Os Conceitos de Saúde e Doença Em Psicopatologia

June 11, 2018 | Author: Gabriel Pereira Corrêa | Category: Psychopathology, Sigmund Freud, Relativism, Jacques Lacan, Epidemiology


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UFJF – FACULDADE DE MEDICINADEPARTAMENTO DE CLÍNICA MÉDICA PSICOLOGIA MÉDICA II OS CONCEITOS DE SAÚDE E DOENÇA EM PSICOPATOLOGIA Hugo Tannous Jorge Pensar sobre os conceitos de saúde e doença é essencial não apenas para a psicopatologia. Todos os chamados profissionais da saúde reproduzem conceitos de saúde e doença em sua prática cotidiana. Se esses conceitos não são conscientes, essa prática – científica e ética – torna-se contraditória. Sejamos claros sobre essa dimensão ética ligada aos conceitos em questão. Em termos mais intuitivos, é necessário saber o que é saúde e o que é doença porque o profissional com consciência ética promoveria aquela e combateria esta. Em termos mais filosóficos: é necessário saber o que é o Bem para o ser humano, para só então ser capaz de agir para alcançá-Lo. Portanto, isoladas as complicações dessa fórmula que são trazidas pela vida psíquica, pensar sobre os conceitos de saúde e doença é importante para o estudante de medicina, primeiramente, porque permite responder à pergunta “o que é uma ação terapêutica e como saber se essa ação está faltando ou sobrando?”. O conceito de doença, ao menos, parece simples: a doença é tudo o que, no corpo vivo, causa sofrimento e que leva à sua incapacidade e, em último caso, à sua morte. Parece uma boa conceituação. Mas e se pensarmos que há coisas que causam sofrimento e que não são doenças, p. ex., a fome, a sonolência, etc.? E o sofrimento, é aceitável a ideia de que ele só passe a existir quando um sujeito o expressa, já que ele é antes de tudo uma experiência subjetiva, ou é possível identifica-lo de qualquer modo? E se pensarmos que não há sequer um caso de vida sem incapacidade e morte, portanto estas não podem ser elementos diferenciais em nossa conceituação? Uma vida sem doenças é possível? Poderíamos pensar que a saúde é a ausência de doenças? Ou talvez um número máximo “seguro” de certos elementos objetivos no corpo? Como definir o que é seguro para todos os corpos? O conceito de saúde pode, assim, ser ainda mais controverso. Almeida Filho (2000) argumenta que ele é um ponto-cego da epidemiologia e que não há uma epidemiologia da saúde, pois “o aporte clínico contribui para a abordagem epidemiológica com critérios e operações de identificação de caso, determinando quem é e quem não é portador de uma dada patologia”, mas há “uma incapacidade heurística da Clínica em definir os estados fisiológicos de saúde, salvo como ausência ou negação de doença” (pp. 8-9). Ademais, ele chama o conceito da OMS de 1946 – “saúde é o estado de completo bem- estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doença ou incapacidade” – de “reinvenção do Nirvana” (p. 5), indicando com ironia que a Organização “pesou a mão” em seu otimismo sanitário. Mais recentemente (2013), o mesmo autor afirmou que “acadêmicos de vários campos científicos enfatizaram a necessidade de trabalho teórico no conceito de saúde como um esforço crucial para promover intervenções efetivas em situações concretas de saúde-doença” (p. 434) e fez seu próprio trabalho teórico para uma “teoria unificada de saúde-doença”. Contudo, o objetivo de nossa aula será apenas problematizar esses conceitos em psicopatologia e articular uma possível direção de conceituação através de fragmentos de três autores clássicos: um da filosofia da biologia – Canguilhem – e dois da psicopatologia – Freud e Lacan. O normal e o patológico Os conceitos de saúde e doença de Georges Canguilhem em “O normal e o patológico” (1943) são interessantes porque evitam dois polos fáceis e problemáticos: o positivismo e o relativismo. Ser positivista em uma conceituação é tornar o conceito idêntico a um tipo mensurável de dados empíricos, para assim apontar o conceito no mundo sem erro. No campo da saúde e da doença, temos como exemplo desses dados mensuráveis os elementos biológicos em um exame de sangue, urina, etc. Canguilhem o chama de “normatividade biológica”. ‘O meio é normal pelo fato de o ser vivo nele desenvolver melhor sua vida. Mas como ser positivista com os conceitos de “doença” e “risco”? Definindo leis para a fisiologia. p. dizer que uma situação orgânica ou psíquica “não está legal” e que deve. serão eles anormais que estão colocando em perigo a forma específica. 80). 124). portanto. não seriam conceitos opostos.. ‘Um ser vivo é normal em um determinado meio na medida em que ele é a solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder a todas as exigências do meio’ (p. ou seja. É uma atividade que tem raízes no esforço espontâneo do ser vivo para dominar o meio e organiza-lo segundo seus valores de ser vivo. então. Com a biologia. de que os suicidas que consideram o suicídio um sinal de saúde mental sejam pessoas saudáveis. ou seja. como a teoria da evolução descreve e a cultura humana facilita. fora de um contexto histórico-cultural e pessoal. Ela é determinada pela relação com o indivíduo que sofre.A doença não é um simples afastamento quantitativo de indicadores fisiológicos normais. Ser relativista é. p. 94). É nesse esforço espontâneo que a medicina encontra seu sentido [. pelo contrário. apenas o fato. pois todos os fenômenos existentes preservam a ideia de fenômeno físico. Mas essas condições são diversas e estão sempre se modificando. No campo da saúde e da doença. é derivada de reflexões sociológicas “selvagens”.]’ (p.É necessário reconhecer esses “valores de ser vivo” em um conceito menos positivista. uma reflexão mínima sobre conceitos biológicos. A fisiologia é uma ciência básica. como a feita por Canguilhem. ex. Já certos fenômenos podem não ser referentes à vida. ‘Ocorre com a medicina o mesmo que com todas as técnicas. . tem seu próprio conceito sobre alguma ideia. renegar a possibilidade de ser universal e objetivo em um conceito e aderir à tese de que cada cultura. Normal e patológico. pois esta pode não existir. leis de funcionamento fisiológico “bom” ou “certo”? Como saber o que é “bom”? Cai-se em uma circularidade. 3. uma vez que não é capaz de se transformar em outra norma. portanto. 166). um relativista colocaria. ser conceituada pela ciência da fisiologia. ‘Na medida em que seres vivos se afastam do tipo específico. Esses intervalos saudáveis são definidos estatisticamente: no conjunto das pessoas que apresentam aquele elemento biológico fora daquele intervalo. ela não pode definir o Bem ou o Certo. em medicina. Ela é a fundação de novas condições objetivas da relação entre o ser vivo e o meio para que a vida permaneça.. Nos termos da Bioética (Beauchamp e Childress. o estado normal do corpo humano é o estado que se deseja restabelecer. A doença não pode. ou. pelo doente? Afirmamos que a segunda relação é a verdadeira’ (p. 2002).. será que a terapêutica o visa justamente porque ele é considerado como normal pelo interessado. As condições objetivas internas e externas ao ser vivo para que a vida exista e permaneça é o que Canguilhem chama de normatividade biológica. ou seja. em todos os casos. isto é. tende a afasta-la. E o fato é que a diversidade fisiológica humana é considerável: o ser humano “conseguiu viver em todos os climas” e “é o único animal – com exceção das aranhas – cuja área de expansão tem as dimensões da Terra” (Canguilhem. e nele manter melhor sua própria norma’ (p. no laboratório. em outro polo. evitando o positivismo e o relativismo: 1.Com o conceito de normatividade biológica. na clínica médica. 95).. Mas será que se deve considerá-lo normal porque é visado como fim a ser atingido pela terapêutica. não objetivo. geralmente. indivíduo. etc. ela é a fundação de novas normas biológicas. ser mudada. 93). ‘É certo que. os princípios propostos por Canguilhem para pensar a saúde e a doença. Mas a doença é também uma norma inferior. Essa posição. uma vez que não suporta nenhum desvio das condições em que é válida. 2011. Vejamos. porque o conceito de normal é valorativo. mas que também não caia no relativismo. época. o Princípio da Autonomia acima do Princípio da Beneficência e da Justiça. 2. a doença pode ser conceituada por duas vias. a maioria apresenta “doenças” ou “risco de doenças”. seria o mesmo que dizer que nunca seria universal e objetivamente possível. ou serão inventores a caminho de novas formas?’ (p. A física não teoriza sobre fenômenos “doentes”.Limites numéricos inferiores e superiores indicam os números saudáveis desses elementos. assim. O relativismo é logicamente contraditório (é uma prescrição que renega que deva haver prescrições) e eticamente questionável: ele é perfeitamente capaz de acomodar a ideia. não ocorre o mesmo que com a física. ] anterior. O doente é doente por só poder admitir uma norma. Pergunta-se a um paciente considerado afásico: “O seu nome é João?”. 131). nesse sentido. Apesar de essas posições teóricas poderem levar a um relativismo ou um fatalismo dantesco. mesmo que essa compulsão em si seja inerente a toda vida psíquica. Nesse processo. Como já dissemos muitas vezes. resultaram em uma frustração de desejos ou até mesmo em um grande trauma psíquico – o que o autor chamou de “compulsão à repetição”. de se adaptar a diferentes condições. 130). em última instância. ora. próprios de todo ser humano considerado normal. Em um meio que não seja extremamente protegido. ele teorizou que há um impulso psíquico à autodestruição em todo ser vivo. ele responde: “Não”. no passado. ele embaçou. 4. mas a capacidade de transitar entre normas. Não seria ausência de doenças. Assim. ele mede sua saúde pela capacidade de superar as crises orgânicas para instaurar uma nova ordem’ (p. Vejamos.A saúde. o ser humano é submetido a situações em que suas sensações de desprazer e prazer são associadas a pessoas/objetos. Para ele. aceite a eventualidade de reações catastróficas. ‘Nada significa dizer que um doente esqueceu certas palavras.. mas por incapacidade de ser normativo’ (p. ‘O doente deve sempre ser julgado em relação com a situação à qual ele reage e com os instrumentos de ação que o meio próprio lhe oferece’ (p. 141). se tiver valor de interjeição. sobretudo. ‘O organismo sadio procura. o que se evidenciaria na compulsão humana a buscar as mesmas condições que. seria possível atenuar ou até mesmo superar a compulsão a repetir certos traumas psíquicos. e. em Para-além do Princípio do Prazer (1920). esses doentes só teriam reações catastróficas. é um modo de dizer algo sobre condições pessoais e sociais. A saúde do ser vivo não seria. Desde seu nascimento. conflitos psíquicos intensos em pessoas nas quais não era socialmente reconhecida nenhuma doença psíquica. enfrentando riscos. em níveis menores. em seu campo. Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). as fronteiras entre saúde e doença. Uma mesma palavra pode ser dita. O homem sadio não foge diante dos problemas causados pelas alterações – às vezes súbitas – de seus hábitos. portanto. ela seria uma espécie de experimento natural. Freud teorizou que as perversões sexuais fazem parte de todo comportamento sexual humano. e uma chave para elas está nesse conceito de “compulsão à repetição”. o que produz um circuito psíquico de demanda e satisfação. Mas se lhe ordenarmos: “Diga: Não!”. se tiver valor de conceito’ (p. porque sofrem mais influência cultural. porém. o objetivo da psicoterapia é fazer com que a reprodução dos traumas do passado que o paciente evidencia – na relação com o psicoterapeuta – seja modificada para uma rememoração e uma elaboração das ideias reprimidas que participam dessa reprodução. mais do que se manter em seu estado e em seu meio atuais.‘A redução do meio. sendo oposta à doença. A compulsão à repetição e a doença mental Esses conceitos de saúde e doença se complicam na Psicopatologia: os valores sobre a vida psíquica tendem a ser muito mais diversos do que os valores sobre a vida orgânica. seria a oposição a essa limitação normativa. o sujeito pode ficar limitado a certos objetos de satisfação. o doente não é anormal por ausência de norma. isso exige que o organismo. mas a capacidade de atenuar ou superar doenças. ou seja. Freud tinha noções de doença e de cura. a meticulosidade desses doentes. Relatou. a preocupação do doente é escapar à angústia das reações catastróficas. o que inclui algo mais que a simples adaptação a um meio.. assim. Assim. não sucumbindo à doença. uma norma. ter suas demandas . Daí a mania de ordem. 129). Sigmund Freud teorizou que a doença psíquica era simplesmente a intensificação ou ausência de certas funções psíquicas comuns a todo ser humano. os elementos sexuais e agressivos e os conflitos do doente seriam. realizar sua natureza. por fim. O autor também demonstrou que a doença psíquica é uma mensagem. Sendo a doença psíquica um “experimento natural”. seu gosto positivo pela monotonia. ter saúde psíquica é ser capaz de agir eticamente. seu apego a uma situação que sabem poder dominar. e não pode ser dita. corresponde à sua impossibilidade de responder às exigências do meio [. enquanto não se especifica em que situação típica esse déficit é sensível. Ora. mesmo em termos fisiológicos. ele tenta e não consegue. Além disso. que é possível uma conceituação antipositivista e antirrelativista na Psicopatologia com a ajuda de Freud e Lacan. nos doentes afetados por lesões cerebrais. . ou seja. A adaptação incondicional ao meio não pode ser parte do conceito de saúde mental: é o que nos ensina Jacques Lacan. e Simanke. L. não receber nenhuma “muleta” simbólica desse meio para lidar com essa frustração. psiquiatra e psicanalista francês. Provocações sobre o sexo e a condição humana. J. J. -Bering.. Pois afirmar que psicologia e psicanálise são setores de uma teoria da ação significa dizer que seus objetos (como a memória. é o que não rompe seu circuito de demanda através de uma elaboração simbólica. (2000): O conceito de saúde. G. não posso agir para mudar isso”. (Disponível na internet). Leituras utilizadas e recomendadas: -Almeida Filho. Mas esses valores e condições são parte da causa do seu adoecimento. N. A emergência do sujeito ético e a saúde mental É possível fazer uma relação entre Canguilhem e essas noções de Freud. esclarecer mais um elemento no conceito de saúde mental: o sujeito só é mentalmente saudável se.continuamente insatisfeitas por seu meio humano e. portanto. Vladimir Safatle: ‘[. instinto cego. R.. (2012): Devassos por natureza. inevitavelmente. Ponto-Cego da Epidemiologia? (Disponível na internet). Ação que não é simplesmente reação ao meio ambiente. “esgarçando” seu circuito de demanda e satisfação. Diz-nos um estudioso brasileiro do autor. um automatismo psíquico que o limita a um só tipo de relação consigo mesmo e com os outros gera. suas inibições.] a psicologia não seria. e Childress. ou seja. Vale a pena insistir na radicalidade dessa posição. assim como não existe uma vida sem doenças – é o que é possível chamar de saúde psíquica. não posso achar que certas coisas deveriam ser diferentes. Ela seria. O psiquismo patológico. T. . juntamente com a psicanálise. -Beauchamp. Saúde como objeto-modelo complexo.. muito sofrimento. Isso produz nele uma demanda cada vez mais intensa e frustrada. o setor avançado de uma teoria da ação que fornece o fundamento para toda reflexão de natureza ética [. mas uma norma muito limitada. T. não até a ausência de conflitos.. ato reflexo. seus sintomas. uma reflexão sobre a estrutura das faculdades mentais e funções intencionais tendo em vista o tratamento de distúrbios. a sexualidade. (1943/2011): O normal e o patológico. por fim. suas angústias. porque isto não existe no psiquismo. A compulsão à repetição é uma relação automática do sujeito psíquico com seu meio. o sujeito não sai dela: essa é uma descrição da compulsão à repetição e também da doença psíquica. Sem ser capaz de elaborar simbolicamente essa demanda.]. (2013): Para uma teoria unificada sobre saúde-doença: I. Ensaios de interpretação da metapsicologia freudiana. por exemplo. Na mínima variedade de situações que todo sujeito deve necessariamente enfrentar. transtornos e síndromes [. -Canguilhem.] [para Lacan. liberta nesse processo. que não é capaz de se propor novas normas de vida. (2002): Princípios de Ética Biomédica. -Almeida Filho.]. F. (2011): Entre o corpo e a consciência. F. além de tornar sua relação com o meio menos catastrófica. portanto. modifica diretamente seu meio ao modificar a imagem fixa de si mesmo que sustenta sua ação – ao modificar o “sou fulano. mas impulso em direção à realização de valores que se impõem à vida’ (pp. N. 14-15). A capacidade de “desautomatizar” conflitos no amor e no trabalho. o desejo. Deve-se.. -Caropreso. é uma norma. a percepção) não têm realidade substancial alguma para além de uma reflexão sobre a ação e seus condicionamentos. para reforçar valores e condições de sua sociedade e de seu tempo. O sujeito que “desautomatiza” seus conflitos no amor e no trabalho pode usar sua energia psíquica. -CULT (Revista). -Freud. -Freud. P. (2008): Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais.-Dalgalarrondo. (1930/2010): O mal-estar na civilização. -Freud. repetir e elaborar. (1914/2010): Recordar. S. -Freud. . S. (1920/2010): Para-além do princípio do prazer. (1905/2016): Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Além da Clínica. S. Edição Especial: Jacques Lacan. S.
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