Os Crimes Resultantes de Preconceito de Raça e Cor

June 7, 2018 | Author: Heitor Augusto Correa Siqueira Chagas | Category: Racism, Ethnicity, Race & Gender, Race (Human Categorization), Mulatto, Slavery


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1HEITOR AUGUSTO CORREA SIQUEIRA CHAGAS RA: 200812019 O MOVIMENTO HISTÓRICO DOS CRIMES RESULTANTES DE PRECONCEITO DE RAÇA E COR NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Trabalho de Conclusão de Curso Apresentado às Faculdades de Ciências Econômicas – FACAMP, como exigência parcial para graduação de Bacharelado no curso de Ciências Jurídicas. Professor Orientador: Maurides Ribeiro. Campinas, 13 de Agosto de 2013. FACAMP 2 Breves Agradecimentos Considero majestoso ao final de qualquer etapa que se passe, olhar para trás e saber reconhecer aquilo que veio em detrimento e o que agregou no percurso. Sendo assim, não poderia ser diferente quanto ao presente trabalho de conclusão de graduação no curso de Ciências Jurídicas que inexistiria sem aqueles que durante esses cinco anos estiveram ao meu lado, me ensinando, apoiando, ajudando, me escutando, rindo, chorando enfim. Agradeço primeiramente a Deus por ter, diante das dificuldades, me abençoado com a bolsa de estudos e me permitido estudar em uma instituição de tamanha excelência. Em especial ressalto a figura do meu pai, Jaime, que sempre me falou acerca de seus bons tempos de faculdade de Direito, seu contato com “os feras”, juristas, acadêmicos, grupos de discussões, enfim. Sei que desde cedo foi um bom exemplo e espelho para mim. Igualmente, minha tão amada mãe, Maria de Fátima, conselheira, amorosa, tão sábia e a quem sei ter herdado esse senso crítico que muito me vem “incomodando” esses anos e impulsionando buscar, por via dos estudos e reflexões, a desmistificação dos conceitos. Ressalto a figura de três pessoas muito especiais pra mim nesse contexto acadêmico: Os Professores Coordenadores Allaôr Caffé Alves e José Antônio Pontes e, meu querido Professor orientador, Maurides Ribeiro. Muito embora não saibam, foram pessoas sem as quais a parte acadêmica da graduação do curso de direito não teria sido tão apaixonante. Diferentemente do sentido clássico, me apresentaram as ciências da Filosofia e do Direito Penal na perspectiva científica do sujeito que estuda o objeto e, ao fazê-lo vislumbrando entendê-lo, modifica-se a si mesmo e, assim, também ao seu próprio objeto, num movimento dialético. Minha amada Sara que desde o início teve toda a paciência para escutar minhas eternas problematizações e, sem ciúme, aguentar minhas novas paixões – as disciplinas do curso da graduação. Obrigado pelos conselhos e apoio nas horas que muito precisei. Agradeço aos meus lindos e amados irmãos (em ordem decrescente) Dominique, Guilherme, Otávio e Diego; meus demais familiares que sempre estiveram torcendo, em especial: a Silvia Sarmento, meu tio Zenor, minha tia Valdete e meu primo Rafael Correa. Ao meu antigo amigo, já irmão e brevemente, colega de profissão, João Murilo da Fonseca; meu fiel amigo Renato; meu parceiro André Trovatti; amigos e futuros militantes jurídicos Leandro Caldas, João Augusto de Faria, 3 Paulo Nied, André Salles, Thiago Spressão, Juliana Beraldelli, Phellipe Böy e os demais que, como supracitado, agregaram e subtraíram nessa caminhada. O presente trabalho, embora singelo, é fruto de um desenvolver coletivo, razão pela qual agradeço a todos vocês. Muito Obrigado! 4 “O direito é em nossas sociedades um instrumento frequentemente perverso e violento. Mas é possível também visualizar o direito positivo como um esforço possível de submeter as diferenças humanas a um nível dialógico, ainda que muito precário e insuficiente. Se o direito positivo é um mecanismo de dominação, a dominação pelo direito apresenta uma especificidade que, afinal de contas, faz dela um modo de dominação preferível a qualquer outro.” Antônio Jeammund, apud Aguillar. Resumo O tema que tem como cabeçalho “O Movimento Histórico Dos Crimes Resultantes de Preconceito de Raça e Cor no Ordenamento Brasileiro”, visa, em síntese, analisar o movimento legislativo no âmbito penal, ocorrido após o processo abolicionista, encerrado em 13 de maio de 1888 com a assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Imperial Regente Isabel (1849-1921), de modo entender, à luz da Constituição Federal de 1988, qual a vigente interpretação das infrações relacionadas à discriminação racial Para esse fim, faz-se mister uma breve exaltação de alguns pressupostos históricos, assim como analisar as normas já revogadas, as quais tinham como teor este assunto no ordenamento jurídico brasileiro. Palavras Chave: Crime – Racismo – Discriminação – Preconceito – Legislação Penal. 5 SUMÁRIO Introdução ........................................................................................................ 6 Capítulo 1 – Os Crimes Resultantes de Preconceito de Raça e Cor 1.1. Breve Análise Terminológica .................................................. 10 1.2. Parecer histórico ...................................................................... 16 1.2.1. Lei Imperial 3.353/1888 – A Lei Áurea ............................... 18 1.2.2. Código Criminal da República – 1890 ............................... 20 1.2.3. Código Penal 1940 .............................................................. 22 1.2.4. Lei 1.390/1951 – A Lei Afonso Arinos ............................... 22 1.2.5. Constituição de 1967 .......................................................... 23 1.2.6. Lei de Segurança Nacional ................................................ 24 1.2.7. Constituição de 1988 .......................................................... 24 Capítulo 2 – A Lei 7.716 e o Crime de Racismo No Brasil ......................... 26 Conclusão ....................................................................................................... 29 Bibliografia ..................................................................................................... 30 6 Introdução A ideia deste trabalho ganhou contornos diferentes no discorrer do seu desenvolvimento, haja vista sua riqueza de conteúdo em termos de acontecimentos históricos, disposições legais e manifestações teóricas de muitos autores que se debruçaram sobre questões da população afro-brasileira e se destinaram ao enfrentamento da discriminação racial no Brasil. Por isso é compreensível que, iniciado o presente estudo com objetivos preestabelecidos, durante seu discorrer, tenha se modificado sua compreensão sobre o tema, assim como o campo de pesquisa a ser trabalhado. Três anos após o sancionamento da Lei n o 12.288, de 20 de Julho de 2010 - o “Estatuto da Igualdade Racial” - verifica-se que, após mais de cem anos do oficial fim da abolição da escravidão institucionalizada no Brasil, sobrevive um movimento libertário que intenta ainda promover a igualdade racial em incipiente século XXI. Essa fermentação política era já outrora percebida, obviamente de uma maneira mais enérgica, no entanto não mais importante, entre pensadores, estudiosos e militantes abolicionistas, entre eles Luis Gama, Ruy Barbosa de Oliveira, Antonio Evaristo de Morais, Manuel de Souza Dantas, que se debruçavam sobre o assunto, durante o período Imperial, a fim de combater o “Estado Legal Violento” 1 . Naquele período, ativistas como o advogado Antônio Henrique da Fonseca, o preciosíssimo “Preto Antonico”, marchava às escondidas, de fazenda em fazenda, incendiando rebeliões e insurgindo os escravos contra seus senhores. Porém, não obstante a devida reverência a esses classificados verdadeiros heróis de todo movimento abolicionista, parece bastante razoável a anotação de Joaquim Nabuco de que o maior entrave para o referido movimento era o monopólio territorial, sendo o movimento da libertação dos escravos, na verdade, uma revolução do trabalho e da terra, entre outras inúmeras questões – talvez razão pela qual ainda estejamos, no presente momento, pugnando pela tão profetizada igualdade. Maria Luiza Tucci Carneiro 2 , historiadora e professora da Universidade Estadual de São Paulo, descreve que as ex-colônias portuguesas reproduziam, de certo modo, a forma conservadora de pensamento da antiga Coroa, a qual postulou resistentemente às proposições capitalistas. Ao iniciar o Século XVIII, Portugal se apresentava como um país defasado quanto à ideologia, instituições e cultura, se comparado aos demais países europeus do Além-Pirineus (região de cordilheira ao sudoeste da Europa que divide a 1BRANDÃO LEITE, Marco Antônio. Abolição da Escravidão nos “Campos de Araraquara”, SP, Notas de Pesquisa [http://www.palmares.gov.br/wp- content/uploads/2010/11/ABOLI%C3%87%C3%83O-DA-ESCRAVID%C3%83O-NOS-CAMPOS-DE-ARARAQUARA.pdf] . 2 TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza. Preconceito Racial No Brasil Colônia. Ed. Brasiliense. São Paulo, pp.175-176, vol. 1, 1983. 7 Espanha da França). Nesse período, formatada em suas instituições, a sociedade portuguesa se encontrava ideologicamente dominada pela Igreja Católica, responsável pela hegemonia da aristocracia sobre a sociedade civil, e marcada pelo Estado absolutista. Segundo Tucci, a conservação de uma mentalidade aristocrática foi responsável pelo atraso da secularização da sociedade e pela persistência do preconceito racial no contexto social do Império Colonial Português. Sendo assim, com o intuito da manutenção de sua posição privilegiada, ao nível das decisões de poder, a aristocracia se armou dos mais variados instrumentos, com o intuito de combater qualquer tentativa de modificação social. Os “estatutos de pureza de sangue”, isto é, as normas discriminatórias vigentes durante o período colonial, as quais durante três séculos discriminaram pelo nascimento certos grupos étnicos – negros, pardos, ciganos, mouriscos, índios – negando-lhes direitos iguais, serviram de instrumento ao aparato ideológico dominante construído a fim de combater qualquer tentativa de mudança social. É nesse sentido que encontrávamos, no início do século XVII, Portugal voltado para si próprio, totalmente avesso a novos ideários, elaborando e idealizando seus próprios fantasmas: os estrangeiros e aqueles a quem a Igreja Católica muito desprezava – os cristãos novos. Eram armas anticapitalistas utilizadas pela ordem nobiliárquico- eclesiástica e por grupos de interesses rivais para impedir o desenvolvimento e ascensão de uma classe média forte em Portugal e no Brasil. Daí justifica-se o Novo Mundo ver assim a instauração de uma sociedade colonial fundada sobre o extermínio do índio, sobre a escravidão do negro e, também, sobre a marginalização dos judeus convertidos ao catolicismo, porquanto o lugar ocupado pela hierarquia social no Brasil dependia da cor da pele e da ascendência étnica. No entanto, em que pese a elite portuguesa se deixasse reger patrocinada pelo discurso do combate contra as impurezas de ideias e a impureza do sangue, o Século XVIII foi considerado um período de mudanças para a sociedade portuguesa, eis que um espírito de inovação se concentrou durante a segunda metade do século, dominada pela atuação de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Conde de Oeiras e Marquês de Pombal. Com aspirações iluministas, o déspota esclarecido – como era chamado – durante sua administração, desenvolveu, em suma, uma política de caráter mercantilista, um tanto quanto ilustrada para seu período, implicando uma série de transformações do ponto de vista político, econômico e ideológico, na medida em que, objetivando reforçar o poder do Estado, cuidou de eliminar todas as formas de oposição e corrigir os abusos, modernizando as estruturas administrativas à luz de princípios liberais, isto é, neo-humanistas, racionalistas e individualistas. 8 A supressão do aparelho eclesiástico como participante das esferas de poder e o constante ataque ao Puritanismo, por intermédio da promulgação da lei conhecida como “Alvará de Lei Secretíssimo” foram algumas de uma sorte de medidas de cunho liberal tomadas pelo governo Imperial daquela época. Em verdade, visualiza-se que esse período foi exordial no Brasil porquanto concebeu um ensaio de modificações normativas à luz de valores iminentemente ascendentes, estritamente relacionados às estruturas econômicas e sociais que deliberadamente se modificavam. Obviamente que uma análise pormenorizada dessa mudança de compreensão ontológica da sociedade e deontológica das instâncias legiferantes – sobretudo, quanto às normas que cuidam da matéria penal – requer paralelamente o socorro de outras disciplinas. Destarte, decifrar as normas que cuidam do assunto em comentário é um exercício muito além do que peremptoriamente estudar qual a compreensão vigente do tipo penal, exaurindo o entendimento de suas elementares e juntando pesquisas jurisprudenciais e posições doutrinárias, especialmente quando se tem a missão de desmistificar e se opor à discriminação. Cuida-se, todavia, – muito embora não seja escopo do presente trabalho – de uma análise mais ampla a qual abarque outros setores que não singularmente a norma criminalizadora. Como diriam os antigos, “fotografar a floresta e não somente a árvore”. Isso porque são evidentes os efeitos nefastos de um foco fechado na árvore, quais sejam: a pronta, rápida e cômoda invocação da lei penal, do método repressivo e da sanção punitiva, cuja eficácia histórica é nenhuma 3 ; consequentemente, a estrutural incapacidade de explorar outras respostas disponíveis no próprio ordenamento jurídico nacional – a título de exemplo, o instituto da responsabilidade civil; e, por fim, a não percepção de outros métodos normativos de enfrentamento do problema, como normas programáticas, editadas na Carta Constituição de 1988. Ora, é facilmente demonstrável a limitação técnica do método repressivo na ótica de seu escopo de prevenção às condutas discriminatórias, visto que ataca apenas o resultado, isto é, a discriminação, sem tocar nas causas (o preconceito, o estereótipo, a intolerância, o racismo). É nesse sentido que, conforme anota Hédio Silva Júnior, se exaltam as proposições normativas programáticas, sobretudo de natureza estadual e municipal, de conteúdo nunca repressor, pois se ocupam da educação para a tolerância, do condicionamento de comportamentos, adotam o princípio aristotélico da justiça distributiva, prescrevem incentivos para a promoção da igualdade e buscam evitar a ocorrência da discriminação. 3 v. SILVA JR, Hédio. Notas sobre direito e raça. Revista do CEERT. São Paulo, pp. 27, vol. 1, nov/ 1997. 9 Por fim, insta afirmar que, sob a ótica desses pressupostos, inclina-se o presente trabalho estudar a norma penal incriminadora dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, lembrando que esse exercício jamais deve ser proposto com o intuito de exaurir o tema, sob pena de se amoldar ao ditado popular de “tentar enxugar gelo”, isto é, se propor a esgotar o inesgotável. 10 Capítulo 1 – OS CRIMES RESULTANTES DE PRECONCEITO E COR 1.1. BREVE ANÁLISE TERMINOLÓGICA Neste primeiro momento, mister, durante a análise da bagagem legislativa de tema racial, tomar ciência da compreensão normativa dos termos raça, racismo, minoria, discriminação e preconceito, entre outros que compõem a literalidade da lei. Inobstante sua denominação semântica facilmente encontrada nos dicionários, a relevância do direcionamento apontado pelo legislador do significado desses vocábulos ganha corpo na medida em que é conditio sine qua non da aplicação da norma penal 4 . Quando o legislador tipificou, a tema de exemplo, a conduta descrita no caput do art. 20 da Lei 7.716/1989 – Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, não se preocupou com a razoável inclinação de definir com exatidão, em homenagem à taxatividade, os elementos descritivos do tipo penal. Ao negligenciar a semântica no emprego desses vocábulos, o próprio tipo se torna ineficaz dentro do seu propósito, eis que inviabiliza sua compreensão pelo operador do direito (tanto aquele com a prerrogativa de aplicar a sanção quando do descumprimento da norma, bem como aquele responsável por elaborar a defesa) e do corpo social, este a quem a lei se destina. Cumpre informar que numa breve análise das normas de natureza federal, estadual e municipal – estas duas últimas objetivando estabelecer métodos e proposições programáticas, educando contra a discriminação – em nosso ordenamento, não há a preocupação do legislador em definir a finalidade do alcance dos vocábulos chaves para sua aplicação 5 . Essa negligência normativa apresenta, conforme anota Hédio Silva Júnior, em sua obra Anti-Racismo – Coletânea de Leis Brasileiras, um alto potencial de repercussão negativa na defesa dos direitos e interesses dos discriminados, eis que faculta interpretações dissonantes do que propôs o legislador. Em uma interpretação mais extensiva, não seria desacertada a máxima de que um dispositivo que não seja autoexplicativo na seara penal se caracteriza como não somente uma flagrante violação da taxatividade, contudo, em última análise, da liberdade, eis que são os indivíduos condicionados a um senso de incompreensão normativa e limitação por conceitos não cediços. Ilustrando a referida questão vocabular, no julgamento do Habeas Corpus n o 82.424-4, o Supremo Tribunal Federal teve que afastar a tese geneticista da defesa, ocasião em que se discutia o cometimento do crime de 4 Art. 1 o do Decreto-Lei n o 2.848/40, com redação dada pela Lei n o 7.209/84. 5 SILVA Jr, Hédio. Anti-Racismo – Coletânea de Leis Brasileiras – (Federais, Estaduais e Municipais). 1 a ed. Oliveira Mendes, 1998. Pg. VIII. 11 racismo por ocasião da publicação de um livro. Naquela ocasião, o Autor Siegfried Ellwanger Castan havia sido condenado como incurso na pena do art. 20 da Lei 7.716/89, pelo crime de racismo, ao fazer apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias em seu livro Holocausto Judeu ou Alemão? – Nos bastidores da Mentira do Século, tendo aduzido em sua defesa a inexistência de outras raças que não a raça humana; que com o mapeamento do genoma humano 6 , não há na ciência distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, posto que todos se qualificam como espécie humana; outrossim, que não há diferenças biológicas entre os seres humanos e que na essência são todos iguais. Ante os argumentos supra, intentaram os impetrantes afastar a possibilidade da existência do conceito de diferentes raças, pelo que pugnaram o trancamento da ação penal. Em sentido contrário, porém, decidiu o Pretório Excelso, indeferindo o Writ. No bojo de sua fundamentação, a Corte afirmou que, em que pese a tese científica hodierna, é possível sim a sustentação da possibilidade de existência dos termos “raça” e “racismo”. Isso porque, segundo a Corte Constitucional, a divisão dos seres humanos em raças resultou de um processo de conteúdo meramente político social, do qual originou o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. Assim, a Constituição Federal de 1988, ao descrever o racismo como crime inafiançável e imprescritível 7 , abrangeu a semântica dos conceitos etimológico, etnológico, sociológico, antropológico e biológico, sendo imperiosa uma interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais para obter-se o real sentido de alcance da norma, não sendo suficiente a oposição de uma das disciplinas para que fosse afastado o referido elemento normativo do tipo. Naquela situação, muito embora tenha a decisão da Corte o louvável propósito de coibir a prática de discriminação, bem como sua incitação, não é razoável o emprego de exercício analógico na disciplina penal. Em verdade, a solução dada pelo STF ao polêmico caso do S.E. Castan é uma ilustração da dificuldade que o intérprete da lei visualiza ao não encontrar de maneira evidente a conceituação dos termos componentes do tipo, por intermédio de normas penais não incriminadoras explicativas, que têm como finalidade o esclarecimento dos conceitos. A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, realizada em Nova York, no ano de 1966, foi promulgada pelo decreto n o 65.810/1969. Em seu artigo I, ao contrário do 6 Conjunto de toda a informação genética de um indivíduo ou de uma espécie, codificada no ADN. 7 Art. 5 o , inciso XLII, CF/88 – “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. 12 conjunto normativo penal brasileiro, há demonstrada uma preocupação quanto à terminologia empregada no documento, tendo este diploma prescrito, logo no item 1, que (...) a expressão „discriminação racial‟ significará qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida. (sic). Uma breve e superficial abordagem deste item facultaria a incidência de uma interpretação literal muito utilizada pelos clássicos, mais conservadores, contrários às ações afirmativas realizadas pelo Estado, destinadas a certos grupos vulneráveis e carentes, posto que, segundo eles, políticas neste sentido configuram violação ao princípio da igualdade insculpido no caput do art. 5 o da Constituição Federal 8 . Obviamente que atualmente a doutrina pátria pacificou o assunto argumentando que uma interpretação teleológica do art. 5 o visualiza nele inserido o princípio aristotélico da justiça distributiva, conforme o qual uma regra é igualitária quando trata desigualmente os desiguais 9 . Não obstante esta argumentação, se preocupou a Convenção em justificar no artigo I, item 4, que não serão consideradas discriminações racial as medidas especiais tomadas como o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos. (sic). Percebe-se que estes esclarecimentos normativos não têm outra função, senão tornar mais eficaz a norma dentro de sua finalidade, sobretudo quando esta dispõe de um assunto que míngua afeição por razoável parcela social e que, pela falta de informação, tende facilmente desagradar. 8 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”. 9 BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 2 a ed., Distrito Federal, Ed. UnB, 1986, pp. 597- 605. 13 É interessante lembrar que outros instrumentos de cunho internacional e força vinculativa àqueles que os ratificaram também adotaram o teor explanador, citam-se a Convenção n o 111 da OIT sobre a discriminação em matéria de emprego e profissão – Promulgada pelo Decreto n o 62.150/1968 e a Convenção Relativa À Luta Contra A Discriminação no Campo Do Ensino – Promulgada pelo Decreto nº 63.223/ 1968. Em suma, o vocábulo preconceito se origina da expressão em latim praejudicium que importa em um juízo prévio de algo. Segundo essa interpretação, prejulgar significa a possibilidade de ter experiências psicológicas que, após o contato com a realidade, formam concepções, conceitos e ideias. Contudo, esse termo é usualmente empregado com a conotação negativa, traduzindo a postura de quem se contenta em julgar sem o conhecimento real dos fatos, ignorando elementos empíricos e que, portanto, constrói uma ideia rígida e intolerante acerca do objeto. Neste sentido, ainda que com seu vetor pejorativo, não há que se falar em punição do preconceito, enquanto atitude mental, a menos que este se exteriorize sob o molde de atitudes discriminatórias. Quanto ao termo discriminação, se aplica lógica semelhante ao vocábulo anterior, eis que discriminar consiste no ato de distinguir, discernir. Veja que, assim como preconceito, não há tendência negativa em sua concepção neutra, porquanto que seu significado visualiza a capacidade de reconhecer diferenças. Ademais, como propõe o ideário mais progressista do princípio da igualdade supramencionado no item 4 do artigo I da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, é papel de um Estado preocupado com as parcelas mais carentes tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade, o que expõe, querendo ou não, uma deliberação discriminatória. Ao contrário disso, a discriminação proscrita é aquela baseada no preconceito fundado em uma visão deformada da realidade, que enxerga diferenças onde elas não existem e nega direitos a uns ou atribui privilégios a outros injustificadamente. Dessarte, como previamente dito, muito embora não haja um posicionamento semântico acerca desses vocábulos em nossas leis, a doutrina tem se posicionado com a referida compreensão. É o que explica o Dr. Roger Raupp Rios: Por preconceito designam-se as percepções mentais negativas em face de indivíduos e de grupos socialmente inferiorizados, bem como as representações sociais conectadas a tais percepções. Já o termo discriminação designa a materialização, no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, relacionadas ao 14 preconceito, que produzem violações de direitos do individuo ou do grupo 10 . Conclui-se que nem toda discriminação é vedada, de modo que não haverá discriminação ilícita caso a intenção não seja anular ou restringir direitos, todavia propiciar e garantir o acesso a estes. Nessa trilha, afirma ainda Rios que o termo “discriminação” tem sido amplamente utilizado em sua acepção negativa, enquanto o termo “diferenciação” é usualmente empregado para referir-se às distinções legítimas 11 . Conforme explanado previamente, o conceito de raça é bastante controvertido, exatamente porque hodiernamente pesquisas geneticistas apontam que as diferenças entre uma e outra raça (aqui se referindo às descrições fenotípicas) não são maiores do que aquelas havidas entre os indivíduos de uma mesma raça. Por força do costume, o conceito de raça é definido como os grupos de seres humanos reunidos por características físicas semelhantes (tipo de cabelo, formato dos olhos, cor da pele etc), transmissíveis hereditariamente. As obras de história do Brasil, em suma, dividem os brasileiros em negros, brancos e índios, mencionando, igualmente, possíveis miscigenações entre eles: mulatos 12 (mistura de negros e brancos), cafuzos (mistura com negros e índios) e mamelucos (mistura de índios com brancos). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE 13 , por sua vez, indica a existência de cinco raças, quais sejam, a preta, parda, índia, branca e amarela, sendo sua definição a auto declaração pelas pessoas entrevistadas. Percebe-se que há uma carência de precisão científica no exercício de conceituação do termo “raça”, motivo pelo qual, mais uma vez, reitera-se a necessidade legislativa de sua auto explicação. 10 Roger Raupp Rios. Direito da Antidiscriminação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 15. 11 Roger Raupp Rios. Direito da Antidiscriminação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 19. 12 Mulato é o termo que designa uma pessoa descendente de negros e brancos (cf. mestiço). Segundo alguns a palavra mulato tem origem em "muwallad", termo árabe que significa mestiço de árabe com não árabe, o qual deriva de "walada", gerar, parir. Contudo, a maioria dos etimólogos e lexicógrafos descarta a hipótese de que este vocábulo poderia ter vindo do étimo árabe. Na Península Ibérica, no tempo da dominação dos muçulmanos (711 a 1492 d.C.), o não árabe poderia ser o descendente dos visigodos ou dos romanos, ou, ainda, dos antigos lusitanos. Segundo outros, a palavra seria associada ao substantivo "mula", que designa um animal fruto do cruzamento de diferentes espécies (uma égua com um burro), em alusão ao fato de que negros e brancos formariam espécies diferentes. Sendo que hoje se sabe que as diferenças entre negros e brancos não são suficientes para que o termo raça aplicado a humanos siga o modelo aplicado a outros animais. A biologia considera que os descendentes de diferentes espécies são inférteis, o que importaria o tom pejorativo que o termo fosse, outrora, utilizado. 13 [http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/conc eitos.shtm]. 15 A percepção de etnia, segundo ensina a Professora Maria Patrícia Vanzolini Figueiredo 14 , se revela pela compilação de um componente biológico e outro cultural, podendo ser entendida como a comunidade de indivíduos unidos tanto por características físicas similares, quanto por laços culturais relacionados, especialmente, à língua, ao histórico e ao seu repertório de crenças comuns. Percebe-se, portanto, que há a possibilidade de indivíduos de uma mesma nação pertencerem a diferentes etnias, máxima aplicável a hipóteses de membros de uma etnia semelhante residirem em países diferentes. Quanto ao termo racismo, presume-se este apontar para o conceito de raça o qual foi explanado anteriormente. Ainda assim, interessante tecer algumas palavras acerca de sua caracterização tendo em vista sua importância, sobretudo porque a Constituição Federal faz alusão ao racismo, prevendo ser esta conduta crime inafiançável e imprescritível. Sua compreensão ordinária faz parecer que o termo apenas refere-se ao preconceito exteriorizado de raça ou cor. Entretanto, viu-se anteriormente, no início do item 1.1., que o Supremo Tribunal Federal, para fins penais, abrangeu, na conceituação de racismo, todos os tipos de discriminação previstas no art. 1 o da Lei 7.716/1989, isto é, a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, o que faz incidir a imprescritibilidade e inafiançabilidade em caso de discriminação por religião, a título de exemplo. A Professora Figueiredo, em sua aula lexical sobre esses conceitos, objetivando melhor compreender as condutas tipificadas na Lei 7.716/89, conclui que o preconceito, por si só, sem ser externado em atitudes, não é proscrito, nos mesmos termos que também não o é a discriminação fundada em razões legítimas 15 , razão porque andou mal o legislador ao mencionar que a conduta deve ser resultante de discriminação ou preconceito. “Melhor” seria incriminar a discriminação baseada em preconceito de raça, cor, etnia, religião e/ou procedência nacional. Por fim, finalizamos este item afirmando que a negligência da norma em definir o limite dos vocábulos nela empregados impossibilita depreender o campo que o legislador imprimiu nos termos utilizados, sendo este descuido prejudicial para o fim que a lei se destina e temeroso para a taxatividade, legalidade e liberdade dos indivíduos. 14 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação Penal Especial, volume 2 / Gustavo Octaviano Diniz Junqueira. – 3. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2010. 15 Rui Barbosa proclamou, em alusão à Aristóteles [Ética à Nicômaco], que “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade”. (OLIVEIRA, Rui Barbosa de. Oração aos Moços. – 5. Ed. – Ed. Casa de Rui Barbosa. – Rio de Janeiro. 1999). 16 Capítulo 1 – OS CRIMES RESULTANTES DE PRECONCEITO E COR 1.2. PARECER HISTÓRICO “Tendo se apresentado a esta delegacia o preto Antonico escravo de Antonio Jose Aires Filho alegando ter cido gravemente ferido” (sic). - P. Judiciário. Comarca Triunfo/RS. 1a Vara Cível e Criminal. Documento 1187/1880. Sem dúvida que a abolição legal e institucional da escravidão, em 13 de maio de 1888, foi um marco para a construção dos direitos dos escravos no país. Porém, muito embora seja esta uma data simbólica na construção da história brasileira, o movimento pelo abandono da mão de obra escrava já vinha formalmente se desenhando desde 1831, com a Lei Diogo Feijó que determinava, a partir de então, que todos os escravos que adentrassem o território nacional fossem livres. Entretanto, para o Direito Penal, verdade esta não se aplicava. A Lei de 16 de Dezembro de 1830, por exemplo, de 313 artigos que o compunha, citava a figura do escravo oito vezes, sendo que destas, nenhuma definição precisa foi lhe atribuída como agente possuidor de quaisquer direitos. O Código Criminal Imperial, como era chamada aquela Lei, era impreciso quanto à questão do escravo, não lhe definindo papel algum, senão como potencial agente criminoso. Destacam-se,deste diploma, os seguintes artigos: Art. 14. Será o crime justificavel, e não terá lugar a punição delle: 6º Quando o mal consistir no castigo moderado, que os pais derem a seus filhos, os senhores a seus escravos, e os mestres a seus discipulos; ou desse castigo resultar, uma vez que a qualidade delle, não seja contraria ás Leis em vigor. (sic), (grifo nosso). Art. 60. O numero de açoutes será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta. (sic). Art. 113. Julgar-se-ha commettido este crime, retinindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força. (referindo-se ao crime de Insurreição, previsto naquela Lei). Penas - Aos cabeças - de morte no gráo maximo; de galés perpetuas no médio; e por quinze annos no minimo; - aos mais - açoutes. (sic). 17 Cumpre informar que, quando da ocorrência de infração cometida contra o seu escravo, era defeso o oferecimento de denúncia do Promotor Público em face do senhor, segundo à inteligência do princípio da legalidade, insculpido nos artigos 179, I, da Constituição do Império, e 1º do Código Criminal do Império, ponto legal que aponta a despreocupação formal do Estado em tutelar o direito dos escravos. Em verdade, estas passagens acima transcritas eram o que os cativos dispunham sobre si em termos de legislação. De um modo geral, ao invés de “Códigos Negros”, mantinha-se, ainda, a prática de utilização das Ordenações Filipinas 16 . Segundo descreve a Professora Adriana Pereira Campos, “operou-se uma „práxis‟ jurídica provida de expedientes de legitimação, apoiados amplamente na herança jurídica romana legada pela antiga legislação portuguesa” 17 . Percebe-se, portanto, que em que pese, hodiernamente, seja comum o desprezo a essas práticas discriminatórias, tem- se que o preconceito e a segregação racial não somente foram tolerados, durante mais do que 322 dos 513 anos de história 18 que houve escravidão institucionalizada no Brasil (expressão racista em seu mais alto nível), porém foram fomentados e até impostos pelos Poderes Públicos 19 . Uma pesquisa realizada por Luísa Caiaffo Valdez sobre a possibilidade de acesso de escravos à Justiça, em Rio Grande de São Pedro, no período de 1871 a 1888, concluiu, após a análise de documentos de expedientes policiais, que mesmo não havendo previsão legal para pretensão punitiva de senhores que castigavam excessivamente seus cativos, tornou-se habitual a queixa por parte dos escravos naquela região – fato que demonstra a situação híbrida que a omissão normativa importava para os escravos, posto que, ao mesmo tempo em que eram, no âmbito Civil, considerados desprovidos 16 As Ordenações Filipinas, ou Código Filipino, são uma compilação jurídica que resultou da reforma do código manuelino, por Filipe II de Espanha (Felipe I de Portugal), durante o domínio castelhano. Ao fim da União Ibérica (1580-1640), o Código Filipino foi confirmado para continuar vigindo em Portugal por D. João IV. 17 CAMPOS, Adriana Pereira. Nas barras dos tribunais: Direito e escravidão no Espírito Santo do século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2003. Tese, Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003. P.49. 18 Em 30 de julho de 1566 foi criada a lei que regulamentou pela primeira vez a escravidão voluntária dos índios. Segundo essa lei, baixada por uma junta convocada por Mem de Sá, "os índios só poderiam vender-se a si mesmos em caso de extrema necessidade, sendo que todos os casos deveriam ser obrigatoriamente submetidos à autoridade para exame." (EISENBERG, José. Análise Social, vol. XXXIX (170), 2004, 7-35). [http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218704648R7vGO3gi9Rk66BF2.pdf]. 19 As Ordenações Filipinas, no Livro Quinto, dispunha em seu Título XCIV – Dos Mouros e Judeos que andão sem sinal – “Os Mouros e Judeos, que em nossos reinos andarem com nossa licença, assi livres como captivos, trarão sinal, per que sejão conhecidos, convém a saber os Judeos carapuça, ou chapéu amarello e os Mouros huma lua de panno vermelho de quatro dedos, cosida no hombro direito, na capa e no pelote. E o que não o trouxer, ou o trouxer coberto, seja preso e pague polla primeira vez mil réis de Cadêa. E pola segunda dous mil réis para o Meirinho que o prender. E pola terceira, seja confiscado, ora seja captivo, ora livre”. (sic). 18 de autonomia jurídica, na esfera Penal, não era possível vê-los totalmente como coisa 20 , sobretudo, quando de sua responsabilização criminal pelo cometimento de delitos. Ante essa prévia análise da situação pré-abolição, no que toca ao tema discriminação, passemos a pontuar a movimentação legiferante do Estado, no que se refere à promoção da igualdade e combate ao racismo. - Lei Imperial 3.353/1888 – A Lei Áurea A Lei Imperial n o 3.353/1888 foi sancionada sob a égide da Constituição de 1824 que, para muitos, era dita como “liberal”. Aquela Magna Carta, em seu Título 2 o , referente aos cidadãos brasileiros, dispunha que Artigo 6 o – São cidadãos brasileiros os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos 21 ou libertos 22 , ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação. (sic). Verifica-se que a Lei Maior tinha como legítima essa modalidade de servidão, muito embora não fosse possível encontrar o termo “escravo” em qualquer dispositivo seu. Entretanto, o discurso dos liberais de que a escravidão não fora recepcionada pela Constituição de 1824, sobretudo porque o inciso XIX do artigo 179 da Constituição abolia os açoites e outras penas cruéis, era rechaçado pelos senhores de escravos, os quais asseveravam ser legítimos proprietários dos cativos e que a abolição importava em desapropriação sem indenização, o que era inconstitucional, segundo a exegese do inciso XXII desse mesmo artigo. Outrossim, invocavam o inciso II do artigo 94 da Constituição, pelo que afirmavam que a própria Carta Maior optara pela manutenção do regime discriminatório ao excluir o direito de voto dos Libertos 23 . Não obstante, de rigor a observação do movimento político- econômico que se desenhava desde o século XVIII na Europa. A Revolução Industrial demandava a expansão de mercados, de sorte que a Inglaterra pressionava este país para a extinção do tráfico escravagista. No Brasil, a 20 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciada em História – (http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/28950/000774292.pdf?sequence=1). 21 Dizia-se “ingênuo“ o filho nascido de escravo. 22 Dizia-se “liberto” o escravo que auferia sua liberdade por intermédio do instituto da alforria, a qual se consumava pela via consensual, administrativa ou, em última análise, judicial. 23 Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se: I. (...) II. Os Libertos.(sic). 19 primeira lei que vislumbrou atacar o comércio humano datava de 1831, conhecida como Lei Diogo Feijó, determinava que todos os escravos estrangeiros que adentrassem o território nacional fossem livres. Com efeito, embora esta Lei extinguisse a escravidão por importação, ao chegar aqui os negros continuavam ser escravizados, fundamento pelo que, dezenove anos após, em 1850, aprovou-se a lei conhecida como Lei Eusébio de Queiroz que criminalizava a mercancia de escravos, tipificando o transporte de escravos para fins de comércio como pirataria. Contudo, segundo afirma Evaristo de Moraes, embora houvesse a penalidade e animus de autoridades superiores na aplicação da lei, ocorreu o que sempre acontece quando o meio social não está preparado, ”mormente quando fortíssimos interesses colidem com o cumprimento de qualquer determinação legal” 24 . Se o escopo de ambas as leis era extinguir gradualmente a escravidão no Brasil, não foram, por si só, eficazes, eis que o lucro da atividade lançou até 1851 não menos do que 1 milhão de escravos às senzalas brasileiras, conforme anota Adriane Eunice de Paula Roos 25 . No ano de 1871 foi aprovada, segundo afiançava Lenine Nequete, a primeira lei considerada emancipacionista 26 , chamada Lei do Ventre Livre, segundo a qual, em síntese, os filhos de escravas nascidos, chamados ingênuos, após a data de promulgação da lei, seriam livres, mediante indenização de 600$000 réis aos legítimos donos, paga pelo Estado 27 . Em 1885 foi aprovada por Dom Pedro II a lei nº 3.270/1985, conhecida como Lei dos Sexagenários, pela qual todos os escravos com mais de sessenta anos, peremptoriamente deveriam ser libertos. Finalmente, em 13 de Maio de 1888, foi por lei abolida a escravidão institucionalizada no Brasil. Entende-se que, por um viés clássico, foi aquele método utilizado para extinguir a escravidão no país flagrantemente inconstitucional, porquanto, como anteriormente exposto, a Constituição de 1824, vigente àquela época, endossava a escravidão em seus vários dispositivos. Sendo assim, uma vez que naquela Carta Política não havia previsão para emendas, melhor solução seria a promulgação de novo Documento, haja vista que, na qualidade de Poder Moderador, no Capítulo I do Título 5º da Constituição Imperial, não tinha o Imperador, bem como seus sucessores, a prerrogativa de suprimir 24 MORAES, Evaristo de. A escravidão africana no Brasil – das origens à extinção. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933. P.- 52. 25 Publicações eletrônica. Disponível em http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2007_1/adriane_eu nice.pdf. 26 NEQUETE, Lenine. Escravos e magistrados no 2º Reinado: aplicação da Lei n.º 2.040, de 28/9/1871. Brasília: Fundação Petrônio Portela, 1988. P.-187. 27 Chegando a criança à idade de oito anos, o proprietário de sua mãe teria a opção de receber do Estado a indenização de 600$000 réis ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de vinte e um anos completos, tempo de sua libertação. 20 dispositivos constitucionais da Magna Carta. Contudo, foi a Lei Áurea a norma que, por vez, determinou o fim do regime escravista no Brasil. - Código Criminal da República – 1890 Notório que o fim do século XIX ilustrou importantes mudanças no cenário político brasileiro e, por consequência, na realidade normativa do país. O fim da escravidão não somente representou um fim a esta modalidade de servidão como também uma mudança no modelo político que no Brasil começava se implementar. Um pouco mais de um ano e meio após a abolição da escravidão, especificamente em 15 de novembro de 1889, proclamou-se a República do Brasil, encerrando-se o período imperial. Obviamente que o regime republicano demandou, como dito, alterações na forma de governo, razão pela qual se requereu, outrossim, modificações legislativas. Em verdade, na seara penal, antes mesmo da proclamação da República já se via uma necessidade de reforma do Código Criminal de 1830, pois este já estava em desacordo com a nova realidade social pós-abolição, que excluía a figura do escravo. Com efeito, em 11 de outubro de 1890, foi editado o Decreto n o 847 - o Código Penal dos Estados Unidos do Brazil (sic), logo alvo de incontáveis críticas pelas falhas que apresentava decorrentes, evidentemente, da pressa que foi elaborado. Uma de suas desaprovações pelos juristas era justamente o fato de tão pouco tempo após a abolição não haver nenhuma figura penal que coibisse a discriminação racial. A propósito, ao invés de tipificar condutas discriminatórias, o próprio diploma previa como contravenção penal, nos artigos 402, 403 e 404, o exercício da capoeiragem 28 , sabida prática dos negros descendentes de escravos. Não obstante, a própria Constituição republicana promulgada um ano depois, em 1891, era igualmente taxada negligente quanto seu posicionamento às minorias, eis que repetiu a fórmula da igualdade já descrita na Constituição de 1824, enunciando em seu 28 Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena – de prisão cellular por dous a seis mezes. Paragrapho unico. E‟ considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.(sic). Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena do art. 400. Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.(sic). Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes. (sic). 21 art. 72 que “Todos são iguaes perante a lei” (sic), não postulando nenhuma medida acionária e preventiva em detrimento ao racismo. Compreendendo o período final do século XIX, não assusta a orientação híbrida do Estado, no que toca os assuntos de discriminação e racismo, em não posicionar-se rigidamente contrário à sua prática. Concernente à contravenção penal de capoeiragem, prevista no art. 402 do Código Penal de 1890, em que pese não ser ainda a capoeira naquele período um espólio da cultura brasileira, percebia-se que no âmbito da ciência jurídica disseminavam-se os postulados da Escola Positiva e, nesse contexto, as teses de Cesare Lombroso (1835-1909), jurista e médico italiano, o qual, com pretensão de ciência, pregava existir uma relação entre raça e criminalidade. O professor Sérgio Salomão Shecaira, em sua obra Criminologia, anota que o positivismo lombrosiano é marcado de um determinismo biológico em que se sustentava a ideia de uma criminalidade de caráter étnico, sendo o criminoso em potencial passível de ser identificado por intermédio de características fenotípicas 29 - tese que corrobora o entendimento de que as ciências (dentre elas a normativa) pendiam consentindo, por momento, a ideologias discriminatórias. A própria Constituição de 1934, mesmo prescrevendo a igualdade racial pela primeira vez na história do país, em seu artigo 113 30 , no artigo 138 estabelecia, no item „b‟ 31 , como dever da União, Estados e Municípios a estimulação da educação eugênica 32 . Já a Constituição de 1937, decretada por Getúlio Vargas, curiosamente no ano do início da Segunda Guerra Mundial, optou por esculpir o princípio da igualdade excluindo do artigo 122, item 1º, a fórmula anterior, limitando seus termos à previsão de que “todos são iguais perante a lei” 33 . Entre os históricos, costuma-se dizer que com o Código Criminal de 1890 surgiu a urgente necessidade de sua modificação, tendo este sofrido uma sorte de emendas por novas leis, o que gerou uma enorme confusão e incerteza na sua interpretação e aplicação. Destarte, o então desembargador Vicente Piragibe se incumbiu de compilar o numerário dessas leis extravagantes que cuidavam da disciplina penal e por intermédio do Decreto nº 22.213/1932, denominada Consolidação das Leis Penais de Piragibe, 29 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia/ Sérgio Salomão Shecaira. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. Pg.- 95. 30 Art 113 – 1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas. (sic). 31 Art 138 – Incumbe à União aos Estados e Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica; 32 Eugênico: o que se concerne à eugenia. Teoria referente à higiene racial; embranquecimento de raça. Vale dizer, a aculturação e miscigenação como forma de absorção de negros, mestiços e indígenas pela comunidade branca. 33 A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 1º Todos são iguais perante a lei; 22 composta de quatro livros e quatrocentos e dez artigos, passou a ser, de maneira arcaica, o Estatuto Penal Brasileiro. - Código Penal – 1940 Vigente até a presente data, o Decreto-Lei nº 2.848/40 optou, liminarmente, por não lançar mão de tipificar condutas preconceituosas, discriminatórias ou racistas. Porém, simbolicamente na data de 13 de maio de 1997, a Lei 9.459/97 acrescentou o §3º ao artigo 140 desse Diploma, passando-se, desde então, punir o crime de injúria com o elemento qualificador pelo preconceito, se presentes no discurso elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem 34 . - Lei 1.390/1951 – A Lei Afonso Arinos No ano de 1951, surgiu, pela primeira vez no Brasil, de autoria do deputado federal Afonso Arinos de Melo Franco, uma lei penal que coibia a prática de atos discriminatórios resultantes de preconceito. A Lei 1.390/1951, sancionada pelo então presidente Getúlio Vargas, tipificava como contravenções penais os atos resultantes de preconceito de raça ou cor, punindo-os com sanções de prisão simples de até um ano, multa, suspensão da atividade do estabelecimento ou perda de cargo público. Embora, para alguns, este diploma penal tenha sido um avanço para a sociedade, a Professora Maria Patrícia Vanzolini Figueiredo anota que a Lei 1.390/51 sofreu severas críticas. Em primeiro lugar em virtude da pouca severidade das sanções nela prescritas e, em segundo, pela forma casuística e aleatória da seleção das condutas que foram tipificadas 35 . Igualmente, ainda segundo a docente, penalistas da época argumentavam que o preconceito de raça ou cor, felizmente, não fazia parte da realidade social brasileira, sendo que as remotas práticas de cunho racistas eram repelidas pelo “espírito de igualdade do povo brasileiro” 36 . Cumpre informar que a referida Lei acolhia, em detrimento da teoria da culpabilidade adotada pelo Código Penal de 1940, a possibilidade de responsabilização penal objetiva, inadmissível nas legislações modernas, porquanto que em seu art. 1º, objetivava-se punir o responsável 34 Art. 2º O art. 140 do Código Penal fica acrescido do seguinte parágrafo: § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem: Pena: reclusão de um a três anos e multa. 35 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação Penal Especial, volume 2 / Gustavo Octaviano Diniz Junqueira. – 3. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2010. Pg.-72. 36 Manuel Carlos das Costa Leite, apud Kátia Elenise Oliveira da Silva. O papel do direito penal no enfrentamento da discriminação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 30. 23 pelo estabelecimento comercial que se recusava atender cliente por preconceito de raça ou cor, quando este praticado por qualquer funcionário 37 . - Constituição de 1967 A despeito de que os direitos e garantias individuais foram descritos somente no artigo 150 da Constituição da República – o que substancialmente demonstra a preocupação ainda pequena da mens legislatoris em tutelar como prioridade a defesa desses direitos – pela primeira vez o texto constitucional faz constar em relação ao racismo determinação expressa de punição, ficando, portanto, recepcionada a lei 1.390/1951. Destarte, em que pesem as severas críticas que sofrera, o Legislador Constituinte apontava sua vontade de reprimir, por intermédio dos instrumentos de força, as práticas de discriminação com fundamento de raça e cor. Dizia o §1º do artigo 150 que: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei. Não obstante, o §8º do artigo 150 previa que seriam intoleradas as “propagandas de guerra, subversão da ordem ou de preconceito de raça ou classe”. Dois anos após, foi ratificada no Brasil, pelo Decreto 65.810/1969, a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da Organização das Nações Unidas - ONU, tendo reiterado sua intenção de punir criminalmente as práticas racistas, comprometendo-se, no artigo IV, item „a‟, a (...) declarar delitos puníveis por lei, qualquer difusão de idéias baseadas na superioridade ou ódio raciais, qualquer incitamento à discriminação racial, assim como quaisquer atos de violência ou provocação a tais atos, dirigidos contra qualquer raça ou qualquer grupo de pessoas de outra cor ou de outra origem técnica, como também qualquer assistência prestada a atividades racistas, inclusive seu financiamento. (sic). 37 Art 1º Constitui contravenção penal, punida nos têrmos desta Lei, a recusa, por parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito de raça ou de cor. Parágrafo único. Será considerado agente da contravenção o diretor, gerente ou responsável pelo estabelecimento. (sic). 24 - Lei de Segurança Nacional A Lei de Segurança Nacional, para alguns ainda vigente haja vista não haver dispositivo que a tenha revogado expressamente, definia crimes contra a ordem política-social. No tempo em que foi pela primeira vez promulgada, na data de 04 de abril de 1935, seu escopo era transferir para uma legislação especial os crimes considerados contra a segurança do Estado, submetendo-os a um regime repressivo mais rigoroso, com o abandono das garantias processuais. Após inúmeras alterações no decorrer dos anos, a Lei nº 6.620/78, em consonância com a Convenção da ONU, lançou mão de tipificar como crime contra a segurança nacional, no artigo 36, inciso VI, a incitação ao ódio e à discriminação racial, cuja pena era de reclusão de 2 a 12 anos 38 , tendo, ulteriormente, a Lei 7.170/1983 revogado aquele dispositivo asseverando somente ser crime contra a segurança nacional a realização de propaganda de discriminação racial em público, com pena de detenção de 1 a 4 anos 39 . - Constituição de 1988 A Constituição Federal, em exercício de vigência até os dias de hoje, contemplou a temática do racismo em uma sorte de dispositivos, postulando-o, literalmente, nos artigos 3º, 4º e 5º. Inauguralmente, os direitos e garantias fundamentais foram locados estrategicamente antes dos preceitos organizacionais do Estado – elemento que demonstrou uma mudança na interpretação principiológica e preocupação com os direitos políticos individuais por parte do ente estatal. O art. 3º, no inciso IV, estabeleceu como objetivos da República a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Estabeleceu, outrossim, no art. 4º, inciso VIII, o princípio de repúdio ao racismo. Quanto ao caput do artigo que principiou os direitos e garantias individuais, diga-se o artigo 5º, o Legislador Constituinte optou por abrir o princípio da igualdade à inexistência de distinção “de qualquer natureza”, ao invés de elencar os elementos descritivos como fizera nas Cartas Políticas anteriores. No inciso XLI desse dispositivo, determinou a punição de qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais, adotando o discurso da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, vislumbrando a 38 Art. 36 – Incitar: VI – ao pódio ou à discriminação racial. Pena: reclusão, de 2 a 12 anos. 39 Art. 22 - Fazer, em público, propaganda: II - de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa; Pena: detenção, de 1 a 4 anos. 25 possibilidade de promoção de políticas afirmativas pelos órgãos governamentais, porquanto que estas determinam, como ora visto no Capítulo 1 desse Trabalho, uma interpretação do princípio da igualdade, pelo qual deve se tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de sua desigualdade, o que querendo ou não, é um ato discriminatório. Por fim, sob uma enxurrada de críticas, o inciso XLII do artigo 5º propôs, especialmente à discriminação racista, a penalização imprescritível e inafiançável, sujeita à pena de reclusão, nos termos da Lei, o que, imediatamente requereu um novo diploma que tipificasse crimes resultantes de raça e cor, nos termos da Constituição Federal então vigente. 26 Capítulo 2 – A LEI 7.716/1989 E O CRIME DE RACISMO NO BRASIL Sob a égide de uma nova ordem constitucional, o legislador infraconstitucional lançou mão de confeccionar a Lei 7.716, de 05.01.1989, que tratou de tipificar os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Contudo, muito embora requeresse a nova Carta Política expressamente maior rigor nos dispositivos que tratassem da matéria, sobretudo atribuindo-lhes a característica de inafiançável e imprescritível 40 , a literalidade desta norma extravagante não fez menção à sua imprescritibilidade, nem tampouco sua inafiançabilidade, fato que, em que pese sejam esses dois aspectos imposições constitucionais, corroborou-se para o aumento das críticas por parte da doutrina brasileira. Entende-se por “prescrição” a perda do direito de punir do Estado, entre outras razões, pelo seu não exercício dentro do prazo previamente fixado, seja porque o decurso de tempo leva ao esquecimento do fato, à recuperação do criminoso e enfraquece o suporte probatório da infração, ou seja porque o Estado deve arcar com sua inércia 41 . Segundo anotam Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Junior, “a imprescritibilidade é um verdadeiro insulto à moderna concepção de justiça e incompatível com o princípio de respeito à dignidade dos seres humanos insculpido na Constituição Federal” 42 , sendo a imprescritibilidade do crime de racismo “um fato novo na legislação penal brasileira, perigosa e escorregadia exceção e um evidente equívoco”, segundo estes autores. Com a mesma exegese, se posicionam os críticos quanto à impossibilidade de se conceder fiança – um dos meios de aquisição da liberdade provisória pelo Acusado – quando do suposto cometimento de um crime. Entende-se que melhor teria sido o entendimento de subordinar os crimes da Lei 7.716/89 aos dispositivos que possibilitam a concessão da fiança no Código de Processo Penal 43 . Em verdade, ainda que o escopo da implementação desses dois institutos - imprescritibilidade e inafiançabilidade – 40 Art. 5º, XLII, CF - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. 41 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1 / Cezar Roberto Bitencourt. – 19. Ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013. Pgs. – 882/885. 42 CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal/ Alceu Junior, Sérgio Salomão Shecaira. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. Pg. – 421. 43 Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos. Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança: I - aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código; II - em caso de prisão civil ou militar; III – (Revogado); IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312). 27 vislumbre a coibição da prática do racismo, fenômeno tão simbólico na história deste país, o legislador Constituinte, com essa determinação, não foi coerente com os princípios de proporcionalidade e humanização presentes na Constituição e demais normas do ordenamento jurídico. A Lei 7.716/89 prevê, atualmente, quatorze tipos delitivos envolvendo a discriminação com fundamento em raça, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, isto é, abrange outros elementos que não somente as características fenotípicas, sendo que a interpretação vigente, dada pelo STF, é que a imprescritibilidade e inafiançabilidade aplicam-se a generalidade os crimes da referida Lei, eis que o termo “racismo”, estampado na Constituição Federal compreende todas estas formas de discriminação 44 . Os artigos 3º a 14 cuidam de tipos específicos abordando, em uma seleção casuística – a qual igualmente muito se critica, porém compreendemos terem sido as modalidades de discriminação mais correntes, – a discriminação em vários contextos (emprego, ensino, comércio etc.), exprimindo obstruções ao exercício de um direito legítimo em virtude do preconceito, prescrevendo penas de um a cinco anos de reclusão. O artigo 20, por sua vez, vislumbra punir de forma genérica se utilizando do termo “praticar discriminação” que, subsidiariamente, inclui as condutas que escapulirem dos outros tipos, tendo seu § 1º cuidado da conduta específica da prática da discriminação por intermédio da divulgação do nazismo, também estabelecendo penas de um a cinco anos de reclusão. Tem se, diferentemente do reclamado nesses muitos anos em que se pugnou pela punição das práticas discriminatórias injustificadas, que o Estado se armou com a previsão de várias modalidades de crimes raciais, com razoáveis penas. Porém, conforme anotam os autores Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Junior, “inobstante nosso ordenamento ter inúmeros dispositivos penais prevendo penas para os crimes de racismo, poucos são os casos que, submetidos ao Poder Judiciário, tiveram decisões condenatórias” 45 . Em verdade, talvez esse fato revele uma realidade subjacente em que o senso de reprovação das condutas manifestamente racistas, tenha corroborado para um preconceito que não mais é transparente, cristalino e revelado (conduta possível de proscrever), todavia se configura às escondidas, nas entrelinhas de um país “racialmente democrático”. É o que revela a PNAD – Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios – que expressa, por exemplo, como as relações socioeconômicas no Brasil se relacionam com os aspectos raciais. A título de exemplo, o sistema 44 Habeas Corpus n o 82.424-4. 45 CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal/ Alceu Junior, Sérgio Salomão Shecaira. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. Pg. – 423. 28 prisional paulista, no senso de 2001, na taxa de encarceramento por grupo racial, ilustrou que para cada 100 mil habitantes, 76,8 brancos estavam encarcerados, enquanto que o número subia para 421 se tratando de negros. Em outra pesquisa realizada em penitenciárias paulistas, no ano de 1997, quanto ao homicídio, as penas dos brancos era em média de 20,1 anos e para os negros era de 35,7 anos 46 . Visualiza-se que a dessemelhança de condição entre os grupos étnicos é ainda gritante, em que pese ter-se enrijecido as penas quando da prática do racismo, pelo que acreditamos não ser por intermédio da lei penal que o controle social do racismo se dará. 46 CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal/ Alceu Junior, Sérgio Salomão Shecaira. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. Pg. – 412. 29 CONCLUSÃO Como visto, a discriminação racial no Brasil é um fenômeno histórico, inicialmente constatado como substância das instâncias nobiliárquico- eclesiásticas, entre outros grupos, para a manutenção do poder e inibir a possibilidade de fomentação do capitalismo, sendo ulteriormente, elemento crucial para o desenvolvimento econômico da Colônia em seus diversos períodos. De certo que, com a proclamação da república e a mudança da proposta política eivada de novos princípios, o processo de desinstitucionalização da discriminação com fundamento na raça e cor não cessou com a formalização da desaprovação de sua prática, nem tampouco com a sua penalização. A verdade é que o Brasil, multirracial que é, apresenta uma discriminação tênue e que não escapa a estratificação social por raça, ilustrada pela gigantesca desigualdade social entre os diversos grupos raciais, e talvez corroborada pelo cinismo cultural da população brasileira em conjunto com a incriminação da discriminação escancarada. Sendo assim, é o presente trabalho, longe de esgotar esse tema tão rico de informações e fatos, para desmistificar o processo histórico de legiferação dos crimes resultantes de preconceito de raça e cor, não como algo bom ou ruim para o corpo social, contudo como um fenômeno, por momento, inócuo, eis que atinge somente o resultado, nunca a causa. 30 Bibliografia ● BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1 / Cezar Roberto Bitencourt. – 19. Ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013. ● BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 2a ed., Distrito Federal, Ed. UnB, 1986. ● BRANDÃO LEITE, Marco Antônio. 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