rep., 416 d-e). [20] “Se possuírem terras próprias, habitações e dinheiro, serão administradores dos seus bens e lavradores, em lugar de guardiões, volver-se-ão em déspotas inimigos dos outros cidadãos, em vez de aliados, passarão toda a vida a odiar e a ser odiados, a preparar conspirações e a ser objeto delas, muito mais receosos dos inimigos internos do que dos externos, e a precipitar-se, eles e o resto da cidade, para a beira da ruína.” (Rep., 417 a-b). [21] “Se esquecermos a forma literária ‘diálogo’ para procurar estabelecer um ‘sistema’ de afirmações platônicas e, a partir delas, extrair algumas proposições essenciais que formassem a verdade procurada, encontraremos muitas contradições, muitas incoerências, poucas certezas e poucas evidências.” (Gagnebin, 2004, p. 14). [22] “De fato, a filosofia começa em forma de tratados: Anaximandro, Anaxímenes e os demais da tradição jónica escreveram tratados.” (Scolnicov, 2006, p. 123). [23] “Toda a gente reconhece que os diálogos de Platão são composições dramáticas admiráveis onde, diante de nós, as idéias e os homens que as trazem se chocam e se confrontam. Toda a gente, ao ler um diálogo de Platão, sente que ele poderia ser dramatizado, levado à cena.” (Koyré, 1988, p. 12). [24] Para o conceito de integralidade orgânica aplicado às obras de Platão, pode-se ver: Amaral Fº, Fausto dos Santos. A Filosofia de Hegel e a Poesia de Platão, ou ainda, Integralidade Orgânica: para uma hermenêutica dos diálogos de Platão. In: Costa, Danilo Vaz Curado de Menezes; Pimentel Jr., Paulo Albino; Silva, Adriano Silveira (Orgs.). Dialética e Metafísica: o legado do Espírito. Festschrift em homem a Paulo Meneses. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2010. [25] “O espanto é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a Filosofia.” (Platão. Teeteto, 155 d). [26] Para aprofundar tal questão, pode-se ver: Amaral Fº, Fausto dos Santos. Filosofia Aristotélica da Linguagem. Chapecó: Argos, 2002; Amaral Fº, Fausto dos Santos. Platão e a Linguagem Poética: o prenúncio de uma distinção. Chapecó: Argos, 2008. [27] A partir de agora passo a me referir à Política de Aristóteles pela seguinte abreviatura: Pol. Não nomeando necessariamente o seu autor. [28] “Um homem incapaz de integrar-se numa comunidade, ou que seja autossuficiente a ponto de não ter necessidade de fazê-lo, não é parte de uma cidade, por ser um animal selvagem ou um deus.” (Pol., 1253 a). [29] A partir de agora passo a me referir à Ética a Nicômaco de Aristóteles pela seguinte abreviatura: Et. Nic. Não nomeando necessariamente o seu autor. [30] Aristóteles insiste: o bem do qual se está falando no atual estágio da investigação, independentemente de qual seja, não é um bem escatológico, nem tão pouco a concepção platônica de bem, pois não é algo que esteja fora das nossas ações no mundo no qual vivemos. Portanto, o filósofo está falando sobre o melhor bem possível de ser realizado na cotidianidade das nossas vidas: “Ainda que haja um bem único que seja predicado universal dos bens, ou capaz de existir separada e independentemente, tal bem não poderia obviamente ser praticado ou atingido pelo homem, e agora estamos procurando algo atingível.” (Et. Nic., 1096 b). [31] “De fato, os bens exteriores têm limites, como qualquer instrumento, e a natureza das coisas é tal que seu excesso é fatalmente nocivo, ou então não é benéfico a quem as possui; ao contrário, em relação a qualquer dos bens da psykhé, quanto mais abundantes eles forem mais úteis serão.” (Pol., 1323 b). [32] Sardanapalos foi um lendário rei da Assíria, em cujo epitáfio teria feito constar: Come, bebe e diverte-te, pois tudo mais não é digno de um estalo de dedo. [33] Insisto um pouco nesta questão, pois não poucas vezes, filósofos como Aristóteles são injustamente acusados de meros idealistas, despreocupados com a vida que efetivamente levamos sob o sol. Muito provavelmente por mera falta de conhecimento. Mais uma vez Aristóteles refuta aqueles que só leem, poder-se-ia dizer, as cartilhas do partido: “A verdade em assuntos de ordem prática é percebida através dos fatos da vida, pois estes são a prova decisiva.” (Et. Nic., 1179 a). [34] A referência aqui é ao cantor e compositor Odair José, com sua música Felicidade. [35] “A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio-termo (o meio-termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças à qual um homem dotado de discernimento o determinaria). Trata-se de um estado intermediário, porque nas várias formas de deficiência moral há falta ou excesso do que é conveniente tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto a excelência moral encontra e prefere o meio-termo. Logo, a respeito do que ela é, ou seja, a definição que expressa a sua essência, a excelência moral é um meio-termo, mas com referência ao que é melhor e conforme ao bem ela é um extremo.” (Cf. Et. Nic. 1107 a). [36] Hesíodo nos narra em sua Teogonia que nove são as Musas, deusas filhas de Zeus e Memória, são elas: Glória, Alegria, Festa, Dançarina, Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste e Belavoz. Escutemos uma das estrofes da Teogonia onde Hesíodo nos apresenta as Musas, pois que vale a pena, até mesmo para compreendermos Aristóteles: “Pelas Musas e pelo golpeante Apolo / há cantores e citaristas sobre a terra, / e por Zeus, reis. Feliz é quem as Musas / amam, doce de sua boca flui a voz. / Se com angústia no ânimo recém-ferido / alguém aflito mira o coração e se o cantor / servo das Musas hineia a glória dos antigos / e os venturosos Deuses que têm o Olimpo, / logo esquece os pesares e de nenhuma aflição / se lembra, já os desviaram os dons das Deusas.” (Hesíodo. Teogonia, 95-103). [37] Lembremos aqui que ao tornar-se um negócio sério por se tornar indústria, a reportagem da Revista Istoé, assinada por Cláudia Jordão, diz logicamente, sem que isto precise estar escrito, o seu oposto, no caso gramatical o seu antônimo: fútil, maluco, burlesco, devasso, frívolo, inútil. Assim, podemos perceber a carga ideológica com a qual o modo de produção capitalista nos bombardeia na cotidianidade. [38] “Por esta razão os antigos incluíram a música na educação, não por ser necessária (nada há de necessário nela), nem útil no sentido em que escrever e ler são úteis aos negócios e à economia doméstica e à aquisição de conhecimentos úteis às várias atividades da vida de uma cidade, ou como o desenho também parece útil no sentido de tornar-nos melhores juízes das obras dos técnicos, nem como nos dedicamos à ginástica, por causa da saúde e da força (não vemos qualquer destas resultarem da música); resta, portanto, que seja um aprimoramento intelectual para os momentos de ócio.” (Pol., 1338 a). [39] “Quando Tomás se tornou professor e começou suas discussões e cursos, tal multidão de alunos afluiu à sua escola que a sala mal podia conter todos os que a palavra do mestre tão notável atraía e estimulava ao trabalho.” (Calo, Petro. Vita S. Thomae Aquinatis auctore Petro Calo. Tolosa: Edit. D. Prümmer O. P., 1911. p. 30). [40] Foi o papa dominicano São Pio V quem proclamou Tomás de Aquino Doctor Ecclesiae. Em nossos dias a liturgia da Igreja Católica celebra mais de trinta Doutores da Igreja; na época em que Tomás recebeu tal título, havia apenas quatro: Jerônimo, Ambrósio, Agostinho e Gregório Magno (Cf. Torrell, Jean-Pierre, 2011, p. 380). [41] “Em Rocasseca, toda a família se empenhou em fazê-lo mudar de ideia, mas seria um erro imaginá-lo maltratado e relegado a uma cela. Tratava-se mais de uma designação de residência forçada que de um aprisionamento. Tomás podia ir e vir, receber visitas (reiteradamente as de João de São Juliano, em especial, que lhe trouxe um novo hábito para substituir o seu rasgado), conversar com as irmãs (ele teria então convencido Marotta a se tornar religiosa), e Tocco relata que teria dedicado seu tempo a orar, ler toda a Bíblia, e a estudar, desde essa época, o livro das Sentenças, propiciando a suas irmãs beneficiar-se de sua jovem ciência – signo evidente de sua futura mestria.” (Torrel, 2011, p. 12-13). [42] “Em Colônia, Tomás teria ensinado cursorie sobre Jeremias, as Lamentações e uma parte de Isaías – essa leitura ‘cursiva’, como se sabe, é a que cabe ao bacharel bíblico durante os dois primeiros anos em que ele aguça seus instrumentos como futuro mestre.” (Torrel, 2011, p. 34). [43] Ao bacharel sentenciário cabia fundamentalmente a tarefa de comentar as Sentenças de Pedro Lombardo, compilação das opiniões (sententiae) de vários padres da Igreja a respeito dos mais diversos temas referentes à teologia cristã. [44] Reproduz-se aqui a nota explicativa sobre a questão da autenticidade ou não do De Modo Studendi, de autoria de Luiz Jean Lauand, que considera o texto em questão como autêntico: “Martin Grabmann – em seu Die Werke des Hl. Thomas von Aquin, Münster, Verlag der Aschendorffschen Verlagsbuchhandlung, 2. ed., 1931, p. 372-373 – considera o De Modo Studendi um opúsculo autêntico. Contra as reservas (embora mínimas) que Mandonnet guarda a propósito da autoria do De Modo Studendi – incluído por ele entre os vix dubia de Tomás, Opusculum XLIV, opúsculos que dificilmente se pode duvidar de que o autor seja o Aquinate (S. Thomas Aquinatis: Opuscula Omnia cura et studio R. P Petri Mandonnet, v. IV, Paris, Lethielleux, 1927) –, Victor White, em seu How to study, 2. ed., Oxford, Blackfriars, 1949, aponta razões intrínsecas que confirmam a tese da autenticidade desse opúsculo.” (Lauand, 1998, p. 299). [45] Todas as referências ao De Modo Studendi de Tomás serão feitas através da tradução de Luiz Jean Lauand: Tomás de Aquino. De Modo Studendi. In: Cultura e Educação na Idade Média. Seleção, tradução, notas e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 1998. [46] “No sentido mais originário da palavra é precisamente isto o que o ocidente chamou de educação, ou seja, o processo através do qual o homem singular e empírico adquire um relacionamento adequado com a totalidade, de tal modo que se abre o espaço para a efetivação de sua liberdade nas estruturas fundamentais de seu ser pessoal e social.” (Oliveira, 1997, p. 240). [47] “Assim, o acesso à cultura erudita possibilita apropriação de novas formas por meio das quais se podem expressar os próprios conteúdos do saber popular. Cabe, pois, não perder de vista o caráter derivado da cultura erudita em relação à cultura popular, cuja primazia não é destronada. Sendo uma determinação que se acrescenta, a restrição do acesso à cultura erudita conferirá àqueles que dela se apropriam uma situação de privilégio, uma vez que o aspecto popular não lhes é estranho. A recíproca, porém, não é verdadeira: os membros da população marginalizados da cultura letrada tenderão a encará-la como uma potência estranha que os desarma e domina.” (Saviani, 2008, p. 22). [48] “Pois, assim como notei acima, conquanto as coisas que sinto e imagino não sejam talvez absolutamente nada fora de mim e nelas mesmas, estou, entretanto, certo de que essas maneiras de pensar, que chamo sentimentos e imaginações somente na medida em que são maneiras de pensar, residem e se encontram certamente em mim.” (Descartes, 1973, p. 107). “Tudo isso me leva a conhecer suficientemente que até esse momento não foi por um julgamento certo e premeditado, mas apenas por um cego e temerário impulso, que acreditei haver coisas fora de mim, e diferentes do meu ser, as quais, pelos órgãos de meus sentidos ou por qualquer outro meio que seja, enviam-me suas ideias ou imagens e imprimem em mim suas semelhanças.” (Descartes, 1973, p. 111). [49] Ser perfeito, infinito, eterno, imutável, onisciente, todo-poderoso (Cf. Descartes, 1973, p. 56), “verdadeira causa de todas as coisas que são ou podem ser” (Descartes, I, 24). [50] Seixas, Raul. Conto do Sábio Chinês. Intérprete: Raul Seixas. In: Seixas, Raul. Abre-te Sésamo. [S.l.]: Discos CBS, 1980. 1 disco sonoro. Lado 2, faixa 2. [51] “De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.” (Descartes, 1973, p. 100). [52] “Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.” (Agamben, 2010, p. 59). [53] Um bom exemplo para compreender, não a aproximação, mas a distância que separa o pensamento dos dois filósofos pode ser visto em: Dalbosco, Cláudio A. Educação e formas de conhecimento: do inatismo antigo (Platão) e da educação natural moderna (Rousseau). Educação, Porto Alegre, v. 35, n. 2, p. 268-276, maio/ago. 2012. [54] “De fato, a filosofia começa em forma de tratados: Anaximandro, Anaxímenes e os demais da tradição jónica escreveram tratados.” (Scolnicov, 2006, p. 123). [55] “Si bien es responsable de haber perfeccionado la forma, no fue Platón quien inventó el diálogo socrático. Años después de la muerte de Sócrates, diversos contemporâneos suyos escribieron diálogos cortos en los cuales éste aparecía como interlocutor principal. En su Poética, Aristóteles reconoce los sokratikoi logoi, o ‘conversaciones con Sócrates’, como un género literario estabelecido.” (Kahn, 2000, p. 30). [56] “Não há discurso de tal forma fictício que não vá ao encontro da realidade, embora em outro nível, mais fundamental que aquele que atinge o discurso descritivo, constatativo, didático, que chamamos de linguagem ordinária. Minha tese consiste em dizer que a abolição de uma referência de primeiro nível, abolição operada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade para que seja liberada uma referência de segundo nível, que atinge o mundo, não mais somente no plano dos objetos manipuláveis, mas no plano que Husserl designava pela expressão de Lebenswelt, e Heidegger pela de ser-no-mundo.” (Ricouer, 1977, p. 56). [57] “Tomei portanto o partido de me dar um aluno imaginário, de supor sua idade, a saúde, os conhecimentos e todos os talentos convenientes para trabalhar na sua educação, conduzi-la desde o momento do seu nascimento até aquele em que, homem feito, não terá mais necessidade de outro guia senão ele próprio.” (Rousseau, 1992, p. 27). [58] Para ampliar um pouco tal tema, pode-se ver : Amaral Fº, Fausto dos Santos. O platonismo estético de Gottlob Frege. In: ______. Prospecções Filosóficas: Platão e Aristóteles, Estética, Hermenêutica e Teologia. Chapecó: Argos, 2012. (Coleção Sul). [59] “Conforme já mostrei em outra obra, tomando o exemplo da linguagem metafórica, a ficção é o caminho privilegiado da descrição da realidade.” (Ricouer, 1997, p. 57). [60] Mas que educação familiar seria está preconizada no Emílio se, ao fim e ao cabo, para Rouseau pouco importa se o seu personagem tenha família? Não esqueçamos que “Emílio é órfão” (Rousseau, 1992, p. 30). [61] “Se as crianças são educadas em comum sob o princípio da igualdade, se são imbuídas das leis do Estado e das máximas da vontade geral, se são instruídas a respeitá-las acima de todas as coisas, se são envolvidas por exemplos e objetos que lhes falam o tempo todo da mãe terna que os alimenta, do amor que tem por elas, dos bens inestimáveis que recebem e do reconhecimento que lhe devem, não se pode duvidar de que aprendem assim a se querer mutuamente como irmãos, a querer apenas aquilo que quer a sociedade, a substituir o falatório vão e estéril dos sofistas por ações de homens e de cidadãos, e um dia se tornarão os defensores e os pais da pátria, da qual foram por muito tempo os filhos.” (Rousseau, 1996, p. 41). [62] “A pedagogia, sendo uma espécie de lugar de encontro de diferentes saberes, nasce diferente de outras disciplinas. Rousseau, talvez por isso, dirá que a educação é uma arte. E justifica: é quase impossível que tenha êxito porque temos muito pouco controle de todos os fatores que favorecem ou dificultam o processo de aprender e ensinar.” (Sterck, 2008, p. 71). [63] É justamente na trampa de tais nomenclaturas que não queremos aqui tropeçar. [64] Cf. Carta de Engels a Paul Lafargue datada em 27 de agosto de 1890. In: Engels, Friedrich; Lafargue, Paul; Lafargue, Laura. Correspondance, II, 1887-1890. Paris: Éditions Sociales, 1956. [65] “Faltou-lhe e falta ainda analisar os capitalismos nos diferentes países do mundo, com suas estruturas particulares, suas características concretas, seus graus de desenvolvimento, seus diferentes setores, as formas de Estado a que se anexam etc. Ainda falta analisar, na situação presente, a crise do capitalismo, essa crise anunciada por Marx, mas que ele não pode descrever as modalidades concretas, porque a previsão científica não se confunde nem pode ser confundida com qualquer dom de profecia!” (Lefebvre, 2011, p. 123). [66] “Nesse contexto, é muito importante perceber que a ‘virada’ filosófica na direção da linguagem não significa, apenas, nem em primeiro lugar, a descoberta de um novo campo da realidade a ser trabalhado filosoficamente, mas, antes de tudo, uma virada da própria filosofia, que vem a significar uma mudança na maneira de entender a própria filosofia e na forma de seu procedimento.” (Oliveira, 1996, p. 12). [67] “Devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, precisa-se antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como a milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos.” (Marx; Engels, 2007, p. 33). [68] “Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana.” (Marx, 2010, p. 211). [69] Para uma análise do diálogo Crátilo de Platão, pode-se ver: Amaral Fº, Fausto dos Santos. Filosofia Aristotélica da Linguagem. Chapecó: Argos, 2002; Amaral Fº, Fausto dos Santos. Platão e a Linguagem poética: o prenúncio de uma distinção. Chapecó: Argos, 2008. [70] Não esqueçamos que para Aristóteles a condição para que o ser humano seja um zóon polítikon é justamente o fato dele ser, ontologicamente antes, um zóon lógon: “Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples voz pode indicar a dor e o prazer, e outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida somente até o ponto de ter sensações do que é doloroso ou agradável e externá-las entre si), mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto também o justo e o injusto; a característica específica do homem em comparação aos outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade.” (Aristóteles, 1253 a). [71] Ainda que, na contemporaneidade, em meio ao gerenciamento da empresa lucrativa ao qual nossas vidas estão no mais das vezes submetidas, a dita Ciência continue resguardando a sua hegemonia ideológica. O que, evidentemente, impede o pleno desenvolvimento das nossas potencialidades, limitando, assim, a liberdade humana, pois, como nos diz Feyerabend: “Uma sociedade livre é aquela em que todas as tradições têm os mesmos direitos e acesso igual aos centros de poder (isso difere da definição habitual em que indivíduos têm direitos iguais de acesso às posições definidas por uma tradição especial – a tradição da Ciência e do Racionalismo ocidental). Uma tradição recebe esses direitos não em virtude da importância (o valor em dinheiro, aliás) que ela tem para pessoas externas a ela, e sim porque dá sentido à vida daqueles que participam dela.” (Feyeraben, 2011, p. 14). [72] “Defendendo uma outra concepção, posso opô-la, insistindo na superioridade de meus argumentos, sem me preocupar com a outra. Nesse caso, entraríamos em um mero conflito entre ideologias, repetindo apenas o saber anterior. Porque, em vez de tentar descobrir a conclusividade dos argumentos diferentes em jogo, cada um quer evitar o risco de ver a sua concepção contestada por raciocínios bem fundamentados, trazidos pelo representante da teoria oposta. Se quiséssemos aprender algo, isto é, ampliar nossos saberes, seria necessário aceitar o desafio colocado pelo outro, no sentido de responder às perguntas implícitas nos seus raciocínios.” (Flickinger, 2010, p. 41). [73] Não poucas vezes parece que pensamos poder refutar um argumento, dando as costas para ele, rotulando-o, por exemplo, como: metafísico, cartesiano, pós-moderno, burguês etc. [74] Arendt, Hannah. Apud: Safranski, Rüdiger. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial, 2000. p. 174. [75] “Vinte e cinco anos mais tarde ela lhe diria sem meias palavras: ‘Saí de Marburg exclusivamente por sua causa’.” (Ettinger, 1996, p. 30). [76] Tal texto é um dos capítulos de: Arendt, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2013. [77] IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2001/2011. [78] Daqui em diante, sempre que a citação for do texto A crise na educação e, mais amplamente, do livro ao qual ele pertence, Entre o passado e o futuro, limitar-me-ei a colocar apenas o número da página. [79] Um bom exemplo disso é a maneira como nos entregamos ao Ensino a Distância em nosso país. Para uma explanação de tal tema ver: Amaral Fº, Fausto dos Santos. Presença distante, distância presente: uma reflexão sobre a EaD. Cadernos de Pesquisa: Pensamento Educacional, v. 6, n. 13, maio/ago. 2011. [80] Infância essa que, lembremo-nos, é justamente a faixa etária a que se refere o conceito de educação em questão no texto de Hannah Arendt que estamos lendo. [81] No caso da Escola Nova, ainda que se possa falar ao contrário, ao fim e ao cabo, é o grupo, e, em última instância, o grupo total da sociedade, evidentemente composto por indivíduos, que se quer formar, tendo em vista a reconstrução educacional nacional a partir de uma unidade e uma concepção de vida que se quer efetivar (Cf. Azevedo, p. 34). [82] O que distingue, da escola tradicional, a escola nova não é, de fato, a predominância dos trabalhos de base manual e corporal, mas a presença, em todas suas atividades, do fator psicobiológico do interesse, que é a primeira condição de uma atividade espontânea e o estímulo constante ao educando (criança, adolescente ou jovem) a buscar todos os recursos ao seu alcance, “graças à força de atração das necessidades profundamente sentidas” (Azevedo, 2010, p. 49-50). [83] Em relação à formação de Anísio Teixeira, é correto dizer que “[...] suas bases teóricas foram construídas em contato com o pensamento de John Dewey, sobretudo sua concepção de democracia e mudança social. Dewey, ao lado de Charles S. Peirce e William James, construiu uma visão de mundo que ficou conhecida como pragmatismo.” (Nunes, 2010, p. 36). [84] Talvez aqui tenha chegado a hora de tentarmos esclarecer um pouco, ainda que de forma extremamente sumária, mas que serve para a nossa leitura, o conceito de mundo, de matiz heideggeriana, que Hannah Arendt utiliza. Comecemos pela tese de Heidegger: “1. a pedra (o material) é sem-mundo; 2. o animal é pobre de mundo; 3. o homem é formador de mundo.” (Heidegger, 2003, p. 207). Dito de outra forma, o homem não é apenas um ente inerte, entre os outros entes, alojado no planeta terra, nem tampouco apenas e somente um vivente entre os viventes, mas é o ser que pergunta pelo seu próprio ser e, assim perguntando, forma um mundo, no movimento transformador “da coisa sentida para o sentido da coisa” (Amaral Fº, 2003, p. 23), em relação com a totalidade dos entes. O que instaura o mundo é a linguagem.
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