ONDJAKI - E Se Amanhã o Medo

March 22, 2018 | Author: Lya Rakel Elouf Queiroz | Category: Portuguese Language, Love, Portugal, Dogs, Sky


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e se amanhã o medo ondjaki e se amanhã o medo Copyright © 2010 Ondjaki Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Editor Diogo Henriques Assistente editorial Elisa Izhaki Revisão Taís Monteiro Projeto gráfico e capa Rico Lins Editoração Leandro Collares Geração de ePub Selênia Serviços Obra apoiada pela Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas / Portugal Contos angolanos (português). 10-06902 CDD-869. BRASIL) Ondjaki E se amanhã o medo / Ondjaki.: (21) 2279-6184 Fax: (21) 2279-6151 www. – (Coleção Ponta de Lança) ISBN 978-85-60160-66-2 1. II. 600/gr.com. Título. – Rio de Janeiro : Língua Geral. 501-503 Rio de Janeiro – RJ – 22461-000 Tel. I. Jardim Botânico. Contos : Literatura angolana em português 869. Série.3 Índices para catálogo sistemático: 1.DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO. 2010. R. SP.3 Todos os direitos desta edição reservados à Língua Geral Livros Ltda.br .linguageral. expressando-se no nosso idioma. de África. da Europa. .ponta de lança A presente coleção pretende dar a conhecer aos leitores brasileiros vozes novas. ou ainda pouco conhecidas. todas. Venha partilhar conosco esta aventura. Vozes que são testemunho da vitalidade das culturas de língua portuguesa. outras vindas de longe. Não se entende o Brasil sem a África ou Portugal. da mesma maneira que não se entende Angola ou Cabo Verde sem a participação do Brasil. e em particular das literaturas desses países. e também da extraordinária riqueza da nossa língua e do muito que nos aproxima. porém. A casa é sua. da Ásia. A porta está aberta. algumas geradas muito perto de si. Para a Paula T. e o Ton-ton . e Raduan N.Para o Nuno L. . Lavoura arcaica . se me debruçasse na janela.. ver as nuvens esgarçadas se deslocando pacientemente como as barbas de um ancião. Raduan Nassar. e pensei também que eu poderia. até que no céu uma suave concha escura apagasse o dia [.].caí pensando nessa hora tranquila em que os rebanhos procuram o poço e os pássaros derradeiros buscam o seu pouso. sumário HORAS TRANQUILAS A libélula Jangada para longe Coração de porco O colchão da Mongólia Os passeadores A confissão do acendedor de candeeiros O pássaro do cais A filha do piloto japonês Três relógios e uma lua cheia A esquina O sangue no cavalo O engraxador A gaiola Na encruzilhada Amarela CONCHAS ESCURAS A velha A filha da sogra Lábios em lava Madrugada Coração com ferrugem . horas tranquilas . A voz de Adriana. a voz de Adriana Calcanhotto. “domingo” era. de fato. Ora dormitava. Aliás. uma palavra muito interna. .] isso se abriria. roçava na poeira das trepadeiras no jardim. fazia o sol abrandar e chegava. ininterrupto..a libélula (palavras para o Dr. um sorriso. influenciava as mangas e os mamões no seu processo de maturação. pensava: esta voz pode ser dividida. como ferida em que terias de mergulhar PAUL CELAN. A testa latejava. ela partilhou uma sensação com o doutor.. ora escrevia. Na aparelhagem o som acontecia contínuo. Então. Ele. ao ouvido da mulher. A força da luz Um som fluido abandonava a casa. Encostou a testa ao ferro do portão e quis acreditar no impossível: que não tinha sede. muito perto. mas sim a própria paz. ora se quedava simplesmente de olhos rasgados contemplando as nuvens gordas azularem o céu. empurrando a tarde: “será que a gente é louca ou lúcida. A música invadia-lhe os poros. Fosse um poço. cessar a prestação de serviços visuais. Pressentindo isto — que o doutor se apresentava em pleno estado de domingo —. fechar. Para ele não se tratava de beatificar um domingo.. durante extensos momentos. olvidar o mundo. ora lia. Depois disto. os olhos se queriam. aí sim. ao coração também. O frio do portão trouxe-lhe agrado aos dedos. Carvalho) se destas pedras uma anunciasse o que a faz silêncio: aqui. para o doutor. [. a mulher hesitou. quando quer que tudo vire música”.. O doutor solidificara este hábito domingueiro: sentar-se no fresco da sua varanda ouvindo. ainda nítido. ainda forte. no mesmo instante. arrepiava uma libélula inebriada que ali adormecera. saboreando o odor forte a pelo de cavalo suado. mas como mantê-las abertas o tempo todo. à qual ele mesmo infligira uma baixa mortal. Descruzou as pernas. dois.. não beberia. Há anos que fizera as pazes com os animais. Andando. essencialmente os gatos. não chegaria ao frasco. pela manhã. pouco curiosa. usava sorrir. sonhava com borboletas brancas ou amarelas. mirava a tranquila libélula caminhando sobre as suas letras. exigia mesmo um ritmo acelerado de escrita pois. Mantinha uma relação ainda conflituosa com as baratas e os sardões.. era veloz em solidificar. — Reconheço o cheiro da tinta. incluindo a espécie dengosa dos gatos. enfiou as sandálias. não abriu os olhos. ao contrário do que ele desejava. Os gatos. memórias recusadas.. — Desculpe interrompê-lo. Mas falou.”.. Está junto ao portão e a mulher. eu não acho as palavras”. a voz cantava. Gatafunhos. Era tinta um tanto pegajosa. a libélula decidiu acordar. encontrando cavalos suados se detinha. de olhos fechados. em contato com o ar. haviam-no reaproximado dos bichos. sentia saudades de ver correr olongos como vira na infância. esquebras de horas mais sensíveis que escusava aceitar como suas. mover-se em zum-zum aberto. “Eu perco o chão.. Um degrau. Nem foi susto nem foi coisa de se descrever. e aterrizar junto aos apontamentos do doutor. Mas a libélula. Simplesmente o doutor não contava com aquela noção de proximidade. de olhos a quererem fechar. pareceu-lhe.No intervalo de voz. na praia. também por vezes. mas já não era homem para matar. Se feliz ou em vésperas de viajar. e não procurava interpretar o sonhado. Há anos que o doutor acertara as contas com os animais e se apaziguara numa relação equilibrada com eles. na província do Namibe. sobre o cheiro da sua tinta 971 violet. Em vez disso. lentamente as desceu da outra cadeira. a ouvir a música de Adriana: “tenho por princípios nunca fechar portas. Não raras vezes.. Foi depois da libélula que reparou na mulher encostada ao seu portão. O senhor escreve com uma pena? . como lhe dissera o doutor. uma “espécie de pena”. Era. A mulher viu a libélula parada.. sem perturbar a libélula.. pois não? — Não. não é? — É. a que havia produzido aqueles gatafunhos encantadores. “Lá mesmo esqueci que o destino sempre me quis só. num copo normal. O senhor deve estranhar.. Isto é. A senhora não é de cá. viu depois. não no intuito de ler a composição. Vidro mesmo. mas estou com muita sede — ela. Não resistiu e chegou a mão perto: parecia cristal. cantava Adriana.. ela descerrou os olhos. mas era totalmente imune ao vento que balouçava as folhas de papel. A mulher serviu-se novamente. — Desculpe interrompê-lo. talvez esperando que o doutor revelasse se desculpava ou não a intromissão. — Obrigada. Bom. Aquele homem não era facilmente perturbável. chegou-lhe às mãos. — É de vidro. Já ninguém toca às campainhas para pedir água. A água.— Não. não? — Estranhar? — Pedirem-lhe água. . por favor. mas pelo hábito de apreciação estética da ortografia masculina.. Bebia devagar.. — Água ou refrigerante? — o doutor. enquanto a outra executava um gesto afável que a elucidou.. — Muito. Não é bonita? — o doutor. como convinha. afastou-se ligeiramente das grades. O doutor entretanto pousou o jarro no lado longínquo da mesa. Aproximou-se da mesa sem se sentar — a mulher. Por curiosidade olhou as letras sobre o branco. Tinha a cor demasiado viva para estar morta ou embalsamada..”. é uma espécie de pena. Ele fez menção de o abrir. O portão estava destrancado. — Água. O portão foi aberto pela mão certeira do doutor. É uma pena muito especial — a mulher. Convidou a mulher a sentar-se. Na expressão de ambos era visível o espanto de duas crianças que atentas e boquiabertas assistissem. — Por causa da música. — Adriana. respirou fundo. Em criança confirmou-me toda a estória e por fim disse-me: esse homem nem agradeceu a água à tua avó. pois foi-me confirmada pelo meu avô — terminou o doutor. o meu avô era um homem de invulgar humor e sensibilidade.. A libélula progrediu no terreno. — Sabe porquê que pedi água aqui na sua casa? — Não. E a senhora? — Eu estou cá de férias. Morreu ali mesmo. A minha avó voltou à sala com um jarro de água muito fresca e viu-o beber três copos de água de seguida. um senhor lhe entrou pela casa adentro cheio de sede e lhe pediu água. mas caminhando. ao movimento gracioso . em Silva Porto. — E o que lhe disse o seu avô? — Sabe. verdadeira. O senhor. — Foi? — Foi. — É poeta? — Também. cantora brasileira. sem parar.. — Como? — Adriana Calcanhotto. sou médico. Esta voz tão doce.. desculpe. Finalmente mexeu-se. de resto. sabe? Desde então a minha avó vivia a contar esta estória. — Não me assuste.. O senhor só teve tempo de lhe devolver o jarro. eu! Não. pois o copo partiu-se enquanto ele tombava no chão. — Não. certa ocasião. A mulher pousou o copo.— Contava uma avó minha que. — Não foi para assustá-la. O senhor é poeta? — Ah. de repente. Era uma pedra brutalmente vulgar. banal. ao pé das letras. — Os médicos recebem muitas ofertas? — Algumas. O . Uma pedra pequenina. na tarde. E calou-se. A instalação. O inseto voltou a pousar sobre as letras. — Julgo que o valor dessa pedra não pode ser medido pela sua aparência. A pedra e a sua redoma foram arremessadas ao chão. É assim? — Sim. O doutor.. uma oferta muito especial.. A mulher não queria partir mas julgou estar a forçar o momento. é uma maneira das pessoas expressarem carinho e gratidão. nem peculiar. nem mesmo exótica ou atraente. abanou a libélula — uma surpresa para a mulher e para a libélula. O objeto era uma espessa redoma de vidro. O doutor pegou no objeto e voltou a pousá-lo sobre a mesa. — Nem todo vidro é frágil. da libélula. após rolar alguns centímetros. — Mas esta redoma parece muito bem trabalhada. contudo. certamente cara. Num breve sacudir de asas saltou e voltou a estar quieta — uma guerreira demarcando o território conquistado. a cantora progredia na varanda. terminou a digressão. A mulher não teve tempo de invocar um susto. valorizava a pedra. — Uma oferta? — Sim. que protegia uma pedra minúscula. O inseto. muito sincera. cinzenta. realcançou o seu posto. “E a treva entre as estrelas só para mim”. num breve aspergir de asas. A libélula caminhou em direção ao objeto.de uma pedra. dos papéis. A mulher voltou a sentir sede mas não quis incomodar. dizia o meu avô. Esta redoma é muito boa para proteger objetos valiosos. num gesto resoluto. era o máximo que se poderia dizer. O objeto bateu ruidosamente no chão por duas vezes e. Nem graciosa. O portão fechou-se. pegando propositadamente nas grades. Já sabe. no fim. beba sempre devagar. ainda hoje penso nisso. quis dar-me uma prenda. entendeu que era a pedra que valorizava a instalação. Era uma operação muito delicada. — E agradeço antes de morrer! O doutor quase sorriu. caminhando lentamente pelo passeio. doutor. A mulher. tou muito cansado já. enquanto o homem sofria com as dores. Ele. Quase no fim. não quer ser cultura”. Entre duas folhas acastanhadas — numa janela de poeira — a mulher viu: a libélula. A mulher.doutor mantivera-se calado por mais de cinco minutos. — Muito obrigada pela água. O portão foi aberto. e a voz era uma voz difícil de recordar no ouvido da memória. reconheceu a sensação de frieza na pele. não quer ter rosto. À mulher pareceu justo que fosse sua a iniciativa de partir. deixa-me só salvar-te primeiro. — Sabe. eu fico com a cicatriz. A operação correu bem. só pra não esquecermos esta nossa conversa de hoje. Brasileira. — Fui chamado à frente de combate e ninguém queria operar o homem: tinha uma espécie de explosivo preso à perna. — Ele morreu? — Não. A música recomeçou: “minha música quer estar além do gosto. ondululava o corpo. Eu respondi: já te deixo morrer. Ouviu passos. A sede tinha passado. Os lábios contorceram-se. Sob . o soldado disse-me: deixa-me morrer. disse? — Adriana Calcanhotto. e ambos tínhamos que ser pacientes. A música parecia terminar. Tive que fazer tudo muito devagar. foi num domingo — iniciou o doutor. — De nada. parada. Talvez. Você ficas com a pedra. apenasmente uma tentação de sorriso. Como não trazia nada. descalçou a bota e disse: agora já sei porquê que a pedra anda a me incomodar há dois dias. Toma lá. — Adriana. Fosse uma dança. a pedra brutalmente vulgar repousava. Entre a memória do homem e a redoma inquebrantável de vidro. .as suas patas. retirou o engenho da casa num lento mas eficaz berço semimecanizado. fazê-los falar de coisas banais acontecidas do outro lado do mundo. catalogar-lhes o sorriso segundo a proveniência. quase imperceptivelmente. tubagens diversas. e fenómenos como as chuvas. nisso que era o seu prazer mais íntimo: observar os que chegavam. as tempestades. O desfile solitário cessou na praça principal. metais. tintas. panos. desnutrido de qualquer ritmia mais complicada — como cantam os pássaros antes de terem molhado o bico na frescura da manhã. outras gentes. correntes. eram gotículas para qualquer sorriso desfazer. Trabalhava há meses na secreta engenhoca. . Sem cerimónias para empolar o acontecimento. mais do que isso!. cheirar-lhes os cabelos. Vivia obcecado com a ideia de conhecer outros países. Por hábito. sentava-se no monte observando navios partir e chegar. desenvolvendo no alpendre barulhos entrecortados com pancadinhas. Árvore & tambor Para ele o mundo era um quintal enorme dotado de compartimentos separados por água. até ao dia em que a barulhagem cessou e apenas restou o som de um assobio simples. e o povoado sorriu em uníssono numa candura de espanto e respeito pelo enorme objeto misterioso que desfilava pelas pedras da calçada. ou mesmo os ódios dos homens carregados em navios enormes. e. como se as suas veias fossem irrigadas por sensações movediças e volúveis ao empurrão do vento.jangada para longe Si rotcha é pâgina! pedra ê sílaba si corpé é caneta! coraçon ê tinta CORSINO FORTES. importando para o habitáculo toda uma gama variada de pregos. no terceiro dia. como se a incompreensão do seu funcionamento. farmacêuticos e padres. marinheiros e putas pobres. o governador e a esposa gorda e até um caixeiro-viajante. Naquilo que se julgou ser o guiador da máquina. nuns modos verbais desajeitados. instigou a população a contribuir com gravuras. nuvens e sóis. vítima de peso duplicado pelas oferendas que as suas bagageiras abarrotavam. antes instigasse uma sensação de autoria coletiva. Depois das palavras do governador. bêbados e beatas. besuntada de cores vivas. fria e poética. pescadores com estórias de sereias e ventos místicos. sentiam patente na obra o cunho da sua contribuição pessoal e nunca se saberá quem foi o primeiro jovem ou a primeira velha a depositar no corpo do ser móbil a primeira recordação. o que impelia os observadores locais a sorrir de modo involuntário. A velha mais velha do povoado (sendo por isso a mais sabedora) viu o mundo e o povoado banhados pela névoa da sua lágrima idosa e todos então souberam: era uma máquina de se pedalar para longe. Todos. tendo originado que a máquina fosse já outra. estiveram todos na praça. o segundo objeto de decoração. repleta de decorativos tradicionais. em vez do rancor pelo inventor. aguardando as primeiras palavras do inventor da escultura já carnavalesca. encorajando a atitude criativa do cidadão. a quarta estátua de madeira ou a quinta folha da seção de poesia do único jornal local. Crianças. o inventor tomou a palavra e. aleijados e idosos.A estranha criatura de madeira era perturbante e bela. . cada um a seu tempo. centopeias negras e pássaros brancos. comerciantes e doidos serenos. elogiando com emoção a sua iniciativa cultural e declarando aquele dia feriado nacional. Durante dois dias a exibição perdurou. ridícula e cativadora. modo e sorriso. a terceira folha de árvore. bebés de colo e cães vadios. numa ânsia que crescia por si e se alimentava de horas e olhares. a velha mais velha do povoado (sendo por isso a mais bela) amarrou com vigor o único sibitchi que o engenho levaria. — Porque é isso que um povo deve oferecer a outro! Mais adiantou o local da sua derradeira partida. sendo que a praia. propício a momentos de marítima aventuragem. o sol se extinguindo na água salgada. — disse. nesse percurso inclinado para o lado de lá do mundo. quiseram mesmo reinventar novos discursos. O dono da engenhoca dissuadiu-os de o fazer. Quando chegou à praia. indagassem de suas potencialidades e lhe fossem entregando. azulada e linda. as cervejas derretendo os corações e a mulata triste. na tendência narcísica de se voltarem a ouvir. reguladores de temperatura e duas enormes bagageiras para livros já com cantos falsos previstos para a naftalina em bola branca. entre um e outro solavanco de pedra. compartimentos impossíveis. havia-se já instalado. tubos de refrigeração e reaproveitamento de líquidos e sopros. Pássaros ao longe.comida seca. alguns dos ilustres convivas do povoado já lá o esperavam e. que com o olhar se . Era máquina para ocupar meia dúzia de metros quadrados mas com estabilidade estudada e apetrechos científicos que lhe permitiam mover-se a vento. ao longe também. sim. enquanto se desfazia de alguns volumosos mantimentos gastronómicos que a população ofertara. sementes e livros ou registos pessoais de poesia: — Poesia. o violão sorridente de Kaká Barbosa. os recados e os conselhos válidos para a movimentação humana que aquela viagem materializava.. O fim da tarde. foi palco de um improvisado banquete de que as crianças puderam usufruir com certa euforia. explicando que faria esse longo percurso em velocidade lentíssima para que os conterrâneos apreciassem as qualidades da máquina. panos. em banho de comoção. exibiu ao povoado o complicado engenho que a sua imaginação fizera eclodir: uma labiríntica máquina de ventos e popas. plantas medicinais.. Ao longo da estrada. ácido úrico ou força humana que se expressasse em ato de pedalação. nesse lento cortejo que havia acontecido. as cartas. o homem iniciou as movimentações — correntes puxadas e velas içadas. Uma onda embateu estrondosa na janguicleta. e a máquina de se pedalar revelou uma poética simbiose de jangada com algo que existisse sob a designação de bicicleta naval. As gentes afastaram-se do homem deixando-o a braços suados com a sequencial preparação mecânica que o ato requeria. A estranha criatura de madeira e o homem nela balouçavam na direção do horizonte estirado. ta ba tê Merca di bicycleeeeetaaaaa! [2] . rústico. — Undi ki nhu átabai? Lá das guelras salgadas da sua garganta. entre certezismo hirto e utópico deslumbramento. e os lábios de cima das pessoas se afastaram dos lábios de baixo — espanto e burburinho. pois a máquina dançava encaixada na curva das ondas. resistindo às laterais investidas da água.despedia do homem que partia.. entre sombra de sol e raio lunar.. entre sorriso-só e suordelícia. E moveu-se — aquilo.. — o berro sobre as gentes. desenvolvendo um ruído manso e redistribuindo brilhos d’água nas gotas de sol que as enormes pás movimentavam. sobre as águas. e só então um padre despertou para a evidência do que não havia sido indagado: — Ó nhôôôôô.. o homem pedalante gritou assim: [1] — N’ta ba tê Spanha. duas espécies de pedais que se desdobravam de tubos secretos. como seria mais tarde chamada.. Movimento humano. já encabulado. guinchando. Como se o velho tivesse o dom de perceber ao que vinham as pessoas. espreitou. na mulher. encantador. Num tom franco. O velho destapou o bule e sorriu. Precisava ela. FEDERICO GARCÍA LORCA. Mas ela — passiva. desentendedora. O velho aproximou-se lentamente. sorriso no rosto. deambulavam entre olhares mútuos — a divisão complacente de um momento. visitou o castelhano. ao inglês. dentro dele burilava já a sensação de ter encontrado mais um membro do clã: salve!. arranhou o suaíli e resignou-se. o odor de animais vários. indagou: você leu Kazantzakis?.. Havia. no seu impecável latim. disse-lhe. Parados. Foi ao russo. Introdução à morte Era muito cedo. dois porcos que. Si el aire sopla blandamente Mi corazón tiene la forma de una niña. entre. Usava uma face tranquila. de um chá quente. lá mais atrás do mundo. uma expressão de estranheza.] hay barcos que buscan ser mirados para poder hundirse tranquilos. Tanta alegria — recordar é crescer! —. respondeu. certamente. Mais do que satisfação. O velho não se permitia mais do que três tentativas antes de acertar. A mulher bateu à porta certa de que fossem abrir. ela ainda espantando o frio. o velho nem estranhou as horas. mais que frio..coração de porco [. Antes da hora do sol — momento regular. nem perguntou o nome. incluindo notas dispersas e cartas a amigos. o papagaio que acordava declamando sonetos e. e que alguém comunicasse com ela numa língua inteligível. a alegria mansa de estar. chinelos inaugurando o chão da manhã e. Entre. minha filha. O velho. Li a obra toda. O mundo era . charmoso. conversavam. embora nos lábios se descortinassem pregas de frio. incómodo. Terminou o chá.. O Cristo recrucificado. penetrar nos corações humanos. — Então talvez se lembre da discreta tirada do autor grego — olhou-a com firmeza. — pensativo. — tocou-lhe no ombro — para lhe explicar isso. — Não vou deixá-la cometer o mesmo erro que os outros. — começou o velho. — Mas. teríamos que divagar por conceitos filosóficos inacessíveis ao latim . fizeram os mais incríveis pedidos sem nunca. diga-me: por que precisa você de um coração novo? — Para dizer a verdade. mais do que iluminar a Terra. — Sobre? — Sobre aquilo que a traz cá — o velho mexia na chávena com delicadeza. era aquela pequena loja escondida nas arquiteturas mais góticas da Escandinávia. — “Se o coração do homem não transborda de amor ou de cólera.. mais sério.. — Nikos Kazantzakis. — Mas veio cá muita gente? — Oh. Como se numa missão divina. Esgotaram os estoques. — O coração — ela.. me quererem ter ouvido acerca das propriedades dos corações dos animais. sim. uma alforreca sem destino definido e sem corrente para agradar. O velho acompanhou-a na poética digressão à janela... Ela voltou-se repentina. me apareceram na loja procurando novos corações.. — Cara senhora. afastar as nuvens com prepotência e..” — ele esperou. Se havia lugar estranho no mundo. levantouse. séria também: — Os outros? — Os outros todos que. antes de si. mas nunca. das Américas. O sol quase queria chegar. gente suficiente para que eu tivesse de mandar vir animais de África.uma aurora estreando-se nos seus corações. — “Nada se faz no mundo” — ela sorriu. sempre em latim. ? E adormeceu. — Venha comigo — e abriu uma pequena porta. explicou o velho. pretender adivinhar os desejos dos clientes. Quando. — Entendo. por aves raras que não gritavam (era cedo). no fim da refeição. evitando as lágrimas. curiosa. por galinhas-do-mato escuras ou rosadas. O velho era dado a estes comportamentos: adiantar-se em anestesias.de ambos. o que trazia todas as pessoas àquele local: a magia de renovar o órgão primeiro. Poupe as forças — disse o velho. o bombeador de sensações. Pegou na mão da mulher — gesto simples. os porcos. Era. Digamos que a solidão mudou-me a cor do coração. O que é dizer: você é a primeira pessoa a levar um coração com o respectivo manual de felicidade. Já deitada na cama de dossel. Quando retornou das abstinências do hipnotismo encontrava-se já à mesa. no fim. sensível. inocente. como importantes são sempre as portas pequenas. escrito à mão num cuidadoso latim. suavizar cirurgias. ela. tonta mas com uma sensação de aconchego no peito. — Por que faz isso por mim? O velho sorveu as últimas gotas de chá e respirou fundo. a casa mais íntima de um ser humano. suando. começou: — Leve isto consigo — entregou-lhe um pequeno aglomerado de folhas. A mulher suava — no efeito do estranho chá que havia consumido. por porcos-espinhos adormecidos. A mulher suava — passando por estreitos corredores coloridos. Animal muitíssimo asseado. antes de se iniciar o processo de hipnose. — Todos os meus apontamentos sobre a sensibilidade dos porcos. mas brutalmente humano (que só os velhos sabem manusear) — e murmurou . entendo — o velho dirigiu-se ao balcão.. retirou alguns papéis. voltou a fazer um chá. sorriu para o velho: o coração de um porco. — Vai servir-lhe para ser feliz! — E o que é? — a mulher. ratos brancos e. cobras. no fundo. — Não fale.. A partir de hoje a loja está fechada! . pela brandura no seu olhar — fez uma longa pausa. — Você é a minha última cliente.a sua frase última: — Acima de tudo. . não tinha nome. desses na rua. já traduzida no entretanto. fosse a senhora vinda da Mongólia não entender os devidos trocadilhos e a alusão evidente ao modo do miúdo pisar o mundo.. E quê. todo ele. Ela... denunciando toda sua estrangeirice requintada. Já vais m’bora na tua terra? O miúdo. A mãe não tá ver a minha perna? Assim todos da rua me chamam mesmo pisa com gêto. assim..o colchão da mongólia (para a Suren e para o Piricas) desta vez vou construir uma cama de espuma adequada à função de voar JORGE PALMA cantando Boletim meteorológico Mãe. de olhos deitados numa horizontalidade apertada. por favor. seu sorriso torto. O miúdo. Mas. ela desde sempre requereu os serviços do jovem tradutor nunca invente nada. O tal.. mas não: era simplesmente um fiel intérprete. Pergunte cada sentimento recomendava com doçura intraduzível. E sempre acompanhada de um que fosse guarda-as-costas. não vale a pena querer pôr corretos portugueses nas falas do miúdo.... ó menino. tão velozmente dito que às vezes resultava somente em gêtinho. o tradutor.. era fome?. pêçêgê significa o quê? a madama. Ficou já pêçêgê. mas seu sorriso bem evidente. pausara a olhar a criança na rua. olho e dente rasgando a atenção da senhora desatenta no instante. Impossibilitada de comunicar. investigando-lhe o olhar como só ela sabia. Mas a mãe tinha entendido e bem. só atendia pela alcunha imposta: pêçêgê!. em gestuais explanações. no meio dela. . lhe pondo gasosa na barriga e ainda prometia prendas. o ralhete facial. sabes? A criança esperou a tradução. afinal — o calor. Não olha assim então. Mas o menino virava mais o apetite para uma gasosa. sorriu em direção à mãe.. Para espanto do miúdo.... Mãe. Entendeu. evidentes carências da ternura que aquele olhar lhe entornava. O miúdo riu. o esforço de mover a perna-semgêto.. Depois da ternura veio a sede... Melhor: se acredita nelas. a oportunidade rara. mãe assim bem estrangeira. . Pergunte ao menino se gosta de estórias. esquecendo o destinatário era uma simples criança: Tens de prometer que vais fazer com essa prenda o que te apetecer.. lhe tocava com esse gostar evidente? Amanhã eu vou para a minha terra.. é um teleguiado.. mas a senhora querendo os devidos detalhes. Assim a mãe tá a chamar as lágrima o miúdo entrava em pareceres psicológicos. Mas nos disseram ele é mongoloide. Ele é lá da tua terra então. Ele quase sentiu o gesto queimar-lhe o peito. belos. Isso também. Era um miúdo tão miúdo que tinha esquecido as suas normais desconfianças. a explicação completa. que mexiam de tanta encabulação.Mãe. O miúdo sorriu — se sentia para lá da felicidade.. fácil. Mas aqui tem um miúdo de rua. Juro mesmo não tou a estigar a tua terra. riu. Ela referiu o seu destino. mangueirando-lhe os olhos enormes. Tudo o que te apetecer. mas na via direta da comunicação pseudomaternal. mas tenho uma prenda para ti. sentado no muro com essa senhora do mesmo país que o teleguiado. Essa senhora. mas a senhora mantinha a torneira da ternura virada para ele. A mãe sabe. ela sorriu e pegou-lhe na mão. Mesmo o tradutor disfarçando a cara feia. A senhora se embalou no seu texto poético. A sede morreu. já não fazendo uso das falas do intérprete... Eu volto para a minha terra amanhã.. fosse um pacto secreto ele e as ramelas tinham: cumprimentar-se todas manhãs. suas estrelas pintalgando os olhos desses miúdos mais acordados para as noites dentro deles. Eu nem posso correr com os môs amigos. Não diz isso. Eu quando quero correr só sonho já.. provocando-lhe nos lábios o sorriso da indecisão. Vais fazer com a prenda o que bem te apetecer deu outra gasosa. pensando era o pleno pôr-do-sonho. fosse a doçura do líquido um carinho bem mais fácil e certeiro que seus gestos de mão e olhar. Talvez a voz. Com prazer. trazia nas costas um colchão castanho. Veio a manhã — iluminada de ânsias que não soube desvendar.Aí a tristeza repentina voltou. misterioso em seus bordados alguns.. essa perna. O miúdo. O miúdo confirmava sucessivas movimentações na casa da senhora. um ente externo. Sorriu e voltou a queimar-lhe a mão com a sua ternura intensa. o portão cerrado. Mirava. intrigado. Veio a noite — seus barulhos mais quietos. o miúdo estava a aguar o mundo. os aparentes. maldoso. ele. deixou-se estar no muro. sozinho e ensonado. querendo esconder as suas vistas enormes. A viatura . Ajoelhou-se sobre o papelão úmido — a sua cama afinal. o miúdo recordava na pele os carinhos sinceros da senhora. Na mão esquerda. O portão emitiu um ruído mínimo. Mas de manhã sou gêtinho de novo.. ele sabia. O sorriso confundiu o miúdo. O sono lhe fora interrompido pelas vespertinas movimentações no casarão — os voos internacionais eram muito matinais.. O intérprete.. recolhendo-a para adormecer mais junto com ele. Tens de me prometer. do outro lado da rua. longe. Os empacotamentos. uma ramela sólida deambulava de dedo em dedo — sensação que lhe era muito familiar. Mãe. A senhora mongol não se comoveu com os olhos.. os cartões que eles mesmos iam aproveitar para reforçar a casa — o castelo. parecia sentir a mão latejar lembranças e afagava sua perna-sem-gêto. O intérprete. Tinha que repensar a sua condição no castelo. Hoje de noite. via-se que obedecia ordens. o tradutor. a mãe...! O colchão tapava o homem. O colchão não pesava nas costas. O colchão era de suaves afagaduras e o miúdo. A inveja dos outros. hoje tenho que bazar. e riu. ela. Ê!. modos fáceis de caminhar e sentir-se livre de olhar os céus. olhava.escura saiu do útero profundo da casa — nunca vi quintale assim bem bigue. pelo contrário. em direção ao castelo. a senhora mandou te entregar esse colchão. Mais dois ou três passos e a senhora se esconderia no para sempre da escura viatura. em absoluto espanto: Pra mim mesmo? Lá longe a senhora sorria para ele. esse. acrescentava levezas. e esse. mais ainda — a sensação esquisita de um silencioso segredo por desenterrar. lentamente em direção à porta já aberta da viatura. perdida na janela. O tradutor não quis dar confiança. seus desenhos. . apetecia-lhe era mesmo imitar os pássaros. e o cheiro. riu muito das propriedades do colchão. ingressou no carro também. parecendo que ele mesmo — o colchão — se deslocava nos ares. pá. quis entender uma ordem da lágrima — que queria aparecer. pá. eram imagens curvilíneas desenhadas na pele do confortável objeto. misterioso. se foram. Vê lá isso. E o miúdo.. suas manchas castanhas e amistosas. mesmo na distância.. e. a polícia mesmo. Ficou o gesto dela — mão mágica. ouve lá. Em tamanho. O que parecia um lençol.. leve. Ele afagou o colchão. Aquele colchão era afinal uma menos-valia.. ajeitava a carteira no ombro. apressado. lhe recebeu sem despendurar os olhos dos olhos da senhora. absorto. Mas a mudança foi mais que imediata. caminhando. cobiçando-lhe a sua melhor oferta. sim. como nunca tinham lhe olhado. eu vô só no aeroporto mas depois volto. podemos conversar depois. sentiu o objeto terramotear-se todo. ele ali. não duvidou. e ele. nos seus secretos sítios. Havia lugar — no colchão — para dispor a sua perna-sem-gêto. Desarticulava a perna para novas caminhadas. e cessou toda a comichão antiga na sua perna mais magra. desses na rua. estranhos filamentos iluminosos — coisas da magia. relvas e estranhos odores. tudo ensinamentos repentinos. lá no cimo.. e abria os olhos em espanto nesse fenómeno que o sol emprestava no seu colchão: o objeto brilhava pirilampescamente. faz conta a cor do trigo. Mas estava tão acordado que ouviu a traduzida frase da senhora ecoar no seu jardinzito: Tens de prometer que vais fazer com essa prenda o que te apetecer. As luzes do colchão lhe sugeriam uma outra postura. sentado no sonho daquela realidade. uns grilos por vizinhança e nada mais. instantâneos. Toda situação era muito amarela: lava queimando o coração. Arrumou a perna — estranho fazer isso tão de manhã ainda. Deitou-se.. Mas tudo o que te apetecer. se promovendo a práticas aladinas.. seu riso comandava o alado . e chegou.. Ele era já dono de um voo. Sentou. O miúdo. antigas suas moradias. Entre as árvores. outras colorações indicavam o sítio das mãos. extenso. mas a ideia lhe era idêntica. um ouro de nada. talvez areias. todos aviões são iguais espreitados do chão. Bateu as palmas o crepúsculo. função dele é passar — tempo d’água passageira num rio maior. recolhido. Não que fosse o avião da senhora. esse seu gesto noturno. O colchão lhe retirava o medo de passar a noite ali. Na sua boca de medo desaguou um sorriso infantil. quis adormecer. um avião riscou-se nos céus. O dia. Era uma mais que necessidade: um chamamento.Procurou o jardim. O coração vibrava. barulho e fumo. Ele ali sozinho. voltava da sua sonolência e ocupava as ruas do mundo. um longínquo. Já não tinha dúvidas: aquele colchão lhe estava a ornamentar a existência de modo incompreensível. tudo carregado na canoa do sonho. esqueceu o estômago. Velozmente. Assim. compreendera dentro dele as significâncias orientais daquelas luzes. no castelo. mágicos os dois. e se dirigiram. Lá embaixo. miúdo e colchão ultrapassaram nuvens no que elas sabem de correria. . tudo em automáticas hipnoses do vento. adequadas às funções de sonhar. discretas. esvoaçantes. fizera crescer em si o exímio pilotador do colchão mongol. pêçêgê sobrevoava a cidade numa extensa mancha de despedida. seus companheiros de rua e de frio e de carência e de imaginação olhavam a estrela ascendente julgando era defeito da droga consumida. se deslocando plenamente entre os galhos afagantes das árvores.colchão. Adaptara-se simbioticamente às densidades daquele voar. para as bandas de um outro mundo — repleto de luzes lentas. Como eram menos que eles. Temos que falar com a Dona Dina. No canil o alvoroço instalava-se. não porque a escuridão se abatesse sobre os cães. O cheiro dos velhos. Às seis e meia da tarde os passeadores de cães abriam as jaulas e levavam dois cães cada um. na amarelada calmuosidade dos sítios que ficam à beira do mar. Os passeadores assumiam com algum sarcasmo o prazer dessa decisão. o cenário acontecia ininterruptamente ao longo dos anos: na luz parca. nos seus olhos mansos. sorriu. não porque ainda houvesse algum resto da excitação do lanche. Certo dia. os olhinhos tristes dos cães ficavam nas jaulas quando não era o seu dia de passeio. perturbados com os seus gritinhos alternados. Era o cheiro. sorriu à proposta. irrequietos. passeantes. Havia algo de incompleto na quietude daquela praia. Dina Renascença. Havia algo de belo no contraste notório entre a parcimónia dos velhos e a delicada bestialidade daqueles cães pretos. Da sua janela. O sol adormecia. o cheiro. Doze cães saíam. das coleiras desmaiadas que traziam nas mãos. encoleirados. Dispensou uma verba para que se comprassem casacos. enormes. os seus sorrisos e o brilho lindo. Contentes. luvas e coleiras. não porque as andorinhas iniciassem a sua algazarra. uma das últimas pessoas a tratar os velhos com dignidade. respeito e carinho simultâneos. brilhantoso no olhar. vultos debruçados sobre coleiras e cães dirigiam-se ao outro lado do monte. gorros.os passeadores Às seis e meia da tarde o sol preparava a sua lenta retirada. um velho lembrou-se: e se fôssemos passear os cães?. ao pôr do sol. Dina Renascença admirava a saída dos velhos. arrastados pela felicidade dos cães. Todas as tardes. pueril. O canil deixava a noite tombar e repousava num silêncio compacto. Na caderneta escreveu a justificação: gastos inerentes ao grupo de . Amanhã os cães terão outros passeadores. Às nove e trinta e três. O mar fazia cócegas brancas à praia adormecida.passeadores de cães. embalando-a para lá de um sorriso salgado. Belito — disse Dina. Tornou-se um hábito harmonioso. Uma paz oceânica extravasava os limites da água e chegava-lhe certeira ao coração. — Vá-se deitar. . — Eles tiveram que partir. ofegando. Dona Dina — começou. juntou-se a Belito na sua curta digressão à janela e pôs-se a olhar a lua. — Os passeadores não voltaram! Dina Renascença pousou os talheres sobre a inacabada refeição. Pediu que se revezassem e que revezassem os cães também. Belito interrompeu a refeição de Dina: — Dona Dina. Assim velho. Essas são minhas mais alegres lareiras — vocês repousam nas lareiras das vossas famílias. onde eu. Lá nos céus universais. Mesmo o vento me empurra mas não sabe me sustar. elas me cumprimentam com brilhos sorridos. Esses meus candeeiros. Eu de noite lhe fujo. E a lareira deles. um miúdo me ajudasse. todas noites. Sou muito veloz a percorrer ruas porque minha missão me mete carinho de amor — eu gosto muito d’acender a noite. Toda noite é palco para estrelas. Meu tremor na mão é já certo. Eu. Eu é que desafio o vento. Mesmo não queria morrer. a empurrões suaves. sem ela a escuridão me derruba. candeeiros e olhos acontecerem. Minhas mãos afinal dão luzes. Meus passos fazem ela recuar velozmente. da morte tenho medo nas carícias dela. Cada candeeiro — uma casinha que nenhuma noite eu posso esquecer de acender e soprar. reacendo. Esse meu reumatismo me quer enferrujar. Vocês repousam nas lareiras quentes das vossas famílias. Estou seco — pele e veias. cada qual sua janela de vidro. acendo as primas delas aqui na terra. Minha vida só acontece de noite. ser a mancha nos meus prazeres. Eu da velhice tenho respeito. de . minha escada inda me perdoa tonturas de todos anos que eu lhe subi com este carinho teimoso. estão muito agasalhados. pudesse no tempo acender meus candeeiros mais baixos. eu é que todos dias. eu. ou serão sorrisos brilhantes? Toda estrela é luz bonita que nunca soube descansar de alegrar a noite. ia pedir reconstrução de uns candeeiros cambutas. o pesadelo do breu. Não faz mal: meus olhos inda brilham. o matador de negrumes! Sou irmão das estrelas.a confissão do acendedor de candeeiros (palavras para Antoine de Saint-Exupéry e para o Pequeno Príncipe) Eu é que ponho luz nas noites. Eu é que meto medo na escuridão. Eu é que faço esta cidade invadir-se de falsos pirilampos. a velhice me acusa todos dias uma nova pontada nas costas. Essa escada é minha outra perna. cada chama. dividíamos um momento de frio: esses que passam olham meus candeeiros? Esses que vão para casa. Velhice é todos dias ir despedindo um pouco coisas que inda nos tocam as paredes do coração. acariciava minha escada amiga. sendo. Minha vida acontece de noite — eu fosse uma chama provisória. escrevedor das velas. quem me acendeu sempre. julgo ter sido poeta das luzes. julgaria fazer jogo-de-luzes pra deus. meto medo na escuridão. de manhã lhe sofro. Como sou velho. indago-me: e eu. Durante esta minha vida acendi candeeiros pela simples poesia desse gesto. pras famílias deles. depois do último. lareiras deles. olham as minhas chamas noturnas? Eu é que ponho luz nas noites. um poema que eu escrevia para quem passava. . lhe vejo assim pintalgado de brilhos. Fosse crente.madrugada lhe acolho. A dois. invento pirilampos na cidade. Depois. Quando olho o céu. conhecedor das ceras escorridas. artífice das minúsculas luzes amarelas. quer dizer. enquanto acendi estrelas aqui na terra? Eu é que sou o velho — todos dias me despeço dos últimos candeeiros que inda me acendem o coração. discernir que peso era aquele. a manhã estava clara e fresca na sua inauguração. Crianças. algum mata-bicho. os olhos postos num navio ou no horizonte. queria entender. cercados de mar. As crianças moviam-se. esperando. Ou brincavam de ser adultos curvados: quietos. de pedra e de barcos. curvadas também. O lago da lua Vi tanta gente curvada no cais. os portos e os cais serem. Um toque íntimo de destinos cruzados mas. As crianças — não percebo — não brincavam. sim. Aquilo é que era uma tanta gente! Quis experimentar o peso do vento. Espreitei o céu. amolecidos de ânimos e brincadeiras. por que corriam assim. novamente a ideia de os aeroportos.o pássaro do cais animais de carga sobre os dias percorrendo a cidade até aos bordos carregam a morte sobre os ombros PAULA TAVARES. A vida é pesada. agachantes? O peso. Mas as pessoas que se moviam estavam curvadas. a infinita distanciação das pessoas. O dia começava. Mesmo assim toda aquela gente curvada. Vi. Os velhos. de outras manhãs. onde se preparava. Os velhos sentados — conversando. Cuspi. Era um vento semelhante ao de outros dias. Tanta gente. nessa manhã. lugares de desencontro. mais do que lugares de partida. e todos os corpos se moviam de lenta maneira — latejante. certamente. Tanta gente no cais. vi da minha varanda. e começa assim o peso. Andavam de um para o outro lado. olhando. Fumo aqui e ali. Nunca tinha . crianças. Ocorreu-me. sonolentos de olhos abertos e o horizonte neles. da minha varanda. Uma multidão espessa de corpos movendo-se num limite aparentemente definido. Tanta gente curvada. no instante seguinte. aclareado.. Mas e as crianças que gostam de brincar. o peso. O céu estava para cair? Não raro o céu está quase a cair.. os velhos gostam de mata-bichar. tanta gente curvada no cais. ou merda. Tanto peso só podia originar isso.visto tanta gente no cais. O fim do meu mata-bicho sem conseguir conceber o porquê de tanta gente curvada no cais. Passa o pássaro. remeto-lhe umas boas migalhas. e o cais. os sons . aquecendo o olhar. perturbando o mata-bicho dos velhos. Pão. a gente curvada e eu. requisitando a atenção dos adultos. E as mãos. respingando penas. suplicantementesperativo. Não distingo a mancha escura ao longe: será catarata. àquela hora do dia. quatro mil pássaros. outra vez. um prato inteiro de milho. De peso. Já não o vejo. pois. àquela lenta movimentação. passando por eles mais de uma vez. respingando água. o cais invertido de cores e movimentações. será pássaro? Mas a mancha cinzenta. ao pé do fumo. reacordando o olhar das crianças. o alvoroço entre os macacos nas jaulas. Do meu mata-bicho. Olho o pássaro. O pássaro olha o cais. por que não?. ocorre-me. mexe-se fervilhante. O cais cheio de gente. Há gente sentada. o latido sexual entre as cadelas. ele e mais alguns colegas devolveriam a eretidão àquelas gentes. Que lhe esperaria aqui a recompensa. Ele em seus voos. da mesma maneira. Da minha varanda ao cais é já uma grande légua para esta minha perna. batendo as asas o mais estrondosamente possível. Olho o pássaro. passando rasantes por aquela gente curvada. a maré humana à beira do cais. O pássaro-ponte entre o cais. o estômago talvez. Três. factuais. ou quem sabe. Quero que ele me entenda. Têm todos a mesma altura quando estão curvados. apetecia-me gritar para o pássaro. e nunca tinha visto tanta gente curvada no mesmo local. soprando aos olhos dos recém-nascidos e crianças de colo. quinhentos procurando o navio mais próximo. O pássaro!. instigando a revolução provisória entre as cabras. Passou o pássaro. um pássaro ou dois pousando no enorme relógio para uma fotografia. queijo. um deles sentando-se aqui ao pé de mim e do milho para fazer-me o relato. sem fronteira de idade. As mãos junto à cara daquela gente curvada faz-me crer que choram. que vá ao cais e me traga noticiosas confirmações. verídicas. mais migalhas. cega e desorientada. quatro mil pássaros que rompessem abruptamente com a curvatura daquela gente que. . três. com o olhar no chão.alterados. o mar desperto. as palmeiras chilreando. a marginal estonteante. procura vestígios de uma nova esperança. convocasse. tudo para que o pássaro. sei lá. gritado por mim. ou por outro. O piloto japonês sorriu. despediu-se da família com estreitos abraços e lágrimas japonesas e visíveis. ao contrário do que muitos haviam feito.) O piloto japonês preparava-se para o seu voo derradeiro. .a filha do piloto japonês (para Matsuo B. respondeu: Em sonhos hei-de sempre voltar a ver-te. a que menos chorava. é certo que não voltarão a ver-me! A filha mais nova. pai. Crê-se que chegou a dizer: Bem. A impaciência tomou conta de Frida quando já tinha tomado o banho perfumado. Ara estava simplesmente atrasada. O combinado era chegar de noite. a garrafa de vinho. Quando durmo já não penso em ti. perderia a sua aparência noturna. Bebeu. cheirou-o. Hoje descobri que o encontro que ansiava há anos já aconteceu. mas não muito. Marcavam os três onze horas e catorze minutos. daqueles a que usa chamar-se sugestivo. foi . antigos. funcionais. Foi à varanda. posto a colónia masculina que usava há anos — desde que o pai falecera —. Procurou velas. Quase se acalmou. Pôs pratos diferentes. Evitou estar quieta. Alcançou flores secas. pequenos. Abriu o congelador. Frida emocionava-se nas esperas mais do que na vivência dos momentos. não porque és bela. preciso de ti para ser feliz. Existiam três relógios na sala.. Hoje penso em ti e sorrio. Quase os amava. belo. Bebeu um pouco mais. As mãos cobriram o rosto úmido. Escolheu uma toalha amarelotorrada. dois apenas. A noite invadiu a sala. Copos altos. Era assim. a gaveta. não porque és mulher. presença.três relógios e uma lua cheia Se a lua brilhasse um pouco mais a noite correria o risco de definhar. olhou a lua. como sempre. pegou num caderno amarelo e leu: hoje descobri que mais do que amar-te. alva. penteado o cabelo preto. cheirou-as. espesso. Parecia uma gatinha com os seus dedos lânguidos acariciando um simples caderno que nas suas mãos ganhava vida. Diz-se existiam porque Frida cria na existência deles. mas Frida considerava-a já ausente. acordada. colocou-as desordenadamente sobre a mesa que era pequena. Estava lua cheiíssima. mas simplesmente porque te encontrei. Penso em ti quando acordo. Fechou o caderno.. A sala encheu-se de imediato de um odor aveludado. odor. Foi ao quarto. Alta. o pensamento já aveludado. abraçou-a. suaves e certeiras. Ara diminuía o sorriso mas não sabia cessá-lo. uma boca pequena. Frida fechou a porta. Ara vinha a caminho. da força do momento. candeeiros minúsculos. A janela estava aberta. um sorriso fácil. com as velas acesas gastando-se tanto que a chama se aproximava da carpete.buscá-las ao quarto. tomou conta do beijo. onde os colchões — sobrepostos — repousavam desarrumados e vermelhos ao pé de mantas. A campainha não tocava. Ara voltou a abrir o sorriso quando tirou do braço de Frida o caderno amarelo que fora dela. Frida tinha o dom de transformar a ansiedade em manuseamento erótico. Ara deixou-se beijar. eroticamente insinuante. Só se despia para tomar banho ou dormir sozinha. panos. e nele. deixando a cueca no quarto. olhou-a de longe sem deixar de lhe tocar com os braços. Frida sonhava que adormecera na sala com a mesa posta. Ara não se despiu. e porque ela fora sempre linda. comprido mas leve. beijou-a. beijou-a. Quando a campainha tocou. e que enquanto ela dormia profundamente a campainha tocava duas vezes. Abriu a porta rapidamente. do odor das bocas. do abraço. Frida queria deixar-se adormecer. velas e anéis espalhados por todo lado. do tocar e reencontrar de mãos e sexos. almofadas. ao sentir-se espreitada. A lua cheia e linda — porque se haviam passado vinte e oito dias desde a última lua cheia. Sem dizer absolutamente nada. Tinha o corpo delgado. Levou somente as velas para a sala. Ara. Embrulhou-se num pano longo. pegou na mão de Ara. Quando espreitou pelo buraco das visitas. . nua. via-se Ara num vestido negro. sacudiu os cabelos de Frida. Na reduzida visão. cobertores. Os relógios tinham todos mudado os minutos. sorriu. Sem Frida saber. foi para a sala. Estavam ambas emocionadas. Frida nada disse. o olhar. Entrou no antro do amor. E trazia os seios perfumados. Tocou a boca de Ara. baço. esquecer por via do sono e do sonho que o seu corpo pedia a presença de Ara. descontrolando-a. tocando o pé de Ara. Ara olhou os três relógios empurradores de tempo. Sem ser romântica. Sorriu. nos mesmos minutos: eram dez para a meia-noite quando os três relógios pararam de avançar. a lua continuava — branca e erótica — ao alto da noite e da janela. Frida comia com pouco apetite. No olhar de Ara havia um resto de saudade e a quentura do sexo. . Estavam os três parados na mesma hora.Ainda não tinham feito uso de palavras quando se sentaram à mesa. De longe. Resistiu pacientemente aos primeiros vinte e três dias em que ninguém caiu na tentação de lhe fazer uma pergunta que fosse. cumprimentando-o. Não havia preços. e que sorriam ou acenavam. aos seus sorrisos parecidos. No vigésimo quarto dia uma criança sentou-se no chão ao pé dele. o cartaz e a criança ao lado — no chão. as pessoas apareciam com mais frequência. cordial. Engomou o fato castanho e escolheu aleatoriamente uma das muitas esquinas da cidade. As pessoas sorrindo se afastavam. . onde ainda hoje todos os cafés têm pinturas ou esculturas do homem. A criança. Está escrito que ele ripostava com a agradabilidade do seu sorriso curto. a mesa. à mesinha. Ao fim de algum tempo. o que se via era o sorriso calmo. calmo. um senhor prostrou-se em frente ao banquinho.a esquina Em [. Quando se preparava para murmurar algo. ao homem. pintou de verde-escuro um banco pequenino. É sabido que as pessoas paravam para ler o cartão. O homem também sorriu. numa data social em que a vida por si só se tornou difícil e azeda. sorriu.. soletrou com a boca e os olhos: ti-ram-se dú-vi-das… Fechou o seu sorrisinho e olhou-o intrigada.. Se chovia retiravam-se para um parapeito.]. à criança. um homem de meia-idade inventou uma profissão para si mesmo. mansas. Num cartão pequeno escreveu à máquina: “tiram-se dúvidas”. Se fazia vento aconchegavam as pernas um no outro. curto do homem intercalado com palavras poucas. o homem todos os dias lá ia. No sorriso da sua descoberta. passou a manhã esperando que o sol ausente o secasse com a temperatura possível. cordial. A esquina ficou conhecida como a esquina da dúvida. ou quando o homem se preparava para murmurar algo de volta. miopemente. O certo é que a criança todos os dias se sentava ali. o banco. Soletrou mais alto do que da primeira vez. chegaram a acumular-se três pessoas para tirarem dúvidas. bela. para que todos na fila o ouvissem: ti-ram-se dú-vi-das… O tirador de dúvidas afagou o menino. sorriu. olhou a criança. procurou a orelha peluda do homem: dúvida é amanhã? Mãos dadas. O menino enxugou o ranho transparente do seu lábio. surpreendida com aquele olhar extenso. enternecido. Quando o homem disso se apercebeu. . dúvida virou nome de esquina. A criança.Numa tarde fria. olhou o cartaz. Disse-lhe um segredo: dúvida é quando não sabemos bem alguma coisa. na escuridão que já havia e mais ainda assim houve. eu sentindo aos poucos o coração resvalar para a dança da morte. DORI CAYMMI cantando Desafio O cavalo — e eu ardendo de febre. vi o cavalo distanciar-se em circular galope. veio a felicidade. de pés gretados e doloridos. que me rebentaria a boca. não rezar. e. Depois do círculo. que me aumentaria o sangue em redor. soube que morreria feliz. despido. do chão amigo. a bala no peito sufocando-me a circulação. tímido. no que foi uma ventoinhação de cauda e crina espavoneada só para mim. o meu cavalo sobre mim. O cavalo correndo imparavelmente. que me traria a dor que é mãe da lágrima. o meu cavalo bravo com os seus duros cascos. a minha mão tecendo festinhas no pelo curto. mas apenas contrair-me de medo. O vento bateume na face e eu caindo senti o meu último calafrio — o chão aproximouse-me da narina e desferiu um poeirento golpe.o sangue no cavalo Éramos eu e um cavalo/ E era um cavalo bravio [. o meu cavalo procurando por mim. apresentá-la num momento sem hesitação ou cerimónia.. Vi o cavalo descrever o círculo que o conduziria até mim — que me calcificaria a pele pisada. terno.] Éramos eu e um cavalo/ Indo de encontro ao vazio. Instituir-me a morte. de bala no peito instilando-me frio. e a correria desenfreada rompendo a noite. a cela apertada demais. que me esmagaria o coração de encontro à bala. A última instância entre nós havia . engoli sangue e grânulos de areia. De suor nos lábios. Um círculo enorme. O meu cavalo ferido com a minha ausência. desimpedido — viria com força pisar-me. o meu cavalo — o meu cavalo humano. não berrar. Depois do medo. caloroso. amigo. o meu cavalo ainda cheirando a pólvora. que me faria não chorar.. mais do que a minha pude inspirar a ofegante paz do meu cavalo. . soltando das narinas fagulhas de vapor. quis compreender que o cavalo não era meu. A liberdade. sim — sobre os cascos. Ao vê-lo galopante. No que foi a gota última de oxigénio que pude reter ou desfrutar. o êxtase de uma intimidade. sobre os dias. ainda que mortífera. ainda que coicemente endurecida. sangue que se coagularia efemeramente nos cascos e a temida mas chegada liberdade.sido o compacto toque. que eu nunca fora seu ascendente e que a minha morte lhe oferecia um belo coice noturno e inconsciente. mesmo sentindo o odor do meu sangue brotar dos seus cascos. intimidando o vento. sobre as futuras travessias de águas irrequietas chamadas rios. sacudiu. admoestações olfativas. a cabeça forçando o pescoço em manobras impossíveis. solto. quase amistoso. E os sapatos: seus terceiro e quarto pés.o engraxador (para o Kinaxixi) O miúdo estava distraído — ou mais que isso. houvesse uma porta mágica que cedesse passagem. O olhar viajandando longe. sacudiu. Ele. pegou um pano. mais respiração arfada que engasgo. quase. uma outra pele. de seu olhar distante já. Apertado. recolhidamente. assim. para espanto do miúdo. antes do emprego. Cuspiu num forte arremesso. Sacudiu. Com os olhos. evasiva. O homem chegou na sua habitude matinal. O jornal no sovaco ali ficou. Esticou. sua tela amiga. pelo som da napa aplacando duas nádegas. seu odor. O miúdo. uma outra realidade. A poeira ofuscava a realidade e isso era causa de um sorriso por engraxamento — cada um com suas íntimas poesias. O homem tossiu. a primeiríssima? O miúdo foi trazido ao seu mundo. o tabloide absorvia transpirações. seus acessórios poucos. o devido engraxar. mais habilitada a caminhar. ele procurava a visão de um outro lado. Diz-se “reen” porque o ato era já de certa antiguidade. Olhou o homem sentado. quem . o ranho pretendendo descair. da rotina. assim. seu calor. Era de seu pessoal gosto e asseio entrar no escritório devidamente reengraxado. nu. O miúdo olhou o pano. não fosse o vento trazer-lhe desgraça — um cuspe voado originaria uma bofetada imediata. Quando fora essa vez. uma caminhada longa e. diária. O miúdo revelou também uma atrapalhação sua. como que atrapalhado. recolhidamente. No nariz. em pouco desalinho. fixo. leve — coisa nenhuma. Trocaram um olhar exato. Com a intimidade do artista mirou o pano esticado. enxugava cheirares. sem dar confiança aos buracos. mas — instinto! — reabsorvido vigorosamente. isentos. não soube qual. o mais vulgar que fosse. o cuspe na garganta. O homem consultou as horas. bafejou.sabe mesmo. Engoliu. o miúdo: numa indecisão contida. Seu corpo o denunciou: mexeu-se em desajeito. Quis executar um qualquer gesto. O homem: Num vale a pena. os pés do homem. [3] [4] . um pontapé. automassagem usada em esperas. O miúdo: Kota. vamo só tirá pó. por hábito. Estes. Já passavam. coisa nenhuma. Dentro dos sapatos mexeu os dedos. na certeza porém de não tocar ainda e por enquanto ou nunca. num tenho mesmo graxa hoje. amálgama de movimentos sem definição. entre eles. bola enorme deslocando-se lentamente baixo-cima e abaixo. duas batidas no visor do relógio. Porém. eu hoje num tenho cumbú. breve. Deu. Mas ficou no ar. apoeirados. absolutamente. ndengue. limpou. a menção física do inacontecido movimento. . num “ai que me vou”. superior dedicação. Ela. eu. Sob o pano desapareceram os dois antebraços e o princípio das tetas. A gaiola-mistério intacta — não há som. A nuca. À terceira tentativa consegue enfiar a mão na escuridão do pano — o secretíssimo seu segredo. Tento cumprimentar: Boa tarde. num saltinho. boa tarde. uma ambiência ofusca. Da janela. Entram as orelhas. vizinha.a gaiola A vizinha acaricia a gaiola com o cuidado definido de uma predadora.. E. Os músculos sólidos do antebraço regozijam-se em movimentos certeiros. vaporosa deslocação. no esplendor do seu sorriso. É mais que amor.. com um nítido esgar de prazer. os pés sem tocarem com firmeza no solo. o objeto coberto — quase uma extensão daqueles. brilha uma estrela solitária. escurecendo. A gaiola tem um pano a cobri-la...? Os olhos fechados. No céu. prazerosa. Não distingo o pescoço do pano que cobre a misteriosa gaiola. Vizinha. Já não lhe vejo o cabelo. A gaiola estremece e — oh! — é a outra mão. Abateu-se sobre nós uma repentina escuridão. Ela espreita — num início de deslocação. Uma felina. Mas nada vejo. Os olhos fechados. Diante dos seus seios fartos repousa. por baixo. A vizinha acaricia a gaiola com a precisão de um felino. Nem uma. tímida. Vizinha.. sob o pano. Há silêncio — esse silêncio que antecede o impossível. O véu soergue-se como numa magia e julgo ver algo mais. como . o curioso. um sopro noturno. E ela — sorri. nem duas. coisa nenhuma. Transporta a gaiola para outro banco mais alto. . toda ela. repousa sobre o banco. Há o silêncio. Ido. Fugaz. acolhe um fiapo de cabelo. pernas entroncadas. em breve errância vertical. E eu: Vizinha!. Há a estrela. que do entreescuro cai.. nesse “ai que me fui”. tornozelos desafogados. levemente repentina. a vizinha. repentina e leve. num momento menos havido.direi?. ancas enormes.. O véu consta igualmente. manso.. desaparece! — como um vulto assustado. flutuando. ela. a vizinha. Vizinha. vizinha. Resta só quietude. O chão..! A gaiola — a secretíssima objeta. Só. esse. . — Ó compadre — começou o Outro. murmúrios de melaço. . Os olhos. irritadas com o vento. Caminhavam. compadre! — Então. desarrumada em seus crespos pelos.na encruzilhada (palavras para o Branco.. um tédio pegajoso que nem os futebóis nem as cervejas conseguiam despregar. escavavam o breu. em franca sonolência. Com olhares. cruzamentos de espécies diferentes. As árvores ao largo chocalhando barulhinhos de folhas nervosas. faltando-lhe uma unha negra para isso. — Deus me livre! — Mas porquê? Tem medo? — Eu? Ter medo? Não me faça rir. Os pés. compadre. metidos muito para dentro. há anos. o Outro. violações de campos desertos. no seu olhar e pio. — Eu?! Medo delas? Tenha juízo. — Se não frequenta encruzilhadas. A lua (quase) grávida. como que amarelados. com leveza. Acompanhava-o.. E o mocho. chuvas brilhantes. a natureza instala no mundo diversos palcos para que estranhas manifestações tenham a oportunidade de suceder. incluindo esta) À meia-noite.. Um semblante gémeo da face obscura da lua. numa encruzilhada. — O compadre frequenta encruzilhadas? — Eu? Frequentar encruzilhadas? — suspiro. homem de muitas estórias. Ruídos bafientos. — Quer dizer que o compadre não tem medo de se pôr. à meianoite. Foi uma vez: dois compadres caminhavam. faziam dele um ser desinteressante a quem chamavam. tem medo delas. — pensativo. “o Outro”. O Outro tinha uma barba imodesta. certeiro. ocorrências mais assim — equívocas.? — o Outro recomeçou. — Eu? À meia-noite? Não tenho medo nenhum... mas não tenho razão para fazer isso, compadre. — Então fazemos uma aposta...! — pararam de caminhar. — Nós? Uma aposta? Pois seja, compadre; veja lá, não se vá endividar mais... Depois a comadre reclama — sorriu. — Se o compadre não tem medo de estar à meia-noite numa encruzilhada, também não tem medo que lá apareçam determinadas criaturas... — voltaram a caminhar. — Eu, medo d’outras criaturas...? Mas quê, fantasmas vestidos de branco? Assombrações? — desatou na sua aguda gargalhada. — Ou outras mesmo... — o Outro olhou-o seriamente. — Numa encruzilhada, à meia-noite, tudo pode suceder. — Bem — cogitou o compadre. — Se aparecer o Diabo é mais grave... Se for um lobisomem não há problema nenhum. — Então..., o compadre também não tem medo de lobisomens? — Eu? Medo do lobisomem?! Ó compadre, por amor de Deus! Por amor de Deus... Até lhe fazia festinhas! O Outro coçou a barba, a mansos modos, numa apreciação da aposta possível — as unhas longas arranhando os incrustados pelos. A barba cerrada não permitia ver o queixo, a ossadura proeminente, as cicatrizes. Olhou a lua. Falou: — Então aposto consigo, compadre — pensativo. — Sim? O quê que aposta, compadre? — Aposto que o senhor amanhã não tem coragem de vir à encruzilhada, precisamente à meia-noite... — Quem, eu? Precisamente à meia-noite? Por amor de Deus, compadre... Está apostado! E vamos apostar o quê? — Aquela sua medalha de prata, compadre — sorriu o Outro, mas sorriu apenas usando o interior da garganta. — Pois seja, compadre. E se eu ganhar, aquele seu garrafão de vinho muito antigo... O que acha? — Pois seja, compadre... Mas amanhã, virá sozinho. — Pois sim, sozinho, claro está — sorriu o compadre. — Então está combinado. Meia-noite, sozinho — disse o Outro. Seguiram calados. O mocho cessou o seu assobio noturno. A lua subia, subia, querendo esconder-se. O dia seguinte passou de repente. O fim da tarde, a mais bem dizer, encontrou o compadre na taberna. Um copo atrás do outro, como convém ao bom cliente. O sabor delicado do vinho afagando a língua, pendurando-se na garganta, violando os ácidos corrosivos do estômago. Mais um, Belito. Traga-me só mais um..., disse, vezes sem conta. O compadre, bem-disposto, jantou em casa. Lá pelas onze, pôs-se a caminhar em direção ao local combinado. A digestão exigiu um passo mais lento, os minutos estenderam-se. E, finalmente: a encruzilhada — um vislumbre de sombras dançantes. A lua causa na terra sombras bem distintas das do sol. Enjeitadas figuras prateadas, um capim que dança ao vento, uma árvore gigante, um pássaro que, tardado, voa. Em plena encruzilhada, parou — o compadre. Do capim movediço, um grupo insignificante de gafanhotos voou, deixando à vista nua dois ou três pirilampos que se haviam escondido. Bem digo, a lua causa na terra sombras de prata que ornamentam encruzilhadas. À meia-noite. O compadre quase adormecia. Esperar, no fundo, não passa de um exercício de paciência, um modo de estar pouco próprio aos humanos. Já as árvores suportam melhor esse estádio. Encostou-se à árvore. Por mais que quisesse ignorar, era difícil: sentiu, no cachaço, um ar quente penetrar-lhe a espinal medula. Do vinho..., pensou. Mas seguido de um arrepio gélido, o bafo fez-se sentir mais consistente. Uma respiração certeira, um momento próprio para se arrepiar de verdade. Querem ver...? Virou-se, tão súbito quanto o álcool permitiu. Olhou, castanha, maciça, a árvore. E sentiu, instantaneamente, a quentura cobrir-lhe o pescoço, quase uma massagem gasosa; uma almofada de ar; um carinho quente. Apetecia deixar-se adormecer. Mas, a aposta! O Diabo não é! Não cheira a nada, não vejo fogo, não está o cão que o acompanha. Sorriu. Virou-se, novamente. Os capinzais dançavam mais exaltados. A lua estava prestes a parir, esférica como num poema; úmida até, pareceu-lhe. Ouviu o primeiro ruído. Que susto — que susto! Era uma passada consistente, uma boa quantidade de capim pisado. Arrepiou-se. Sentiu-se invadido por uma sinfonia de movimentos nos pelos dos braços, aperto de bexiga, esticão na coluna e umidade no olhos. Ouviu o segundo ruído. Nitidamente, um arfar. A criatura respirava a modos profundos, gastava muito oxigénio de cada vez, só podia ser grande. No chão, a sombra da evidência: a criatura era enorme. O compadre, ainda tonto, afastou-se da árvore, posicionando-se bem no centro da encruzilhada. Continuava com a sensação do bafo arfante no pescoço mas, virando-se, nada vislumbrava. No chão, quase em relevo, a sombra mantinha-se. Que criatura se expressa assim, a metades de consistência? Fechou os olhos por segundos. Antes de os abrir, sentiu o primeiro cheiro. Quase se absteve de voltar a espreitar a realidade. O cheiro: um misto de cavalo, terra, avestruz... ou, simplesmente, o suor de um antílope. Abriu os olhos: o monstro enorme abriu a boca fétida. Urrou, expansivamente. Mas!, diz que o susto é uma construção interna, carecendo de pressupostos. E o compadre não estava munido deles. A criatura estremeceu. Urrou expansivamente, como foi dito, bem junto à face neutra do compadre. E urrou renovadamente. O segundo cheiro chegou, vindo da boca: mistelas antiquíssimas, ervas raras, penas de pato, vinho e lama. E, espante-se, o compadre sorriu. A criatura quase entrou em pranto. Uma timidez repentina invadiu-a. O compadre não dispunha de condições para o devido susto. Aliás, o compadre sorriu, ele sim, desabando numa enorme gargalhada, ecoada nos mistérios daquela encruzilhada. Olhou para cima, para o cimo da criatura. Cambaleante, falou assim: — Calma, compadre!, calma. Não fique assim... É só uma aposta! liase “viagem”. numa coloração carregada que lembrava as águas profundas do mar. não muito cedo. Dois lances longos de escada levaram-me a uma porta pintada de azul-escuro. a secretária onde repousavam papéis coloridos. fato que me deixou algum tempo perturbado pois aquela movimentação indicava um certo treinamento na arte de mover acertadamente as orelhas. tinha fotos e posters enormes colados numa das paredes. incomodativo. e as pessoas. Talvez os acontecimentos estejam em fila. O homem muito esguio e muito branco executou um gesto breve com a mão e entendi que devia sentar-me diante dele. onde ainda era possível ler algo.amarela Aconteceu aqui. o letreiro tinha a primeira parte já apagada e. Bati à porta. ordenados. Era um momento talvez cínico. Uma voz mandou-me entrar. confesso. oscilando os óculos no nariz — para cima e para baixo — sem fazer uso das mãos. o local. Era uma ruela pouco convidativa. iludidas. uma janela minúscula e torta que dava para o tronco de uma árvore maciça. justos. Foi de manhã. esperando para colidir com as pessoas. Haviam dado o endereço a uma amiga distante da minha irmã mais nova. — Veio para a consulta do viajante? — perguntou. com o olhar. e reconheci na . mas o silêncio não foi. O papel chegara já gasto às minhas mãos e finalmente pareceu-me estar à porta do edifício pretendido. um homem muito esguio e muito branco tinha um sorriso pendurado nos lábios. Fui buscando. mas poderia ter sido em outra parte do mundo. Ou talvez não. No fim do corredor pouco iluminado. Era um quarto pequeno que outrora fora branco. por sobre uma cadeira confortável. porque também as horas dormem e o sol vem de longe. onde uma árvore desolada e triste não dava sombra pois o sol não chegava ali. guaches e aguarelas ressequidas e. pensem que a colisão além de natural é aleatória. no cimo da porta. sua voz uma pueril seriedade. retirou um enorme atlas envolto em poeiras e cheiros de um outro tempo. — Nem tudo o que parece. Abriu um livro outrora branco. de uma gaveta imprevisível. — Parece que sim. agora amarelo-escuro — não pela incidência solar mas pelo desgaste do manuseamento. para cima e para baixo. Abriu a página do atlas que continha ilustrações várias sobre o Senegal. — Pois não — disse eu. e pude ver que os seus olhos não eram nem verdes nem azuis. é. Guardou para si o resultado lógico das deduções que terá feito. — A que país se dirige? — olhou-me por sobre os aros. Ambos sabíamos que a poeira dançaria no ar durante alguns instantes e que esse seria um momento simultaneamente repousante e avaliativo. — Infelizmente não o trago comigo — respondi. — Senegal. O seu polegar divagava — roçando — entre o dedo médio e o indicador. — Ceda-me o seu boletim de vacinas. — Pela noitinha. Soprou. E olhava para mim — o homem muito esguio e muito branco. . Leu algumas dessas informações que os mapas usam revelar. — E quando será isso? — Já amanhã. Gesto que. com vagar. embaraçado pelo meu esquecimento. — Pela tardinha? — mostrou curiosidade. A sua mão dirigiu-se à parte lateral da secretária e. — Pousa em Dacar? — Certamente — respondi. A sua cabeça mexia agora. nem lento nem precipitado. — Não — mostrei satisfação. parecia ser coisa de sedimentada habituação. alguma armadilha discursiva ou filosófica. olhando para mim. Eu lembro-me de todos. apreciava o meu espanto. — Lembro-me que já tive febres normais. Bem sei que não traz o boletim. — Não. Lembro-me das doenças que já tive. mas sabe se tem as vacinas atualizadas? — o homem parecia sério. Mas era rejuvenescimento também. de uma gaveta distante. tudo é Senegal. Era espanto e desconforto. — Eram temperaturas elevadas? . desfez-se das embalagens e. em São Tomé. — Gorée ou Dacar. e preocupam-me as febres. De volta ao seu assento. com a ajuda dos dentes e de um hábil jogo de mãos. — E dos locais que já frequentou? — O que têm? — Lembra-se deles? — De alguns. trancou-a. passou pela porta. O homem muito esguio e muito branco mudou a expressão no seu olhar. O seu olhar ganhou umidade. rodou a chave. retirar embalagens de vacinas. As rugas junto aos olhos reduziram a sua pressão dérmica. — Que pena. tranquilo. — Onde julga você que está? — desafiou-me. Continuou lendo o seu livro amarelado. ia preparando a injeção. Sigo depois para Gorée. tendo-se depois levantado para. duas seringas gordas e as respectivas agulhas assustadoras.— Lembra-se das vacinas que já tomou? — Não. — Apenas de alguns. sucumbi às temperaturas da febre tifoide. — Mas não de todos? — perguntou num tom que não era nem de brincadeira nem de seriedade. num 13 de Maio. Tentei não mostrar que sentia medo. Depositou a chave no bolso enquanto. — O que julga você que vai fazer com essa seringa? — desafiei-o. E. — Vai ficar em Dacar? — recomeçou. novamente. — E o que se seguiu? — A senhora ordenou aos dois homens que me salvassem. embora eu tivesse desviado o olhar para . Mas não conseguia parar de fazer quadras. — Também achei — disse eu. — O habitual. a oscilação lenta dos óculos. Através do movimento discreto de orelhas provocou. — Estupendo — disse ele. — E eles? — Eles recusaram-se. começaram as alucinações. — De quem se tratava? — Da primeira-ministra australiana. dois homens e uma senhora encontravam-se na ilha onde não havia febre. — Como eram as rimas? — O primeiro verso rimava com o terceiro e o segundo com o quarto. Julgava ver duas ilhas. mas nem por isso ganhava um aspecto menos assustador.— Sim. A agulha não reluzia. Eu encontrava-me na ilha da febre. — De quem suspeitou? — De Nossa Senhora de Fátima. A injeção estava pronta. — E teve alucinações? — Também. — O que viu? — Primeiro não vi nada. O homem muito esguio e muito branco fechou o caderno amarelado. E depois? — Depois de ter completado dezassete quadras com lógica e ritmo. Mas ela identificou-se. — Você julga que pudesse ser alguém fazendo-se passar pela primeira-ministra australiana? — Cheguei a ter as minhas desconfianças. Uma libélula minúscula entrou pela janela e. — A da febre amarela? — Exatamente. Como já referi. — Ouça. O seu cotovelo voltou a pousar sobre a secretária. a injeção foi-me aplicada. Fez menção de um qualquer movimento desajeitado. Apenas contra essa. resignado mas resoluto. — Aceito uma vacina contra a raiva. voar e voltar a sair. Está pronto? — indagou. Uma certa apatia invadiu-lhe o rosto. — Muito bem. — Julgo que não. Voltei a olhar em frente. voltei a abotoar o botão. não pode sair daqui sem tomar uma vacina — disse. Depois de trocar o conteúdo. tive a oportunidade de conhecer outras febres. — Tem algo pessoal contra as vacinas? — Contra todas. Uma ligeira pressão no êmbolo originou o esguicho da praxe. — Como diz? — Julgo que não estou nem estarei pronto para tal vacina. — Tenho que aplicar-lhe a vacina contra a febre amarela. mas nunca uma de cor amarela. não. deixou-a ao alcance da minha mão. Nutro uma certa curiosidade por essa febre específica. Parece-me apropriado. O homem muito esguio e muito branco franziu o espaço que ia de uma sobrancelha à outra.observá-la entrar. Abri a porta. O homem muito esguio e muito branco retirou a chave do bolso. . Passei por ela. Mas não. o homem muito esguio e muito branco não parou de olhar para mim. No que foi a movimentação ligeira dos seus lábios. julguei descortinar um esgar de prazer. Levantei-me no mesmo instante em que ele se sentava. Preparei os músculos dos braços e os punhos para um eventual confronto físico. O mundo não está para brincadeiras. Desdobrei a manga da camisa. numa voz calma. — Tem alguma sugestão? Olhei para a porta trancada. — Leve a chave como recordação — disse ele. . venha cá devolverme a chave. mais tarde. quase amarela. Guardei o papel como recordação. Vi a árvore maciça. Desci as escadas. deixe-me um relato. junto da chave. Eu passo cá de quando em vez. — De acordo. — Se eu não estiver. Reli o endereço e em nada condizia com a rua ou o número onde me encontrava. discreta mas sorridente. vi tombar da janela um pequenino papel branco. Era o papel gasto que haviam dado à amiga distante da minha irmã mais nova. se chegar a ter uma febre de cor amarela. Já na rua. Quase. — Assim um dia. Num galho minúsculo repousava a libélula — misteriosa. Um torpor de paz invadiu-me a zona superior do braço e por breves segundos senti um medo profundo. Desamarrotei-o. conchas escuras . ao passamento: chegou ao estado e à idade em que os dias lhe não tingem nem atingem. a cara estava tão magra que os maxilares pareciam varandas. sem sítio em que se janelarem. Primeiras estórias Faz hoje precisamente [.. As datas servem para isto: memorizar sucedências. ROSA. nem lhe dava de comer. o nariz mais parecia uma pequeníssima ponte de osso frágil. penduricavam-se repentinamente das órbitas ossais e vacilavam entre o toque na ex-bochecha e a reentrada na sua gruta oca. próxima de dois orifícios . a inacreditável. Gritei. incalculável. JOÃO G. cheirei-a. Há anos que não olhava para ela com atenção.a velha Era uma velha. Hoje olhei para ela.. nem sequer reparava no seu cheiro hipopotémico. foi ela que parou o tempo nela.. Não foi o tempo que parou para ela. os dedos eram a imagem verdadeira e cinzenta de ossos visíveis. A serapilheira é mais bela que a revestidura da velha. que ocorreu-me a vertigem de nada poder fazer. esculpir o começo de uma ação ou erro.] tresbisavó de quem. Um saco de peles seria um elogio. vinda através de gerações. de estória — velhíssima.. e aguçavam escarpas bicudas em tudo o que fosse canto do seu corpo. incomputada. os olhos. cravar na memória uma iniciativa. ainda com restos de peles. o tempo continuou o seu sonho sonolento. sem ninguém. nem de que idade. só ainda da mesma nossa espécie e figura. A idade antiga traz poderes que o corrente humano não domina ou entende. caídas. Iniciou este estado de intacta decomposição e nunca mais evoluiu em direção à morte. A morte acordou. uma velhinha — de história. Há velhas teimosas. Os ossos haviam perdido os seus contornos circulares e macios. A morte estava tão distante e o tempo tão desfalecido. [. E a velha olhou-me nos olhos: o desafio da múmia andante. escura.] anos que a velha deixou de envelhecer. com odor a peles mortas. nada a acumular. que o destro convém mantê-lo pronto. pareciam asas aláveis. Então assisto ao seu segredo: a velha desmonta-se. a pele. Roçava nas paredes com a ponta dos cotovelos e riscava a tinta deixando nela o cinzento arranhão da sua passagem acidentada. inexplicável. e. lembrando esculturas. Segui-a. Afagava a cama como se as unhas deslizassem por mármore. como que magicamente sobrevivendo à escassez de pele. num dia vitorioso — a morte desatenta. insustentada. definhara tanto que também se havia já rasgado nos ombros. acordava-me de noite com o chocalhar de ossos quando se sentava na sanita e não fazia barulho — claro! — porque não tinha nada a verter. mais tarde os membros inferiores. depois de uma semana o braço esquerdo.acinzentados. verticais. a qualquer osso lateral da cabeça que os segurava numa piedade última mas vigorosa. osso por osso. e mexia-se numa movimentação incoerente. A velha caminhava com o mesmo atrevimento desenvolto com que exibia a sua dentição inexistente. quem sabe mesmo arriscar a bacia. pela lateral. Vi como se aproximava da cama. Olhou-me nos olhos. Um arrepio. imagino: no primeiro dia só a mãozinha. a cada passo julguei que ela tombava e o esqueleto se desfazia — aquebrantado. fantasmagórico — absolutamente! Antes de se desmontar num lado já se está a montar do outro. os joelhos entrechocavam-se ruidosamente. a velha. julgo tê-los visto presos. Tapo os ouvidos. o tronco. sem deixar que a labiríntica ossada se desfizesse num puzzle irrecuperável. a coluna vertebral. gretados a cada passagem das mãos-osso. como digo. absurdamente espantoso. riscava os armários da cozinha com os ossos das mãos porque os seus movimentos contavam ainda com as dimensões ausentes do revestimento das peles. onde as omoplatas. o tempo . em cima. mas pendiam-lhe dois enormes brincos indianos. nada a respirar. Um arrepio. não tinha orelhas. quase belas. desenvolveu o treino ao longo dos anos. já bem treinada. a nuca. Mas não. assim visíveis. conseguindo transferir a sua ossada para o repouso dos sublençóis. nada mais a causar neste mundo. sem desarrumar as pernas. uma vértebra a menos e a coluna desmorona. Gritei. devagarmente. do outro lado do lençol. O relógio de parede. segurei a velha na ponta do dedo grande do pé. e puxei-a de supetão sempre na esperança de que o esqueleto com restinhos de pele se desfizesse em catorze mil pedacinhos e eu pudesse finalmente ouvir o som irrepetível dos ossos a quebrar. mas intacto: a velha tinha soluçado. obriguei-a a tomar na sopa doses descomunais de veneno para ratos. enorme. não cederam um milímetro que fosse. a nuca embateu ruidosamente no chão e. Ouvi um tic e depois um tac. pelo som. no eco. porque mal desaparece da sentadura onde ela se desmonta com precisão aparece na deitadura onde ela se remonta com exatidão. e montadas sob o lençol na sua secreta e anciã técnica de autotransladação. E eu vendo-a: osso por osso. Não para a morte mas para assustar o tempo. Boquiaberto eu. que técnica!. e remonta-se embaixo dos lençóis. refeitinha. um estalido. lá está ela. que rápida suavidade no transporte da ossada. o corpo todo numa transladação lúcida e anatomicamente improvável. Pacientemente. Só alguma poeira no ar que salta das junções e. enquanto a morte se distanciava porque a minha hora ainda não era chegada. Fechei os olhos à velha. Ocorreu-me que tinha de surpreendê-la. as peças tão certeiramente recolocadas umas entre e sobre as outras. A velha inanimada tombou cama abaixo. mais um ossinho. ela desmonta-se à luz do luar. cuidadosamente. Mas as peças desmontadas aos meus olhos incrédulos enquanto ela ainda vivia. . a lembrança do som dos ossos sendo retirados do meu alcance visual e reencaixados lá embaixo.embriagado —. outro ossinho e o corpo embora dividido está uno. num segredo só seu de automontagem. E num ossápice ela toda deitadinha. Não soluçou mais. pude contar três investidas contra o solo. enquanto os ratos se passeavam porque a provisão de veneno sucumbira. crack!. uma falangezinha e o esquema pode comprometer-se. e senti que a morte a apaziguara. A velha. Enquanto o tempo se espreguiçava apercebendo-se que era tarde. acabar de vez com aquela pausa temporal nociva à própria humanidade. Uma ossada coesa arrastava-se no chão — em direção à campa — deixando o trilho de teimosia. rigor e vitória. da velha. . a cama. Agora que ela desapareceu. sem grandes almoçaradas. O tempo aprazado Pelo menos levou a mãe.a filha da sogra A campainha da porta era o alarme da minha alegria. mais resumida. ninguém me pede para desligá-la. As janelas ganham poeira. Uma paragem em que o tempo parecesse ter emperrado. . Tudo vai parecer mais longo agora. repouso num dos lados. julgo crer que estou só de vez. noite adentro. a televisão deixa de fazer sentido. Muito. mais fresco mas mais longo. Felizmente a tua mãe partiu também. mais atemporal. As chávenas limpas. Tinha contra a minha. tudo e mais alguma coisa se desvanece. Contra as sogras dos outros não tenho nada. em vez de um copo bebo dois ou três dedos de água. sem sombras no jardim. INGEBORG BACHMANN. E está gelada demais. Ela partiu. Não que eu tenha algo pessoal contra as sogras. os familiares sorrindo incansavelmente um domingo inteiro. Mas era pouco nítido isso. o início. As árvores abanam mais devagar. a sensação de que a vida se volta a resolver. De repente. uma chávena suja de cada vez. se revelasse mais simples. De noite creio que estou só. silenciosa. É o início. algumas delas bruscas. Sem mata-bichos a três. outras extensas. mais pausado. Não te perdi a ti. a família. tenho mais tempo para percorrer o corredor até à cozinha. cheirando a solidão. Só. Mais quieta também. Sem lanches. a cama farta-se dos mesmos lençóis: quietos. adormecidos. Como se a vida tivesse várias paragens. Os corredores passam a fazer companhia. na solidão. Como se a vida. porque gostava da sua filha. Não. Partiste. sem sogra. Sem sogra. A noite é uma balança maneta. penso. A cama…. perdi o mundo. O ronco absurdamente gigantesco da sogra. um a um. Não costumava dormir com o silenciar manso dos grilos. metálica. Várias vezes pensava nisso: deviam atribuir-lhe um prémio. Os mosquitos mortos. os mosquitos entrando. Tremo. A ventoinha desligada porque nem sequer a liguei. Os mosquitos saindo e entrando. no rebentar do meu próprio sangue. nem te vais levantar a meio da noite. nua. uma e outra vez. empanturrando-se do meu sangue. Tremo. As janelas abertas. a nova vítima dos mosquitos e do silêncio inacontecido dos grilos. Só para experimentar uma sensação diferente deixo a água fria cair sobre mim. Espirro. suja. mas saturados de tanta facilidade. ensonada. Os mosquitos adormecendo exaustos junto à janela. . a ventoinha tombada no chão porque eu não vou apanhá-la. sorridentes. Não costumava encontrar a ventoinha no chão. Pela primeira vez em tantos anos tomo banho de água fria. sanguínea. o novo inquilino da sua própria casa. Um prémio. que eu não os vá afastar. onde o sangue acabará por virar mancha escura. não costumava tê-los no quarto. A sogra. A sogra-spaceshuttle. como que acordando o novo ser. satisfeitos. o homem tendo pesadelos com os roncos da sua longínqua sogra. a ventoinha triste. Porque eu não vou limpar a janela. De manhã transpiro. Não de frio. Na tipicidade masculina dos meus pensamentos.como testemunha acusatória do sucedido. Água fria. Só para experimentar uma sensação diferente. sim: o Nobel da pseudoaviação. bela. não crendo. E a janela. pois acontecia a tua mãe substituí-los. mas porque acordo para outro mundo. A semelhança com a proximidade de um aeroporto. água fria caindo sobre mim. vampiricamente repletos do meu sangue. para desligá-la. na pesada sonolência da fartura. Não eu. encontro-te pouco. A sogra-boeing. escuros. Não eu. O meu sangue e o dos mosquitos. a tua mãe não ressonando — a maior chaminé do mundo apresentou a sua demissão tardia. e o galo acordando quem esteve a dormir. gordos. A ventoinha com pó. O silêncio no corredor. Estarei a precisar de sensações diferentes? Mais ainda? Não costumava matar mosquitos. em vez de simplesmente agradar-me. Dormirá a tua mãe do mesmo modo. envolventes. meu amor — o teu rosto. E voltará ao mundo dos vivos. Aqui as coisas não constam dos mesmos modos. Sim. Não há o ressonar macarrónico da tua mãe. Na minha janela. Eu não vou apanhá-la. como se dão? Tudo aqui está ainda demasiado silencioso. a casa. as unhas. Porque eu não vou apanhá-la. Na incapacidade momentânea de continuar. Ela não conhece o silêncio. Os ossos da cara. ela não suportará o silêncio. cuidadosos.. é possível que volte. as axilas calmas de noite.Tudo em volta de mim: a sogra. Nem a tua mãe. Será que me lembro da tua nudez? Revejote as pernas. os jardins. A relva no jardim crescendo. sabendo que já não me incomoda? A tua mãe sentir-se-á mal no túmulo. os braços longos. Creio no sono. a ventoinha. perturba-me. não é? Já não estás. E tu? E tu e o silêncio. até os mosquitos. E tu e o silêncio? . os odores. delicados.. As baratas multiplicando-se na despensa do quintal. A cara. Já cá não estás. Um ou outro pássaro começando o ninho na nossa janela. Eu não durmo da mesma maneira. ou alguém que apanhe a ventoinha do chão. Isso. Sentirá na pele o castigo eterno do silêncio. o esquentador. de repousar. as unhas acesas — carnívoras? As costas. Só porque partiste. musculados. dos mesmos lugares. Porque eu. luxúria e saliva. e gemo. Porque eu tenho procurado estar. os antros. busquei em ritmo e repetição sabida. Cada poro meu é um ponto de interlocução aberto — entupido de suor e magia. Senhor.. escorrendo. CARLOS FUENTES. pó longínquo a ti. do viveiro de intensos fantasmas. deixando-me à mercê de mim e da noite. Saberias compreender o estrondoso frenesi dos meus dedos. a vulcânica e contida necessidade dos meus lábios. o espetáculo vivo. mais tarde. gemo. mas para te compreender. amarga. desfazendo o corpo em pó: pó solto. o suor. As mãos deixando por elas escorrer babas que eu desconheci de início. as mãos imparáveis percorrendo-me a pele. oh meu deus. incontida. ou delas. o suor. a resistência da penugem. gemo.. A mão amarga movendo-se no antro. incorporar. contagiando virgens orifícios. grito inaudivelmente não para te contrariar. velada. está escondida. A pluralidade do odor. Constancia e outras novelas para virgens Deus. penetrando-me selvagens como se não fosse eu dona de mim. tu perdoar-me-ias. no pecado da manual fricção. As mãos. numa construção infinita em que cada porta esconde outra. o odor. Atiro-me do alto da minha fé.] uma freira é uma mulher mas uma mulher que não é vista diariamente. Senhor. Testemunha — a noite: palco de avessos. desarrumada. o calor e. de pernas e proscénios abertos. tenho . pó vivo. numa prisão. proibidos. no pântano do meu ser. a mão indelicada. a língua procurando o que não pode tocar. e por isso desejam-na com mais ardor. Senhor. As babas. contrariando penugens. Porque com gigantesco prazer eu peco! E peco pensando ressuscitar.lábios em lava [. morro num prazer de mãos. vedada num convento. alimentei depois e. as transparentes lamas. a saliva escorrendo por gémeos orifícios. facilitando-me percursos apertados. Os homens não a esgotam no trato diário. escorrendo abusivamente da alma. logo depois úmidas. rapidez. nas axilas escondidas. cheiros mil. aos dedos delicados de dia. Senhor: com música escorregadia na alma. De repente. nas virilhas. As mãos. juro-te. mas posso ouvi-lo declamar. inicialmente protetoras. Sinto os braços calmos. fálicos de noite.. as mãos. nas virilhas…. nos lóbulos sentidas. maleáveis. Senhor. adormeço.estado. mas mais nítida. a paz é outra. nas pernas ignoradas. marcial sabedoria. as nuvens existem no céu. Meio da minha prazerosa perdição. o meu corpo acorda do transe. nas coxas discretas. Senhor: adormecendo primeiro que eu. demoníacas. Em vez de acordar. . prostituídas a mim. as penugens. as penugens provocantes. Talvez não tenhas mais para dar às minhas mãos embriagadas. assim peco. corporalmente: a tua luz parece-me a mesma. abundantes. entranhando-me odores. adormecendo. a nuca. Tu não dizes nada. coberta de dúvidas e penugens arrumadas. nos braços arrumadas. Senhor. Ganham dimensão real: dedos somente. E tu. de certo modo. Senhor. não dizes nada. incisivos de madrugada. o meu corpo repousa. às mãos. mas mais perto. percorrendo-me as entranhas. os pés. Os dedos retiram-se. fingimento. de seguida penugens cambaleantes e.. acalentando-me a boca. totalmente ébrias. Os dedos perdem acutilância. com salivas opacas. as axilas. das carnes. os olhos e as penugens. Arrumo o cabelo que me apruma a alma. o essencial faz mais sentido. Repouso nua. O mundo é uma vela ardente e solitária sem medo de se consumir. Meio da noite. salvação. nos percursos proibidos e apertados. dos lábios em lava. mas flutuando. e.. o vento nada diz. premonição. Senhor. Os suores se extinguem num horizontal estremecimento de mim. as virilhas. rato fêmea. Custava-lhe morar na rua e ser mulher. a fonte de água geladíssima onde se lavava a horas tardias. Dormia de luzes acesas. sorrindo. o frio passando com os dias. As recordações futuras seriam certamente preenchidas por este íntimo conjunto de cheiros e barulhos com os quais vivia. O vento roubando-me o prazer de o fumar. Sabor a chocolate e o filtro molhado. era isso. Levantava-me. Sentia as pernas mais geladas que o habitual e deixava o sangue escorrer. já não tinha mais paciência para me ir lavar. O outro lado das pessoas.] o perigo das ruas. encarnado. Mas anos mais tarde lembrar-me-ia da noite em que não estando menstruada. as dores da menstruação. lambido pelos mesmos ratos de sempre. mais minhas. À noite o mundo transmutava-se para algo que observava mas não sabia explicar. os cheiros. o sangue que estancava durante algumas horas e depois voltava.madrugada [. nem sempre. E o frio. tímido. os dias opostos às noites. Percorri alguns pontos do quarteirão sem me afastar demasiado. ternurento. o papelão úmido envelhecendo. As baratas passando entre as pernas sujas. mais algumas beatas no chão e nas janelas. o perigo nas noites.. o fumo tirando algum frio. mais íntimas. O papelão a antiquar-se. apanhava o restinho de cigarro. recolhida quando não tinha pensos higiénicos. deitava para a rua o seu último cigarro. castanho. sob as névoas da madrugada. e o velho sorrindo na janela saboreando a cor rosa da água que escorria por entre os seus tornozelos. algumas esquinas caridosas. rato macho. gordo.. Lembrar-se-ia também dos seus poucos mas intensos odores. escuro. Naquela noite não sabia que me havia de lembrar disso. com algum sangue já coagulado na pele. intenso. o papelão que por magia durava invernos a fio. não passei a noite nos caixotes de papelão. E o velho. os ratos cantarolando sobre o frio. os dias. Outras . novamente os ratos e as moscas. os ratos lambendo o sangue espesso. que por engano me desintegrava a intimidade. não me pude mexer. quase me sentia suspensa pela incisão do seu dedo. em vez de correr. as estrelas perdiam a timidez. Mas não. Minusculamente irrequieto. Olhou-me nos olhos. Os ratos apareciam sem medo. Mordeu-me o lábio. tocou-me de imediato. Não foi um sonho. Senti-me encurralada não pela sua força. A sequência dos acontecimentos é-me pouco clara. outros cheiros. uma bofetada. Não era um sítio escuro. Tocava em mim como se quisesse manter uma relação erótica. que por engano me remexia a profundeza das entranhas. espaireciam. agir. tocou-me!. não me beijou. Não era um local propício ou tendencioso. Mas tão poderoso naquele momento. que por engano magoava pela invasão corporal. que por engano me humilhava. aquele universo absorvera-me já. que sangrou. os gatos. Não era verão. A outra mão entrou certeira pelas coxas. Aproximou-se de mim como se viesse pela conversa. Mas as sensações são nítidas. Senti-me encurralada em mim. Uma espécie de maravilha. Não teria sido aquele o universo pretendido. outras barreiras. Como se esperasse que eu me tentasse evadir. que sangrou. que sangrou. a força concentrada num dedo e numa vagina. Mas aquele universo. não me encostou à parede. Uma pausa. Onde estava a minha revolta? Onde estava a minha lágrima? O que . que por engano era também bruta. Mordeu-me a orelha. porque era pequeno. atirou-me uma mão. Uma armadilha de sensações. devagar. Mordeu-me. até porque me forcei a não reter nada. estritamente erótica que por engano era também sexual. Quase não sentia os pés em contato com o chão. mantendo-me a imobilidade. um sorriso. tão decisivo no que poderia ter sido um recuo. Não houve lágrimas. não pelos seus braços. Minusculamente presente. não pude reagir. quase não sentia a pressão nos lábios menores. Mordeu-me o pescoço com força. tocou-me como se me conhecesse o ponto da imobilidade. Agora éramos vítimas de uma ambiência que eu desconhecia e ele não soubera evitar.cores. não pela sua fraca brutalidade. O seu dedo certeiro mexendo-se dentro de mim. A mais séria contusão mental. se quisesse. lambê-los gulosamente. ou ter chovido. passar os dedos em mim. distinta da merda do frio que em vez de chatear somente a pele chegava aos ossos. O erotismo revoltante na animalesca sexualidade. e eu tinha que me levantar e caminhar para longe daquilo. Esta é a recordação mais dolorosa. por engano. as dores voltavam. o sangue era encarnado e escorria. ao meu lado via o maço de cigarros desfeito no chão. As lágrimas aparecendo devagar. aos órgãos até. Porque ninguém apareceria. movimentações e respirações frenéticas que me soavam a milhas. porque isto não tinha sido diferente de ter febre. ou quem foi. na verdade.faria ele de seguida? O que é fato físico a partir de aqui não registei. Mas não. Não. momentaneamente. se de fato se tivessem apagado. os sexos estranhando-se mas encontrando-se. Ninguém limparia o sangue. Vi-o lamber os dedos. ou pelo menos eu acordava para elas. olhada. quem sabe. distinta de ter dores de estômago por não comer ou por comer laranjas podres. eu não sabia como fazê-lo parar. Então acordaria num outro sítio. Porque. pelo mundo. distinta de levar porrada. Senti o cheiro do sangue. A sensação de que aquilo era verdade. o mundo acontecendo em câmara lenta enquanto a própria dor se encarregava de atenuar a dor. distinta de todos os dias estar farta de não encontrar uma solução. As imagens iriam certamente apagar-se depois que o vi apressado afastar-se de mim. A decisão mental de não querer que aquilo constituísse uma experiência distinta das outras. O suor misturando-se. ouvia ao longe gemidos. cuidada por alguém. porque ninguém me iria perguntar o que foi. esperar. as lágrimas aparecendo devagar num esforço . Ou deixar-me ali. porque esta noite não seria diferente das outras naquilo que é a minha vida. a noite e o frio não se iam esvair. comer um gafanhoto. Eu tinha que me levantar. sim. era tudo a mesma coisa. porque às vezes a solução é não pensar na solução. distinta de se achar feia. O meu corpo sangrava. e esperar. mas tudo passando-se a milímetros de mim. Senti os passos afastando-se. para me levantar mais tarde. As lágrimas compassando os passos. Lembrar-se-ia do barulho do chuvisco batendo no plástico sobre os papelões. o acolhimento do seu corpo. como a irritação de não ter a higiene pretendida. Era. O sangue parando porque ninguém o estancaria. como o odor da menstruação era. e porque é angústia com destino previsto: terá de ser abafada. como a ternura pelos animais descoberta desde cedo. Mas era. a angústia aparece e agudiza-se porque é angústia. O recolhimento do seu corpo. A contusão interna materializando-se. As dores diminuindo porque o corpo precisava de se ocupar de outras dores — o estômago. Porque aquela experiência não poderia ser distinta das outras. Se ainda houver espaço. como a sensação de tristeza quando via as crianças passando nos colos das mães. os dedos nus tocando o chão. As mães. querer não chorar exatamente ao mesmo tempo que a vagina lateja compulsivamente. os ossos e o frio. A mãe. As lágrimas parando porque ela queria fechar os olhos e adormecer — como numa noite qualquer. adormecer… . começando a nascer. o sangue escorre parco e lento mas não para. como a sensação de impotência nas lutas com os homens. Como os dias de menstruação eram.nítido de querer abafar a dor. esquecida. arrumada num sítio interno. . Sonetos românticos O mar em redor de mim — não tanto uma casa para habitar. E. Quis fazer de conta que ela não estava ali. E de noite... e só depois deleitar-me com as vozes na rua. o cheiro a peixe e a carvão. Nunca mais ninguém quis morar aqui. Não me incomodava a umidade. NATÁLIA CORREIA. é pra de noite também?. o magoar dos dedos que criam. deixa-me em paz. tinha que a ouvir. A ti me entrego na hora adormecida De flores e estrelas que não têm data. as janelas que se não abriam. ao longe. O vazio da sala. sem ruir. nem o frio. Ninguém quer esta porcaria. mais para estar. a debilidade do momento. o papel que ainda não havia. o som metálico das teclas batendo.. Procurava concentrar-me no silêncio. O encanto de não conhecer o espaço e me sentir em casa. mas sem luz. a máquina de escrever pronta a reexistir. e a música nua. das ondas no mar. A “porcaria” era um poema arquitetónico em êxtase constante. se não abririam. Eu sou noturna.coração com ferrugem Dá-me do sonho a loucura exata Que liberta a alma taciturna.. a paz da sala vazia e nós nela. Ainda vai demorar muito? É que tenho mais que fazer. Tempo. Foi esta porcaria que o meu marido me deixou. sem ruir. que o vazio e a casa eram ferramentas femininas. sem ouvi-la. abanando levemente as estruturas em compasso com o .. De noite existem candeeiros e velas — quis eu dizer.. a falta de tempo da senhoria desinteressada. Nem mesmo alugar. Minhas. isto! Aqui. nos poros e nos olhos do coração. sinto a calmaria das ondas. vamos lá embora. Tudo ganha ferrugem aqui. chega aos ossos. a aflição de uma gaivota aleijada que voa.vento. não resisto: Até os corações? Até os corações ganham ferrugem aqui na sua casa? . o que é cheirar a ferrugem e ter que escrever como uma louca. Poderei dividir a minha verdade com esta mulher? Bom.. sinto o mar do outro lado da parede. se eu disser o que vejo. voa. não vê? E se eu disser a verdade.. arrasto os pés para lhes sentir o eco e. olho. Não resisto: arrumo a máquina de escrever. Se há sonho em vida é isto — estar aqui absorvendo o abismo que me separa desta mulher no saborear deste espaço. Conto duas ou três fendas no teto. E tudo ganha ferrugem. a tarde inteira. mas já não consegue voar. é tudo úmido. já se viu que não dá pra nada. vez última. antes do olhar da senhora. Não se faz nada aqui. as janelas. antes da porta. antes das escadas. poderá ela acompanhar-me? Poderá saber o que é sentar o olhar numa janela. sem sentir que as velas se consomem e desaparecem. paredes com o mundo. Cecília moça com chapéu de palha de Menalton Braff perdido de volta de Miguel Gullander jogo de damas de Myriam Campello mandingas da mulata velha na cidade nova de Nei Lopes ódio sustenido de Nelson de Oliveira poeira: demônios e maldições de Nelson de Oliveira rio dos bons sinais de Nelson Saúte os da minha rua de Ondjaki mais ao sul de Paloma Vidal amor em segunda mão de Patrícia Reis morder-te o coração de Patrícia Reis predadores de Pepetela esmalte vermelho de Rodrigo Bittencourt dicionário de pequenas solidões de Ronaldo Cagiano próximos lançamentos .outros livros desta coleção a guerra dos bastardos de Ana Paula Maia os malaquias de Andréa del Fuego o melhor do inferno de Christiane Tassis sobre a neblina de Christiane Tassis o evangelho segundo a serpente de Faíza Hayat a luz do índico de Francisco José Viegas o poço de campaná de Fred Góes a mulher que transou com o cavalo e outras histórias de João Ximenes Braga as mulheres do meu pai de José Eduardo Agualusa requiem para o navegador solitário de Luís Cardoso cão de cabelo de Mauro Sta. com.br .linguageral.búfalo de Botika as três vidas de João Tordo estação das chuvas de José Eduardo Agualusa elvis & madona de Luiz Biajoni desmedida de Ruy Duarte de Carvalho visite nosso site: www. [4]Dinheiro. de bicicleta! [Versos do poeta cabo-verdiano Corsino Fortes. .notas de rodapé [1]Onde é que vai? [2]Vou até Espanha… Até à América.] [3]Miúdo.
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